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UM GENE Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

Gene tnaA:
bactérias resistentes
“altruístas” socorrem
vizinhas menos
resistentes

Sergio Olavo Pinto da Costa


Departamento de Microbiologia. Instituto de
Ciências Biomédicas. USP. São Paulo
Autor para correspondência: sopdcost@usp.br
Palavras-chave: gene tnaA, bactérias
resistentes altruísticas

Genética na Escola | Vol. 8 | Nº 1 | 2013 Sociedade Brasileira de Genética 104


UM GENE Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

B actérias com alto nível de resistência a um


dado antibiótico podem, curiosamente,
ajudar altruisticamente bactérias vizinhas, menos
resistentes a esse antibiótico, graças à produção de
indol que leva estas bactérias menos resistentes a
expulsar o antibiótico de seu interior.

A SURPREENDENTE ESTÓRIA
DAS BACTÉRIAS CARIDOSAS

R ecentemente, pesquisadores analisan-


do como uma população bacteriana se
comporta quando cultivada na presença de
um dado antibiótico se surpreenderam ao
verificar que as bactérias mais resistentes
ajudavam a sobrevivência das suas vizinhas
menos resistentes. Essas bactérias “altruís-
tas” assim agem ao liberar uma substância
sinalizadora, o indol, que leva as bactérias
menos resistentes expulsar o antibiótico de
seu interior.

Indol
é um composto orgânico
aromático heterocíclico que
pode ser produzido por diversas
espécies de bactérias como
um produto da degradação do
aminoácido triptofano.

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ANTIBIÓTICOS FORAM não somente com o estafilococo. Inúmeras


bactérias patogênicas estão reagindo dessa
FEITOS PARA MATAR mesma forma aos mais recentes antimicro-
EFICIENTEMENTE BACTÉRIAS bianos produzidos.
Quando o primeiro e muito poderoso an- Os estafilococos são bactérias
Cerca de setenta anos após a introdução da esféricas (cocos), imóveis e
tibiótico - a penicilina - passou a ser usado,
antibioticoterapia, contamos hoje com mais piogênicas (produzem infecção
quase no final da Segunda Grande Guerra purulenta) por excelência. São
de 160 antibióticos, o que corresponde a
Mundial deu o início a uma nova era no tra- coradas em roxo pela coloração
mais de 10 antibióticos para cada bactéria diferencial de Gram (Gram-
tamento de infecções causadas por certos mi-
importante em clínica e, a cada dia se depa- positivas) e crescem em forma
crorganismos, principalmente o conhecido
ra com bactérias que apresentam resistência de cachos de uva.
estafilococo. Realmente, os primeiros anos
a todos os novos antibióticos. Pelo andar
que se sucederam, foram suficientes para de-
da carruagem corre-se o risco de ter-se que
monstrar o valor dessa droga, tida na época,
voltar, em futuro próximo, ao período pré-
como milagrosa por salvar milhares de víti-
-antibiótico para o tratamento das doenças
mas da guerra.
infecciosas. Isso não parece nada animador!
Para o desaponto geral esse milagre durou
pouco e no esforço para substituir essa dro- AS DROGAS MILAGROSAS
ga foi realizado um grande empreendimento FORAM SUPERADAS PELOS
mundial para se isolar novos antibióticos.
Mas por qual razão a tão poderosa penicilina ORGANISMOS MAIS ANTIGOS
deixou de ser eficiente na destruição de bacté- DA TERRA
rias, antes tão sensíveis a ela? Estima-se que as bactérias tenham surgido
Foi, realmente, bastante desapontador para na Terra há cerca de 3,5 bilhões de anos.
o mundo quando nos primeiros anos de uso Durante todo esse tempo elas têm supera-
da penicilina se verificou um considerável au- do os mais diversos ambientes: temperatu-
mento de bactérias resistentes a esse antibióti- ras altas, radiações ultravioleta, diferentes
co, principalmente no caso, o estafilococo, que nutrientes, fontes de energia, etc. A causa
se tornou insensível, ou resistente, a qualquer primária da resistência a drogas é a capaci-
quantidade dessa droga nos hospitais ingle- dade extraordinária de adaptação ao meio
Adaptação
ses. O pior é que a frequência dessa resistência graças à variabilidade genética. Sua eficiente é a resposta de células ao
foi aumentada de tal jeito que em poucos anos evolução está associada à estrutura genômica estresse fisiológico ou a
a grande maioria desses germes, tornaram-se que garante mutações cromossômicas, trocas estímulos patológicos.
totalmente resistentes à penicilina. e rearranjos de genes dentro e entre as bac-
térias e, principalmente, bactérias portado-
O HOMEM APERFEIÇOA ras de pequenos elementos de DNA extra-
-cromossômicos (plasmídeos) que carregam
RATOEIRA E A NATUREZA genes responsáveis pela resistência múltipla
ADESTRA O RATO aos antimicrobianos. Em outras palavras, as
Durante os primeiros anos da década de causas desse malogro decorrem das próprias
1950, outros antibióticos foram introduzi- leis da natureza genética bacteriana que ti-
dos, incluindo os hoje bem conhecidos es- ram proveito do uso extensivo e indiscrimi-
treptomicina, cloranfenicol, tetraciclinas, eri- nado de antibióticos.
tromicinas e novobiocina. Mais uma vez, o Bactérias que apresentam resistência cro-
fenômeno da resistência bacteriana ocorreu mossômica podem possuir o sistema de
igualmente em pouco tempo de administra- resistência multidroga (MDR) também co-
ção desses novos compostos. nhecido por bomba de efluxo ou expul- Bomba de efluxo
é o bombeamento ativo de
A subsequente introdução, a partir de 1960, são. O sistema de efluxo chama atenção pelo
antimicrobianos do meio
de dezenas de outros poderosos agentes an- fato de um único mecanismo de resistência intracelular para o extracelular,
timicrobianos, não ofereceu um controle per- diminuir a suscetibilidade da bactéria a um comandado pela indução de um
manente da infecção e, mais uma vez, ocor- número de diferentes drogas o que permite grupo de genes exportadores
a sua convivência em diferentes nichos eco- tornando a célula bacteriana
reu a emergência de linhagens resistentes a menos sensível a um grupo de
todos eles. Esse fenômeno tem se repetido lógicos. antibióticos.

