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MANIFESTAÇÕES

CULTURAIS RÍTMICAS,
EXPRESSIVAS E
GÍMNICAS

Cíntia Regina de Fátima


Sumário
INTRODUÇÃO������������������������������������������������� 3

O CORPO E O MOVIMENTO���������������������������� 4

O MOVIMENTO E A CULTURA AO
LONGO DOS ANOS����������������������������������������� 9

O MOVIMENTO NA CONSTRUÇÃO DA
CULTURA BRASILEIRA�������������������������������� 22

O RITMO DE TUDO��������������������������������������� 33

A COMPREENSÃO DO SOM������������������������� 37

OS BENEFÍCIOS DA MÚSICA����������������������� 40
Os domínios do desenvolvimento humano����������������������� 40

MÚSICA COMO EXPRESSÃO DA CULTURA� 44


África����������������������������������������������������������������������������������� 46
Oriente Médio���������������������������������������������������������������������� 49
Índia������������������������������������������������������������������������������������� 51
Extremo Oriente������������������������������������������������������������������ 53
Oceania�������������������������������������������������������������������������������� 56
Américas����������������������������������������������������������������������������� 58

A MÚSICA E O RITMO NO CONTEXTO


DAS EXPRESSÕES CORPORAIS������������������ 62

CONSIDERAÇÕES FINAIS���������������������������� 65

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS &


CONSULTADAS�������������������������������������������� 69

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INTRODUÇÃO
Neste e-book você poderá aprender o conceito
de corpo e sua incrível capacidade de gerar movi-
mento. Será abordado o papel do movimento no
desenvolvimento individual de cada um de nós e
como ele influenciou o avanço da humanidade.

Além disso, você também vai aprender como o


surgimento das sociedades influenciou a cultura
e a sua relação com o movimento, passando pela
história até chegar nos dias atuais. Com destaque
para a nossa cultura brasileira.

Por fim, analisaremos como o ritmo dita o com-


passo da vida, da fisiologia à arte, conectando o
movimento à cultura.

Neste e-book você poderá aprender sobre a musica-


lidade e tudo o que ela representa. Vamos estudar
como o cérebro e o sistema auditivo transformam
um simples estímulo mecânico em música. Além
do aspecto fisiológico, analisaremos os seus efei-
tos nos principais domínios do desenvolvimento
humano e o modo com que a música se entrelaça
à cultura.

Você também encontrará respostas sobre o que


é a expressão corporal e o que ela representa nas
principais manifestações da arte.

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O CORPO E O MOVIMENTO
Para começarmos, proponho a você o seguinte
questionamento: o que é o corpo? Em princípio,
em uma visão reducionista, podemos pensar que
se trata de um conjunto de sistemas fisiológicos
compostos por órgãos, ossos e tecidos diversos.
Mas podemos julgar correta uma definição tão
rasa? O conceito de corpo é amplo e a cada análise
podemos ter uma resposta diferente.
O corpo pode ser descrito pela ciência como matéria,
definido ainda por outras áreas como um conjunto
de sistemas que trabalham harmonicamente vi-
sando ao equilíbrio e à preservação da vida. Essa
dinâmica envolve desde diminutas células até
estruturas macroscópicas como órgãos, ossos,
pele, músculos etc.
É interessante notar que o mesmo conceito é ex-
plicado pela Psicologia de maneira bastante ampla
e reflexiva. Freud pontuava que o corpo possui
dois significados, um o corpo real, que podemos
tocar e ver, que ocupa um espaço e é galgado na
anatomia, e outro o corpo como princípio de vida
e individualização, com significados particulares
ao indivíduo.
A relação entre o corpo e a mente produz uma visão
única do indivíduo – a chamada imagem corporal,
que pode ser compreendida como a forma com que
o corpo se apresenta para o indivíduo, sendo esta
relação única e subjetiva, uma vez que está ligada
à percepção do próprio. No entanto, essa relação

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não é imutável, ou seja, ela pode mudar, uma vez
que é construída com base em experiências vividas
anteriormente e anseios futuros.
Esse corpo, dotado de dinamismo, conceitos
intrínsecos e demandas próprias que envolvem
a existência e a percepção, serve ainda de ins-
trumento de linguagem e expressão. Graças a
complexas estruturas, o corpo é capaz de produzir
algo fantástico que move a humanidade e permite
a nossa evolução: o movimento.
Vencer a inércia faz do homem um ser único, uma
vez que é capaz de empregar o corpo não somente
em tarefas voltadas para a sobrevivência, mas tam-
bém em tarefas minuciosas que requerem destreza,
cognição e treinamento. Enquanto os animais se
movimentam de forma a buscar a preservação da
vida, isto é, caçar, fugir de predadores e encontrar
abrigo, nós seres humanos vamos além. Fazemos
o uso do movimento na arte, no esporte, na recre-
ação e em muitas outras situações. Mais do que
isso, o movimento serve também para manifestar
ideias e para expressar emoções e sentimentos.
O movimento é natural ao ser humano. O bebê
movimenta-se dentro do ventre da mãe, sem ao
menos ter visto o mundo de fora. Ao nascer, chora,
agita braços e pernas, abre os olhos. Até o primeiro
semestre de vida ele não compreende o seu corpo
como uma identidade única, ele ainda acredita ser
uma extensão de sua mãe.
A descoberta do bebê em relação a si e ao seu corpo
e à sua desvinculação à ideia de “extensão da mãe”

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se dá através do movimento. Ao movimentar-se,
a criança aprende a reagir a estímulos, expressar
emoções e desejos e firmar a sua identidade e o
seu processo de descoberta do mundo.
Hoje em dia o movimento é altamente valorizado
e reconhecido como parte fundamental do desen-
volvimento infantil, sendo fortemente incentivado
por médicos e entidades de saúde voltadas à
criança. No passado, era comum que mães e pais
aninhassem seus bebês em cueiros, popularmente
chamados de “charutinhos” – técnica que consiste
em enrolar a criança em mantas ou tecidos redu-
zindo a sua mobilidade. Atualmente, reconhece-se
que a prática não deve ser incentivada, uma vez
que a diminuição da capacidade de movimento da
criança aumenta as chances de morte por Síndrome
da Morte Súbita Infantil, além de comprometer o
seu desenvolvimento.
Figura 1: Bebê enrolado em um cueiro.

Fonte: Maesdepeito

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O movimento está ligado a processos biológicos,
psicológicos e sociais, pois é por meio dele que
somos estimulados e nos desenvolvemos. É atra-
vés do movimento que a criança explora o mundo
e constrói conhecimentos através dessas experi-
ências. Além do repertório motor, esse processo
permite ganhos nos domínios cognitivo e afetivo,
pois a criança passa a aprender a lidar com o
outro e como estabelecer relações. Um exemplo
disso são os jogos infantis. A criança, por meio
do movimento, aprende a lidar com os colegas, a
seguir regras, a realizar gestos específicos, além
de experimentar os conceitos de ganhar e perder.
Até agora pudemos observar a importância do
movimento no desenvolvimento e na maturação
de cada indivíduo. Mas, e quando pensamos na
importância do movimento para o todo?
Vimos anteriormente que o movimentar-se estava
ligado às atividades fundamentais de sobrevivência
como a caça, por exemplo. Deixo aqui o seguinte
questionamento: quando o ser humano passou
a dedicar sua capacidade motora para outras
finalidades?

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Figura 2: Pintura rupestre representando o movimento.

Fonte: Todamateria

Pinturas rupestres, isto é, representações artísti-


cas que datam a chamada pré-história, feitas em
superfícies de cavernas, retratam o movimento e
as expressões corporais na forma de dança, além
de outras situações cotidianas. Presume-se que
a dança nesse período tinha função ritualística
ligada às colheitas, chuvas, à caça, à fertilidade
e a outros temas que permeavam a existência
desses antepassados.

A evolução da humanidade mediante sua capa-


cidade de movimentar-se e a ressignificação do
corpo levaram ao surgimento das sociedades e
da cultura, como veremos a seguir.

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O MOVIMENTO E A
CULTURA AO LONGO DOS
ANOS
Inegavelmente somos seres sociais. Graças ao
intelecto e à capacidade de interagir nós nos tor-
namos seres políticos, exploramos as relações
sociais e estabelecemos a nossa convivência
através da formação de grupos.

Nos tempos primórdios essa aproximação entre


indivíduos se deu mediante à noção de quão frá-
geis e vulneráveis éramos frente às ameaças que
rondavam o meio ao qual estávamos inseridos.
Isso nos aproximou e foi o embrião do modelo que
conhecemos hoje como “sociedade”.

