conceito "Cultura" já estão registradas em suas remotas origens. O substantivo latino "cultura" significa, em seu uso primeiro e mais concreto, cultura agrícola, plantação e cuidados requeridos pelo cultivo. Contudo, no exato momento em que o cultivador passa a ser o alvo da ação de cultivo, o conceito é transposto à esfera humana, e, agora em um sentido figurativo, vai significar a "cultura do espírito", designando a formação intelectual do homem por meio da filosofia, da ciência, da ética e da arte. Uma das facetas da chamada "cultura do espírito" está expressa no adjetivo latino cultas que significa exatamente "elegante, esmerado, enfeitado". Assim, já em sua etimologia a palavra cultura aponta para duas importantes facetas de sua manifestação: quando o objeto do cultivo está fora do cultivador, está na esfera do mundo externo, e quando o objeto do cultivo é o próprio sujeito cultivador. Evidentemente indispensável à sobrevivência do homem, a cultura, em sua primeira acepção, como cultivo agrícola, ou criação de animais, com o posterior aperfeiçoamento de técnicas e ferramentas visando à otimização da atividade produtiva, desenvolve-se, amplia suas conquistas, amplia sua abrangência, subdivide-se em milhares de áreas auxiliares, ganha outras denominações. Desde a meteorologia até a engenharia genética, desde a informática até a robótica, desde a biônica até a matemática do caos constituem, em última instância, desenvolvimentos da necessidade da interação do homem com o mundo circundante, com o objetivo de assegurar sua sobrevivência material. Não é esta área, da qual indubitavelmente faz parte toda a tecnologia, que aqui nos interessa neste momento. Interessa-nos, ao contrário, aquele momento em que a autoconsciência se manifesta, ou seja, quando o homem é objeto do cultivo do próprio homem. Este momento do voltar-se a si mesmo apontando para a possibilidade do construir-se, do refazer-se, do melhorar- se ou piorar-se, do embelezar-se ou enfeiar-se, constitui a ponte para a superação das amarras da realidade físico- biológica, denominada pelo semioticista Ivan Bystrina de "primeira realidade". Convém não esquecermos que este momento de superação da primeira realidade não independe das realizações do homem para assegurar sua sobrevivência. Ao contrário, ele pressupõe mesmo estas conquistas que, garantindo a sobrevivência física, propiciam também o momento do esquecer-se dela. Esquecer a mera sobrevivência física e permitir-se o ócio da autoconsciência e ainda mais, da metaconsciência, constitui o traço principal desse setor cuja denominação mais adequada parece ser exatamente "cultura", em um sentido mais preciso, mais restrito, mais claramente delimitado. Vejamos por que e como nasce este complexo sistema e de que maneira ele se desprende da primeira realidade ganhando leis e regras próprias, atingindo sua autonomia.
