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KLEBERSON GRIEBNER
BLUMENAU
2022
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KLEBERSON GRIEBNER
BLUMENAU
2022
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DEDICATÓRIA
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AGRADECIMENTOS
4
Há homens que lutam um dia e são bons, há outros
que lutam um ano e são melhores, há os que lutam
muitos anos e são muito bons. Mas há os que lutam
toda a vida e estes são imprescindíveis
Bertolt Brecht
5
RESUMO
6
ABSTRACT
The present work aims to analyze the vulnerability and the violations of the
fundamental rights and guarantees of inmates who are members of the LGBTQIA+
community in the Brazilian prison system, also observing the need to create a specific
space for this prison population to live together while serving their sentences. Since,
due to the construction of heteronormativity preached by society - leaving this minority
to social invisibility - and reaffirmed in prison, a hostile place in itself, it leads to an
aggravation in the violation of the physical, psychological and moral integrity of the
LGBTQIA+ convict, given the atrocities practiced by other inmates, due to their gender
identity or sexual orientation different from that established as standard. Furthermore,
we sought to address national and international standards for the inherent treatment
of the LGBTQIA+ deprived-of-freedom population and whether Brazilian prisons
provide dignified conditions of permanence to fulfill their objective, re-socialization.
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 10
1. BREVES RELATOS SOBRE SEXUALIDADE: SEXO BIOLÓGICO, ORIENTAÇÃO
SEXUAL, IDENTIDADE DE GÊNERO E EXPRESSÃO DE GÊNERO..................... 13
1.1. Sexo biológico .................................................................................................... 13
1.2. Orientação sexual............................................................................................... 14
1.3. Identidade de Gênero ......................................................................................... 15
1.4. Expressão de Gênero......................................................................................... 16
2. COMPREENSÃO DA SIGLA LGBTQIA+ ............................................................. 16
2.1. HISTÓRIA DA EVOLUÇÃO DA PENA DE PRISÃO ......................................... 17
2.1.1. Idade Antiga .................................................................................................... 17
2.1.2. Idade Média ..................................................................................................... 19
2.1.3. Idade Moderna ................................................................................................ 20
2.1.4. Período Humanitário........................................................................................ 23
2.2. APLICAÇÃO DA PENA NO BRASIL ................................................................ 25
2.2.1. Breve contexto histórico de sua evolução ....................................................... 25
2.3. SISTEMAS PENITENCIÁRIOS .......................................................................... 28
2.3.1. Sistema da Filadélfia (ou celular) .................................................................... 28
2.3.2. Sistema de Auburn .......................................................................................... 28
2.3.4. Sistema Progressivo........................................................................................ 30
2.3.5. Sistema Progressivo Inglês e Irlandês ............................................................ 30
2.3.6. Sistema Progressivo Brasileiro ........................................................................ 31
3. RELEVANTES PRINCÍPIOS APLICÁVEIS NA EXECUÇÃO PENAL .................. 33
3.1. Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. ...................................................... 34
3.2. Princípio da Igualdade. ....................................................................................... 36
3.3. Princípio da Proporcionalidade ........................................................................... 37
4. O DIREITO DO APENADO LGBTQIA+ DE NÃO SOFRER DISCRIMINAÇÃO NO
CUMPRIMENTO DA PENA ...................................................................................... 38
4.1. Declaração Universal de Direitos Humanos ....................................................... 42
4.2. Princípios de Yogyakarta.................................................................................... 43
4.3. Aspectos da Resolução Conjunta n. 1, de 15 de abril de 2014 .......................... 47
5. SISTEMA PRISIONAL BRASILEIRO E OS APENADOS LGBTQIA+ ................. 52
5.1. A violação massiva de Direitos Fundamentais no sistema prisional brasileiro ... 53
5.2. O mapeamento nacional das pessoas LGBTQIA+ privadas de liberdade .......... 56
5.3. A vulnerabilidade do apenado LGBTQIA+ no cumprimento da pena ................. 63
5.4. As Alas e celas destinadas à LGBTQIA+ no sistema prisional brasileiro ........... 70
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CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................................................................... 77
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ......................................................................... 80
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INTRODUÇÃO
10
necessidade da criação de alas e celas especificas para o condenado LGBTQIA+
realizar o cumprimento de sua pena?
Ademais, a principal motivação para elaboração do tema foi a importância de
discutir a realidade vivenciada pela comunidade LGBTQIA+ no sistema prisional
brasileiro, visto que, não bastando sofrer atos discriminatórios e a consequente
exclusão da sociedade, quando inseridos no sistema prisional por meio de uma
sentença condenatória privando sua liberdade, o indivíduo LGBTQIA+ além de
cumprir a pena imposta pelo Juiz cumpre uma segunda pena estabelecida pelos
demais prisioneiros, momento em que as variáveis violações de direitos desses
indivíduos se intensificam, devendo os órgãos que integram o Estado efetivar as
garantias constitucionais e gerir políticas públicas, garantindo o mínimo de dignidade
a esses indivíduos.
O método que será adotado para esta pesquisa será o indutivo1. As técnicas serão:
Categoria2, Conceito Operacional3, Pesquisa Bibliográfica4 e Documental, visando a
produção de um conhecimento verdadeiro, a fim de averiguar a confirmação das
hipóteses apresentadas, compreendendo os inúmeros malefícios para com estes.
Dessa forma, a monografia se divide em alguns capítulos, o primeiro envolvendo
conceitos e esclarecimento quanto a sexualidade, e às características da população
LGBTQIA+ no que se refere a diferenciação terminológica da identificação de cada letra
que compõe a sigla, isso no intuito de agregar conhecimento ao leitor sobre as questões
que serão tratadas.
Posteriormente abordar-se-á a história da evolução da pena de prisão, passando
por suas diversas fases, até a aplicação da pena do Brasil e a criação do sistema
penitenciário brasileiro, abordando, ainda, os antigos sistemas que lhe serviram como
base para a criação do vigente.
1
“[...] base lógica da dinâmica da Pesquisa Científica que consiste em pesquisar e identificar as partes
de um fenômeno e colecioná-las de modo a ter uma percepção ou conclusão geral” (PASOLD, Cesar
Luiz. Metodologia da pesquisa jurídica: teoria e prática. 12. ed. São Paulo: Conceito Editorial, 2011,
p. 205).
2
Nas palavras de Pasold (PASOLD, Cesar Luiz. Metodologia da pesquisa jurídica: teoria e prática.
12. ed. São Paulo: Conceito Editorial, 2011, p. 25): “[...] palavra ou expressão estratégica à
elaboração e/ou expressão de uma ideia”. Grifos originais da obra em estudo.
3
Reitera-se conforme Pasold (PASOLD, Cesar Luiz. Metodologia da pesquisa jurídica: teoria e
prática. 12. ed. São Paulo: Conceito Editorial, 2011, p. 37): “[...] uma definição para uma palavra ou
expressão, com o desejo de que tal definição seja aceita para os efeitos das idéias que
expomos [...]”. Grifos originais da obra.
4
“[...] Técnica de investigação em livros, repertórios jurisprudenciais e coletâneas legais” (PASOLD,
Cesar Luiz. Metodologia da pesquisa jurídica: teoria e prática. 12. ed. São Paulo: Conceito Editorial,
2011, p. 207).
11
Por sua vez, no terceiro capítulo será elencado alguns dos mais relevantes
princípios aplicados na execução penal e no cumprimento da pena, enquanto o quarto
capítulo buscará analisar o direito do condenado LGBTQIA+ de não sofrer discriminação
no cumprimento da pena, trazendo a baila os principais instrumentos responsáveis por
regulamentar os direitos da população LGBTQIA+ privada de liberdade, apresentando a
influência de tratados internacionais, resoluções, lei de execução penal e a Constituição
Federal.
Por fim, no último capítulo é estudado a violação massiva de direitos
fundamentais no âmbito do sistema prisional, abordando em subtópicos as diversas
violências que a população carcerária LGBTQIA+ é exposta no cumprimento da pena,
que violam integralmente a Dignidade da Pessoa Humana, ainda, o capítulo em
questão se cumpre em apresentar o mapeamento nacional dessa comunidade privada
de liberdade, bem como as alas e celas destinadas a eles, demonstrando um
panorama das unidades prisionais que possuem os espaços reservados para proteger
tanto a integridade física quanto psicológica que lhe são violadas.
