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II - A CULTURA COMO SISTEMA SEMIÓTICO

Cultura e cultura A amplitude e a complexidade do


conceito "Cultura" já estão registradas em suas remotas
origens. O substantivo latino "cultura" significa, em seu
uso primeiro e mais concreto, cultura agrícola, plantação e
cuidados requeridos pelo cultivo.
Contudo, no exato momento em que o cultivador passa a
ser o alvo da ação de cultivo, o conceito é transposto à
esfera humana, e, agora em um sentido figurativo, vai
significar a "cultura do espírito", designando a formação
intelectual do homem por meio da filosofia, da ciência, da
ética e da arte. Uma das facetas da chamada "cultura do
espírito" está expressa no adjetivo latino cultas que
significa exatamente "elegante, esmerado, enfeitado".
Assim, já em sua etimologia a palavra cultura aponta
para duas importantes facetas de sua manifestação: quando o
objeto do cultivo está fora do cultivador, está na esfera
do mundo externo, e quando o objeto do cultivo é o próprio
sujeito cultivador. Evidentemente indispensável à
sobrevivência do homem, a cultura, em sua primeira acepção,
como cultivo agrícola, ou criação de animais, com o
posterior aperfeiçoamento de técnicas e ferramentas visando
à otimização da atividade produtiva, desenvolve-se, amplia
suas conquistas, amplia sua abrangência, subdivide-se em
milhares de áreas auxiliares, ganha outras denominações.
Desde a meteorologia até a engenharia genética, desde
a informática até a robótica, desde a biônica até a
matemática do caos constituem, em última instância,
desenvolvimentos da necessidade da interação do homem com o
mundo circundante, com o objetivo de assegurar sua
sobrevivência material. Não é esta área, da qual
indubitavelmente faz parte toda a tecnologia, que aqui nos
interessa neste momento. Interessa-nos, ao contrário,
aquele momento em que a autoconsciência se manifesta, ou
seja, quando o homem é objeto do cultivo do próprio homem.
Este momento do voltar-se a si mesmo apontando para a
possibilidade do construir-se, do refazer-se, do melhorar-
se ou piorar-se, do embelezar-se ou enfeiar-se, constitui a
ponte para a superação das amarras da realidade físico-
biológica, denominada pelo semioticista Ivan Bystrina de
"primeira realidade".
Convém não esquecermos que este momento de superação
da primeira realidade não independe das realizações do
homem para assegurar sua sobrevivência. Ao contrário, ele
pressupõe mesmo estas conquistas que, garantindo a
sobrevivência física, propiciam também o momento do
esquecer-se dela. Esquecer a mera sobrevivência física e
permitir-se o ócio da autoconsciência e ainda mais, da
metaconsciência, constitui o traço principal desse setor
cuja denominação mais adequada parece ser exatamente
"cultura", em um sentido mais preciso, mais restrito, mais
claramente delimitado. Vejamos por que e como nasce este
complexo sistema e de que maneira ele se desprende da
primeira realidade ganhando leis e regras próprias,
atingindo sua autonomia.