O fator “estar junto” garantiu a proteção e a segu-


rança que eram necessárias e criou o sentimento de
“unidade”, o que avançou para a busca de objetivos
em comum que garantissem também o bem-es-
tar do até então “ser indefeso”. Por exemplo, foi
nesse período ainda na pré-história que o homem
dominou as técnicas de agricultura e pecuária.
Com isso, a maior parte desses grupos deixou de
ser nômade para fixar suas raízes e desenvolver
suas sociedades.

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Além de fatores ligados à subsistência, o homem
se organizou em sociedades não apenas por ques-
tões relacionadas à segurança, mas também por
razões afetivas e biológicas. De fato, não fomos
criados para vivermos sós.

A princípio, a organização das sociedades primi-


tivas se baseava no uso da força. O mais forte
ditava as regras e ficava sob sua cautela. E assim
foi por muitos anos, até o surgimento do que hoje
conhecemos por política, graças ao emprego da
racionalidade para resolvermos questões naturais
da convivência e a busca de meios para concretizar
objetivos em comum.

Quando passamos muito tempo com alguém, é na-


tural que desenvolvamos muitos comportamentos
em comum. Seja no modo de falar, nos gestos ou
na forma de se vestir. Um exemplo claro é a nossa
família. A família é a primeira amostra do que é a
sociedade. Um conjunto de pessoas convivendo,
dividindo ideais e deveres.

Pensando nesse exemplo, maximize essa ideia


para milhares de pessoas. O produto que temos é
a cultura de um determinado povo ou determinada
região, que combina de forma abrangente os cos-
tumes, os comportamentos e as tradições, que em
geral são transmitidas de geração para geração,
seja por meio da oralidade ou da imitação.

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A ideia de cultura, como pudemos observar, é bas-
tante ampla, o que permite incluir diversos com-
ponentes como a fé, a linguagem, a indumentária,
as relações interpessoais, os valores, as crenças,
a noção de tempo, a arte, o conceito de universo,
os alimentos e tudo mais que tange o comporta-
mento humano.

A cultura é fruto da história e da convivência entre


pessoas de um determinado lugar, portanto cada
uma delas possui diferentes nuances e conceitos
próprios, o que nos faz resgatar a premissa de
Claude Lévi-Strauss, um dos mais importantes
antropólogos do século 20: não é possível estratifi-
car ou hierarquizar as culturas, ou seja, não existe
melhor ou pior, mais ou menos avançada etc., cada
uma é única, que surgiu e se estabeleceu com a
sua própria identidade.

É neste vasto caldeirão que emerge do conceito


de cultura que o movimento se destaca. Danças,
rituais religiosos, combates, esportes, tudo é pro-
duto do movimento e suas manifestações. E isso
não é um fenômeno recente.

Um forte exemplo do movimento como manifestação


cultural é a própria origem do que hoje conhecemos
como Educação Física. Sua origem remete aos
primórdios da civilização grega. Nessa cultura, sua
fé politeísta era representada por diversos deuses,

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como Apolo. Essa divindade, filha de Zeus com
uma titã, representava o sol, a perfeição, a cura
e a verdade. Sempre representado muito jovem,
atlético e bonito, Apolo era considerado o patrono
da ginástica e de todos os espaços de prática. Por-
tanto, o movimento era extremamente valorizado
e difundido nessa cultura, juntamente ao culto do
corpo ideal, sempre registrado de maneira forte e
atlética, como Apolo. Além do fundo religioso, o
movimento na forma da ginástica também estava
ligado ao culto ao corpo, à saúde e ao intelecto, o
que fazia com que fosse adotado por todos – reli-
giosos, soldados, intelectuais e demais cidadãos.

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Figura 3: Representação em mármore do deus Apolo.

Fonte: Wikipedia

A civilização grega antiga ruiu, mas seus valores


foram perpetrados para a humanidade. A cultura
do movimento desse povo deixou como herança
também o que hoje chamamos de Jogos Olímpi-
cos, além da própria palavra “ginástica”, do grego
gymnádzein (“treinar” ou “exercitar-se nu”), uma
vez que o movimento era amplamente utilizado
em modalidades como as atuais: atletismo, hi-

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pismo, lançamento de disco, salto em distância,
lançamento de dardo e luta.

Acesse o Podcast 1 em módulos

Além do movimento empregado na ginástica e


nas manifestações religiosas, o mesmo também
contemplava as artes. Os gregos da antiguidade
foram exímios artistas no teatro e na dança. A
dança era considerada um presente divino, útil
para esquecer as mazelas terrenas, portanto era
comum que possuíssem uma para cada momento
importante da sociedade. Então criaram danças
militares, bailes que festejavam uniões, celebra-
ções de batalhas, danças fúnebres e outras que
marcavam nascimentos.

O movimento no teatro também era fundamen-


tal na sociedade grega com grandes estruturas
dedicadas às encenações. Surpreendentemente,
algumas dessas construções resistiram ao tempo,
sendo possível visitá-las.

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Figura 4: As ruínas do antigo anfiteatro na Acrópoles de
Atenas, Grécia.

Fonte: Todamateria

Você deve estar se perguntando qual é a impor-


tância de conhecermos a herança grega do movi-
mento. A resposta é simples: praticamente todas
as civilizações ocidentais posteriores beberam
da cultura grega. Seja na arquitetura, na arte, na
política, na filosofia, na medicina, na dança ou no
esporte. A Grécia antiga deixou um legado vasto
que podemos ver até mesmo nos dias atuais, como
a própria ideia de democracia.

Finda a civilização grega clássica, houve a ascensão


do Império Romano, que sobretudo manteve muitos
preceitos gregos, como a cultura do movimento.
Esse grandioso império ocupou territórios do que
hoje conhecemos como Europa, Ásia e África.
Naturalmente, é de se pensar que tais regiões não

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foram cedidas gentilmente aos romanos, mas sim
como frutos de muitas batalhas. Nessa época, as
relações eram frágeis e tudo podia se tornar motivo
para um confronto. Por esse motivo, os romanos
possuíam um poderoso contingente militar, o qual
era preparado por meio de treinamentos e ginásti-
ca. Além disso, os romanos mantiveram algumas
tradições gregas como danças para marcar mo-
mentos importantes e o teatro. Não à toa, foi na
Roma Antiga que a frase “mente sã num corpo
são” surgiu, oriunda de um poema de Juvenal – do
latim “mens sana in corpore sano”.

Uma clara demonstração da importância do mo-


vimento para os romanos eram as apresentações
feitas por gladiadores em arenas, representadas em
diversos filmes e encenações, além da lamentável
política do Panem et circenses, ou a política do pão
e circo, com a qual as elites controlavam os seus
cidadãos – sobretudo os mais pobres, por meio
de espetáculos gratuitos e a distribuição de trigo
para se alimentarem, desviando assim as suas
atenções de problemas sociais.

Apesar dos progressos das civilizações grega e


romana, houve uma importante ruptura nesses
ideais. O avanço do tempo trouxe um período
histórico que não foi favorável ao corpo e ao mo-
vimento: a Idade Média.

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Nesse momento da história, a Igreja Católica
passou a exercer o controle e o domínio dos cos-
tumes, das artes e da vida cotidiana nas pessoas.
A fé politeísta e o culto à beleza do corpo foram
fortemente reprimidos. Tudo agora era pautado
na religiosidade e na moral. Ao menor sinal de um
comportamento que fugisse às regras, a pessoa
era delatada e severamente punida.

A estruturação da fé cristã na unidade da Igreja


Católica deixou de lado a dança e o movimento
como formas de adoração. Logo, isso não era
mais visto com bons olhos e deveria ser coibido.

Ainda assim, a dança recreativa era praticada so-


bretudo pelas classes mais baixas em momentos
de celebração e festas, apesar dos apelos papais
que a associava à indecência e à imoralidade. Com
o enfraquecimento do regime feudal, no intuito de
diferenciarem-se dos plebeus, os nobres adotaram
danças diferentes ao som de outra métrica musical.

Uma forma bastante popular de entretenimento na


época eram as apresentações de cavaleiros com
espadas. Embora fossem necessários força, des-
treza e treinamento, a ginástica não era praticada,
uma vez que a modalidade caiu no ostracismo
graças à repressão da igreja. As manifestações
corporais ficaram restritas ao treinamento militar

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com a preparação física, a equitação, arco e flecha,
esgrima, corrida e luta.

Como nem tudo dura para sempre, a Idade Média


se encerrou, dando lugar a um novo período em
que a cultura do corpo e do movimento ganharam
outro significado. A Idade Moderna foi um marco
na história e trouxe à luz muitos conceitos e ideias
esquecidos durante os anos de imposição da Igreja
Católica. É nesse momento histórico que aconte-
cem as grandes navegações, o Renascimento e
a reforma religiosa. A ciência ganha espaço, os
fenômenos não são mais explicados por meio
do sobrenatural e a cultura e a arte passam a ser
valorizadas.

