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Curso: EFA – NS Área:

CLC

Envelhecimento

Participei, esta semana, na Fundação Gulbenkian, num seminário sobre a saúde e


o envelhecimento. Valeu a pena recordar um problema que muito fazemos para
ignorar. São quase dois milhões os idosos de mais de 65 anos, um quinto da população
e um quarto do corpo eleitoral.
Uma inspiração marcante do Estado providência é a do cuidado a ter para com os
mais fracos: crianças, idosos e doentes. Acontece que foram imensos os progressos
feitos no cuidado das crianças e dos doentes e foi menor, muito menor, a atenção
prestada aos idosos. Não falo só dos cuidados prestados pelo Estado: falo da sociedade
em geral, de todos nós. A verdade é que, as mais das vezes, os velhos não existem.
Cruzamo-nos todos os dias com eles, mas, como se fossem invisíveis, nem os vemos.
Diz-se que o progresso da medicina tem sido enorme, o que é verdade se
olharmos para o alongamento da esperança de vida. Povos europeus que, ainda há
poucas décadas, tinham um horizonte de cinquenta anos, podem hoje esperar viver
até aos oitenta. É a isso (e à quebra da natalidade) que se deve o envelhecimento
pronunciado das sociedades. Mas esse ganho de tempo nem sempre representa um
melhoramento da condição de vida. Nas últimas décadas, a marginalidade e a solidão
dos idosos não pararam de crescer. É possível que, para evitar o envelhecimento
solitário, nenhum idoso queira morrer mais cedo. Compreende-se. Mas tal
verificação não é fundamento para que baste uma esperança de vida mais longa. Ao
mesmo tempo que as crianças são objecto de toda a espécie de protecção (para os
pais irem trabalhar), são cada vez mais os idosos que deixam a casa da família, vivem
sozinhos, residem em lares, arrastam-se por hospitais e casas de saúde, enfim, morrem
sozinhos. Felizes os que não duram o suficiente para perceberem que são um fardo.
Felizes os que não são objecto de encarniçamento médico. Felizes os que morrem
depressa.
A não ser que sejam velhos, os doentes poderão amanhã ser saudáveis. É o que
eles esperam e é o que todos esperam por eles. As crianças serão amanhã
trabalhadores, técnicos e profissionais. Se eles não esperam ainda, outros, os pais,
esperam por eles. Os idosos, esses, amanhã não serão nada. Eles próprios não têm
esperança. Deles nada se espera. Ou antes, os outros esperam que os velhos os não
incomodem, os não impeçam de trabalhar, divertir-se, passar férias, viajar e sair à
noite. E às vezes esperam heranças.
Olhemos para eles, arrastando-se num jardim público, sozinhos ou aos pares. Por
vezes, com ar de estarem "a ser passeados", atrás dos filhos, nem sempre com afecto e
vontade suficientes. No centro comercial, sem poder de compra, não são bons
clientes, poucos se interessam por eles. Ficam horas a olhar para as montras. Já não
têm força para subir escadas, nem para carregar embrulhos. Demoram eternidades a
contar os trocos. Enganam-se nas compras e nas filas de espera. Andam devagarinho, à
procura de um banco, em geral ausente, de uma casa de banho, quase sempre cheia.
Fogem dos locais com mais movimento, têm medo que tropecem neles. Quantos não
desejariam, acima de tudo, ser independentes e não precisar dos outros para tudo! E,
no entanto, são muitas vezes a imagem mesmo da dependência. O que só aumenta o
seu sofrimento. Porque padecem de tudo: da dependência e da solidão. Da
dependência dos outros e da solidão sem os outros.
A sociedade, para os velhos, não voltará a ser o que muitos pensam e nem
sempre foi verdade: o fim de vida passava-se com as novas gerações. Não é possível
imaginar uma evolução tal que os idosos possam um dia terminar os seus dias em
companhia daqueles de quem gostam, os do seu sangue e da sua história. O problema
é sério. Obrigados a trabalhar dias inteiros, homens e mulheres, filhos e filhas, netos e
netas, não podem passar os dias a tratar dos seus velhos e a fazer-lhes companhia.
Conhecemos, neste século, mil e um progressos: culturais, políticos, sanitários,
tecnológicos e de bem-estar. Mas, num caso, talvez num só, o dos idosos, conhecemos
mais regressos e crueldade do que progressos. As gerações activas separam-se dos
seus idosos de modo irreversível. A sociedade está organizada para quem produz.
Eventualmente para quem virá a render amanhã. Mas não está, definitivamente não
está organizada para quem cumpriu o seu tempo e os seus deveres, para quem já
rendeu e produziu, para quem espera acabar com algum calor e morrer em paz. Para
esses, as famílias e os poderes preparam instituições e mecanismos capazes, não de
lhes dar o que precisam, mas de lhes fornecer aquilo de que nós precisamos: ver os
velhos à distância. Sozinhos ou em lares. Arrumados. As sociedades da eficácia e da
competitividade querem os velhos estacionados, tão imóveis quanto possível, tão
amestrados quanto imaginável e tanto de boa saúde quanto for útil para os outros, os
mais novos: a isso, chamam-lhe conforto. Ou solidariedade.
Para além de tudo o mais que não possuem (força física, resistência, esperança,
poder de compra...), os idosos não têm capacidade reivindicativa. Quer isto dizer que
os poderes públicos, os afortunados, as organizações sociais e todos os grupos
humanos só acodem aos velhos se a tal forem forçados. Ou por interesse e egoísmo.
Por isso os esquecem e desprezam. Tratar dos idosos sem interesse e por afecto: é a
mais drástica prova que as sociedades enfrentam, a prova da sua humanidade. Pelo
que conhecemos hoje, a resposta não é famosa. Em vez de promover a actividade e de
prolongar o tempo de utilidade e ocupação, as sociedades esmeram-se em cuidar do
limite de idade.

Há, todavia, uma boa notícia para os velhos. Lentamente, vão adquirindo uma
força inesperada: a sua capacidade eleitoral. Dentro de alguns anos, serão mais do que
um terço do eleitorado. Nessa altura, quando os adultos precisarem deles, os velhos
terão tudo. Menos afecto e companhia.

BARRETO, António – Os Velhos, 10 de Dezembro de 2000

1. Explique de que forma a sociedade encara os idosos.

2. Enuncie os mecanismos que o Estado coloca à disposição do idoso.

3. Comente o último parágrafo do texto.

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