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1. BREVES RELATOS SOBRE SEXUALIDADE: SEXO BIOLÓGICO, ORIENTAÇÃO
SEXUAL, IDENTIDADE DE GÊNERO E EXPRESSÃO DE GÊNERO
De acordo com Rafart (2020) conceituar sexualidade é uma tarefa árdua, uma
vez que se trata de uma temática ampla e depende de um estudo englobando a vida
psíquica e social da pessoa. Aliás, na maioria das vezes, se vista em uma ótica social,
as práticas sexuais são impostas pela sociedade, sendo estabelecidos alguns critérios
e, uma vez que descumpridos - fora do padrão heteronormativo - lhe geram
consequências.
Logo “[...] fazemos aquilo que é permitido e contamos com a aceitação social,
ou fazemos o que é proibido, arcando com as pesadas consequências sociais que
qualquer prática sexual proibida (ou essencialmente não permitida) carrega”.
(RAFART, 2020, p. 21).
Por sua vez, a Organização Mundial da Saúde (OMS), define a sexualidade
como uma experiência individual regida por uma variação de experiências:
13
1.1. Sexo biológico
Posto isso, existem três tipos de orientações sexuais, que podem ser
classificadas como: Heterossexualidade, Homossexualidade e Bissexualidade
Rafart (2020, p. 106) citando Santana e Belmin (2017, p. 206) conceitua a
primeira denominação acima como aquele que se sente atraído física e
emocionalmente por pessoa do mesmo sexo, na segunda denominação, explica que
é o sujeito que se sente atraído física e emocionalmente por pessoas do sexo oposto
e, por fim, na última denominação, bissexual é a pessoa que se sente atraída física e
14
emocionalmente por pessoas de ambos os sexos.
Por oportuno, é necessário afirmar que a expressão “opção sexual” é
inapropriada e equivocada quando utilizada, isso porque “[...] a força interior é do
campo do desejo do indivíduo e jamais do campo das escolhas e da racionalidade”
(RAFART, 2020, p. 107).
[...] dimensão da identidade de uma pessoa que diz respeito à forma como se
relaciona com as representações de masculinidade e feminilidade e como
isso se traduz em sua prática social, sem guardar relação necessária com o
sexo atribuído no nascimento.
15
1.4. Expressão de Gênero
16
Internacional de Combate à LGBTfobia, definiu a representação de cada letra
presente na sigla LGBTQIA+ (2021, p. 4-8):
LÉSBICA: mulher (cis ou trans) que sente atração afetiva, emocional e/ou
sexual por outras mulheres (cis ou trans);
GAY: homem (cis ou trans) que sente atração afetiva, emocional e/ou sexual
por outros homens (cis ou trans);
BISSEXUAL: Pessoa que sente atração afetiva, emocional e/ou sexual por
pessoas de ambos os sexos/gênero. Popularmente, é utilizada a expressão
“Bi” para se referir a mulheres e homens bissexuais;
TRANSGÊNERO: Pessoa que se identifica com um gênero diferente daquele
que corresponde ao seu sexo biológico atribuído no momento do nascimento.
Cuja identidade de gênero transcende as definições convencionais de
sexualidade e transita entre os gêneros. São transgênero as pessoas
denominadas transexuais e travestis;
QUEER: Pessoa cuja orientação sexual não é exclusivamente heterossexual.
Em sua maioria, as pessoas que se identificam como queer consideram os
termos lésbica, gay e bissexual como rótulos que restringem a amplitude e a
vivência da sexualidade. O termo queer também é utilizado por algumas
pessoas para definir sua identidade e/ou expressão de gênero;
INTERSEXUAL: Pessoa que possui combinação dos dois sexos (feminino e
masculino), possui variações congênitas da anatomia sexual ou reprodutiva -
nasceu com a genitália ambígua, com os dois órgãos sexuais, ou com órgãos
com formação diferente - podendo incluir cromossomos, gônadas e/ou órgãos
genitais que dificultam a identificação do sexo biológico. Trata-se de uma
questão exclusiva de desenvolvimento sexual no período pré-natal;
ASSEXUAL: Pessoa que não sente nenhuma atração afetiva, emocional e/
ou sexual por outras pessoas, independentemente do sexo/ gênero;
(+): Inclui todas as demais orientações sexuais, identidade de gênero e
expressão de gênero existentes, não representadas ou expressas pela sigla
LGBTI.
17
liberdade era inexistente, dado que nesta época a prisão “[...] não tinha natureza de
pena-castigo, e sim possuía caráter acautelatório como o de guardar o réu ou o
condenado como forma de preservá-lo do julgamento ou da execução” (GARCIA
FILHO, 2013, p. 5).
Neste período, nota-se a ausência de legislação que regulamentasse as
práticas consideradas delitivas na sociedade, a fim de aprisionar o indivíduo e fazer
cumprir uma punição em caráter de pena, considerando a ausência disso, o
condenado apenas aguardava a realização de seu suplício em locais de extrema
precariedade.
Nas palavras de Carvalho Filho (2002, p. 21):
18
acompanhado numa carroça, nu, de camisola, carregando uma tocha de cera
acesa de duas libras; [em seguida], na dita carroça, na Praça de Greve, e
sobre um patíbulo que aí será erguido, atenazado nos mamilos, braços, coxas
e barrigas das pernas, sua mão direita segurando a faca com que cometeu o
dito parricídio, queimada com fogo de enxofre, e às partes em que será
atenazado se aplicarão chumbo derretido, óleo fervente, piche em fogo, cera
e enxofre derretidos conjuntamente, e a seguir seu corpo será puxado e
desmembrado por quatro cavalos e seus membros e corpo consumidos ao
fogo, reduzidos a cinzas, e suas cinzas lançadas ao vento. (FOUCAULT,
2014, p. 9)
É certo que, pelo tempo que perdurou a antiguidade, a pena de prisão não
teve o mesmo propósito da privação de liberdade aplicada como sanção penal nos
tempos atuais, visto que, até o fim do século XVIII a “prisão” somente tinha como
finalidade a privação dos infratores para aplicação das mais variadas punições
(BITENCOURT, 2011).
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nesse período ainda não existia uma necessidade de arquitetura para o aguardo da
execução das punições, mantendo-se a destinação dos infratores para locais
insalubres (GARCIA FILHO, 2013).
No entanto, é neste período que há o nascimento da prisão estatal e a prisão
eclesiástica, sendo que, na primeira se aprisionava os opositores do poder que
cometessem delitos de traição, ou os adversários políticos dos governantes. Está
subdividida em duas formas: a prisão-custódia, local em que o réu aguardava seu
julgamento, podendo receber mutilações, açoites e morte, ou detenção temporal ou
perpétua, na qual aguardava o perdão real.
Por sua vez, a prisão eclesiástica, era destinada aos clérigos rebeldes, e tinha
finalidade diversa da prisão estatal acima, pois aqui dava-se a finalidade de caridade,
redenção e fraternidade da Igreja, para tanto, o sistema tinha viés punitivo de
penitência e meditação, dado que os clérigos infratores eram recolhidos e
encaminhados as alas dos mosteiros para que por meio da disciplina pregada com
orações e meditações se lamentassem pela transgressão causada e obtivessem a
correção (BITENCOURT, 2011).
Apesar de na Idade Média ser mantido a punição do réu com a aplicação das
penas corporais e utilização de métodos cruéis, pode-se dizer que foi a partir da forte
influência do Direito Canônico com a aplicação da pena eclesiástica que começou a
se pensar em outro viés de punição aos delinquentes, sem a aplicação da pena em
seu método de crueldade. Embora, inicialmente, restrito este modo somente aos
clérigos, verifica-se que na idade moderna este método se amplificou com o advento
e utilização das casas de correções.
Em síntese, neste período, entre os séculos XVI e XVII, “[...] dava-se cada vez
mais ênfase à distinção entre mendicância apta e não apta ao trabalho. A primeira era
vista como sujeita a um sistema racional de bem-estar social, a última a uma política
20
criminal” (RUSCHE e KIRCHHEIMER, 2004, p. 64).
Diga-se isso porque a pobreza se alastrou por toda Europa e, por
consequência, o índice do cometimento de transgressões elevou-se, a par disso, as
políticas criminais vigentes não surtiram mais os efeitos almejados, a aplicação de
sanções de cunho corporal e até mesmo a pena de morte não era a forma de solução
mais eficaz, visto que não podia ser aplicar aos inúmeros transgressores, somado
esses fatos com os demais acontecimentos: guerras, crises do feudalismo,
endividamento do estado, aumento no índice da população urbana, cessou-se a
certeza de uma segurança provida pelo Estado (BITENCOURT, 2011).
