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CENTRO UNIVERSITÁRIO SOCIESC DE BLUMENAU

KLEBERSON GRIEBNER

A VULNERABILIDADE DA PESSOA LGBTQIA+ NO SISTEMA PRISIONAL


BRASILEIRO: À LUZ DA VIOLAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS E ADEQUAÇÃO
DO SISTEMA

BLUMENAU

2022

1
KLEBERSON GRIEBNER

A VULNERABILIDADE DA PESSOA LGBTQIA+ NO SISTEMA PRISIONAL


BRASILEIRO: À LUZ DA VIOLAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS E ADEQUAÇÃO
DO SISTEMA

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao


Centro Universitário Sociesc de Blumenau –
UNISOCIESC, como requisito à obtenção de título
de Bacharel em Direito.

Orientadora: Profª. Me. Daisy Cristine Neitzke


Heuer

BLUMENAU

2022

2
DEDICATÓRIA

Dedico esta monografia a todos os integrantes da


comunidade LGBTQIA+ que lutam todos os dias para
a concretização de seus direitos.

3
AGRADECIMENTOS

Inicialmente, agradeço a minha orientadora Daisy Cristine Neitzke Heuer, por


todo o ensinamento dedicado nesses cinco anos de aprendizado ao longo do curso e,
principalmente, por me orientar na elaboração de um tema de grande valia.
Agradeço ao meu pai, sem ele nada disso poderia estar acontecendo. À minha
mãe, que mesmo longe, me apoiou e contribuiu para que esse trabalho se
concretizasse.
Por fim, a todos meus amigos que diretamente ou indiretamente colaboram
para tal feito, deixo meu singelo agradecimento, carregarei vocês por toda a
eternidade.

4
Há homens que lutam um dia e são bons, há outros
que lutam um ano e são melhores, há os que lutam
muitos anos e são muito bons. Mas há os que lutam
toda a vida e estes são imprescindíveis

Bertolt Brecht

5
RESUMO

O presente trabalho tem por objetivo analisar a vulnerabilidade e as violações dos


direitos e garantias fundamentais dos apenados integrantes da comunidade
LGBTQIA+ no sistema penitenciário brasileiro, observando, ainda, a necessidade de
criação de um espaço de convivência específico para essa população carcerária
realizar o cumprimento de sua pena. Uma vez que em razão da construção da
heteronormatividade pregada pela sociedade - deixando essa minoria a invisibilidade
social - e reafirmado no cárcere, local hostil por si só, acarreta em uma agravação na
violação da integridade física, psicológica e moral do condenado LGBTQIA+, haja
vista as atrocidades praticadas pelos outros apenados, isso em virtude de sua
identidade de gênero ou orientação sexual diferente da estabelecida como padrão.
Ademais, buscou-se abordar, ainda, as normas nacionais e internacionais para o
tratamento inerente a população LGBTQIA+ privada de liberdade e se os
estabelecimentos prisionais brasileiros proporcionam condições digna de
permanência para cumprir seu objetivo, a ressocialização.

Palavras-chave: Alas e Celas LGBTQIA+. Dignidade da Pessoa Humana.


Heteronormatividade. Identidades de Gêneros. Sistema Penitenciário. Violência.

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ABSTRACT

The present work aims to analyze the vulnerability and the violations of the
fundamental rights and guarantees of inmates who are members of the LGBTQIA+
community in the Brazilian prison system, also observing the need to create a specific
space for this prison population to live together while serving their sentences. Since,
due to the construction of heteronormativity preached by society - leaving this minority
to social invisibility - and reaffirmed in prison, a hostile place in itself, it leads to an
aggravation in the violation of the physical, psychological and moral integrity of the
LGBTQIA+ convict, given the atrocities practiced by other inmates, due to their gender
identity or sexual orientation different from that established as standard. Furthermore,
we sought to address national and international standards for the inherent treatment
of the LGBTQIA+ deprived-of-freedom population and whether Brazilian prisons
provide dignified conditions of permanence to fulfill their objective, re-socialization.

Keywords: LGBTQIA+ wards and cells. Dignity of the Human Person.


Heteronormativity. Gender Identities. Penitentiary System. Violence.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 10
1. BREVES RELATOS SOBRE SEXUALIDADE: SEXO BIOLÓGICO, ORIENTAÇÃO
SEXUAL, IDENTIDADE DE GÊNERO E EXPRESSÃO DE GÊNERO..................... 13
1.1. Sexo biológico .................................................................................................... 13
1.2. Orientação sexual............................................................................................... 14
1.3. Identidade de Gênero ......................................................................................... 15
1.4. Expressão de Gênero......................................................................................... 16
2. COMPREENSÃO DA SIGLA LGBTQIA+ ............................................................. 16
2.1. HISTÓRIA DA EVOLUÇÃO DA PENA DE PRISÃO ......................................... 17
2.1.1. Idade Antiga .................................................................................................... 17
2.1.2. Idade Média ..................................................................................................... 19
2.1.3. Idade Moderna ................................................................................................ 20
2.1.4. Período Humanitário........................................................................................ 23
2.2. APLICAÇÃO DA PENA NO BRASIL ................................................................ 25
2.2.1. Breve contexto histórico de sua evolução ....................................................... 25
2.3. SISTEMAS PENITENCIÁRIOS .......................................................................... 28
2.3.1. Sistema da Filadélfia (ou celular) .................................................................... 28
2.3.2. Sistema de Auburn .......................................................................................... 28
2.3.4. Sistema Progressivo........................................................................................ 30
2.3.5. Sistema Progressivo Inglês e Irlandês ............................................................ 30
2.3.6. Sistema Progressivo Brasileiro ........................................................................ 31
3. RELEVANTES PRINCÍPIOS APLICÁVEIS NA EXECUÇÃO PENAL .................. 33
3.1. Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. ...................................................... 34
3.2. Princípio da Igualdade. ....................................................................................... 36
3.3. Princípio da Proporcionalidade ........................................................................... 37
4. O DIREITO DO APENADO LGBTQIA+ DE NÃO SOFRER DISCRIMINAÇÃO NO
CUMPRIMENTO DA PENA ...................................................................................... 38
4.1. Declaração Universal de Direitos Humanos ....................................................... 42
4.2. Princípios de Yogyakarta.................................................................................... 43
4.3. Aspectos da Resolução Conjunta n. 1, de 15 de abril de 2014 .......................... 47
5. SISTEMA PRISIONAL BRASILEIRO E OS APENADOS LGBTQIA+ ................. 52
5.1. A violação massiva de Direitos Fundamentais no sistema prisional brasileiro ... 53
5.2. O mapeamento nacional das pessoas LGBTQIA+ privadas de liberdade .......... 56
5.3. A vulnerabilidade do apenado LGBTQIA+ no cumprimento da pena ................. 63
5.4. As Alas e celas destinadas à LGBTQIA+ no sistema prisional brasileiro ........... 70