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UM GESTO ALTRUÍSTICO células bacterianas mais resistentes serve


para ativar um conjunto de genes (existem
ENTRE BACTÉRIAS cerca de 20 diferentes genes), os xenobióticos
Biorreator
refere-se a um recipiente
Tudo começou, recentemente quando pes- exportadores, responsáveis pela expulsão do
utilizado para a cultura aeróbica quisadores americanos decidiram conhecer antibiótico pela bomba de efluxo.
continua de células, no caso a dinâmica da resistência populacional de
bacterianas, que se duplicam uma conhecida bactéria que frequenta o nos-
em constante fase exponencial A MOLÉCULA DE
so corpo, Escherichia coli, quando submeti-
de crescimento.
da ao crescimento contínuo em biorreator INDOL É UMA GRANDE
(nesse sistema as bactérias estão sempre em CONTROLADORA CELULAR
crescimento exuberante) em presença de ní- Muitas bactérias Gram-negativas e Gram-
A coloração de Gram permite
diferenciar bactérias com
veis crescentes de um conhecido antibiótico, -positivas codificam uma única cópia do
diferentes estruturas de norfloxacina. Verificaram, esses pesquisado- gene tnaA em seu cromossomo, responsável
parede celular a partir das res, que a grande maioria dos isolados era pela síntese da enzima triptofanase. O indol
colorações que estas adquirem menos resistentes que a população como um é sintetizado a partir da quebra do triptofano
após tratamento com agentes
todo. Mais ainda, algumas poucas bactérias pela triptofanase. É uma molécula sinaliza-
químicos específicos. As
bactérias que adquirem a mutantes, altamente resistentes (cerca de dora envolvida na tolerância ao estresse em
coloração azul violeta são 1%), melhoraram a sobrevida da população E.coli. Como uma molécula sinalizadora in-
chamadas de Gram-positivas menos resistente, em parte, por produzirem tercelular, ela controla diversos aspectos da
e aquelas que adquirem indol, um velho conhecido composto excre-
a coloração vermelha são
fisiologia celular, como a formação de espo-
chamadas de Gram-negativas.
tado por diferentes espécies bacterianas. Ve- ros, formação de biofilmes, controle da vi-
rificaram ainda, que o indol produzido pelas rulência, e resistência a drogas.
Biofilmes
são complexos ecossistemas
microbianos embebidos numa
matriz de exopolissacarídeo
aderidos a uma superfície. No
biofilme os microrganismos
tornam-se mais resistentes a
ação de agentes químicos e
físicos.

