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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

DIMITRI NASCIMENTO SALES

DIVERSIDADE SEXUAL,
PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL E
CONTROLE DE CONVENCIONALIDADE

DOUTORADO EM DIREITO

SÃO PAULO, 2014


DIMITRI NASCIMENTO SALES

DIVERSIDADE SEXUAL,
PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL E
CONTROLE DE CONVENCIONALIDADE

Tese apresentada à Banca Examinadora da


Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
como exigência parcial para obtenção do título
de Doutor em Direito, sob a orientação da
Professora Doutora Flávia Piovesan.

SÃO PAULO, 2014


Banca Examinadora

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Certas pessoas possuem a grande capacidade de
mudar seu próprio mundo, mudando o mundo todo
a sua volta.

A José Sales dos Santos,


meu pai, meu grande amigo.
A João Silvério Trevisan e Renata Perón

A todos que, sinceramente,


dedicam ou dedicaram suas vidas à defesa dos
direitos humanos e dos direitos da diversidade sexual
Esta tese é fruto de muitos esforços, superação de
muitos obstáculos. Não teria sido possível sem o
apoio de muitas pessoas queridas, de singular
importância em minha.

Meus especiais agradecimentos a Flávia


Piovesan, minha orientadora e amiga. Agradeço a
confiança e permanente estímulo. Agradeço, mais
ainda, por ser um grande referencial na luta pelos
direitos humanos, fonte de inspiração e de
profunda admiração.

Minha profunda gratidão a Sérgio Resende de


Barros, por sua amizade e companheirismo, seu
permanente apoio e ensinamentos.

Meus acadêmicos agradecimentos a Andres Gil


Dominguez, Denise Bernuzzi de Sant’Anna, Izaias
José de Santana, Pedro Buck (meu amigo Pedro!),
Rui (PUC/SP), Rafael (PUC/SP) e Willis Santiago
Guerra Filho.

As amigas e amigos Adriana Galvão Moura Abílio,


Alba Cristina Soares, Anália Ribeiro, Bruno Bimbi,
Edith Modesto, Mara Barbosa (Livraria 22 de
Agosto), Mônica Galano, Neide Santos (Neidinha),
Luciana Oliveira (Nega Lu), Martha Ueno.

Aos meus irmãos, George Vladimir e Catarina


Sales. A minha avó, Dalva Moreira Santos.

A todos vocês, meu maior afeto e o desejo de


caminharmos juntos por muito tempo.

Por fim, registro meus sinceros agradecimentos ao


apoio institucional fornecido pelo Conselho
Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico (CNPq).
Nunca se sabe se o que chamamos amor é desamparo,
solidão doentia ou desejo incontrolável de dominação.
O que na verdade me seduz é que o amor destrói
certezas com a mesma incomparável transparência
com que o caos significante enfrenta a
insignificância da ordem.

João Silvério Trevisan


Onde queres o ato, eu sou o espírito
E onde queres ternura, eu sou tesão
Onde queres o livre, decassílabo
E onde buscas o anjo, sou mulher
Onde queres prazer, sou o que dói
E onde queres tortura, mansidão
Onde queres um lar, revolução
E onde queres bandido, sou herói

Ah! Bruta flor do querer


Ah! Bruta flor, bruta flor

Caetano Veloso
RESUMO

Corpo, sexualidade e direito constituem elementos que formam o

sujeito. Inseridos num espaço social determinado, corpo e sexualidade são

submetidos a controles externos, objetivando o governo dos indivíduos. O

direito é o instrumento utilizado para impor padrões comportamentais,

delimitando o pleno gozo das experiências corporais e sexuais. O

reconhecimento das diferenças sexuais, sejam centradas na orientação sexual

ou identidade de gênero, é tomado como prerrogativa para negar a lésbicas,

gays, bissexuais, travestis e transexuais o exercício dos direitos fundamentais.

Este trabalho abordará as interações sociais em torno das

sexualidades, partindo da análise da relação entre corpo, sexualidade e direito,

assinalando as formas de controle exercidas sobre o indivíduo. Em seguida,

serão estudados os elementos da Constituição que asseguram a expansão da

proteção constitucional aos direitos da diversidade sexual. Por fim, será

analisado o redesenho institucional proporcionado pelo Controle de

Convencionalidade para o constitucionalismo brasileiro, bem como seu impacto

na proteção dos direitos de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais.

O resultado alcançado permite assegurar que os direitos da

diversidade sexual estão inseridos no âmbito constitucional, devendo ser

concretizados por força da atuação interpretativa da Constituição Federal ou

pela interação entre direito constitucional e direito internacional dos direitos

humanos, proporcionada pelo Controle de Convencionalidade.

Palavras-chave – Direito Constitucional, Sexualidades, Diversidade Sexual,


Controle de Convencionalidade.
ABSTRACT

Body, sexuality and Law are elements that conform the subject. In

society, body and sexuality are submitted to external means of control, that

intends to control individuals. Law is the instrument through which behavioral

patterns are imposed, limiting the fruition of corporal and sexual

experimentations. To acknowledge sexual differences, whether centered in

sexual orientation or gender identity, is to deny lesbians, gays, bisexuals,

travesties and transsexuals the fulfillment of fundamental rights.

This thesis analyses social interactions concerning sexuality, from a

perspective that considers the relationship among body, sexuality and Law,

stressing the means of control over the individual. Moreover, it will be studied

the constitutional norms that protects the rights of sexual diversity. At the end,

we scrutinize how the conventionality review has reshaped Brazilian

constitutionalism and has impacted on the protection of lesbians, gays,

bisexuals, travesties and transsexuals rights.

The result of such study rests in the assurance that the rights of

sexual diversity are inserted in the constitutional dimension, entailing the

obligation to be enforced whether through the interpretation of the Constitution

or through the interaction between constitutional law and international human

rights, due to the conventionality review.

Key words – Constitutional Law, Sexuality, Sexual Diversity, Conventionality


review.
SUMÁRIO

Introdução – Corpo, Sexualidade, Direito................................................................. 01

Capítulo I: O Corpo Conforme


1.1. A Invenção da Pessoa......................................................................................... 04
1.2. O Corpo Tomado.................................................................................................. 15
1.2.1. O Corpo Normatizado............................................................................ 19
1.2.2. O Corpo Biológico.................................................................................. 20
1.2.3. O Corpo Biológico................................................................................... 36
1.2.2. O Corpo Nomeado...................................................................... 48
1.2.4. O Corpo Sagrado.................................................................................... 50
1.3. O Corpo Incontrolável............................................................................................ 54

Capítulo II: A Jurisdicionalização da Diversidade Sexual


2.1. O Direito que (Não) Protege.................................................................................. 63
2.2. Elementos de Subversão...................................................................................... 70
2.2.1. O Constitucionalismo de 1988................................................................ 71
2.2.2. Breve História da Luta pelos Direitos da Diversidade Sexual................ 74
2.3. Homoafetividade e Reconhecimento de Direitos: Questão Terminológica e
Estratégia de Intervenção...................................................................................... 79

2.4. Proteção Constitucional da Diversidade Sexual.................................................... 86


2.4.1. Dos Princípios Constitucionais e a Escolha Fundamental: A Ideia de
Igualdade................................................................................................. 88

2.4.2. Evolução Histórica: Da Igualdade à Diferença....................................... 96


2.4.3. Supremo Tribunal Federal e Reconhecimento dos Direitos da
Diversidade Sexual................................................................................ 110

2.5. Razão Pública e o Lócus da Conquista de Direitos............................................ 117

Capítulo III: Controle de Convencionalidade e Diversidade Sexual


3.1. Proteção Internacional dos Direitos Humanos e Estado Constitucional de
Direito................................................................................................................. 128

3.2. Constituição Aberta............................................................................................ 135

3.2.1. A Abertura Normativa da Constituição Brasileira................................. 138


3.3. O Controle de Convencionalidade....................................................................... 145
3.4. O Controle de Convencionalidade e Afirmação dos Direitos da Diversidade
Sexual............................................................................................................. 158

Considerações Finais – A Conquista dos Direitos da Diversidade Sexual............ 167

Referências Bibliográficas..................................................................................... 173


INTRODUÇÃO

CORPO, SEXUALIDADE, DIREITO

A presente tese parte do pressuposto de que sem a efetivação dos

direitos da diversidade sexual não haverá concretização dos direitos humanos,

ideal primeiro a mover as instituições políticas e impulsionar a história dos

povos. Importa afirmar o reconhecimento dos direitos fundamentais de

lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais

Em torno do corpo, da sexualidade e do direito, as sociedades tem

arquitetado mecanismos de poder que em análise mais apurada, constitui-se

em formas de controle e sujeição de indivíduos. São elementos estruturantes e,

como tal, utilizados como critérios para definir exercício de direitos. As

transgressões aos padrões estabelecidos resultam em invisibilidade, sujeição

às formas diversas de intolerância, desprezo legislativo. Ainda que corpo e

sexualidade se integrem na formação da personalidade, nega-se ao sujeito o

exercício de direitos fundamentais, inerentes à sua condição humana.

No primeiro capítulo a análise do corpo e sexualidade é tomada

como referencial para situar a discussão em torno da negação dos direitos da

diversidade sexual. Pretende-se demonstrar as interações sociais em torno da

formação dos sujeitos de direitos, considerando as diferenças sexuais como

critérios para definir prerrogativas para o exercício de direitos fundamentais.

Partindo da reflexão em torno do corpo e sexualidade, o segundo

capítulo versará sobre a jurisdicialização dos direitos da diversidade sexual.

Para tanto, traça um paralelo entre as ciências jurídicas e biológicas,

demonstrando a formação histórica que, atualmente, serve como fundamento


para categorizar exercício de direitos. Aponta a importância das lutas

empreendidas pelos movimentos sociais e os avanços advindos com o

constitucionalismo inaugurado com a Constituição Federal de 1988 como

elementos que foram capazes de inserir a pauta dos direitos de lésbicas, gays,

bissexuais, travestis e transexuais na agenda política nacional.

Em seguida, analisa-se a construção jurídica em torno da

diversidade sexual, destacando as estratégias de intervenção e o

reconhecimento do direito à diferença como corolário do princípio da igualdade,

na sua concepção material. Como isso, apresenta as bases para a defesa dos

direitos LGBT no âmbito dos Poderes da República. Ao final, afirma o Poder

Judiciário, em especial o Supremo Tribunal Federal, como o espaço propício

para o reconhecimento da juridicidade da diversidade sexual, destacando

deveres impostos à tarefa de concretização do ordenamento jurídico.

Afirmando a importância da abertura constitucional aos sistemas

internacionais de proteção aos direitos humanos, destaca a existência de sólida

jurisprudência protetiva aos direitos da diversidade sexual no âmbito das

Cortes Internacionais, em especial na Corte Interamericana de Direitos

Humanos. Em seguida, analisa a instrumentalidade do controle de

convencionalidade como forma de asseverar, no âmbito do direito interno, a

proteção de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais, ampliando a

tutela jurídico-constitucional desta população.

Adotando como referência julgado recente da Corte Interamericana

de Direitos Humanos, que, por força do controle de convencionalidade, impacta

a ordem jurídica nacional, produzindo efeitos que vinculam os Poderes, em

especial o Poder Judiciário, afirma a existência de garantias suficientes para a

2
promoção dos direitos da diversidade sexual, não se admitindo exclusão de

qualquer forma de proteção jurídica à população LGBT.

Esta tese pretende confirmar a tutela constitucional dos direitos da

diversidade sexual, ainda que não esteja explicitada na Carta Política, sendo

possível reconhecê-la por força da interpretação da Constituição, desde que

amparada pelos princípios fundamentais e direitos consagradores das

diferenças humanas. Ainda, o reconhecimento dos direitos internacionais de

direitos humanos, pelo controle de convencionalidade, amplia o âmbito

normativo de proteção aos direitos de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e

transexuais.

Assim, pretende-se contribuir para fortalecer a luta dos defensores

dos direitos da diversidade sexual, seja no âmbito acadêmico, na intervenção

jurídica ou na atuação dos militantes sociais. Espera-se asseverar a dignidade

humana na prática, tornando-a concreta na vida de pessoas que sempre

estiveram a margem do exercício de direitos, por terem a audácia de romper

padrões e ousarem experimentar a maior dimensão humana – a sexualidade,

livre e plena de gozo.

3
CAPÍTULO I
O CORPO CONFORME

1.1. A INVENÇÃO DA PESSOA

As destruições promovidas pelas grandes guerras promoveram a

ruptura da contínua luta em favor do reconhecimento do ser humano como

sujeito de direitos, transformando-a em condição sine qua nom para o

estabelecimento de regimes totalitários. No centro, em torno das disputas que

redundaram na eclosão dos conflitos mundiais, homens e mulheres moviam

contínua e ininterruptamente a roda da vida, forjando com as próprias mãos

suas biografias, entrelaçadas com a história pelo reconhecimento e imposição

de garantias fundamentais contra e em face do Estado. Afirmativamente, para

além do clássico axioma marxista1, a história das sociedades contemporâneas

tem sido a história das lutas pela conquista dos direitos humanos.

O Século XX foi marcado pelo surgimento de sistemas totalitários de

governo, com a instauração de regimes cuja autoridade política, centralizada

em torno de uma pessoa ou grupo, era exercida sem a existência de quaisquer

limitações, aí incluídas as instituídas historicamente pelo Direito. Assim, como

pressuposto à preservação do poder, o Estado de então se esforçou para

regular todos os aspectos da vida pública e privada, controlando-a, por vezes,

1
Alguns postulados da teoria econômica elaborada por Karl Marx e Frederich Engels foram
apresentados em forma de manifesto, em 1848. Sua base centra-se na assertiva de que a
oposição entre os detentores dos meios de produção da riqueza (burgueses) e os
trabalhadores que movimentam a máquina da indústria (proletariado) é o principal impulso para
as lutas em torno da concepção de Estado. Ao iniciar a exposição, afirmavam que “até hoje, a
história de todas as sociedades que existiram até nossos dias tem sido a história das lutas de
classes”. (ALENCAR, Chico. Manifesto comunista. 2. ed. Rio de Janeiro: Garamond, 1998.
Coleção Os Visionautas).

4
com o uso de absoluta força. Como pressuposto ao êxito da lógica totalitária, o

isolamento tornou-se ação política prioritária.

O ser humano do tempo da guerra tornou-se um sujeito isolado,

despojado de convívio social e desprovido de proteção jurídica capaz de evitar

o seu desaparecimento. Nesta perspectiva, estavam rompidos os tecidos

sociais que, fio a fio entrelaçados, amalgamaram relações baseadas no Direito

e no exercício da política. Homens e mulheres, ante as armas que se

impunham, por força do aço ou da ideologia, tornaram-se dispensáveis.

“Já se observou muitas vezes que o terror só pode reinar


absolutamente sobre homens que se isolam uns contra os outros e
que, portanto, uma das preocupações fundamentais de todo governo
tirânico é provocar esse isolamento. O isolamento pode ser o
começo do terror; certamente é o seu solo mais fértil e sempre
decorre dele. Esse isolamento é, por assim dizer, pré-totalitário; sua
característica é a impotência, na medida em que a força sempre
surge quando os homens trabalham em conjunto (...) os homens
isolados são impotentes por definição. (...) O isolamento é aquele
impasse no qual os homens se vêem quando a esfera política de
suas vidas, onde agem em conjunto na realização de um interesse
comum, é destruída.”2

Ilhado, o sujeito que viveu no período da guerra viu-se desprovido da

força das tradições que, secularmente, contribuíram para a tentativa de

estabelecer padrões mínimos a regular a convivência social. Era uma época de

desconstrução, retrocesso, desolação.

2
ARENDT, Hannah. As origens do totalitarismo: anti-semitismo, imperialismos, totalitarismo.
Tradução de Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 1889, p. 526-7.

5
“A tradição, no pensamento arendtiano, é a soma dos elementos que
constituem a realidade social, histórica e cultural de um povo. É a
junção dos valores morais e éticos, associados à asserção dos
costumes que, reconhecidos e assimilados, orientam a condução da
vida em comunidade. Em sentido recíproco, a tradição é também
formada e reconhecida pela própria experiência coletiva da
sociedade. Desse modo, por permitir ao indivíduo reconhecer-se e
guiar-se, denota sentido e significância à sua existência. É, portanto,
a volta aos elementos culturais como inerentes à composição do
homem socialmente concebido. Pela tradição é possível
compreender-se no mundo a partir do tempo presente. Torna-se
possível analisar e compreender o sentido das coisas a partir do
acontecido, re-estabelecendo o vínculo do homem com a realidade.
O tempo é experiência viva, vivificada, sentida no presente.” 3

Para Hannah Arendt, a ruptura da tradição implicou na

descontinuidade do tempo, impondo uma ruptura entre o passado de afirmação

de direitos e o futuro, propício à realização do ideal humano. O sujeito do sem-

tempo, de quem a história foi arrancada, viu-se deslocado da sua própria

experiência humana.

“Sem testamento ou, resolvendo a metáfora, sem tradição – que


selecione ou nomeie, que transmita e preserve, que indique onde se
encontram os tesouros e qual o seu valor – parece não haver
nenhuma continuidade consciente no tempo, e portanto,
humanamente falando, nem passado nem futuro, mas tão somente a
sempiterna mudança do mundo e o ciclo biológico das criaturas que
nele vivem.”4

3
SALES, Dimitri Nascimento. Avançar no Estado Democrático de Direito: a participação
política na democracia brasileira. 2007. 282 p. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Direito,
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São Paulo, 2007, p. 24.
4
ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. Trad. Mauro W. Barbosa. São Paulo:
Perspectivas, 2005, p. 31. (Debates; 64 / dirigida por J. Guinsburg).

6
A máquina de destruição empunhada pelos regimes nazifascista ou

stalinista resultou por constituir outro tempo e espaço, marcado pelo não-

direito. Não se tratava somente de injustas leis, desprovidas de conteúdo

moral ou ético, ou de qualquer outra definição possível para designar os

ordenamentos legislativos que consubstanciaram as experiências totalitárias.

Ainda que amparados por sistemas jurídicos, a expressão do direito posto

resultou por negar a própria dignidade dos direitos que, amparados pela força

das tradições, haviam sido historicamente constituídos.

A destruição provocada pela Segunda Guerra Mundial abriu feridas

profundas nas sociedades políticas. Pela ação dos tanques, foram destroçados

valores éticos e morais, destruídos patrimônios históricos da humanidade,

promovida a maior mortandade já experimentada até hoje, impondo um horror

inigualável5. A aflição e agonia vivenciadas ante o potencial dilacerante das

armas nucleares, lançadas sobre o Japão em agosto de 1945, geraram

incômodo suficiente para mover as nações em torno da consolidação de um

novo referencial discursivo, ético e jurídico em torno da reconstrução dos

direitos humanos.

5
“A Segunda Guerra Mundial matou o maior número de pessoa da história, por diversos
critérios. Como um todo, foi o evento mais mortal da história. Foi também o evento mais mortal
para muitas nações, individualmente: Rússia, Polônia, Japão, Indonésia e Holanda, só para
contar algumas. O mesmo aconteceu com grupos não nacionais de vítimas, tais como
soldados, prisioneiros de guerra e judeus. (...) A morte de 1,1 milhão em Auschwitz levou mais
tempo, mas provavelmente conta como a maior mortandade já acontecida no menor local. A
mais sangrenta batalha da história foi provavelmente a Batalha de Leningrado, se você contar
tantos soldados quanto civis, ou a Batalha de Stalingrado, se você contar apenas os soldados,
mas mesmo se não fossem, então os outros prováveis candidatos seriam os outros combates
travados na frente russa. (...) A guerra colocou tanta gente em situação de perigo mortal que
números sem precedentes de pessoas morreram de modo surpreendente e inusitado. Quando
os britânicos encurralaram uma força japonesa na ilha de Ramree, na Birmânia, os japoneses
tentaram fugir atravessando pântanos impenetráveis. Dizem que mil japoneses partiram na
empreitada, mas que apenas vinte saíram vivos do outro lado daquela barreira natural. As
centenas de desaparecidos haviam sido devoradas pelos crocodilos.” (WHITE, Mattew. O
grande livro das coisas horríveis: a crônica definitiva das cem piores atrocidades da história.
Tradução de Sérgio Moraes Rego. Rio de Janeiro: Rocco, 2013, p. 503-4.)

7
“No momento em que os seres humanos se tornam supérfluos e des-
cartáveis, no momento em que vige a lógica da destruição, em que
cruelmente se abole o valor da pessoa humana, toma-se necessária
a reconstrução dos direitos humanos, como paradigma ético capaz
de restaurar a lógica do razoável. A barbárie do totalitarismo
significou a ruptura do paradigma dos direitos humanos, por meio da
negação do valor da pessoa humana como valor fonte do direito.
Diante dessa ruptura, emerge a necessidade de reconstruir os
direitos humanos, como referencial e paradigma ético que aproxime
o direito da moral. Nesse cenário, o maior direito passa a ser,
adotando a terminologia de Hannah Arendt, o direito a ter direitos, ou
seja, o direito a ser sujeito de direitos. Nesse contexto, desenha-se o
esforço de reconstrução dos direitos humanos, como paradigma e
referencial ético a orientar a ordem internacional contemporânea. Se
a Segunda Guerra significou a ruptura com os direitos humanos, o
pós-guerra deveria significar a sua reconstrução.” 6

O esforço dos países em torno do compromisso com a reconstrução

dos direitos humanos resultou, de forma imediata, na criação da Organização

das Nações Unidas, em 1945. Às organizações políticas estatais, outrora

incapazes de evitar a eclosão de conflitos armados em âmbito global, então

esfaceladas pelas marcas da destruição herdadas da Grande Guerra, atribui-se

um conteúdo material: a democracia. A esta forma de governo, foi destinado o

papel de resgatar e asseverar os direitos historicamente consagrados de

homens e mulheres.

“Mas permanece também a verdade de que todo fim na história


constitui necessariamente um novo começo; esse começo é a
promessa, a única ‘mensagem’ que o fim pode produzir. O começo,
antes de tornar-se evento histórico, é a suprema capacidade do
homem; politicamente, equivale à liberdade do homem. Initium ut

6
PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o direito constitucional internacional. 11. ed. rev.
ampl. atual. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 122.

8
esset homo creatus est – ‘o homem foi criado para que houvesse um
começo’, disse Agostinho. Cada novo nascimento garante esse
começo; ele é, na verdade, cada um de nós.”7

Erigidos sobre novos pilares estruturantes, em uníssona e

concordante voz, os Estados proclamaram direitos que, pela sua natureza e

fundamentalidade, doravante constituiriam o ponto de partida e desiderato final

da ação da sociedade em favor da defesa, proteção e promoção da dignidade

humana. Assim, em 10 de dezembro de 1948, como expressão do necessário

amadurecimento político, decorrente da constatação do risco imposto à

experiência humana durante a Segunda Guerra Mundial, a Organização das

Nações Unidas declarou direitos humanos referenciais, produto da história dos

povos, como novo postulado ético, de inafastável observância às comunidades

políticas. Instituiu, destarte, um conjunto normativo universal que passou a

integrar o patrimônio da cidadania global. É a partir da Declaração Universal

dos Direitos Humanos, e para ela, que se deve voltar a atuação dos agentes

públicos, bem como dos cidadãos comuns.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos devolveu ao homem a

sua condição de valor-fonte das instituições políticas, afirmando-o na sua

complexidade e intrínseca dignidade. Como corolário desta assertiva, o

reconhecimento das diferenças humanas, qualquer que seja a sua natureza,

passou a constituir o pressuposto primeiro para o exercício dos direitos de cada

pessoa.

É a partir do reconhecimento das singularidades de cada indivíduo

que deve o Estado atuar, não contra elas. Deve-se, pois, promover condições

7
ARENDT, Hannah. As origens do totalitarismo: anti-semitismo, imperialismo, totalitarismo.
Cit., p. 531.

9
para que as diferenças sejam tratadas de forma a elevá-las à condição de

igualdade material, sem descaracterizá-las. Deste modo, as especificidades

humanas são concebidas na sua dimensão jurídica como elemento integrante

da pessoa humana, sendo, por isso mesmo, merecedora de igualitário

tratamento, quando assim exigir.

Neste sentido, a convenção sugerida pelo mencionado diploma

internacional se traduz na compreensão de que a condição essencial para o

exercício de direitos e gozo da proteção jurídica é ser a pessoa reconhecida

juridicamente como tal. O fundamento axiológico desta assertiva encontra-se

esculpido no Artigo VI da referida Declaração.

“ARTIGO SEXTO, parágrafo total. (...) ‘Todo homem – e toda mulher!


– têm o direito de serem, em todos os lugares, reconhecidos como
pessoa perante a lei’. Independentemente do sexo, da cor, da idade,
do credo, do país, do grau de escolaridade ou até da grande
cidadania, santos ou criminosos, nenéns ou vovozinhos, sendo gente
– apenas gente, todo homem e toda mulher são pessoas. E devem
ser reconhecidos como tais na vida de casa ou da rua, na família e
na sociedade, no trabalho e no lazer, na política e na religião.
Também nos canaviais e nas carvoarias. Também nas penitenciárias
e sob os viadutos. Diante dos olhos dos transeuntes e ante as
câmeras de televisão. Em todos os lugares, pois, deste redondo
planeta azul que é a Terra. Perante a lei. A lei da constituição e a lei
do coração, que vai além. A lei já escrita e a lei sonhada.”8

A assertiva de que “toda pessoa tem o direito a ser reconhecida

como pessoa”, ao ser inscrita na Declaração Universal dos Direitos Humanos,

passou a fundamentar a base dos códigos jurídicos, desde a segunda metade

8
CASALDÁLIGA, D. Pedro. Artigo sexto. In: ALENCAR, Chico (org.). Direitos mais humanos.
Rio de Janeiro: Garamond, 1998, p. 85-6.

10
do Século XX, elevando o ser humano à condição de centralidade das

organizações políticas. Tornou-se critério primeiro para a experimentação das

relações sociais, travadas seja no âmbito do Estado ou da mera convivência

comunitária.

Importa afirmar: na perspectiva inaugurada pela Declaração

Universal dos Direitos Humanos, a pessoa deve ser concebida a partir das

suas singularidades, construídas pelas suas experimentações humanas.

Implica reconhecer o indivíduo de modo a assegurar-lhe a constituição de uma

identidade própria, sendo esta fundada nas experiências históricas, subjetivas,

sociais, políticas e jurídicas. Esta pessoa, assim considerada, encontra-se

situada em um tempo e ambiente definidos, donde se estrutura como sujeito de

direitos.

O ato inaugurante do exercício de direitos, todavia, pode preceder a

ação de conhecer e individualizar a pessoa, ainda que a ciência jurídica seja

incapaz de determinar o preciso momento. Certo é que, a perspectiva de vida

ultra interina é suficiente para reconhecer a dignidade em potencial e,

consequentemente, assegurar seus direitos humanos – ainda que estes não

sejam absolutos. Não obstante uma vida que se estrutura e ainda se prepara, o

reconhecimento da personalidade jurídica dá-se com o ato de nascer com vida.

Nascer, pressuposto à existência, pode ser ato atribuído a diversas

manifestações da natureza. É resultado das interações metabólicas,

autopoéticas, como afirmam as ciências biológicas:

“A vida parece ter se originado em quaisquer que tenham sido os


ancestrais primevos das bactérias modernas. Como sistemas
químicos que se transformaram em sistemas biológicos, esses
primeiros seres teriam metabolizado e incorporado energia,

11
nutrientes, água e sais em seus eus em desenvolvimento.
Formaram-se as primeiras células. Como na analogia de Jantsch
sobre as pessoas que avançam aos tropeços para não cair de cara
no chão, as células delimitadas por uma membrana, que replicavam
RNA e produziam outras moléculas, avançaram aos tropeços para a
síntese do RNA baseada no DNA e das proteínas; em outras
palavras, a reprodução tornou-se um meio de preservar a auto-
sustentação, de adiar o retorno ao equilíbrio termodinâmico.” 9

Nascer pode, igualmente, ser expressão de um gesto divino, que

cria, recria, desfaz. Segundo as religiões judaico-cristãs, a pessoa é fruto da

eminente e exclusiva vontade de um ente imaterial supremo, detentor de

incomensurável força que faz a criatura à sua imagem e semelhança:

“No princípio, Deus criou os céus e a terra. (...) Então Deus disse:
‘Façamos o homem à nossa imagem e semelhança. Que êle reine
sôbre os peixes do mar, sôbre as aves dos céus, sôbre os animais
domésticos e sôbre toda a terra, e sôbre todos os répteis que se
arrastam sôbre a terra. Deus criou o homem à sua imagem; criou à
imagem de Deus, criou o homem e a mulher.”10

Nascer pode ser a narrativa imaginária de uma fábula, constituindo

mitos que servirão para orientar os povos:

“Certo dia, ao atravessar um rio, Cuidado viu um pedaço de barro.


Logo teve uma idéia inspirada. Tomou um pouco de barro e começou
a dar-lhe forma. Enquanto contempla o que havia feito, apareceu
Júpiter. Cuidado pediu-lhe que soprasse espírito nele. O que Júpiter
fez de bom grado. Quando, porém, Cuidado quis dar um nome à

9
MARGULIS, Lynn; SAGAN, Dorion. O que é a vida? Tradução de Vera Ribeiro. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2002, p. 91.
10
BÍBLIA SAGRADA. 62. ed. São Paulo: Ave Maria, 1988, p. 50: Gênesis, cap. 1, 26/27.

12
criatura que havia moldado, Júpiter o proibiu. Exigiu que fosse
imposto o seu nome. Enquanto Júpiter e Cuidado discutiam, surgiu,
de repente, a Terra. Quis também ela conferir o seu nome à criatura,
pois fora feita de barro, material do corpo da Terra. Originou-se então
uma discussão generalizada. De comum acordo pediram a Saturno
que funcionasse como árbitro. Este tomou a seguinte decisão que
pareceu justa: ‘Você, Júpiter, deu-lhe o espírito; receberá, pois, de
volta este espírito por ocasião da morte dessa criatura. Você, Terra,
deu-lhe o corpo; receberá, portanto, também de volta o seu corpo
quando essa criatura morre. Mas como você, Cuidado, foi quem, por
primeiro, moldou a criatura, ficará sob seus cuidados enquanto ela
viver. E uma vez que entre vocês há acalorada discussão acerca do
nome, decido eu: esta criatura será chamada Homem, isto é, feita de
húmus, que significa terra fértil.’” 11

Nascer pode ser produto dos movimentos dos ciclos da vida em

torno da Mãe Terra, que dança com a tarefa de tornar-se uma Estrela Mãe, nos

dizeres dos povos indígenas da Amazônia brasileira:

“Cada ciclo se entrelaça com todos os reinos de vida: mineral,


vegetal, humano, super-humano, divino, e se intercala em tons pelos
três mundos que se entremeiam e formam o mundo que vemos. Pela
leitura da natureza, a aranha ensina como funciona esse
entrelaçamento e intercalação de mundo que é o Mundo. Na sua
tecedura estão inscritos os princípios da Tradição. (...) As Tribos-
Pássaros deixaram os Mistérios Sagrados para a humanidade que
estava por nascer, já no Segundo Grande Ciclo, comandado por
Karai Ru Ete, o Senhor do Fogo Sagrado, que criou a roça para o
nascimento e desenvolvimento do Homem-Lua e da Mulher-Sol (...).
No tempo de Tupã, Senhor dos Trovões e Tempestades,
Comandante das Sete Águas, o grande desafio foi o Poder. (...) Na
cabeça humana fez sua pintura, chamada pensamento, que não é
outra coisa senão os seus raios e trovões sagrados em ação, cujo
11
BOFF, Leonardo. Saber cuidar: ética do humano – compaixão pela terra. Petrópolis, RJ:
Vozes, 1999, p. 46.

13
corpo são as águas das emoções e dos desejos que movimentaram
para o Criar e o Destruir. Esse foi o mais difícil ciclo para a Mãe
Terra, pois a humanidade quase a extinguiu, colocando em risco a
Dança Sagrada da Galáxia pelo mau uso que fez do poder de criar.
(...) Tupã reagiu limpando todo o mal com o Sal da Terra. As águas
abraçaram a Mãe, para que ela não morresse desse mundo.” 12

Nascer pode, ademais, ser imposição do destino ao ser nascente:

“Quando nasci, um anjo torto desses que vivem na sombra


disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.”13

O ato de nascer com vida não é, todavia, exclusividade humana.

Nascem plantas, animais, corais do fundo do mar, protozoários, bactérias...

Infinitas são as potencialidades de expressão da matéria viva. Contudo, ser

pessoa requer mais que um ato decorrente da amalgamação dos elementos

biológicos, religiosos, líricos. A pessoa é uma construção filosófica, jurídica e

social, cujo reconhecimento, no campo concreto da convivência coletiva, faz

brotar direitos e imposição de respeito.

Este sujeito, construído discursivamente, realiza-se, contudo, para

além da junção de diversificadas concepções que o compõe. Concretiza-se

física e mentalmente, conscientemente e inconscientemente, num espaço

determinado, objetivo, concreto: o corpo.

12
JECUPÉ, Kaka Werá. A terra dos mil povos: história indígena do Brasil contada por um
índio. São Paulo: Peirópolis, 1998, p. 21-3. (Série educação para a paz).
13
ANDRADE, Carlos Drummond de. Alguma poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2013,
p. 11.

14
1.2. O CORPO

A constituição do sujeito é anterior à sua definição, formada pelas

dimensões histórica, subjetiva, social, política e jurídica. Implica afirmar que,

antes de ser elaborada uma personalidade, tem-se a formação de um espaço

físico, concreto, real, delimitado, denominado corpo. Trata-se do ambiente

primeiro da realização do indivíduo, condição essencial para a vivência de sua

experiência humana. É ponto de partida, embora não se constitua como um fim

em si mesmo. É, igualmente, meio: território destinado à realização de atos e

experimentação de sentimentos.

O corpo é espaço demarcado, limitado pela estrutura que o constitui.

Divide-se em partes (cabeça, tronco e membros). Possui classificações

identitárias, subdividindo-se pelo sexo, cuja referência capital centra-se na

genitália. Compõe-se de elementos químicos (61% de hidrogênio, 25% de

oxigênio, 10% de carbono, 2% de nitrogênio e 2% de outros elementos,

denominados microelementos, tais como cobre, magnésio e cálcio)14. Adquire

feições, formatos, pesos, volumes, cores, texturas. É produto cuja composição

inicial independe da ação humana, sendo resultado de ato típico da natureza,

sobre o qual o princípio formador não se exerce influência. O corpo, neste

sentido, é elemento posto – ser constituído e, como tal, acabado.

O corpo, todavia, não é dado em si. É o que dele se constrói e o que

nele se faz. É um território de representações. Elabora-se no tempo – passado,

presente, expectativas futuras. Forma-se, ainda, no espaço em que se projeta,

sendo reconhecido, aceito, rejeitado, transformado – por força das culturas,

14
STEIGER, André. Compreender a história da vida: do átomo ao pensamento humano.
Tradução de Benôni Lemos. São Paulo: Paulus, 1998, p. 30.

15
credos religiosos, ciência. Trata-se de espaço em conformação. O corpo, neste

sentido, é elemento instável – objeto em construção e, como tal, inacabado,

complexo, dinâmico.

O corpo é anterior ao seu tempo. Decorre das construções erigidas

por seus antepassados. É receptáculo de tradições culturais, interação dos

desejos sentidos ou que sobre esses mesmos desejos elabora expectativas. É

corpo-passagem, que se situa entre o passado e o que dele se projetará no

futuro. É objeto geneticamente concebido e, por isso mesmo, aprisionado.

O corpo do tempo acompanha a passagem da vida. É corpo que

pela manhã tem quatro pés, ao meio-dia tem dois, e à tarde tem três. Constitui-

se a partir das capacidades e fragilidades de cada período, podendo ser

concebido social e subjetivamente a partir das experiências vividas ou

impostas. Ademais, é território que se projeta para além das capacidades do

tempo, ampliando longevidade e tonificando potencialidades, sendo, contudo,

limitado pelas fronteiras do próprio tempo – curva definitiva entre a vida e a

morte. É lugar que marca a passagem das horas.

O corpo morto é atemporal. Corpo que, já não sendo, permanece

corpo. Dele se cuida, preserva-se, guarda-o com tradições, devolve à natureza.

Possuidor de identidade, história e direitos. Corpo decomposto, que sobre ele

mantêm-se memórias.

O corpo é elaborado no espaço em que se projeta. Resulta das

interações sociais e concepções políticas que sobre ele recaem. É construído e

reconstruído a partir de símbolos, crenças e culturas próprias de cada região. É

lócus de miscigenação, encontro de raças e etnias. É território de poder, onde

é possível ser livre ou aprisionado, liberto ou escravizado. É instrumento

16
político, lugar de se inscrever reivindicações, a partir dele formar barricadas,

desafiar preceitos morais. O corpo é arma no mundo das guerras.

“Quando o corpo encontra o espaço, intensifica-se um grau de


pertença, bem como ocorre uma tomada de decisão acerca da
relação com o espaço – um enlace. E, assim, uma janela sempre se
abre para a vida inteira, como a porta! (...) no espaço, é possível
deslocar o corpo diante das experiências comuns e/ou inusitadas.
Assim, é o espaço o lugar de fronteira que (inter)media a exposição e
o reconhecimento da relevância do corpo como instrumento
recorrente da condição humana.”15

O corpo humano é o único território capaz de elaborar subjetividades

e exteriorizar desejos. É produto da relação entre a compreensão íntima de si

mesmo, consciente ou inconsciente, e a interação em sociedade, cuja

exposição se constrói a partir do autorretrato e da visão alheia. Lócus de

doenças ou espaço destinado às pesquisas. Vazio que pode ser preenchido

por crenças religiosas ou secularizado. É leito instintivamente sexualizado,

pecaminoso, prazeroso. É campo de dor e alegrias. Trata-se do espaço da

formulação da intimidade, constituída numa simbiose entre o corpo e quem o

habita.

É pelo corpo que o sujeito se constitui como pessoa e se projeta,

expressando-se como ser social. Apresenta-se por ideologias, valores,

conceitos morais, crenças religiosas, gostos musicais e outros elementos que

constituem sua personalidade. Interage no campo político, constituindo-o ou

alterando-o. É corpo pensante, capaz de formular ideias, pensar o mundo,

15
GARCIA, Wilton. Vestígios poéticos entre corpo e espaço: janela da alma. In: GARCIA,
Wilton (org.). Corpo e espaço: estudos contemporâneos. São Paulo: Factash Editora, 2009, p.
21.

17
investigar mistérios e produzir descobertas científicas. É o corpo desafiado, que

rompe barreiras físicas, materializa sonhos, constrói aviões supersônicos, faz

com a engenharia atos de quase divina criação para a terra, se aprofunda nos

oceanos e constrói túneis unindo continentes. É por seu intermédio que faz das

artes a melhor expressão da potencialidade humana. É corpo que desconhece

limites e viaja entre a lua e as estrelas.