8
CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................................................................... 77
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ......................................................................... 80

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INTRODUÇÃO

Estabelece a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 os


direitos e garantias fundamentais de qualquer ser humano, sem que haja
discriminação por raça, cor, sexo e gênero. Não obstante, os tratados internacionais
ultrapassam os limites territoriais e, no mesmo sentido da Constituição Federal,
garantem a proteção dos direitos humanos.
Contudo, além das normas acima, as normas consideradas como
infraconstitucionais têm deixado a desejar sua efetividade dentro do sistema
penitenciário brasileiro. À exemplo disso, é notório o conhecimento da estrutura
debilitada, precariedade, da superlotação e, inclusive do reconhecimento pelo
Supremo Tribunal Federal ao julgar que os estabelecimentos prisionais brasileiro se
encontram em um “estado de coisas inconstitucional”.
Para além da característica da segregação, o cárcere se apresenta como
imperativo do abandono e esquecimento, o que, frisa-se, são fatos vivenciados por
um vasto período histórico pela população LGBTQIA+ na sociedade civil brasileira,
sem necessariamente estar incluído em um ambiente prisional.
Nesse viés, a presente pesquisa consiste na análise da vulnerabilidade da
população LGBTQIA+ em cumprimento de pena no sistema penitenciário brasileiro
que, além de suportar a insalubridade desse ambiente, convive com outros problemas,
como os abusos físicos, psicológicos, morais, sexuais e entre outros, acarretando um
dano excessivo e uma pena muito maior da que a aplicada pelo seu delito.
Isso porque majoritariamente o sistema penitenciário se compõem em uma
população onde a heterossexualidade tem uma predominância mais forte, momento
em que o condenado LGBTQIA+, na visão dos demais detentos, é visto como frágil e
errante da heteronormatividade – padrão - criado pela sociedade, ou seja, a condição
de sua orientação sexual ou identidade de gênero se torna uma agravante, sendo
submetido a tais violências.
Aliás, apesar de, na prática, existirem resoluções que regem o tratamento da
execução da pena no tocante às pessoas LGBTQIA+, o que se colhe é a dificuldade
pelas instituições penitenciarias de cumprirem os regramentos normativos, violando
mais ainda os direitos conquistados por essa comunidade.
Neste prisma, o trabalho apresenta a seguinte problemática: Existem
violações de direitos dos indivíduos LGBTQIA+ no sistema prisional brasileiro? E há

10
necessidade da criação de alas e celas especificas para o condenado LGBTQIA+
realizar o cumprimento de sua pena?
Ademais, a principal motivação para elaboração do tema foi a importância de
discutir a realidade vivenciada pela comunidade LGBTQIA+ no sistema prisional
brasileiro, visto que, não bastando sofrer atos discriminatórios e a consequente
exclusão da sociedade, quando inseridos no sistema prisional por meio de uma
sentença condenatória privando sua liberdade, o indivíduo LGBTQIA+ além de
cumprir a pena imposta pelo Juiz cumpre uma segunda pena estabelecida pelos
demais prisioneiros, momento em que as variáveis violações de direitos desses
indivíduos se intensificam, devendo os órgãos que integram o Estado efetivar as
garantias constitucionais e gerir políticas públicas, garantindo o mínimo de dignidade
a esses indivíduos.
O método que será adotado para esta pesquisa será o indutivo1. As técnicas serão:
Categoria2, Conceito Operacional3, Pesquisa Bibliográfica4 e Documental, visando a
produção de um conhecimento verdadeiro, a fim de averiguar a confirmação das
hipóteses apresentadas, compreendendo os inúmeros malefícios para com estes.
Dessa forma, a monografia se divide em alguns capítulos, o primeiro envolvendo
conceitos e esclarecimento quanto a sexualidade, e às características da população
LGBTQIA+ no que se refere a diferenciação terminológica da identificação de cada letra
que compõe a sigla, isso no intuito de agregar conhecimento ao leitor sobre as questões
que serão tratadas.
Posteriormente abordar-se-á a história da evolução da pena de prisão, passando
por suas diversas fases, até a aplicação da pena do Brasil e a criação do sistema
penitenciário brasileiro, abordando, ainda, os antigos sistemas que lhe serviram como
base para a criação do vigente.