A exploração da ciência como meio de explicar


fenômenos e acontecimentos da vida cotidiana
levaram à evolução do conhecimento em diversas
áreas do saber, inclusive na Educação Física.

Nesse cenário, o movimento é considerado parte


importante da educação e da formação intelectual
de jovens, sobretudo da burguesia. A ginástica
reaparece na forma de modalidades como o salto,
a corrida, a natação, a luta, a equitação, o jogo da
pelota, a dança e a pesca.

As danças também emergiram com força nesse


período, como o início do ballet. Nas artes tam-
bém surgiram nomes como Leonardo da Vinci,

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Michelangelo, Caravaggio, dentre tantos outros.
A cultura e o movimento, até então, nunca haviam
sido tão valorizados.

A exaltação do saber proposta na Idade Moderna foi


fundamental para a construção dos valores atuais
de cultura e movimento. Essa concepção permitiu
que o período histórico seguinte estruturasse os
conhecimentos e os difundisse.

A chamada Idade Contemporânea é marcada


pelo início da Revolução Francesa e perdura até
os dias atuais. É nesse período que o conceito de
movimento ganha outros contornos.

Se anteriormente a ginástica era praticada de


forma empírica, isto é, sem se ter o conhecimento
estruturado, agora ela é um campo do conhecimen-
to reconhecido e agrupado em quatro vertentes
diferentes: a escola alemã, a sueca, a francesa e
a inglesa. Cada uma com as suas práticas e parti-
cularidades. Surgem também acessórios para as
rotinas de exercício e centros especializados no
início do século 19.

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Figura 5: Movimentos calistênicos sendo reproduzidos em
aula de educação física escolar em Porto Alegre nos anos
1930.

Fonte: Acervo O Globo

Vale destacar-se que nesse período a ideia de “gi-


nástica” passou a ser enquadrada em rotinas de
exercícios coreografados que visavam à saúde, a
educação e o rigor, respaldados pela comunidade
médica da época.

Além da ginástica, a expressão do movimento


também era encontrada em danças coreografadas
e peças teatrais, dada a importância dos valores
culturais vigentes.

Com o avanço dos anos, o movimento e a cultura


se tornaram campos de estudo com milhares de
estudiosos e pesquisadores dedicados a essas
questões. A ginástica ganhou novas perspectivas,
sendo empregada desde o preparo de um astro-

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nauta para ir ao espaço até a reabilitação de uma
pessoa com lesão medular.

A ginástica passou a ser classificada de acordo


com o seu objetivo: condicionante, terapêutica,
competitiva, alternativa, demonstrativa, geral e
laboral, cada uma com uma finalidade e caráter.

Saltando-se para os anos 1990, nessa década sur-


giu o conceito de cultura do movimento, proposto
pela professora Elenor Kunz. Nele é proposto que
o movimento não se reduz a um fenômeno mera-
mente físico, ele transcende e toma significações
culturais. A autora questiona que o movimento
sempre foi enxergado como um ato mecânico,
sem se contextualizar o aspecto espacial e cultural
que o envolve.

Hoje nossa cultura é altamente dependente do


movimento, seja no esporte, nas academias, na
dança ou nas representações, apesar dos cres-
centes índices de sedentarismo – algo totalmente
contraintuitivo à nossa natureza. São as contradi-
ções da vida contemporânea.

Mediante a linha do tempo apresentada, vemos


que o movimento é inerente ao ser humano e está
entrelaçada às suas manifestações culturais.

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O MOVIMENTO NA
CONSTRUÇÃO DA
CULTURA BRASILEIRA
O Brasil é um país de dimensões continentais.
Sendo o maior do Hemisfério Sul e o quinto dentre
todo o globo. Nosso passado revela a influência de
diferentes países, o que se observa até mesmo nos
dias de hoje, com o êxodo moderno de imigrantes
que buscam em nosso território uma nova vida.

Antes da chegada dos portugueses e do processo


de colonização, o movimento era a força motriz
dos povos indígenas que aqui habitavam. Caçar,
pescar, construir moradas e plantar eram substan-
ciais para eles. Além disso, nadar em rios, manter
cuidados coletivos e brincar também faziam parte
da cultura dos indígenas. Tristemente, com o pro-
cesso escravagista, esses indivíduos perderam
não somente a sua liberdade, mas também a sua
identidade cultural, reprimida pelo homem branco.

Apesar disso, parte desta rica cultura resistiu à


barbárie e ao tempo e até hoje são elementos
importantes da nossa identidade nacional, como
pratos com aipim (ou mandioca), milho, açaí e
peixes – um exemplo é o Tacacá, um prato tra-
dicional do Pará que leva a goma de tapioca e o
tucupi, ambos derivados do aipim.

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Os povos indígenas também deixaram raízes na
arte. As máscaras, o culto à natureza, as pinturas
corporais e as danças ritmadas até hoje ecoam
na nossa cultura. Na língua portuguesa também
encontramos diversas palavras cuja etimologia
remete aos primeiros habitantes do Brasil. Por
exemplo, um famoso ponto da cidade de São Pau-
lo, o parque do Ibirapuera significa, em tupi, “lugar
que já foi mato” ou, ainda, o Rio Tietê – “caudal”,
“volumoso” na mesma língua.

Os indígenas também contribuíram para o que


hoje conhecemos por folclore. Graças às tradições
orais, conhecemos as histórias de personagens
como a sereia Yara, o boitatá, a caipora, o boto
cor-de-rosa e o curupira.

As crianças para a aldeia eram de responsabilidade


coletiva e usufruíam da liberdade de crescerem
em meio à natureza. O movimento aparecia em
diversas brincadeiras que ainda hoje fazem parte
da infância dos brasileiros como a peteca e o cabo
de guerra, típicos da nossa cultura.

Acesse o Podcast 2 em módulos

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Figura 6: Indígenas disputando cabo de guerra.

Fonte: Escolaeducacao

O fim da escravidão indígena foi o resultado da


soma de diversos fatores. Primeiramente, a cultura
dos indígenas era baseada na subsistência e não
na exploração predatória dos recursos naturais,
o que conflitava com suas crenças. Depois, eram
exímios conhecedores da natureza, não raro acon-
teciam muitas fugas e conflitos. Por fim, a matança
desses povos especialmente por doenças trazidas
pelos europeus, nunca vistas até então.

A necessidade de mudanças na colônia e a pressão


exercida pelos padres jesuítas contribuíram para
o fim da escravidão indígena, mas infelizmente
não para os seus ideais. E é nesse momento que
a Europa volta os olhos para a África e começa um
novo mercado altamente lucrativo: a compra e a
venda de pessoas negras escravizadas.

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Essas pessoas escravizadas vindas do continente
africano chegaram aqui em aproximadamente
1538 e gradualmente substituíram a mão de obra
indígena. Africanos de diferentes regiões, tribos
e costumes eram capturados e trazidos para as
Américas – lembrando que tristemente a escravidão
não foi um processo exclusivo do Brasil, apesar
de nosso país ter sido um dos últimos a aboli-la.

Logo no transporte, realizado por navios insalubres


e em péssimas condições, as pessoas eram sepa-
radas de seus grupos étnicos e limitadas a viverem
entre desconhecidos, que, apesar de partilharem o
mesmo continente de origem, não falavam a mesma
língua. Tudo para dificultar a comunicação e evitar
uma possível revolta. Muitos morriam durante a
viagem através do oceano Atlântico, vítimas de
doenças, maus-tratos e fome.

O trabalho rigoroso e forçado somado a diversos


castigos físicos que iam de estupros a espanca-
mentos eram a rotina de milhões de pessoas cuja
existência se resumiu a ser um produto nas mãos
de seus feitores.

Como dito anteriormente, a África é um continente


formado por diferentes povos, com linguagem,
costumes e crenças diferentes. A vinda dessas
pessoas ao Brasil (ainda que forçadamente) con-

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tribuiu de maneira importante para a construção
da nossa cultura.

A herança negra na gastronomia nos contemplou


com a feijoada, o acarajé, o vatapá, o mugunzá,
o caruru e a pamonha, além dos temperos como
pimentas, leite de coco e o azeite de dendê.

É natural para muitos frente a uma situação difícil


recorrer à fé e à religiosidade para buscar con-
forto, amparo e esperança. Além de todo abuso
físico e psicológico imposto pelo homem branco,
os negros ainda eram obrigados forçosamente a
converterem-se ao cristianismo. No entanto, muitos
mantiveram suas tradições religiosas em segredo,
originando o sincretismo religioso que temos em
nosso país. O candomblé, a umbanda, o catimbó
e a quimbanda são partes importantes da cultura
brasileira que até hoje possuem milhões de fiéis
e devotos.