Arranca do trabalho a expressão mais forte de sua experiência,

sendo o corpo capaz de alterar o elemento posto (natural), transformando-o em

objeto, bem material (cultura). Impregna sua marca a partir de suas

necessidades, transformando o ambiente em seu próprio espaço, dele

extraindo o salário que ajuda a matar a fome. O corpo laboral, suado e

fatigado, constitui o meio que serve ao ser humano para transformar a si

mesmo, refeito a cada ação concretizada.

“O trabalho é a atividade correspondente ao artificialismo da


existência humana, existência essa não necessariamente contida no
eterno ciclo vital da espécie, e cuja mortalidade não é compensada
por este último. O trabalho produz um mundo ‘artificial’ de coisas,
nitidamente diferente de qualquer ambiente natural. Dentro de suas
fronteiras habita cada vida individual, embora esse mundo se
destine a sobreviver e a transcender todas as vidas individuais. A
condição humana no trabalho é a mundanidade.”16

O corpo pertence ao indivíduo que o habita. Propriedade sob a qual

exerce domínio absoluto. Trata-se de união indissociável, vez que a

constituição do sujeito de direitos é consequência do seu reconhecimento

enquanto pessoa. A constituição de uma personalidade jurídica é, pois,


16
ARENDT, Hannah. A condição humana. Tradução de Roberto Raposo. Posfácio de Celso
Lafer. 9. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1999, p. 15.

18
decorrente da experiência humana exercida num espaço corporal determinado.

A amalgamação daí resultante se fundamenta, pela força jurídico-

principiológica, na salvaguarda da dignidade inerente ao ser, resultando na

garantia do exercício de direitos e imposição de proteção estatal.

Corpo e indivíduo, elementos constituintes da pessoa humana,

impõem ao Estado, e à sociedade em geral, a possibilidade do gozo de direitos

e o respeito às suas singularidades, sem os quais não é possível concretizar a

junção dos mesmos elementos, desfigurando, assim, a noção de pessoa.

Qualquer ato que, direta ou indiretamente, por ação ou omissão, resulte na

violação a este corpo constitui, peremptoriamente, ofensa à sua inerente

dignidade, devendo suscitar reação suficiente para que se proceda a devolução

do corpo à pessoa: toma teu corpo!

O corpo natural, transformado em território de elaborações, torna-se

um corpo simbólico. A ele, atribuem-se signos e significações. Dele decorre a

singularização do sujeito, resultando em corpo político, cuja vivência empodera

a pessoa que o preenche. Isto, todavia, não é suficiente para assegurar a plena

experimentação do espaço corporal. O corpo se apropria.

1.3. O CORPO TOMADO

No corpo são exercidas diferentes formas de controle. O domínio

deste, considerado território de realização do sujeito, é requisito indispensável

para o governo da pessoa. As finalidades, por sua vez, são diversas, podendo

atender às demandas do mercado, a sanha autoritária de Estados,

irrefutabilidade de dogmas religiosos, imperativo de ideologias etc. No cerne,

19
encontra-se a pessoa, moldada a partir de desígnios estranhos à autônoma

construção do seu desejo.

1.2.1. O CORPO NORMATIZADO

O homem inventou o Direito e o Direito inventou o homem.

A relação entre Direito e corpo não é recente, podendo ser remetida

às comunidades primitivas. À época, as normas de convívio social eram

afirmadas pelas tradições, guiadas por primárias noções de justiça e equidade.

As relações jurídicas, se assim podem ser chamadas, constituíam-se a partir

de frágeis vínculos de parentesco.17 Tal princípio penetrava em todas as

ordens sociais, estabelecendo critérios de pertencimento ao ambiente coletivo.

Não havia códigos positivados, nos quais eram inscritas leis ou

outras formas de regramento coletivo. A sociedade se auto-organizava, sem

que houvesse a distinção entre os sujeitos que, numa relação verticalizada,

ditavam as normas e aqueles que a obedeciam. Às lideranças locais,

destinava-se a missão de assegurar a transmissão dos saberes organizativos,

em rituais de passagem para a idade adulta, marco para o ingresso na vida

política do grupo.

“Nesse sentido, o direito confunde-se com as maneiras


características de agir do povo (...) tomadas como particularmente
importantes para a vida do grupo (mores) e manifestadas na forma

17
Engels, em seu clássico estudo sobre a origem da família, da propriedade privada e do
Estado, referindo-se às famílias primitivas, assim pondera: “os designativos pai, filho, irmão não
são simples títulos honoríficos, mas implicam sérias obrigações recíprocas, bem determinadas,
e cujo conjunto forma uma parte essencial da organização social desses povos”. (ENGELS,
Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do estado. Tradução de Ciro
Mioranza. São Paulo: Lafonte, 2012, p. 36.).

20
de regras gerais. (...) Essa forma maniqueísta de manifestação do
direito é atenuada pela intervenção de sacerdotes e juízes
esporádicos que, como guardas do direito, regulam sua aplicação.
No entanto, essa regulação não se separa do próprio direito, de tal
modo que não podemos falar do conhecimento do direito como algo
dele separado. Esse ‘conhecimento’ e sua prática (de aplicação) não
se distinguem: a existência, a guarda, a aplicação e o saber do
direito confundem-se.”18

Nas sociedades primitivas, a ideia de poder estava intimamente

vinculada à capacidade de defesa e expansão de um determinado território

ante as investidas de outros povos. Eram sociedades pautadas pelo conflito. A

formação de adultos aptos às batalhas era uma imposição à sobrevivência da

própria comunidade.

A noção de que a lei não se aparta do próprio sujeito foi afirmada por

rituais marcados pela imposição de intenso sofrimento aos jovens iniciados. De

fato, a tortura constituía a essência do rito. Por sua ritualização, pretendia-se

testar a sua força, capacidade de resistência e resignação, disposição para

superar os limites criados pela intolerável dor física. “Esses rituais de iniciação

constituem muitas vezes um eixo essencial, em relação ao qual se ordena, em

sua totalidade, a vida social e religiosa da comunidade.”19

O corpo do jovem tornava-se espaço de passagem, devendo ser

marcado com as cicatrizes da dor submetida. O corpo era, pois, tomado como

território para registrar a sua experiência, constituindo-se como o próprio

instrumento de sua exibição ao seu novo espaço social. Ao jovem ritualizado,

18
FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão,
dominação. 4. ed. rev. ampl. São Paulo: Atlas, 2003, p. 53.
19
CLASTRES, Pierre. A sociedade contra o estado: pesquisas de antropologia política.
Tradução de Theo Santiago. São Paulo: Cosac Naify, 2003, p. 197-8.

21
uma vez superados os suplícios impostos, assegurava-se o sentimento de

pertencimento, força, comando: “a marca proclama com segurança o seu

pertencimento ao grupo”20.

“Na exata medida em que a iniciação é, inegavelmente, uma


comprovação da coragem pessoal, esta se exprime – se é que
podemos dizê-lo – no silêncio oposto ao sofrimento. Entretanto,
depois da iniciação, já esquecido todo o sofrimento, ainda subsiste
algo, um saldo irrevogável, os sulcos deixados no corpo pela
operação executada com a faca ou a pedra, as cicatrizes das feridas
recebidas. Um homem iniciado é um homem marcado. O objetivo da
iniciação, em seu momento de tortura, é marcar o corpo: no ritual
iniciático, a sociedade imprime a sua marca no corpo dos jovens. (...)
A marca é um obstáculo ao esquecimento, o próprio corpo traz
impressos em si os sulcos da lembrança – o corpo é uma
memória.”21

Ao tornar o corpo território de memória de um ritual, inscreviam-se

neste espaço as tradições que são, em outras palavras, normas gerais de

convívio social. O corpo ritualizado tornava-se, ele mesmo, corpo jurídico, ao

qual se atribuía a missão de perpetuar as regras e reiterar os ritos: relação de

absoluta simbiose. Embora a norma não fosse positivada, tal qual se

experimentará numa fase mais avançada da História, estava devidamente

registrada nos corpos de homens e mulheres tornados adultos. “(...) A

sociedade dita a sua lei aos seus membros, inscreve o texto da lei sobre a

20
Idem, 2003, p. 201.
21
Ibidem, p. 201.

22
superfície dos corpos. Supõe-se, pois, que ninguém se esquece da lei que

serve de fundamento à vida social da tribo.”22

Clastres é categórico ao apontar como elemento singular das

sociedades primitivas a recusa em distinguir o corpo e a lei. Em sua visão, os

povos compreendiam o risco em se estabelecer uma divisão entre os sujeitos,

pela possibilidade de se instituir hierarquias de poder. Tal entendimento é

gerador da recusa à instituição de um órgão que, acima das pessoas, ditaria as

regras de convivência.

“As sociedades arcaicas, sociedades da marca, são sociedades sem


Estado, sociedades contra o Estado. a marca sobre o corpo, igual
sobre todos os corpos, enuncia: ‘Tu não terás o desejo do poder,
nem desejarás ser submisso’. E essa lei não-separada só pode ser
inscrita num espaço não-separado: o próprio corpo.”23

Ao longo da História acirrou-se a complexidade das relações sociais.

O crescimento das populações e a nova dinâmica instaurada pelas demandas

que, por essa razão, passaram a ser formuladas fizeram com que as bases de

organização das comunidades fossem, aos poucos, alteradas, aprimoradas. Os

vínculos de parentesco, outrora diretriz organizativa, são substituídos pela

apropriação do espaço político por instituições como o Estado e a Igreja.

Ao Direito, até então representado por regras fundadas na tradição,

restava metamorfosear-se, acompanhando as mudanças estruturais, de modo

a ser o único referencial de imposição da ordem. Requeria, para tanto, a

instituição de procedimentos, ritos, símbolos, códigos. Dá-se um destacamento

do Direito ante o corpo do sujeito, estabelecendo uma relação dicotômica em

22
Ibidem, p. 203.
23
Ibidem, p. 204.

23
que a função de ditar a lei se diferenciava do dever de cumpri-la. A lei, antes

escrita no corpo agora passará a ser, então, caligrafada sobre o corpo.

“Essa transformação exige que o direito se manifeste por meio de


fórmulas prescritivas de validade permanente, que não se prendem
necessariamente às relações de parentesco, mas reconhecem certas
possibilidades de escolha, participação na vida da cidade (liberdade
participativa). O direito, assim, continua sendo uma ordem que
atravessa todos os setores da vida social (político, econômico,
religioso, cultural) mas que não se confunde com eles. (...)
Assumindo o direito a forma de um programa decisório em que são
formuladas as condições para a decisão correta, surge a
possibilidade de o direito-objeto separar-se de sua interpretação, de
seu saber, das figuras teóricas e doutrinarias que propõem técnicas
de persuasão, de hermenêutica, que começam a distinguir entre leis,
costumes, folkways, moral, religião etc.”24

Doravante estava asseverada a tríade corpo – escrita – lei.

O Direito, transformado referência de imposição da ordem, como

pressuposto de validade requer o seu pleno conhecimento, ainda que não

objetive a sua ampla aceitação. Por essa razão, ao tempo que as normas

jurídicas se impõem com o axioma de que a ninguém é dado o direito de

desconhecer o direito, artimanhosamente afirmar, com arrogância e certo

autoritarismo, que a lei é dura, mas é a lei. Neste sentido, o corpo, outrora

sujeito, é tomado como objeto, submetido a regras, numa relação de

distanciamento e força.

Interessante ilustração é apresentada por Franz Kafka, no conto “Na

Colônia Penal”. A situação narrada envolve quatro inominados personagens,

24
FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão,
dominação. Cit., p. 54-5.

24
sendo identificados como o oficial, a que se atribui a função de aplicar a

sentença (em sentido lato, a própria lei); o explorador, um estrangeiro a quem

se apresenta a máquina; o soldado, cuja função centra-se no auxílio ao oficial

no ato de concretizar a decisão judicial e, por fim, o condenado, tornado objeto

da máquina (por força da decisão), a quem se impunha a penalidade. Em torno

deles, “um aparelho singular”, que “até este instante era necessário o trabalho

das mãos, mas daqui para a frente ele funciona completamente sozinho”.25

No centro da narrativa, uma máquina complexa e, ao mesmo tempo,

de atuação sistêmica. Destina-se a punir os que rompem as normas jurídicas

postas. Uma vez transgredidas, suscitam a aplicação de uma pena, aplicada

com auxílio do aparato do sistema. Pela descrição, a máquina é composta de

três elementos, aos quais, diz o oficial, correspondem às partes do ser

humano. Uma delas, por auxílio da força gerada pelo funcionamento do

aparelho, colocada acima do condenado, é composta por agulhas que, em

operação, vão escrevendo sobre seu corpo a sentença recebida.

“Nossa sentença não soa severa. O mandamento que o condenado


infringiu é escrito no seu corpo com o rastelo.”26

Ao condenado foi destinada uma pena cujo conteúdo sequer tinha

conhecimento, tampouco conhecia as razões para a sua condenação. O oficial,

que se define como o que melhor conhece o aparelho, justifica seu

posicionamento de não revelá-la:

25
KAFKA, Franz. O veredicto/na colônia penal. 8. reimp. Tradução de Modesto Carone. São
Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 29-30.
26
Idem, 1998, p. 36.

25
“Seria inútil anunciá-la. Ele vai experimentá-la na própria carne. (...) o
homem simplesmente começa a decifrar a escrita, faz bico com a
boca como se estivesse escutando. O senhor viu como não é fácil
decifrar a escrita com os olhos; mas o nosso homem a decifra com
os seus ferimentos.”27

No corpo humano são inscritos mandamentos morais, revestidos em

forma de lei, objetivando a sua obediência e preservação da ordem: “Honra o

teu superior!” e “Seja justo”.28

A aplicação da lei sobre o corpo, ainda que, pela sua crueldade,

causasse certo estupor no explorador, era causador de regozijo do oficial:

“Como captávamos todos a expressão de transfiguração no rosto


martirizado, como banhávamos as nossas faces no brilho dessa
justiça finalmente alcançada e que logo se desvanecia! Que tempo
aqueles, meu camarada!” 29

Tal como no Direito, a máquina possuía a destinação precípua de

inscrever no corpo as regras de ordenação social, punindo quem as

transgredisse. Colocado numa relação vertical, se impunha as mãos do Estado

sobre o corpo individual, objetivando reconhecer na face do apenado a imagem

da justiça.

O Direito impõe-se sobre o corpo/sociedade a partir de dois

fundamentos lógicos de validade, sem os quais resultaria em mero enunciado

de recomendação de comportamento, ineficaz no seu desiderato maior:

estabelecer (impor verticalmente) a ordem. Assim, deve a norma jurídica ser


27
Ibidem, p. 36, 44.
28
Ibidem, p. 36, 61.
29
Ibidem, p. 50.

26
instituída pelo órgão autorizado (o Estado), por meio de procedimentos próprios

(processo legislativo), ao tempo que a força de sua concretização decorre de

forçosa coação. Trata-se, cumpre realçar, de fundamentos centrados numa

perspectiva discursiva, suficientes para se legitimarem perante os seus

destinatários.

A interferência estatal dá-se no mundo concreto, ecoando seu grito

normativo sobre todos os indivíduos sob sua jurisdição. Para tanto, o Estado

utiliza o Direito como instrumento de imposição de uma dada ordem.

Diferentemente do que se apregoa, o Direito não é ferramenta de

promoção da Justiça e equidade, tão pouco se destina a promover as

liberdades e a paz social. Ainda que seus enunciados apontem nesta direção, a

sua utilização centra-se na instrumentalidade de suas normas a fim de impor

uma determinada ordem. As instituições que compõem a organização estatal

central estabelecem leis, ditam doutrinas, elaboram jurisprudências de modo a

assegurar a concretização dos interesses daqueles que sustentam, política e

economicamente, o próprio Estado. Importa afirmar que a estrutura pública

está arquitetada em torno das pretensões de quem a controla.

A ideia de ordem, objetivo finalíssimo do Estado, constitui-se como

uma ideologia a irradiar sua força sobre os sistemas jurídicos, as instituições

políticas e relações privadas, fundamentando, assim, a imposição de limitadas

regras de convivência. Não obstante, cumpre afirmar que, nas sociedades

contemporâneas, não há que se reconhecer a ordem, senão as ordens.

O caráter multifacetado das comunidades, por vezes orientadas por

uma pluralidade de normas que desafiam a exclusividade do Estado em ditá-

las, marcadas pela diversidade cultural e social, impõe reconhecer a existência

27
de diferentes ordens sociais, todas coexistindo num mesmo território político.

Esta coexistência, todavia, não requer a extinção de eventuais conflitos.

Compreendendo-os como elementos constituintes dos sistemas democráticos,

urge asseverar a manifestação das divergências, assegurando que os conflitos

ocorram livremente.

“A experiência vivificada a partir da interação das diferenças é


inerente à idéia democrática. O conceito de democracia está
intrinsecamente atrelado à perspectiva de exaltação do conflito,
enquanto divergência de posicionamentos, como instrumento salutar
de oitiva de todas as forças políticas que compõem o espaço público.
Trata-se de ampliar a participação política, livrando o exercício da
governança da apropriação por poucos, desconfigurando o ideário
democrático. Neste sentido, o conflito é essencial à concretização da
democracia.”30

As ordens coabitam o mesmo território, impondo-se a partir das

forças sociais que as sustentam ou necessidades jurídico-políticas instauradas

ante uma determinada conjuntura. Neste sentido, por exemplo, a ordem para

um ruralista é a preservação do seu latifúndio, ainda que este não esteja

cumprindo satisfatoriamente uma função social – importa salvaguardar a sua

propriedade. Por seu turno, a ordem para camponeses desempregados,

abandonados à sorte do seu próprio destino, numa sociedade que desconstrói

as relações de trabalho e impede a plena geração de renda, é a promoção

imediata da reforma agrária. Inobstante os posicionamentos ideológicos que

30
SALES, Dimitri Nascimento. Avançar no Estado Democrático de Direito: a participação
política na democracia brasileira. Cit., p. 77.

28
situações desta natureza suscitam, é certo que se está diante de conflitos de

ordens antagônicas, embora não menos legítimas.

A questão central em torno da pluralidade de ordens está em afirmar

que, ao definir a ordem oficial, cuja defesa e promoção suscitam o

comprometimento do aparato estatal, a exemplo do Direito e da força policial, o

Estado está anteriormente guiado por interesses que desprezam as demais

ordens – por ser-lhes inoportunas ou ameaçadoras. Guia-se a partir de

diferentes interesses, ainda que todos esses possam emanar de uma mesma e

pequena parcela da sociedade.

Há quem afirme uma naturalidade humana em se agregar em

comunidades. Maria Helena Diniz chega a utilizar a expressão instinto sociável

para designar o impulso que, somado à “força de sua inteligência”, faz gerar a

criação dos grupos sociais. Neste sentido, o direito apareceria como um dado

natural, quase inevitável, uma evidência em torno do qual se elaborariam fortes

consensos: “A norma jurídica pertence à vida social, pois, tudo o que há na

sociedade é suscetível de revestir a forma da normatividade jurídica”.31

“O ser humano é gregário por natureza, não só pelo instinto


sociável, mas também por força de sua inteligência, que lhe
demonstra que é melhor viver em sociedade para atingir os seus
objetivos. O homem é ‘essencialmente coexistência’, pois não existe
apenas, coexiste, isto é, vive necessariamente em companhia de
outros indivíduos. Com isso, espontânea e até inconscientemente,
é levado a formar grupos sócias: família, escolas, associações
esportiva, recreativa, cultural, religiosa, profissional, sociedades

31
JHERING, Rudolf von. A finalidade do direito. Tradução de Heder K. Hoffmann. Tomo I.
Campinas, São Paulo: Bookseller, 2002, p. 211.

29
agrícola, mercantil, mercantil, industrial, grêmio, partido político
etc.”32 (destaque acrescido)

Data máxima vênia, ousamos contestar a posição da eminente

jurista. A unidade social decorre da identificação de recíprocas vontades, que

suscita a criação de regras coletivas. Não há uma natureza intrínseca a guiar a

ordenação social, senão interesses que, ao serem previamente reconhecidos,

requerem a orquestração de normas gerais de convivência, podendo ser fruto

de consensos ou impostas por aquele que detém a força jurídica ou política.

Assim sendo, não é a sociedade que estabelece o direito, senão o direito que

cria a sociedade.

A função maior da organização política central, na perspectiva da

relação Estado – sociedade, só se realiza mediante a instrumentalização das

regras jurídicas (o Direito, propriamente dito). O mecanismo ideológico que

serve de auxílio ao Estado para a sua missão de impor a ordem é a criação de

normas cuja eficácia está em si mesma, é inerente à sua natureza – a coação.

A imposição coercitiva da lei é resultado de um tênue compromisso recíproco

em torno da concretização dos múltiplos interesses, apresentado na forma de

regras gerais de convivência. Este hipotético acerto, no entanto, não implica

em mútua relação, não sendo desprezadas as verticais hierarquias

historicamente estabelecidas.

“Somente no Estado é que o direito encontra o que buscava: a


supremacia sobre a força. Porém, apenas no interior do Estado ele,
direito, alcança a sua meta, de vez que exteriormente, no conflito
interestatal, a força se arrosta com ele da mesma forma hostil em

32
DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à ciência do direito. 19. ed. rev. atual.
São Paulo: Saraiva, 2008, p. 242.

30
que o encarava antes de seu surgimento histórico na relação de
indivíduo para indivíduo – a questão do direito ganha, aqui, na
prática, a feição de questão de força.”33

Ao apropriar-se da prerrogativa do uso da força, excluindo tal

prerrogativa das mãos da sociedade, o Estado a transforma em poder

coercitivo, utilizando-a como preenchimento das normas jurídicas. Na sua

interação com a sociedade, o Direito atua em dois aspectos: num primeiro

momento, há consonância entre os seus desígnios normativos e os anseios

sociais. A intermediação estatal dá-se em favor dos interesses coletivos, sendo

legitimadas condutas organizativas, proibitivas, coercitivas. É exemplo desta

circunstância, a intervenção judicial em conflitos individuais ou a garantia do

exercício de direitos subjetivos ou liberdades públicas. A razão pública

comunica-se com as expectativas comunitárias, estabelecendo profícuo diálogo

e, por vezes, cooperação.

Por outro lado, podem ocorrer conflitos de interesses, instaurando

um desafio ao Direito. Qual saída adotar quando suas instruções normativas se

chocam com os interesses da sociedade, individuais ou coletivos? Neste caso,

amparado pelo poder coercitivo, o Direito rejeita intermediação de qualquer

natureza, sobrepondo peremptoriamente suas regras às práticas afrontosas ou

mesmo as que representem risco ou ameaça ao sistema jurídico.

Neste sentido, não é de todo verdadeira a afirmação do Professor

Paulo Dourado de Gusmão, exposta em seu estudo do Direito:

“O direito sofre, pois, a influencia das condições sociais, sem contudo


ser a conseqüência direta das mesmas, por ser possível superá-las

33
JHERING, Rudolf von. A finalidade do direito. Cit., p. 211.

31
por meio de reformas legislativas, nas quais o legislador deve se
servir de dados científicos e técnicos, bem como inspirar-se em
ideais sociais e valores jurídicos.”34

O Direito é o instrumento que o Estado utiliza para concretizar os

interesses daqueles que o lideram. Impõe sua vontade servindo-se, para isso,

exclusivamente do seu poder coercitivo. É, pois, pouco disposto ao diálogo, à

negociação, fechado às intempéries políticas de qualquer natureza. As

eventuais aberturas à interação social, quando há, só ocorrem na medida da

necessidade de resguardar minimamente a sua legitimidade social, sem,

contudo, afastar de sua finalidade primária – estabelecer a ordem, tampouco

abdicar da sua natureza coercitiva. Se assim não o faz, para permanecer

Direito, torna-se meio de imposição de ordem autoritária, cujo fundamento e

natureza se distanciam dos postulados aqui tratados.

Destaca-se que a escolha do Direito pela primazia da sua vontade

não se limita aos conflitos que podem suscitar oposições ideológicas. Estes

submetem o aplicador da norma a um exercício meramente exegético (por

exemplo, é lícito, protegido pela ideia de desobediência civil, promover

ocupações de terras improdutivas para pressionar pela sua desapropriação?).

Também, não se refere a temas que resultem em distinções numéricas –

maioria versus minoria (cabe a interferência do Poder Judiciário no jogo político

estabelecido no âmbito do Poder Legislativo, quando do exercício de sua

função legiferante?).

Indo além, o Direito se impõe em temas afetos a questões morais,

cujo desacordo é irrelevante à sociedade, quiçá insignificante aos sujeitos

34
GUSMÃO, Paulo Dourado de. Introdução ao estudo do direito. 32. ed. revis. alterada. Rio
de Janeiro: Forense, 2002, p. 37.

32
vinculados à controvérsia. Neste sentido, passa-se a experimentar um uso

abusivo do próprio Direito que, reforçado pelas ideias/ideologias que sustentam

sua natureza e finalidade, sente-se autorizado a ditar regras que penetram

fundo na intimidade do indivíduo. Indevido, normatiza dimensões cuja

experimentação decorre de exclusivo ato de vontade do sujeito.

Ao normatizar condutas sociais, estabelecendo regras de

convivência que se destinam a alcançar a ordem, passa-se a estabelecer o

domínio das relações públicas e privadas que, por força da interferência

judicial, são tornadas públicas. No entanto, para que o corpo esteja sob efetivo

governo da lei, o Estado lança olhares sobre as experiências vivenciadas no

recôndito do sujeito – algo que não está à vista, mas existe. A interferência do

Direito nos campos que integram a intimidade da pessoa revela a dimensão de

controle quase absoluto que o mesmo exerce sobre o corpo humano.

A ideia mais evidente da intromissão do Direito na intimidade da

pessoa está na definição da idade dos afetos. Objetivando delimitar um tempo

para o gozo da sexualidade, o Código Civil apresenta interessante norma

jurídica a regular tal experiência.

Pelo instituto jurídico do casamento, atribui-se às pessoas

envolvidas um vínculo formal capaz de alterar a realidade de suas vidas.

Mudam-se estado civil e nome, ao mesmo tempo passam a gozar de direitos e,

também, deveres recíprocos. Constitui-se um liame do qual emerge o

reconhecimento, pelo Estado, de uma situação que requer dele proteção. No

entanto, para além das consequências que o contrato matrimonial possa

suscitar, reivindicando a tutela estatal, há uma interferência abusiva do Direito.

33
A escolha pela constituição do vínculo matrimonial pode envolver

muitos elementos, mas é orientada pelo desejo de se unificarem em torno de

compromissos comuns, expectativas e desejos compartilhados. Assim, as

relações que redundam no casamento, via de regra, se fundam em ato de

vontade das pessoas envolvidas, livremente guiadas, cujas causas

motivadoras pouco dialogam com o Estado, exceto na ocorrência de prática

criminosa – que pertence a outra seara de análise.

“Ainda que o casamento não faça surgir apenas direitos e obrigações


de caráter patrimonial ou econômico, não se pode negar que decorre
de um acordo de vontades. É uma convenção individual, devido ao
seu caráter de consenso espontâneo e aos pressupostos exigidos
para que as pessoas o possam contrair. Inquestionavelmente, é o
envolvimento afetivo que gera o desejo de constituir uma família:
lugar idealizado onde é possível integrar sentimentos, esperanças e
valores, permitindo a cada um, sentir-se a caminho da realização de
seu projeto pessoal de felicidade. Peculiaridades envolvem o
casamento. De um lado, há o interesse do Estado na constituição
da chamada cellula mater da sociedade, como elemento estruturante
da própria sociedade organizada. (...) Aliás, em nome desse
interesse prevalente é que se justifica a postura intervencionista do
Estado nas relações afetivas. Mas, sob a ótica dos noivos, mais do
que no campo da vontade, se está no domínio dos sentimentos.”35

Por estranho que pareça estabelecer deveres, em tempos

hodiernos, cujas relações sociais estão cada vez mais dinâmicas, o Código

Civil brasileiro, em seu Artigo 1521, enumera como impedimento absoluto para

que se contraia matrimônio que a pessoa que possua idade inferior a 16 anos.

Ainda que seja possível afirmar ser uma condição relativa, o que salta aos

35
DIAS, Maria Berenice. Manual de direitos das famílias. 3. ed. rev. atual. ampl. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2006, p. 131.

34
olhos é a absoluta falta de critério objetivo que afiance essa escolha da idade-

referência. O Direito é incapaz de explicar tal decisão, senão em construções

discursivas facilmente refutadas; não há qualquer outra ciência que possa

fundamentar a “correta” idade para que duas pessoas, a partir da expressão do

seu desejo, definam um momento limite em que se sintam aptos para contrair

um vínculo matrimonial.

Não obstante ser possível elencar razões psicológicas, pedagógicas

ou de qualquer outra natureza para justificar a limitação em comento, o que

importa destacar é a capacidade de interferência do Direito no que se refere ao

exercício das dimensões mais subjetivas do sujeito. Isso, todavia, não é sem

propósito.

Considerando que o pressuposto para ordenação social é o governo

da pessoa, seu corpo é território a ser apropriado, ocupado, demarcado,

possuído. Todo o corpo, aí incluídos os espaços cuja experiência depende, em

regra, da plena autonomia do seu possuidor sobre seus desejos e projeções,

deve ser objeto de controle. Esse corpo não pode desejar, uma vez que a

realização dos desejos é mola propulsora para o autoconhecimento, tornando-

se um grave risco à ordem social e jurídica.

O corpo jurídico é o corpo normatizado. Em sua completude, o corpo

do Direito é o corpo indesejante.

35
1.2.2. O CORPO BIOLÓGICO

O corpo humano é um território tomado. Esta classificação precede

seu conhecimento, instituindo-lhe signos de poder e referenciais simbólicos.

Ainda na fase de gestação, mesmo que não se tenha um rosto conhecido,

sequer limita-se a uma vida em potencial, dá-se a primeira distinção: sexo. Ato

contínuo, define-se a sua identidade, designando-lhe um nome. As primeiras

paralelas dos traços da sua história estão, doravante, traçadas, sem que se

possa, a priori, estabelecer novos contornos nas linhas do seu destino. Nasce-

se, antes de ser pessoa, feminino ou masculino, Maria ou João.

Pelas imagens extraídas do ultrassom, veem-se as linhas do corpo

em formação. É possível distinguir as partes constituintes do indivíduo,

reconhecendo cabeça, tronco e membros. Não obstante a observação dos

elementos triviais já conhecidos, o interesse maior do observador está em

revelar qual será “o sexo da criança”, cuja referência centra-se no seu órgão

sexual.

A genitália do ser em gestação torna-se elemento definidor da

constituição da sua identidade. A partir da constatação da existência de um

pênis, define-se o seu sexo. Por seu turno, a descoberta de uma vagina é

critério suficiente para a definição do “outro” sexo daquela pessoa. Ainda que a

pessoa humana seja, por excelência, um ser dinâmico, possuidor de estruturas

fisiológicas altamente complexas, capaz de emancipar-se para além das cercas

da própria razão, limita-se a enquadrá-la em dois, apenas dois sexos,

estabelecendo uma divisão absoluta entre os papéis sexuais.

36
“A divisão entre os sexos parece estar ‘na ordem das coisas’, como
se diz por vezes para falar do que é normal, natural, a ponto de ser
inevitável: ela está presente, ao mesmo tempo, em estado objetivado
nas coisas (na casa, por exemplo, cujas partes são todas
‘sexuadas’), em todo o mundo social e, em estado incorporado, nos
corpos e nos habitus dos agentes, funcionando como sistemas de
esquemas de percepção, de pensamento e de ação. (...) É a
concordância entre as estruturas objetivas e as estruturas cognitivas,
entre a conformação do ser e as formas do conhecer, entre o curso
do mundo e as expectativas a esse respeito, que torna possível esta
referência ao mundo que Husserl descrevia com o nome de ‘atitude
natural’, ou de ‘experiência dóxica’ – deixando, porém, de lembrar as
condições sociais de sua possibilidade. Essa experiência apreende o
mundo social e as suas arbitrárias divisões, a começar pela divisão
socialmente construída entre os sexos, como naturais, evidentes, e
adquire, assim, todo um reconhecimento de legitimação.”36

A distinção adotada para categorizar as pessoas centra-se num

critério exclusivamente biológico. A natureza do indivíduo, a qual se atribui,

desde então, representações sociais, é identificada a partir das diferenças dos

órgãos sexuais. A perspectiva biologizante do ser humano, considerando o

binômio masculino-feminino, reduz a sua dimensão complexa a somente um

elemento da sua natureza humana; limita compreensão em apenas um dado.

Desconsidera-o, ainda, enquanto ser social, ou seja, sujeito resultado de

inúmeras interações vivenciadas em seu âmbito interno ou externo, sejam elas

subjetivas, intuitivas ou inconscientes, ou, também, sociais, políticas, históricas

ou jurídicas.

36
BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Tradução de Maria Helena Kühner. 9. ed. Rio
de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010, p. 17.

37
As ciências biológicas possuem como objeto de análise os

fenômenos naturais ou aqueles cujos princípios ativos independem da

intervenção humana. Estudam, portanto, o que está posto, elementos cujas

funcionalidades são decorrentes das interações ocorridas no âmbito de suas

próprias estruturas, independentemente de quaisquer interferências externas.

Por esse motivo, suas conclusões são tidas como verdades inquestionáveis e

absolutas, objetivamente estruturadas, pois refutam quaisquer influências

estranhas a guiar a abstração do conhecimento. São a mais autêntica

expressão das mudanças paradigmáticas experimentadas nos séculos XVII e

XVIII, pautadas pelo método cartesiano de elaboração do pensamento

científico.37

Os estudos da biologia legitimam de per si seus postulados,

atribuindo-lhes a marca da cientificidade, transformando-os em valores sociais

que são capazes de ecoarem no âmbito das coletividades humanas. O impacto

das verdades objetivas na sociedade resulta por plasmar verdades sociais,

igualmente inquestionáveis e absolutas. Nesta perspectiva, o corpo é

naturalizado, prévio, estável, não-histórico.

Centrada na perspectiva biológica, a distinção entre masculino e

feminino abstraída pelo reconhecimento das genitálias de cada pessoa ganha

ares de imutabilidade e, portanto, inquestionabilidade. Interagindo no espaço

coletivo, tais postulados (rígidos) resultam por instituir funções sociais aos

órgãos sexuais, além da sua mera funcionalidade orgânica. Assim, não


37
A partir do século XVI, o vigente modelo científico, forma de abstração de conhecimento,
passou por profundas alterações em sua estrutura, rompendo completamente com a antiga
visão de mundo, dita aristotélica-tomista. As contribuições de importantes pensadores
ajudaram a dotar a pesquisa científica (fundamentalmente empírica) de um método, pelo qual
se pretendia formular um conhecimento centrado na racionalidade, objetividade, pureza. As
formulações de Galileu Galilei, Francis Bacon, Renée Descartes e Isaac Newton foram
imprescindíveis para a formulação de um novo paradigma científico, cujas bases impactaram
as formas de organização social, sustentando-as até hoje.

38
obstante a definição de sexo, a partir do pênis e da vagina se estruturam

funções operacionais para o corpo, bem como papéis de gênero, erigindo

relações sociais verticalizadas, excludentes e discriminatórias – relações de

poder.

“O mundo social constrói o corpo como realidade sexuada e como


depositário de princípios de visão e de divisão sexualizantes. Esse
programa social de percepção incorporada aplica-se a todas as
coisas do mundo e, antes de tudo, ao próprio corpo, em sua
realidade biológica. (...) A divisão biológica entre os sexos, isto é,
entre o corpo masculino e o corpo feminino, e, especificamente, a
diferença anatômica entre os órgãos sexuais, pode assim ser vista
como justificativa natural da diferença socialmente construída entre
os gêneros, e principalmente, da divisão social do trabalho.”38

As formas de organização das sociedades originárias, marcadas

especialmente pela cooperação, estruturaram-se sob o signo do matriarcado,

entendido como modelo de orquestração política baseado na liderança

feminina. O modo de produção da riqueza, centrado na agricultura, estava

metaforicamente atrelado à ideia de procriação, possível apenas no corpo

feminino – espaço sagrado. Remota a este período a invenção dos mitos que

serviram para explicar a criação do universo e a ocorrência dos fenômenos

naturais. As figuras mitológicas das deusas são referência de coordenação

das relações travadas no âmbito da comunidade. “Provavelmente a vontade de

dominar a natureza levou o homem a dominar a mulher, identificada com a

38
MURARO, Rose Marie. BOFF, Leonardo. Feminino e masculino: uma nova consciência
para o encontro das diferenças. 3. ed. Rio de Janeiro: Sextante, 2002, p. 54.

39
natureza pelo fato de estar mais próxima aos processos naturais da gestação e

do cuidado com a vida.”39

O desejo de dominar a natureza teve como consequência imediata a

apropriação do modo de produção da riqueza pelo homem. O aprimoramento

obtido na agricultura projetou-o fortemente na luta pelo domínio do espaço

político. Atrelado a este fato, a descoberta de que o fenômeno da procriação

não era exclusividade decorrente da natureza feminina, elevou o homem à

condição de paridade no dever de gerar a vida. Ele era possuidor de um órgão

tão potente quanto a genitália feminina – o pênis.40 O masculino, empoderado,

viu-se distinto e útil, passando a reivindicar o poder de organização social,

centralizando-o em suas mãos.

Em detrimento da forma matriarcal de organização social,

estabeleceram-se parâmetros orientados pelo prisma masculino, cuja

referência de poder centrou-se na existência do falo, bem como na

representação que dele/sobre ele se formou. O controle do espaço político foi

acompanhado pela dominação do feminino, pela inversão da ordem do

trabalho, pela substituição dos valores de igualdade por conceitos de

individualidade. Destarte, este processo histórico culminou na constituição de

outro modelo de orquestração política cujo núcleo se expressa pelo exercício

do autêntico poder do macho.

39
BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Cit., p. 18-20.
40
Assim esclarece Heleieth I. B. Saffioti: “Não foi gratuita a alta consideração devotada às
mulheres por parte dos homens, quando ainda não se conhecia a participação masculina no
ato da fecundação. Capazes de engendrar uma nova vida, de produzir todos os nutrientes
necessários ao desenvolvimento dos fetos e, ainda, de fabricar internamente leite para
alimentar os bebês, eram consideradas seres poderosos, mágicos, quase divinos. Caíram do
pedestal, quando se tomou conhecimento da imprescindível, mesmo que efêmera, colaboração
masculina no engendramento de uma nova vida (...).” (SAFFIOTI. Heleieth Iara Bongiovani.
Gênero, patriarcado, violência. 2. reimpr. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo,
2004, p.33. (Coleção Brasil Urgente).