Nesse viés, foi a partir da segunda metade do século XVI que, na Inglaterra,
a pedido de membros do clero inglês, os quais demonstravam preocupações com o
elevado índice de indivíduos em vulnerabilidade social e de criminalidade, que foi
outorgado pelo Rei a disponibilização do Castelo de Bridwell, localizado em Londres,
para acolhimento dos vagabundos, os ociosos, os ladrões e os autores de delitos
pequenos, surgindo dessa forma as casas de correção dos apenados, com a tímida
aplicação de penas privativas de liberdade, as quais consistiam na correção do
apenado por meio trabalho - escravo - e uma disciplina rígida (BITENCOURT, 2011).
Rusche e Kirchheimer (2004, p. 69) afirmam que “[...] a essência da casa de
correção era uma combinação de princípios das casas de assistência aos pobres
(poorhouse), oficinas de trabalho (workhouse) e instituições penais.”
21
A disciplina rígida era integrada ao trabalho contínuo e ininterrupto, bem como
a instrução religiosa, em sua maioria das vezes dirigida por voluntários, da mesma
forma os castigos eram aplicados quando fundamental para a constância da correção
dos detentos. (BICUDO, 2015).
Nas House of Correction, a mão de obra utilizada como forma de correção
para os infratores gerava lucro, posto que a matéria prima produzida pelos
condenados se destinava a comercialização:
22
quem parece abandonada”. Perigoso, de qualquer modo, pelo apoio que nele
encontram, uma contra a outra, a violência do rei e a do povo. Como se o
poder soberano não visse, nessa emulação de atrocidades, um desafio que
ele mesmo lança e que poderá ser aceito um dia: acostumado a “ver correr
sangue”, o povo aprende rápido que “só pode se vingar com sangue”
(FOUCAULT, 2014, p. 73)
23
Beccaria apresentava uma visão utilitarista da pena, ou seja, deveria ser útil,
garantindo a certeza de que a pena seria um exemplo para o futuro e não uma
vingança pelo passado, tudo isso, sem que houvesse a necessidade de meios cruéis,
como culturalmente se realizava.
O fim, pois, não é outro que impedir o réu de causar novos danos a seus
cidadãos e afastar os demais do cometimento de outros iguais.
Consequentemente, devem ser escolhidas aquelas penas e aquele método
de impô-las, que, respeitada a proporção, causem uma impressão mais eficaz
e mais durável sobre o ânimo dos homens e que seja a menos dolorosa para
o corpo do réu” (BITENCOURT, 2011, p. 56 apud BECCARIA, 1997, p. 46)
Além disso, pregava a separação dos condenados, fazendo com que “[...]
mulheres ficassem separadas dos homens, assim como os criminosos jovens dos
delinquentes velhos'' (BITENCOURT, 2011, p. 61).
Não obstante, há de se ressaltar que Howard foi um dos grandes idealizadores
da necessidade de “guardas” fiscalizadores no interior das penitenciárias, os quais,
em sua concepção, prestariam o auxílio que estivessem ao seu alcance, caso
houvesse reclamações dos condenados. Abordou, também, em suas obras, a
fiscalização do cumprimento da pena por magistrados, ensejando na figura do juízo
da execução para acompanhamento do cumprimento das penas (BITENCOURT,
24
2011).
No mesmo sentido, o iluminista Jeremy Bentham contribuiu para os avanços
com sua famosa idealização denominada panóptico, prevalecendo seus ideais sobre
a importância da arquitetura do sistema penitenciário e o conceito retributivo da pena.
Foucault informa em sua obra: “Vigiar e Punir: o Nascimento da Prisão”, que
o panóptico “[...] é uma máquina de dissociar o par ver-ser visto: no anel periférico, se
é totalmente visto, sem nunca ver; na torre central, vê-se tudo, sem nunca ser visto”
(FOUCAULT, 2014, p. 195).
É com estes segmentos e lineares de razões que no decorrer dos demais
períodos é deixado de lado o caráter cruel e irracional das penas, vindo a se
aprofundar a ideia da racionalidade e o princípio humanitário da condenação, com
base em uma proporcionalidade entre a transgressão realizada e a punição aplicada,
passando a se preocupar não só com a finalidade retributiva da pena, mas com os
meios adequados para o seu efetivo cumprimento.
Até o ano de 1500, os povos originários que viviam no Brasil regiam-se pelo
período da vingança privada, vingança coletiva, com aplicação da lei do Talião, foi
com a chegada dos portugueses no Brasil que se passou a ser elaborado a ideia do
Direito Penal, aliás, em que pese os meios de aplicação da punição dos povos
originários, suas práticas não tiveram influência em nossa atual legislação
(MIRABETE, 2001).
Portanto, durante a chegada dos portugueses, no período denominado Brasil
Colonial, foi implementado neste território o Direito que trouxeram consigo, vigorando
no ano de 1446 as Ordenações Afonsinas, criada por D. João I, dividida em cinco
livros, sendo estabelecido no seu último livro os delitos e as penas, Pierangeli (2001,
p. 52) citando Rocha (1896, p. 124) afirma que nas Ordenações Afonsinas:
[...] o legislador não teve em vista tanto os fins das penas, e a sua proporção
com o delito, como conter os homens por meio do terror e do sangue. O crime
de feitiçaria e encantos, o trato ilícito de cristão com judia ou moura e o furto
do valor de marco da prata são igualmente punidos com a pena de morte.
25
Posteriormente, foram supridas pelas Ordenações Manuelitas que se
manteve em vigência até o ano de 1569, sendo substituída pela Compilação de Duarte
Nunes de Leão que predominou até o ano de 1603.
Desde então, por duas décadas, manteve-se em vigência as Ordenações
Filipinas que, igualmente, em seu Livro V, versava sobre os crimes e as penas para
os transgressores, salienta-se que esta Ordenação é análoga ao período da Idade
Média, dado a aplicação de penas corporais e a forte influência da religião. Pierangeli
(2001) destaca que a pior das penas aplicada nesta época era a pena de morte, que
podia ser executada em quatro formas, levando em consideração uma escala de
crueldade.
1.º) Morte Cruel: a vida era tirada lentamente, entremeada de suplícios [...].
2.º) Morte atroz: nesta, acrescentaram-se algumas circunstâncias agravantes
à pena capital, como o confisco de bens, a queima do cadáver, o seu
esquartejamento, e até a proscrição de sua memória. 3.º) Morte simples: esta
representava apenas a perda da vida, e era executada mediante degolação,
enforcamento, este reservado para as classes mais humildes, porque era tido
como infamante. 4.º) Morte civil: com esta pena eliminava-se a vida civil e os
direitos da cidadania (PIERANGELI, 2001, p. 57).
26
criminoso sem má-fé, sem conhecimento do mal e sem a intenção de praticá-lo. Em
que pese a Constituição de 1824 ter abolido a realização das penas cruéis (tortura,
açoites, etc) ainda era possível encontrar vestígios de penas corporais, posto as
práticas das penas de morte e galés aplicadas para os escravos, trazendo outras
formas de penalidades paras os demais cidadãos, como por exemplo o banimento,
multa, degredo, perda e suspensão do emprego (TELES, 2006).
Referido Código apresentava algumas características relevantes, como a
imprescritibilidade das penas e a reparação do dano causado pelo delito, além da
responsabilidade sucessiva nos crimes de imprensa (PIERANGELI, 2001).
Vigente durante o Império Brasileiro, o Código Criminal de 1830 foi alterado
apenas na época da República, pelo Código Penal de 1890, todavia, este considerado
um dos Códigos mais defeituosos do Brasil, sendo necessário a elaboração de
diversas legislações para suprir suas falhas, mas, em que pese suas críticas, o Código
Penal de 1890 não apresentava aplicações de penas corporais, havendo se instalado
o regime prisional de caráter correcional (MIRABETE, 2001).
Devida suas falhas e lacunas, com o decorrer dos anos, as diversas
legislações criadas para suprir seus defeitos foram reunidas em uma só, na
Consolidação das Leis Penas, que se tornou oficial por meio do Decreto nº 22.213, de
14 de dezembro de 1932, vigorando até o ano de 1940. Neste mesmo ano, ocorre o
advento do Código Penal de 1940 que, apesar de marcado pelo autoritarismo da
Constituição vigente, abraça fundamentalmente as bases de um direito punitivo
democrático e liberal, além de trazer um novo sistema para o cumprimento da punição
(TELES, 2006).
27
2.3. SISTEMAS PENITENCIÁRIOS
A esta altura, com a abolição das penas corporais dando lugar ao controle à
disciplina e à correção, é elencando doutrinariamente três tipos de sistema
penitenciários com a aplicação das penas privativas de liberdade: o sistema Filadélfia,
o de Auburn e o sistema Inglês ou Progressivo.