1
“[...] base lógica da dinâmica da Pesquisa Científica que consiste em pesquisar e identificar as partes
de um fenômeno e colecioná-las de modo a ter uma percepção ou conclusão geral” (PASOLD, Cesar
Luiz. Metodologia da pesquisa jurídica: teoria e prática. 12. ed. São Paulo: Conceito Editorial, 2011,
p. 205).
2
Nas palavras de Pasold (PASOLD, Cesar Luiz. Metodologia da pesquisa jurídica: teoria e prática.
12. ed. São Paulo: Conceito Editorial, 2011, p. 25): “[...] palavra ou expressão estratégica à
elaboração e/ou expressão de uma ideia”. Grifos originais da obra em estudo.
3
Reitera-se conforme Pasold (PASOLD, Cesar Luiz. Metodologia da pesquisa jurídica: teoria e
prática. 12. ed. São Paulo: Conceito Editorial, 2011, p. 37): “[...] uma definição para uma palavra ou
expressão, com o desejo de que tal definição seja aceita para os efeitos das idéias que
expomos [...]”. Grifos originais da obra.
4
“[...] Técnica de investigação em livros, repertórios jurisprudenciais e coletâneas legais” (PASOLD,
Cesar Luiz. Metodologia da pesquisa jurídica: teoria e prática. 12. ed. São Paulo: Conceito Editorial,
2011, p. 207).

11
Por sua vez, no terceiro capítulo será elencado alguns dos mais relevantes
princípios aplicados na execução penal e no cumprimento da pena, enquanto o quarto
capítulo buscará analisar o direito do condenado LGBTQIA+ de não sofrer discriminação
no cumprimento da pena, trazendo a baila os principais instrumentos responsáveis por
regulamentar os direitos da população LGBTQIA+ privada de liberdade, apresentando a
influência de tratados internacionais, resoluções, lei de execução penal e a Constituição
Federal.
Por fim, no último capítulo é estudado a violação massiva de direitos
fundamentais no âmbito do sistema prisional, abordando em subtópicos as diversas
violências que a população carcerária LGBTQIA+ é exposta no cumprimento da pena,
que violam integralmente a Dignidade da Pessoa Humana, ainda, o capítulo em
questão se cumpre em apresentar o mapeamento nacional dessa comunidade privada
de liberdade, bem como as alas e celas destinadas a eles, demonstrando um
panorama das unidades prisionais que possuem os espaços reservados para proteger
tanto a integridade física quanto psicológica que lhe são violadas.

12
1. BREVES RELATOS SOBRE SEXUALIDADE: SEXO BIOLÓGICO, ORIENTAÇÃO
SEXUAL, IDENTIDADE DE GÊNERO E EXPRESSÃO DE GÊNERO

De acordo com Rafart (2020) conceituar sexualidade é uma tarefa árdua, uma
vez que se trata de uma temática ampla e depende de um estudo englobando a vida
psíquica e social da pessoa. Aliás, na maioria das vezes, se vista em uma ótica social,
as práticas sexuais são impostas pela sociedade, sendo estabelecidos alguns critérios
e, uma vez que descumpridos - fora do padrão heteronormativo - lhe geram
consequências.

As práticas sexuais são, de certa maneira, colocadas pela comunidade na


forma de aceitações e proibições, cabendo ao indivíduo, muitas vezes,
somente escolher entre agir como esperado socialmente ou transgredir as
regras da comunidade (RAFART, 2020, p. 21).

Logo “[...] fazemos aquilo que é permitido e contamos com a aceitação social,
ou fazemos o que é proibido, arcando com as pesadas consequências sociais que
qualquer prática sexual proibida (ou essencialmente não permitida) carrega”.
(RAFART, 2020, p. 21).
Por sua vez, a Organização Mundial da Saúde (OMS), define a sexualidade
como uma experiência individual regida por uma variação de experiências:

[...] um aspecto central do ser humano ao longo da vida abrange sexo,


identidades e papéis de gênero, orientação sexual, erotismo, prazer,
intimidade e reprodução. A sexualidade é vivenciada e expressa em
pensamentos, fantasias, desejos, crenças, atitudes, valores,
comportamentos, práticas, papéis e relacionamentos. Embora a sexualidade
possa incluir todas essas dimensões, nem todas são sempre vivenciadas ou
expressas. A sexualidade é influenciada pela interação de fatores biológicos,
psicológicos, sociais, econômicos, políticos, culturais, legais, históricos,
religiosos e espirituais. (OMS, 2006).

Diante disso, a fim de alcançar melhor elucidação sobre a abordagem da


presente monografia, se faz essencial, primordialmente, compreender alguns
elementos da sexualidade humana como: identidade de gênero, expressão de gênero,
orientação sexual e sexo biológico, além de, também, entender a composição da Sigla
LGBTQIA+, posto que o objetivo da monografia é voltado para esta comunidade.

13
1.1. Sexo biológico

Em resumo, o sexo biológico diz respeito às características biológicas que a


pessoa tem ao nascer, depende da combinação dos cromossomos sexuais, da
genitália presente no nascimento, da capacidade reprodutiva e outras características
secundárias, que diferenciam macho e fêmea. Da mesma forma, existem pessoas que
nascem com combinações diferentes desses fatores e que podem apresentar
características dos dois sexos, sendo denominados intersexuais.
De acordo com Rafart (2020, p. 104 apud Santana e Belmin, 2017, p. 134), o
sexo biológico refere-se ao sistema reprodutor, aos hormônios e aos cromossomos: a
mulher possui vagina, ovários, útero e cromossomos XX, ao passo que o homem
possui pênis, testículos e cromossomos XY. Já o intersexo (hermafrodita) apresenta
combinação de ambos os caracteres sexuais.