40
“Suas expressões perpassaram todos os níveis sociais, e até
religiosos, como o cristianismo, constituindo o patriarcado como
realidade histórico-social e como categoria de análise. Como
categoria de análise, o patriarcado não pode ser entendido apenas
como dominação binária macho-fêmea, mas como uma complexa
estrutura política piramidal de dominação e hierarquização, estrutura
estratificada por gênero, raça, classe, religião e outras formas de
dominação de uma parte sobre a outra. Essa dominação
plurifacetada construiu relações de gênero altamente conflitivas e
desumanizadoras para o homem e principalmente para a mulher.”41

Thomas Laqueur afirma que a concepção binária dos corpos, que os

concebe em oposição, foi resultado de dois grandes desenvolvimentos distintos

analíticos, mas não históricos: um epistemológico e outro político. Em seu

entendimento, as mudanças experimentadas pela ciência nos séculos XVII e

XVIII desprezaram as antigas concepções do corpo, destacando-o do universo

metafísico em que havia sido projetado, passando a compreendê-lo como parte

isolada do cosmo. Deste modo, passou a ser concebido como um corpo de

conhecimento limitado.

De igual modo, Laqueur assevera que a competição pelo poder e os

processos revolucionários de então contribuíram para a constituição de novas

formas de organizações políticas, momento em que foi possível criar diferentes

maneiras de constituir o sujeito, bem como as realidades sociais em que estava

inserido. “A nova biologia, em sua busca pelas diferenças fundamentais entre

41
MURARO, Rose Marie. BOFF, Leonardo. Feminino e masculino: uma nova consciência
para o encontro das diferenças. Cit., p. 55.

41
os sexos (...), emergiu precisamente quando as fundações da velha ordem

social foram abaladas de uma vez por todas.”42

Já no final do século XVIII, as diferenças anatômicas das genitálias

masculinas ou femininas foram tomadas, com o aval da biologia, como

pressupostos para hierarquizar poderes. Encontrava-se no próprio corpo

feminino a justificativa para funções impostas, atribuindo-lhe a

“responsabilidade” pela sua natureza. Foram inscritas divisões sexuais

socialmente construídas, daí resultando em códigos comportamentais e morais,

bem como em instrumento de legitimação das diferenças sexuais, seja no

Direito ou em outras instituições sociais.

“Por volta de 1800 todos os escritores determinaram-se a basear o


que insistiam ser as diferenças fundamentais entre os sexos
masculino e feminino, entre o homem e a mulher, em distinções
biológicas constatáveis e expressá-las em uma retórica racialmente
diferente. (...) Não só os sexos são diferentes, como são diferentes
em todo aspecto concebível do corpo e da alma, em todo aspecto
físico e moral. (...) Assim, o antigo modelo no qual homens e
mulheres eram classificados conforme seu grau de perfeição
metafísica, seu calor vital, ao longo de um eixo cuja causa final era
masculina, deu lugar, no final do século XVIII, a um novo modelo de
dimorfismo radical, de divergência biológica. Uma anatomia e
fisiologia de incomensurabilidade substituiu uma metafísica de
hierarquia na representação da mulher com relação ao homem.”43

A partir do pênis foram constituídas funções primárias para o corpo

masculino. Em torno deste órgão sexual foram edificados arquétipos que, dado

42
LAQUEUR, Thomas. Inventando o sexo: corpo e gênero dos gregos a Freud. Tradução de
Vera Whately. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001, p. 22.
43
Idem, 2001, p. 17.

42
seu reconhecimento em detrimento da “outra” genitália, serviram para orientar

as relações de poder estabelecidas na sociedade, doravante pautadas pela

supremacia fálica. “Incorporamos, sob a forma de esquemas inconscientes de

percepção e de apreciação, as estruturas históricas da ordem masculina.”44

O pênis é a representação simbólica da cultura androcêntrica, que

estabelece padrões a partir do masculino. Por seu intermédio, são distribuídos

papéis de gênero que resultam em prerrogativas para o exercício do poder. Em

outras palavras, são arquitetadas estruturas de exercício de poder altamente

verticalizadas e rígidas, qualquer que seja a sua ordem. Simbolicamente, por

ser expressão do potencial de fertilidade e gozo que compõe o masculino, o

pênis foi transformado em falo, assumindo o dever de ser viril, forte, rígido – tal

qual o poder que representa. Ao afirmar a sua função precípua (a procriação),

metaforicamente atrelada à produção agrícola, fonte de riqueza nas sociedades

originárias, o pênis enrijecido, demonstração da sua potencialidade, assume a

função de reproduzir a espécie humana, ainda que não seja possível realizar

tal missão sem o corpo feminino.

Ao analisar a potência simbólica atribuída ao pênis tornado falo,

assim pondera João Silvério Trevisan:

“Antes de tudo, as culturas falocêntricas – aquelas baseadas na


primazia e poder do falo – criaram um artifício: transformaram o pênis
(órgão concreto) automaticamente em falo (valor de símbolo). (...) Ao
se confundir pênis com falo, a posse do pênis – prerrogativa do
macho – tornou-se então posse do poder simbolicamente presente
no falo (o pênis ereto), que é uma figura procriadora, conquistadora e
dominadora, mas destacável de qualquer objeto concreto. Assim, o
macho (dono de um pênis concreto) passou a considerar-se

44
BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Cit., p. 13.

43
automaticamente o repositório único de todo poder fálico. (...) É no
falo que se articulou a própria base da civilização patriarcal, tornada
portanto falocêntrica. O falo tornou-se não apenas um símbolo mas o
componente básico do masculino.”45

O corpo feminino, por seu turno, foi construído tendo com objeto de

referência o corpo masculino. A vagina era concebida como o pênis invertido,

naturalmente internalizado. Os órgãos que compõem o aparelho reprodutor

masculino estariam perfeitamente integrados dentro do outro corpo, sendo que

lábios, útero e ovários eram correspondentes ao prepúcio, escroto e testículos,

respectivamente. Sem a presença do pênis, as pessoas com vagina foram,

historicamente, “inventadas” como aquelas desprovidas do poder de procriar,

em outras palavras, impedidas de germinar a terra fértil. Como tal, corpo

incompleto.

“Durante milhares de anos acreditou-se que as mulheres tinham a


mesma genitália que os homens, só que – como dizia Nemesius,
bispo de Emesa, do século IV – ‘a delas fica pra dentro do corpo e
não fora. Galeno, que no século II d.C. desenvolveu o mais
poderoso e exuberante modelo de identidade estrutural, mas não
espacial, dos órgãos reprodutivos do homem e da mulher,
demonstrava com detalhes que as mulheres eram essencialmente
homens, nos quais uma falta de calor vital – de perfeição – resultara
na retenção interna das estruturas que no homem são visíveis na
parte externa. (...) Nesse mundo a vagina é vista como um pênis
interno, os lábios como o prepúcio, o útero como o escroto e os
ovários como os testículos.”46

45
TREVISAN, João Silvério. Seis balas num buraco só: a crise do masculino. Rio de Janeiro:
Record, 1998, p. 50, 52.
46
LAQUEUR, Thomas. Inventando o sexo: corpo e gênero dos gregos a Freud. Cit., p. 16.

44
No jogo de oposições sexuais, foram estabelecidas relações

absolutamente distintas entre os corpos feminino e masculino, tornando

antagônicas e incomunicáveis as dimensões da sensibilidade e razão, da

passividade e da ação, do público e do privado, dentre outras. A polarização

entre os diferentes corpos serviu de fundamentação para a edificação de

paradigmas de força e poder, reservando distintos papéis de gênero,

socialmente construído, às pessoas que foram chamadas de homem e mulher.

Da ideia de sexo, fundamentada nos postulados biológicos, ao conceito de

gênero, homens e mulheres trilharam caminhos distintos, antagônicos,

conflituosos.

Gênero se constitui como uma categoria analítica destinada a

significar as relações de poder estabelecidas fundamentalmente entre as

dimensões masculina e feminina, bem como arquitetar e ordenar a vida social,

concreta e simbolicamente considerada. A noção aqui empregada não se

confunde com a construção biológica dos corpos ou das identidades (homem e

mulher). Embora seja fortemente influenciada pela biologia, deve-se

compreendê-la, a priori, como a construção histórica e social de um conceito.

A dimensão de gênero, uma vez fundada na ordem biológica dos

corpos, serviu para vitalizar a ideologia de estrutura de poder centrada no

antagonismo entre os gêneros masculino e feminino. Enquanto o corpo da

biologia se realiza no âmbito das interações naturais internas (a priori), o corpo

do gênero se experimenta na concretude da vida, no espaço e tempo sociais

em que se insere a pessoa humana, singularmente considerada. É justamente

neste território que as diferenças sexuais são consideradas, sendo tomadas

45
como pressuposto às ações ou omissões calcadas na misoginia, superioridade,

indiferença e violência.

A partir do reconhecimento do gênero, são definidos papéis sociais a

serem desempenhados pelas pessoas, delimitados desejos e sentimentos,

instituídos códigos de condutas e comportamentos, estabelecidas diferenças

no exercício de direitos e deveres, dentre outras estruturas relacionais, sempre

estando o masculino prevalecente sobre o feminino. Por se tratar de uma

construção social e histórica, não sendo, portanto, imutável, é formulado e

reformulado de acordo com o tempo e espaço em que se concretiza.

A noção de gênero, tal qual é concretizada no âmbito social,

constitui-se, fundamentalmente, como instrumento destinado a aniquilar a

dimensão feminina nas pessoas, aí consideradas mulheres e homens. É o

feminino que serve para asseverar ideologicamente a opressão baseada no

gênero, especialmente o patriarcalismo e machismo.

Por força das artimanhas de poder por ele criadas, expropriado da

dimensão feminina, também componente constituidor das estruturas psíquicas

dos homens, o macho vê-se forçado a exacerbar sua virilidade. Tal qual o

conceito de gênero, a obsessão por tonar-se viril impõe a construção de uma

identidade calcada em valores de força e violência, por um lado, ou um pavor e

impotência pelo receio de não firmar-se suficientemente como tal, por outro.

A expressão do masculino requer construção de símbolos de poder

e incorporação de papéis por vezes atentatórios à própria personagem que

interpreta. Este homem, ante as vicissitudes da vida, que não é linear ou

controlável como poderia supor o detentor da força, atordoado ante os dilemas

da sociedade moderna, comumente vê-se em crise. Por essa razão, seu

46
império igualmente encontra-se abalado, suscitando duas saídas possíveis: a

paralisia, ante a perplexidade e insegurança por sua incompetência, que pode

resultar no aparecimento de doenças do “homem moderno”, como depressão e

impotência sexual; ou, o acirramento da representação do poder fálico,

impulsionando o recrudescimento da violência baseada no gênero, que quase

sempre redunda em outras modalidades de violência urbana.

“Se, como querem os seguidores/as de Michel Foucault, as formas


de poder determinam historicamente as diferenças de gênero, o
masculino deve ser entendido não apenas como uma determinação
sexual da cultura mas – a partir dessa determinação de gênero –
uma forma que os homens encontraram de exercer socialmente seu
poder hegemônico. Nesse sentido, a crise atual do masculino seria a
crise de poder do macho. (...) Sentindo-se culpado ante a crescente
recusa dos valores masculinos ‘eternos’, aos quais estava
acostumado, esse homem desestruturado sofre de indolência,
desamparo e abulia. (...) Diante do espelho de si mesmo, o homem
moderno confronta-se com o enigma de ser ou não ser. Tal como
Édipo diante a Esfinge, o macho humano vive hoje um desafio
básico, confrontado com seu próprio enigma, que o ameaça
implacavelmente, numa versão do ‘Decifra-me ou te devorarei’. Essa
dúvida por si já implica um impasse de estranhamento, pois o macho
humano raramente precisou fazer perguntas sobre si mesmo. Afinal,
a História sempre foi escrita à sua imagem e do seu ponto de vista.”47

Assim, tem-se que a definição do sexo resulta em importante forma

de tomada (controle) sob o corpo humano, estabelecendo desde então limites à

sua realização ou experimentação. O corpo é, antes de tudo, a genitália que

possui e a representação que dela se constrói.

47
TREVISAN, João Silvério. Seis balas num buraco só: a crise do masculino. Cit., p. 24-5.

47
1.2.2.1. O CORPO NOMEADO

“O meu nome é Severino,/ como não tenho outro de pia./ Como há


muitos Severinos,/ que é santo de romaria,/ deram então de me
chamar/ Severino de Maria;/ como há muitos Severinos/ com mães
chamadas Maria,/ fiquei sendo o da Maria/do finado Zacarias./ (...)
Somos muitos Severinos/ iguais em tudo na vida:/ na mesma cabeça
grande/ que a custo é que se equilibra,/ no mesmo ventre crescido/
sobre as mesmas pernas finas,/ e iguais também porque o sangue/
que usamos tem pouca tinta./ E se somos Severinos/ iguais em tudo
na vida,/ morremos de morte igual,/ mesma morte severina:/ que é a
morte de que se morre/ de velhice antes dos trinta,/ de emboscada
antes dos vinte,/ de fome um pouco por dia/ (de fraqueza e de
doença é que a morte Severina/ ataca em qualquer idade,/e até
gente não nascida)./ Somos muitos Severinos/ iguais em tudo e na
sina:/ a de abrandar estas pedras/ suando-se muito em cima,/ a de
tentar despertar/ terra sempre mais extinta,/ a de querer arrancar/
algum roçado da cinza./ Mas, para que me conheçam/ melhor
Vossas Senhorias/ e melhor possam seguir/ a história de minha
vida,/ passo a ser o Severino/ que em vossa presença emigra.”48

A definição do nome corresponde, como pressuposto inalterável, a

ao seu sexo. As diferenças anatômicas de genitálias são critérios distintivos

para designar um nome. A partir de então, a personalidade do sujeito é

constituída em torno desta identificação que, além de reconhecimento no seu

ambiente de convivência social, adquire contornos jurídicos (quase) absolutos.

“O desafio do meio ambiente hostil dos primórdios da civilização e os


esforço comum pela própria sobrevivência foram levando, aos
poucos, ao exercício da vida comunitária, o que trouxe a
necessidade de identificação dos membros do grupo no seio da

48
MELO NETO, João Cabral de. Morte e vida severina. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007, p. 91-
3.

48
coletividade. Embora remonte ao mais remoto passado, passou o
nome por grandes mutações, variando sua formação de
conformidade com os povos e com as épocas, reconhecendo-se sua
imprescindibilidade. (...) Serve o nome para designar qualquer objeto
ou entidade; porém, adquire especial importância, no que concerne à
identificação de cada indivíduo, constituindo uma marca exterior. (...)
O ser humano sem nome é apenas uma realidade fática; com o
nome penetra no mundo jurídico, a expressão mais característica da
personalidade. Assim, nome é o chamamento pelo qual se designa
uma pessoa, individualizando-a não só durante a vida, como também
persiste após a morte.”49

O Direito reserva grande importância à questão do nome,

destinando-lhe vasta elaboração doutrinária, inserindo o tema nos estudos dos

Direitos da Personalidade, bem como um consolidado ordenamento legislativo

próprio (a exemplo da Lei Federal nº 6015, de 31 de dezembro de 1973, bem

como tratativas no Código Civil e em normas esparsas). Sendo o principal

elemento balizador para as distinções entre pessoas nas relações jurídicas,

que instaura deveres e assegura direitos, o nome ganhou contornos de

inalterabilidade, sendo permitidas mudanças em casos excepcionais.

O nome é, pois, outra insidiosa forma de definir a pessoa. Importa

afirmar que o nome é critério secundário a fixar o sujeito em uma identidade

que se propõe imutável, impondo-lhe os primeiros limites à sua própria

experiência humana.

49
VIEIRA, Tereza Rodrigues. Nome e sexo: mudanças no registro civil. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2008, p. 19, 26-7.

49
1.2.3. O CORPO SAGRADO

Os dogmas religiosos bastam em si, como elementos de crença e

verdade absolutas. Os seus enunciados constituem os pilares a orientar a

concretização da fé e, por outro lado, fundamentar a estrutura política das

instituições religiosas. A validação destes pressupõe a sua irrefutável crença.

Importa abstrair a capacidade racional, objetiva e, sobre ela, impor verdades

absolutas, fundadas na intuição e persuasão.

Por séculos, as religiões se sustentam em pressupostos discursivos,

fundados na validação tácita de seus postulados, e na prévia organização

política de suas estruturas de direção – elementos que requerem, como critério

de validade, submissão às verdades apresentadas e a plena experimentação

da fé nestas verdades.

O espaço da operação das religiões é o campo imaginativo do

sujeito. Seu objeto de atuação não são os bens materiais em si, mas, antes de

tudo, elementos pertinentes à fantasia, ao desejo e ao medo – do estranho

ante o desconhecido, das dúvidas científicas e incertezas perante a vida e a

morte. Por esta razão, e imbuídos da intenção de operacionalizar o território do

irracional que é, a um só tempo, campo de elaborações do desejo, os credos

religiosos se afirmam e estabelecem por meio de símbolos, textos sagrados,

sacramentos, imposição de regras e pela criação imagética da divindade.

Pelas religiões, os sentidos humanos ligados à intuitividade e à fé

são dotados de significação, sendo-lhes atribuídas dimensões transcendentais,

tornando-as em parte externa ao próprio homem – ainda que não sejam

expropriadas dele. Tornam-se, a um só tempo humano e inumano. Passam a

50
ser objetos de apropriação pelas entidades que detêm a capacidade de

interpretá-los a partir das revelações (supostamente) advindas dos mistérios.

O corpo da religião é, antes de tudo, um corpo mudo, devotado à

escuta, jamais à argumentação. É receptáculo dos conceitos formados em

torno de doutrinas, donde derivam dogmas revestidos pelo discurso da

autoridade. Trata-se de território preparado e domesticado para a submissão e,

se necessário, humilhação, entendidos como pressupostos de subserviência

indispensável para a relação estabelecida entre o humano (corpo) e o

desconhecido (divindade).

O controle do corpo pelas religiões parte de dois pressupostos. O

primeiro, centrado no aprisionamento da racionalidade, excluindo a

possibilidade de questionamentos acerca da validade dos dogmas. Implica

reduzir a sua potencialidade racional, impondo-lhe a supremacia da intuição

como critério de obtenção das verdades. É corpo-crença, cuja realização é

permitida somente no âmbito da fé.

Por outro lado, ainda como pressuposto ao governo do corpo, as

religiões impõem absoluto controle sobre o campo imaginativo do sujeito, que,

sendo território das fantasias, desejos e medos é, ao mesmo tempo, lócus de

criação, racionalização e experimentação. Uma vez livre para compreender seu

lugar no tempo e espaço, todos os elementos que constituem o sujeito

corporificado passam a ser objeto de análise, dúvida e questionamento. Neste

campo urge impor domínio de modo a autorizar ou, mais precisamente,

desautorizar a sua livre experimentação, sob pena de fragilizar as verdades

argumentativas que fundamentam os dogmas, quiçá rejeitá-las.

51
Objetivando a aceitação tácita e pacífica deste controle, a estratégia

encontrada pelas religiões foi tornar sagrado o corpo. À luz da sagração que

constitui a expressão do divino tornado carne, todas as pessoas passaram a

gozar da potencialidade de tornarem-se corpos santificados.

“Ou não sabeis que o vosso corpo é templo do Espírito Santo, que
habita em vós, a qual recebestes de Deus, e que, por isto mesmo, já
não vos pertenceis? (...) Glorificai, pois, a Deus no vosso corpo.” 50

A partir da possibilidade da sagração do corpo foram erigidos

inúmeros instrumentos de controle, impostos física e ideologicamente sobre a

pessoa. A ideia de pecado, como ação contrária às ordens divinas, somada

aos castigos corporais por praticar sacrilégios, serviu como ordem fundante

para a instituição de normas sacramentais a reger a conduta humana. Os

desvios cometidos, especialmente pela experimentação da sexualidade, não

apenas suscitava a desacramentação do sujeito, como autorizava a aplicação

de castigos e limitações no exercício de direitos.

Analisando a formação histórica do Direito, Willis Santiago Guerra

Filho aponta a intrínseca ligação com a religião. Neste sentido, pondera que a

organização política das comunidades primitivas, fundada na magia51,

enquanto forma de conhecimento, resultou fracassada. Em seu lugar, as

50
BÍBLIA SAGRADA. Cit., p. 1470: Coríntios, cap. 6, 19-20.
51
A noção de magia adotada pelo Professor Willis Santiago Guerra Filho refere-se ao elemento
fundante da ordenação política das comunidades primitivas. Trata-se da capacidade dos povos
em conceber o mundo a partir de operações mentais advindas da observação dos fenômenos
naturais. O sujeito que assim atuava, tornava “objetivas idéias e associações delas (das
operações mentais), imaginando criar as coisas que lhes sugerem seus pensamentos, por crer-
se mestre das forças naturais como o era de seus próprios gestos”. (GUERRA FILHO, Willis
Santiago. Teoria política do direito: uma introdução política ao direito. Brasília: Brasília
Jurídica, 2000, p. 30-1).

52
religiões concentraram o poder em torno dos seus postulados dogmáticos,

outrora difuso entre os membros da sociedade.

“A percepção da resistência do mundo me aceitar o seu domínio


mágico, pela conseqüente falibilidade de seus rituais, atestada pelo
malogro de experiências sucessivas, termina por acarretar a
submissão às forças misteriosas e sobrenaturais que não consegue
controlar. (...) Vale assinalar, nesse contexto, o significado político
dessa submissão a entes superiores, donde resultaria a submissão
também àqueles que se diziam capazes de entender e tratar com
eles, isto é, as castas sacerdotais. Estas, como se sabe, forneceram
o sustentáculo ideológico para a concentração do poder, inicialmente
distribuído entre os membros do grupo social.”52

Considerando-se portadora da capacidade de interpretar os

mandamentos divinos, detentora das tradições, a religião passou a coordenar o

estabelecimento das regras de convivência, revestidas por caráter jurídico. Do

“sincretismo normativo”, estabelece-se uma intrínseca relação entre Estado e

Igreja, resultando em mútua troca de poderes, em que a ideologia religiosa

estava a serviço do controle do corpo como pressuposto à manutenção da

ordem política (estatal).

“A noção do supra ou do sobrenatural, que é própria da religião,


introduz a representação de forças que escapam ao poder humano,
a serem controladas através de um relacionamento amistoso,
proporcionado pelo culto com oferendas, sacrifícios e coisas do
gênero. Assim, enquanto a magia envolve operações que se
revertem de um caráter coercitivo para com os espíritos, forçados a
agir no sentido indicado pelo praticante dos atos mágicos, na religião
é estabelecida uma espécie de aliança para impedir a arbitrariedade

52
Idem, 2000, p. 31.

53
na ação divina, revestindo o relacionamento entre homens e
divindade de um caráter, por assim dizer, jurídico.”53

O corpo sagrado é, portanto, aquele que, submetido às regras

dogmáticas e ao controle da instituição religiosa, torna-se referência de

submissão e abdicação do que é essencialmente humano. Impõe-se em

oposição ao corpo-humano, numa simbiose de sujeição e humilhação, só

vencível pela plena capacidade de racionalmente duvidar e livre

experimentação dos desejos, humanamente construídos.

1.3. O CORPO INCONTROLÁVEL

Ainda que haja diversas estruturas para controlar o corpo, território

de realização da pessoa, objetivando, portanto, estabelecer governo sobre o

sujeito que o titulariza, um dado desvela do domínio das instituições. Ainda que

não seja plenamente autônoma, a experiência da sexualidade pode subverter

qualquer lógica de poder ou controle, impor-se contra ordens externas,

podendo limitar-se apenas pelo próprio desejo que a constitui.

Enraizada no desejo, a sexualidade constitui-se como um dos

elementos componentes da personalidade humana. O seu aspecto psíquico

afasta-se do conceito biológico (que a limita à sua dimensão reprodutiva),

podendo aproximar-se da perspectiva sociológica, uma vez que, ainda que se

caracterize enquanto expressão da subjetividade humana, sua concretude é

decorrente das interações sociais do sujeito em seu ambiente de convívio.

Ademais, é estruturante da identidade do sujeito, pelo qual se elaboram

53
Ibidem, p. 31.

54
relações corporais, expressam-se performances de gênero e experimentam-se

desejos.

Associar a noção de sexualidade à concepção de sexo não é, a

priori, equivocada, embora seja demasiadamente limitadora. Tal vinculação

centra-se na perspectiva biológica da reprodução humana, posto que a

geração de indivíduos dá-se sempre pela junção dos gametas decorrentes do

fenômeno da meiose.54 Para que ocorra a fertilização, é preciso que se

encontrem espermatozoide e óvulo, feito que ocorre, tradicionalmente (não

exclusivamente), pelo ato sexual de um homem e uma mulher. Destarte, esta

ideia de sexualidade vincula a noção de sexo à prática sexual, cuja finalidade

específica centra-se na reprodução humana: “o sexo é aceso, ao mesmo

tempo, à vida do corpo e à vida da espécie”55.

Na perspectiva biológica de sexualidade, qualquer outra

funcionalidade do sexo, distante da noção de reprodução humana, perde a sua

importância ou utilidade. Na medida em que a prática sexual se destine ao

profícuo encontro entre os gametas masculino e feminino, está realizada a sua

função precípua – ainda que este encontro não resulte necessariamente na

produção de um zigoto e, posteriormente, um embrião. Prazer, excitação,

orgasmos, são elementos dispensáveis ou, no máximo, acessórios. Exclui,

54
“Assim, a divisão celular meiótica produz duas células-filhas, cada uma das quais tem
metade do número de cromossomos presentes na célula-mãe original. Por exemplo, depois da
meiose, uma célula humana com quota padrão de 46 cromossomos transforma-se em óvulo ou
em espermatozoide com apenas 23, prontos para se encontrar com sua ‘outra metade’. A
meiose, que divide pela metade o número de cromossomos por célula, e a fertilização (após a
relação sexual, a polinização das flores ou a conjugação dos protoctistas ou dos fungos), que
duplica esse número, têm que andar de mãos dadas.” (MARGULIS, Lynn; SAGAN, Dorion. O
que é a vida? Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2002, p. 148).
55
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber. Tradução de Maria
Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. 19. ed. Rio de Janeiro: Graal,
1988, p. 159.

55
portanto, qualquer outra perspectiva enraizada na dimensão erótica no

encontro de corpos sexuados.

Considerar a sexualidade a partir de sua perspectiva biológica

resulta, invariavelmente, na redução do conceito e limitação da sua

experimentação. Se é certo que a dimensão da reprodução humana é uma das

expressões das estruturas sexuais, mais certo é asseverar que a vivência

desta estrutura humana envolve elementos afetos ao desejo.

A sexualidade aponta a vivência de sensações formuladas a partir

de uma experiência subjetiva da pessoa, ainda que se construa pela interação

com elementos externos que podem ser incorporados a partir das referências

elaboradas/ extraídas pela/ da sociedade. Entre o certo e o errado, o normal e

anormal, o permitido e o proibido, o tolerado e o imoral... as instituições sociais

vão apresentando referenciais de práticas sexuais na tentativa de guiar os

sujeitos.

A sexualidade é tomada como critério de organização social e

política, reservando distintos espaços de sociabilidade a partir da orientação

sexual, identidade de gênero, prática sexual e comportamento sexual do

sujeito. Assim, torna-se critério para singularização da pessoa para, ao mesmo

tempo, categorizá-la, possibilitando o seu enquadramento. Constitui-se,

destarte, critério para o reconhecimento do indivíduo em sua comunidade,

gerando a confortável sensação de “pertencimento” ou, ante eventuais

desequadramentos sexuais, a “exclusão” do espaço social em que se

expressa.

“O homem ocidental aprende pouco a pouco o que é ser uma


espécie viva num mundo vivo, ter um corpo, condições de existência,

56
probabilidade de vida, saúde individual e coletiva, forças que se
podem modificar, e um espaço em que se pode reparti-las de modo
ótimo. Pela primeira vez na história, sem dúvida, o biológico reflete-
se no político; o fato de viver não é mais esse sustentáculo
inacessível que só emerge de tempos em tempos, no caso da morte
e de sua fatalidade: cai, em parte, no campo do controle do saber e
de intervenções do poder.”56

A sexualidade tomada como critério de organização social,

amparada pela sua perspectiva biológica, resulta na constituição de padrões

referenciais a guiar práticas e comportamentos sexuais. Corpo (biológico) e

sexualidade são tomados como “dispositivos políticos”, sob os quais são

erigidos aparelhos reguladores de convívio social. Neste sentido, a elaboração

(ou o reconhecimento) de condutas socialmente referendadas serve para a

estruturação de relações de poder, impondo fortemente o aceito sob o

rejeitado.

“Sobre tal pano de fundo, pode-se compreender a importância


assumida pelo sexo como foco de disputa política. É que ele se
encontra na articulação entre dois eixos ao longo dos quais se
desenvolveu toda a tecnologia política da vida. De um lado, faz parte
das disciplinas do corpo: adestramento, intensificação e distribuição
das forças, ajustamento e economia das energias. Do outro, o sexo
pertence à regulação das populações, por todos os efeitos globais
que induz. Insere-se, simultaneamente, nos dois registros; dá lugar a
vigilâncias infinitesimais, a controle constantes, a ordenações
espaciais de extrema meticulosidade, a exames médicos ou
psicológicos infinitos, a todos um micropoder sobre o corpo; mas,
também, dá margens a medidas maciças, a estimativas estatísticas,

56
Idem, 1988, p. 155.

57
a intervenções que visam todo o corpo social ou grupos tomados
globalmente.”57

A sexualidade, uma vez tomada como dispositivo político de

organização da sociedade, passa a servir como pressuposto ao exercício de

saberes-poderes, sustentando discursos científicos de controle (especialmente

da Medicina e do Direito), sendo por eles legitimada. Trata-se, destarte, do

governo sobre a vida e o corpo (singular ou social). Nesta perspectiva, passo a

passo, foram sendo erigidos pilares de uma estrutura comportamental sobre a

sexualidade humana, tendo como pressuposto a heterossexualidade, fundando

referenciais de obrigatória observância para a experimentação de uma

sexualidade sadia e autorizada.

A heteronormatividade constitui-se como um conjunto de

referenciais, expectativas, demandas e restrições produzidas quando a

heterossexualidade é tomada como única normativa possível dentro de uma

determinada sociedade. Trata-se de um padrão de condutas que legitima e

privilegia a heterossexualidade e os relacionamentos heterossexuais como

fundamentais, exclusivos e naturais. Deste modo, num primeiro instante,

amparada por papéis de gênero anteriormente definidos, dividem-se funções

sexuais, atribuindo ao homem a proeminência das decisões quanto à prática

sexual e controle sobre o desejo, tornando a mulher instrumento para o

desiderato masculino. Estabelece-se, pois, uma relação de poder em que o

sujeito ativo submete o sujeito passivo às suas volições, normas,

comportamentos. Afirmam-se valores de virilidade, rejeitando-se tudo o que se

57
Ibidem, p. 158-9.

58
refere ao feminino, estabelecendo uma oposição absoluta e rígida entre

dominador e dominado.

Noutro sentido, centrado na perspectiva biologizante da sexualidade,

os cânones da heteronormatividade pugnam por afastar da prática sexual

qualquer elemento que não a sujeite à função precípua de reprodução humana.

Ainda que se tenha consciência que nem toda relação sexual resulte na

geração de um embrião, tal primícia implica, em vias opostas, a rejeitar

absolutamente qualquer outra forma de relacionamento afetivo-sexual cujo

resultado possível não seja a procriação. Destarte, masturbação e práticas

homossexuais, por exemplo, são tidas como anormais e socialmente

repudiáveis. Para estas, é designado um complexo arcabouço de condutas

cuja finalidade centra-se na rejeição e exclusão do que é substancialmente

antagônico aos padrões normativos da heterossexualidade, legitimando, por

vezes, ações de extrema violência.

Para além da sua apropriação política, a sexualidade diz respeito à

dimensão erótica da pessoa, envolvendo na sua prática a realização de

desejos, sensações de extasias, experimentação de gozos e orgasmos,

advindos de prazer carnal/corporal. Trata-se da possibilidade de realização de

vontades sublimadas, reveladas pela construção imagética da libido,

pornografias, fetiches, relações de domínio, práticas sadomasoquistas,

descobertas sensoriais, dentre outras infindáveis maneiras de se vivenciar a

capacidade de excitação do sujeito.

A prática sexual centrada no desejo pode realizar-se no âmbito da

individualidade ou na troca intersubjetiva, envolvendo um ou mais parceiros. A

sua concretização independe da anuência de terceiros, sejam pessoas

59
próximas ou familiares, autoridades religiosas ou políticas, ou mesmo de

instituições sociais ou normas morais ou jurídicas. Neste sentido, a vivência da

sexualidade pode ser absolutamente livre, pois se move abertamente pelo

infindável imaginário erógeno das pessoas, possibilitando a realização das

mais íntimas fantasias, cujo efeito pode resultar na experimentação de gozo e

orgasmos.

A experiência da sexualidade vai além da prática sexual

propriamente dita. Refere-se à dimensão amorosa que envolve o sujeito,

possibilitando a elaboração de vínculos afetivos com outra(s) pessoa(s). Por

seu meio, relações comuns ganham contornos de enamoramento, tornando

atos e palavras condimentos para outras experiências, calcadas na intimidade,

na reciprocidade e erotização de desejos. Firmam-se, das formas mais

variadas, compromissos amorosos.

A sexualidade é tomada como território físico na medida em que se

projeta sobre o corpo, construindo-o. Torna-se elemento impulsionador de

subjetividades que se expressam no espaço corporal do sujeito, exteriorizando

a concepção que possui de si mesmo. Dá-se por alterações cirúrgicas,

colocação de adornos, tatuagens, escolha de vestimentas, coloração de

cabelos, desenvolvimento de dietas e atividades físicas, dentre outras

infindáveis formas de expressão de identidade no corpo.

A potencialidade que é a sexualidade é, todavia, um dado

desconhecido que habita em cada sujeito. A experimentação da sexualidade

pode ser absolutamente imponderável, tornando-a avessa a qualquer forma de

controle. Neste sentido, torna-se elemento de extremo risco tanto para

60
indivíduos quanto para, principalmente, as instituições sociais, pois autoriza o

desejo a tornar-se instrumento de transgressão e subversão às ordens.

Ante a experimentação do gozo que a vivência da sexualidade pode

proporcionar, os sujeitos colocam-se acima de qualquer ordem destinada a

limitar ou extinguir o prazer sentido. Elementos como reputação, moral,

comportamentos socialmente referendados, dogmas religiosos, preceitos

jurídico-normativos tornam-se incapazes de conter o impulso desejante,

passando o indivíduo a guiar-se pelo ímpeto lascivo. É o controle sobre a vida

da pessoa, em última análise, controle sobre a própria pessoa, que se vê

ameaçado, instaurando um risco de plena desordem e consequente perda do

governo das situações. A íntima sensação que autoriza subjetivamente a

experiência de uma relação afetivo-sexual entre duas pessoas do mesmo sexo

é absolutamente mais poderosa que o versículo bíblico que afirma que a

homossexualidade é uma abominação.58

A imponderabilidade da sexualidade, ao tempo que potencializa o

indivíduo para a realização dos seus desejos e experimentação de gozos

sexuais, para a construção de um corpo que seja espelho das suas

subjetividades, para o enlaçamento de relações amorosas, torna-se o

instrumento mais eficaz para o processo de libertação do sujeito de regras ou

normas, externamente impostas, inibidoras, repressoras, limitadoras, avessas

ao prazer. É, pois, a desobediência necessária, a transgressão urgente,

capazes de promover a re-tomada do corpo, devolvendo-o à pessoa que o

titulariza, destinando-lhe posse e propriedade, governo e autonomia, direitos e

liberdades.

58
“Se um homem dormir com outro homem, como se fôsse mulher, ambos cometeram uma
coisa abominável. Serão punidos de morte e levarão sua culpa.” (BÍBLIA SAGRADA. Cit., p.
164: Levítico, cap. 20, 13.).

61
“É pelo sexo efetivamente, ponto imaginário fixado pelo dispositivo
de sexualidade, que todos devem passar para ter acesso à sua
própria inteligibilidade (já que ele é, ao mesmo tempo, o elemento
oculto e o princípio produtor de sentido), à totalidade de seu corpo
(pois ele é uma parte real e ameaçada deste corpo do qual constitui
simbolicamente o todo), à sua identidade (já que ele alia a força de
uma pulsão à singularidade de uma história). (...) Daí a importância
que lhe atribuímos, o temor reverente com que o revestimos, a
preocupação que temos de conhecê-lo. Daí o fato de ter se tornado,
na escala dos séculos, mais importante do que nossa alma, mais
importante do que nossa vida; e daí todos os enigmas do mundo nos
parecem leves comparados a esse segredo, minúsculo em cada um
de nós, mas cuja densidade o torna mais grave do que todos.”59

A sexualidade é um dos elementos integradores da personalidade

humana. É constituinte de sua estrutura biológica, psíquica, social e política.

Como tal, compõe-se como parte indissociável do sujeito, devendo dela

decorrer direitos e proteção jurídica.

59
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber. Cit., p. 169-170.

62
CAPÍTULO II
A JURISDICIALIZAÇÃO DA DIVERSIDADE SEXUAL

2.1. O DIREITO QUE (NÃO) PROTEGE

O processo de secularização vivenciado pelas sociedades

europeias, especialmente no final do século XVI, impulsionou a busca por uma

ciência pragmática, objetiva e distinta de elementos místicos, outrora utilizados

como fundamento para validar o conhecimento. O paradigma erigido ao longo

dos séculos XVII e XVIII centrou-se na absoluta distinção entre razão e fé,

conformando um método de apreensão do conhecimento baseado na

racionalização dos fenômenos naturais. Nesse esforço, ganhou contorno de

ciência todo saber que, por sua capacidade analítica, alcançava a verdade

objetiva e, como tal, formulava premissas incontestáveis. Todas as demais

formas de expressão do pensamento humano, caso padecessem de parca

certeza (razão), perderam significância entre os espectros dos saberes.

O paradigma nascente no final do século XVIII, ainda reinante, teve

a objetividade como seu fundamento maior para a obtenção dos

conhecimentos, primando pela construção de fundamentos de validade que

assegurassem irrefutabilidade aos postulados científicos. O que se almeja é o

encontro da verdade dos conhecimentos metodologicamente construídos.

Nesta busca, a Modernidade intentou purificar os saberes de elementos

externos, isolando-os em suas próprias assertivas.

63
“No início do século XIX, a ciência moderna tinha já sido convertida
numa instância moral suprema, para além do bem e do mal.
Segundo Saint-Simon, a crise moral que grassava na Europa desde
a Reforma, e a consequente separação entre os poderes secular e
religioso, só podia ser resolvida por uma nova religião. Essa religião
era a ciência. Foi assim que a política se transformou num campo
social de carácter provisório com soluções insatisfatórias para
problemas que só poderiam ser convenientemente resolvidos se
fossem convertidos em problema científicos ou técnicos: a célebre
transformação saint-simoniana da administração das pessoas numa
administração de coisas.”60

O estudo da Biologia é um típico exemplo de produção de um

conhecimento objetivo. A sua elaboração parte dos elementos naturais

componentes do objeto de observação, que independem, a priori, da

interferência humana. Não é, pois, necessária uma intervenção externa ao

sistema para o seu pleno funcionamento. Por outro lado, para a sua total

compreensão, basta a análise dos seus elementos intrínsecos. Ao pesquisador,

é suficiente a certeza do perfeito funcionamento do sistema a partir da

combinação (interação) precisa das suas partes – o todo a partir da junção das

partes.