Ócio e esquecimento

A contínua tensão a que muitos seres vivos são


submetidos para a preservação da própria vida constitui um
desafio permanente, um desgaste constante. Preservar a vida
significa prover-lhe suas necessidades nutricionais, por um
lado, e protegê-la contra todo tipo de ataques predadores,
por outro. Isto envolve um permanente estado de alerta
defensivo, para não se tornar alimento, e ofensivo, na
busca do alimento.
Consequentemente constitui-se em fonte geradora de
déficits, de defeitos no sistema. Uma vez que a vigília e o
trabalho permanentes esgotam, tendem inercialmente a um
esvaziamento de sua própria eficiência. Assim, o próprio
sistema chamado "vida" cria espaços de recuperação e
prevenção dos defeitos no sistema: o sono é o principal
modelo do baixar a guarda para manter a eficácia da
vigília. E o sono passa a ser o primeiro pressuposto para a
superação do estado de tensão criado pela primeira
realidade. Pressuposto biológico, o estado de relaxamento
provocado pelo sono é recriado na garantia do espaço do
descanso, vale dizer, do ócio. E este é o espaço do
"dentro", dentro de sua caverna, dentro de sua cabana,
dentro de sua casa, dentro de seu grupo social. Estar fora
envolve a necessidade de estar alerta, significa estar
desprotegido. Estar dentro significa estar protegido e, por
isso, traz a possibilidade do esquecimento da vigília, um
sono acordado que reúne as vantagens do gozo do sono e da
consciência da vigília.
Contudo, muito mais do que o sono em si, mas aquilo
que o sono inevitavelmente possibilita, ao menos aos
animais superiores, o sonho, se oferece como exemplo de
atividade que desconsidera e portanto supera todos os
problemas insolúveis existentes na primeira realidade.
Assim, no sonho ganham existência "real" seres, objetos e
regras de funcionamento que não são possíveis na primeira
realidade. Pessoas mortas aparecem vivas, vivos morrem,
homens voam, se transfiguram, se transformam, fracos viram
fortes, fortes e imbatíveis são derrotados e muitas outras
coisas mais.
O sonho oferece o impulso para as criações da
imaginação em vigília. E, como o sonho se organiza como um
texto, a cultura, no sentido de "segunda realidade", também
se ordena de maneira textual. Não é outro o significado da
colocação feita em consenso pelos principais semioticistas
soviéticos das escolas de Tartu e Moscou, a saber J. M.
Lotman, B. Uspienskii, V. V. Ivanov, V. N. Toporov e A. M.
Pjatigorskii, em seu texto fundamental, de 1973, "Teses
para a investigação semiótica da cultura". Segundo estes
cinco importantes pesquisadores, a cultura constitui o
conjunto de textos produzidos pelo homem. Deve-se assim
entender por "textos da cultura" não apenas aquelas
construções da linguagem verbal, mas também imagens, mitos,
rituais, jogos, gestos, cantos, ritmos, performances,
danças etc. A construção do sonho Desprender-se da primeira
realidade portanto é algo que se dá como um desdobramento
inevitável da própria realidade primeira. E a criação de
uma segunda realidade acontece com modelos dados pela
primeira. Ivan Bystrina aponta, em consonância com Lotman,
Ivanov, Cassirer, Lévy-Strauss, Harry Pross e muitos
outros, o caráter sígnico da cultura quando diz: A segunda
realidade todavia não é algo do outro mundo, do além. Ela
existe — realmente — nas células cinzentas dos cérebros e é
transponível em signos perceptíveis, em signos materiais e
energéticos e textos (fala, escrita, imagem, gesto, filme,
música) (Bystrina,1989:242).
Acrescenta ainda que "ela possui um caráter sígnico, é
construída de signos e realizada em textos"
(Bystrina,1989:243). Uma vez que a segunda realidade possui
um caráter sígnico, ela se ordena como linguagem e obedece
a certos princípios e regras. Ao conjunto de regras de
funcionamento de uma determinada linguagem dá-se o nome de
código. Assim, a cultura possui os seus códigos e funciona
de acordo com estes códigos. Como em todo processo
comunicativo ou informativo, os códigos culturais também
têm suas fontes, das quais retiram as informações
necessárias para sua constituição. Vejamos então quais são
as possíveis fontes dos códigos culturais. A biologia nos
ensinou que os processos vitais são operações de câmbio
informacional. Fala-se mesmo em comunicação intercelular,
em comunicação das sinapses nervosas; fala-se em código
genético e as trocas metabólicas são também trocas
informacionais. Todos estes processos obedecem a regras
predeterminadas pelo próprio organismo em sua evolução
filogenética. A existência e o funcionamento destes
processos informacionais em consonância com seus códigos
são condição indispensável para a sobrevivência biológica.
Assim, estes códigos podem ser chamados de códigos
primários (na denominação de Bystrina, códigos
hipolinguais). Quando cessam as trocas informacionais neste
nível, cessa a vida. Este processo de comunicação é o
processo intra-individual ou intra-orgânico. Contudo,
muitas espécies animais desenvolveram instrumentos de
comunicação inter-individual. São as chamadas línguas
naturais. Não precisamos nos iludir com nosso pouco
conhecimento sobre a linguagem animal, achando que só o
homem possui um instrumento de comunicação social
elaborado. Há hoje numerosos estudos sobre a linguagem
coreográfica das abelhas, sobre a comunicação de
determinados tipos de pássaros, sobre a comunicação
olfativa das formigas, sobre o canto das baleias. Em alguns
casos chega a haver levantamento de um considerável léxico
dessas linguagens. Elas obedecem a códigos secundários ou
linguais, que se constroem evidentemente sobre o
funcionamento dos códigos primários. Se há um problema
grave na comunicação intra-orgânica, biológica, isto pode
bloquear inteiramente o funcionamento das linguagens
naturais. As línguas naturais são bem desenvolvidas
naquelas espécies cuja vida social é intensa e
indispensável.
Vimos logo acima que o estar em sociedade significa
estar envolto, protegido, poder ter os outros indivíduos
como prolongamento do próprio organismo, na medida em que o
coletivo proporciona o revezamento, a especialização, a
força reunida e multiplicada, o trabalho dividido e muitas
outras vantagens. Sem o coletivo, a espécie humana teria
provavelmente sucumbido diante de tantas outras espécies
mais fortes, mais velozes, maiores. E o instrumento mais
importante para a sobrevivência de um coletivo é uma língua
tão precisa quanto possível. No entanto, nem o
desenvolvimento de refinadas técnicas, nem a descoberta de
importantes artifícios, nem o fortalecimento da proteção
pela reunião de indivíduos em sociedades conseguiu resolver
alguns problemas que afligiam o homem, tais quais doenças,
fenómenos e catástrofes naturais e principalmente o mais
forte, insolúvel e inevitável de todos os problemas, a
morte. É aí que, valendo-se das línguas naturais
(comunicação corporal, comunicação gestual, comunicação
sonora e comunicação verbal) o homem cria uma "segunda
realidade" na qual estes problemas — e muitos outros que
não podia compreender — são superados no nível simbólico.
Esta segunda realidade é regida pelos códigos terciários,
culturais ou hiperlinguais. E a inspiração para esta
indispensável e maravilhosa invenção do homem vem
provavelmente de algo que não é exclusivamente humano: o
sonho.