1.2. Orientação sexual

A Coordenação de Políticas para a Diversidade Sexual do Estado de São


Paulo, em sua obra: Diversidade Sexual e a Cidadania LGBTQI+ (2020, p. 17) define
que orientação sexual “[...] é a atração afetiva e/ou sexual que uma pessoa manifesta
em relação à outra, para quem se direciona o seu desejo involuntariamente”, nesse
viés, em consonância com os Princípios de Yogyakarta - princípios que procuram
efetivar a aplicação dos Direitos Humanos constantes na Declaração Universal de
Direitos Humanos, à comunidade LGBTQIA+ - define orientação sexual como:

[...] à capacidade de cada pessoa de experimentar uma profunda atração


emocional, afetiva ou sexual por indivíduos de gênero diferente, do mesmo
gênero ou de mais de um gênero, assim como de ter relações íntimas e
sexuais com essas pessoas. (PRINCÍPIOS, 2006, p. 9)

Posto isso, existem três tipos de orientações sexuais, que podem ser
classificadas como: Heterossexualidade, Homossexualidade e Bissexualidade
Rafart (2020, p. 106) citando Santana e Belmin (2017, p. 206) conceitua a
primeira denominação acima como aquele que se sente atraído física e
emocionalmente por pessoa do mesmo sexo, na segunda denominação, explica que
é o sujeito que se sente atraído física e emocionalmente por pessoas do sexo oposto
e, por fim, na última denominação, bissexual é a pessoa que se sente atraída física e

14
emocionalmente por pessoas de ambos os sexos.
Por oportuno, é necessário afirmar que a expressão “opção sexual” é
inapropriada e equivocada quando utilizada, isso porque “[...] a força interior é do
campo do desejo do indivíduo e jamais do campo das escolhas e da racionalidade”
(RAFART, 2020, p. 107).

[...] É comum o relato de homens que lembram que, na sua infância, já se


sentiam atraídos por um colega do sexo masculino, mas que, por este ser um
desejo contrário ao que a sociedade esperava deles, negavam-se a aceitar
esses impulsos mentais e se comportavam de forma heterossexual diante de
seu grupo. A expressão sair do armário ilustra muito bem essa perspectiva:
indivíduos com orientação sexual voltada para a pessoa do mesmo sexo
podem demorar muito para assumir essa orientação em virtude do rigos da
sociedade, que considera a lógica binária macho e fêmea como a única
possível. (RAFART, 2020, p. 107)

1.3. Identidade de Gênero

Relaciona-se a maneira com a qual você se enxerga e se identifica,


independentemente do sexo biológico, conforme os Princípios de Yogyakarta,
identidade de gênero está referida:

[...] à experiência interna, individual e profundamente sentida que cada


pessoa tem em relação ao gênero, que pode, ou não, corresponder ao sexo
atribuído no nascimento, incluindo-se aí o sentimento pessoal do corpo (que
pode envolver, por livre escolha, modificação da aparência ou função corporal
por meios médicos, cirúrgicos ou outros) e outras expressões de gênero,
inclusive o modo de vestir-se, o modo de falar e maneirismos. (PRINCÍPIOS,
2006, p. 8)

No mesmo sentido, o Decreto nº 8.727, de 28 de abril de 2016 que versa sobre


o uso do nome social e o reconhecimento da identidade de gênero de pessoas
travestis e transexuais, conceitua identidade de gênero como a:

[...] dimensão da identidade de uma pessoa que diz respeito à forma como se
relaciona com as representações de masculinidade e feminilidade e como
isso se traduz em sua prática social, sem guardar relação necessária com o
sexo atribuído no nascimento.

Podemos citar, por exemplo, identidade de gênero como os sujeitos


transexuais e travestis.

15
1.4. Expressão de Gênero

Refere-se a maneira como a pessoa irá se expressar/manifestar seu gênero


em sociedade, seja por meio de suas vestimentas, corpo, nome, comportamento ou
da sua interação social.

Quando um adolescente monta a sua roupa, intervém no seu corpo, bota um


piercing, faz um cabelo, e mais, quando ele sai da frente do espelho e vai
para a rua, para a escola, quando ele anda de um determinado modo, quando
ele fala desse ou daquele jeito, quando ele pega o ônibus, o trem ou o metrô,
ele entra num jogo de disputa social, um jogo que, além de político, é cultural.
É a afirmação de uma outra estética, de uma outra postura, de uma outra
identidade, muitas vezes não-hegemônica.
E esse jogo é disputa, pois pode significar não passar despercebido, ser alvo
de risos, piadas e até agressões ou violência física. É um jogo perigoso e
imprescindível, porque fala diretamente sobre como Eu me coloco no mundo.
(PEDRA, 2018, p. 52 apud BORTOLINI, 2011, p. 31).

Expressão de gênero nem sempre corresponderá ao sexo biológico da


pessoa ou sua orientação sexual, sendo uma escolha pessoal ligada ao seu bem-
estar psicológico e emocional.

2. COMPREENSÃO DA SIGLA LGBTQIA+

Denominada anteriormente como “GLS” (Gays, lésbicas e simpatizantes),


deixou de ser utilizada, caindo em desuso, dado a atual evolução e diversas vertentes
dos integrantes desta comunidade. Posto isso, Organizações internacionais como a
ONU (Organizações das Nações Unidas) e Anistia Internacional adotaram o uso da
sigla “LGBT”, referindo-se a Lésbicas, gays, bissexuais e transexuais. No Brasil, a
sigla “LGBT” foi adotada no ano de 2008, na 1ª Conferência Nacional de Gays,
Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais.
Utilizada para representar o movimento político e social à diversidade,
algumas organizações usam outras nomenclaturas, como LGBT, LGBTT ou LGBTQI,
o que, frisa-se, não faz perder sua essência na busca por maior representação e
direitos inerentes aos sujeitos que a compõem, apenas expõem a sigla de outra
maneira.
Nos primórdios, a versão mais completa da sigla é “LGBTQIA +”, todavia, não
há um consenso, dado a utilização de outras siglas. A par disso, a Cartilha da
“Diversidade Sexual”, elaborado pela Prefeitura de Curitiba, em comemoração ao Dia

16
Internacional de Combate à LGBTfobia, definiu a representação de cada letra
presente na sigla LGBTQIA+ (2021, p. 4-8):