No campo do movimento, a matriz africana deixou


inúmeras contribuições. A capoeira teve como
origem um ato de resistência, não apenas física,
mas também uma forma de resguardar a identidade
africana dessas pessoas. Como eram proibidos
de praticarem qualquer tipo de luta, a música era
utilizada como uma forma de disfarce, podendo
assim ser praticada e facilmente confundida com
uma dança ou coreografia. Na atualidade estima-se

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que 6 milhões de pessoas sejam praticantes da
modalidade, sendo representada até mesmo por
atletas de elite em competições internacionais de
mixed matial arts (MMA).

Ao falarmos sobre a capoeira, é impossível não


pensarmos nas canções que acompanham os mo-
vimentos, todas ritmadas e marcadas pelo som do
berimbau. A matriz africana deixou contribuições
importantíssimas na nossa música, que podem
ser vistas e apreciadas até os dias de hoje. Desde
instrumentos como o tambor, a cuíca, o agogô,
o atabaque, a marimba e o próprio berimbau até
ritmos musicais como o popular samba e as suas
variações, o axé, o jongo, o maracatu, a congada
e a umbigada. A última trata-se de uma dança
originária nos quilombos, na qual os pares tocam
os seus umbigos ao som de uma música, com
movimentos que festejam a fertilidade.

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Figura 7: Grupo dançando a umbigada, dança de matriz
africana originada nos quilombos.

Fonte: Globo

No dia 13 de maio de 1888, a princesa Isabel


finalmente assinou a lei que abolia a escravidão.
Novamente, as elites se perguntavam quem seriam
seus próximos trabalhadores. O racismo cerceou
direitos básicos dos cidadãos negros, inclusive
o direito ao trabalho, uma vez que fazendeiros e
donos de estabelecimentos passaram a ser favo-
ráveis à vinda de imigrantes de diversos países
para trabalharem em seus negócios.

A imigração europeia e asiática marca outra im-


portante face na nossa cultura. Diversos países
enfrentavam grandes crises, sem recursos ou pers-
pectivas seus cidadãos se lançavam na aventura de

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recomeçar a vida em um novo país junto de suas
famílias. Vale lembrarmos que o governo brasileiro
criou condições particularmente favoráveis para
que a proposta se tornasse atraente o bastante
para convencer essas pessoas a largarem tudo
por uma vida nova em solo brasileiro.

Grande parte dos japoneses imigrantes se insta-


laram no interior do estado de São Paulo para se
dedicarem à agricultura. Trouxeram da ilha nipô-
nica a sua arte, o hábito por chás e introduziram
na dieta brasileira a soja, o arroz cateto, o feijão
azuki, a couve japonesa, o pepino, a acelga, o nabo,
o rabanete, a batata-doce e a cebolinha, além dos
tradicionais pratos tão apreciados nos dias de hoje.

A influência da colônia japonesa em nossa cultura,


graças à sua presença maciça, rendeu-nos até mes-
mo famosos redutos com arquitetura típica, como
é o caso do bairro da Liberdade, em São Paulo.
Vale a nota de que antes da presença nipônica a
região era palco de punições de pessoas negras.

No campo do movimento, a colônia japonesa con-


tribuiu para a introdução e difusão do judô e pos-
teriormente do jiu-jitsu, sendo atualmente o Brasil
um dos principais representantes dessas práticas
e o judô uma modalidade Olímpica desde o ano
de 1964, nos jogos sediados na cidade de Tóquio.

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O jiu-jitsu brasileiro, internacionalmente conhecido
como brazilian jiu-jitsu, foi fruto do encontro de um
imigrante japonês, conhecido como Conde Koma
e um brasileiro, Carlos Gracie. Anos mais tarde o
esporte seria regulamentado e difundido mundo
afora.

Sobre a participação dos europeus na construção


do que hoje entendemos por cultura brasileira, po-
demos destacar as festas juninas. Comemoradas
anteriormente em território europeu como uma
festividade pagã, a festa chegou ao Brasil com um
tom religioso que foi desaparecendo com o tempo.
Hoje ainda há a comemoração dos santos católicos
São João, Santo Antônio e São Pedro, mas impera
a celebração da figura do matuto do campo. A
dança típica da comemoração é a quadrilha, cuja
origem remete à França, que inspirou o restante da
elite europeia, que, por sua vez, inspirou a nossa
cultura ao chegar aqui.

30
Figura 8: Representação da quadrille que inspirou a nossa
quadrilha junina.

Fonte: Papodegordo

Uma constatação interessante: o futebol, a “paixão


nacional”, uma das máximas manifestações de
movimento em nosso país, foi não apenas criado,
mas impulsionado por europeus. O seu início no
Brasil se deu em 1894, pelo jovem Charles Miller,
filho de ingleses que retornou a São Paulo após
uma temporada de estudos na Europa. Já a di-
fusão do futebol foi um fenômeno creditado aos
imigrantes, sobretudo italianos. Em uma tentativa
de promover a interação e a adaptação dessas
pessoas surgiram diversas associações e clubes,
nos quais muitos praticavam o futebol de várzea.
Inclusive, nessa época, a própria seleção brasileira
era composta em partes por filhos de imigrantes.

31
É importante destacar-se que a cultura é um
componente dinâmico que sofre influências a
todo momento. Indígenas, africanos e europeus
constituíram a nossa identidade nacional, que está
em constante construção.

As crises mundiais e demais conflitos trouxeram


nos últimos anos uma leva de novos imigrantes
de diversas partes do mundo, enriquecendo ainda
mais a cultura brasileira. A internet também contri-
buiu com esse processo. Hoje uma música vinda
de um país distante pode fazer sucesso e ganhar
uma coreografia por aqui rapidamente.

32
O RITMO DE TUDO
Até agora discorremos sobre a cultura e o movimen-
to sem entrarmos em um mérito importantíssimo,
que cabe uma sessão somente a ele. O quicar de
uma bola, as batidas do coração, o compasso de
um relógio, as estações do ano, o dia e a noite –
tudo é ditado por um ritmo.

A começar pelo nosso corpo e o de tantos outros


seres vivos. O chamado ritmo ou ciclo circadiano
é um mecanismo que tem como principal função
sincronizar as funções fisiológicas dentro do pe-
ríodo de 24 horas, de acordo com a luminosidade.
Esse ritmo dita diversos processos biológicos
como a temperatura corporal, o sono, a secreção
de hormônios, a função intestinal, a homeostase,
dentre outros – inclusive somos dotados de genes
responsáveis especificamente pelo controle do
ritmo circadiano.

O ritmo está por todo lugar e ele pode ser compre-


endido como um som ou movimento coordenado
ou uma repetição. É impossível pensar em ritmo
e não o associar à música. O ritmo é o produto de
uma repetição sonora, que cria um dos aspectos
fundamentais da música.

Vimos anteriormente que a música é uma forma de


manifestação cultural, assim como as expressões

33
do corpo. Mas de que maneira o ritmo se encaixa
nesse contexto?

Desde os tempos primórdios o homem se relaciona


com o ritmo e os sons. Artefatos arqueológicos
indicam instrumentos sonoros tão antigos quanto
as pinturas rupestres apresentadas no início deste
e-book.

Seguir um ritmo é uma tendência natural do ser


humano. Curiosamente, nossos ascendentes pri-
matas, apesar da inteligência e semelhança, não
conseguem identificar ritmos. Graças à evolução,
nós seres humanos conseguimos não somente
acompanhar um ritmo, mas também o prever.
Por exemplo, conseguimos prever os cliques de
um metrônomo e podemos bater ou batucar com
nossos dedos com precisão no ritmo ditado pelo
aparelho. Sem essa capacidade de antecipação,
precisaríamos ouvir o clique para então produzir
uma resposta, o que invariavelmente nos deixaria
atrasados em relação ao som. Macacos, mesmo
que treinados, não conseguem antecipar a batida,
um feito exclusivo de nós humanos.