28
sistema da Filadélfia, sendo construída a prisão de Auburn no ano de 1816, todavia,
o presente sistema apresentava características semelhantes ao sistema celular, uma
vez que persistia na reabilitação do transgressor por meio do isolamento, no entanto,
agora com a realização de trabalho durante o dia e isolamento no período noturno.
(BITENCOURT, 2011)
categorias:
29
Os reclusos não podiam caminhar, a não ser em ordem-unida ou fila indiana,
olhando sempre as costas de quem ia à frente, com a cabeça ligeiramente
inclinada para a direita e com os pés acorrentados, movimentando-se de
forma uníssona. (BITENCOURT, 2011, p. 93)
32
O ápice da progressividade do cumprimento da pena privativa de liberdade
reflete-se hoje em nosso Código Penal e, sobretudo, na Lei de Execução
Penal. Sua ideia básica é que, com o passar do tempo, se o preso cumprir
parte da pena e demonstrar-se digno de confiança, será premiado com a
passagem para um sistema de cumprimento menos rigoroso, de modo a ser
paulatinamente reinserido na sociedade. (ESTEFAM, 2018. p. 390)
Como pode se ver, pelo breve exposto, a pena e o sistema penitenciário em geral
tiveram sua gradativa evolução, no Brasil, em especial, deixamos a aplicação de
penas corporais para realizar a aplicação de penas “justas”, sem a violação do corpo
do condenado, cumprida agora em um sistema penitenciário, busca-se a reabilitação
do detento e não mais a sua correção, quer-se sua integração na sociedade, posto
que devido seu delito cometido, não está apto para viver nela.
Contudo, é fato que o Sistema Penitenciário Brasileiro atual apresenta vários
problemas, violando diversos preceitos fundamentais estabelecidos em nossa
Constituição de 1988, em verdade, encontra-se em crise e, pode-se dizer que devido
às falhas, seja na legislação até a sua efetivação, infelizmente o condenado integrante
da comunidade LGBTQIA+ sofre uma sanção maior dentro desse sistema dado sua
vulnerabilidade, posto que, a heteronormatividade, em âmbito penal, além da
superioridade masculina, obsta a vivência do apenado com orientação sexual ou
identidade de gênero diferente da heterossexual.
Dito isso, não é novidade que o preconceito e da discriminação já é vivenciado
fora das penitenciarias pela população LGBTQIA+, mas agora, quando reclusos, o
que se tem é uma agravação e continuação das violências suportadas durante o
cumprimento da pena, executadas principalmente pela população carcerária.
Sabendo que oficialmente o sistema prisional foi criado com o objetivo de cumprir
a sanção do condenado, buscando a reabilitação do detento, efetivando penas
alternativas das executadas antigamente, posto que no seu cumprimento, as penas
privativas de liberdade são cumpridas nos estabelecimentos penais brasileiros, que
se subdividem de acordo com a finalidade da pena a ser cumprida e que a lei n. 7.210,
de 11 de julho de 1984, aduz em seu primeiro artigo que a execução penal tem por
objetivo proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e
do internado, há, nesta ocasião, de se abordar três princípios importantes que regem
33
não só a aplicação da pena mas também sua execução, buscando observar, antes de
abordar a temática do presente artigo em sua essência, as garantias dos condenados.
Afirma Lemos Junior e Brugnara (2017, p. 91) que “[...] a expressão dignidade
vem do latim, dignitas, que significa tudo aquilo que merece respeito, consideração,
reverência, mérito, importância, acatamento ou estima”. Ainda, ilustram os autores
que a dignidade humana consiste em “[...] uma forma de valorização do ser humano”
(LEMOS JUNIOR; BRUGNARA, 2017, p. 91).
Nesse sentido, taxativamente previsto na Constituição da República Federativa
do Brasil de 1988, precisamente em seu art. 1º, é assegurado o exposto princípio
como um dos fundamentos essenciais do nosso Estado Democrático de Direito,
sendo, sem dúvida, o princípio alicerce de todos, posto que deste subdividem-se os
demais:
[...] um complexo de direitos que são inerentes à espécie humana, sem eles o
homem se transformaria em coisa, res. São direitos como vida, lazer, saúde,
educação, trabalho e cultura que devem ser propiciados pelo Estado [...] Esses
direitos servem para densificar e fortalecer os direitos da pessoa humana,
configurando-se como centro fundante da ordem jurídica. (AGRA, 2018, p. 145).
34
criação, independente da crença que se professe quanto à sua origem. A dignidade
relaciona-se tanto com a liberdade e valores do espírito quanto com as condições
materiais de subsistência. (BARROSO, 2010, p. 288)
[...] não se deverá olvidar que a dignidade – ao menos de acordo com o que parece
ser a opinião largamente majoritária – independe das circunstâncias concretas, já
que inerente a toda e qualquer pessoa humana, visto que, em princípio, todos –
mesmo o maior dos criminosos – são iguais em dignidade, no sentido de serem
reconhecidos como pessoas – ainda que não se portem de forma igualmente digna
nas suas relações com seus semelhantes, inclusive consigo mesmos. Assim,
mesmo que se possa compreender a dignidade da pessoa humana – na esteira do
que lembra José Afonso da Silva – como forma de comportamento (admitindo-se,
pois, atos dignos e indignos), ainda assim, exatamente por constituir – no sentido
aqui acolhido – atributo intrínseco da pessoa humana (mas não propriamente
inerente à sua natureza como se fosse um atributo físico!) e expressar o seu valor
absoluto, é que a dignidade de todas as pessoas, mesmo daquelas que cometem
as ações mais indignas e infames, não poderá ser objeto de desconsideração.
35
GONÇALVES, 2016, p. 103).
Portanto, o propósito do princípio da dignidade da pessoa humana é
proporcionar ao cidadão um mínimo de direitos a serem respeitados pela coletividade
e entes públicos, a fim de garantir a valorização do ser humano, posto que o princípio
“[...] representa a superação da intolerância, da discriminação, da exclusão social, da
violência, da incapacidade de aceitar o outro, o diferente, na plenitude de sua
liberdade de ser, pensar e criar” (BARROSO, 2010, p. 288).
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade
do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos
seguintes:
I - homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta
Constituição;
[...]
XLI - a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades
fundamentais;
O princípio da igualdade determina que seja dado tratamento igual aos que se
encontram em situação equivalente e que sejam tratados de maneira desigual os
desiguais, na medida ele suas desigualdades. Ele obriga tanto o legislador quanto
o aplicador da lei (igualdade na lei e igualdade perante a lei).
Seu encargo nada mais é do que um real princípio a regrar todo o restante do
direito, “[...] é como se tivesse dito: assegura-se o direito de liberdade de expressão
do pensamento, respeitada a igualdade de todos perante este direito” (BASTOS,
2015, p. 154).
Da mesma forma, preleciona Boaventura de Sousa Santos que:
“Temos o direito a ser iguais quando a nossa diferença nos inferioriza; e temos o
direito a ser diferentes quando a nossa igualdade nos descaracteriza. Daí a
necessidade de uma igualdade que reconheça as diferenças e de uma diferença
36
que não produza, alimente ou reproduza desigualdades.” (SANTOS, 2003, p. 56)
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade
do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos
seguintes:
[...]
§2º Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros
decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados
internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.
Nesse viés, há doutrinadores que compreendem este princípio como uma norma
constitucional não escrita, pertinente ao Estado Democrático de Direito, enquanto
outros entendem que se flui de outros princípios, como o do devido processo legal ou
da isonomia. Em que pese o conflito, há um consenso doutrinário acerca de sua
37
origem, criado pelo direito alemão.
Sua “[...] essência, consubstancia uma pauta de natureza axiológica que emana
diretamente das ideias de justiça, equidade, bom senso, prudência, moderação, justa
medida, proibição de excesso, direito justo e valores afins” (LENZA, 2014, p. 175)
Conforme leciona Barroso (2020, p. 300) o princípio da proporcionalidade se
trata “[...] de um valioso instrumento de proteção dos direitos fundamentais e do
interesse público, por permitir o controle da discricionariedade dos atos”. Na esfera
penal, o princípio da proporcionalidade deve ser compreendido em seus três
subprincípios: adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito.