LÉSBICA: mulher (cis ou trans) que sente atração afetiva, emocional e/ou
sexual por outras mulheres (cis ou trans);
GAY: homem (cis ou trans) que sente atração afetiva, emocional e/ou sexual
por outros homens (cis ou trans);
BISSEXUAL: Pessoa que sente atração afetiva, emocional e/ou sexual por
pessoas de ambos os sexos/gênero. Popularmente, é utilizada a expressão
“Bi” para se referir a mulheres e homens bissexuais;
TRANSGÊNERO: Pessoa que se identifica com um gênero diferente daquele
que corresponde ao seu sexo biológico atribuído no momento do nascimento.
Cuja identidade de gênero transcende as definições convencionais de
sexualidade e transita entre os gêneros. São transgênero as pessoas
denominadas transexuais e travestis;
QUEER: Pessoa cuja orientação sexual não é exclusivamente heterossexual.
Em sua maioria, as pessoas que se identificam como queer consideram os
termos lésbica, gay e bissexual como rótulos que restringem a amplitude e a
vivência da sexualidade. O termo queer também é utilizado por algumas
pessoas para definir sua identidade e/ou expressão de gênero;
INTERSEXUAL: Pessoa que possui combinação dos dois sexos (feminino e
masculino), possui variações congênitas da anatomia sexual ou reprodutiva -
nasceu com a genitália ambígua, com os dois órgãos sexuais, ou com órgãos
com formação diferente - podendo incluir cromossomos, gônadas e/ou órgãos
genitais que dificultam a identificação do sexo biológico. Trata-se de uma
questão exclusiva de desenvolvimento sexual no período pré-natal;
ASSEXUAL: Pessoa que não sente nenhuma atração afetiva, emocional e/
ou sexual por outras pessoas, independentemente do sexo/ gênero;
(+): Inclui todas as demais orientações sexuais, identidade de gênero e
expressão de gênero existentes, não representadas ou expressas pela sigla
LGBTI.

Com base na compreensão dos tópicos acima, a fim de XXX, a presente


monografia proceder-se-á com a abordagem da evolução história da pena de prisão.

2.1. HISTÓRIA DA EVOLUÇÃO DA PENA DE PRISÃO

No sentido de compreender melhor o sistema progressivo adotado pelo Brasil


no cumprimento da pena, é essencial, num primeiro momento, entender a evolução
histórica das penas de prisão para, após, saber como se deu a origem do sistema
progressivo e sua incorporação no ordenamento jurídico brasileiro.

2.1.1. Idade Antiga

Se analisarmos em um contexto gradativo de evolução, a prisão na idade


antiga - compreendida entre os anos de 4000 a.C e 3500 a.C - de privação de

17
liberdade era inexistente, dado que nesta época a prisão “[...] não tinha natureza de
pena-castigo, e sim possuía caráter acautelatório como o de guardar o réu ou o
condenado como forma de preservá-lo do julgamento ou da execução” (GARCIA
FILHO, 2013, p. 5).
Neste período, nota-se a ausência de legislação que regulamentasse as
práticas consideradas delitivas na sociedade, a fim de aprisionar o indivíduo e fazer
cumprir uma punição em caráter de pena, considerando a ausência disso, o
condenado apenas aguardava a realização de seu suplício em locais de extrema
precariedade.
Nas palavras de Carvalho Filho (2002, p. 21):

Em matéria penal, servia basicamente para a custódia de infratores à espera


da punição aplicada e do próprio julgamento – para que não fugissem e para
que fossem submetidos à tortura, método de produção de prova antes
considerado legitimo. [...] os réus não eram condenados especificamente à
perda de liberdade por um período de dias, meses ou anos. Eram punidos
com morte, suplício, degredo, açoite, amputação de membros, galés,
trabalhos forçados, confisco de bens. Para viabilizar a punição imposta
permaneciam presos durante dias, meses ou anos.

Os meios de punição nesta fase tinham por fundamento a crueldade, tortura,


aplicação de pena de morte, suplício e etc. Segundo Michel Foucault uma sanção para
ter caráter de suplício deve obedecer a alguns critérios:

[...] em primeiro lugar, produzir uma certa quantidade de sofrimento que se


possa, se não medir exatamente, ao menos apreciar, comparar e
hierarquizar; a morte é um suplício na medida em que ela não é simplesmente
privação do direito de viver, mas a ocasião e o termo final de uma graduação
calculada de sofrimentos; desde a decapitação - que reduz todos os
sofrimentos a um só gesto e num só instante: o grau zero do suplício - até o
esquartejamento que os leva quase ao infinito, por meio do enforcamento, da
fogueira e da roda, na qual se agoniza muito tempo: a morte-suplício é a arte
de reter a vida no sofrimento, subdividindo-a em “mil morte” e obtendo, antes
de cessar a existência, the most exquisite agonises. O suplício repousa na
arte quantitativa do sofrimento. (FOUCAULT, 1997, p. 36)

A exemplo do acima, cita-se a execução de Robert François Damien,


realizada de forma inclemente e em pura barbárie, ignorando por completo, se visto
sobre a ótica dos tempos atuais, qualquer legislação pertinente ao humanismo da
pena.