34
Figura 9: O metrônomo é um instrumento que dita o anda-
mento musical graças ao balanço de uma haste metálica.

Fonte: Wikipedia

Sentir o ritmo de uma batida requer conexões


entre diferentes partes do cérebro. Essa estrutura
intrincada em diversas partes responsáveis por
diferentes funções é rara no reino animal. Isso
se deve pelo fato de que o nosso cérebro possui
neurônios que disparam na frequência exata do
som ouvido, algo realmente complexo.
Ritmo e cultura se entrelaçam ao pensarmos em
diferentes sons e na musicalidade de cada região.
Nessa pluralidade podemos pensar nos diferentes

35
ritmos musicais que encontramos mundo afora e
sobretudo no nosso país. É difícil pensar nesses
elementos e não os associar à dança, um tema
bastante rico que veremos futuramente.
O ritmo pode ser marcado de diferentes maneiras
e está relacionado ao tempo musical. Pode ser
marcado por uma batida, como um instrumento
de percussão, com o próprio corpo, como o gesto
de bater palmas ou pés, ou por meio de uma con-
tagem – e é fundamental para a cadência do som.
Não à toa as músicas são classificadas de acordo
com as batidas dadas dentro do período de um
minuto, o que é popularmente chamado de batidas
por minuto (BPM). Essa medida leva em conta o
andamento do som, isto é, o grau de velocidade
do compasso.
Músicas com maior BPM tendem a ser mais
rápidas, enquanto um menor BPM representa o
oposto. Interessante pensar na relação BPM da
música com o BPM do nosso coração. Músicas
com maior BPM tendem a aumentar a frequência
cardíaca, uma vez que está ligada às emoções,
sendo o contrário também verdadeiro. Sons com
menos BPM comumente levam a um estado de
relaxamento ou tranquilidade, o que invariavelmente
mantém uma frequência cardíaca também mais
baixa ou dentro da normalidade. Esse fenômeno
é bastante revelador ao pensarmos na relação
ritmo e fisiologia.

36
A COMPREENSÃO DO SOM
Sabemos que o cérebro dos seres humanos é uma
máquina incrível, pois é ele, junto à nossa capa-
cidade de memória e linguagem, que nos permite
compreender o que é a música.

Antes de chegar aos ouvidos, a música é apenas


ar, que se inicia por vibrações. Ao adentrar as tu-
bas auditivas, as membranas timpânicas vibram
de modo que os ossículos (martelo, bigorna e
estribo) oscilam em resposta ao som e, através do
movimento mecânico, o conduzem para o compar-
timento seguinte. Esse processo cria pressão sobre
o fluido presente no interior da cóclea, que ativa
células ciliadas, responsáveis por gerar estímulos
elétricos para o nervo auditivo. Esses estímulos
serão transmitidos para o córtex auditivo no lobo
temporal do cérebro, onde será decodificado. Todo
esse processo, complexo e que envolve diversas
estruturas, leva impressionantes milésimos de
duração para acontecer.

Figura 10: Esquema ilustrado de como o som deixa de


ser uma vibração no ar para ser interpretada na forma de

37
música pelo cérebro e as demais estruturas envolvidas no
processo.

Com a força da
pressão a cóclea se
mexe e o líquido
dentro dela também.
O tímpano aciona os Essa movimentação
ossinhos do ouvido, ativa as pequenas
que se movem e células ciliadas em
pressionam a cóclea. seu interior.

O som entra pelo


canal auditivo e
chega até o tímpano, Ao receber esse estímulo
fazendo-o vibrar. os cílios mandam a
informção do som para o
cérebro.
Todo esse processo dura
milésimos de segundos

Fonte: Estudopratico

O mecanismo de condução e compreensão musi-


cal é tão refinado que somos capazes de dedicar
nossa atenção a um único instrumento durante
uma música, por exemplo.

Em princípio a música pode ser descrita somente


como um simples som, enquanto, na verdade, é um
código complexo que envolve ritmo, volume, timbre,
batida, tempo e melodia, além de demandar habi-
lidades como a escuta, a memória e a linguagem.
Somente o cérebro de um ser evoluído o bastante é

38
capaz de montar esse verdadeiro quebra-cabeça de
diferentes variáveis. O conjunto dessas atividades
motoras e cognitivas envolvidas no processamento
da música é chamado de função cerebral.

Outro ponto importante sobre a perspectiva evolutiva


é a forma como a música reverbera sentimentos,
uma vez que é capaz de estimular a memória
não verbal. A música ativa a área do cérebro res-
ponsável por atividades prazerosas e está ligada
profundamente às nossas emoções.

39
OS BENEFÍCIOS DA
MÚSICA

OS DOMÍNIOS DO
DESENVOLVIMENTO HUMANO
Até o momento, pudemos compreender como
nosso cérebro consegue interpretar um som sob
a perspectiva da fisiologia, mas quais seriam os
seus efeitos em relação ao nosso desenvolvimento?

O desenvolvimento humano se inicia quando ain-


da somos reduzidos ao tamanho de uma simples
célula, que se desenvolverá até se tornar um bebê.
Esse bebê se tornará uma criança e assim suces-
sivamente até atingir a velhice e chegar o seu fim.
É importante saber que cada uma dessas fases
é caracterizada por marcos evolutivos no campo
do desenvolvimento.

O desenvolvimento humano pode ser descrito


com base em três domínios principais. O domínio
cognitivo está relacionado à capacidade de inter-
pretação, memória e pensamento crítico. O domínio
psicossocial (ou afetivo) aborda as emoções, os
valores, as percepções e as crenças do indivíduo.
E, por fim, o domínio motor, que tem a ver com o
movimento, envolvendo arte, esportes e tarefas
cotidianas.

40
Nesta seção estudaremos como a musicalidade
é capaz de influir em cada um desses domínios e
todos os benefícios que ela pode proporcionar no
processo de desenvolvimento.

Domínio cognitivo
A convivência com a música é algo básico a
todos, porém alguns vão além e dedicam-se ao
aprendizado de instrumentos. Essas pessoas,
segundo a ciência, passam a desenvolver determi-
nadas habilidades além da própria música, como
maior grau de atenção, concentração e controle
emocional. Não por acaso, hoje, já nos primeiros
anos escolares, são oferecidas aulas de música
aos pequenos. Do ponto de vista fisiológico, esse
fenômeno é explicado através do desenvolvimento
do córtex auditivo primário, uma vez que ele é in-
fluenciado pela repetição da experiência, ou seja,
quanto maior ela for, maior é o número de células
estimuladas e reativas a sons e tons musicais.
Pensando nisso, podemos inferir que à medida
que vivenciamos essas experiências ocorre uma
reorganização em nosso cérebro, graças à chamada
plasticidade neural.

Os benefícios da música vão além da prática de


instrumentos. Somente ouvi-la também pode trazer
vantagens, sendo até mesmo utilizada como fer-
ramenta de reabilitação por diversos profissionais

41
da saúde. Por exemplo, a música pode reduzir
níveis de estresse, melhorar a qualidade do sono,
aumentar o ânimo e melhorar o nosso humor.

Domínio psicossocial
Todos os benefícios de se ouvir e/ou praticar
música estão relacionados à ativação de diferen-
tes estados emocionais, que por sua vez geram
reações fisiológicas como resposta. Por exemplo,
músicas com mais batidas por minuto, comumen-
te associadas às músicas agitadas, provocam
o aumento da frequência cardíaca, o que leva a
um estado de maior ânimo e disposição, sendo
elas normalmente a escolha número um na hora
de se praticar exercícios físicos ou participar de
competições.

O inverso também é verdade, outras músicas po-


dem trazer uma melodia que inspire sentimentos
adversos como a tristeza e a saudade. Essas
variações de efeito se dão por razões técnicas e
culturais. As músicas são compostas com base
em uma escala própria e cada cultura possui uma
compreensão particular sobre elas. As culturas
ocidentais comumente associam escalas maiores
à felicidade e menores à tristeza, embora isso não
seja universal.

42
Domínio motor
Já pudemos constatar que a compreensão do som
na forma de música requer diferentes capacidades
e provoca diferentes respostas, o que invariavel-
mente nos leva a pensar no domínio motor.

O desenvolvimento motor de um indivíduo não está


somente ligado a questões fisiológicas intrínsecas
ao seu corpo, mas também a experiências vividas
por ele e à interação com o ambiente no qual ele
está inserido. Isso o leva a apresentar uma maior
capacidade de controlar movimentos ao longo do
tempo. Nesse sentido, a música se faz extrema-
mente importante.

A música é capaz de contribuir no controle dos


movimentos do corpo, na execução de tarefas e na
capacidade de manusear objetos com habilidade,
a chamada coordenação motora.

Além disso, a música se expande nesse domínio,


sendo ela representada pelo próprio corpo na forma
da dança e da expressão corporal, como veremos
em detalhes à frente.

43
MÚSICA COMO
EXPRESSÃO DA CULTURA
Já tratamos do papel da cultura na construção das
sociedades e pudemos observar como o movimento
foi visto ao longo da história em diferentes cultu-
ras. Agora vamos compreender como a música se
tornou um componente fundamental da cultura.

A música é capaz de quebrar a barreira das diferenças


culturais, possibilitando novas relações sociais e
conexões. Muitos ao pensarem em músicas anti-
gas citarão uma música clássica, com uma grande
orquestra tocando e um maestro regendo. Mas
será mesmo que esse estilo musical é realmente
onde tudo começou?