Pelo conhecimento científico advindo do estudo da Biologia, é

possível abstrair respostas racionais e objetivas, suficientes para elucidar

dúvidas metódicas em torno do funcionamento do sistema em estudo. A

verdade acerca dos elementos naturais que compõem os corpos vivos, obtida

pela racionalização do conhecimento da matéria, passou a ser tomada como

artifício esclarecedor da naturalização dos elementos sociais, tais como

60
SANTOS, Boaventura de Sousa. Para um novo senso comum: a ciência, o direito e a
política na transição paradigmática. v. 1. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da
experiência. 6. ed. São Paulo: Cortez, 2007, p. 51.

64
sexualidade, gênero e raça. A ciência biológica passou a emprestar o seu

prestígio, sustentado em sua pureza metodológica, para entender fenômenos

cuja explicação está associada a elementos culturais, portanto, de difícil

comprovação no âmbito do paradigma cientificista nascido na Modernidade.

Ainda assim, sociedade, conhecimento e subjetividades passaram a

ser objetivamente concebidos, racionalmente compreendidos e externados,

sem a qual não se configurariam como elementos verdadeiros, úteis, valorosos,

necessários. A produção de um conhecimento científico, marcado pelos rigores

do método, serviu de pressuposto para o estabelecimento de compromissos

sociais, apontando caminhos de superação para os problemas sócio-políticos

enfrentados até então.

“O paradigma da modernidade é um projecto ambicioso e


revolucionário, mas é também um projecto de contradições internas.
Por um lado, a envergadura das suas propostas abre um vasto
horizonte à inovação social e cultural; por outro, a complexidade dos
seus elementos constitutivos torna praticamente impossível evitar
que o cumprimento das promessas seja nuns casos excessivos e
noutros insuficientes. Tanto os excessos como os défices estão
inscritos na matriz paradigmática. O paradigma da modernidade
pretende um desenvolvimento harmonioso e recíproco do pilar da
regulação e do pilar da emancipação, e pretende também que esse
desenvolvimento se traduza indefectivelmente pela completa
61
racionalização da colectiva e individual.”

Neste bojo de transformações paradigmáticas experimentadas ao

longo dos dois últimos séculos, insere-se o aperfeiçoamento de uma ciência

destinada a regular as relações sociais e organizar as relações estatais – o

61
Idem, 2007, p. 50.

65
Direito. A ciência jurídica, cuja origem está atrelada à estrita produção

legislativa, se destina a normatizar as interações políticas travadas no âmbito

da comunidade, objetivando instituir e preservar uma dada ordem social.

“No entanto, a gestão reconstrutiva dos excessos e dos défices da


modernidade não pôde ser realizada apenas pela ciência. Necessitou
da participação subordinada, mas central, do direito moderno. Uma
participação que, como já referi, foi subordinada, dado que a
racionalidade moral-prática do direito, para ser eficaz, teve que ser
submeter à racionalidade cognitivo-instrumental da ciência ou ser
isomórfica dela. Mas, apesar de subordinada, foi também uma
participação central porque, pelo menos a curto prazo, a gestão
cientifica da sociedade teve de ser protegida contra eventuais
oposições através da integração normativa e da força coercitiva
fornecida pelo direito.”62

Enquanto instrumento legitimador das decisões do Estado, o Direito

requer um pressuposto de validade que seja suficientemente capaz de impor o

seu império normativo. É necessário que, para assegurar sua força coativa e

tornar eficazes seus dispositivos normativos, seus comandos sejam fielmente

obedecidos. Neste particular dialogam Direito e ciências na busca por verdades

inquestionáveis, servindo um ao outro em prol de seus interesses e superação

de fragilidades.

Nesta perspectiva, a ideia de um Direito puro é pressuposto

determinante à sua validade. Não há que se questionar uma norma jurídica,

cuja legitimidade ampara-se no mero ato da sua produção legislativa, senão

cumpri-la. Mesmo que a sua elaboração esteja maculada por vícios formais ou

materiais, as leis gozam, a priori, de presunção de validade, impondo-se

62
Ibidem, p. 52.

66
coercitivamente a todos – sob pena de sua inobservância fazer desmoronar o

arcabouço estatal alicerçado nas legislações. Daí ser imprescindível, qual

argumento de força, que o Direito se constitua num sistema fechado (que basta

em si mesmo para seu total funcionamento), marcado por pureza científica

avessa às demais formas de organizações sociais e regras paraestatais. Ainda

que se afaste de valores da Justiça, ainda que se recuse a entender que a lei

é, antes de tudo, o que se interpreta do seu comando normativo, dura lex, sed

lex.63

Neste particular, o Direito passa a ser o instrumento propício ao

diálogo que se estabelece entre Estado e sociedade. As organizações estatais

atrelam-se à eficácia das normas, imposta pela validade auferida da

inquestionabilidade das leis, para estabelecer padrões regulares de

convivência social. A transgressão das condutas naturais, que são

historicamente afirmadas enquanto signos de poder, é causa suficiente para a

63
A ideia de um Direito puro encontra a sua formulação mais arrojada na obra de Hans Kelsen.
Objetivando fundar uma Teoria Geral do Direito, afirma, no prefácio da primeira edição de
Teoria Pura do Direito, que a norma jurídica deve ser “purificada de toda ideologia política e
de todos os elementos de ciência natural, uma teoria jurídica consciente da legalidade
específica do seu objeto”, devendo “aproximar tanto quanto possível os seus resultados do
ideal de toda ciência: objetividade e exatidão”. Adiante, reafirmar seu objetivo em “garantir um
conhecimento apenas dirigido ao Direito e excluir deste conhecimento tudo quanto não
pertença ao seu objeto, tudo quanto não se possa, rigorosamente, determinar como Direito”.
Ao discutir a relação entre Direito e Moral, por exemplo, o jus filósofo afirma a relatividade do
valor da moral, apontando a impossibilidade de estabelecer um único sistema de Moral
absoluta de modo a coincidi-lo com o sistema jurídico. “Com efeito, quando se não pressupõe
qualquer a priori como dado, isto é, quando se não pressupõe qualquer valor moral absoluto,
não se tem qualquer possibilidade de determinar o que é que tem de ser havido, em todas as
circunstâncias, por bom ou mau, justo e injusto. (...) A exigência de uma separação entre
Direito e Moral, Direito e Justiça, significa que a validade de uma ordem jurídica positiva é
independente desta Moral absoluta, única válida, da Moral por excelência, de a Moral”. E
conclui: “Na verdade, o conceito de ‘bom’ não pode ser determinado senão como ‘o que deve
ser’, o que corresponde a uma norma”. Tais posicionamentos, destaca-se, estão em plena
harmonia (ou são dele consequentes) com todo o intento experimentado ao longo dos séculos
XIX e XX de se elaborar uma ciência objetiva, engendrada a partir da análise exclusiva do seu
próprio objeto de estudo. Intenta-se produzir postulados livres de variações externas ou
influências advindas do que seja estranho ao sistema que integra. Desta maneira, pretendia-se
elaborar um conhecimento jurídico cujo fundamento de validade estivesse intrínseco à própria
norma dele decorrente, tornando-a inquestionável e portadora de imediata eficácia. (KELSEN,
Hans. Teoria pura do direito. Tradução de João Baptista Machado. 6. ed. São Paulo: Martins
Fontes, 1998, p. 1, 73, 75.).

67
intervenção coercitiva sobre as liberdades individuais. Destarte, o Estado e o

Direito prestam-se à preservação do equilíbrio entre as forças sociais que

interagem numa mesma comunidade por meio da imposição de padrões

comportamentais (cientificamente) naturalizados.

Se por um lado o Estado e o Direito estão engendrados em certezas

objetivas e, como tal, imutáveis, tornando-se distantes da realidade por eles

regida, por outro há a incapacidade das ciências jurídicas em preencher de

conceitos todos os elementos que intenta regular – o que não é,

necessariamente, ruim. Nesse sentido, a ideia de uma pureza do Direito,

embora tenha produzindo efeitos para a produção legislativa, não assegurou a

completude da aplicação dos dispositivos normativos.

Ainda que a sua natureza coercitiva sugira uma autossuficiência na

elaboração dos seus postulados, o Direito padece de uma limitação que impõe

o estabelecimento de diálogos com outras áreas do saber. Ao invés de supor

um enfraquecimento dos seus comandos, o Direito fortalece-os, asseverando

seu fundamento de validade e, por outra via, reforça ideologicamente seu

poder coercitivo de impor condutas e punir desvios.

Em matérias atinentes a crimes cibernéticos, por exemplo,

invariavelmente tenderá o intérprete da norma a buscar informações fora dos

glossários jurídicos. Igual situação se aplica a temas afetos a desacordos

morais razoáveis, cujo referencial de pesquisa pode ser encontrado na

antropologia, sociologia ou história. Nesta mesma perspectiva inserem-se os

temas ligados a gênero e sexualidade.

Embora possua, como já afirmado, uma forte vocação para imiscuir-

se em temas atinentes à intimidade do sujeito, no que tange às questões de

68
sexualidade o Direito encontra-se, por si só, desamparado. Não se percebe

suficientemente capaz de estabelecer conceitos ou definir padrões

comportamentais de modo a normatizar a experimentação sexual de cada

pessoa.64 Seja pelo isolamento dos saberes jurídicos ou por consciência de

suas intrínsecas limitações no que se refere ao exercício do poder coercitivo,

nestas questões dialogam, prioritariamente, Direito e Biologia na busca por

verdades inquestionáveis – fundamentos de validade irrefutáveis.65

A ideia que preenche o conceito de sexo utilizado pelo Direito

encontra suas primeiras raízes (e fundamentos) nas ciências biológicas, sendo,

portanto, demasiadamente limitada. Inicialmente, cabe afirmar que a

concepção jurídica de sexo, nesta perspectiva, exclui as noções de gênero e

sexualidade, circunscrevendo-se à prática sexual biologicamente naturalizada.

Em última análise, trata-se da tutela dos fatos decorrentes das experiências

sexuais de cunho reprodutivos entre homem e mulher. À margem desta

vivência referendada, encontram-se todas as formas de livre experimentação

da sexualidade distintas dos cânones biológicos, no aspecto da prática sexual,

experiência amorosa ou da construção do corpo, estando, pois, desprovidas de

tutela jurídica.

64
Ressalta-se, todavia, que se eximir da definição de determinados temas referentes a matéria
da sexualidade, dentre outros (especialmente no que se refere às controvérsias morais), é
extremamente salutar. Do contrário, correr-se-ia o risco de serem impostas, peremptoriamente,
condutas exclusivas normatizadas (avessa à natureza humana: dinâmica, complexa e
emancipatória), impondo, com a chancela do Estado, punições a quaisquer outras que não
seguissem o padrão normatizado.
65
O debate sobre a sexualidade, dada a sua complexidade e inerente dimensão de poder, o
diálogo do Direito com a Biologia se amplia, aproximando-se da sociedade por meio de
argumentos desprovidos de fundamentos científicos, senão baseados em valores morais e,
igualmente, por apego a preceitos religiosos. Implica afirmar que a construção dos postulados
jurídicos sobre sexo, corpo, gênero e sexualidade estão imbrincados com outras formas de
conhecimento que resultam em, para além de asseverar o fundamento de validade, fortalecer a
legitimidade e aplicabilidade das normas jurídicas atinentes à experiência sexual das pessoas.

69
Considerando como pressuposto à tutela estatal toda a relação que,

sob o prisma da Biologia, enquadra-se nos pilares na naturalidade e, por

consequência, da normalidade, o Direito concebe-se completamente

desresponsabilizado da assistência ao que, de forma transgressora, subverte

uma dada ordem natural. Destarte, exime-se de assegurar proteção jurídica às

relações a-normais: ao mesmo tempo, o que não é normal e o que é

desprovido de norma, regramento. Sem que exista comprometimento formal,

resta à ciência jurídica tratar do que é juridicamente (ou, se queira,

cientificamente) referendado, passando a estabelecer vasta arquitetura

protetiva dos (exclusivos) direitos sexuais, irradiando sua potência legislativa

para diversas áreas dos saberes jurídicos, a começar pelo Direito

Constitucional, encontrando primazia no Direito de Família e Direito Penal.

2.2. ELEMENTOS DE SUBVERSÃO

O Direito brasileiro, no que se refere ao trato às questões atinentes a

sexo, limita-se a tratar o tema sob o prisma biologizante, amparado por valores

morais e religiosos. No entanto, dois elementos, um jurídico e outro histórico,

podem servir de instrumentos propícios à ampliação da tutela jurídica aos

direitos da diversidade sexual, quais sejam direitos de lésbicas, gays,

bissexuais, travestis e transexuais (LGBT). Trata-se de circunstâncias que

podem contribuir para subverter a lógica adotada pela ciência jurídica para,

deliberadamente, estabelecer a ordem sexual, possibilitando o enfrentamento

que poderá instaurar um sistema protetivo pleno.

70
2.2.1. O CONSTITUCIONALISMO DE 1988

Estruturas sociais fortemente baseadas em relações de poder

desequilibradas resultam na edificação de postulados que servem para

justificar tratamentos desiguais, restrição ao exercício de direitos, violência,

dentre outras formas de se perpetrar interações sociais dominantes. São

exemplos o racismo, o machismo e a homofobia. O contínuo processo histórico

de afirmação dos direitos humanos contribui para constituir instrumentos

jurídico-políticos destinados a asseverar a igualdade material entre desiguais,

respeito mútuo e convivência solidária, bem como para o reconhecimento das

diferenças como pressuposto ao pleno gozo de garantias fundamentais de

todos, indistintamente.

O constitucionalismo contemporâneo, nascido dos escombros da II

Guerra Mundial, substrato jurídico do novel Estado Democrático de Direito, é

profundamente referenciado pela força normativa que se destinou aos

princípios, impactando a interpretação e concretização das Constituições.

Importa reconhecer uma verdadeira valorização da principiologia constitucional

que, inspirada por uma ideia de Justiça, volta-se à afirmação do conteúdo

axiológico das organizações políticas nascidas no pós-guerra – a dignidade da

pessoa humana.

A aproximação do constitucionalismo contemporâneo com o ideal de

democracia impulsionou o reconhecimento de direitos de populações

socialmente vulneráveis como autênticos direitos fundamentais a constituir o

conteúdo material das Constituições. Neste particular, insere-se a Constituição

Federal Brasileira, promulgada em 5 de outubro de 1988, primeira

71
democraticamente elaborada após a edição da Declaração Universal dos

Direitos Humanos, em 10 de dezembro de 1948, sendo por ela diretamente

influenciada. Trata-se de um imprescindível instrumento jurídico, especialmente

por ter (1) elevado princípios à condição de normas jurídicas, dotando-os de

densidade constitucional e eficácia plena, (2) positivado, ampliado e petrificado

direitos fundamentais, asseverando o compromisso do Estado com a promoção

dos valores supremos e objetivos fundamentais da República e (3) definido

sistemática destinada a integrar o ordenamento pátrio aos sistemas

internacionais de proteção aos direitos humanos.

A enunciação de certos direitos fundamentais no corpo da

Constituição Federal de 1988, alinhado à gramática dos princípios

fundamentais por ela instaurada, possibilitou a criação de legislações

destinadas à proteção, por exemplo, das populações de negros e mulheres, a

partir do reconhecimento de suas diferenças, consideradas como pressupostos

essenciais para a garantia da sua igualdade material. São exemplos a Lei n°

7.716, de 5 de janeiro de 1989, destinada ao enfrentamento às discriminações

raciais, em conformidade com o que preceituam os incisos XLI e XLII, do art. 5º

da CFB, e a Lei n° 11.340, de 7 de agosto de 2006, que estabeleceu medidas

destinadas à superação da violência contra a mulher e enfrentamento ao

machismo.

No entanto, ao tempo em que a sociedade brasileira elaborava a sua

Constituição Cidadã, a partir de um processo de intensa participação popular,

em que os sujeitos políticos constituíram uma única ágora para discussão do

novo modelo de sociedade, que se pretendia democrática, temas atinentes à

moral sexual, por força do protagonismo de segmentos avessos a esse debate,

72
foram olvidados ou mesmo desprezados. Ainda, no mesmo instante em que

movimentos de negros e de mulheres impunham suas bandeiras no cenário de

construção da Nova República, militantes dos movimentos em favor dos

direitos da diversidade sexual enfrentavam o impacto do aparecimento da Aids,

a epidemia e suas estigmatizadas interpretações, reduzindo suas forças de

intervenção no processo constituinte. A luta por igualdade e direitos civis

perdeu força ante a urgente batalha contra a estigmatização: sobreviver ao

vírus e ao preconceito passou a ser pauta política urgente.

A Constituição Federal de 1988 constitui um avançado documento

jurídico. Ainda assim, se constitui como um produto do seu tempo, o que torna

possível identificar limitações textuais no que se refere a direitos sexuais e

direitos da diversidade sexual. Se é certo afirmar que o Texto Maior ampliou o

rol de direitos fundamentais, igualmente é possível destacar a existência de

princípios fundamentais implícitos, dos quais decorre o reconhecimento de

direitos não explicitados. Neste sentido, insta asseverar a vivacidade da Carta

Política, sendo impossível concebê-la e dela extrair entendimentos sem

contextualizá-la no tempo presente. Trata-se de atualizá-la à luz dos avanços

sociais experimentados, por exemplo, nas searas políticas e científicas, bem

como nos campos da ética e da moral, asseverando, assim, a sua força

normativa e capacidade de incidência de suas normas na vida da comunidade.

O reconhecimento de direitos da diversidade sexual inseridos na

Constituição Federal objetiva, por um lado, assegurar garantias fundamentais

de pessoas que vivenciam suas experiências sexuais ou expressões de gênero

distintas dos padrões atinentes a uma moral assentada na

heteronormatividade. Importa, pois, ampliar a proteção constitucional e, assim,

73
assegurar o pleno exercício da cidadania dessa população, bem como

estabelece obrigações positivas aos legisladores e administradores públicos,

impulsionando a aprovação de documentos jurídicos que, ao reconhecer

situações factuais, pugnam pela promoção da igualdade material no que tange

às diferenças sexuais.

O desafio para as sociedades contemporâneas centra-se no

reconhecimento jurídico de direitos implícitos ou deles extraíveis, de modo a

afirmar os direitos da diversidade sexual como autênticos direitos

fundamentais, sem o qual não há como concretizar plenamente o conteúdo

material do Estado Democrático de Direito. Trata-se, pois, de condição sine

qua non para o fortalecimento da democracia e plena concretização dos

preceitos normativos constantes da Constituição.

2.2.2. BREVE HISTÓRIA DA LUTA PELOS DIREITOS DA DIVERSIDADE


SEXUAL

O processo histórico de afirmação dos direitos humanos não está

concluído. Renova-se e reinventa-se a partir das experiências das

comunidades, na interação entre pessoas e instituições, entre deveres e

desejos. É decorrente das vivências coletivas e torna-se diretriz valorativa que

norteia instituições políticas e sociedade. Trata-se de movimento dinâmico e

complexo que, tais como as sociedades humanas, se encontra em constante

interação. Nesse contexto, insere-se a luta pelos direitos da diversidade sexual,

que se desdobra em luta pela livre vivência da orientação sexual e identidade

de gênero de cada indivíduo, sujeito singular do mesmo processo político de

afirmação de direitos humanos.

74
A luta pelos direitos de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e

transexuais constitui efetivo reconhecimento da dignidade inerente a essa

parcela da sociedade, reconhecida pela marca do preconceito e das

intolerâncias homofóbicas, apresentadas sobre o viés de diferentes formas de

violência. Constitui-se em afirmação da dignidade humana inerente a todas as

pessoas, impondo dever de atuação em favor da sua concretização no plano

da realização histórica, política, social, subjetiva e jurídica de cada cidadão ou

cidadã LGBT.

Regina Facchini assinala que o enfrentamento à ditadura civil-militar,

instaurada no Brasil em 1964, serviu como fator estimulante às condições que

impulsionaram o surgimento e a embrionária organização do Movimento

Homossexual Brasil, no final dos anos 1970.

“Em vez de identificar apenas um efeito negativo da ditadura militar


na possibilidade de organização de um movimento homossexual, é
importante, por exemplo, notar o quanto a ditadura estimulou a
formação de resistências em diversos setores sociais e como ela
pode ter sido, inclusive, responsável pelo perfil fortemente
antiautoritário que marcou a ‘primeira onda’ do movimento
homossexual brasileiro. Ainda que a ‘abertura’ tenha tido o papel de
abrir espaço para vozes, mais ou menos isoladas e abafadas, de
vários setores sociais, viessem a público, não podemos negar que a
ditadura produziu, por assim dizer, boa parte das condições para o
boom movimentalista que ocorreu no decorrer dos anos 1970, e pode
ter marcado sensivelmente as trajetórias individuais e os modos de
atuação dos primeiros militantes homossexuais brasileiros.”66

66
FACCHINI, Regina. Sopa de letrinhas?: movimento homossexual e produção de
identidades coletivas nos anos 90. Rio de Janeiro: Garamond, 2005, p. 93. (Sexualidade,
Gênero e Sociedade. Homossexualidade e Cultura).

75
O movimento LGBT brasileiro começou a se organizar no final dos

anos 70 do século XX, a partir das lutas pela reconstrução democrática, com a

formação de grupos nas cidades do Rio de Janeiro, São Paulo e Salvador. A

criação do Grupo Somos de Afirmação Homossexual, em São Paulo, do Grupo

Gay da Bahia (GGB), em Salvador, e a edição do jornal O Lampião da Esquina

são pilares de um período marcado pela afirmação de uma identidade diversa

dos padrões sexuais socialmente referendados.

O surgimento da Aids e a luta pela formação de uma Nova

República, a partir do processo de redemocratização vivenciado com as

medidas de abertura do regime militar, impulsionou diferentes formas de

organização política da comunidade LGBT da década de 1980 (à época ainda

identificada, genericamente, pela sigla MHB – Movimento Homossexual

Brasileiro). Tratou-se de um período conturbado, marcado pela incipiente luta

em favor do reconhecimento de direitos civis para essa população, de um lado,

e o enfrentamento aos estigmas decorrentes do aparecimento da epidemia, do

outro.

Já sob o regime de uma nova Constituição, que pugnava pela

consolidação de uma sociedade livre de preconceitos, a década de 1990 é

inaugurada com a formação de instituições representativas de travestis e a

afirmação política da identidade de lésbicas dentro das organizações sociais

existentes até então. O ano de 1995 foi singular para o movimento LGBT

brasileiro. A criação da primeira rede nacional (Associação Brasileira de Gays,

Lésbicas e Transgêneros – ABGLT) e a apresentação, na Câmara dos

Deputados, do Projeto de Lei nº 1151, de autoria da então Deputada Marta

Suplicy (PT/SP), consolidaram novas agendas na luta pela afirmação dos

76
direitos de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais. A reivindicação

pelos direitos da diversidade sexual entrava, definitivamente, na arena política

nacional, pautando debates e atuação de diversos setores da sociedade.

Neste contexto, novas redes foram constituídas e diversas

instituições, das mais diferentes representações, se organizaram em torno da

afirmação de direitos da diversidade sexual. A visibilidade midiática que tais

questões assumiram desde então propiciou a ampliação do diálogo com a

sociedade, impulsionando novas formas de manifestações e reivindicações. As

Paradas do Orgulho LGBT se espalharam por todo o Brasil, mobilizando

milhões de pessoas, das mais diferentes orientações sexuais ou identidades de

gênero, tornando cada vez mais visível a presença de lésbicas, gays,

bissexuais, travestis e transexuais, enquanto sujeitos de direitos, revelando

seus dilemas, problemas sociais, desejos e desafios.67

Ao longo deste período, novas identidades foram afirmadas, levando

ao reconhecimento de novas demandas, especialmente aquelas atinentes às

identidades de gênero. Travestis e transexuais, organizados em instituições

próprias, passaram a impulsionar, com nova ótica, a discussão do conceito de

gênero, sobre a autonomia do corpo e o direito à autodeterminação da

identidade sexual.

67
As Paradas do Orgulho LGBT representam um importantíssimo instrumento na luta pela
afirmação dos direitos da diversidade sexual. Tornar lésbicas, gays, bissexuais, travestis e
transexuais visíveis, dentro do contexto em que se constituem como sujeitos sociais e de
direitos, afirmando uma identidade própria e reivindicando organizadamente a concretização da
sua cidadania, é, sem dúvida, a principal contribuição desta manifestação política. Neste
sentido, pondera Trevisan: “Numa grande diversidade de idades, gostos e estilos, as pessoas
presentes à Parada pareciam ter perdido o medo de ocultar suas identidades, ostentando
rostos agora abertos, com alegria e desconcentração, e dançando ao som de carros de tipo trio
elétrico, em meio à animação de vários carros alegóricos. Durante quatro horas, promoveu-se
uma ampla visibilidade de massa, que tornou a Parada um evento político da maior
importância, no contexto das lutas pelos direitos homossexuais no Brasil. Uma evidência da
repercussão para além do gueto foi sua inclusão no calendário turístico da cidade de São
Paulo.” (TREVISAN, João Silvério. Devassos no paraíso: a homossexualidade no Brasil, da
colônia à atualidade. 6. ed. rev. ampl. Rio de Janeiro: Record, 2004, p. 379.).

77
As conquistas obtidas pelo movimento social ao longo dos últimos

30 anos resultaram por tornar visível, na qualidade de sujeitos de direitos,

lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais. Foram capazes de afirmar a

existência das diferenças inerentes a todos os indivíduos, sem que isso

implique na negação de seus direitos fundamentais. As reivindicações dos

movimentos organizados foram ampliando-se e sua defesa alcançou tribunais

em todo o País, donde emanaram as primeiras decisões favoráveis ao

reconhecimento dos direitos da diversidade sexual.

Nos últimos anos, governos de todos os entes federativos têm

adotado políticas de enfrentamento às discriminações homofóbicas e afirmação

de direitos LGBT. São referenciais de ações estatais a criação de órgãos

públicos (a exemplo da Coordenação de Políticas para a Diversidade Sexual do

Estado de São Paulo68), a edição de marcos normativos protetivos aos direitos

da diversidade sexual (cita-se a Portaria nº 016/2008, da Secretaria de

Educação do Estado do Pará69), a instituição de espaços de participação

política destinados à deliberação coletiva das decisões públicas (como o

Conselho Nacional de Combate à Discriminação e Promoção dos Direitos de

Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais, vinculado à Secretaria de

Direitos Humanos da Presidência da República).

Não obstante os primeiros avanços obtidos, a produção legislativa

em torno dos direitos da diversidade sexual permanece praticamente inerte,

sendo pontuais iniciativas que se voltem à defesa da cidadania LGBT.

68
Decreto Estadual nº 54.032, de 18 de fevereiro de 2009.
69
A Portaria nº 016/2008, da Secretaria de Educação do Estado do Pará, estabelece que todas
as Unidades Escolares da Rede Pública Estadual deverão passar a registrar, no ato da
matrícula, o “prenome social” de travestis e transexuais, devendo esse ser observado durante a
permanência dessas pessoas na vida escolar.

78
Especificamente no âmbito do Congresso Nacional, apesar de esforços

contrários, nenhuma lei foi aprovada, deixando um vácuo de difícil

preenchimento para esta luta.

2.3. HOMOAFETIVIDADE E RECONHECIMENTO DE DIREITOS: QUESTÃO


TERMINOLÓGICA E ESTRATÉGIA DE INTERVENÇÃO

O Direito, na sua realização, atua com o fato concreto, com o

elemento posto, objetivado, real. Seja nas relações privadas, seja no âmbito do

convívio dos Poderes entre si e com os cidadãos, o campo do imagético, da

formulação intelectual desvela-se no ato de elaborar a norma ou de interpretá-

la no momento da sua aplicação. Destarte, o desafio colocado à defesa dos

direitos da diversidade sexual ocorre a partir de duas perspectivas: (1) tornar

visível a existência de relações jurídicas que são decorrentes do livre exercício

da sexualidade; (2) emprestar outro olhar para as relações jurídicas além das

formulações cientificas e morais sobre sexualidade, possibilitando o

reconhecimento jurídico-político.

O desafio posto, portanto, perpassava a mera hermenêutica jurídica,

momento oportuno para uma leitura sistemática e teleológica dos princípios e

normas integrantes da Constituição Federal, por exemplo. A mera interpretação

do texto constitucional, ou de qualquer outra norma ordinária, padeceria de

força suficiente para asseverar direitos da diversidade sexual para além do

âmbito normativo, uma vez que tal feito é permeado por valores estranhos ao

próprio direito. Um enfrentamento anterior precisava ser feito, sob o prisma do

efetivo combate semântico. Importava estabelecer novos/outros sentidos no

79
bojo da incompletude de determinados conceitos que, no âmbito da gramática

discursiva, revelam uma carga semântica além da sua estrutura sintáxica.

Língua e linguagem são produtos de um determinado tempo,

enraizado num dado espaço social. São expressões de valores morais, juízos

éticos, concepções políticas e religiosas do mundo circundante. São,

igualmente, instrumentos que, quando empregados, objetivam concretizar

interesses daqueles que os possuem ou, institucionalmente, estão autorizados

a utilizá-los. No âmbito jurídico, ditam regras, impõem condutas e corporificam

relações de poder. No campo religioso, decifram o oculto e revelam a verdade.

No aspecto moral, definem comportamentos e autorizam censuras e

reprimendas. Neste sentido, palavras como homossexualidade ou

travestilidade representam muito mais que orientação sexual ou identidade de

gênero de uma pessoa, podendo designar comportamento desviante,

inadequação social, promiscuidade, pecados.

Uma importante contribuição deu-se com a publicação da obra

União homossexual: o preconceito e a justiça, de autoria da então

desembargadora gaúcha Maria Berenice Dias. Embora não seja a primeira

produção científica a tentar cunhar uma expressão que auxiliasse no debate

em torno da sexualidade70, de modo a promover tratamento digno à população

LGBT, no âmbito do direito brasileiro ficou plasmado o termo homoafetividade

como referência às entidades familiares constituídas por pessoas do mesmo

sexo.

70
Toma-se como exemplo a contribuição de Jurandir Freire Costa que cunha a expressão
homoerotismo: “Homoerotismo não é uma palavra neutra, do ponto de vista dos valores. Com
ela pretendo revalorizar, dar outro peso moral às experiências afetivo-sexuais que, hoje, são
pejorativamente etiquetadas de homossexuais. Quando mudamos os conceitos, mudamos os
problemas e com eles as interpretações que damos de certos fatos”. (COSTA, Jurandir Freire.
Politicamente correto. In: Revista teoria & debate. n. 18. São Paulo: Fundação Perseu
Abramo, maio/jun/jul 1992, p. 24.).

80
A construção do conceito deu-se a partir do amadurecimento que o

Direito de Família vinha galgando na perspectiva de afirmar o afeto como

elemento jurídico. A proteção estatal no âmbito das relações privadas ocorridas

em torno da constituição de entidades familiares foi, aos poucos, incorporando

elementos outrora estranhos ao próprio Direito. Amor, sofrimento, desilusão,

encontros e reencontros, afeto, sentimentos/situações até então presentes no

universo dos poetas, escritores, apaixonados, passaram a servir de base para

a análise de fatos dos quais decorriam direitos e deveres. De igual modo, o

impacto que as transformações sociais produziram nas relações familiares

somou-se à elaboração de uma nova concepção jurisdicional da ideia de

família.

“A evolução científica, principalmente na área da biociência, acabou


influindo no próprio comportamento das pessoas e refletindo na
estrutura familiar. (...) Se a prole ou a capacidade procriativa não são
essenciais para que o relacionamento de duas pessoas mereça a
proteção legal, não se justifica deixar ao desabrigo do conceito de
família a convivência entre pessoas do mesmo sexo. O centro da
gravidade das relações de família situa-se modernamente na mútua
assistência afetiva (...) Como elemento essencial das relações
interpessoais, o afeto é um aspecto do exercício do direito à
intimidade garantido pelo inciso X do art. 5º da Constituição Federal.
Ainda que se quisesse considerar indiferente ao Direito os vínculos
afetivos que aproximam as pessoas, são eles que dão origem aos
relacionamentos que geram as relações jurídicas, fazendo jus ao
status de família.”71

As formulações em torno do conceito de homoafetividade foram se

aprimoraram. Outras contribuições se somaram, robustecendo a expressão

71
DIAS, Maria Berenice. União homossexual: o preconceito e a justiça. 2. ed. rev. atual. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 67-8.

81
que, enfim, conseguia atingir os seus objetivos: afirmar que as relações

familiares entre pessoas do mesmo sexo também se constituem a partir de

vínculos firmados pelo afeto e, ao mesmo tempo, suavizar a ideia de

homossexualidade, purificando-a de tradicionais preconceitos que vinculavam

erroneamente as práticas homoeróticas à promiscuidade, pecado, imoralidade.

Em edição mais atual, Maria Berenice Dias reforça o entendimento de que os

direitos sexuais integram a gramática dos direitos humanos, ecoando proteção

jurídica às uniões homoafetivas.

“Indispensável reconhecer que a sexualidade integra a própria


condição humana. Ninguém pode realizar-se como ser humano se
não tiver assegurado o respeito de exercer livremente sua
sexualidade com quem deseja, conceito que compreende tanto a
liberdade sexual como a liberdade à livre orientação sexual. A
sexualidade é um elemento da própria natureza humana, seja
individual, seja genericamente considerada. (...) a garantia do livre
exercício da sexualidade integra as três gerações de direitos porque
está relacionada com os postulados fundamentais da liberdade
individual, da igualdade social e da solidariedade humana. A
segurança da inviolabilidade da intimidade e da vida privada é a base
jurídica para a construção do direito à orientação sexual, como direito
personalíssimo, atributo inerente e inegável da pessoa humana.
Como as gerações de direitos servem para alcançar a realização de
todos os cidadãos, as uniões homoafetivas, que são alvo da
intolerância social, não podem ser excluída da tutela jurídica. Deste
modo, impositiva a inclusão da diversidade sexual no rol dos direitos
humanos fundamentais, como expressão de um direito subjetivo ao
mesmo tempo individual, categorial e difuso.” 72

72
DIAS, Maria Berenice. União homoafetiva: o preconceito e a justiça. 4. ed. rev. atual. ampl.
Sao Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 99-100.

82
Outras tentativas de elaboração de conceitos para designar as

relações jurídicas entre pessoas do mesmo sexo também foram elaboradas,

com o mesmo intuito de expor elementos subjetivos da experiência das

homossexualidades e enfrentamento aos estigmas que desvirtuam a

centralidade das relações de lésbicas, gays e bissexuais. Neste sentido, serve

de exemplo a formulação de Enézio de Deus da Silva Júnior, que utiliza a

expressão homoessência:

“A homossexualidade, em sintonia com as reformulações científicas,


com os novos entendimentos sobre orientação afetivo-sexual e em
conformidade com os avanços jurídicos, em matéria de direitos
humanos, deve ser vislumbrada no plano essencial da constituição
humana – assim como as outras manifestações ou variantes do
desejo, como a heterossexualidade e a bissexualidade. Pela razão
de sempre ter sido alvo de escárnio, repúdio e de preconceitos
infundados, apresento, através desta obra, e ratifico a expressão que
cunhei (desde a defesa do meu trabalho monográfico):
homoessência e suas variantes (homoessencial,
homoessencialidade), visando a uma compreensão sensível da
afetividade voltada para o mesmo sexo, porquanto a estrutura
humana do desejo é infindável nascente da psiquê e um bem
fundamental, que não se obstaculiza; no máximo, nega-se no âmbito
subjetivo ou camufla-se, no social.”73

A expressão homoafetividade firmou-se no cenário jurídico,

incorporada à doutrina e jurisprudência dos tribunais, incluindo o Supremo

Tribunal Federal. Sendo certo que, incialmente, o afeto constitui-se como um

elemento do Direito a guiar a tarefa de interpretação da legislação, hoje é

73
SILVA JÚNIOR, Enézio de Deus. A possibilidade jurídica de adoção por casais
homossexuais. Curitiba: Juruá, 2005, p. 51.

83
possível afirmar que se corporificou num autêntico instituto jurídico, galgando

força normativa a orientar a elaboração, interpretação e concretização dos

postulados legais. Não obstante a sua inegável importância, é preciso apontar

limitações que o termo possui.

No âmbito do universo infindável que constitui a sexualidade

humana, suas diversidades, práticas, comportamentos e experimentações,

nem todas as experiências estão centradas na dimensão do afeto. O conceito

de homoafetividade limita-se às relações (afetivas) travadas entre pessoas do

mesmo sexo, excluindo de sua conceituação outras expressões da sexualidade

humana.

Determinadas práticas sexuais que ocorrem sem que se forme

qualquer vínculo (por vezes experimentadas exclusivamente no âmbito da

individualidade) são socialmente reprimidas, por força dos estigmas e

preconceitos, e juridicamente desprezadas. Por isso mesmo, devem ser objeto

da tutela estatal, posto constituírem autênticas expressões da sexualidade

humana. Tornam-se impositivas ao Estado, forçando-o a garantir suas

experimentações e exercício de eventuais direitos que lhes sejam decorrentes.

É o caso das relações entre homossexuais ou bissexuais, que pode estar antes

vinculada à dimensão erótica, sensorial e prazerosa dos sujeitos, do que à

prévia existência de afeto a uni-los.

Relações sexuais permeadas por práticas sadomasoquistas devem

ser protegidas contra qualquer tentativa de linchamento moral, invisibilidade

jurídica, atos de violência ou manifestações de intolerância. O fato de não

estarem firmadas precipuamente em vínculos de afeto, não deve suscitar a

indevida aplicação da norma jurídica punindo seus praticantes ou limitar seu

84
exercício, enquadrando-os, por exemplo, na prática de lesão corporal,

devidamente tipificada na legislação penal brasileira, art. 129. Desde que livres

e consensuais, impõem-se ao Estado e à sociedade, estabelecendo deveres

positivos (assegurar o seu exercício) e negativos (não impedir a sua prática).