38
Entretanto, inicialmente cumpre-me trazer à presente monografia o primeiro caso
de condenação por orientação sexual no Brasil que se tem história, ocorrido no
Maranhão, logo após a chegada dos franceses no ano de 1613, a vítima, um homem
indígena tupinambá, sentenciado pelo religioso francês Yves d'Évreux, frade
capuchinho, que integrou a expedição francesa ao Brasil Colônia.
Sua execução, com fundamento na sadomia, está retratada no próprio livro
escrito pelo religioso Yves d'Évreux, em sua obra “História das coisas mais
memoráveis acontecidas no Maranhão nos anos 1613 e 1614”, da qual destaca-se o
seguinte trecho:
Um pobre índio, bruto, mais cavalo do que homem, fugiu para o mato por
ouvir dizer que os franceses o procuravam e aos seus semelhantes para
matá-los e purificar a Terra de suas maldades por meio da santidade do
Evangelho, da candura, da pureza, e da clareza da Religião Católica
Apostólica Romana. Apenas foi apanhado amarraram-no e trouxeram-no com
segurança ao Forte de São Luís, onde deitaram-lhe ferros aos pés; vigiaram-
no bem até que chegassem os principais de outras aldeias para assistirem
ao seu processo, e proferirem sua sentença e sua morte, como fizeram afinal.
Não esperou o prisioneiro pelo princípio do processo, e ele mesmo
sentenciou-se, porque diante de todos disse: “Estou morto, e bem o mereço,
porém desejo que igual fim tenham os meus cúmplices.” (d’Évreux, 2007, p.
319-320)
Antes de sua morte, lhe fora concedido o batismo, “[...] cuidou-se em sua alma
dizendo-se-lhe, que se ele recebesse o batismo, apesar de sua má vida passada, iria
direto para o Céu apenas sua alma se desprendesse do corpo” (d’Évreux, 2007, p.
320).
O indígena ou “tibira do maranhão” como ficou conhecido, foi levado até um dos
canhões instalados na muralha do forte de São Luís, local que se procedeu à sua
39
execução.
Apesar do fato ter ocorrido no período Brasil Colônia, época ainda marcada pela
realização dos suplícios como forma de condenação, nota-se que a discriminação
contra os homossexuais não é evento recente, faz parte da tradição jurídica brasileira,
inclusive a criminalização do agir homossexual. Diga-se isso, porque vigente no livro
V das Ordenações Filipinas norma que tipificou como crime e estabeleceu punição
aos que praticavam o pecado da sadomia, independentemente se realizado por
homens ou mulheres.
A sadomia encontrava-se tipificada no livro V “Título XIII: Dos que cometem
pecado de sodomia, e com alimárias” determinando que:
Toda a pessoa, de qualquer qualidade que seja, que pecado de sodomia (1)
per qualquer maneira commetter, seja queimado, e feito por fogo em pó (2),
para que nunca de seu corpo e sepultura possa haver memoria, e todos seus
bens sejam confiscados para a Coroa de nossos Reinos, postoque tenha
descendentes; pelo mesmo caso seus filhos e netos ficarão inhabiles(3) e
infames, assi como os daquelles que commetem crime de Lesa Majestade.
40
Somente com o advento do Código Penal do Império, no ano de 1830, foram
revogadas as disposições que versavam sobre crimes nas Ordenações Filipinas,
desaparecendo a criminalização da homossexualidade.
41
preconceitos em razão da diversidade.
Portanto, considerando que essa discriminação contra os homossexuais não é
novidade, que novidade é o combate aos preconceitos que historicamente motivam
práticas discriminatórias, há de se abordar algumas normas que amparam a
comunidade LGBTQIA+ no cumprimento da pena.
42
do preconceito. Ademais, os arts. 2º e 7º dispõem sobre a igualdade a que tem direitos
todos os cidadãos, sem que tenha distinção de qualquer espécie, sob pena de afronta
aos direitos humanos.
Igualmente, seu art. 5º aduz que “ninguém será submetido a tortura nem a pena
ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes” (ONU, 1948), contudo, os corpos
dos apenados e, principalmente dos reclusos da comunidade LGBTQIA+, encontram-
se sujeitos a esta violação.
43
Yogyakarta foram elaborados na Universidade de Gadjah Mada, em Yogyakarta,
Indonésia, no ano de 2006, sendo apresentado em 2007 pelo Conselho de Direitos do
Homem da Organização Internacional das Nações Unidas, não com o objetivo de
realizar a criação de novos direitos à comunidade LGBTQIA+, mas de adequá-los a
este grupo (ALAMINO; VECCHIO, 2018, p. 4-5 apud O’FLAHERTY; FISCHER, 2008,
p. 232-233).
Frisa-se que, atualmente, o material que mais possui disposições garantistas à
comunidade LGBTQIA+ é disposto nos Princípios de Yogyakarta, os quais “[...]
prometem um futuro diferente, onde todas as pessoas, nascidas livres e iguais em
dignidade e prerrogativas, possam usufruir de seus direitos, que são natos e
preciosos” (PRINCÍPIOS, 2006, p. 7).
À vista disso, constitui-se o documento num extensivo rol de princípios que
perpassam as variadas esferas da vida civil, desfrutando sobre a igualdade e a
erradicação da discriminação LGBTQIA+, além de prescrever obrigações e
recomendações específicas aos países que a ele são signatários, visando garantir a
plena implementação dos direitos inerentes as pessoas com orientações sexuais ou
identidade de gênero diversa.
44
meio da incorporação do texto tanto na Carta Magna, como também em seu Código
Penal, devendo ainda, promover políticas públicas na conscientização da sociedade
para atingir a eficácia da norma, a fim de, promover o gozo universal dos Direitos
Humanos (PRINCÍPIOS, 2006, p. 12).
Por conseguinte, o segundo princípio aborda a não criminalização da
orientação sexual ou identidade de gênero, vez que, diante da igualdade não há o que
se falar sobre qualquer tipo de criminalização, devendo o Estado adotar normas
internas para tanto e buscar sua efetividade na punibilidade (PRINCÍPIOS, 2006, p.
12-13).
45
responsáveis sejam processadas, julgadas e devidamente punidas, e que as
vítimas tenham acesso a recursos jurídicos e medidas corretivas adequadas,
incluindo indenização;
e) Realizar campanhas de conscientização dirigidas ao público em geral,
assim como a perpetradores/ as reais ou potenciais de violência, para
combater os preconceitos que são a base da violência relacionada à
orientação sexual e identidade de gênero. (PRINCÍPIOS, 2006, p. 15-16)
Toda pessoa privada da liberdade deve ser tratada com humanidade e com
respeito pela dignidade inerente à pessoa humana. A orientação sexual e
identidade de gênero são partes essenciais da dignidade de cada pessoa.
(PRINCÍPIOS, 2006, p. 19)
46
proibição da marginalização das pessoas com orientação sexual ou identidade de
gênero diversa, assegurando que estejam livres de maus tratos ou abuso físico,
mental ou sexual.
No mesmo sentido, segue o princípio dez, estabelecendo o direito do apenado
LGBTQIA+ de não sofrer tortura, tratamento ou castigo cruel, desumano ou
degradante:
Toda pessoa tem o direito de não sofrer tortura e tratamento ou castigo cruel,
desumano ou degradante, inclusive por razões relacionadas à sua orientação
sexual ou identidade de gênero. (PRINCÍPIOS, 2006, p. 20)
47
Considerada uma grande conquista para a proteção do detento LGBTQIA+, a
Resolução Conjunta nº 1, de 15 de abril de 2014 elaborada entre o Conselho Nacional
de Política Criminal e Penitenciária e Conselho Nacional de Combate à Discriminação
versa sobre os parâmetros para a proteção dos apenados LGBTQIA+ em privação de
liberdade no Brasil.
Pautada em artigos constitucionais, em especial no art. 5º, incisos III, XLI, XLVII,
XLVIII e XLIX, que assim dispõem:
48
IV - Constituição de pecúlio;
V - Proporcionalidade na distribuição do tempo para o trabalho, o descanso e
a recreação;
VI - Exercício das atividades profissionais, intelectuais, artísticas e
desportivas anteriores, desde que compatíveis com a execução da pena;
VII - Assistência material, à saúde, jurídica, educacional, social e religiosa;
VIII - Proteção contra qualquer forma de sensacionalismo;
IX - Entrevista pessoal e reservada com o advogado;
X - Visita do cônjuge, da companheira, de parentes e amigos em dias
determinados;
XI - Chamamento nominal;
XII - Igualdade de tratamento salvo quanto às exigências da individualização
da pena;
XIII - Audiência especial com o diretor do estabelecimento;
XIV - Representação e petição a qualquer autoridade, em defesa de direito;
XV - Contato com o mundo exterior por meio de correspondência escrita, da
leitura e de outros meios de informação que não comprometam a moral e os
bons costumes.