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O GENE tnaA DA responsável pela síntese da triptofanase,


gene tnaB que codifica para uma permease e
TRIPTOFANASE o gene tnaC que codifica um peptídeo líder.
O gene tnaA codifica um peptídeo com 471 Esse operon é induzido pelo triptofano que é
aminoácidos, mas a triptofanase ativa é for- o substrato da triptofanase. A estrutura des-
mada por 4 dessas unidades peptídicas. Este se operon revela que ele deve ter sido intro-
gene está localizado num ponto específico do duzido no cromossomo da E.coli há milhões
mapa cromossômico (83.8 min.) da E. coli de anos atrás como um elemento gené-
e faz parte de um operon, estrutura cons- Os elementos genéticos
tico móvel, via transferência genética móveis são segmentos do
tituída por três genes: gene estrutural tnaA, horizontal (ou lateral). genoma podem mudar de
posição no cromossomo ou
se transferirem para outro
cromossomo.

Os genes de bactérias estão organizados em operons, conjuntos


Transferência horizontal
de genes que são co-regulados. Além de estarem fisicamente de genes
próximos os genes que compõem um operon estão sob o controle ou transferência lateral de
genes é um processo em que
de uma única região promotora ou promotor,que fornece um local um organismo transfere material
para ligação da RNA polimerase. Assim sendo, todos os genes de genético para outra célula que
não é sua descendente.
um operon são ligados (ou transcritos) ou desligados (ausência
de transcrição) juntos. O agrupamento de genes relacionados sob
um controle regulatório comum possibilita respostas rápidas às
mudanças do ambiente como, por exemplo, das fontes de carbono
e de outros nutrientes.

PRODUZIR INDOL SAI o tratamento por antibióticos poderá ser fa-


cilitado em menores doses se a ação do indol
CARO PARA AS BACTÉRIAS fosse impedida.
PRODUTORAS, MAS
COMPENSA
O admirável é que a energia gasta pelas célu-
las mais resistente para produzir esses meca-
nismos que fortalecem as bactérias vizinhas,
menos resistentes, evitando a sua morte, tem
um custo adicional para essas bactérias que
se manifesta por um crescimento menor.
Por outro lado, dá para entender o com-
portamento das bactérias generosas, mais
resistentes, ao ajudar a população mais nu-
merosa e menos resistente, como compensa-
ção biológica: sem a ajuda das mais fortes, a
população poderia ser reduzida a um nivel
crítico, o que facilitaria um contra-ataque
das defesas do organismo contra as bacté-
rias. Obviamente, para quem toma antibi-
ótico, não é bom negócio essa generosidade
entre bactérias. É provável que futuramente
Figura 1.
Estrutura da triptofanase.

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PARA SABER MAIS JIN-HYUNG, L.; JINTAE, L. Indol as inter-


cellular signal in microbial communities.
FEMS Microbial Rev. v 34, p 462-444, 2010.
1. Obra Geral. LEE, H. H.; MOLLA, M.; CANTOR, C. R.;
ROSSI, F.; ANDREAZZI, D. Resistência bac- COLLINS, J. J. Bacterial charity work leads
teriana. São Paulo. Atheneu. 2005. 118 pp. to population-wide resistance. Nature v. 467,
n 7311, p 82-85, 2010.
MARTIN, K.; MORLIN, G.; NORDYKE, A.;
2. “Altruísmo” bacteriano, indol e genes EISENSTARK, A.; GOLOMB, M. The trip-
xenobióticos exportadores. tophanase gene cluster of Hemophilus influen-
zae tipe B: evidence for horizontal gene trans-
HIRAKAWA, H.; INAZUMI, Y.; MASAKI,
fer. J. Bacteriol. v 180, n.1, p 107-118, 1998.
T.; HIRATA, T.; YAMAGUCHI, A. Indol
induces the expression of multidrug export- NIKAIDO. H. Multidrug efllux pumps in gram-
er genes in Escherichia coli. Molecular Micro- negative bacteria. J. Bacteriol. v. 178, n. 20, p
biology v.55, n(4, p. 1113-1126, 2005. 5853-5859, 1996.

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