A dimensão do afeto não abarca as questões vinculadas às

diferentes identidades de gênero. A constituição de um corpo adequado à sua

realidade psíquica ou a alteração de prenome são direitos inerentes à

experiência da travestilidade e transexualidade, adentrando no âmbito do

direito à saúde e direito registral, que devem ser objeto da tutela jurídica,

reverberando-se em obrigações impositivas ao Estado. De igual modo, é

inconcebível a utilização do direito para punir profissionais que realizavam

cirurgias de readequação sexual em transexuais. Em passado não muito

distante, a realização destas cirurgias serviu como pressuposto à condenação

penal do médico responsável, conforme relata Tereza Rodrigues Vieira.74

A ideia de um Direito Homoafetivo circunscreve-se no âmbito do

Direito de Família e Direito das Sucessões. Outras matérias do Direito, cuja

centralidade não está vinculada às relações afetivas e que, mesmo assim,

incidem efeitos no mundo jurídico, também são impactadas pelas experiências

das sexualidades discordantes, revestindo-se de imposição de tutela ao

74
“Oportuno se torna lembrar o quanto é importante para o transexual a adequação do seu
corpo à mente, sendo a única saída vislumbrada para a recuperação de sua saúde. No
entanto, a adequação do corpo do transexual parece, segundo o entendimento de alguns
poucos, colidir com o princípio da indisponibilidade do corpo humano. Em 1978, o jurista
Heleno Cláudio Fragoso proferiu parecer, onde entendia que o cirurgião plático Roberto Farina,
condenado a dois anos de reclusão sob a alegação de ter infringido o disposto no art. 129, § 2º,
III, do Código Penal brasileiro, havia atuado estritamente dentro dos limites do exercício do
direito (art. 23, III do Código Penal), não praticando crime algum. Farina havia realizado cirurgia
em Waldir (Waldirene) Nogueira em 1971, a primeira do gênero no país. A 5ª Câmara do
Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo, por votação majoritária, em 06.11.1979, deu
provimento ao apelo e absolveu o condenado. Para o Tribunal, o médico não agiu
dolosamente, pois pretendia ‘curá-lo ou reduzir seu sofrimento físico ou mental. Semelhante
cirurgia não é vedada pela lei, nem pelo Código de Ética Médica’.” (VIEIRA, Tereza Rodrigues.
Nome e sexo: mudanças no registro civil. Cit., p. 241.)

85
Estado. A título exemplificativo, citam-se o Direito Administrativo (criação de

instrumentos normativos que assegurem a utilização do nome social de

travestis e transexuais no âmbito dos órgãos da Administração Pública), Direito

Registral (possibilidade jurídica de alteração do prenome de travestis e

transexuais, independentemente de cirurgias de readequação sexual ou

autorização judicial), Direito Internacional Público (criação de tratados

internacionais protetivos dos direitos sexuais) e Direito Penal (criminalização da

homofobia e correlatas formas de discriminação e intolerância em razão da

orientação sexual e identidade de gênero das pessoas LGBT).

Em síntese, é possível afirmar que as demandas atinentes à luta

pelo reconhecimento das diversas identidades sexuais encontram no afeto um

dos seus componentes básicos, mas não se limitam a ele. Se é válido

asseverar que a ideia de homoafetividade preenche o conteúdo do chamado

Direito Homoafetivo, é correto assegurar que a expressão Direitos da

Diversidade Sexual melhor se harmoniza à universalidade da luta pelos direitos

LGBT.

2.4. PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL DA DIVERSIDADE SEXUAL

A Constituição Federal brasileira de 1988, produto do seu tempo

histórico, ateve-se a tratar das questões da sexualidade em poucos momentos,

prevalecendo a noção biológica para a distinção dos indivíduos e garantia de

específicos direitos. A expressão sexo, por exemplo, aparece quatro vezes,

enquanto a palavra gênero inexiste no Texto constitucional.75 Por outro lado, é

75
“Art. 3º, IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e
quaisquer outras formas de discriminação”; “Art. 5º, XLVIII - a pena será cumprida em

86
possível asseverar que as referências textuais atinentes a este tema estão

vinculadas à perspectiva da superação das diferenças que resultam em

infundadas desigualdades.

Não obstante, é importante afirmar que o modelo de

constitucionalismo consagrado pela Carta Política de 1988 aponta nova matriz

hermenêutica, tendo sua centralidade interpretativa na integração entre

princípios e regras, asseverando igual força normativa a todo Texto. Neste

sentido, a ausência de expressa menção aos direitos da diversidade sexual

não é obstáculo ao seu reconhecimento e garantia, devendo ser empregado

um esforço hermenêutico primoroso para, ao mesmo tempo em que se extrai

conteúdo e sentido do preceito constitucional, assegurar a concretização dos

valores fundantes do Estado, revelados por meio dos princípios constitucionais.

O ponto de partida para a compreensão de a Constituição ser

instrumento garantidor dos direitos da diversidade sexual está cravado como

princípio fundante do Estado (a dignidade da pessoa humana), sendo o ponto

de chegada esculpido como objetivo fundamental da República (promoção de

uma sociedade livre de preconceitos sexuais). São elos de um uníssono

conjunto cuja trajetória de concretização transcorre caminhos locais de

cidadania e campos de atuação internacional em defesa dos direitos humanos.

estabelecimentos distintos, de acordo com a natureza do delito, a idade e o sexo do apenado”;


“Art. 7º, XXX - proibição de diferença de salários, de exercício de funções e de critério de
admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil”. A Emenda Constitucional nº 20, de
XXX, excluiu o Art. 202, I (“aos sessenta e cinco anos de idade, para o homem, e aos
sessenta, para a mulher, reduzido em cinco anos o limite de idade para os trabalhadores rurais
de ambos os sexos e para os que exerçam suas atividades em regime de economia familiar,
neste incluídos o produtor rural, o garimpeiro e o pescador artesanal”), tendo acrescentado o
Art. 201, § 7º, II (“sessenta e cinco anos de idade, se homem, e sessenta anos de idade, se
mulher, reduzido em cinco anos o limite para os trabalhadores rurais de ambos os sexos e para
os que exerçam suas atividades em regime de economia familiar, nestes incluídos o produtor
rural, o garimpeiro e o pescador artesanal”).

87
2.4.1. DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS E A ESCOLHA
FUNDAMENTAL: A IDEIA DE IGUALDADE

Os princípios inseridos no Texto constitucional representam, por um

lado, um ideal a ser alcançado, guiando a tarefa de concretização da norma.

Por outro lado, revela um posicionamento político do Estado, apontando as

diferentes percepções da realidade que integram o corpo social. Neste sentido,

tais referenciais normativos constituem-se, efetivamente, como a exteriorização

das ideologias que orientam a vida em sociedade, expressando valores morais,

concepções políticas, fundamentos religiosos, dentre outros elementos sociais.

“Antes ainda, impõe-se fazer dos princípios constitucionais,


deliberadamente, ferramentas das tensões e intenções da população
a que o ordenamento jurídico se reporta. A carga político-ideológica,
com suas fantasias, seus medos, seus anseios, seus preconceitos e
seus desejos, deve refletir a realidade vivida, sentida e sonhada
pelos participantes da aventura social. Em suma: os princípios têm
mesmo de rechear-se com determinado conteúdo ideológico, e
prestam-se magnificamente para tanto.”76

Sendo certo que os princípios constituem a exteriorização das

ideologias da sociedade, é possível afirmar que estes preceitos normativos

expressam as contradições e conflitos presentes na vida coletiva. Neste

sentido, é imperioso afirmar que as tensões sociais em torno das sexualidades,

suas vivências e experimentações, estão a guiar a concretização desta espécie

normativa. Um desafio premente à defesa dos direitos da diversidade sexual

que se apresenta é a necessidade de extrair um significado positivo de

76
ROTHENBURG, Walter Claudius. Princípios constitucionais. 2. tir. Porto Alegre: Sergio
Antonio Fabris Editor, 2003, p. 78.

88
determinados princípios constitucionais, de modo a assegurar o exercício dos

direitos da população LGBT, em condição de igualdade.

“De um lado, a compreensão do significado como o conteúdo


conceptual de um texto pressupõe a existência de um significado
intrínseco que independa do uso ou da interpretação. Isso, porém,
não ocorre, pois o significado não é algo incorporado ao conteúdo
das palavras, mas algo que depende precisamente de seu uso e
interpretação, como comprovam as modificações de sentidos dos
termos no tempo e no espaço e as controvérsias doutrinárias a
respeito de qual o sentido mais adequado que se deve atribuir a um
texto legal. Por outro lado, a concepção que aproxima o significado
da intenção do legislador pressupõe a existência de um autor
determinado e de uma vontade unívoca fundadora do texto. Isso, no
entanto, também não sucede, pois o processo legislativo qualifica-se
justamente como um processo complexo que não se submete a um
autor individual, nem a uma vontade específica. Sendo assim, a
interpretação não se caracteriza como um ato de descrição de um
significado previamente dado, mas como um ato de decisão que
constitui a significação e os sentidos de um texto.”77

Não há princípio absolutamente vago ou ideologicamente neutro. O

ato de interpretar a norma principiológica, pressuposto à concretização do

sentido da Constituição, implica uma escolha a partir de elementos subjetivos e

objetivos, não sendo estes excludentes entre si. Destarte, importa, sobre um

posicionamento ideológico prévio, impor uma decisão política.

“A questão nuclear disso tudo está no fato de que o intérprete não


atribui ‘o’ significado correto aos termos legais. Ele tão-só constrói
exemplos de uso da linguagem ou versões de significado – sentidos

77
ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos.
5. ed. rev. ampl. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 31-2.

89
–, já que a linguagem nunca é algo pré-dado, mas algo que se
concretiza no uso ou, melhor, como uso. Essas considerações levam
ao entendimento de que a atividade do intérprete – quer julgador,
quer cientista – não consiste em meramente descrever o significado
previamente existente dos dispositivos. Sua atividade consiste em
constituir esses significados. Em razão disso, também não é
plausível aceitar a idéia de que a aplicação do Direito envolve uma
atividade de subsunção entre conceitos prontos antes mesmo do
processo de aplicação.”78

Tal escolha não ocorre de maneira absolutamente livre, sob pena de

impor à sociedade o império da insegurança jurídica e fragilizar a própria

Constituição. Deste modo, a interpretação dos princípios constitucionais

encontra um limitador objetivo: o sentido da Constituição. Este é preexistente e

encontra-se enraizado nos objetivos fundamentais da República. Todavia,

enquanto enunciados normativos de cunho principiológico, tais objetivos

igualmente carecem de interpretação para guiar sua concretização. Neste

particular, é possível recorrer aos tradicionais esquemas/modelos de

interpretação constitucional, pautados especificamente pelo critério

sistemático79 e teleológico80 de compreensão da unidade constitucional.

Não obstante, cumpre destacar que o trabalho de interpretação da

norma constitucional com fins de assegurar o exercício dos direitos da

78
Idem, 2006, p. 32.
79
“O direito objetivo não é um aglomerado aleatório de disposições legais, mas um organismo
jurídico, um sistema de preceitos coordenados ou subordinados, que convivem
harmonicamente. A interpretação sistemática é fruto da idéia de unidade do ordenamento
jurídico. Através dela, o intérprete situa o dispositivo a ser interpretado dentro do contexto
normativo geral e particular, estabelecendo as conexões internas que enlaçam as instituições e
as normas jurídicas.” (BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição:
fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. 6. ed. rev. atual. ampl. São
Paulo: Saraiva, 2004, p. 136).
80
“As normas devem ser aplicadas atendendo, fundamentalmente, ao seu espírito e à sua
finalidade. Chama-se teleológico o método interpretativo que procura revelar o fim da norma, o
valor ou o bem jurídico visado pelo ordenamento com a edição de dado preceito.” (Idem, 2004,
p. 138).

90
população LGBT, quando em condição de igualdade aos demais cidadãos,

enfrenta, necessariamente, questões atinentes a conflitos morais. Não é, pois,

tarefa fácil, uma vez que a tentativa de concretização do texto constitucional

será permeada pela acirrada luta ideológica em torno dos significados de

conceitos jurídicos inscritos na Constituição – incluindo o sentido atribuído aos

objetivos fundamentais inscritos no art. 3º.

“Diversamente, os conflitos que não podem ser superados pelas


técnicas tradicionais refletem em geral um confronto entre valores ou
opções políticas decorrentes da própria Constituição como um todo e
dos princípios por ela previstos em particular. Ora, além de as
técnicas tradicionais de solução de antinomias não serem capazes
de resolver essa espécie de conflito, também os elementos clássicos
de interpretação – que, ao delinearem o sentido dos elementos
normativos em tensão, poderiam superar o impasse – têm aplicação
limitada. É fácil entender a razão. Como se acaba de registrar, a
definição do próprio sentido e alcance dos enunciados normativos
nesses casos depende de escolhas entre valores e opções políticas
em confronto, todos refletidos de forma mais ou menos intensa no
sistema constitucional. Ocorre que, em geral, os critérios para essas
escolhas não podem ser extraídos facilmente do texto ou do sistema.
Qual o fundamento para decidir entre eles, então? O critério
teleológico tem pouca utilidade, já que não é possível apurar uma
única finalidade com clareza. Os demais elementos, como o lógico e
o sistemático, igualmente enfrentam problemas: o mesmo texto e o
mesmo sistema fornecem elementos que podem sustentar diferentes
conclusões.”81

81
BARCELLOS, Ana Paula. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: o princípio da
dignidade da pessoa humana. 2. ed. amplamente rev. ampl. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p.
117.

91
Assim, diante da persistência do conflito interpretativo, Ana Paula de

Barcellos, ao advertir para a insuficiência da tradicional hermenêutica, aponta

um caminho alternativo ao trabalho do exegeta jurídico:

“Diante de hipóteses assim, a subsunção é insuficiente e a


ponderação parece ser a única forma de superar o conflito e chegar
a uma decisão. Nada obstante sua inevitabilidade em determinadas
hipóteses, o fato é que a ponderação acaba por conferir ao intérprete
poderes especialmente amplos, mais ainda em um sistema jurídico
rico em princípios que veiculam opções valorativas e políticas, bem
como em cláusulas gerais, e esse é o ponto fundamental aqui. Por
isso mesmo, o emprego da ponderação deve ser reservado para as
hipóteses que realmente a exijam e sua utilização envolverá cautelas
por parte do intérprete, cujas decisões, nesse ambiente, haverão de
ser especialmente motivadas.”82

A ponderação deve considerar dois elementos. O primeiro deles é a

utilidade que se pretende dar à norma interpretada. Ao extraí-la do âmbito

enunciativo (formulação abstrata) para que possa produzir efeitos reais

(concretização), há que se ter em conta a sua instrumentalidade para a

promoção de direitos. Ou seja, a norma não está posta sem um desígnio

mínimo, que lhe garanta a capacidade de ter efetividade, e este não pode ser

olvidado ou desvirtuado no momento da sua interpretação, de modo a reduzir

os efeitos da sua incidência para o fato concreto.

No caso da promoção dos direitos da diversidade sexual, implica

considerar os elementos subjetivos do intérprete, em especial suas ideologias

em torno de questões morais, de modo a revelar a real motivação de seu

82
Idem, 2008, p. 117-8.

92
posicionamento, o que poderá, senão expor razões baseadas em argumentos

preconceituosos (contrariando preceitos jurídicos), abrir a possibilidade do

debate em torno das decisões políticas motivadoras da interpretação realizada.

Implica situar a opção adotada pelo aplicador da norma, permitindo a exclusão

daquelas que contrariem o ordenamento jurídico.

Igualmente, a ponderação deve levar em consideração a finalidade

da norma, asseverando que os princípios constitucionais devem ser

interpretados de modo a assegurar o pleno exercício dos direitos, quiçá a

extensão destes àqueles que estão, infundadamente, à margem da proteção

legal. Assim, o ato de concretizar a norma deve ater-se à função precípua de

produzir efeitos positivos; jamais resultar em redução ou extinção das

garantias.83

Ao lado da técnica de ponderação, deve o exegeta ater-se ao

princípio da razoabilidade, por seus fundamentos e, especialmente, por

emprestar instrumentais teóricos para o exercício de concretização da norma.

Assim, ao prescrever o dever de harmonização do preceito normativo geral ao

caso concreto, a ideia do razoável possibilita o estabelecimento de uma

equivalência entre a decisão política (interpretação) e o seu efeito no mundo

83
Humberto Ávila, ao analisar a ponderação como técnica de interpretação, aponta a
necessidade de dotar este método de critérios formais ou matérias, afirmando que a sua
proximidade com os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade é insuficiente para
dotá-la de suficiente aplicabilidade. Assim, propõe três etapas para “evoluir para uma
ponderação intensamente estruturada”. A primeira seria a preparação para a ponderação,
momento em que devem ser analisados os elementos e argumentos trazidos à seara
interpretativa e sua adequação. A segunda, realização da ponderação, centra-se no exercício
de fundamentar a relação entre os elementos objeto de sopesamento, definindo a primazia
entre um e outro. A terceira, reconstrução da ponderação, em que se estabelecem “regras de
relação, inclusive de primazia entre os elementos objeto de sopesamento, com a pretensão de
validade para além do caso”. (ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à
aplicação dos princípios jurídicos. Cit., p. 132.).

93
concreto, excluindo disparidades injustificáveis, ainda que resulte em

exacerbação do exercício de direitos.84

Ante o ato de interpretação de princípios constitucionais, deve-se ter

em conta que nenhuma norma está posta sem uma carga axiológica

(ideológica) que a sustente. A missão que se impõe, portanto, é adequar o seu

enunciado original às finalidades do conjunto normativo constitucional, tendo

como primeira referência os objetivos fundamentais, dotando-lhe de conteúdo

suficiente para a produção de efeitos positivos. Na ocorrência de persistentes

antinomias, há que se promover uma interpretação ponderada, considerando o

contexto de sua incidência, elementos motivadores das decisões políticas a

preencher o conteúdo da norma e a sua finalidade de promoção de direitos.85

Tratando-se dos direitos da diversidade sexual, não raras vezes os

princípios constitucionais são trazidos à seara política para justificar sua

exclusão ou cerceamento do seu exercício. Embora não se possa afirmar que

tais direitos estejam explicitados no texto constitucional, igualmente não é

possível alegar a sua inexistência. Neste caso, importa asseverar que a

interpretação destes preceitos normativos deve ser antecedida por uma opção

política em favor destes direitos, sem a qual, invariavelmente, o exercício

84
““Relativamente à razoabilidade, dentre tantas acepções, três se destacam. Primeiro, a
razoabilidade é utilizada como diretriz que exige a relação das normas gerais com as
individualidades do caso concreto, quer mostrando sob qual perspectiva a norma deve ser
aplicada, quer indicando em quais hipóteses o caso individual, em virtude de suas
especificidades, deixa de se enquadrar na norma geral. Segundo, a razoabilidade é empregada
como diretriz que exige uma vinculação das normas jurídicas com o mundo a qual elas fazem
referência, seja reclamando a existência de um suporte empírico e adequado a qualquer ato
jurídico, seja demandando uma relação congruente entre a medida adotada e o fim que ela
pretende atingir. Terceiro, a razoabilidade é utilizada como diretriz que exige relação de
equivalência entre duas grandezas.” (Idem, 2006, p. 139.).
85
Ressalta-se que a realização da ponderação entre princípios e regras conflitantes como
forma de definir conteúdo jurídico da norma não exclui a utilização de outras técnicas de
interpretação, a exemplo da interpretação sistemática ou teleológica, o que permanece sendo
salutar para o exercício hermenêutico.

94
hermenêutico tenderá a percorrer apenas os caminhos das ideologias,

afastando-se do contexto jurídico em que se encontra enraizado.

No que se refere aos princípios constitucionais que se aplicam como

vetores interpretativos da norma geral a fim de possibilitar a concretização dos

direitos da diversidade sexual, apontam-se como específicos (1) o princípio da

dignidade da pessoa humana, (2) o princípio da igualdade, (3) o princípio da

liberdade e autonomia da vontade, (4) direito à cidadania e (5) o princípio da

laicidade estatal. A fim de analisar o exposto, tomemos como elemento de

estudo o princípio da igualdade.

O legislador constituinte de 1988 asseverou a ideia de igualdade

como princípio motriz da Carta Política, elevando-a à igual condição de direito.

Neste sentido, está expressamente citado no preâmbulo, servindo como

primeiro referencial valorativo a guiar a concretização da Constituição. Em

seguida, está inserido no texto do art. 3°, incisos III (erradicar a pobreza e a

marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais) e IV (promover

o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e

quaisquer outras formas de discriminação).

Por sua vez, o art. 5º mereceu especial atenção do legislador

originário, posto inaugurar o capítulo dos direitos e garantias fundamentais

apresentando o clássico enunciado da igualdade formal (todos são iguais

perante a lei), seguido da positivação do ideal de tratamento igualitário na

qualidade de direito (garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros

residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à

igualdade...). Asseverando o ideal já então afirmado e reafirmado, inscreve no

inciso I do artigo 5º a primazia da igualdade ao afirmar que homens e mulheres

95
são iguais em direitos e obrigações. De resto, ao longo de todo o texto

constitucional o referido princípio/direito é utilizado para a construção de

institutos jurídicos, estabelecimento de regras de convivência, imposição aos

poderes do Estado, servindo-se de referencial para a elaboração de leis e

interpretação dos comandos normativos, espraiando-se por todas as matérias

tornadas normas supremas.

O legislador originário não apenas afirmou a igualdade como

verdadeiro princípio/direito constitucional, como quis eliminar quaisquer dúvidas

acerca de sua eficácia, evitando intencionadas tentativas de reduzir sua

importância jurídica. A igualdade, ao lado da dignidade da pessoa humana, é

um alto e uníssono grito que ecoa por toda estrutura jurídico-política do Estado

brasileiro, impondo-se sobre princípios e regras constitucionais, irradiando sua

força normativa para todo o ordenamento infraconstitucional.

A Constituição Federal incorporou a ideia de igualdade em suas

diferentes expressões, sendo todas complementares entre si: igualdade formal

e igualdade material. Assimilou, destarte, não apenas a construção jurídico-

conceitual, como incorporou as contribuições que a evolução histórica

proporcionou à ideia de tratamento igualitário de todos nas relações vertical

(estabelecida entre Estado e sociedade) e horizontal (instituída entre cidadãos

integrantes de uma mesma comunidade política).

2.4.2. EVOLUÇÃO HISTÓRICA: DA IGUALDADE À DIFERENÇA

A luta histórica contra os privilégios reinantes nas sociedades

medievais, que beneficiava uma minoria, especificamente a monarquia,

96
nobreza e Igreja, bem como a grave situação econômica que o restante da

população, aliada ao arbítrio do Governo sobre os cidadãos na imposição de

deveres e subtração de direitos, fez crescer inquietações e desejos de

transformações, só possíveis mediante ações equivalentes ao poder do

Soberano.86 Incentivados por ideais de justiça, liberdade e igualdade, os povos

assimilaram a possibilidade de impulsionar pelas próprias mãos as radicais

transformações sociais, ainda que a custo de muitas vidas. Vida e morte

deixaram de ser antagônicos, tornando-se fatos quase sinônimos, dada a

realidade de extrema penúria vivida.87

Frente à força do Absolutismo, a saída possível era

demasiadamente drástica, ainda que não houvesse alternativa suficiente para

suplantar o império do arbítrio. Triunfantes, os movimentos revolucionários dos

86
“Ao lado da crise fiscal, estopim da de governabilidade, uma grave crise econômico-social se
abatia sobre o país. Invernos rigorosos e verões especialmente chuvosos ocasionaram
péssimas safras em 1788 e 1789, fazendo os preços dos gêneros agrícolas e de seus
subprodutos dispararem, especialmente o do pão, fundamental na alimentação do povo.
Açambarcadores e especuladores tiraram partido do salto da inflação. Além disso, a
superioridade inglesa na concorrência pela oferta de produtos têxteis também estancou a
atividade desse ramo das manufaturas francesas, gerando prejuízos e desemprego. Multidões
de miseráveis perambulavam pelas cidades e pela zona rural, buscando sobrevivência na
mendicância ou extravasando seu ódio aos privilegiados mediante saques e atentados contra
senhores rurais, ou dedicando-se simplesmente à delinqüência. Até a média burguesia
ressentia-se amargamente da deterioração de seus meios de vida, especialmente porque, já
havia algum tempo, nobres que vinham perdendo rendas, ou que se encontravam mesmo em
vias de empobrecimento, valeram-se de seus privilégios ‘de sangue’ e conseguiram impor ao
rei o retorno da exclusividade aristocrática sobre os cargos públicos mais vantajosos. A quase
totalidade dos plebeus foi expulsa dos graus mais cobiçados da hierarquia da administração.
No exército isso era causa de grande descontentamento, pois, desde um edito real de 1781, o
acesso às patentes de oficial ficou restrito exclusivamente aos nobres "de espada" e, assim
mesmo, se possuíssem ‘três graus de nobreza’. Assim, começaram a brotar, principalmente
dos estratos intermediários do terceiro estado, ardorosos agitadores políticos imbuídos de
idéias iluministas.” (TRINDADE, José Damião de Lima. História social dos direitos humanos.
São Paulo: Peirópolis, 2002, p. 45-6.).
87
“Em verdade, o povo-símbolo, se não foi criação do Idealismo burguês do século XVIII, foi,
com certeza, herança do Jusnaturalismo. Grandiosa herança, em vários sentidos! Mormente
por fazer-se ele mola e impulso de ações revolucionárias que alteraram profundamente a
substância e o caráter do Estado Moderno, tendo por epílogo a passagem do Absolutismo ao
Constitucionalismo (...) Quando o povo incorpora a alma da Nação, toma consciência do
destino, proclama os elementos espirituais da identidade ou se revela nas qualidades morais e
nas virtudes associativas da cidadania, esse povo é imortal.” (BONAVIDES, Paulo. Teoria do
estado. 5. ed. rev. ampl. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 35.).

97
séculos XVII e XVIII impulsionaram a formação de uma nova organização

política, centrada na garantia de direitos e separação de poderes, dita Estado

de Direito. Consagravam-se, ademais, as liberdades individuais como valores

supremos, impondo-se com força sobre os Poderes então constituídos. Ao

absolutismo da monarquia se opôs o absolutismo da individualidade.88

No contexto das lutas pelas liberdades individuais, o antídoto ao

poder absoluto que assegurava aos reis a imposição da sua vontade como

autêntica expressão do direito foi asseverar a legitimidade das normas

jurídicas, inscrevendo-as em códigos ou Constituições. Afirmava-se, deste

modo, o princípio da legalidade como critério de aferição da validade dos

postulados jurídicos, impondo o primado da lei como expressão das vontades

governativas. Neste particular reside um fator que caracterizará a construção

do conceito de igualdade, posto que, centrada no prisma da estrita legalidade,

a ideia do tratamento igualitário foi circunscrita nos herméticos moldes traçados

pelo legislador.

“A idéia de Estado de Direito, nesta conjuntura, foi desenvolvida


tendo como dimensão especialmente importante a racionalização do
Estado, identificada com os seus elementos formal-instrumentais,
principalmente o princípio da legalidade da Administração e da
justiça administrativa. A subordinação do Estado ao Direito passou,
assim, gradativamente, a ser concebida como submissão à
legalidade, o princípio da legalidade, outrora garantia da liberdade e
dos valores burgueses, assumiu a função de legitimador da atividade

88
“Para assegurar tais condições na forma de valores jurídicos superiores, no processo
histórico de constituição e evolução do Estado definido pela soberania, principiou e ainda se
processa a declaração de direitos perante o soberano. Em 1789, esses valores são a liberdade
e a propriedade. (...) Sobretudo, a liberdade. (...) Este, o valor jurídico superior que enformou a
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão na França.” (BARROS, Sérgio Resende de.
Direitos Humanos: paradoxo da civilização. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 363.).

98
estatal; abandonava, deste modo, elementos materiais – outrora
explícitos ou implícitos – para configurar um esquema formal
abstrato, vazio em si mesmo de conteúdo.”89

Nestes traços, delineados pela legalidade, a ideia de tratamento

igualitário assume contornos eminentemente formais, ou seja, adstritos à

própria norma posta, vinculando a noção de igualdade à dimensão

estabelecida pela lei. Trata-se, destarte, da igualdade prostrada à lei.

“A Lei não deve ser fonte de privilégios ou perseguições, mas


instrumento regulador da vida social que necessita tratar
eqüitativamente todos os cidadãos. Este é o conteúdo político-
ideológico absorvido pelo princípio da isonomia e juridicizado pelos
textos constitucionais em geral, ou de todo modo assimilado pelos
sistemas normativos vigentes. Em suma: dúvida não padece que, ao
cumprir uma lei, todos os abrangidos por ela hão de receber
tratamento parificado, sendo certo, ainda, que ao próprio ditame legal
é interdito deferir disciplinas diversas para situações equivalentes.”90

Imperioso afirmar que a igualdade formal, contextualizada no tempo

histórico da sua formulação, donde exerceu forte influência na gestação das

organizações políticas de então, ainda possui singular importância. Trata-se,

outrossim, de imposição àquele que cria a legislação, seu primeiro destinatário,

impondo o dever de tratamento igualitário no ato de elaboração da norma, sem

que sejam criadas discriminações fundadas em privilégios ou acossamentos.

89
RIOS, Roger Raupp. O princípio da igualdade e a discriminação por orientação sexual:
a homossexualidade no direito brasileiro e norte-americano. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2002, p. 34.
90
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Conteúdo jurídico do princípio da igualdade. 3. ed.
11. tir. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 10.

99
O conteúdo do princípio da igualdade no seu aspecto formal impõe-

se àqueles que aplicam a norma, concretizando seus desígnios. Importa dizer

que o intérprete, segundo destinatário, não está autorizado, a partir da mera

formulação genérica da lei, proceder ao preenchimento do seu conteúdo

estabelecendo diferenciações de qualquer natureza. O imperativo que obriga o

legislador deve vincular a produção da norma e sua incidência no caso

concreto com igual força principiológica.

Sendo a lei, por excelência, abstrata e genérica, o sujeito diante da

concepção formalista do princípio da igualdade é, do mesmo modo, concebido

de forma geral, sem que sejam observados elementos que o singularizem, o

individualizem. A igualdade formal mantém-se acima e distante dos sujeitos.

“Neste contexto, o imperativo da igualdade exige igual aplicação


da mesma lei a todos endereçada. Disto decorre que a norma
jurídica deve tratar de modo igual pessoas e situações diversas, uma
vez que os destinatários do comando legal são vistos de modo
universalizado e abstrato, despido de suas diferenças e
particularidades. O resultado que daí advém é a regulação igual de
situações subjetivas e objetivas desiguais: eis a aplicação formal da
igualdade, contrariando materialmente a consagrada máxima
segundo a qual ser justo é tratar igualmente os iguais e
desigualmente os desiguais na medida de suas desigualdades.
Trata-se, como dito, dos efeitos de uma aplicação formal do princípio
da igualdade, porquanto visualizados os destinatários da regra
jurídica abstratamente, desligados de sua individualidade e de sua
concretude histórica.” 91

91
RIOS, Roger Raupp. O princípio da igualdade e a discriminação por orientação sexual:
a homossexualidade no direito brasileiro e norte-americano. Cit., p. 41.

100
Há casos em que o próprio direito reconhece diferenciações entre as

pessoas, servindo isto para o estabelecimento de critérios estritamente

objetivos a fim de definir prerrogativas para o exercício de direitos. Todavia,

importa afirmar que a elaboração legislativa não leva em consideração

elementos subjetivos a guiar sua atuação; reitera-se tratar de critérios

analíticos, autorizando apenas distinções que não desuniformizem os sujeitos.

Neste particular, as diferenciações isonômicas de tratamentos entre os

cidadãos devem permanecer adstritas ao âmbito prescrito pela própria norma.

“(...) qualquer elemento residente nas coisas, pessoas ou situações,


pode ser escolhido pela lei como fator discriminatório, donde se
segue que, de regra, não é o traço de diferenciação escolhido que se
deve buscar algum desacato ao princípio isonômico. (...) as
distinções são recebidas como compatíveis com a cláusula igualitária
apenas e tão-somente quando existe um vínculo de correlação lógica
entre a peculiaridade diferencial acolhida por residente no objeto, e a
desigualdade de tratamento em dela conferida, desde que tal
correlação não seja incompatível com interesses prestigiados na
Constituição.”92

Da afirmação de que quaisquer distinções na construção ou

aplicação da norma devem estar expressamente autorizadas pela legislação

decorre o reconhecimento do princípio da proibição de discriminações. Trata-se

de um reforço axiológico ao próprio princípio da igualdade, uma vez que, ao

reconhecer a necessidade de subjetivar determinados preceitos normativos, o

fez em limites que impeçam a instituição de discriminações infundadas.

Destarte, importa reconhecer que tanto a produção da lei abstrata dedicada a

92
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Conteúdo jurídico do princípio da igualdade. Cit., p.
17.

101
estabelecer tratamento igualitário aos seus destinatários, quanto a elaboração

de exceções genéricas se deve vincular à noção formalista de igualdade,

restrita ao âmbito normativo a concepção jurídica do sujeito de direito.93

“Desdobramentos concretos de diversas dimensões da vida em


sociedade de indivíduos e de grupos, tais critérios proibidos de
diferenciação são exigências inarredáveis do aspecto formal do
princípio da igualdade. Esta vedação da utilização de certos critérios
de discriminação insere, ao lado do princípio geral de igualdade,
direitos de igualdades especiais. Eles determinam o exercício dos
mesmos direitos por aqueles protegidos pelas proibições de
diferenciação, ao mesmo tempo que impedem prejuízos ou
privilégios motivados nestes critérios.”94

Mas a vida é real e de viés e o ser humano, dinâmico e igualmente

complexo, se concretiza para além de quaisquer limites que a norma jurídica

possa intentar criar. É sujeito de sua própria história, detentor das linhas que

compõem o seu próprio destino. Constitui-se de elementos singulares, o que o

faz absolutamente único – embora possa ser identificado por um vínculo

jurídico que o insere ao coletivo: ser pessoa. E por esta mesma razão, pessoa

e sujeito se fundem na construção de indivíduos absolutamente distintos e

juridicamente iguais.

93
Roger Raupp Rios, ao tratar do princípio geral da não-discriminação, reconhece sua
incorporação ao texto da Constituição: “Dado que a formulação meramente abstrata do
princípio da igualdade não foi capaz de contornar as desigualdades conscretas, gerando
tratamentos desiguais incompatíveis com a universalidade da regra de direito, foi necessária a
expressa poribição pelo ordenamento jurídico da adoção de certos critérios de diferenciação,
como reza o art. 3º, IV, da Constituição da República de 1988.” (RIOS, Roger Raupp. O
princípio da igualdade e a discriminação por orientação sexual: a homossexualidade no
direito brasileiro e norte-americano. Cit., p. 44.) Igual entendimento está expressado em outra
obra de sua autoria, donde reforça a opção do legislador constituinte em reconhecer o princípio
da igualdade dentro dos marcos da proibição de discriminação. (RIOS, Roger Raupp. A
homossexualidade no direito. Cit., p. 71.).
94
RIOS, Roger Raupp. O princípio da igualdade e a discriminação por orientação sexual:
a homossexualidade no direito brasileiro e norte-americano. Cit., p. 45.

102
A percepção das diferenças que tornam singular cada indivíduo não

é causa para a extinção (ou relativização) do princípio da igualdade. Por seu

absoluto oposto, pelo processo contínuo de construção da história o Direito

reconheceu a necessidade de se atrelar ao conteúdo formalista do princípio

uma dimensão axiológica, capaz de reconhecer a igualdade a partir das

diferenças e as diferenças a partir da igualdade.

Enquanto a afirmação das liberdades individuais assegurou pleno

apogeu à classe que, vitoriosa, assimilou em suas mãos o poder econômico

(que já detinha) e o poder político (conquistado por canhões e baionetas),

associando-os para nunca mais separá-los, a prosperidade experimentada no

começo do século XIX foi acompanhada pelo surgimento de uma categoria

social identificada pelo vínculo do trabalho. Ao tempo que a burguesia gozava

da estabilidade política advinda com a instituição do Estado (e seus diplomas

jurídicos), impulsionava a produção das riquezas sob o marco da

industrialização da mão-de-obra e estabelecimento de um modelo econômico

apto a garantir acumulação de fortunas.

Por outro lado, a classe nascente dos processos revolucionários

permanecia em situação de extrema miserabilidade, pois tendo servido às

causas revolucionárias, agora se incorporava à indústria como elemento

essencial para fazer mover a máquina, sem que pudesse desfrutar dos

benefícios outrora conquistados pelas espadas que empunharam, sendo

reservados vexatórios salários. Não eram reconhecidos como sujeitos de

plenos direitos.

“Os liberais haviam-se tornado cada vez mais conservadores nesse


campo: detiveram a caminhada dos direitos humanos no patamar da

103
primeira fase da Revolução Francesa porque, de fato, isso lhes
bastava. A liberdade conquistada estava quase na medida de suas
conveniências, isto é, liberdade econômica para os empresários e
liberdade de assalariamento para os trabalhadores. (...) Quanto à
igualdade, esta, sim, estava no ponto certo: igualdade perante a lei –
nada mais. O fim dos privilégios legais de nascimento era o suficiente
para os que defendiam muito bem os novos privilégios da fortuna.”95

O antagonismo entre a burguesia e o proletariado, centrado na

relação capital versus trabalho, representou impulso determinante para a ação

dos trabalhadores em favor do exercício de seus direitos. Frustrados das

expectativas geradas em torno das revoluções liberais, identificaram-se como

categoria social capaz de se unir em torno de interesses comuns. À

reivindicação por liberdades, somava-se a luta pelo reconhecimento de direitos

gerais, ditos coletivos, pugnando por elevar a emergente classe à condição de

uma efetiva igualdade de direitos (especialmente, direitos econômicos).

“De certa forma, essa situação nova criou condições para que
começasse a ser levantada a ponta do véu: o discurso dos direitos
humanos, de plataforma generosa e universal, como a burguesia o
apresentara quando necessitara mobilizar o entusiasmo e a energia
do povo, muito rapidamente se convertera em ideologia legitimadora
de uma nova dominação social. À medida que passara de
revolucionária a conservadora, a burguesia impusera, desde o triunfo
de 1789, sua versão de classe dos direitos humanos. Essa versão
embutia a contradição óbvia entre liberdade (burguesa) e igualdade,
conferindo aos direitos humanos a função social de preservação do
novo domínio. Não tardaria que isso fosse percebido e formulado no
plano conceitual. Mas, primeiramente, essa inquietação se
manifestou no terreno da prática social: de modo confuso, movidos

95
TRINDADE, José Damião de Lima. História social dos direitos humanos. Cit., p. 115.

104
mais pelo desespero do que por uma consciência socialmente
organizada, o proletariado emerge da Revolução Industrial e as
camadas sociais que lhe eram próximas começaram a engendrar
caminhos próprios de autodefesa.”96

A luta pelo reconhecimento de identidade e, por consequência, de

seus direitos inerentes, fez com que, no plano formal, fossem assegurados

direitos coletivos, ditos econômicos, sociais e culturais. Ao lado do ideal de

liberdade, somava-se o anseio por efetiva igualdade. Sua mera enunciação nos

textos jurídicos, que, em certo sentido, garantia a tentativa de tratamento

igualitário a todos, não foi suficiente para estabelecer a equidade das

condições sociais. As diferenças econômicas apontaram para a necessidade

de elevar à condição de iguais os desiguais, inspirando nova formulação ao

tratamento isonômico pelo Direito. Configurou-se outro conteúdo ao princípio

da igualdade, dotando-o de efetiva capacidade/possibilidade de operar no

mundo factual de modo a reconhecer diferenças e, por/para elas, assegurar

direitos.