XVI – Atestado de pena a cumprir, emitido anualmente, sob pena da
responsabilidade da autoridade judiciária competente.
[...]
Art. 45. Não haverá falta nem sanção disciplinar sem expressa e anterior
previsão legal ou regulamentar.
Por sua vez, o art. 2º da resolução garante que “[...] a pessoa travesti ou
transexual em privação de liberdade tem o direito de ser chamada pelo seu nome
social, de acordo com o seu gênero'' (CNCD, 2014). Agregando a este artigo, soma-
se o art. 2 do Decreto n. 8.727 de 28 de abril de 2016 que assim dispõe:
49
autárquica e fundacional, em seus atos e procedimentos, deverão adotar o
nome social da pessoa travesti ou transexual, de acordo com seu
requerimento e com o disposto neste Decreto.
Parágrafo único. É vedado o uso de expressões pejorativas e discriminatórias
para referir-se a pessoas travestis ou transexuais.
50
liberdade da pessoa travesti ou transexual usar da disposição do seu corpo,
reforçando sua identidade de gênero.
51
mesmo sexo.
Como pode se notar, o objetivo primordial das normas apresentadas consiste em
conceder ao infrator LGBTQIA+ condições dignas no cumprimento de sua pena, de
maneira humanizada, abstendo-se de eventuais violências, discriminação, abuso,
excesso ou barbárie em razão da orientação sexual e identidade de gênero, posto que
essas e outras situações são, de fato, vivenciadas pela população LGBTQIA+ privada
de liberdade, em razão do desapreço da população carcerária, como se observará a
seguir.
52
identidade de gênero diversa da heterossexual. Assim, o integrante da comunidade
LGBTQIA+ que cumpre pena privativa de liberdade se depara em primeiro momento
com seu não acolhimento dentro do ambiente prisional, aliado ao medo de conviver
com os que ali o renegaram (BARBOSA, 2019).
Não são raras as constatações de que esta situação é largamente aceita por
grande parcela da sociedade brasileira, que pautada no senso comum,
acredita que os detentos realmente devem sofrer duras sanções e até mesmo
penas cruéis. (PEREIRA, 2017, p. 6)
54
Tamanha violação de direitos fez com que em 2015, o Supremo Tribunal
Federal (STF) reconhecesse um Estado de Coisas Inconstitucional no sistema
carcerário brasileiro, ocasionada por violação de direitos fundamentais e reiterada
inércia estatal, por meio da arguição de descumprimento de preceito fundamental n.
347, proposta pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL).
Como já dito, nossa legislação garante de maneira vasta os direitos humanos
e fundamentais a todas as pessoas, portanto, deveria o vigente sistema prisional ter
como objetivo a sanção proporcional a pena, a regeneração do condenado e a
garantia dos direitos fundamentais. Entretanto, conforme exposto acima, o que se tem
é a violação generalizada dos direitos dos presos no tocante à dignidade da pessoa
humana.
Precipuamente, insta destacar o voto do Ministro relator Marco Aurélio de
Mello no julgamento da ADPF 347, afirmando que diversas são as violações de
direitos fundamentais no tocante aos sentenciados.
55
De igual modo abordou o Ministro Luís Roberto Barroso na exposição do seu
voto:
56
prisões do Brasil: Diagnóstico dos procedimentos institucionais e experiências de
encarceramento”, realizado pelo Ministério da Mulher, da família e dos Direitos
Humanos no ano de 2020.
Para tanto, no intuito de elaborar dados quantitativos acerca do perfil da
população carcerária LGBTQIA+, o Departamento Penitenciário Nacional enviou um
ofício com o questionário online para os órgãos da administração penitenciária de
cada Estado do Brasil, recebendo como retorno um total de 499 respostas, cerca de
34% das 1499 instituições deste sistema em nosso país (BRASIL, 2020, p. 13).
Da mesma forma, foi designado um servidor por unidade prisional para
responder o questionário, dividido em quatro itens:
57
Imagem n. 1 - População LGBTQIA+ em unidades masculinas
58
Imagem n. 3 - Faixa etária da população privada de liberdade (Gay)
59
Imagem n. 6 - Faixa etária da população privada de liberdade (Lésbicas)
60
porcentagem de visitas dos carcerários LGBTQIA+, com os dados obtidos viu-se que
apenas 40% dos integrantes da comunidade possuem visita cadastrada nos registros
das instituições, porém, a porcentagem informada “[...] não implica necessariamente
no mesmo de número de visitas que, de fato, ocorrem. Ou seja, a proporção de
pessoas LGBT que efetivamente recebem visita é ainda menor que esse número”
(BRASIL, 2020, p. 25), logo, reforça os “[...] relatos de abandono familiar narrados
pelos LGBT, sobretudo da população de travestis e mulheres transexuais” (BRASIL,
2020, p. 25).
Por fim, em relação aos tipos criminais praticados pela população LGBTQIA+
privada de liberdade, o levantamento de dados colhido durante as visitas institucionais
apresentou os seguintes gráficos referente aos que se consideram Gays, Travestis e
Mulheres Transexuais.
61
um total de 88,5% das condenações, portanto, “[...] esse número pode ser relacionado
aos riscos decorrentes da atividade de prostituição mencionada anteriormente”
(BRASIL, 2020, p. 28).
Por fim, no tocante aos tipos criminais praticados por mulheres bissexuais, os
dados apresentam o elevado nível da prática do tráfico de drogas, compondo 64,8%
das carcerárias, permanecendo em segundo lugar o ato ilícito de roubo no montante
de 14,3%. Da mesma forma, acerca dos tipos criminais perpetrados por homens
bissexuais, prevaleceu a prática do tráfico de entorpecentes com 26,7% dos
apenados, em segundo o crime de estupro com 21,7% e em terceiro o crime de roubo
com 21,5% (BRASIL, 2020, p. 26-27).
O tópico a seguir apresentará as situações e os tipos de risco que enfrentam
os detentos LGBTQIA+ envolvidos no sistema penitenciário brasileiro, não será
apresentada uma lista exaustiva de todos os fatores de riscos, mas sim um delinear
dos mais comuns. Portanto, em que pese todos os sentenciados tenham sua
62
dignidade humana violada, seja por celas insalubres, ou pelo risco de sofrerem tortura
e outros meios de maus tratos que ocorrem frequentemente no início do regime
fechado, os detentos LGBTQIA+ estão mais vulneráveis as formas de abuso, ao
assédio, a violência física e psicológica, aos estupros por outros presos ou por agentes
penitenciários.
Esse sistema não se trata de algo natural, mas sim resultado de uma cultura
patriarcalista, vez que “[...] desde a aferição do sexo durante a gestação, somos
preparados para assumir uma determinada função social” (SILVA e ARCELO, 2016,
p. 4). Trata-se, então, de um fenômeno vulgarmente interpretado de forma precoce e
performativa, havendo outros meios que reafirmam isso, como o sistema penitenciário
que prega pela seletividade heteronormativa.
63
territórios, como migrantes clandestinos que escapam do lugar onde
deveriam permanecer, esses sujeitos são tratados como infratores e devem
sofrer penalidades. Acabam por ser punidos, de alguma forma, ou na melhor
das hipóteses, tornam-se algo de correção. Possivelmente experimentarão o
desprezo ou a subordinação. Provavelmente serão rotulados (e isolados)
como “minorias” (SILVA e ARCELO, 2016, p. 4 apud LOURO, 2004, p. 132).
65
Entrar nessa vida do crime, de cometer alguns assaltos foi justamente a falta
de oportunidade, porque o mercado de trabalho me rejeitou. Quando viam o
meu currículo, por mais que eu tivesse um bom grau de escolaridade e vários
cursos, só por ter uma foto aparentemente de uma mulher [...] e o nome
masculino, “ah, é travesti, é transexual, não presta, é símbolo de prostituição,
é marginalidade. A gente não pode dar uma chance para uma pessoa assim
[...]”. (SOMOS, 2019, 3‘00s’’ - 3’37s’’)
“[...] já passei por outra cadeia em Alta Floresta que não tinha uma ala como
essa, entendeu. Eu sofri bastante, apanhei, fui oprimida, entendeu. Já fui
automaticamente molestada várias e várias vezes. (SOMOS, 2019, 0’39s -
01’04s)
[...] a gente sabe que não é fácil para a gente que é homossexual. Não é
muito fácil porque é muito preconceito, entendeu. Muito preconceito, com
agentes, entendeu, que zoam, entendeu, xingam, maltratam. (SOMOS, 2019,
4’55 - 5’12)
Agressões por parte da instituição que não medem seu nível de crueldade e
violação da dignidade da pessoa humana.