"A alegria é a prova dos nove." (Oswald de Andrade)

Do sonho vem a primeira inspiração, mas também do


sonho acordado, do devaneio, do delírio jorram ideias,
imagens, verdadeiros textos que possibilitam a criação de
mitos, de ritmos, de histórias. Também do sonho nasce o
jogo, o brinquedo, a simulação. Sabemos que o brincar já
está presente em espécies animais superiores sobretudo em
sua infância. E no homem a atividade lúdica se estende por
toda a vida e é fonte de fortalecimento de sua criatividade
e portanto de suas forças. Uma terceira fonte de inspiração
para o aperfeiçoamento da segunda realidade provém de
determinados indivíduos que possuem um tipo de
sensibilidade diferenciada e que são considerados hoje
neuróticos, psicóticos, esquizofrênicos. Estes indivíduos
veem o que outros não veem, sentem o que os outros não
sentem e conseguem ou são compelidos a romper padrões
estabelecidos de comportamento. Extensos estudos do médico
e psiquiatra Leo Navratil dão conta da capacidade aguçada
destas pessoas de "fisionomização, ritmização e
simbolização" (Navratil, 1974a:43), elementos constitutivos
absolutamente indispensáveis dos textos culturais. Por
último são fontes da cultura todos aqueles procedimentos de
busca do êxtase, seja por meio de substâncias, seja por
meio de sons, seja por meio de movimentos. Assim,
analisadas estas fontes de inspiração e criação da cultura,
constata-se como traço comum a todas elas (inclusive as
variantes psíquicas) a presença de um traço de busca do
prazer, do gozo, da alegria. Não é sem razão que o enfant
terrible da modernidade brasileira, Oswald de Andrade,
declara que "a alegria é a prova dos nove".
(NORVAL BAITELLO do livro O ANIMAL QUE PAROU OS RELÓGIOS)

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