A inspiração advinda das lutas nascidas do século XIX somou a

dimensão formal do princípio da igualdade um conteúdo material, centrado no

reconhecimento das diferenças como elemento causador de desigualdades.

Contra essas diferenciações, o Direito passou a ser tomado de forma

instrumental, assegurando igualdade na lei. A complexidade e multiplicidade da

natureza humana, constituídas no âmbito do tempo e espaço em que se

inserem são, doravante, tomadas como critérios a guiar elaboração e,

especialmente, aplicação da norma jurídica.

96
Idem, 2002, p. 117.

105
“Dito de outro modo, a igualdade na lei, ao atentar para as
inúmeras e multifacetadas diferenças existentes entre as
pessoas e situações, objetiva reconhecê-las e a elas empregar
desigual consideração jurídica na proporção destas distinções.
Para a obtenção deste resultado precisa-se, assim, perceber
aquilo que equipara ou diferencia uns dos outros. É necessário,
portanto, identificar as semelhanças e diferenças, adentrar no
conteúdo, naquilo que se considera relevante (ou não) para fins
de equiparação ou diferenciação. Avançar neste rumo exige
vencer a abstração formal sob a qual se forjou a igualdade
perante a lei.”97

Importa afirmar que o princípio da igualdade, na sua dimensão

material, garante tratamento igualitário àqueles em igual situação jurídica, ao

tempo que assegura tratamento desigual aos que, por circunstâncias

específicas, encontram-se em condição juridicamente diferenciada. Tem como

escopo central que as diferenças não sejam elementos que autorizem ou

fundamentem desigualdades no âmbito jurídico.

“Temos o direito a ser iguais quando a nossa diferença nos


inferioriza; e temos o direito a ser diferentes quando a nossa
igualdade nos descaracteriza. Daí a necessidade de uma igualdade
que reconheça as diferenças e de uma diferença que não produza,
alimente ou reproduza as desigualdades.”98

O reconhecimento das desigualdades como critério para

estabelecimento de equiparações ou diferenciações de tratamento jurídico

97
RIOS, Roger Raupp. O princípio da igualdade e a discriminação por orientação sexual:
a homossexualidade no direito brasileiro e norte-americano. Cit., p. 48-9.
98
SANTOS, Boaventura de Sousa. Reconhecer para libertar: os caminhos do
cosmopolitanismo multicultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. Introdução: para
ampliar o cânone do reconhecimento, da diferença e da igualdade, p.56.

106
situa-se num tempo determinado. Importa afirmar que diferenças e igualdades

são conceitos abertos, cuja construção de sua substância dependerá da

realidade fática em que se insere a Constituição e postulados normativos

inferiores. Invariavelmente, a elaboração deste conteúdo requer a tomada de

uma decisão política, antes que jurídica, que obriga sua fundamentação. Trata-

se da formulação de um juízo valorativo do elemento, sem a qual não se

podem sustentar critérios de material igualdade. Ainda que o exercício

argumentativo que fundamenta racionalmente os juízos de igualdade e

desigualdade possa ser livre, o mesmo deve estar limitado pelos direitos e

objetivos fundamentais, cuja inobservância resulta em invalidação de eventuais

medidas adotadas a partir daquele critério. Tal assertiva é válida e impositiva

tanto para o legislador quanto para o intérprete da norma.99

Norberto Bobbio aponta que as escolhas que fundamentam

tratamento jurídico diferenciado, a partir de distintas convicções em torno do

conceito da igualdade, é consequência de uma opção ética:

“(...) Perfeitamente antitética é a operação mental que está na base


das doutrinas liberais, as quais tendem a colocar em evidência não
aquilo que os homens têm em comum, enquanto homens, mas aquilo
que têm de diferente, enquanto indivíduos. Não preciso acrescentar
que ambas as operações mentais são guiadas por escolhas de valor.
De fato, é verdade tanto que os homens são iguais, por exemplo,
diante da morte, característica do genus, quanto que todos os

99
Acerca da necessidade de fundamentação da decisão que estabelece ou não diferenciações
de tratamento jurídico, baseadas no princípio da igualdade, assim pondera Roger Raupp Rios:
“Desta maneira formuladas, a norma de tratamento igual e a norma de tratamento desigual
distanciam-se na medida em que a desigualdade de tratamento exige uma fundamentação
para se impor, ao passo que o mandato de igualdade de tratamento se satisfaz com a simples
inexistência de uma fundamentação que permita uma diferenciação. Em princípio, portanto,
está exigido um tratamento igual, sendo permitido um tratamento desigual se e somente se for
possível justificá-lo.” (RIOS, Roger Raupp. A homossexualidade no direito. Cit., p. 77.).

107
homens são diferentes, por exemplo com relação ao próprio destino,
característica do indivíduo: razão pela qual, se é verdade que todos
os homens morrem, é igualmente verdade que todos os homens
morrem de diferentes modos. É claro que partir de certos fatos e não
de outros, de dados comuns e não dos dados individuais, é a
consequência de uma opção ética.”100

A pessoa desenvolve-se a partir da interação de elementos sociais

(externos) e subjetivos, conjugando desejos, possibilidades e potencialidades.

A construção deste indivíduo, enquanto sujeito de direitos, é assegurada pelo

reconhecimento do direito à individualidade, cuja elaboração é possibilitada a

partir de sua experimentação humana. Por outro lado, a expressão de

características próprias, construídas no âmbito do convívio social ou privado, é

um elemento que o torna singular, permitindo diferenciação dos demais. A

singularidade é decorrente do exercício do direito à identidade.

A incorporação dos conteúdos formal e material do princípio da

igualdade no âmbito normativo constitucional enseja o delineamento de um

direito que assegure o reconhecimento das diversidades humanas, protegendo

juridicamente individualidades e identidades: o direito à diferença.

O esforço empregado para que a igualdade seja uma aspiração

fundamental na concretização do direito, ainda que se reconheçam

desigualdades e a estas sejam assegurados tratamentos desiguais, não resulta

na negação das diferenças. Ou seja, ao elevar, em termos jurídicos, a

diferença à condição de igualdade, não se está condicionando tal feito à

negação do elemento que a gerou.

100
BOBBIO, Norberto. Teoria geral da política. Organizado por Michelangelo Bovero.
Tradução de Daniela Beccaccia Versiani. 15. reimp. Rio de Janeiro: Elsevier, 2000, p.305-6.

108
O direito à diferença é, portanto, anterior e pressuposto à

concretização do princípio da igualdade nas suas dimensões formal e material.

Assim, ao tempo que as diferenças humanas não podem servir como

fundamento para tratamentos injustificadamente desiguais, elas devem ser

preservadas, uma vez que, integrantes da personalidade humana, tornam-se

essenciais para a realização plena dos direitos fundamentais.

O centro gravitacional de todo sistema jurídico é composto pelos

direitos fundamentais, em torno dos quais gravitam regras constitucionais,

dispositivos legais infraconstitucionais, legisladores e intérpretes da norma. A

fim de guiar a elaboração e concretização destes direitos, estão postos

princípios constitucionais fundamentais, a amalgamar as relações

estabelecidas no ordenamento jurídico. O ideal que preenche o conteúdo da

diferença e da igualdade só se concretizará mediante a deliberada salvaguarda

das diferenças, assegurando a todos o pleno gozo dos seus direitos mais

elementares.

Na medida em que a sexualidade é um componente intrínseco da

personalidade humana, cuja vivência a transforma em elemento constituinte da

identidade dos sujeitos, passa a integrar o rol dos direitos da personalidade,

sendo estendida a tutela jurídico-constitucional, qualificando-a como autêntico

direito fundamental. Ancorado no respeito à diferença e na concepção material

de igualdade, concebidos como critérios que definem garantias jurídicas, é

plenamente possível afirmar que a diversidade sexual está materialmente

inserida no âmbito da Constituição Federal, sendo por ela protegida, defendida

e promovida.

109
Uma vez reconhecida a diversidade sexual como integrada no

âmbito normativo-constitucional, os direitos dela decorrentes possuem igual

fundamentalidade àqueles inseridos no corpo do art. 5º. Deve, pois, gozar de

todas as prerrogativas asseguradas aos demais direitos fundamentais e,

sobretudo, impor-se com força normativa suficiente para orientar a

concretização das regras atinentes à sexualidade, vinculando nesta tarefa

legislador e intérprete.

2.4.3. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E RECONHECIMENTO DOS


DIREITOS DA DIVERSIDADE SEXUAL

O surgimento do Estado foi a consequência imediata dos processos

revolucionários dos séculos XVII e XVIII, destinados a transformar radicalmente

as estruturas do poder político, afastando o império do arbítrio na condução

dos governos e, ao mesmo tempo, uma necessidade histórica gestada pela

urgência em salvaguardar os direitos individuais, impondo contenção ao

absolutismo do soberano sobre os demais. Por um lado, a nova ordem deu-se

com a edificação de três distintos poderes, independentes e harmônicos entre

si. Por outro, a garantia do exercício de direitos fundamentais estava em

inscrevê-los em estatutos jurídicos cuja observância era obrigatória a todos,

vinculando indistintamente a sociedade aos seus postulados.

A primazia da ordem estava atribuída à lei. A legislação passou a

gozar de amplos poderes, concentrados nas mãos dos que detinham a função

precípua de elaboração da norma. Não tardou para que o Poder Legislativo

passasse a operar o jogo político com mais força e poder decisório que os

110
demais, colocando em risco a novel estrutura política, agora ameaçada por

outra tirania: no lugar dos reis absolutistas, os legisladores.101

Esta realidade, construída no processo de amadurecimento do

Estado, ameaçaria devolver a sociedade à condição outrora já superada,

indesejada, sendo forçoso encontrar uma saída que restabelecesse o equilíbrio

das instituições públicas e preservasse os ideais norteadores das revoluções. A

solução foi fundar o Estado, sua disciplina, e declarar direitos em um estatuto

jurídico superior, dotado de características próprias que o diferenciasse dos

demais diplomas legais (supremacia e rigidez): a Constituição.

“O modelo de Estado ‘legalista’ entrava em crise e a lei perdia a


exclusividade e primeira posição na lista de preferências normativas.
(...) O abuso praticado pela lei (pelo legislador) foi responsável pela
mudança do modelo ‘legalista’. Esse abuso, em boa parte, decorria
do excesso de leis na regulamentação da vida social, de sua
indesejada intromissão em setores anteriormente ressalvados, do
emaranhado e dispersividade das leis, gerando a insegurança, bem
como a falência qualitativa verificada como constante nas leis (...)
Com a inauguração das constituições contemporâneas e a
admissibilidade de sua força normativa opera-se uma ‘revolução’
dentro da ‘revolução’, ou seja, identifica-se uma nova mudança de
parâmetros. (...) Opera-se, com isso, uma alteração substancial
também na relação entre os clássicos ‘poderes’, na medida em que o
legislador deixa de ser apresentado como onipotente e soberano. (...)
A Constituição será, doravante, fonte do Direito (constitucional) e

101
“Em contexto no qual tudo dependia da vontade última da lei (formal), o Estado (e quem o
representava) pôde diminuir o impacto revolucionário e constitucional inicialmente traçado (de
nítido conteúdo material). apesar das declarações vivamente proclamadas, apenas a lei
poderia conferir eficácia jurídica aos direitos almejados. Pelo domínio da lei foi possível, assim,
dominar os direitos, embora algumas ocorrências isoladas tenham desconfirmado esse
postulado.” (TAVARES, André Ramos. Teoria da justiça constitucional. São Paulo: Saraiva,
2005, p. 42.).

111
também conjunto normativo que disciplina as demais fontes do
Direito.”102

A Constituição é tida como instrumento adequado para estabelecer

as ordens do novo regime político, como guardiã dos bens jurídicos mais

importantes da cidadania, revelados por princípios e regras fundamentais de

intrínseca rigidez. Estando acima dos demais diplomas legais, torna-se

referencial único e obrigatório para a produção do Direito, sendo portadora de

suficiente legitimidade compor o ordenamento jurídico e impor seus postulados

independentemente das vontades sociais, variáveis a partir dos valores

estabelecidos em um dado momento e espaço.

A defesa do Estado constitucional que, em última análise, é o

enfrentamento pela preservação dos direitos fundamentais, ocorre no campo

da proteção à Constituição. Para tanto, contra as intempéries políticas e

vicissitudes das conveniências sociais (de ordem econômica, moral, religiosa,

por exemplo), é a própria Carta que estabelece seus mecanismos de proteção,

limitando a atuação do legislador e do intérprete, tais como a instituição do

controle de constitucionalidade de normas gerais.

Não obstante os mecanismos de controle por ela erigidos, a

Constituição atribui o papel de traduzi-la definitivamente (ditar a última palavra)

a um órgão específico, com isenção suficiente para concretizar seus

postulados. Ainda que o dever de observância das normas se imponha a todos

os Poderes e a sociedade, a guarda dos interesses constitucionais, revelados

por meio dos preceitos normativos superiores, bem como a implementação da

102
Idem, 2005, p. 42-3, 45.

112
vontade da Constituição, competirá a um órgão com esta exclusiva missão: a

Corte Constitucional.

“A função política da Constituição é estabelecer limites jurídicos ao


exercício do poder. Garantia da Constituição significa a segurança de
que tais limites não serão ultrapassados. Se algo é indubitável é que
nenhuma instância é tão pouco idônea para tal função quanto
justamente aquela a quem a Constituição confia – na totalidade ou
em parte – o exercício do poder e que portanto possui,
primordialmente, a oportunidade jurídica e o estímulo político para
vulnerá-la. Lembre-se que nenhum outro princípio técnico-jurídico é
tão unânime quanto este: ninguém pode ser juiz em causa
própria.”103

No caso brasileiro, a Constituição Federal de 1988 foi límpida ao

confiar a missão de seu guardião ao Supremo Tribunal Federal. A atuação da

Corte Constitucional tem sido pautada pela capacidade de manter o tênue

equilíbrio entre o jurídico e o político, necessário ao amadurecimento da

democracia. Enquanto pilar da República, exaltada pela atual Carta Política,

que lhe devotou importância jamais outorgada, tem conseguido cumprir a

missão de defender o sistema jurídico-constitucional e tornar concreta

possibilidade de exercício dos direitos fundamentais.

A atuação do Supremo Tribunal Federal tem se pautado pela lógica

da prevalência da Constituição em face das opiniões eventualmente

majoritárias, especialmente quando os temas que são objetos de análise

afastam-se da seara jurídica (sem dela se desligar), aproximando-se de

desacordos morais. Nos últimos anos, diversos temas polêmicos, sob o ponto

103
KELSEN, Hans. Jurisdição constitucional. Introdução de Sérgio Sérvulo da Cunha. São
Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 240. (Justiça e direito).

113
de vista das opiniões públicas, foram apresentados à apreciação da Corte,

gerando profundos debates. Ao lado das questões jurídicas, situava-se o

debate em torno do modelo de sociedade e democracia que se pretende

construir no País sob o marco do constitucionalismo instaurado a partir de

1988.104

Dos temas levados à análise da Corte Constitucional, destaca-se a

ADI 4277/DF. Por iniciativa da Procuradoria Geral da República, o Supremo

Tribunal Federal analisou a inconstitucionalidade da interpretação do art. 1723,

do Código Civil brasileiro, assegurando o reconhecimento das uniões

homoafetivas como entidades familiares, assegurando-lhes iguais direitos às

uniões estáveis constituídas por casais heterossexuais. Após cumprido o ritual

processual ordinário, em 4 e 5 de maio de 2011, técnica de “interpretação

conforme à Constituição”, por unanimidade, os Ministros excluíram do

dispositivo em questão qualquer significado que impeça o reconhecimento da

união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como

104
Dentre as discussões envolvendo temas afetos à desacordo moral razoável ocorridas no
âmbito do Supremo Tribunal Federal, destacam-se três cuja centralidade da análise versava
sobre direitos fundamentais e princípios constitucionais: ADI 3510/DF – Ação Direta de
Inconstitucionalidade proposta pela Procuradoria Geral da República em que questionava
eventual violação ao direito à vida do art. 5º, da Lei 11.105, de 24 de março de 2005 – Lei de
Biossegurança, pela utilização de células-tronco embrionárias em pesquisas científicas para
fins terapêuticos. Entendeu o Supremo Tribunal Federal pela constitucionalidade do referido
artigo; ADPF 54/DF – Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental impetrada pela
Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde – CNTS que intentava declarar como
inconstitucional a interpretação que qualificava a interrupção da gravidez de feto anencéfalo
como conduta tipificada nos artigos 124, 126 e 128, incisos I e II, do Código Penal. Centrado na
discussão sobre laicidade estatal, direitos reprodutivos, liberdade sexual, dentre outros, o
Supremo Tribunal Federal, em sua maioria, afastou a referida interpretação, por entender que a
prática abortiva em comento não violava o direito à vida, não se configurando como uma
conduta criminosa; ADPF 186/DF – Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental
proposta pelo Partido Democratas que alegava que o sistema de cotas étnico-raciais para
ingresso de estudantes adotado pela Universidade de Brasília feria preceitos constitucionais,
em especial os princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade. Por unanimidade,
os Ministros rejeitaram o pedido, afirmando que cabe ao Estado “adentrar no mundo das
relações sociais e corrigir a desigualdade concreta para que a igualdade formal volte a ter o
seu papel benéfico”, nas palavras da Ministra Rosa Weber. Além da importância da discussão
em questão, este julgamento tornou-se emblemático na história do STF por ter proporcionado a
realização da primeira audiência pública em que diversos atores sociais puderam contribuir
para a formação do entendimento da Corte.

114
família, assegurando tratamento jurídico segundo as mesmas regras e

consequências da união estável heteroafetiva.

A Ação Direta de Inconstitucionalidade que discutiu a paridade de

direitos às uniões estáveis formadas por quaisquer vínculos afetivos teve início

com a provocação do Grupo de Trabalho dos Direitos Sexuais e Reprodutivos

da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão que, em parceria com a

Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Transgêneros (ABGLT), Associação

da Parada do Orgulho dos Gays, Lésbicas, Bissexuais e Transgêneros de São

Paulo, Identidade – Grupo de Ação pela Cidadania Homossexual e CORSA –

Cidadania, Orgulho, Respeito, Solidariedade, Amor, entidades da sociedade

civil, representaram o Procurador Geral da República, propondo a iniciativa de

ingresso com uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental com

o fulcro de declarar o reconhecimento da união entre pessoas do mesmo sexo

como entidade familiar e extensão dos direitos de família a estes núcleos

homoafetivos.

A partir da análise da interpretação formulada pela jurisprudência

sobre a extensão do art. 1723, do Código Civil, a representação fundamentou-

se na ofensa à proibição de discriminação e ao princípio da igualdade, ao

princípio da dignidade da pessoa humana e da proteção à segurança jurídica,

ao direito à liberdade. Argumentava, por fim, a inobservância aos métodos

sistemático e teleológico de interpretação da Constituição Federal.

Apresentada em dezembro de 2006, a representação não foi levada adiante,

permanecendo por alguns anos à espera de resposta ou providência.

Somente em 13 de julho de 2009, a Procuradoria Geral da República

deu prosseguimento ao pedido outrora formulado, ingressando com uma

115
Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 178)

objetivando a obrigatoriedade do reconhecimento da união entre pessoas do

mesmo sexo como entidade familiar, estendendo os mesmos direitos

assegurados às demais uniões estáveis. Recebida pelo Supremo Tribunal

Federal, por decisão do Ministro Gilmar Mendes, fundamentada em

pressuposto formal, a Arguição foi, enfim, convertida na Ação Direta de

Inconstitucionalidade 4277.

Os votos dos Ministros do Supremo Tribunal Federal voltaram-se a

afirmar a dignidade da pessoa como matriz interpretativa da Constituição

Federal. Neste sentido, destaca-se o posicionamento do Ministro Celso de

Mello, que asseverou a busca pela felicidade como direito fundamental implícito

no Texto Constitucional. O Ministro Luiz Fux sustentou seu posicionamento no

direito à igualdade, a diferença e a proibição de discriminação. Na qualidade de

relator da matéria, Ministro Ayres Britto asseverou a fundamentalidade dos

direitos à liberdade, privacidade, à intimidade, à autonomia e à auto-

determinação pessoal.

“O reconhecimento do direito à preferência sexual como direta


emanação do princípio da dignidade da pessoa humana: direito a
auto-estima no mais elevado ponto da consciência do indivíduo.
Direito à busca da felicidade. Salto normativo da proibição do
preconceito para a proclamação do direito à liberdade sexual. O
concreto uso da sexualidade faz parte da autonomia da vontade das
pessoas naturais. Empírico uso da sexualidade nos planos da
intimidade e da privacidade constitucionalmente tuteladas”.105

105
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade 4722/DF. União
homoafetiva e seu reconhecimento como instituto jurídico. Acórdão. Relator Ministro Ayres
Britto. Brasília, 05/05/2011. Publicado em 14 de outubro de 2011.

116
Ainda no que tange aos direitos da diversidade sexual, o Supremo

Tribunal Federal, em 2008, por iniciativa do Governador do Estado do Rio de

Janeiro, foi instado a se manifestar acerca de uma Arguição de

Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 132) que propunha a

interpretação dos art. 19, II e V e art. 33, do Decreto-Lei nº 220/1975 (Estatuto

dos Servidores Civis do Estado do Rio de Janeiro) de modo a assegurar igual

tratamento jurídico às uniões homoafetivas, equiparando-as em direitos às

demais uniões estáveis. Alega que o entendimento até então adotado,

excludente de garantias às famílias constituídas por homossexuais, violação ao

princípio da igualdade e da dignidade da pessoa humana, direito à liberdade e

autonomia privada e princípio da segurança jurídica. A iniciativa apensada a

Ação Direta de Constitucionalidade 4277, no entanto, após interposição de

Embargos Declaratórios, foi designado novo relator para prosseguimento no

que tange aos embargos apresentados.

2.5. RAZÃO PÚBLICA E O LÓCUS DA CONQUISTA DE DIREITOS

A interpretação dos princípios constitucionais, tendo como finalidade

o reconhecimento e a realização dos direitos da diversidade sexual, frisa-se,

deve ser precedida por uma escolha política. Neste particular, insere o debate

sobre o lócus de concretização dos direitos.

Ante todo o exposto, é possível afirmar peremptoriamente que a

Constituição Federal de 1988 abarcou os princípios da dignidade da pessoa

humana e da igualdade (sendo este considerado nas suas dimensões formal e

material), assegurando a concretização do direito à diferença. De igual modo, o

117
sistema normativo constitucional, integrado por regras e princípios

fundamentais, cuja finalidade centra-se nos objetivos fundamentais da

República, assegura o pleno gozo dos direitos de cidadania a todos os

cidadãos, aí incluídos lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais. A

Carta Magna passa, portanto, a servir de referencial inicial para a atuação dos

poderes públicos ou da sociedade civil na realização dos direitos da

diversidade sexual.

Considerando a Constituição Federal como o ponto de partida para a

realização dos direitos fundamentais de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e

transexuais, a questão central que se inaugura versa acerca dos espaços de

garantia do exercício dos direitos da diversidade sexual. Entre deliberação e

decisão, a estratégia política de elaboração, defesa e realização destes

direitos se desloca do âmbito do Poder Legislativo para os Poderes Executivo

(stricto sensu) e Judiciário (lato sensu).

A atuação dos Poderes do Estado deve se pautar exclusivamente

pela razão pública, expressa pelos dispositivos legais, em especial os

constantes das declarações de direitos inseridas nas Constituições. Implica

afirmar que a vontade do Estado não se confunde com as vontades dos

agentes estatais, sendo limitada pelos direitos fundamentais.

Para além das subjetividades que integram sujeitos e se expressam

no âmbito do convívio social, há que se preservar a autonomia da/na política,

de modo a prevalecer sobre discursos morais a locução ecoante dos direitos

fundantes da vontade pública. Trata-se, pois, de reconhecer dois planos

distintos em que se desenrolam as tramas da política, estabelecendo

dicotomias discursivas que orientam a atuação da intervenção estatal. Por um

118
lado, o Estado, guiado por normas fundamentais estabelecidas por racionais

processos de elaboração legiferante. Do outro, a sociedade, desenvolvida a

partir de elementos racionais ou intuitivos e subjetivos. A depender das

experiências históricas e conjunturas do presente, motivam-se por desejos

próprios da comunidade, interesses pessoais ou coletivos, verdades religiosas,

dentre outros. Podem ser coincidentes ou, por vezes, conflitantes. Em face da

ocorrência de conflitos, ao agente público impõe-se o dever de ecoar a razão

de Estado. Não se trata, a priori, de uma escolha, senão de um imperativo à

preservação da estrutura que sustenta a organização política estatal.

Esta mesma dicotomia pode ser expressa pelo conflito entre Direito

e Moral (que igualmente remete a discussão à distinção entre público e

privado). Como já afirmado, as normas jurídicas são decorrentes de processos

racionais sustentados por axiomas de legitimidade, tais como a obediência aos

ritos do processo legislativo ou o controle de constitucionalidade. Impõem-se a

partir de formulações teórico-abstratas, cujo poder coercitivo intrínseco obriga o

cumprimento ou autoriza punições em caso de desobediência. Por outro lado, a

moral se constitui como regras de condutas extraídas da experiência em

comunidade, postas como corolário de uma vida em harmonia.106 São

imposições não escritas, elaboradas por juízos subjetivos, cuja legitimidade se

106
Sobre a ideia (não o conceito) de moral, assim se expressa Bobbio: “O problema de fundo é
sempre o mesmo. Nasce da constatação de que se pode manifestar um contraste entre as
ações humanas em todos os campos e algumas regras fundamentais e gerais da conduta
humana, habitualmente chamadas de regras morais, e como tais impostas como obrigatórias,
sem as quais a convivência não apenas impossível mas altamente infeliz. Provisoriamente,
podemos nos contentar em dizer que a finalidade de muitas regras morais é tornar possível
uma boa convivência, donde por ‘boa’ se entenda uma convivência em que estejam diminuídos
os sofrimentos que os homens podem infligir a si mesmos com sua conduta, uns contra os
outros (sofrimentos que são inelimináveis, ao contrário, no mundo animal, onde domina
impiedosa a luta pela sobrevivência), e possam ser protegidos alguns bens fundamentais como
a liberdade, a justiça a paz e um mínimo de bem-estar.” (BOBBIO, Norberto. Elogio da
serenidade e outros escritos morais. Tradução de Marco Aurélio Nogueira. São Paulo:
UNESP, 2002, p. 85-6.).

119
aufere a depender do tempo e espaço em que se projetam. Sua eficácia não

depende da anuência do Estado, mas se impõe por consensos muitas vezes

percebidos, não ditos ou positivados. Por essa mesma razão, a punição

àqueles que descumprem preceitos morais se esquiva do controle estatal,

podendo ocorrer para além dos limites legais já estabelecidos.

“Analogamente, o problema da relação moral e política se põe do


seguinte modo: é constatação comum, feita por quem quer que saiba
um pouco de história, que na esfera política são realizadas
continuamente ações que a moral considera ilícitas ou, ao contrário,
são permitidas ações que a moral considera imperiosa. Dessa
constatação chegou-se à convicção de que a política obedece a um
código de regras diferente do moral.”107

Os direitos fundamentais são constituídos, neste particular, como a

dicção do Estado, expressão da razão pública. A moral, por sua vez, é a

verbalização da gramática comportamental da sociedade. São elementos

distintos, porém não são, necessariamente, opostos entre si.

Ainda que temas afetos a determinadas garantias suscitem

discussões que possam se distanciar de elementos estritamente jurídicos,

aproximando-se, por exemplo, de questões morais, tanto legislador quanto

aplicador da norma devem estar adstritos aos comandos legais. Destarte,

mesmo que o imperativo seja a estrita observância à razão pública, a política

se faz de homens e mulheres constituídos por valores morais que influenciam

fortemente a sua atuação, mesmo enquanto sujeitos públicos. É no campo da

107
Idem, 2002, p. 88.

120
sexualidade que esta situação aparentemente contraditória melhor se

expressa.

“Um dos campos mais controvertidos, e também aquele em que cada


homem ou mulher é particularmente sensível, e não apenas o artista,
o cientista, o homem de negócios, mas cada homem e cada mulher,
é o da vida sexual: autonomia da vida sexual significa liberdade das
relações eróticas com respeito à moral corrente; em outras palavras,
a vida sexual não tem regras de conduta muito precisa, ou obedece a
regras diferentes daquelas da moral.”108

A defesa dos direitos da diversidade sexual é, na grande maioria das

vezes, pautada pela dicotomia Direito versus Moral. Os argumentos trazidos à

seara dos conflitos são permeados por construções lógicas em torno da

afirmação de direitos fundamentais, encontrando forte resistência dos discursos

religioso, científicos, ou essencialmente moralizante. Neste particular, cabe

anotar que a dimensão conflitiva da política é inerente ao processo

democrático, não devendo ser diminuída ou sob nenhum aspecto anulada.

“Se há homogeneização dos agentes políticos, não haverá a


consolidação do conflito de idéias e interesses, de concepções e
percepções, salutar para o embate que causará o mover-se em outra
(nova) direção. Não haverá a permanente construção do sujeito
democrático se as diferenças pertinentes aos seres sociais,
reconhecidos individualmente, não forem ouvidas nos espaços
destinados à construção do bem coletivo. (...) A experiência vivificada
a partir da interação das diferenças é inerente à idéia democrática. O
conceito de democracia está intrinsecamente atrelado à perspectiva
de exaltação do conflito, enquanto divergência de posicionamentos,
como instrumento salutar de oitiva de todas as forças políticas que

108
Ibidem, p. 86.

121
compõem o espaço público. (...) Neste sentido, o conflito é essencial
à concretização da democracia.”109

Mesmo que se possa afirmar que o ideal de consolidação de

democracia perpasse pela permeabilização da participação política em todos

os âmbitos do Estado, em todos os seus Poderes, o conflito de ideias, que

autoriza o embate entre moral e direito deve limitar-se ao âmbito do Poder

Legislativo. Trata-se do espaço apto para exercer a prerrogativa da

deliberação das questões jurídicas. É anterior à concretização da norma,

posto vincular-se ao ato de produzir a própria norma. Esta produção pode estar

pautada pelos diversos elementos que compõem e estruturam a sociedade,

produto dos embates ideológicos entre os parlamentares, apoiados pelas

pressões sociais, autênticas em um regime democrático.

Evidentemente que a atuação legiferante está condicionada a

princípios e regras fundamentais, devendo estes serem permanentemente

observados.110 Todavia, isso não exclui a possibilidade de diferentes

entendimentos sobre o ordenamento constitucional, já que o Congresso

Nacional, as Assembleias Legislativas e Câmaras de Vereadores são espaços

de ressonância da sociedade, devendo ecoar todas as vozes, desejos próprios

da comunidade, interesses pessoais ou coletivos, verdades religiosas, valores

morais. A limitação infligida ao Poder Legislativo tem um caráter

eminentemente ético, que se impõe por ato de vontade do representante ou

109
SALES, Dimitri Nascimento. Avançar no Estado Democrático de Direito: a participação
política na democracia brasileira. Cit., p. 59, 63.
110
Por força de dispositivo constitucional (art. 5º, XXXV), eventuais distorções que resultem em
ilegalidade podem ser corrigidas por meio dos mecanismos de controle da constitucionalidade,
prévios ou posteriores, ou por outras formas de intervenção judicial.

122
por meio do controle social sobre o exercício do Poder, realizado pelos

representados.

Nessa perspectiva, é possível imaginar a produção de uma norma

contrária à afirmação de direitos da diversidade sexual, recusando o pleno

gozo de iguais direitos a travestis e transexuais, por exemplo. Partindo-se uma

interpretação meramente formalista do princípio da igualdade, devidamente

abarcado pela Constituição, produz-se legislação que, baseada pelas

diferenças de identidade de gênero, resulte em asseverar as desigualdades.

Trata-se de ato de deliberação sobre a construção do Direito. Ainda que possa

ser eticamente condenável, tal feito está legitimamente protegido pela lógica

que autoriza a atuação livre do parlamentar. O campo da deliberação, que

decide pela afirmação ou restrição de direitos, está condicionado à correlação

de forças que se espelham nas disputas políticas, dentro ou fora dos

parlamentos.

Destarte, a efetividade dos atos do Poder Legislativo está

condicionada à prerrogativa da decisão, pertencente aos Poderes Executivo e

Judiciário. Se a legitimidade para a produção da norma aparenta ser absoluta,

o seu limite real é o comando de concretização que possuem os demais

poderes do Estado. Destaca-se que o ponto de partida para a atuação

executiva e judiciária não está posto às mãos do legislativo; devem partir dos

direitos e objetivos fundamentais, já devidamente inscritos na Constituição

Federal, garantidos sob o manto da petrificação e imediata aplicabilidade.

Ao Poder Executivo, cuja tarefa central é governar a vida estatal,

administrando os interesses públicos, cabe a missão de adotar medidas

destinadas à defesa e promoção dos direitos da diversidade sexual, sendo-lhe

123
assegurada a prerrogativa da decisão. Ainda que determinado gestor possa ter

posicionamentos morais contrários a este entendimento, a ele está imposto um

dever negativo, ou seja, dever de não agir contrariamente aos dispositivos

constitucionais que, interpretados sob a égide sistemática e teleológica,

asseguram igualdade material e exercício do direito à diferença.

Os limites éticos se impõem mas, diferentemente do que ocorre no

âmbito do Poder Legislativo, não no campo das consciências. Possuem

concretude, sendo possível a intervenção judicial quando da instituição de

medida atentatória aos preceitos constitucionais fundamentais.

Por seu turno, não há a imposição de um dever positivo, de modo a

obrigar a adoção de medidas que defendam e promovam os direitos de

lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais. A prerrogativa da decisão,

outorgada ao Poder Executivo, é dita stricto sensu, uma vez que as ações

decorrentes do dever positivo dependerão da discricionariedade do agente

público. Ainda que a realização dos objetivos fundamentais seja um imperativo

às Administrações Públicas, o ato de decidir insere-se na seara do conflito

democrático, autorizando o embate entre diferentes ideologias, concepções de

sociedade e valores morais dos diversos sujeitos democráticos.

Por fim, cabe ao Poder Judiciário o mais importante papel na

concretização dos direitos da diversidade sexual. Não sendo constituído por

agentes eleitos, que dependam da anuência popular expressada pelo voto,

deve-se manter mais distante das questões valorativas, aproximando-se do

dever de concretizar os direitos fundamentais, indistintamente. Por esta razão,

cumpre o exercício da decisão, afirmando-a na perspectiva contramajoritária,

distinta daquela que orienta a atuação dos demais Poderes. Neste sentido, seu

124
posicionamento não requer coincidência tanto com as deliberações do Poder

Legislativo, quanto com as decisões do Poder Executivo, estando excluída,

ainda, a obrigatoriedade de concordância com a vontade geral da sociedade,

apresentada pela abstrata opinião pública.

“É nessa formatação institucional que o Poder Judiciário se revela


como instância especificamente garantidora da efetividade dos
comandos constitucionais. A esfera do poder que pode jamais deixar
de sentenciar (contrapartida necessária da garantia do acesso à
jurisdição ou da não-negação de justiça) e que, na interpretação do
Magno Texto, demarca as fronteiras da válida atuação dos outros
dois Poderes e dela própria. (...) Exatamente por se colocar a serviço
da vontade permanente da nação, depositada no corpo normativo da
Constituição originária, é que a chamada atuação contramajoritária
do Poder Judiciário em nada ofende a pureza do protoprincípio da
Separação dos Poderes. Como não agride o sumo princípio da
Democracia, pois a majoritariedade que é inerente a ela,
Democracia, tem a precedê-la uma outra e mais alta majoritariedade:
a que provém das decisões tomadas pela nação que se reúne em
Assembléia Constituinte. (...) Mas é claro que tal legitimidade
judiciária será tanto mais autêntica quanto sustentada no poder-
dever de reconhecer à Constituição o seu caráter dirigente. Para que
a governabilidade legislativa e executiva seja tão-só a que
verdadeiramente conta: governabilidade constitucional. Não outra.”111

Neste sentido, ao Poder Judiciário compete um dever positivo

absoluto, excluindo a possibilidade de agir negativamente (ou seja, deixar de

agir ou agir contrário aos dispositivos constitucionais). Por estar autorizado a

apenas a operar decisões, a prerrogativa a ele atribuída é dita lato sensu. Não

cabe, portanto, discricionariedade (abstraindo-lhe, desta maneira, a

111
BRITTO, Carlos Ayres de. O humanismo como categoria constitucional. 1. reimp. Belo
Horizonte: Fórum, 2010, p. 109, 112-3.

125
possibilidade da omissão), senão a abertura para distintas interpretações

garantidoras de direitos, desde que devidamente fundamentadas. Neste

particular, aparenta residir um problema essencial: diferentes interpretações

tendem a preservar, autorizando seu exercício, ou negar o gozo de

determinados direitos à população LGBT, reconhecida pelas diferenças sexuais

que a compõe. Na ocorrência desta hipótese, tem-se rompida a função de

decidir atribuída a jurisdição, posto manter sob incerteza a possibilidade de

concretização dos direitos da diversidade sexual – igualando-se aos demais

Poderes na produção de inseguranças jurídicas.

Sendo um Poder Judiciário organizado verticalmente, sua hierarquia

permite afirmar que, na ocorrência de eventuais discordâncias jurisprudenciais,

a palavra final competirá à Corte Constitucional. É ao Supremo Tribunal

Federal, no caso brasileiro, que está devotada a missão final de assegurar a

concretização dos direitos fundamentais de lésbicas, gays, bissexuais, travestis

e transexuais. Como guardião da Constituição, caberá ao STF preservar a

gramática protetiva dos direitos fundamentais, uniformizar a jurisprudência,

asseverando que o conteúdo das suas decisões surta efeito erga omnes e

promover a efetivação dos objetivos fundamentais.

Destarte, ainda que se possa esperar a atuação dos Poderes

Legislativo e Executivo, sobre eles exercendo pressão social, abstraem-se

expectativas quanto aos avanços significativos na promoção dos direitos da

diversidade sexual. O lócus da disputa em torno da afirmação dos direitos

fundamentais da população LGBT se transfere para o eixo do Poder Judiciário,

elevando as demandas por reconhecimento e gozo das garantias

fundamentais, quando cabível, diretamente à Corte Constitucional.

126
A tarefa precípua do Supremo Tribunal Federal será reconhecer a

população LGBT, enxergando-a e afirmando-a a partir das suas diferenças

sexuais, asseverando o gozo de direitos fundamentais já existentes, embora

ainda fustigados pelos preconceitos homofóbicos e diferentes formas de

intolerância sexual. Compete-lhe, pois, incorporar lésbicas, gays, bissexuais,

travestis e transexuais na seara política, preservando a sua identidade e

dignidade dela decorrente, asseverando-os como autênticos sujeitos de direito.