Tendemos a ter esse pensamento, pois temos uma


percepção cultural baseada no neoclassicismo
europeu que, durante longo tempo, relegou a se-
gundo plano outro tipo de música que não fosse
a erudita. O neoclassicismo baseou muitas outras
culturas além da nossa, sobretudo a de países
colonizados por países europeus.

Essa estética cultural prevaleceu na arte e na ar-


quitetura da Europa no final do século 18 e início
do 19, com os padrões voltados às heranças da
Grécia e da Roma antigas. O estilo neoclássico
se difundiu no Brasil a partir das preferências

44
da corte portuguesa e se tornou uma espécie de
“estilo oficial”.

Em muitos pontos, a adoção do neoclassicismo


europeu foi bastante problemática, uma vez que
se sobrepujou em relação aos valores nacionais.
Para muitos, perdura até os dias de hoje o senti-
mento de que “só é belo o que é estrangeiro”, o
que desvaloriza nossa produção.

Mediante o exposto, faz-se altamente necessária


a desconstrução desse senso comum para que
outras formas de cultura sejam vistas e aprecia-
das dentro de suas qualidades. Cada povo há de
possuir a sua própria identidade cultural baseada
nas suas vivências, histórias e crenças, o que o
torna único.

A seguir, vamos explorar a musicalidade dentro da


cultura de diversos povos pertencentes a diferen-
tes continentes. Vale ressaltar-se a cautela que
devemos ter ao abordar esse assunto para não o
reduzir ou generalizar. Um erro crasso seria afirmar,
por exemplo, que a América do Sul se resume ao
samba, como se não existissem outros países ou
como se a riqueza cultural do nosso próprio país
fosse restrita somente a um ritmo ou expressão
cultural.

45
ÁFRICA
Antropólogos e estudiosos no assunto consideram
o continente africano como o berço da humanida-
de. É formado por 54 países e é o segundo mais
populoso do planeta, o que nos dá uma ideia da
efervescência cultural dessa terra.

De maneira geral, a música é parte importante


na vida do povo africano, independentemente de
localidade ou etnia. Ela se faz presente na espiri-
tualidade, nos rituais, nas celebrações e na vida
cotidiana. Outro ponto importante é que a música
também contribui na perpetuação dos costumes
e tradições por meio de histórias cantadas, uma
vez que nem todos utilizam o sistema de registros
escritos.
Como vimos anteriormente, a musicalidade desse
continente representa bem mais do que um simples
som. As músicas são altamente rítmicas, compos-
tas por padrões rítmicos complexos, geralmente
envolvendo um ritmo tocado contra o outro para
criar a chamada polirritmia.

Outra característica importante da construção


musical africana é o ritmo. Diferentemente das
métricas ocidentais, várias partes da música não
combinam necessariamente de forma harmonio-
sa. Os sons dos instrumentos não convergem

46
necessariamente entre si. Isso se deve ao fato da
música ser uma representação da vida.

A musicalidade africana também é marcada pela


chamada-e-resposta. Uma voz ou instrumento
sonoro toca uma pequena frase melódica, e essa
frase é ecoada por outra voz ou instrumento. Além
disso, as músicas costumam apresentar alto grau
de improviso. O padrão rítmico central é tocado
como de costume e os percussionistas improvisam
novos padrões sobre os originais.

Aqui chegamos a um ponto importantíssimo da


sonoridade africana: os instrumentos de percussão.
Muitos deles são utilizados até hoje, inclusive em
terras brasileiras, como o berimbau, o agogô, o
caxixi, o atabaque, a cuíca, o reco-reco e o tambor.

Como dito anteriormente, a África é um continente


imenso e vale um olhar atento pelas suas princi-
pais regiões. O norte da África, local onde triunfou
a civilização egípcia, no passado foi conquistado
por povos árabes, influência essa que é marcante
em sua cultura e música, como veremos a seguir.

As demais regiões do continente são classificadas


como subsaarianas, ou seja, que ficam ao sul do
deserto do Saara. Essas regiões são bastante he-
terogêneas, com povos e etnias particulares que
se utilizam da música para acompanhar o traba-
lho, celebrar casamentos, afastar maus espíritos,

47
saudar ancestrais e marcar eventos importantes
em seu meio social.

Figura 11: Representação do continente africano e as


suas divisões.

Fonte: Unisinos

As apresentações musicais podem ter longa dura-


ção e, além de instrumentos e voz, costumam ser
acompanhadas por danças e coreografias próprias.

Uma das dificuldades do estudo da musicalidade


africana, além das diferenças sonoras em relação
ao que demais ocidentais costumam estudar, são
os poucos ou raros registros escritos deixados
por essas populações, uma vez que prevalece a
oralidade na transmissão de histórias, músicas e
cultura em geral.

48
A diáspora do povo negro, provocada pela interfe-
rência do homem branco em seu continente natal,
fez com que essas pessoas aportassem em terras
distantes na condição de escravizados. Por mais
que seus algozes tenham tentado apagar os seus
valores religiosos e podar as suas raízes culturais,
é inegável a sua sobrevivência e difusão. Seja o
samba no Brasil ao som de pandeiros e outros
instrumentos de percussão, a dançante rumba
cubana ou o revolucionário rock and roll nos Esta-
dos Unidos, todos possuem o DNA da mãe África
e de seus filhos mundo afora.

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ORIENTE MÉDIO
Não raro, essa região do planeta é confundida
com um continente. O Oriente Médio é uma re-
gião localizada na parte oeste da Ásia, também
conhecida como Ásia Ocidental, e compreende os
principais países árabes como Líbano, Irã, Iraque,
Arábia Saudita e Emirados Árabes, dentre outros.

Vale ressaltar-se que por essas terras, citadas


desde os tempos bíblicos, caminharam povos de
diferentes etnias e crenças como muçulmanos,
judeus, cristãos, assírios, curdos e babilônios,
dentre tantos outros, que deixaram para o Oriente
Médio um rico legado cultural.

49
Apesar da sua prevalência instrumental, no pas-
sado, mulheres de belas vozes eram escolhidas
para entoar canções. E não somente, também
aprendiam a tocar instrumentos.

O Oriente Médio possui uma riqueza cultural mui-


to grande, sobretudo sua musicalidade. Visando
a preservar esse bem, em 1932 foi organizado o
Congresso de Música Árabe. O evento, realizado
no formato de um grande festival, reuniu artistas e
instrumentistas de todo o chamado “mundo árabe”.

Os organizadores tinham como objetivo apresen-


tar, discutir, documentar e registrar as inúmeras
tradições musicais dessa cultura, uma vez que, à
época, acreditava-se que várias de suas manifes-
tações estavam em declínio. Desse modo elas não
seriam perdidas e poderiam ser preservadas. Como
resultado, foram registradas 360 performances e
gravados 162 discos de músicas típicas da região.

O Oriente Médio também possui instrumentos


musicais próprios e fundamentais na composição.
Atribui-se a essa região o surgimento de instru-
mentos como o violino, o oboé (um instrumento
musical de sopro) e o trompete.

Uma curiosidade: atribui-se à atual Síria o primeiro


artefato arqueológico em forma de partitura musi-
cal. Encontrada na década de 1950, pesquisadores
demoraram cerca de 20 anos para a sua compreen-

50
são. O material talhado em argila recebeu o nome
de H6 e conta de maneira milenar uma história
um tanto interessante. A canção narra a história
de uma jovem que não pode ter filhos e crê que
o fato se deve ao seu comportamento. Em uma
tentativa de reparação, a moça sai à noite para
rezar para a deusa Nikkal, deusa da Lua, e leva
consigo uma pequena oferenda com sementes
ou óleo de gergelim.

Apesar do tom sóbrio, outra partitura encontrada


no mesmo período conta a história de uma jovem
moça que trabalhava como garçonete em um bar
servindo cervejas. Ou seja, a música nos mostra
que os antepassados não a dedicavam somente a
motivos religiosos, mas também como uma forma
de descrever a vida cotidiana.

ÍNDIA
É um fato que a música é um fenômeno universal,
mas a sua construção e compreensão difere de
lugar para lugar. Na maior parte do planeta, se
você perguntar qual é a base fundamental de uma
composição, a resposta será a mesma: as notas
musicais.

As sete notas musicais – dó, ré, mi, fá, sol, lá e si


– não fazem parte das escalas da música clássica
da Índia. A musicalidade desse país é baseada
em ragas.

51
Um raga pode ser compreendido como um con-
junto de normas de como construir uma melodia.
É ele que define se a escala deve ser ascendente
ou descendente, as notas a serem tocadas e por
aí em diante.

