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O lazer de pessoas idosas: por que é

tão difícil?
FONTE: Por Alexandre da Silva, da UOL

20/07/2021

Imagem: iStock

Talvez uma das atividades mais difíceis para muitas idosas e idosos e
algumas pessoas que estão para envelhecer, ainda que não tão complexa,
seja pensar o seu próprio lazer.

Histórica e culturalmente, o lazer não foi algo dado ou muito menos


ensinado e transmitido amplamente de geração para geração. Ainda mais
se a família, em algum momento da sua história, passou por alguma
situação de precariedade ou ausência de comida, falta de trabalho ou não
teve o dinheiro do aluguel.

Para essas pessoas, lazer é algo que nunca foi pensado, planejado ou dado
alguma importância. Entendendo que o Brasil envelhece de forma
acelerada e a expectativa de vida tende a crescer nos próximos anos,
talvez com um retardo decorrente da pandemia, o lazer passa a ser ainda
mais importante porque faz bem, melhora a possibilidade de criatividade,
traz bem-estar e reduz adoecimentos como transtornos mentais e
inatividade física.

Para aprofundar o assunto, é necessário entender o que significa lazer.


Esta palavra, que se origina do latim, significa licere, isto é, ser lícito, ser
permitido. Corresponde ao nosso tempo de folga, ao nosso passatempo,
ao ócio, ao descanso, à distração ou ao nosso entretenimento.
Diz respeito também ao que se faz de livre vontade e que não é trabalho
ou algum tipo de obrigação familiar ou social. É uma necessidade humana,
uma dimensão da cultura e que faz interface com a ciência, saúde,
economia e educação.

Lazer nos ajuda a não ter apenas a execução mecânica e automatizada


da mesma atividade laboral como um propósito maior da nossa vida, sem
ter cogitado fazer algo diferente e tão importante quanto.

Para muitas pessoas idosas, a palavra lazer chega a ser quase como um
insulto, como algo que não é para essa vida ou encarnação, mas que pode
ser pensado talvez para filhas, filhos, netas e netos, gerando um
autoimpedimento, quase uma autopunição.

O que parece é que no Brasil a possibilidade de pensar e executar o lazer


sofre a influência dos marcadores sociais de gênero, étnico-raciais e
etário.

A intersecção desses vai reduzindo as chances de um lazer usufruído sem


culpa, constrangimento ou aquele sentimento de que se poderia ter doado
ou destinado a quantia financeira e a energia para outra finalidade,
religiosa e socialmente mais aceita.

No contexto da vida de idosas e idosos percebemos que muitas das


atividades relacionadas ao lazer mantêm mulheres trabalhando. Isso
ocorre nas férias da família, quando idosas estão cuidando de netas e
netos ou fazendo uma “comidinha” para a família toda.

“Ah, mas ela gosta de fazer isso!”, diria alguém. Mas o fato é que
aceitamos naturalmente que todas e todos possam estar descansando
enquanto nossa mãe ou avó ainda continua no fogão, picando alimentos,
montando os pratos ou lavando algumas “roupinhas” no tanque.

Já o homem velho sai mais cedo para buscar pão, para acompanhar netos
e netas nas atividades externas. “É lindo vê-los brincar!”, diriam outras
pessoas.

Sim, mas também deveria ser legítimo o idoso fazer o que quisesse
também e não ser delegado uma atividade que não traz mais prazer ou
que seja fisicamente desgastante e sem tantos sorrisos associados.

Na perspectiva étnica e racial, o Brasil nunca permitiu que pessoas negras


tivessem as mesmas oportunidades de lazer se comparadas às pessoas
brancas.
Nosso país teve a Lei da Vadiagem, de 1941, que impedia que pessoas,
em geral as negras, ficassem reunidas nos espaços públicos.

Nessa lei havia um artigo que incluía vadiagem como “entregar-se


habitualmente à ociosidade”. Como se não bastasse, teve (ou ainda tem)
ações que impediam a realização de diversas manifestações culturais a
céu aberto, como a capoeira e, mais recentemente, os bailes funk.

Na coluna da jornalista Cris Guterres, há uma comparação extremamente


emblemática e dolorida sobre possibilidade de festejar de pessoas negras
e de pessoas brancas: a polícia bate e depois pergunta o que acontece
nos espaços onde estão muitas pessoas negras reunidas em festa, e isso
vem desde antes da pandemia.

E, nos espaços de lazer onde não há tantas pessoas pretas e pardas, a


polícia pede licença e, muitas vezes receosa e envergonhada, aceita
insultos sem uma resposta física violenta e exagerada. Percebe a
diferença?