Ócio e esquecimento
A contínua tensão a que muitos seres vivos são
submetidos para a preservação da própria vida constitui um desafio permanente, um desgaste constante. Preservar a vida significa prover-lhe suas necessidades nutricionais, por um lado, e protegê-la contra todo tipo de ataques predadores, por outro. Isto envolve um permanente estado de alerta defensivo, para não se tornar alimento, e ofensivo, na busca do alimento. Consequentemente constitui-se em fonte geradora de déficits, de defeitos no sistema. Uma vez que a vigília e o trabalho permanentes esgotam, tendem inercialmente a um esvaziamento de sua própria eficiência. Assim, o próprio sistema chamado "vida" cria espaços de recuperação e prevenção dos defeitos no sistema: o sono é o principal modelo do baixar a guarda para manter a eficácia da vigília. E o sono passa a ser o primeiro pressuposto para a superação do estado de tensão criado pela primeira realidade. Pressuposto biológico, o estado de relaxamento provocado pelo sono é recriado na garantia do espaço do descanso, vale dizer, do ócio. E este é o espaço do "dentro", dentro de sua caverna, dentro de sua cabana, dentro de sua casa, dentro de seu grupo social. Estar fora envolve a necessidade de estar alerta, significa estar desprotegido. Estar dentro significa estar protegido e, por isso, traz a possibilidade do esquecimento da vigília, um sono acordado que reúne as vantagens do gozo do sono e da consciência da vigília. Contudo, muito mais do que o sono em si, mas aquilo que o sono inevitavelmente possibilita, ao menos aos animais superiores, o sonho, se oferece como exemplo de atividade que desconsidera e portanto supera todos os problemas insolúveis existentes na primeira realidade. Assim, no sonho ganham existência "real" seres, objetos e regras de funcionamento que não são possíveis na primeira realidade. Pessoas mortas aparecem vivas, vivos morrem, homens voam, se transfiguram, se transformam, fracos viram fortes, fortes e imbatíveis são derrotados e muitas outras coisas mais. O sonho oferece o impulso para as criações da imaginação em vigília. E, como o sonho se organiza como um texto, a cultura, no sentido de "segunda realidade", também se ordena de maneira textual. Não é outro o significado da colocação feita em consenso pelos principais semioticistas soviéticos das escolas de Tartu e Moscou, a saber J. M. Lotman, B. Uspienskii, V. V. Ivanov, V. N. Toporov e A. M. Pjatigorskii, em seu texto fundamental, de 1973, "Teses para a investigação semiótica da cultura". Segundo estes cinco importantes pesquisadores, a cultura constitui o conjunto de textos produzidos pelo homem. Deve-se assim entender por "textos da cultura" não apenas aquelas construções da linguagem verbal, mas também imagens, mitos, rituais, jogos, gestos, cantos, ritmos, performances, danças etc. A construção do sonho Desprender-se da primeira realidade portanto é algo que se dá como um desdobramento inevitável da própria realidade primeira. E a criação de uma segunda realidade acontece com modelos dados pela primeira. Ivan Bystrina aponta, em consonância com Lotman, Ivanov, Cassirer, Lévy-Strauss, Harry Pross e muitos outros, o caráter sígnico da cultura quando diz: A segunda realidade todavia não é algo do outro mundo, do além. Ela existe — realmente — nas células cinzentas dos cérebros e é transponível em signos perceptíveis, em signos materiais e energéticos e textos (fala, escrita, imagem, gesto, filme, música) (Bystrina,1989:242). Acrescenta ainda que "ela possui um caráter sígnico, é construída de signos e realizada em textos" (Bystrina,1989:243). Uma vez que a segunda realidade possui um caráter sígnico, ela se ordena como linguagem e obedece a certos princípios e regras. Ao conjunto de regras de funcionamento de uma determinada linguagem dá-se o nome de código. Assim, a cultura possui os seus códigos e funciona de acordo com estes códigos. Como em todo processo comunicativo ou informativo, os códigos culturais também têm suas fontes, das quais retiram as informações necessárias para sua constituição. Vejamos então quais são as possíveis fontes dos códigos culturais. A biologia nos ensinou que os processos vitais são operações de câmbio informacional. Fala-se mesmo em comunicação intercelular, em comunicação das sinapses nervosas; fala-se em código genético e as trocas metabólicas são também trocas informacionais. Todos estes processos obedecem a regras predeterminadas pelo próprio organismo em sua evolução