Os ragas também têm como função a expressão de


sentimentos através da música, como a devoção,
a bravura, a dor, a solidão, a serenidade etc... Outra
particularidade, além dos sentimentos, é que cada
raga pode estar associado a um horário do dia ou
a uma estação do ano. Não à toa há o registro de
cerca de duzentos ragas diferentes.

A cultura musical indiana valoriza a sua sonoridade


tanto quanto a imaginação e a criatividade de seus
artistas, que pode livremente improvisar durante a
sua apresentação, sendo o improviso uma marca
importante na música deste país.

Tradicionalmente, as canções são acompanhadas


por instrumentos típicos como o sitar, a flauta de
bisel, as tablas, a vina e o santoor indiano.

A Índia, parte do continente asiático, é um país


de grandes contrastes. Em termos territoriais, é
o sétimo maior país do mundo e o segundo mais
populoso. Lá habitam diferentes grupos étnicos
que professam diferentes religiões e manifestam
a sua cultura através da música, de festividades
aos deuses e das cores. Toda essa identidade

52
pluricultural foi construída através de uma história
milenar. No entanto, o processo de modernização
do país deu novos ares à cultura.

A partir dos anos 2000, Bollywood – junção de


Bombaim (antigo nome da cidade de Mumbai, onde
encontra-se a maioria dos estúdios e produtoras
de filmes) e Hollywood (a famosa e consagrada
indústria cinematográfica dos Estados Unidos)
– passou a receber maior atenção da crítica dos
demais países e a conquistar grandes públicos na
Índia. Com muitas cores, brilhos e por vezes até
exageros hoje a maior parte dos filmes produzidos
por Bollywood são musicais.

Esse fenômeno social nos mostra a importância


da música para a cultura indiana. Seja nas celebra-
ções religiosas, nos rituais, como a cremação de
mortos, ou nas salas de cinema, a musicalidade
indiana estará presente.

EXTREMO ORIENTE
Retornamos mais uma vez ao continente asiático,
dessa vez à região denominada como “extremo
oriente”. Compõem esse território países como o
Japão, a China, a Coréia do Norte, a Coréia do Sul,
Taiwan e Mongólia.

Cabe destacarmos que a cultura desses países e


a sua relação com a música atravessa milênios.

53
Por exemplo, há mais de 4 mil anos a.C. filósofos
chineses já descreviam a presença da música e
atribuíam sua existência à natureza. Voltando ainda
mais na linha temporal, na região também foram
encontradas 16 flautas confeccionadas em ossos.
Especialistas estimam que os artefatos tenham
entre 8 e 9 mil anos de existência.

Esses países possuem tradições musicais próprias.


Em geral são canções voltadas ao aspecto religio-
so, próprias para rituais e cerimônias, e músicas
folclóricas que narram as suas tradições.

As melodias dessa região normalmente são


acompanhadas pelo som de flautas, sinos, gongo
e tambores, e nem sempre apresentam letra.

A cultura dos países do extremo oriente é marcada


pela tradição na dança e na arte da interpretação.
Por esse motivo, grande parte das músicas no
passado eram compostas especialmente para
essa finalidade.

Aqui cabe citarmos uma figura lendária que possui


estreitos laços com a música: a gueixa. No ima-
ginário ocidental, as moças de rosto pintado de
branco possuem uma aura de encanto e mistério.

Na cultura japonesa, as mulheres que se dedicam


à carreira de gueixa devem estudar a fundo, desde
cedo, a arte do entretenimento, o que inclui a dança,

54
o canto e a arte. Uma de suas muitas incumbências
é o estudo e a prática do shamisen, um instrumento
semelhante a um banjo de três cordas, cujo som
melancólico por vezes é acompanhado pela flauta
– outro instrumento que as gueixas também devem
saber tocar. Por fim, o repertório musical dessas
mulheres também era composto por instrumentos
de percussão, como o ko-tsuzumi, um pequeno
tambor de ombro em forma de ampulheta, e o
taiko, um tambor de chão.

Figura 12: Retrato de uma tradicional gueixa e o seu


shamisen.

Fonte: Japanesetradmusic

Saltando para os dias atuais, graças à internet,


à globalização e à velocidade da informação, a
música pop sul-coreana, também conhecida como

55
k-pop (do inglês Korean pop), é o novo fenômeno
entre os mais jovens, ultrapassando as fronteiras
do país asiático e ganhando destaque pelo mundo.

A sonoridade do estilo recebe influências externas,


de modo que uma identidade sonora e visual seja
criada. Esse fato revela que embora as tradições
sejam mantidas, a música e a cultura são elemen-
tos dinâmicos.

OCEANIA
Esse continente é basicamente formado por um
conjunto de ilhas, cujos países mais conhecidos
são: Nova Zelândia, Austrália, Samoa e Papua
Nova Guiné. Sua rica cultura remonta ao tempo
dos seus povos originários, como os aborígenes
que habitaram o território que hoje conhecemos
como Austrália ou os maoris, na Nova Zelândia.

O histórico do povo maori revela que eles eram


altamente espiritualizados. Por estarem em meio
à natureza, reverenciavam-na como elemento
sagrado. Por essa razão, a musicalidade se fazia
presente, pedindo proteção e auxílio na navegação,
por exemplo. Era comum o uso de flautas, apitos
e tambores.

Não raramente “viralizam” nas redes sociais vídeos


de atletas neozelandeses dançando o haka. Essa
coreografia, típica da cultura maori, era utilizada

56
como uma forma de demonstrar força e unidade
frente a um inimigo. Os passos são acompanhados
de palavras cadenciadas e cantadas em tom forte.

Na Austrália, os aborígenes partilhavam crenças


semelhantes aos maoris da Nova Zelândia. Acredi-
tavam na união de todos os seres da natureza com
um ser superior que integrava tudo. Sendo assim, a
natureza era fortemente respeitada e reverenciada
por eles. A música era uma importante forma de
conexão desses elementos.

A musicalidade aborígene era, sobretudo, vocal e,


por vezes, acompanhada pelo yidaki (didgeridoo).
Esse instrumento de sopro consiste em um tronco
oco cujo som é produzido pela vibração dos lábios
daquele que o toca.

A origem do yidaki remonta a cerca de 1500 anos,


conforme pinturas rupestres encontradas na região.
Nessa cultura, esse instrumento é a representação
da mãe serpente, a criadora da terra.

As danças que eram coreografadas ao som do


yidaki eram marcadas complementarmente pelo
uso de bastões.

57
Figura 13: Imagem de um aborígene tocando um
didgeridoo.

Fonte: Thepoweredit

AMÉRICAS
A América é um vasto continente, que cobre de
norte a sul o globo terrestre e é lar dos mais di-
versos povos. Aqui trataremos desse lugar na sua
essência original: os povos nativos.
Antes da chegada dos europeus colonizadores
e, posteriormente, das pessoas negras escravi-
zadas vindas da África, habitavam essas terras
uma imensa quantidade de povos indígenas de
diferentes etnias, regiões e culturas. Em comum,
o fato de que viam na natureza uma forma de
conexão com o sagrado. Não raro, celebravam
colheitas, fenômenos climáticos, a fertilidade, a
caça e momentos importantes como o nascimento,

58
a união e a guerra, dentre outros. Nesse contexto,
a musicalidade marca rituais de modo integrativo
com outras formas de expressão cultural, como a
própria dança.
Os nativos norte-americanos costumavam empregar
em suas músicas a voz e instrumentos de percussão.
A primeira podia aparecer como um solo, um coral
ou um canto responsorial (como um jogo musical
no qual um indivíduo pergunta e todos respondem
ou repetem a fala). A percussão era feita a partir
do som de tambores e chocalhos. Normalmente
iniciava-se com batidas lentas e constantes que
aumentavam gradualmente, acompanhadas não
somente pelo canto, mas por coreografias também.
A América pré-colombiana, isto é, antes da chega-
da de Cristóvão Colombo e seus homens, contava
com povos como os incas, os maias e os astecas
na região da América Central e da Cordilheira dos
Andes, ao sul do continente. Esses grupos forma-
ram verdadeiros impérios, cujos resquícios até
hoje são contemplados e visitados como pontos
turísticos preservados como patrimônios da hu-
manidade. Sua musicalidade estava relacionada
principalmente à religiosidade, com uma profunda
relação com a poesia. As apresentações contavam
com o acompanhamento de instrumentos, danças
e encenações.
Até os dias de hoje, como resultado do sincretismo
cultural proporcionado pelos povos originários da

59
região e a influência da colonização espanhola,
podemos ver apresentações musicais típicas das
regiões que refletem todo esse passado, sobre-
tudo no Peru. Em geral, toca-se o charango, um
instrumento de cordas com formato semelhante
a um violão; a zampoña, uma espécie de flauta
confeccionada a partir do junco, e a ocarina, ou-
tro instrumento de sopro, feito de barro, pedra ou
madeira, em formato oval.
Alguns grupos indígenas brasileiros acreditavam
que a música era um presente dado pelos deuses,
uma vez que ela se fazia presente tanto nas fes-
tividades coletivas quanto na esfera íntima e era
um importante elemento socializador, uma vez
que promoviam o contato entre diferentes tribos
por meio da linguagem não verbal.
A música para esses grupos estava presente, mais
uma vez, em rituais e cerimônias e havia regras e
determinações para o uso de certas melodias, além
da escolha daquele que iria cantá-la, bem como o
momento certo para isso ser feito. Dessa forma,
algumas canções e instrumentos só poderiam ser
praticados por homens, outros só por mulheres
e outros, ainda, só para um determinado rito ou
celebração.
As flautas possuem um importante destaque para
algumas etnias, sendo a sua prática normalmente
reservada aos homens.