Eu sofri uma agressão física [...] uma coisa que eu nunca imaginei que
pudesse acontecer. Eu perdi um testículo de tanto apanhar de um agente
penitenciário, da COP, sabe. (SOMOS, 2019 5’13 - 5’24).
66
grau elevado. Nesse viés, aduz Monteiro (2019, p. 155) que:
[...] era obrigada a ter relação sexual com todos os homens das celas, em
sequência. Todos eles rindo, zombando e batendo em mim. Era ameaçada
de morte se contasse aos carcereiros. Cheguei a ser leiloada entre os presos.
Um deles me “vendeu” em troca de 10 maços de cigarro, um suco e um
67
pacote de biscoitos. [...]. Fiquei calada até o dia em que não aguentei mais.
Cheguei a sofrer 21 estupros em um dia. Peguei hepatite e sífilis. Achei que
iria morrer. Sem falar que eu tinha de fazer faxina na cela e lavar a roupa de
todos. Era a primeira a acordar e a última a dormir. (KIEFER, 2014, p. 1).
O agente chegou na cela. Uma travesti, amiga minha pediu para ele um pão,
porque ela estava com fome [...]ele falou para ela: “eu te dou o pão se você
me mostrar os seios”. Ela mostrou e ganhou o pão, porque ela estava com
fome e teve que mostrar. (SOMOS, 2019, 6’55 - 7’12)
Desde a não utilização do nome social, sob pena de, ao reclamar, perder o
direito de visita, ajuda da família, ficar sem banho de sol, até o rigor no cumprimento
de normas internas estabelecidas, como vedação do compartilhamento de utensílios,
chantagens por demais internos, manter relação sexual com outros detentos sob sigilo
absoluto, são temas abordados pela população LGBTQIA+ privada de liberdade que
integrou a película.
Igualmente, o documentário denominado “Close”, realizado no ano de 2016,
na unidade prisional Irmã Imelda Lima Pontes, localizada na região metropolitana de
Fortaleza, com direção de Rosane Gurgel, é possível verificar as mesmas
vulnerabilidades desses internos quando cumpriam pena em unidades prisionais que
não possuíam celas destinadas especialmente à eles. Narram, para tanto, que era
visível a presença de duas prisões, a física, no qual proíbe a expressão de ser quem
você é através de sua aparência, seja usando roupas femininas ou deixando seu
cabelo crescer, e a prisão psicológica, a qual não permite que você se sinta da forma
que gostaria, levando muitas vezes até a depressão.
Ainda, insta mencionar a entrevista realizada por um detento homossexual à
Human Rights Watch, que apresentou o relatório chamado “Brasil atrás das grades”,
escrito por Joanne Mariner, no qual o prisioneiro narra o tratamento concedido pelos
companheiros heterossexuais da cela.
Eles dizem que nós não temos dignidade, honra e direitos. Eles são
orgulhosos de serem homens, bandidos; eles são durões… Eles nos vêm
como objetos para serem usados. Se há uma rebelião, nós somos os que
sofrem. Os guardas não têm controle da situação aqui dentro. (MARINER,
68
1998, p. 78)
Nós cumprimos duas sentenças aqui: uma imposta pelo juiz e outra imposta
pelos prisioneiros. Nós não temos valor para eles. Ninguém presta atenção
para a palavra de um homossexual. Eles nos deixam falar com eles até um
certo ponto. Nenhum deles beberia do meu copo. (MARINER, 1998, p. 78)
Eu fico em uma cela que têm traficantes. Eu sou sozinha aqui. Eu sei que tem
outras travestis, mas a gente fica espalhada. Quando eu cheguei na cela, eles
chegaram pra mim e falaram que pra ficar ali eu tinha que esconder droga
dentro de mim. Na hora eu disse que não ia fazer isso e ficou por isso mesmo.
Quando foi na primeira visita, minha mãe veio me visitar. Quando eu olhei pra
ela eu levei um susto porque a cara dela tava toda quebrada. Foi horrível! Eu
perguntei pra ela o que tinha acontecido, mas eu já sabia o que tinha
acontecido. Ela disse que pegaram ela na rua e bateram nela e falaram pra
ela que eu tinha que esconder a droga. Quando eu voltei pra cela eu fui lá e
disse que ia esconder a droga. Pouco tempo depois teve uma revista na cela
e eles foram direto em mim. Quando me revistaram mandaram eu agachar e
viram que eu tava com a droga. Eu já era pra ter saído daqui. Eu sou primário
e fui presa porque eu roubei um cliente. Já era pra eu ter saído daqui. Agora
que me pegaram com droga eu peguei uma pena maior e vou ficar uns bons
anos. Os agentes aqui não querem saber da gente. A gente é bicho pra eles.
Nem adianta falar nada que eles não vai acreditar na gente. Aí eu fico
naquela, se eu não escondo droga eles matam a minha mãe, se eu escondo
a droga eu fico aqui pro resto da minha vida. (BRASIL, 2020, p. 113-114)
Eu apanhei, quebraram esses meus dois dedos porque eu não queria lavar
roupa pra eles. Então aí, se junta mais de um e a gente não tem muito o que
fazer, porque daí que eles venham ouvir o que a gente tem a dizer, a gente
já foi estuprado, a gente já apanhou. A gente não pode falar. Tem agente que
manda a gente resolver aqui. A gente não aguenta mais. A gente já está
69
pagando a nossa pena. A gente não merece isso. Eu já fui estuprada. Falei
pra minha mãe e ela ficou desesperada. (BRASIL, 2020, p. 115)
[...] outros detentos acabam tendo uma impressão errada com relação aos
presos que são homoafetivos e acreditam que só por este fato, são obrigados
a ter relação com eles quando quiserem, e isso acaba fazendo com que eles
se tornem uma moeda de troca para sexo entre outros presos. Ou seja, eles
não possuem controle sobre o seu próprio corpo, estando submetidos a regra
dos demais companheiros de sexo quanto a sua integridade física. (FRANÇA,
2020, p. 4)
70
Imagem n. 9 - Quantitativo de alas LGBTQIA+ por Estado
71
submetida” (BRASIL, 2020, p. 19), contudo, se mostra eficaz na redução da crueldade
concedida no cumprimento da pena. Além disso, deve-se compreender que separar
os apenados LGBTQIA+ não se trata de um “[...] mecanismo de segregação, mas sim,
como meio de proteção para indivíduos que, em razão de sua condição afetiva, são
alijados dos direitos fundamentais” (MARINA; CARTAXO e CORREIA, 2018 p. 19).
Com o objetivo de abordar uma das unidades prisionais da região sul do nosso
país, que possui população LGBTQIA+ privada de liberdade, torna-se essencial a
apresentação dos aspectos e características da Penitenciária Industrial de Blumenau,
localizada na região de Ponta Aguda, inaugurada em 27 de janeiro de 2016. Referida
unidade possui estrutura arquitetônica padrão, com característica marcante no que se
refere ao sistema de segurança, “[...] se aproxima de uma releitura do modelo
panóptico onde os agentes de segurança têm completa visão do cotidiano dos
apenados, enquanto que os apenados não conseguem visualizar a atuação dos
agentes (BRASIL, 2020, p. 32).
A Penitenciária Industrial de Blumenau (PIB) é efetivamente destinada à
população carcerária condenada, possuindo 599 vagas, contando, atualmente, com
617 internos, a unidade prisional é dividida em alas e subdivide-se em celas. Frisa-se
que esta penitenciária não possui espaço destinado especialmente para reclusos
LGBTQIA+, de acordo com a administração do local, não existe nenhuma cela ou ala
reservada para essa população no estado de Santa Catarina. Contudo, a equipe
técnica da penitenciária identificou nos atendimentos cinco detentos integrantes dessa
comunidade, no qual dois se declaram gays, outros dois bissexuais e um deles
heterossexual que possui relação afetiva com uma travesti (BRASIL, 2020, p. 32).
Referidos internos declarados gays, ao serem entrevistados, informaram que
não possuem sua orientação sexual declarada perante os outros condenados. No
mesmo linear, os detentos bissexuais também não se declaram abertamente sobre
sua sexualidade para os demais apenados, deixando claro o medo de sofrer punições
pela população carcerária (BRASIL, 2020, p. 32).