As pessoas idosas negras sabem bem o que isso significou para as suas
vidas e, de forma consciente ou não, ensinaram seus mais novos a fazer
o mesmo: trabalhar, trabalhar e, quando possível, estudar. Lazer? Nem
pensar!

E, se pensar, que seja sempre com um documento na mão, legitimando


que são pessoas com registros e um número que as identifica e mostra
que são cidadãos e cidadãs iguais a outras pessoas e fazendo tudo aquilo
que a maioria das pessoas faz, mesmo que não gostem tanto e tirando a
espontaneidade e o prazer que o lazer pode proporcionar.

A escritora bell hooks, em seu livro “Olhares Negros”, apresenta um


capítulo sob o título “Rediscutindo masculinidades negras”, e lá mostra
que em muitas culturas africanas e indígenas o ócio é um momento de
sonhar acordado e de contemplar.

E faço uma análise de que é uma linda forma de enaltecer a função do


lazer e que poderia trazer um sorriso fácil para uma pessoa idosa, homem
ou não, que tanto fez e hoje poderia estar usufruindo de uma situação
que seja agradável para si.

Historicamente, há um grupo social que procurou disseminar a mentira de


que pessoas negras e indígenas são vagabundas e preguiçosas. Na
construção de identidades negras e indígenas, tal aspecto social foi
incorporado na expectativa de que tais corpos precisassem ser mais
aceitos e caberia a cada um, de forma bem individualizada e sempre
trabalhando muito, mostrar o contrário.
E assim, percebe-se o perigo da linguagem mal interpretada e da narrativa
única, na qual foi ensinado a não se sentirem tão à vontade com esse não
fazer nada que, na perspectiva capitalista, é não estar trabalhando, e
cerceou a liberdade e o direito ao bem-viver de boa parte da população
brasileira que envelheceu e vem envelhecendo, muitas vezes doentes,
sem benefícios sociais adequados e com pensões ou aposentadorias
insuficientes para as suas despesas diárias, o que inviabiliza ainda mais o
lazer.

E, mesmo quando essa pessoa idosa tem condições financeiras para fazer
o lazer, ou seja, que tem dinheiro acumulado e até uma casa no campo,
na praia ou em algum lugar, esse velho ou velha não se permite usufruir
de forma regular, como merecedora ou merecedor daquele lazer.

E, muitas vezes, fica mais fácil alugar esse imóvel. É um não lazer sem
fim e que se justifica como a herança que será deixada para as próximas
gerações, como uma proteção para que não sofram como eles quando
eram jovens.

Esse tem sido um dos focos dos meus estudos sobre envelhecimento.
Na pesquisa divulgada em 2018, com todas as comprovações estatísticas
que fiz, pessoas idosas pretas e pardas da maior capital do país não
tinham por hábito sair de casa para visitar amigos e tampouco receber
visitas em casa, o que seria uma forma barata e simples de lazer com
outras pessoas.

Essas pessoas idosas sempre trabalharam, mesmo doentes, para não ficar
devendo ou não ter onde dormir ou algo para comer.

Lazer é também um problema de saúde pública e que não é tratado como


tal, já que permitiria uma sociedade mais inclusiva e reduziria os impactos
negativos da condição de morar sozinha de pessoas idosas e também de
doenças como a depressão.

No aspecto subjetivo, pode-se ainda pensar que pessoas idosas não


conseguem se olhar no espelho e permitir um riso decorrente do lazer que
dá possibilidades para uma respiração mais funda que revitaliza e melhora
as estratégias para enfrentar o dia a dia tão cheio de desafios, incertezas
e de novos medos.

O lazer pode ser, para muitas idosas e idosos, perda de tempo, algo de
menor relevância, que não gera rendimentos ou algum tipo de
produtividade, reforçando a manutenção de uma estrutura econômica que
falha ao reforçar estereótipos negativos da velhice e enaltecendo que é
algo para ser feito enquanto jovem, principalmente.
Da forma como se vive hoje no Brasil, há valores socialmente construídos
que impedem muitos velhos e velhas de sonhar e de contemplar
livremente o seu próprio lazer.

Fazer o lazer de forma consciente e livre é uma bandeira que precisamos


levantar e pensar conjuntamente tanto para quem é idoso, idosa e
também para quem será.

Nossas práticas atuais e valores não incorporam devidamente essa


dimensão tão importante da vida. Sabemos ensinar muito bem as formas
de sobrevivência, de resistência e de responsabilidade.

Nossa forma de interpretar o lazer desconsidera seus significados nas


diferentes culturas presentes no Brasil, como as africanas, orientais e
indígenas, o que é um erro grave e que restringe a cidadania de muitas
pessoas idosas. Precisamos incluir nas formas de tratamento, nas agendas
pessoais e nas políticas públicas a necessidade da naturalização do lazer.

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