[Damien fora condenado, a 2 de março de 1757], a pedir perdão publicamente


diante da porta principal da Igreja de Paris [aonde devia ser] levado e

18
acompanhado numa carroça, nu, de camisola, carregando uma tocha de cera
acesa de duas libras; [em seguida], na dita carroça, na Praça de Greve, e
sobre um patíbulo que aí será erguido, atenazado nos mamilos, braços, coxas
e barrigas das pernas, sua mão direita segurando a faca com que cometeu o
dito parricídio, queimada com fogo de enxofre, e às partes em que será
atenazado se aplicarão chumbo derretido, óleo fervente, piche em fogo, cera
e enxofre derretidos conjuntamente, e a seguir seu corpo será puxado e
desmembrado por quatro cavalos e seus membros e corpo consumidos ao
fogo, reduzidos a cinzas, e suas cinzas lançadas ao vento. (FOUCAULT,
2014, p. 9)

Não bastando os meios de crueldade realizados à época (tortura, pena de


morte, açoites, etc), Carvalho Filho (2002) descreve que os locais que os infratores
aguardavam sua execução eram insalubres, sem iluminação, sem condições do
mínimo de higiene. A exemplo, cita as masmorras como modelos de cárcere infectos
nos quais os detentos se adoeciam e até mesmo morriam antes da realização do
julgamento e punição, isso porque, as prisões, como dito inicialmente, era apenas um
acessório de um processo de punibilidade, baseado na tortura física.
Aliás, é nesse mesmo linear de razões que o doutrinador Bitencourt também
relata o estabelecimento crítico que os infratores aguardavam a aplicação da
condenação.

[…] a prisão era uma espécie de antessala de suplícios. Usava-se a tortura,


frequentemente, para descobrir a verdade. Von Heting acrescenta que as
masmorras das casas consistoriais e as câmaras de torturas estavam umas
ao lado das outras e mantinham os presos até entregá-los ao Monte das
Orcas ou às Pedras dos Corvos, abandonando, amiúde, mortos que haviam
sucumbido à tortuna à febre do cárcere. A prisão foi sempre uma situação de
grande perigo, um incremento ao desamparo e, na verdade, uma antecipação
da extinção física. (BITENCOURT, 2011, p. 28)

É certo que, pelo tempo que perdurou a antiguidade, a pena de prisão não
teve o mesmo propósito da privação de liberdade aplicada como sanção penal nos
tempos atuais, visto que, até o fim do século XVIII a “prisão” somente tinha como
finalidade a privação dos infratores para aplicação das mais variadas punições
(BITENCOURT, 2011).

2.1.2. Idade Média

Durante o período medieval - entre o século V até o século XV - se manteve


o mesmo sistema de prisão compreendido na Idade Antiga, no sentido de preservar a
integridade física do indivíduo até o efetivo julgamento. Considera-se também que

19
nesse período ainda não existia uma necessidade de arquitetura para o aguardo da
execução das punições, mantendo-se a destinação dos infratores para locais
insalubres (GARCIA FILHO, 2013).
No entanto, é neste período que há o nascimento da prisão estatal e a prisão
eclesiástica, sendo que, na primeira se aprisionava os opositores do poder que
cometessem delitos de traição, ou os adversários políticos dos governantes. Está
subdividida em duas formas: a prisão-custódia, local em que o réu aguardava seu
julgamento, podendo receber mutilações, açoites e morte, ou detenção temporal ou
perpétua, na qual aguardava o perdão real.
Por sua vez, a prisão eclesiástica, era destinada aos clérigos rebeldes, e tinha
finalidade diversa da prisão estatal acima, pois aqui dava-se a finalidade de caridade,
redenção e fraternidade da Igreja, para tanto, o sistema tinha viés punitivo de
penitência e meditação, dado que os clérigos infratores eram recolhidos e
encaminhados as alas dos mosteiros para que por meio da disciplina pregada com
orações e meditações se lamentassem pela transgressão causada e obtivessem a
correção (BITENCOURT, 2011).

De toda a Idade Média, caracterizada por um sistema punitivo desumano e


ineficaz, só poderia destacar-se a influência penitencial canônica que deixou
como sequela positiva o isolamento celular, o arrependimento e a correção
do delinquente, assim como outras ideias voltadas à procura da reabilitação
do recluso. (BITENCOURT, 2011, p. 35)

Apesar de na Idade Média ser mantido a punição do réu com a aplicação das
penas corporais e utilização de métodos cruéis, pode-se dizer que foi a partir da forte
influência do Direito Canônico com a aplicação da pena eclesiástica que começou a
se pensar em outro viés de punição aos delinquentes, sem a aplicação da pena em
seu método de crueldade. Embora, inicialmente, restrito este modo somente aos
clérigos, verifica-se que na idade moderna este método se amplificou com o advento
e utilização das casas de correções.

2.1.3. Idade Moderna

Em síntese, neste período, entre os séculos XVI e XVII, “[...] dava-se cada vez
mais ênfase à distinção entre mendicância apta e não apta ao trabalho. A primeira era
vista como sujeita a um sistema racional de bem-estar social, a última a uma política

20
criminal” (RUSCHE e KIRCHHEIMER, 2004, p. 64).
Diga-se isso porque a pobreza se alastrou por toda Europa e, por
consequência, o índice do cometimento de transgressões elevou-se, a par disso, as
políticas criminais vigentes não surtiram mais os efeitos almejados, a aplicação de
sanções de cunho corporal e até mesmo a pena de morte não era a forma de solução
mais eficaz, visto que não podia ser aplicar aos inúmeros transgressores, somado
esses fatos com os demais acontecimentos: guerras, crises do feudalismo,
endividamento do estado, aumento no índice da população urbana, cessou-se a
certeza de uma segurança provida pelo Estado (BITENCOURT, 2011).

Tinha de se enfrentar verdadeiros exércitos de vagabundos e mendigos.