filogenética. A existência e o funcionamento destes processos informacionais em consonância com seus códigos são condição indispensável para a sobrevivência biológica. Assim, estes códigos podem ser chamados de códigos primários (na denominação de Bystrina, códigos hipolinguais). Quando cessam as trocas informacionais neste nível, cessa a vida. Este processo de comunicação é o processo intra-individual ou intra-orgânico. Contudo, muitas espécies animais desenvolveram instrumentos de comunicação inter-individual. São as chamadas línguas naturais. Não precisamos nos iludir com nosso pouco conhecimento sobre a linguagem animal, achando que só o homem possui um instrumento de comunicação social elaborado. Há hoje numerosos estudos sobre a linguagem coreográfica das abelhas, sobre a comunicação de determinados tipos de pássaros, sobre a comunicação olfativa das formigas, sobre o canto das baleias. Em alguns casos chega a haver levantamento de um considerável léxico dessas linguagens. Elas obedecem a códigos secundários ou linguais, que se constroem evidentemente sobre o funcionamento dos códigos primários. Se há um problema grave na comunicação intra-orgânica, biológica, isto pode bloquear inteiramente o funcionamento das linguagens naturais. As línguas naturais são bem desenvolvidas naquelas espécies cuja vida social é intensa e indispensável. Vimos logo acima que o estar em sociedade significa estar envolto, protegido, poder ter os outros indivíduos como prolongamento do próprio organismo, na medida em que o coletivo proporciona o revezamento, a especialização, a força reunida e multiplicada, o trabalho dividido e muitas outras vantagens. Sem o coletivo, a espécie humana teria provavelmente sucumbido diante de tantas outras espécies mais fortes, mais velozes, maiores. E o instrumento mais importante para a sobrevivência de um coletivo é uma língua tão precisa quanto possível. No entanto, nem o desenvolvimento de refinadas técnicas, nem a descoberta de importantes artifícios, nem o fortalecimento da proteção pela reunião de indivíduos em sociedades conseguiu resolver alguns problemas que afligiam o homem, tais quais doenças, fenómenos e catástrofes naturais e principalmente o mais forte, insolúvel e inevitável de todos os problemas, a morte. É aí que, valendo-se das línguas naturais (comunicação corporal, comunicação gestual, comunicação sonora e comunicação verbal) o homem cria uma "segunda realidade" na qual estes problemas — e muitos outros que não podia compreender — são superados no nível simbólico. Esta segunda realidade é regida pelos códigos terciários, culturais ou hiperlinguais. E a inspiração para esta indispensável e maravilhosa invenção do homem vem provavelmente de algo que não é exclusivamente humano: o sonho.
"A alegria é a prova dos nove." (Oswald de Andrade)
Do sonho vem a primeira inspiração, mas também do
sonho acordado, do devaneio, do delírio jorram ideias, imagens, verdadeiros textos que possibilitam a criação de mitos, de ritmos, de histórias. Também do sonho nasce o jogo, o brinquedo, a simulação. Sabemos que o brincar já está presente em espécies animais superiores sobretudo em sua infância. E no homem a atividade lúdica se estende por toda a vida e é fonte de fortalecimento de sua criatividade e portanto de suas forças. Uma terceira fonte de inspiração para o aperfeiçoamento da segunda realidade provém de determinados indivíduos que possuem um tipo de sensibilidade diferenciada e que são considerados hoje neuróticos, psicóticos, esquizofrênicos. Estes indivíduos veem o que outros não veem, sentem o que os outros não sentem e conseguem ou são compelidos a romper padrões estabelecidos de comportamento. Extensos estudos do médico e psiquiatra Leo Navratil dão conta da capacidade aguçada destas pessoas de "fisionomização, ritmização e simbolização" (Navratil, 1974a:43), elementos constitutivos absolutamente indispensáveis dos textos culturais. Por último são fontes da cultura todos aqueles procedimentos de busca do êxtase, seja por meio de substâncias, seja por meio de sons, seja por meio de movimentos. Assim, analisadas estas fontes de inspiração e criação da cultura, constata-se como traço comum a todas elas (inclusive as variantes psíquicas) a presença de um traço de busca do prazer, do gozo, da alegria. Não é sem razão que o enfant terrible da modernidade brasileira, Oswald de Andrade, declara que "a alegria é a prova dos nove". (NORVAL BAITELLO do livro O ANIMAL QUE PAROU OS RELÓGIOS)