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Isso corrobora-se com a narrativa dos internos gays, ao declararem a
sensação “[...] de insegurança e da falta de liberdade para viverem suas
conjugalidades” (BRASIL, 2020, p. 32), conforme segue:
Tipo assim, aqui nessa unidade aqui, então não tem célula, né? Tinha um
parceiro aqui e foi embora. né? Mas daí nós convivia uma célula com
simpatizantes, né? 18 vagas. [...] Eu era casado aqui, mas ele recebeu
liberdade. A gente foi preso junto. Agora que ele saiu eu tou sozinho aqui.
Não dá para confiar. (BRASIL, 2020, p. 32)
Por enquanto eu não vivi nenhuma violência, mas a gente fica com medo,
né? A gente nunca sabe quando um doido vai vir pra cima, né? Eu não
conheço nenhum outro (gay) aqui. Cada pessoa tem o seu o seu modo de
pensar, né? Cada pessoa tem um jeito de pensar. Tem pessoas que não
ligam para a orientação sexual que eu tenho, mas tem pessoas que têm
preconceito. Tem! A gente ver pelo jeito na hora que a gente tá aqui que te
cumprimenta. Eles nem cumprimentam. (BRASIL, 2020, p. 32)
Eu acho que tem mais (gays) aqui. A questão é que eles não falam. Não
querem correr o risco. Eu acho que se tivesse um lugar pra gente, que a gente
pudesse ficar, ia ter mais saindo do armário. É que é difícil, né? A gente aqui
sozinho, sem poder confiar em ninguém. (BRASIL, 2020, p. 33)
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Ah, eu acho aí um pouco de problema. A gente chama família para a visita e
ela ia saber que você é assumido. Uma coisa é aqui dentro, outra é nossa
casa, né? E na verdade eu não queria. Eu, na verdade, eu não queria que
soubessem por enquanto. Depois quando eu tivesse na rua de volta para
casa já eu posso falar para eles. (BRASIL, 2020, p. 33)
Eu estava em outra prisão. Era eu e mais trans. A gente tentou abrir uma cela
pra gente. Conversar com o pessoal, os agentes da prisão. Só que a gente
não conseguiu porque a facção não deixou. (BRASIL, 2020, p. 40)
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Os apenados LGBTQIA+ reconhecem que um homem gay necessita de maior
esforço “[...] declaratório ou até mesmo performático, para que seja reconhecido
institucionalmente como um sujeito de direito de práticas institucionais protetivas”
(BRASIL, 2020, p. 42).
Pra mim foi mais fácil porque eu já tenho engajamento no núcleo LGBT e eu
sou afeminado e uso maquiagem, tenho cabelo comprido, então fica mais
nítido. Mas, realmente, pro gay masculino, aquele gay que se passa como
hétero, é mais difícil. Talvez mesmo ele expondo a sexualidade, talvez o juiz
não acate. A gente tem casos de gente que passou muito tempo em alas
evangélicas em outros presídios até que conseguissem ser inseridos no
projeto. Que vieram de outras cadeias do interior, de outras comarcas. De o
magistrado de outro lugar não entender que uma figura masculina é gay. Pra
mim não foi nem um pouco porque eu sou afeminado, cabelo comprido e tudo
mais. Acredito que pra quem tenham o perfil masculino, bem másculo, seja
mais difícil. (BRASIL, 2020, p. 42)
Eles não deixam o cabelo da gente crescer. Eu cortei uma camisa e eles
tomaram. Não deixam nenhum tipo de roupa feminina. Tem a portaria, mas
eles não estão usando. (BRASIL, 2020, p. 51)
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unidade prisional localizada na capital do estado do Mato Grosso, que compõem uma
ala arco íris com oito celas reservadas para a população LGBTQIA+. Nesta ala,
ocupada por 24 pessoas, entre travestis e homens gays, as celas se abrem no início
do dia e se fecham à noite, além disso, os internos possuem seu próprio espaço para
banho de sol, sem a necessidade de compartilhar com outros presos e a realização
de escala para o seu uso (BRASIL, 2020, p. 41).
Além das ações no que se refere a população carcerária LGBTQIA+, tendo
em vista suas especificidades, a administração prisional do Centro de Ressocialização
de Cuiabá se mostra pertinente na realização de projetos sociais, permite o uso de
roupas femininas e demais acessórios fundamentais para a construção e manutenção
da expressão de gênero das travestis e mulheres transexuais, fazendo a coleta
desses materiais por meio de doações. No mesmo norte, seus internos tiveram acesso
a curso de manicure e artesanato, possuem acesso à preservativo e gel lubrificante
mediante simples solicitação, além de ter ocorrido manifestação para a
implementação da hormonioterapia na unidade (BRASIL, 2020, p. 43).
Por mais que em outras penitenciárias do Brasil não exista celas e alas
destinadas ao público LGBTQIA+, existindo tão somente a alocação desses internos
com outros detentos, a criação desses locais é de grande importância para essa
população, o encaminhamento desses internos para uma penitenciária com espaço
reservado é a garantia de sobrevivência, até porque “[...] a eventualidade de morte no
cárcere é o risco mais grave do encarceramento” (CARNELUTTI, 2009, p. 112).
Como visto, o vigente sistema prisional brasileiro é precário, um ambiente
social restrito e hostil e nele o preso LGBTQIA+ sofre duplamente devido a condição
afetiva ou identidade de gênero que possui. Contudo, o reconhecimento das normas
desta comunidade pelas unidades prisionais ultrapassa as questões do mero
chamamento ao nome social, atingem diretamente que sua dignidade, integridade
física, psicológica e a expressão de identidade individual não seja violada.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
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cotidiano LGBTQIA+ que cumpre pena, dessa forma, por todas as barbáries e
violências desumanas apresentadas, mais do que claro é a confirmação de que sim,
existem violações de direitos dos indivíduos LGBTQIA+ no sistema prisional brasileiro
que afrontam integralmente a dignidade e a observância dos direitos humanos. Para
além disso, é possível concluir que o condenado integrante desta comunidade sofre
duplamente, primeiro por ter sua liberdade privada e, a segunda, em razão da
vulnerabilidade agravada por serem quem realmente são, seres humanos.
Ou seja, apesar da existência do princípio da dignidade da pessoa humana,
inclusive, servindo de base para o Estado Democrático de Direito, sendo assegurado
ao cidadão todas as garantias mínimas existenciais, há um descaso pelos institutos
responsáveis pela administração e execução do sistema no sentido de preservar a
dignidade humana e os direitos inerentes ao sentenciado, gerando a violação dos
direitos fundamentais do ser humano.
Aliás, em que pese as regulamentações de políticas públicas e normas
internacionais que promovam a proteção dos sujeitos integrantes da comunidade
LGBTQIA+, como a Resolução Conjunta n. 1 de 15 de abril de 2014 e os Princípios
de Yogyakarta, estabelecendo detalhadamente os parâmetros para o acolhimento
desses detentos garantindo a proteção de suas dignidades, na prática, verifica-se que
não são totalmente efetivadas, faltando, até mesmo, capacitação técnica das próprias
instituições penitenciarias brasileira para atuar e proteger essa população, pois, como
visto, os apenados LGBTQIA+ além de serem alvos por outros detentos, em razão da
heteronormatividade e preconceito, são também alvos dos próprios agentes
penitenciários.
No tocante a segunda hipótese, também pode-se confirmar que há
necessidade de criação de alas e celas especificas para o apenado LGBTQIA+
realizar o cumprimento de sua pena, visto que a existências desses espaços, alas e
celas reservadas culminam em uma segurança para estes, local em que podem
expressar e exercer o seu “verdadeiro” ser, sem a angustia de sofrer represálias. Isso
se observa não só nos estabelecimentos prisionais que possuem espaço reservado
para os apenados LGBTQIA+, mas também no próprio depoimento desses reclusos
que almejam a criação desses locais para a efetivação de seus direitos.
Ressalta-se, por todo o exposto, que se a dignidade da pessoa humana e
todos os outros institutos que norteiam a proteção do apenado no cumprimento de
sua pena estivessem efetivados, respeitados e integralmente cumpridos, sequer este
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tema estaria sendo pauta, tão pouco seria essencial a criação de alas/celas
específicas para a comunidade LGBTQIA+.
Portanto, cabe ao Estado, em um todo, analisar as diretrizes do sistema
penitenciário brasileiro que não é capaz de cumprir o seu papel, qual seja, realizar a
efetiva ressocialização e reintegração do apenado na sociedade, garantindo a
proteção da integridade física e psicológica de qualquer detento, independentemente
das características que compõem sua sexualidade.
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