Pode-se estabelecer a sua procedência: nasciam nas aldeias incendiadas e
nas cidades saqueadas, outros eram vítimas de suas crenças, vítimas
atiradas nos caminhos da Europa. Era preciso defender-se desse perigo
social, mas não era possível negar-lhe simpatia por razões religiosas ou
sociais [...]. Contudo, como em algum lugar tinham de estar, iam de uma
cidade a outra. Eram muitos para serem todos enforcados, e a sua miséria,
como todos sabiam, era maior que a sua má vontade. Na Europa, cindida em
numerosos Estados minúsculos e cidades independentes, ameaçavam, só
com sua massa crescente, dominar o poder do Estado. (BITENCOURT, 2011,
p. 38)

Nesse viés, foi a partir da segunda metade do século XVI que, na Inglaterra,
a pedido de membros do clero inglês, os quais demonstravam preocupações com o
elevado índice de indivíduos em vulnerabilidade social e de criminalidade, que foi
outorgado pelo Rei a disponibilização do Castelo de Bridwell, localizado em Londres,
para acolhimento dos vagabundos, os ociosos, os ladrões e os autores de delitos
pequenos, surgindo dessa forma as casas de correção dos apenados, com a tímida
aplicação de penas privativas de liberdade, as quais consistiam na correção do
apenado por meio trabalho - escravo - e uma disciplina rígida (BITENCOURT, 2011).
Rusche e Kirchheimer (2004, p. 69) afirmam que “[...] a essência da casa de
correção era uma combinação de princípios das casas de assistência aos pobres
(poorhouse), oficinas de trabalho (workhouse) e instituições penais.”

Seu objetivo principal era transformar a força de trabalho dos indesejáveis,


tornando-a socialmente útil. Através do trabalho forçado dentro da instituição,
os prisioneiros adquiriam hábitos industriosos e, ao mesmo tempo,
receberiam um treinamento profissional. Uma vez em liberdade, esperava-se,
eles procurariam o mercado de trabalho voluntariamente. (RUSCHE e
KIRCHHEIMER, 2004, p. 69)

21
A disciplina rígida era integrada ao trabalho contínuo e ininterrupto, bem como
a instrução religiosa, em sua maioria das vezes dirigida por voluntários, da mesma
forma os castigos eram aplicados quando fundamental para a constância da correção
dos detentos. (BICUDO, 2015).
Nas House of Correction, a mão de obra utilizada como forma de correção
para os infratores gerava lucro, posto que a matéria prima produzida pelos
condenados se destinava a comercialização:

Os internados do sexo masculino eram utilizados principalmente no trabalho


de raspar as madeiras duras, destinadas à tintura de tecidos [...]. Este era um
trabalho especialmente difícil, que requeria força e resistência física
consideráveis. Os prisioneiros trabalhavam em pares com uma serra e a
produção semanal normal de dois homens era de 300 libras de madeira [...].
As internas, geralmente prostitutas e mendigas, eram empregadas nos
teares. (RUSCHE e KIRCHHEIMER, 2004, p. 70)

Destaca-se que durante o período da idade moderna, o meio de prisão mais


cruel era denominado pena de galés - modelo de prisão flutuante -, sendo composta
por detentos e mendigos reincidentes, além de assassinos, os quais eram submetidos
a correntes, sob coação de serem punidos com chicote, caso deixassem remar,
exerciam, durante o cumprimento da pena, o pior dos trabalhos (RUSCHE e
KIRCHHEIMER, 2004).
Apesar do período em questão ser marcado pela inovação, com a criação
das casas de correções e aplicação de um novo modelo de sanção - privação de
liberdade -, influenciada pela “humanização” do Direito Canônico, ainda se mantinha
uma cultura de ferir a integridade física dos réus, por meio da disciplina, a fim de
“reformar” o condenado.
Diante disso, Michel Foucault afirma que na segunda metade do século XVIII
é encontrado em toda parte da Europa protestos realizados pela sociedade,
reivindicando as transgressões de caráter punitivo, surgindo um conflito entre o povo
e o rei, não havendo mais tolerância aos excessos de crueldade aplicados na
condenação.

É preciso punir de outro modo: eliminar essa confrontação física entre


soberano e condenado; esse conflito frontal entre a vingança do príncipe e a
cólera contida do povo, por intermédio do supliciado e do carrasco. O suplício
se tornou rapidamente intolerável. Revoltante, visto da perspectiva do povo,
onde ele revela a tirania, o excesso, a sede de vingança e o “cruel prazer de
punir”. Vergonhoso, considerado da perspectiva da vítima, reduzida ao
desespero e da qual ainda se espera que bengida “o céu e seus juízes por

22
quem parece abandonada”. Perigoso, de qualquer modo, pelo apoio que nele
encontram, uma contra a outra, a violência do rei e a do povo. Como se o
poder soberano não visse, nessa emulação de atrocidades, um desafio que
ele mesmo lança e que poderá ser aceito um dia: acostumado a “ver correr
sangue”, o povo aprende rápido que “só pode se vingar com sangue”
(FOUCAULT, 2014, p. 73)

Em face do exposto, Foucault (2014) esclarece que o ordenamento jurídico


criminal deveria ser modificado para punir ao invés de se vingar, ou seja, há
necessidade de uma sanção sem a aplicação de tortura, de trabalho escravo, sem a
necessidade de tratamentos cruéis, que não atinja a integridade física do condenado,
que quando aplicado a justiça criminal ao transgressor, se respeite ao menos sua
“humanidade”.
É dessa forma, que ao decorrer do tempo, a ideia do corpo suplicado vai se
enfraquecendo, surgindo outro viés de punição, neste, defendendo as liberdades do
indivíduo e enaltecendo os princípios da dignidade do homem.

2.1.4. Período Humanitário

Doutrinadores denominam essa fase - encontrada no século XVIII - de período


humanitário ou “século das luzes”, posto que fundamentada no racionalismo e o
respeito à condição humana.
Nesse contexto histórico desencadeou-se um grande avanço em todas as
áreas da sociedade, principalmente no que diz respeito à estrutura político-jurídica do
Estado. Aliás, é a partir das correntes iluministas e humanitárias que é proposto o fim
das punições baseadas na violação da integridade física (BITENCOURT, 2011).