Compreendendo, por fim, que os direitos da diversidade sexual

integram a gramática dos direitos fundamentais, e considerando que tais

garantias gozam de tutela internacional, é possível afirmar que a luta pelos

direitos de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais perpassa as

fronteiras jurídicas do constitucionalismo brasileiro, devendo adentrar no âmbito

dos sistemas internacionais de proteção aos direitos humanos. Tal feito tenderá

a irradiar o reconhecimento desta população como sujeito de direito

internacional para o direito interno, estabelecendo um novo patamar de

convivência política institucional, quiçá o redesenho dos traços da Constituição

Federal brasileira.

127
CAPÍTULO III
CONTROLE DE CONVENCIONALIDADE E DIVERSIDADE SEXUAL

3.1. PROTEÇÃO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS E ESTADO


CONSTITUCIONAL DE DIREITO

O constitucionalismo é fruto do longo processo histórico de

amadurecimento das instituições políticas, enraizando-se profundamente nas

sociedades contemporâneas. A partir das experimentações de variados

modelos constitucionais, por vezes essencialmente controversos, o Estado

passou a se organizar em torno da afirmação de direitos fundamentais e da

limitação do Poder pelo próprio Poder, pugnando pela rejeição a qualquer

forma de absolutismo. À medida que as comunidades se tornaram mais

dinâmicas e complexas, novos arranjos institucionais possibilitaram a

renovação dos conteúdos das Cartas Políticas, de modo a reorientar a

organização do Estado e ampliar as garantias fundamentais.

O constitucionalismo do século XX foi fortemente influenciado pelo

reconhecimento da dignidade da pessoa humana como referencial axiológico

primário, diretriz principiológica de importantes instrumentos jurídicos

elaborados a partir de então. De igual modo, afirmou definitivamente a proteção

dos direitos humanos como tema de interesse global. O processo de

internacionalização desses direitos elevou o ser humano à condição de efetivo

sujeito de direito internacional.

“A necessidade de uma ação internacional mais eficaz para a


proteção dos direitos humanos impulsionou o processo de

128
internacionalização desses direitos, culminando na criação da
sistemática normativa de proteção internacional, que faz possível a
responsabilização do Estado no domínio internacional quando as
instituições nacionais se mostram falhas ou omissas na tarefa de
proteger os direitos humanos.”112

Empenhados em construir mecanismos que assegurassem a

cooperação internacional entre os povos, proteção à pessoa humana e a

segurança planetária, sob influência da Declaração Universal dos Direitos

Humanos, marco jurídico do pós-guerra, nações de todo o mundo centraram

esforços no sentido de constituir um sistema internacional de proteção aos

direitos humanos, tendo sua centralidade na Organização das Nações Unidas

(ONU, 1945). Decorrente deste processo e impulsionados pelos mesmos

ideais, deu-se a criação de outros organismos supranacionais no âmbito

regional, estabelecendo proteção dos sujeitos de direito internacional nos

limites dos continentes, a exemplo da Organização dos Estados Americanos

(OEA, 1948).

De igual modo, passaram a ser elaborados diversos instrumentos

jurídicos internacionais de proteção à pessoa humana, a partir do

reconhecimento de suas singularidades sob o prisma da igualdade material. A

exemplo dos Pactos sobre Direitos Civis e Políticos e sobre Direitos

Econômicos, Sociais e Culturais, as regras supranacionais de direitos humanos

passaram a irradiar sua força normativa para todas as estruturas estatais,

impactando tanto a elaboração das normas jurídicas dos Estados, como a sua

concretização, por meio de elaboração de políticas públicas e atuação do

Poder Judiciário.
112
PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o direito constitucional internacional. Cit., p.
123.

129
O empenho de inúmeros países no sentido de constituir e consolidar

um sistema internacional protetivo aos direitos da pessoa humana, como

resposta às atrocidades cometidas pela Segunda Guerra Mundial, seja como

compromisso com as gerações presentes e futuras em favor da promoção da

dignidade humana, impactou internamente a organização das nações.

Conceitos clássicos que orientavam, até então, a estruturação política das

sociedades, como a ideia de soberania absoluta dos Estados, foram

drasticamente relativizados: para além do interesse local, deve prevalecer a

vontade global em favor dos direitos humanos.

O processo de internacionalização dos direitos humanos repercutiu

na elaboração das Cartas Políticas promulgadas a partir da segunda metade

do século XX, redefinindo o movimento constitucionalista, doravante chamado

de neoconstitucionalismo. Desde a promulgação da Lei Fundamental da

República Federal da Alemanha, em 23 de maio de 1949, documento político

marcado pela reafirmação dos valores democráticos, consagraram-se três

grandes transformações constitutivas desse novo momento, referentes à

concretização do direito constitucional: a) reconhecimento da força normativa à

Constituição; b) expansão da jurisdição constitucional; c) desenvolvimento de

uma nova dogmática da interpretação constitucional.113

Debruçando-se sobre o mesmo tema, Andres Gil Dominguez aponta,

além dos três elementos acima mencionados, dentre outros, uma importante

dimensão que, somados, compõem o paradigma do Estado Constitucional de

Direito:

113
BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito: o triunfo
tardio do direito constitucional no Brasil. In: QUARESMA, Regina; OLIVEIRA, Maria Lúcia de
Paula; OLIVEIRA, Farlei Martins Riccio de (coord.). Neoconstitucionalismo. Rio de Janeiro:
Forense, 2009, p. 55.

130
“Una dimensión de la validez substancial (junto a uma dimensión de
validez formal respecto del órgano emisor y de las formas de
producción del derecho) compuesta por derechos fundamentales
(procedentes de manera expresa o implícita de la Constituición) y
derechos fundamentales (procedentes de manera expresa o
implícita de los Instrumentos Internacionales sobre Derechos
Humanos) que a priori tienen idéntica jerarquía (em resguardo del
pluralismo y tolerancia existentes em una sociedad integrada por
personas com biografías, mismidades y planes de vida diversos).”114
(destaque acrescido)

Importa assegurar que, ao lado dos elementos que reafirmaram a

Constituição como instrumento jurídico basilar do Estado, assegurando que as

diretrizes a orientar a conformação das relações públicas centram-se na divisão

do Poder e na garantia de direitos fundamentais, encontram-se direitos

internacionais, ditos direitos humanos, a orientar a concretização dos ideais

que compõem o Estado Constitucional de Direito. Para além da arquitetura

jurídica interna, plasmada pelos interesses locais, há que se asseverar a força

jurídica que emana da elaboração legislativa produzida pelos organismos

internacionais. Tal feito, por consequência, implica em reconhecer outra fonte

de produção normativa (que lhe é superior) e, por isso mesmo, outra seara

de Poder, externa, com força para deliberar juridicamente e impor

entendimentos jurisprudenciais, interferindo diretamente na vivência nacional.

Ao integrar determinados organismos internacionais ou reconhecer

seus documentos jurídicos, o Estado, soberanamente, abdica de parcela de

sua soberania. Afirma-se dever de sujeição à jurisdição supranacional ou aos

deveres instituídos por tratados que tenha, livremente, ratificado.

114
DOMINGUEZ, Andrés Gil. Escritos sobre neoconstitucionalismo. Buenos Aires: Ediar,
2009, p. 103-4.

131
“Outro aporte de enorme importancia ha sido la admisión
constitucional de la transferencia de competências nacionales a
organismos supranacionales, a fin de afianzar los procesos de
integración o la tutela transnacional de los derechos humanos.”115

O impacto da adesão de determinado país a organismos

internacionais, bem como a ratificação de seus instrumentos legais, deveria ser

direto na orquestração jurídica da nação. Trata-se de sujeição, expressão que

indica colocar-se sob as regras e jurisdição supranacionais. No entanto, tal

assertiva não encontra ampla e automática concretude. Em atenção à

necessidade de sintonizar norma interna com o direito global, os Estados

passaram a inserir no texto de suas Constituições dispositivos que orientam a

recepção das garantias decorrentes dos tratados internacionais.

Nesse sentido, Cartas Políticas de diversas nações passaram a

inserir cláusulas de abertura, proporcionando a recepção do direito

constitucional (interno) ao direito internacional dos direitos humanos (externo),

alterando substancialmente a ideia clássica de constitucionalismo, outrora

concebido como um sistema normativo fechado e hierarquicamente

organizado, estando a Constituição no seu ponto mais elevado, servindo de

fundamento último de validade do conjunto normativo que lhe é inferior.

“Os direitos humanos articulados com o relevante papel das


organizações internacionais fornecem um enquadramento razoável
para o constitucionalismo global. O constitucionalismo global
compreende não apenas o clássico paradigma das relações entre
Estados, mas no novo paradigma centrado: nas relações

115
SAGÜÉS, Néstor Pedro. Teoría de la Constitución. 1. reimp. Buenos Aires: Astrea, 2004,
p. 54.

132
Estado/povo, na emergência de um Direito Internacional dos Direitos
Humanos e na tendencial elevação da dignidade humana a
pressuposto inalienável de todos os constitucionalismos.”116

A abertura constitucional de que fazem alusão as referidas cláusulas

resultaram por ampliar o programa normativo-constitucional das Cartas

Magnas. O conjunto normativo que se institui diante do novo arranjo jurídico-

institucional constitui o bloco de constitucionalidade ou, na expressão

argentina, regla de reconocimiento constitucional.117

Para Canotilho, embora os direitos fundamentais que compõem o

escopo normativo do direito internacional dos direitos humanos não estejam

formalmente constitucionalizados, estes possuem densidade constitucional,

constituindo o chamado bloco de constitucionalidade:

“Todavia, e mais uma vez, o programa normativo-constitucional não


se pode reduzir, de forma positivística, ao ‘texto’ da constituição. Há
que densificar, em profundidade, as normas e os princípios da
constituição, alargando o ‘bloco de constitucionalidade’ a princípios
não escritos desde que reconduzíveis ao programa normativo-
constitucional como formas de densificação ou revelação específicas
de princípios ou regras constitucionais positivamente plasmadas. (...)
Os únicos problemas que se podem suscitar dizem respeito aos
direitos fundamentais não formalmente constitucionais, isto é, os
direitos constantes de leis ordinárias ou de convenções
internacionais. Todavia, ou estes direitos são ainda densificações
possíveis e legítimas no âmbito normativo-constitucional de outras
normas e, consequentemente, direitos positivo-constitucionalmente

116
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e teoria da Constituição. 7.
ed. 2. reimpr. Coimbra: Almedina, 1998, p. 1217.
117
A expressão regla de reconocimiento constitucional pode ser traduzida por regra de
reconhecimento constitucional (tradução livre). Doravante, será utilizada a expressão em sua
versão traduzida para a língua portuguesa.

133
plasmados, e, nesta hipótese, formam o bloco de constitucionalidade,
ou são direitos autónomos não-reentrantes nos esquemas normativo-
constitucionais, e, nessa medida, entrarão no bloco da legalidade,
mas não no da constitucionalidade.” 118

Não é este, todavia, o entendimento de Andres Gil Dominguez, que

distingue bloco de constitucionalidade de regla de reconocimiento

constitucional. Para o constitucionalista argentino, por bloco de

constitucionalidade se entende o conjunto normativo formado pelo texto

constitucional e outros elementos internos, tais como leis orgânicas, cujo

fundamento de validade centra-se na própria Constituição. Por seu turno, a

regra de reconhecimento constitucional se estrutura a partir da combinação de

fonte interna (o texto constitucional) e fonte externa (produção legislativa e

jurisprudencial emanada dos órgãos internacionais). “La adecuación de las

normas inferiores surge del parámetro de validez de la fuente interna y del

parámetro de aplicabilidad emergente de la fuente externa.”119

3.2. CONSTITUIÇÃO ABERTA

Tributária dos avanços experimentados no período

neoconstitucional, a Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de

outubro de 1988, constitui-se na primeira Carta Política democrática

promulgada após a adoção da Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Sensível ao apelo de se constituir uma Nova República, comprometida com os

118
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e teoria da Constituição. Cit.,
p. 921-2.
119
DOMINGUEZ, Andrés Gil. Escritos sobre neoconstitucionalismo. Cit., p. 106.

134
valores de uma sociedade fraterna, pluralista e democrática, o Estado brasileiro

adotou texto constitucional inovador, que, dentre outros avanços, ampliou e

petrificou o rol de direitos e garantias fundamentais; assegurou, em igual

fundamentalidade, direitos sociais; asseverou sua força normativa por meio da

consolidação de uma efetiva jurisdição constitucional.

No plano externo, a Constituição brasileira estabeleceu que a

República reger-se-á pelo princípio da prevalência dos direitos humanos (art.

4º, II). Ainda, em perfeita sintonia com o processo de constitucionalização do

direito internacional dos direitos humanos, asseverou, ao fim da sua extensa

Declaração de Direitos, que os direitos e garantias expressos nesta

Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela

adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do

Brasil seja parte (art. 5º, § 2º).

Em comparação, a Argentina passou a dispor de novo ordenamento

jurídico-constitucional a partir da Reforma Constitucional ocorrida em 1994,

realizada com o intuito de modernizar seu Texto Supremo e superar

divergências em torno da legitimidade da Constituição vigente até então. Por

meio de acordo entre forças políticas daquele período, capitaneadas pelo ex-

Presidente Raúl Alfonsín e pelo então Chefe do Poder Executivo, Presidente

Carlos Menem, foi firmado o Pacto de Olivos, que traçou objetivos principais

para a reestruturação do sistema jurídico-político da Nação, dentre eles, a

redução do período do mandato presidencial e a regulamentação do instituto

da reeleição do Presidente de República.

A Constituição Federal da Argentina, reformada em 1994, traz

importantes avanços, sendo marcada pelo reconhecimento de um processo

135
constitucional caracterizado pela descentralização estatal e ampliação de

direitos fundamentais. Dos avanços sensíveis experimentados pelo

ordenamento jurídico-constitucional argentino, destaca-se a institucionalização

de novas estruturas públicas, tais como o Ministerio Público e o Consejo de la

Magistratura, a introdução de normas destinadas à proteção dos direitos

ambientais e direitos do consumidor, além de instituir o Recurso de Amparo e a

Acción Colectiva.

De igual importância, o constitucionalismo argentino incorporou ao

Texto Supremo direitos e garantias decorrentes de tratados internacionais de

proteção aos direitos humanos, positivando a abertura constitucional tributária

do empenho histórico da comunidade internacional em tutelar o ser humano.

Neste sentido, a Constituição Federal da República Argentina, ao estabelecer o

rol legislativo a orientar organização política do Estado, assim prescreve:

“esta Constitución, las leyes de la Nación que en su consecuencia se


dicten por el Congreso y los tratados con las potencias extranjeras
son la ley suprema de la Nación (...)” (art. 31).”120

Trata-se da primeira menção constitucional ao reconhecimento da

força normativa das regras jurídicas emanadas dos sistemas internacionais. No

entanto, destaca-se, não se refere expressamente à proteção aos direitos

humanos, senão, em sentido lato sensu, aos tratados em geral. É somente no

art. 75, inciso 22, inserido no capítulo destinado às atribuições do Congresso

Nacional, que a Constituição argentina inscreve sua cláusula aberta,

120
ARGENTINA. Constituição (1994). Constitucion Federal de la Republica Argentina.
Buenos Aires: Ediar, 2008, p. 14.

136
possibilitando a recepção de normas internacionais de direitos humanos pelo

ordenamento jurídico pátrio.

“Art. 75, 22. Aprobar o desechar tratados concluidos con las demás
naciones y con las organizaciones internacionales y los concordatos
con la Santa Sede. Los tratados y concordatos tienen jerarquía
superior a las leyes. La Declaración Americana de los Derechos y
Deberes del Hombre; la Declaración Universal de Derechos
Humanos; la Convención Americana sobre Derechos Humanos; el
Pacto Internacional de Derechos Económicos, Sociales y Culturales;
el Pacto Internacional de Derechos Civiles y Políticos y su Protocolo
Facultativo; la Convención sobre la Prevención y la Sanción del
Delito de Genocidio; la Convención Internacional sobre la Eliminación
de todas las Formas de Discriminación Racial; la Convención sobre
la Eliminación de todas las Formas de Discriminación contra la Mujer;
la Convención contra la Tortura y otros Tratos o Penas Crueles,
Inhumanos o Degradantes; la Convención sobre los Derechos del
Niño; en las condiciones de su vigencia, tienen jerarquía
constitucional, no derogan artículo alguno de la primera parte de esta
Constitución y deben entenderse complementarios de los derechos y
garantías por ella reconocidos. Sólo podrán ser denunciados, en su
caso, por el Poder Ejecutivo nacional, previa aprobación de las dos
terceras partes de la totalidad de los miembros de cada Cámara. Los
demás tratados y convenciones sobre derechos humanos, luego de
ser aprobados por el Congreso, requerirán del voto de las dos
terceras partes de la totalidad de los miembros de cada Cámara para
gozar de la jerarquía constitucional.”121

Ambas as nações, de passado marcado por golpes de Estado e

constantes violações às garantias fundamentais da pessoa humana, possuem,

em comum, a disposição em abrir seu ordenamento jurídico para a proteção

internacional dos direitos humanos. No entanto, as previsões constitucionais

121
Idem, 2008, p. 24.

137
anteriormente expostas possuem distinções que, na concretude jurisprudencial

ou doutrinária, apontaram dificuldades para a efetiva abertura do direito interno

à normativa internacional protetiva dos direitos humanos.

3.2.1. A ABERTURA NORMATIVA DA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA

A Constituição brasileira de 1988 avançou consideravelmente na

proteção aos direitos humanos, especialmente por expressar sua abertura aos

tratados internacionais que tenha ratificado. No entanto, a previsão

constitucional se limitou ao preceito anteriormente transcrito, abrindo margem

para controversas interpretações, doutrinária e jurisprudencial, acerca da

hierarquia desses documentos no âmbito do sistema jurídico-constitucional. Tal

situação gerou o desmerecimento institucional quanto à incorporação e

concretização das normas supralegais no direito pátrio. Apegadas a uma

tradição positivista e pouco afeita às mudanças que flexibilizaram o clássico

paradigma constitucional, as diversas interpretações limitaram o alcance da

eficácia do direito internacional dos direitos humanos.

Ante a dúvida suscitada acerca da hierarquia dos tratados

internacionais de direitos humanos no direito pátrio, e consequente impacto na

concretização do direito constitucional, a jurisprudência do Supremo Tribunal

Federal se posicionou, em momentos distintos, em três correntes, a saber: 1.

paridade hierárquica legal; 2. paridade hierárquica supralegal e

infraconstitucional; 3. paridade hierárquica constitucional. Há, ainda, uma

138
quarta corrente, defendida por parte da doutrina, que assevera a paridade

hierárquica supraconstitucional.122

É certo que a Constituição brasileira de 1967, outorgada pelo

governo militar de então, não reconhecia nenhuma interferência de tratados

internacionais de direitos humanos na ordem interna, seja em qualquer grau de

hierarquia. O texto da Carta ditatorial se limitava a abrir o ordenamento jurídico-

constitucional, no que se refere aos direitos e garantias, a “outros direitos e

garantias decorrentes do regime de princípios que ela adota” (Art. 153, § 36)
123
. Não obstante a ausência de previsão legal acerca de recepção da

normativa internacional, o Supremo Tribunal Federal, em julgado em sede do

Recurso Extraordinário n° 80.004, decidido em 1977, se posicionou pela

equiparação dos tratados internacionais, de quaisquer matérias, às normas

legais, ou seja, considerava-os equivalentes às leis ordinárias federais.

O entendimento do Supremo Tribunal Federal perdurou mesmo com

o advento da atual Constituição. Em 22 de novembro de 1995, já sob a égide

do novo constitucionalismo, a Suprema Corte brasileira, em sede do

julgamento do Habeas Corpus 72.131-RJ, reiterou o seu entendimento acerca

da posição hierárquica dos tratados internacionais de direitos humanos em face

do ordenamento constitucional pátrio. Ao enfrentar a aplicabilidade do Art. 7º,

do Pacto de San Jose da Costa Rica, tendo como parâmetro o que preceitua o

122
“É lícito sustentar-se, de acordo, aliás, com a opinião da maioria dos internacionalistas
contemporâneos, que o Direito Internacional é superior ao Estado, tem supremacia sobre o
direto interno, por isto que deriva de um princípio superior à vontade dos Estados. Não se dirá
que o poder do Estado seja uma delegação do direito internacional; mas parece incontestável
que este constitui um limite jurídico ao dito poder.” (ACCIOLY, Hidelbrando. Manual
internacional de direito internacional público. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 1976, p. 5).
123
BRASIL. Constituição (1967). Constituição da República Federativa do Brasil.
Organização do texto: Themístocles Brandão Cavalcanti, Luiz Navarro de Brito e Aliomar
Baleeiro. 2. ed. Brasília: Senado Federal e Ministério da Ciência e Tecnologia, Centro de
Estudos Estratégicos, 2001, p. 165. (Coleção Constituições Brasileiras, v. 3).

139
art. 5º, LXVII, do ordenamento constitucional brasileiro124, reiterou-se que os

tratados internacionais de direitos humanos possuem hierarquia legal, ainda

que essa não tenha sido uma posição consensual.125

A referida decisão do Supremo Tribunal Federal foi reafirmada em

outros casos cuja matéria de análise centrava-se na mesma discussão, ou

seja, acerca da hierarquia dos tratados internacionais de direitos humanos em

face da Constituição Federal de 1988 e seu dispositivo expresso no art. 5º, § 2º

(126). Não obstante, esse posicionamento não foi capaz de promover consenso

jurisprudencial e harmonia doutrinária. Em favor do reconhecimento da

hierarquia constitucional dos documentos jurídicos supranacionais de direitos

humanos, perduraram críticas, sobretudo pela sua discordância com tratados

internacionais já reconhecidos pelo Brasil (a exemplo da Convenção de Viena

sobre o Direito dos Tratados, ratificada pelo Estado Brasileiro por força do

Decreto nº 7.030, de 14 de dezembro de 2009), bem como, afronta à

jurisprudência dos organismos internacionais.

“Este trabalho, no entanto, defende posição diversa. Acredita-se, ao


revés, que conferir hierarquia constitucional aos tratados de direitos

124
Art. 5º, LXVII – não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo
inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel.”
(BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Organização
do texto: Antonio Luiz de Toledo Pinto, Márcia Cristina Vaz dos Santos Windt e Livia Céspedes.
45. ed. atual. ampl. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 11.).
125
Para alcançar esse entendimento, o Ministro Celso de Mello socorreu-se do direito
comparado, tendo trazido à discussão a preceituação da Constituição Argentina: “Diversa seria
a situação, se a Constituição do Brasil – à semelhança do que hoje estabelece a Constituição
Argentina, no texto emendado pela Reforma Constitucional de 1994 (art. 75, n. 22) – houvesse
outorgado hierarquia constitucional aos tratados celebrados em matéria de direitos humanos”
(BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas corpus 72.131/RJ. Paciente: Lairton Amagro
Vitoriano da Cunha. Impetrante: Marcelo Ferreira de Souza Granado. Coator: Tribunal de
Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Impetrado: Sateplan Consórcios Ltda. Relator: Min.
Moreira Alves. Brasília, 23/11/1995. Publicado em 1º de agosto de 2003.).
126
São exemplos: Recurso Extraordinário 206.482-SP, Habeas Corpus 76.561-SP, Ação Direta
de Inconstitucionalidade 1480-3-DF e Recurso Extraordinário 243.613-SP.

140
humanos, com a observância do princípio da prevalência da norma
mais favorável, é interpretação que se situa em absoluta
consonância com a ordem constitucional de 1988, bem como com
sua racionalidade e principiologia. (...) Esse tratamento jurídico
diferenciado, conferido pelo art. 5º, § 2º, da Carta de 1988, justifica-
se na medida em que os tratados internacionais de direitos humanos
apresentam um caráter especial, distinguindo-se dos tratados
internacionais comuns. Enquanto estes buscam o equilíbrio e a
reciprocidade de relações entre Estados-partes, aqueles
transcendem os meros compromissos recíprocos entre Estados
pactuantes. Os tratados de direitos humanos objetivam a
salvaguarda dos direitos do ser humano, e não das prerrogativas dos
Estados.”127

Buscando uma posição conciliadora, o Ministro Sepúlveda Pertence,

ao analisar o Habeas Corpus 79.785-RJ, se posicionou de modo a elevar os

tratados internacionais de direitos humanos a uma posição intermediária,

fixando-os sobre as leis ordinárias federais e abaixo da Constituição:

“Aceitar a outorga de força supralegal às convenções de direitos


humanos, de modo a dar aplicação direta às suas normas – até, se
necessário, contra a lei ordinária – sempre que, sem ferir a
Constituição, a complementarem, especificando ou ampliando os
direitos e garantias dela constantes.” 128

Sua tentativa de elevar tais documentos supranacionais ao status de

norma hierarquicamente supralegal e infraconstitucional, contudo, não logrou

êxito, tendo sido voto vencido.

127
PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o direito constitucional internacional. Cit., p.
64-5.
128
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas corpus 79.785/RJ. Recorrente: Jorgina Maria
de Freitas Fernandes. Recorrido: Ministério Público Federal. Relator: Min. Sepúlveda Pertence.
Brasília, 29/03/2000. Publicado em 23 de maio de 2003.

141
Alteração substancial no entendimento do Supremo Tribunal

Federal, no entanto, só foi possível com o advento da Emenda Constitucional

nº 45, de 8 de dezembro de 2004. Conhecida como Reforma do Poder

Judiciário, dentre as inúmeras modificações promovidas, a Emenda à Carta

Política brasileira buscou dirimir as divergências doutrinárias e jurisprudenciais

referentes à hierarquia dos tratados internacionais de direitos humanos. Assim,

introduziu um novo parágrafo ao art. 5°: § 3º Os tratados e convenções

internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do

Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos

membros, serão equivalentes às emendas constitucionais.129

Pelo novo dispositivo constitucional, para que alcançasse status de

norma hierarquicamente constitucional, o tratado internacional de direitos

humanos deveria ser aprovado pelo Congresso Nacional, seguindo o mesmo e

dificultoso rito de aprovação de Emendas Constitucionais. Longe de alcançar

seu objetivo primário, o referido inciso suscitou dúvidas ainda maiores,

acirrando as controvérsias, tendo sido duramente criticado.

“A redação final aprovada do dispositivo foi recebida com pouco


entusiasmo pelos defensores de direitos humanos, pelos seguintes
motivos: 1) condicionou a hierarquia constitucional ao rito idêntico ao
das emendas constitucionais, aumentando o quorum da aprovação
congressual futura e estabelecendo dois turnos, tornando-a mais
dificultosa; 2) sugeriu, ao usar a expressão "que forem", a existência
de dois tipos de tratados de direitos humanos no pós-emenda: os
aprovados pelo rito equivalente ao da emenda constitucional e os

129
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Cit., p. 13.

142
aprovados pelo rito comum (maioria simples); 3) nada mencionou
quanto aos tratados anteriores à Emenda.”130

Na busca da melhor compreensão do dispositivo, dotando-o de

máxima eficácia, a partir da compreensão de que os tratados internacionais de

direitos humanos possuem status de norma hierarquicamente constitucional,

assim se posicionou Celso Lafer:

“O novo § 3º do art. 5º pode ser considerado como uma lei


interpretativa destinada a encerrar as controvérsias jurisprudenciais e
doutrinárias suscitadas pelo § 2º do art. 5º. De acordo com a opinião
doutrinária tradicional, uma lei interpretativa nada mais faz do que
declarar o que preexiste, ao clarificar a lei existente.”131

Questões atinentes à funcionalidade dos tratados surgiram,

problematizando ainda mais o novo parágrafo, não obstante a sua tentativa de

pacificar entendimentos. Assim, inquietações, tais como a definição da

hierarquia dos tratados internacionais recepcionados anteriormente à Emenda

Constitucional nº 45, mas já sob a égide da Carta Política de 1988, uma vez

que não foram aprovados pelo novo ritual legislativo estabelecido, suscitavam

novas controvérsias doutrinárias.132

A Emenda Constitucional 45, não obstante as controvérsias por ela

suscitadas, todavia, foi capaz de reascender antigos debates no âmbito do

130
RAMOS, André de Carvalho. Teoria geral dos direitos humanos na ordem internacional.
2. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 234.
131
LAFER, Celso. A internacionalização dos direitos humanos: Constituição, racismo e
relações internacionais. Barueri, SP: Manole, 2005, p. 16.
132
Outra interessante controvérsia diz respeito à validade do instituto da Denúncia. Uma vez
que, tendo o tratado internacional sido aprovado pelo procedimento previsto no art. 5º, §3º, seu
conteúdo é incorporado ao ordenamento constitucional com status de garantia fundamental,
sendo, portanto, protegido como cláusula pétrea. Torna-se parte integrante da gramática
protetiva dos direitos humanos, não podendo dela ser arrancado. Nesse sentido, qual a
validade e eficácia da Denúncia?

143
Supremo Tribunal Federal. Em sede de novas demandas jurídicas, os Ministros

passaram a rever o posicionamento assentado no reconhecimento do status de

hierarquia legal aos tratados internacionais de direitos humanos recepcionados

pelo ordenamento jurídico pátrio.

De fato, a nova redação constitucional não poderia ser desprezada.

Ao se estabelecer um rito específico para a aprovação de um tratado

supranacional, de modo a reconhecer seu status constitucional, o legislador

destacou a distinta natureza jurídica desses documentos, realçando “o caráter

especial dos tratados de direitos humanos em relação aos demais tratados de

reciprocidade entre Estados pactuantes, conferindo-lhes lugar privilegiado no


133
ordenamento jurídico” . Destarte, apontou-se a necessidade de adequar a

jurisprudência do STF à realidade afirmada pelo art. 5º, § 3º.

Nesse sentido, em sede de emblemático julgamento do Recurso

Extraordinário 466.343, ainda que a decisão tenha sido tomada com a

manifestação de posicionamentos contrários134, o Supremo Tribunal Federal

afirmou a tese do duplo estatuto dos tratados internacionais de direitos

humanos. Em síntese, afirmou-se que tais instrumentos jurídicos, tendo sido

aprovados pelo rito estabelecido pelo art. 5º, § 3º, serão recepcionados no

ordenamento pátrio com status de norma constitucional. Todavia, uma vez

aprovados pelo rito comum, anterior ou posterior à promulgação da Emenda

Constitucional nº 45, serão incorporados com a equivalência de normas

supralegais e infraconstitucionais (aliás, posição até então minoritária, outrora

133
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário 466.343. Recorrente: Banco
Bradesco S/A. Recorrido: Luciano Cardoso Santos. Relator: Min. Cezar Peluso. Brasília,
03/12/2008. Publicado em 05 de maio de 2009.
134
Posicionaram-se a favor do reconhecimento da hierarquia constitucional dos tratados de
direitos humanos os Ministros Celso de Mello, Eros Grau e Ellen Gracie.

144
defendida pelo Ministro Sepúlveda Pertence quando do julgamento do Habeas

Corpus 79.785-RJ).

O Supremo Tribunal Federal limitou-se à interpretação literal do

preceito normativo estabelecido pelo art. 5º, § 3º. Ainda que tenha avançado no

seu entendimento acerca da hierarquia dos tratados internacionais de direitos

humanos, eximiu-se de promover uma análise teleológica e sistemática,

deixando de progredir substancialmente na compreensão jurisprudencial que

enraizaria o direito internacional dos direitos humanos no âmbito da proteção

local.

3.3. O CONTROLE DE CONVENCIONALIDADE

Ao elevar determinados documentos internacionais à hierarquia

constitucional, a Constituição argentina reconhece a dualidade da fonte

geradora do sistema de direitos. De um lado, seu próprio texto, do outro, o

direito internacional dos direitos humanos. Deste modo, consolidou-se um

sistema de direitos aberto bem mais avançado que aqueles adotados em

outras Constituições latino-americanas.

“La parte dogmática de la constitución se ha ampliado y enriquecido


a través del art. 75 inc. 22, que directamente confiere jierarquía
constitucional a once instrumentos internacionales de derechos
humanos (dos declaraciones, ocho tratados, y um
protocoloadicional), y que prevê para el futuro um procedimiento

145
especial mediante el cual otros tratados de derechos humanos
pueden lograr aquella miesma jerarquía.”135

Tendo reconhecido a equiparação de direitos internacionais de

direitos humanos à normativa constitucional, incorporando-os expressamente

no art. 75, inciso 22, a Constituição da Argentina sedimentou entendimento em

torno da hierarquia dessas normas em face do direito interno. Ademais,

estabeleceu uma sistemática jurídica para tratar da recepção, incorporação e

denúncia desses tratados internacionais. Nesse sentido, os documentos

supranacionais listados no Texto Supremo passaram a gozar de plena força

normativa e eficácia constitucional. O debate, portanto, passou a se situar a

partir da normativa positivada. Implica reconhecer o avanço desenhado pelo

constitucionalismo argentino, estabelecendo a discussão doutrinária e

jurisprudencial em torno de questões atinentes à concretização das normas de

direito constitucional internacional.

Diferentemente da situação brasileira, no caso argentino o debate

deu-se quanto à eficácia das decisões emanadas pelas Cortes Internacionais

cujo fundamento centrava-se nos tratados de direitos humanos incorporados na

Constituição ou aqueles posteriormente ratificados pelo Estado. Embora se

reconheça a importância da explicitação dos documentos supranacionais no

texto constitucional, tal avanço não foi suficientemente capaz de afastar

distintas interpretações acerca do impacto dos julgados internacionais no

âmbito interno. A Corte Suprema de Justiça argentina passou a elaborar

distintas interpretações, na busca de constituir um único posicionamento a

guiar a atuação dos tribunais nacionais.

135
CAMPOS, German J. Bidart. Manual de la constitucion reformada: Tomo I. 6. reimp.
Buenos Aires: Ediar, 2009, p. 481.

146
Valendo-se da denominada Doctrina del Seguimineto, em diferentes

momentos a Corte Suprema de Justiça argentina afirmava posicionamentos

divergentes. Por um lado, asseverava a validade da jurisprudência da Corte

Interamericana de Direitos Humanos, impondo sua observância aos intérpretes

da Constituição. Por outro, reconhecia a validez dos posicionamentos da

Comissão Interamericana de Direitos Humanos, estabelecendo-os como

referenciais de concretização da norma constitucional. A pacificação

jurisprudencial só foi alcançada a partir de 2006, quando a Corte

Interamericana de Direitos Humanos se posicionou frente ao caso Almonacid

Arellano, cuja sentença serviu para fundamentar a doutrina do controle de

convencionalidade.136

Nota-se que o debate ocorrido nos dois países latino-americanos

deu-se no âmbito do conflito entre normativa internacional e autonomia do

direito pátrio. No entanto, no caso Argentino, a discussão centrava-se num

patamar mais elevado, uma vez que já havia sido superada a primária análise

sobre a hierarquia dos tratados. Com efeito, a Corte Suprema de Justiça

argentina debruçou-se acerca do impacto das sentenças proferidas pela Corte

Interamericana de Direitos Humanos no sistema jurídico local. Neste particular,

o avanço experimentado pela Constituição argentina proporcionou a

assimilação dos valores constituintes do Estado Democrático de Direito,

especialmente no que se refere à regra de reconhecimento constitucional.

“La doctrina del control de convencionalidad explicitada por la Corte


Interamericana de derechos humanos, ha sido expresa y literalmente
136
SAGÜES, Néstor Pedro. El controle de convencionalidad en Argentina. In: MARINONI, Luiz
Guilherme; MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Controle de convencionalidade: um panorama
latino-americano: Brasil, Argentina, Chile, México, Peru, Uruguai. Brasília: Gazeta Jurídica,
2013, p. 348-9.

147
aceptada por Ia Corte Suprema de Justicia argentina, órgano máximo
local de control de constitucionalidad, ya que no hay en el país un
Tribunal, Corte o Sala Constitucional especializado. Tal admisión
tiene como precedentes habilitantes Ia doctrina deI seguimiento a los
fallos de Ia Corte Interamericana, anteriormente sentada por Ia Corte
Suprema, Ia reforma constitucional de 1994, que otorgó al Pacto de
San José de Costa Rica, rango constitucional, y Ia circunstancia de
haber obedecido en 10s últimos tiempos Ia Corte Suprema lo
resuelto en un fallo por Ia Corte Interamericana, no obstante disentir
explícitamente con él. Pese a no haber en el país, estrictamente, un
control concentrado de constitucionalidad, dado que impera el
sistema estadounidense de control difuso, aquella tesis de Ia Corte
Suprema es en principio obligatoria para todos los tribunales de Ia
República, según regias consuetudinarias sentadas por ella misma. Y
en general, es respetada.”137

O reconhecimento da regra de reconhecimento constitucional como

matriz interpretativa do sistema jurídico coloca a atuação da Corte

Constitucional frente a duas tarefas: a primeira, verificar o amoldamento das

normas infraconstitucionais à Constituição Federal (controle de

constitucionalidade) e, a segunda, atestar a adequação das normas internas e

da própria Constituição aos tratados internacionais de direitos humanos,

exercendo o chamado controle de convencionalidade.

Por controle de convencionalidade entende-se o exercício de

verificar a compatibilidade de normas nacionais, constitucionais ou

infraconstitucionais, bem como atos dos Poderes instituídos,

independentemente do status político que o constitui, em face dos tratados

internacionais de direitos humanos e das formulações doutrinárias e

137
Idem, 2013, p. 357-8.

148
jurisprudências elaboradas pelos organismos jurisdicionais internacionais de

proteção aos direitos humanos.

“Podemos definir al control de convencionalidad como una garantía


destinada a obtener la aplicación armónica del derecho vigente.
Control enraizado en la efectiva vigencia de los derechos y garantías.
Lugar donde confluyen ambos controles. (...) Por otro lado, el control
de convencionalidad constituye la función esencial de los órganos
internacionales competentes que, según expresan, no se erigen en
funcionarios, legisladores o jueces nacionales sino que interpretan
los actos internos al amparo de la Convención. Se menciona desde
el campo internacional la constitucionalización del derecho
internacional en el sentido de construir un orden jurídico
constitucional de respecto a los derechos. (...) Estos son los dos ejes
por lo que circulan los principales trazos del control de
convencionalidad, la internacionalización del derecho constitucional y
la constitucionalización del derecho internacional.”138

O controle de convencionalidade é mecanismo de aferição da

validade de normas internas. Por seu exercício, estabelece-se outro paradigma

a guiar as relações jurídico-constitucionais, rompendo a tradicional lógica da

primazia absoluta da Constituição, submetendo, por consequência, todo o

ordenamento jurídico de uma determinada nação à jurisdição internacional. A

constitucionalidade das normas jurídicas continua sendo requisito para

produção dos efeitos pretendidos com a lei. Neste particular, a observância à

Constituição permanece como um imperativo, sendo cabível, quando da

violação de preceito constitucional, a adoção de medidas de controle para a

salvaguarda do sistema jurídico. Mas não o único. Acima do ordenamento

138
ALBANESE, Susana. La internacionalización del derecho constitucional y la
constitucionalización del derecho internacional. In: ALBANESE, Susana (coord.). El control de
convencionalidad. Buenos Aires: Ediar, 2008, p. 15-7.