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Figura 14: Homens indígenas brasileiros tocando flauta.
Em algumas etnias, mulheres são proibidas até mesmo de
escutar o seu som.

Fonte: Emaze

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Aqui concluímos essa viagem às principais cultu-


ras ao redor do mundo e exploramos um pouco
as suas relações com a musicalidade. Um passo
importante na compreensão de como as suas
identidades foram construídas, incluindo a nossa,
a brasileira.

Conhecer as origens da música nos permitirá tam-


bém um melhor entendimento do seu papel nas
manifestações do corpo, a chamada expressão
corporal.

61
A MÚSICA E O RITMO
NO CONTEXTO DAS
EXPRESSÕES CORPORAIS
Certamente você já ouviu a máxima “o corpo fala”.
E, de fato, essa é uma verdade. Ainda que de uma
forma não verbal, podemos utilizar do corpo para
nos comunicarmos. Seja um gesto, uma careta, um
sinal ou uma coreografia complexa. Tudo passa
pela expressão corporal.

Estudamos como a música pode afetar as nossas


emoções. Somos seres dotados de sentimentos
e, por vezes, manifestamos a necessidade de ex-
pressá-los. Por meio desse desejo manifestam-se
as expressões corporais, que podem também
representar ideias, pensamentos e movimentos
representativos ou simbólicos.

A expressão corporal pode aparecer em variados


contextos como a voz, o corpo, o ritmo, o som, a
postura, o movimento, o gesto, o espaço e o tempo.
Por vezes, tais manifestações podem também sur-
gir de maneira involuntária e serem interpretadas
como uma manifestação de liberdade e criatividade.

Esse tipo de expressão é intrínseco ao ser humano


e é graças a ele que somos compreendidos desde
a tenra idade. Por exemplo, muitas vezes pelas

62
feições de um bebê os pais conseguem identificar
se ele está com fome, com a fralda suja, com dor
etc. Faz parte da nossa natureza.

Por ser natural da nossa espécie, a expressão cor-


poral não está relacionada somente à sobrevivência
e à socialização, mas também às artes em geral.
Podemos encontrar as expressões corporais na
forma de danças, encenações e na música. Não
à toa, a Educação Física tem se dedicado a pro-
fundos estudos acerca do tema nos últimos anos.

A expressão corporal pode aparecer como uma


manifestação espontânea do corpo executada
a partir de experiências por ele vividas. Essa vi-
vência livre pode favorecer o enriquecimento dos
gestos expressivos, deixando-os mais criativos e
espontâneos., além de favorecer a comunicação do
indivíduo com o meio, canalizando nas expressões
corporais uma forma de demonstrar sentimentos
e pensamentos muitas vezes sublimados.

Além das manifestações livres do corpo, a expres-


são corporal também pode ser conduzida ou até
mesmo condicionada, como em uma coreografia
de dança. Os movimentos são previamente estru-
turados, planejados e ensaiados, para então serem
executados.

A dança é uma das mais conhecidas formas de


expressão corporal, estando ela inter-relacionada

63
com a expressão corporal. Motivo esse que é objeto
de estudo de inúmeros pesquisadores da área.

A dança completa o ciclo visto até aqui: o movi-


mento, o ritmo, a cultura, a expressão corporal e
ela, a dança. Percebam como tudo está intima-
mente ligado. São componentes fundamentais e
complementares entre si.

64
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste e-book pudemos compreender conceitos
interligados e muito importantes. Inicialmente, pu-
demos ver como a música, até então uma simples
vibração no ar, é captada pelo sistema auditivo e
processada no cérebro. Um processo rico e com-
plexo da natureza humana.

Aprendemos como os domínios de aprendizagem


são organizados e quais são os benefícios da
música em relação a cada um deles.

O domínio cognitivo é estimulado graças à plasti-


cidade neural, demonstrada através da repetição
da experiência. Os ganhos observados são maio-
res níveis de atenção, concentração e controle
emocional.

A música pode afetar o âmbito psicossocial atra-


vés das emoções: uma música pode despertar
sentimentos e a memória de uma pessoa.

Já em relação ao domínio motor, a música contribui

no controle dos movimentos do corpo, na execução


de tarefas e na coordenação motora.

Após explorarmos os efeitos da música no desen-


volvimento humano, partimos para uma viagem
de imersão cultural. Observamos como cada povo
compreende e reproduz a música, apreciando cada

65
forma de maneira independente da visão eurocên-
trica do neoclassicismo.

A África, um imenso continente, recebeu a influ-


ência árabe em sua musicalidade, em especial na
região norte. Já a região subsaariana é marcada
por músicas longas, com improviso, polirrítmicas,
em forma de chamada-e-resposta. Instrumentos
de percussão acompanham a sonoridade. A temá-
tica, em geral, é voltada para o trabalho, para fins
religiosos e para celebrações.

A música do Oriente Médio tem prevalência instru-


mental e credita-se à região a criação do violino,
do oboé e do trompete, além de resquícios arque-
ológicos também indicarem a primeira partitura
musical, com letras sobre religiosidade e o retrato
da vida cotidiana.

A Índia possui um sistema particular de música.


Elas são compostas a partir de ragas – um con-
junto de normas de como construir uma melodia,
que dita a escala e as notas. Os ragas também
servem para expressar sentimentos e cada um é
associado a um horário do dia ou a uma estação
do ano. A liberdade e a criatividade são valorizadas
e os músicos podem improvisar. Tradicionalmente
as músicas são acompanhadas por instrumentos
típicos como o sitar, a flauta de bisel, as tablas, a
vina e o santoor indiano. Ainda hoje a música é

66
fundamental na Índia, seja nas celebrações religio-
sas, na vida cotidiana ou no cinema, representado
por Bollywood.

No que chamamos de Extremo Oriente, a música


é valorizada e retratada ao longo de milhares de
anos. Em geral, são canções voltadas ao aspecto
religioso, próprias para rituais e cerimônias e mú-
sicas folclóricas que narram as suas tradições,
acompanhadas pelo som de flautas, sinos, gongo
e tambores, e nem sempre apresentam letra. Neste
tópico estudamos também o papel das lendárias
gueixas, exímias instrumentistas e cantoras.

A Oceania, o arquipélago-continente, contou com


povos nativos como os maoris e os aborígenes.
Ambos com forte ligação e fé na natureza e seus
elementos. Os maoris executavam o haka ao som
de passos fortemente cadenciados, enquanto os
aborígenes tinham uma musicalidade vocal acom-
panhada pelo yidaki (didgeridoo), um instrumento
de sopro.

Nas Américas, de norte a sul, os nativos também


reproduziam as suas músicas no intuito de reverenciar
deuses, a natureza, celebrar momentos importan-
tes e realizar rituais. Os nativos norte-americanos
utilizavam a voz e os instrumentos de percussão,
tambores e chocalhos. Podendo ser um solo, um
coral ou um canto responsorial, que aumentava o

67
tom gradualmente. Os povos nativos da América
Central também possuíam forte relação com a
música. Um dos exemplos é a música peruana
marcada pelo som do charango, da zampoña e da
ocarina. Já os homens dos povos nativos do nosso
país usavam a flauta para compor suas músicas,
algo nem sempre permitido às mulheres – o que
variava de etnia para etnia. Algumas músicas eram
cantadas somente por eles, outras somente por
elas e a depender do ritual.

Ao explorarmos a musicalidade e a compreensão


da música para cada população, percebemos algo
intrínseco ao som e ao ser humano: a expressão
corporal. Trata-se de uma manifestação não-verbal
de ideias, pensamentos e movimentos representati-
vos ou simbólicos. Pode ser espontânea como um
gesto ou conduzida/condicionada como a dança
ou uma peça de teatro.

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