149
interno, um sistema jurídico internacional com força de vincular seus comandos

aos países que, soberanamente, ratificaram os instrumentos supranacionais de

defesa da pessoa humana.

“A primeira idéia a fixar-se, para o correto entendimento do que


doravante será exposto, é a de que a compatibilidade da lei com o
texto constitucional não mais lhe garante validade no plano do direito
interno. Para tal, deve a lei ser compatível com a Constituição e com
os tratados internacionais (de direitos humanos e comuns) ratificados
pelo governo. Caso a norma esteja de acordo com a Constituição,
mas não com eventual tratado já ratificado e em vigor no plano
interno, poderá ela ser até considerada vigente (pois, repita-se, está
de acordo com o texto constitucional e não poderia ser de outra
forma) – e ainda continuará perambulando nos compêndios
legislativos publicados –, mas não poderá ser tida como válida, por
não ter passado imune a um dos limites verticais materiais agora
existentes: os tratados internacionais em vigor no plano interno. Ou
seja, a incompatibilidade da produção normativa doméstica com os
tratados internacionais em vigor no plano interno (ainda que tudo
seja compatível com a Constituição) torna inválidas as normas
jurídicas de direito interno.”139

O paradigma constitucional clássico, que tem na pirâmide sua

representação, verticalizado, centrado na supremacia absoluta da Carta

Magna, conforme aponta Flávia Piovesan, traduz-se como um sistema

endógeno e auto-referencial, circunscrito à ordem jurídica interna, fortemente

apegado à dimensão estritamente normativa, fundado na defesa da soberania

139
MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Teoria geral do controle de convencionalidade no direito
brasileiro. In: MARINONI, Luiz Guilherme; MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Controle de
convencionalidade: um panorama latino-americano: Brasil, Argentina, Chile, México, Peru,
Uruguai. Brasília: Gazeta Jurídica, 2013, p. 7.

150
do Estado, no âmbito externo, e na segurança nacional, no âmbito interno.140

Em oposição, a lógica que guia a concretização do controle de

convencionalidade é inovadora, alterando substancialmente a tradição jurídica

até então sedimentada. Proporciona modificações nas relações políticas

estabelecidas localmente (estatal), e estabelece novo diálogo nas interações

globais (sistemas internacionais). Institui outro referencial interpretativo, mais

aberto e mais disposto a concretizar a vontade constitucional. Assume

compromissos efetivamente centrados na defesa da cidadania, em detrimento

da ótica de primazia dos interesses do Estado.

“Testemunha-se a crise deste paradigma tradicional e a emergência


de um novo paradigma a guiar a cultura jurídica latino-americana,
que, por sua vez, adota como 3 (três) características essenciais: a) o
trapézio com a Constituição e os tratados internacionais de direitos
humanos no ápice da ordem jurídica (com repúdio a um sistema
jurídico endógeno e auto-referencial). (...) Ao processo de
constitucionalização do Direito Internacional conjuga-se o processo
de internacionalização do Direito Constitucional. (...) b) a crescente
abertura do Direito – agora ‘impuro’ –, marcado pelo diálogo do
ângulo interno com o ângulo externo (há a permeabilidade do Direito
mediante o diálogo entre jurisdições; empréstimos constitucionais; e
a interdisciplinariedade, a fomentar o diálogo do Direito com outros
saberes e diversos atores sociais, resignificando, assim, a
experiência jurídica). (...) c) o human rights approach (human
centered approach), sob um prisma que abarca como conceitos
estruturais e fundantes a soberania popular e a segurança cidadã no
âmbito interno, tendo como fonte inspiradora a ‘lente ex parte populi’’,

140
PIOVESAN, Flávia. Controle de convencionalidade, direitos humanos e diálogo entre
jurisdições. In: MARINONI, Luiz Guilherme; MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Controle de
convencionalidade: um panorama latino-americano: Brasil, Argentina, Chile, México, Peru,
Uruguai. Brasília: Gazeta Jurídica, 2013, p. 118.

151
radicada na cidadania e nos direitos do cidadão, na expressao de
Norberto Bobbio.”141

O Controle de Convencionalidade tem como referencial primeiro a

Convenção Americana sobre Direitos Humanos, servindo este instrumento

como matriz hermenêutica a guiar a atuação dos sistemas jurídicos nacionais e

dos órgãos que integram o sistema regional de proteção aos direitos humanos.

Constitui-se como fonte donde emana o parâmetro de validade das normas

internas, no exercício do controle de constitucionalidade, bem como das

normas constitucionais, no âmbito externo.

Os marcos que constituem o Controle de Convencionalidade foram

instituídos pela jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, a

partir das decisões em sede de contenciosos envolvendo países que tenham

reconhecido a sua competência. Mas não apenas: também serve de

fundamento para o controle externo as Opiniões Consultivas, expedidas para

solucionar controvérsias em torno dos dispositivos da Convenção Americana

sobre Direitos Humanos ou mesmo para sanar conflitos entre legislações

nacionais (incluindo as Constituições) e os documentos internacionais de

proteção aos direitos Humanos. Destaca-se que as principais linhas que

elaboram o conteúdo do controle de convencionalidade foram expostas em

dois importantes julgados – caso Almonacid Arellano y otros e caso

Trabajadores Cesados del Peru.

Poucos dias depois do Golpe de Estado que derrubou o presidente

constitucionalista Salvador Allende, o professor Luis Alfredo Almonacid

Arellano, líder sindical e membro do Partido Comunista Chileno foi preso em

141
Idem, 2013, p. 118-120.

152
sua casa, na cidade de Rancagua, tendo sido, logo em seguida, executado

sumariamente pelos policiais que o havia prendido. Partindo deste caso e

analisando a responsabilidade do Chile frente às violações de direitos humanos

praticadas no regime ditatorial liderado por Augusto Pinochet, bem como a

validade da auto-anistia instituída pelo Decreto-lei 2191, de 18 de abril de 1978,

a Corte Interamericana asseverou a importância do controle de

convencionalidade:

“124. La Corte es consciente que los jueces y tribunales internos


están sujetos al imperio de la ley y, por ello, están obligados a aplicar
las disposiciones vigentes en el ordenamiento jurídico. Pero cuando
un Estado ha ratificado un tratado internacional como la Convención
Americana, sus jueces, como parte del aparato del Estado, también
están sometidos a ella, lo que les obliga a velar porque los efectos de
las disposiciones de la Convención no se vean mermadas por la
aplicación de leyes contrarias a su objeto y fin, y que desde un inicio
carecen de efectos jurídicos. En otras palabras, el Poder Judicial
debe ejercer una especie de ‘control de convencionalidad’ entre las
normas jurídicas internas que aplican en los casos concretos y la
Convención Americana sobre Derechos Humanos. En esta tarea, el
Poder Judicial debe tener en cuenta no solamente el tratado, sino
también la interpretación que del mismo ha hecho la Corte
Interamericana, intérprete última de la Convención Americana.”142

No caso Trabajadores Cesados del Peru, em que 257 trabalhadores

foram injustamente demitidos do Congresso Nacional por decreto da própria

instituição, a Corte, em julgamento, também se posicionou acerca da

importância do controle de convencionalidade. Neste particular, asseverou a

142
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Almonacid Arellano y
otros Vs. Chile. Sentencia de 26 de septiembre de 2006. Disponível em:
<http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_154_esp.pdf>. Acesso em: 27 de janeiro
de 2014.

153
amplitude dos referenciais normativos para o exercício da verificação de

validade das normas internas frente ao ordenamento internacional dos direitos

humanos.

“2. En la especie, al referirse a un “control de convencionalidad” la


Corte Interamericana ha tenido a la vista la aplicabilidad y aplicación
de la Convención Americana sobre Derechos Humanos, Pacto de
San José. Sin embargo, la misma función se despliega, por idénticas
razones, en lo que toca a otros instrumentos de igual naturaleza,
integrantes del corpus juris convencional de los derechos humanos
de los que es parte el Estado: Protocolo de San Salvador, Protocolo
relativo a la Abolición de la Pena de Muerte, Convención para
Prevenir y Sancionar la Tortura, Convención de Belém do Pará para
la Erradicación de la Violencia contra la Mujer, Convención sobre
Desaparición Forzada, etcétera. De lo que se trata es de que haya
conformidad entre los actos internos y los compromisos
internacionales contraídos por el Estado, que generan para éste
determinados deberes y reconocen a los individuos ciertos
derechos.”143

Importante controvérsia reside na extensão do controle de

convencionalidade, seja no que tange aos instrumentos jurídicos internacionais

que devem servir de referencial à atuação dos intérpretes da norma interna

(constitucional ou regramentos inferiores), bem como o alcance do dever de

observância aos tratados internacionais de direitos humanos no âmbito da

jurisdição comum.

Na primeira situação, tem-se um questionamento sobre a eficácia

dos posicionamentos da Corte Interamericana de Direitos Humanos exarados

143
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Trabajadores Cesados
del Congreso (Aguado Alfaro y otros) Vs. Perú. Sentencia de 24 de noviembre de 2006.
Disponível em: <http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_158_esp.pdf>. Acesso
em: 27 de janeiro de 2014.

154
nas Opiniões Consultivas, bem como a extensão dos efeitos da jurisprudência

aos Estados. Importa discutir a expansão da normativa internacional vinculante,

para além dos dispositivos constantes da Convenção. Neste particular, a Corte

assim se posicionou:

“128. Cuando un Estado ha ratificado un tratado internacional como


la Convención Americana, sus jueces también están sometidos a
ella, lo que les obliga a velar porque el efecto útil de la Convención
no se vea mermado o anulado por la aplicación de leyes contrarias a
sus disposiciones, objeto y fin. En otras palabras, los órganos del
Poder Judicial deben ejercer no sólo un control de constitucionalidad,
sino también ‘de convencionalidad’ ex officio entre las normas
internas y la Convención Americana, evidentemente en el marco de
sus respectivas competencias y de las regulaciones procesales
correspondientes. Esta función no debe quedar limitada
exclusivamente por las manifestaciones o actos de los accionantes
en cada caso concreto, aunque tampoco implica que ese control
deba ejercerse siempre, sin considerar otros presupuestos formales y
materiales de admisibilidad y procedencia de ese tipo de
144
acciones.”

A Corte Interamericana de Direitos Humanos já se posicionou

quanto à extensão do dever de análise da convencionalidade no que se refere

ao controle difuso de constitucionalidade. No mesmo diapasão que reconhece

os tratados internacionais de direitos humanos como fonte de validade das

normas constitucionais, estes devem ser levados em consideração para a

análise das normas infraconstitucionais quando da sua verificação de

144
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Trabajadores Cesados
del Congreso (Aguado Alfaro y otros) Vs. Perú. Sentencia de 24 de noviembre de 2006.
Disponível em: <http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_158_esp.pdf>. Acesso
em: 27 de janeiro de 2014.

155
adequação à Constituição. Institui-se outro dever para os juízes nacionais, a

quem não se autoriza desconhecer a arquitetura internacional.

“11. Si existe esa conexión clara y rotunda --o al menos suficiente,


inteligible, que no naufrague en la duda o la diversidad de
interpretaciones--, y en tal virtud los instrumentos internacionales son
inmediatamente aplicables en el ámbito interno, los tribunales
nacionales pueden y deben llevar a cabo su propio ‘control de
convencionalidad’. Así lo han hecho diversos órganos de la justicia
interna, despejando el horizonte que se hallaba ensombrecido,
inaugurando una nueva etapa de mejor protección de los seres
humanos y acreditando la idea --que he reiterado-- de que la gran
batalla por los derechos humanos se ganará en el ámbito interno, del
que es coadyuvante o complemento, pero no sustituto, el
internacional. 12. Este ‘control de convencionalidad’, de cuyos
buenos resultados depende la mayor difusión del régimen de
garantías, puede tener --como ha sucedido en algunos países--
carácter difuso, es decir, quedar en manos de todos los tribunales
cuando éstos deban resolver asuntos en los que resulten aplicables
las estipulaciones de los tratados internacionales de derechos
humanos.”145

O entendimento afirmado pela Corte Interamericana de Direitos

Humanos foi recepcionado pela doutrina nacional. Na tentativa de pensar as

bases teóricas a guiar a aplicação do controle de convencionalidade no direito

brasileiro, assim se posiciona Valerio de Oliveira Mazzuoli:

“Para realizar o controle de convencionalidade ou de supralegalidade


das normas infraconstitucionais os tribunais locais não requerem
qualquer autorização internacional. Tal controle passa, doravante, a

145
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Trabajadores Cesados
del Congreso (Aguado Alfaro y otros) Vs. Perú. Sentencia de 24 de noviembre de 2006.
Disponível em: <http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_158_esp.pdf>. Acesso
em: 27 de janeiro de 2014.

156
ter também caráter difuso, a exemplo do controle difuso de
constitucionalidade, no qual qualquer juiz ou tribunal pode se
manifestar a respeito. À medida que os tratados forem sendo
incorporados ao direito pátrio os tribunais locais – estando tais
tratados em vigor no plano internacional – podem, desde já e
independentemente de qualquer condição ulterior, compatibilizar as
leis domésticas com o conteúdo dos tratados (de direitos humanos
ou comuns) vigentes no país. Em outras palavras, os tratados
internacionais incorporados ao direito brasileiro passam a ter eficácia
paralisante (para além de derrogatória) das demais espécies
normativas domésticas, cabendo ao juiz coordenar essas fontes
(internacionais e internas) e escutar o que elas dizem. Mas, também,
pode ainda existir o controle de convencionalidade concentrado no
STF, (...), na hipótese dos tratados de direitos humanos (e somente
destes) aprovados pelo rito do art. 5º, § 3º, da CF/1988 (uma vez
ratificados pelo Presidente, após esta aprovação qualificada). Tal
demonstra que, de agora em diante, os parâmetros de controle
concentrado (de constitucionalidade/convencionalidade) no Brasil
são a Constituição e os tratados internacionais de direitos humanos
ratificados pelo governo e em vigor no país.”146

A superação dos regimes ditatoriais em diversos países foi fator

determinante para o fortalecimento do sistema regional americano, fato que

possibilitou o reconhecimento das competências das instituições

supranacionais no âmbito da jurisdição interna. Por essa razão, a experiência

do controle de convencionalidade no âmbito das Américas ainda é incipiente.

Não obstante, é possível afirmar que as decisões emanadas da Corte

Interamericana de Direitos Humanos têm impactado as organizações estatais,

influenciando o jogo político-institucional local e demarcando novos contornos

146
MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Teoria geral do controle de convencionalidade no direito
brasileiro. In: MARINONI, Luiz Guilherme; MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Controle de
convencionalidade: um panorama latino-americano: Brasil, Argentina, Chile, México, Peru,
Uruguai. Cit., p. 33-4.

157
ao constitucionalismo. Seus julgados, constituintes de sólida jurisprudência,

somados à manifestações apresentadas sob a forma de Opiniões Consultivas,

têm orientado a aplicação do direito sob a ótica do neoconstitucionalismo.

O controle de convencionalidade é o instrumento adequado para

efetivar a Constituição a partir da perspectiva da internacionalização do direito

constitucional e constitucionalização do direito internacional. Trata-se de

mecanismo apto a reconhecer a importância dos direitos humanos,

concebendo-os como vetores de concretização e interpretação dos

ordenamentos jurídicos, local ou globalmente considerados. É, por certo, um

importante meio para o amadurecimento das democracias constitucionais e

fortalecimento do Estado Constitucional de Direito.

3.4. CONTROLE DE CONVENCIONALIDADE E AFIRMAÇÃO DOS


DIREITOS DA DIVERSIDADE SEXUAL

A defesa pelos direitos de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e

transexuais não está à margem da atenção do sistema interamericano de

direitos humanos. A atuação tem se concentrado no âmbito da Comissão

Interamericana de Direitos Humanos que, embrionariamente, tem

acompanhado casos de violações de direitos da diversidade sexual nos países

das três Américas. Destaca-se que o trabalho até então desenvolvido tem sido

impulsionado pela colaboração de entidades da sociedade civil, auxiliando no

monitoramento e elaboração de denúncias.

Asseverando as ações de enfrentamento as discriminações, a

Comissão Interamericana de Direitos Humanos criou, em novembro de 2011, a

158
Unidade LGBTI147, cuja atuação centra-se, especialmente, na elaboração de

relatórios e monitoramento de casos de violência homofóbica. Objetivando

aprimorar a intervenção internacional, em novembro de 2013 foi criada a

Relatoria sobre os Direitos das Pessoas Lésbicas, Gays, Bissexuais, Trans e

Intersexuais, constituindo um organismo mais fortalecido para a tarefa de

promoção e proteção dos direitos da diversidade sexual nas Américas. A

previsão de início dos seus trabalhos é fevereiro de 2014.148

A atuação da Unidade LGBTI contribuiu para que a Comissão

Interamericana de Direitos Humanos realizasse seis audiências públicas para

discutir a violação de direitos humanos da população LGBT em países

americanos, bem como analisar temas afetos à concretização dos direitos da

diversidade sexual, tais como saúde da população LGBTI (Washington D.C., 16

e 17 de junho de 2011), participação política (Colômbia, 19 e 20 de novembro

de 2012) e educação e cultura (Washington D.C., 12 e 13 de setembro de

2013).

No que tange ao monitoramento de violações de direitos LGBT, a

Comissão recebeu somente 7 (sete) denúncias, sendo que duas delas não

foram admitidas, em razão da inobservância dos pressupostos de

147
No âmbito do Sistema Americano de Direitos Humanos, utiliza-se a LGBTI para referir-se a
lésbicas, gays, bissexuais, pessoas trans (travestis e transexuais) e intersexuais. De igual
modo, refere-se às discriminações homofóbicas como as formas de violência e discriminação
enfrentadas pelas pessoas nas Américas, em virtude de sua real ou aparente orientação
sexual, identidade de gênero ou expressão de gênero, ou por seu corpo se diferenciar do que é
considerado feminino ou masculino.
148
A Unidade LGBTI desenvolve suas ações a partir de quatro eixos fundamentais: (1)
elaboração de relatórios temáticos, regionais ou nacionais sobre a situação das pessoas LGBTI
nas Américas; (2) desenvolvimento de normas sobre a interpretação dos instrumentos
interamericanos de direitos humanos com respeito à orientação sexual, identidade de gênero,
expressão de gênero e diversidade corporal, por meio do sistema de casos e petições
individuais; (3) prestação de assessoramento técnico e contribuição aos Estados e órgãos
políticos da Organização dos Estados Americanos; e (4) monitoramento da situação dos
direitos humanos das pessoas LGBTI e promoção da visibilidade das violações contra seus
direitos humanos.

159
admissibilidades, uma resultou em acordo entre as partes envolvidas e o

Estado denunciado, uma foi arquivada e, por fim, três foram declaradas

admitidas, passando a ser objeto de análise e deliberação. Dentre as

admitidas, apenas uma foi encaminhada à Corte Interamericana de Direitos

Humanos, tendo sido convertida em processo. Tratou-se da ação envolvendo a

juíza Karen Atala contra o Estado do Chile (Caso 12.502).

Em 1993, Karen Atala havia contraído matrimônio com Ricardo

Jayme Lopés Allende, sendo que desta relação nasceram três filhas. Em 2004,

o casamento foi desfeito. Karen, então, assumiu sua homossexualidade,

momento em que constituiu nova relação afetiva. Insatisfeito, seu ex-parceiro

ingressou com demanda judicial requerendo a guarda das filhas, alegando que

(1) a orientação sexual da genitora causaria situação de risco para o

desenvolvimento das filhas, por causar confusão quanto à formação de suas

identidades (inclusive, identidade sexual); (2) pela mesma razão, as crianças

estariam em estado de vulnerabilidade, sendo expostas a vexame social e

atitudes de preconceito. Após interpor diversos recursos, a causa foi apreciada

pela Corte Suprema de Justiça do Chile que, em decisão definitiva, acatou os

argumentos paternos, outorgando a guarda das filhas ao pai.

Pela primeira vez a Corte Interamericana de Direitos Humanos foi

instada a se manifestar diante de violação de direitos em razão da orientação

sexual da demandante. Ao encaminhar a demanda, a Comissão alegou que a

orientação sexual de Karen Atala foi utilizada indevidamente para criar

discriminação contrária aos princípios norteadores da Justiça Internacional de

Direitos Humanos. Afirmou que a decisão da Corte Constitucional do Chile

resultou em afronta, dentre outros, ao direito à igualdade e direito da não

160
discriminação, bem como violação ao direito à vida privada e direito à vida

privada e familiar devidamente expressos no artigo 1 (1), culminado com o art.

24, artigo 11(2) em paralelo com o art. 17(1), todos da Convenção Americana

de Direitos Humanos.

Após análise da demanda encaminhada pela Comissão, em 24 de

fevereiro de 2012, a Corte Interamericana de Direitos Humanos proferiu sua

sentença, cujo conteúdo constitui um marco na luta pelos direitos da

diversidade sexual. O posicionamento da Corte firmou sólido entendimento

quanto ao respeito às diferentes sexualidades, assegurando a primazia do

direito à igualdade e a não discriminação.

“79. Sobre el principio de igualdad ante la ley y la no discriminación,


la Corte ha señalado que la noción de igualdad se desprende
directamente de la unidad de naturaleza del género humano y es
inseparable de la dignidad esencial de la persona, frente a la cual es
incompatible toda situación que, por considerar superior a un
determinado grupo, conduzca a tratarlo con privilegio; o que, a la
inversa, por considerarlo inferior, lo trate con hostilidad o de cualquier
forma lo discrimine del goce de derechos que sí se reconocen a
quienes no se consideran incursos en tal situación. La jurisprudencia
de la Corte también ha indicado que en la actual etapa de la
evolución del derecho internacional, el principio fundamental de
igualdad y no discriminación ha ingresado en el dominio del jus
cogens. Sobre él descansa el andamiaje jurídico del orden público
nacional e internacional y permean todo el ordenamiento jurídico.
80. Además, el Tribunal ha establecido que los Estados deben
abstenerse de realizar acciones que de cualquier manera vayan
dirigidas, directa o indirectamente, a crear situaciones de
discriminación de jure o de facto. Los Estados están obligados a
adoptar medidas positivas para revertir o cambiar situaciones
discriminatorias existentes en sus sociedades, en perjuicio de
determinado grupo de personas. Esto implica el deber especial de

161
protección que el Estado debe ejercer con respecto a actuaciones y
prácticas de terceros que, bajo su tolerancia o aquiescencia, creen,
mantengan o favorezcan las situaciones discriminatorias.”149

Considerando que a decisão chilena resultou por criar uma distinção

contrária aos princípios internacionais norteadores da defesa dos direitos

humanos, a Corte se posicionou de modo a estender proteção às diferenças

sexuais, concebendo a orientação sexual como categoria jurídica protegida

pela Convenção Interamericana de Direitos Humanos.

“92. En lo que respecta al argumento del Estado de que para la fecha


de emisión de la sentencia de la Corte Suprema no habría existido un
consenso respecto a la orientación sexual como categoría prohibida
de discriminación, la Corte resalta que la presunta falta de un
consenso al interior de algunos países sobre el respeto pleno por los
derechos de las minorías sexuales no puede ser considerado como
un argumento válido para negarles o restringirles sus derechos
humanos o para perpetuar y reproducir la discriminación histórica y
estructural que estas minorías han sufrido. El hecho de que ésta
pudiera ser materia controversial en algunos sectores y países, y que
no sea necesariamente materia de consenso no puede conducir al
Tribunal a abstenerse de decidir, pues al hacerlo debe remitirse única
y exclusivamente a las estipulaciones de las obligaciones
internacionales contraídas por decisión soberana de los Estados a
través de la Convención Americana.
93. Un derecho que le está reconocido a las personas no puede ser
negado o restringido a nadie y bajo ninguna circunstancia con base
en su orientación sexual. Ello violaría el artículo 1.1. de la
Convención Americana. El instrumento interamericano proscribe la
discriminación, en general, incluyendo en ello categorías como las de

149
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Atala Riffo y niñas Vs.
Chile. Sentencia de 24 de febrero de 2012. Disponível em:
<http://corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_239_esp.pdf >. Acesso em: 27 de janeiro de
2014.

162
la orientación sexual la que no puede servir de sustento para negar o
restringir ninguno de los derechos establecidos en la Convención.”150

Após tecer precisas considerações sobre os argumentos suscitados

no processo chileno para denegar o direito à livre orientação sexual, impondo a

Karen Atala e suas filhas cerceamento de liberdades não respaldadas pelo

Direito, analisando-os detalhadamente a partir de entendimentos

jurisprudenciais das Cortes internacionais de Direitos Humanos, e da sua

própria formação jurisprudência, a Corte Interamericana decidiu condenar o

Estado do Chile. Foram impostos diversos deveres, incluindo medidas de

reparação às partes afetadas.

Dos deveres impostos ao Chile, destacam-se duas medidas

destinadas a evitar a repetição de condutas violadoras dos direitos sexuais de

cidadãs e cidadãos LGBT: (1) capacitação das autoridades judiciárias e outros

funcionários públicos nas temáticas de diversidade e não discriminação,

realização de campanhas destinadas a constituir ambientes de tolerância e

outras medidas de formação; (2) adoção de medidas de direito interno,

reformas e adequação de leis contra a discriminação, de modo a promover a

efetiva punição às violações de direitos sexuais. Ainda, foi imposta a obrigação

de indenização pelos materiais e imateriais sofridos pelas partes, Karen e

filhas.

A decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos teve

especial impacto na vida política do Chile. O debate em torno da condenação

suscitou importantes discussões sobre os limites existentes no corpo legislativo

150
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Atala Riffo y niñas Vs.
Chile. Sentencia de 24 de febrero de 2012. Disponível em:
<http://corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_239_esp.pdf >. Acesso em: 27 de janeiro de
2014.

163
do país e a necessidade de se ampliar a proteção aos direitos humanos. Mais

ainda, colocou foco sobre o tema da diversidade sexual, até então tratado de

forma periférica no que se refere aos grandes temas políticos da nação.

Após a condenação, um fato provocou grande consternação no povo

chileno. Abordado por um grupo neonazista após sair de uma boate destinada

aos gays, Daniel Zamudio, de 24 anos, foi barbaramente torturado, vindo

falecer dias depois. A repercussão do crime, sobretudo pelo grau de agressão

imposto ao jovem, comoveu a sociedade chilena, obrigando que as autoridades

locais se manifestassem quando a violação dos direitos LGBT. Organismos

internacionais, como a Organização das Nações Unidas e a Comissão

Interamericana de Direitos Humanos se posicionaram, exigindo ações efetivas

do Estado chileno para punir os responsáveis e prevenir a continuação da

violência homofóbica.

Por conta da repercussão do assassinato, o Congresso Nacional

levou à sua pauta um projeto de lei antidiscriminação, cuja tramitação estava

há 7 anos paralisada por pressão das bancadas conservadoras. A pressão

social se fez presente, por meio de mobilizações de rua e nas redes sociais.

Pressionado, o parlamento aprovou a Lei 20.609, de 24 de julho de 2012,

denominada Lei Daniel Zamudio.

A decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos acerca do

caso Karen Atala e filhas versus Chile consolidou singular jurisprudência para

as Américas. Por entendimento do próprio Tribunal supranacional, a sentença

possui força normativa, servindo de orientação interpretativa para todas as

nações que reconhecem sua jurisdição.

164
O conteúdo da decisão firma entendimento que assegura o respeito

e a proteção aos direitos da diversidade sexual, assegurando a concretização

do direito à igualdade e à diferença no âmbito internacional. Considerando o

pressuposto de que jurisprudência, aliada a Opiniões Consultivas e tratados

internacionais, forma o núcleo normativo de proteção aos direitos humanos na

América, a deliberação exarada na sentença em análise se constitui como um

código a orientar a interpretação das normas nacionais. Neste sentido, o

controle de convencionalidade passa a ser o instrumento mais adequado à

afirmação dos direitos de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais.

Ao considerar o Poder Judiciário como o lócus da afirmação dos

direitos da diversidade sexual, sendo detentor absoluto do dever positivo de

decidir, a defesa destes direitos transfere-se para a Justiça Constitucional, na

sua vertente concentrada ou difusa, tendo como parâmetro finalíssimo o

controle de convencionalidade. Estão colocados à disposição do intérprete

instrumentos jurídicos suficientemente capazes de concretizar direitos

humanos de gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais.

A interação entre norma interna, pautada pela Constituição

interpretada sob o prisma neoconstitucional, que assegura prevalência dos

princípios, bem como reconhece ao lado do direito à igualdade, o direito à

diferença, e ordenamento internacional, cujas regras se efetivam localmente

por força do controle de convencionalidade, assevera o papel do Poder

Judiciário, destinando-lhe o protagonismo da concretização dos direitos da

diversidade sexual. Destarte, não se trata de relativizar a importância dos

demais entes federativos, cujo valor está na observância ao dever positivo de

agir e sua consequente atuação. Importa, sim, situar a luta política por

165
afirmação de direitos no campo real de intervenção de modo a avançar cada

vez no direito ao reconhecimento.

O reconhecimento das mazelas vivenciadas pela população

LGBT impõe um dever ético de agir. Importa tirar da invisibilidade social uma

parcela da população a quem historicamente tem sido negado direitos com

fundamento na identificação de características próprias que, sob o ponto de

vista jurídico, não os diferencia dos demais cidadãos. Deste modo, é imperativa

a adoção de medidas que, por um lado, não autorizem cerceamento infundado

de exercício de direitos fundamentais e, por outro, afirmem cada sujeito a partir

de cada singularidade, assegurando-lhes a possibilidade de serem

reconhecidos como se constituem e se projetam no espaço externo – corpo ou

sociedade.

O controle de convencionalidade, nos marcos delineados pela

atuação da Corte Interamericana de Direitos Humanos, constitui-se num

instrumento indispensável à efetivação da cidadania de lésbicas, gays,

bissexuais, travestis e transexuais. Por ele, incorpora-se definitivamente a

pauta dos direitos da diversidade sexual na gramática que orienta o respeito à

dignidade humana e a concretização dos direitos humanos – objetivos maiores

da marcha histórica protagonizada por homens e mulheres, de todas as

orientações sexuais e identidades de gênero.

166
CONSIDERAÇÕES FINAIS

A CONQUISTA DOS DIREITOS DA DIVERSIDADE SEXUAL

Sobre corpos se desenham personalidades, constroem-se imagens,

rabiscam-se direitos, desejos são exercidos. Trata-se do território fundamental

para a plena experiência humana, por isso mesmo, espaço tomado,

apropriado, externamente governado. A libertação dos corpos exige igual luta

pelo exercício da sexualidade e reconhecimento dos direitos dela decorrentes.

A possibilidade de exercer livremente todas as dimensões que o corpo

comporta dependerá da capacidade de ampliar os direitos sobre este espaço.

A conquista dos direitos da diversidade sexual se dará em três

momentos: reconhecimento, afirmação da igualdade e diferença, concretização

de direitos.

A luta por afirmar lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais

enquanto sujeitos de direitos se constrói pela percepção da importância do

corpo como lócus da experimentação humana e território de preservação da

dignidade de cada sujeito. Tem início, portanto, pelas ações que autonomizam

as subjetividades e autorizam suas exteriorizações no espaço individual (corpo)

ou coletivo (sociedade). Importa afirmar-se pelas singularidades que compõem

o indivíduo, asseverando-as positivamente. Para tanto, o desafio imposto será

construir mecanismos que permitam o exercício do direito à visibilidade e

direito ao reconhecimento, asseverando a gramática dos direitos fundamentais

como referencial primeiro para o diálogo entre Estado e sociedade.

167
A afirmação da diversidade sexual partirá da retomada do corpo e o

utilizará como instrumento para garantia de direitos. Assim, o reconhecimento

dos direitos de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais será possível

na medida em que as diferenças se tornarem visíveis, de modo a afirmá-las,

impondo o dever de ação que resulte no afastamento de discriminações legais

infundadas. Em outras palavras: é urgente que se assegure tratamento

igualitário, tendo como fundamento primeiro a preservação das diferenças.

Insta comprometer o Direito a adotar medidas que assegurem a

plena igualdade de tratamento jurídico, sem olvidar-se da perspectiva da

afirmação das diferenças como critério constituinte do indivíduo. É

indispensável afirmar a força normativa dos princípios e direitos fundamentais

como critério capaz de promover a extensão da proteção jurídica a diversidade

sexual. Neste particular, assevera que Igualdade e diferença são elementos

complementares da estrutura normativa constitucional, cuja concretização de

um impende o afastamento do outro.

A conjugação dos direitos fundamentais com os princípios vetores

da Constituição Federal, por meio do trabalho exegético, permite assegurar que

a proteção dos direitos da diversidade sexual encontra-se devidamente inserida

na Constituição Federal, devendo ser reconhecida a partir da hermenêutica que

fundamenta o chamado neoconstitucionalismo. No que se refere à garantia

destes direitos, importa dá primazia aos elementos constitucionais que

garantam efetiva igualdade de tratamento jurídico e respeito à diferença.

A partir da afirmação dos direitos à igualdade e à diferença, impõe-

se aos Poderes constituídos deveres para a proteção e promoção dos direitos

da diversidade sexual. Neste sentido, caberá ao Poder Legislativo a tarefa da

168
deliberação, devendo esta ser realizada em observância aos princípios e

direitos fundamentais, além de critérios éticos, guiando sua atuação para a

realização dos fundamentos que estão inseridos na Constituição. Contribuirá

para a realização dos direitos das diferenças sexuais na medida em que sua

atuação estiver comprometida com a defesa da dignidade da pessoa humana,

cidadania e realização dos objetivos fundamentais da República.

Aos Poderes Executivo e Judiciário compete o dever de decisão.

Impõem-se deveres positivos ou negativos ao Executivo, autorizando-os

sempre a agir de modo a concretizar direitos ou, ao contrário, o dever de não

ferir preceitos constitucionais que compõem a gramática protetiva da

diversidade sexual.

Ao Poder Judiciário, todavia, se atribui a missão mais urgente. Ao

impor o dever absoluto de agir, não está permitido atuar fora das linhas que

formatam constitucionalmente direitos e princípios fundamentais. Estabelece-se

a obrigação de promover direitos da diversidade sexual a partir da tarefa

precípua que é concretizar as regras jurídicas, em especial as normas

constitucionais. Neste particular, é urgente reconhecer a abertura que a

Constituição promoveu, possibilitando ampliar seu âmbito normativo de modo a

reconhecer direitos internacionais dos direitos humanos com igual

fundamentalidade que os direitos então positivados.

A lógica que deve guiar a atuação do Poder Judiciário centra-se na

ruptura com o clássico paradigma constitucional, rompendo a lógica de

supremacia da Constituição, forçando ao reconhecimento da pluralidade de

fontes jurídicas. Em especial, assevera-se a perspectiva apontada por um

constitucionalismo emergente, que assegura a prevalência dos princípios e

169
direitos fundamentais, no âmbito interno, atrelando-se, em igual condição de

efetividade, às normas internacionais, constituindo uma ampla gramática

protetiva dos direitos humanos.

A abertura constitucional permitiu a inserção do Brasil nos

organismos internacionais de proteção aos direitos humanos, constituindo um

novo referencial interpretativo. As normas emanadas nos sistemas

supranacionais passam a guiar a promoção de direitos. Para tanto, é

indispensável a realização do chamado controle de convencionalidade. Trata-

se do instrumento capaz de concretizar no direito interno as garantias

asseguradas no âmbito internacional. Por ele, se possibilita dotar de densidade

constitucional as normas emanadas dos tratados internacionais, bem como a

jurisprudência dos organismos jurisdicionais supranacionais.

Considerando a validade do conjunto normativo internacional, que se

impõe como referencial hermenêutico, é possível afirmar que, para além do

reconhecimento da proteção jurídica da diversidade sexual no âmbito da

Constituição Federal, os direitos elaborados pela atuação jurisprudencial da

Corte Interamericana de Direitos Humanos gozam de plena validade local,

impondo o dever de observância e concretização.

Considerando, ainda, que a Corte Interamericana de Direitos

Humanos possui balizada jurisprudência acerca dos direitos atinentes às

diversas orientações sexuais (e, por extensão, às diferentes identidades de

gênero), é forçoso reconhecer que estão postos elementos suficientes, no

âmbito interno e externo, para assegurar a plena realização dos direitos da

diversidade sexual. A responsabilidade pela concretização dos direitos de

lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais, constituída como

170
instrumento de luta, retorna às mãos do Poder Judiciário local e, em último

caso, é entregue à atuação dos demais Poderes e da sociedade civil.

Ao fim, reconhece-se que a ausência de legislação própria para a

promoção dos direitos da diversidade sexual não implica na denegação do

exercício destes mesmos direitos. Pela arquitetura constitucional, centrada na

primazia dos princípios e direitos fundamentais e na abertura ao direito

internacional dos direitos humanos, tem-se configurados os instrumentos

jurídicos necessários para a atuação dos poderes na defesa da cidadania de

lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais.

Doravante, torna-se imperativo, pela via da concretização da

igualdade em consonância com o respeito à diferença, afirmar o direito ao

reconhecimento (ou direito à visibilidade) como o primeiro direito fundamental

de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais. O ponto de partida,

portanto, está definido. Os instrumentais estão assegurados. Os caminhos de

conquistas de direitos precisam ser abertos, possibilitando a todos,

indistintamente, trilhas os destinos que serão capazes de construir, em busca

da realização dos seus próprios desejos.

Corpo, sexualidade e direito devem ser compreendidos como um

conjunto indissociável. Corpo livre, sexualidade plena, todos os direitos. A

separação desta tríade, a partir da negação de quaisquer dos elementos,

representa uma afronta à dignidade humana, violando direitos humanos e

direitos fundamentais. Tal violação constituiu, em última análise, a ruptura do

tecido que, fio-a-fio, tem sido costurado para servir de pano de fundo de outra

história de direitos. Destarte, faz nascer uma responsabilidade planetária: a

171
concretização dos direitos humanos só será possível quando a dignidade de

todos estiver assegurada.

Pelos direitos da diversidade sexual assegura-se o direito maior: ser

pessoa. Por estes direitos moveram-se pessoas e moverão mais e mais, até

que se possa vivenciar plenamente o gozo da experimentação humana,

centrada na possibilidade de amor e de fazer do sexo e sexualidade caminhos

de libertação do corpo e salvaguarda de direitos fundamentais.

Em maio de 1968, momento histórico e singular na defesa das

diferenças e liberdades sexuais, frases pinchadas nos muros de Paris

anunciam a luta urgente. Em defesa da igualdade e da liberdade, os jovens da

geração de 1968 mudaram o mundo, ao menos nossas cabeças. Numa manhã,

a cidade despertava e olhava um muro que desenhava o principal legado:

quanto mais eu faço amor, mais eu quero fazer revolução; quanto mais eu faço

revolução, mais eu quero fazer amor.

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