A pena deve ser proporcional ao crime, devendo-se levar em consideração,


quando imposta, as circunstâncias pessoais do delinquente, seu grau de
malícia e, sobretudo, produzir a impressão de eficaz sobre o espírito dos
homens, sendo, ao mesmo tempo, a menos cruel para o corpo do
delinquente. (BITENCOURT, 2011, p. 38)

Decorrente disso, logo a frente, durante a Revolução Francesa, demais


filósofos começaram a compactuar da mesma ideia em comum, qual seja: a reforma
do sistema punitivo. Para tanto, cita-se Cesare Beccaria, importante filósofo que
contribuiu para o avanço do estudo da área das Ciências Sociais, sua obra “Dei Delitti
Delle Pene” (Dos Delitos e Das Penas) até os primórdios apresenta suma importância.

23
Beccaria apresentava uma visão utilitarista da pena, ou seja, deveria ser útil,
garantindo a certeza de que a pena seria um exemplo para o futuro e não uma
vingança pelo passado, tudo isso, sem que houvesse a necessidade de meios cruéis,
como culturalmente se realizava.

O fim, pois, não é outro que impedir o réu de causar novos danos a seus
cidadãos e afastar os demais do cometimento de outros iguais.
Consequentemente, devem ser escolhidas aquelas penas e aquele método
de impô-las, que, respeitada a proporção, causem uma impressão mais eficaz
e mais durável sobre o ânimo dos homens e que seja a menos dolorosa para
o corpo do réu” (BITENCOURT, 2011, p. 56 apud BECCARIA, 1997, p. 46)

Além de Beccaria, outros Iluministas, como John Howard e Jeremy Bentham,


auxiliaram na reforma do Sistema Punitivo, apresentando princípios que vigoram até
hoje.
John Howard, por sua vez, se aprofundou na matéria das prisões, analisando
vários sistemas penitenciários, se preocupando com as condições dos detentos, não
aceitava, o estudioso, condições deploráveis em prisões, foi Howard que “[...] inspirou
uma corrente penitenciária preocupada em construir estabelecimentos apropriados
para o cumprimento da pena privativa de liberdade” (BITENCOURT, 2011, p. 59),
sendo considerado o pai da ciência penitenciária.
Em suas obras, apresentava três categorias de indivíduos submetidos ao
encarceramento:

a) para os processados propunha um regime especial, já que a prisão só


servia como meio assecuratório e não como castigo [...]; b) os condenados,
que seriam sancionados de acordo com a sentença condenatória imposta; e
c) os devedores. (BITENCOURT, 2011, p. 61)

Além disso, pregava a separação dos condenados, fazendo com que “[...]
mulheres ficassem separadas dos homens, assim como os criminosos jovens dos
delinquentes velhos'' (BITENCOURT, 2011, p. 61).
Não obstante, há de se ressaltar que Howard foi um dos grandes idealizadores
da necessidade de “guardas” fiscalizadores no interior das penitenciárias, os quais,
em sua concepção, prestariam o auxílio que estivessem ao seu alcance, caso
houvesse reclamações dos condenados. Abordou, também, em suas obras, a
fiscalização do cumprimento da pena por magistrados, ensejando na figura do juízo
da execução para acompanhamento do cumprimento das penas (BITENCOURT,
24
2011).
No mesmo sentido, o iluminista Jeremy Bentham contribuiu para os avanços
com sua famosa idealização denominada panóptico, prevalecendo seus ideais sobre
a importância da arquitetura do sistema penitenciário e o conceito retributivo da pena.
Foucault informa em sua obra: “Vigiar e Punir: o Nascimento da Prisão”, que
o panóptico “[...] é uma máquina de dissociar o par ver-ser visto: no anel periférico, se
é totalmente visto, sem nunca ver; na torre central, vê-se tudo, sem nunca ser visto”
(FOUCAULT, 2014, p. 195).
É com estes segmentos e lineares de razões que no decorrer dos demais
períodos é deixado de lado o caráter cruel e irracional das penas, vindo a se
aprofundar a ideia da racionalidade e o princípio humanitário da condenação, com
base em uma proporcionalidade entre a transgressão realizada e a punição aplicada,
passando a se preocupar não só com a finalidade retributiva da pena, mas com os
meios adequados para o seu efetivo cumprimento.

2.2. APLICAÇÃO DA PENA NO BRASIL

2.2.1. Breve contexto histórico de sua evolução

Até o ano de 1500, os povos originários que viviam no Brasil regiam-se pelo
período da vingança privada, vingança coletiva, com aplicação da lei do Talião, foi
com a chegada dos portugueses no Brasil que se passou a ser elaborado a ideia do
Direito Penal, aliás, em que pese os meios de aplicação da punição dos povos
originários, suas práticas não tiveram influência em nossa atual legislação
(MIRABETE, 2001).
Portanto, durante a chegada dos portugueses, no período denominado Brasil
Colonial, foi implementado neste território o Direito que trouxeram consigo, vigorando
no ano de 1446 as Ordenações Afonsinas, criada por D. João I, dividida em cinco
livros, sendo estabelecido no seu último livro os delitos e as penas, Pierangeli (2001,
p. 52) citando Rocha (1896, p. 124) afirma que nas Ordenações Afonsinas:

[...] o legislador não teve em vista tanto os fins das penas, e a sua proporção
com o delito, como conter os homens por meio do terror e do sangue. O crime
de feitiçaria e encantos, o trato ilícito de cristão com judia ou moura e o furto
do valor de marco da prata são igualmente punidos com a pena de morte.

25
Posteriormente, foram supridas pelas Ordenações Manuelitas que se
manteve em vigência até o ano de 1569, sendo substituída pela Compilação de Duarte
Nunes de Leão que predominou até o ano de 1603.
Desde então, por duas décadas, manteve-se em vigência as Ordenações
Filipinas que, igualmente, em seu Livro V, versava sobre os crimes e as penas para
os transgressores, salienta-se que esta Ordenação é análoga ao período da Idade
Média, dado a aplicação de penas corporais e a forte influência da religião. Pierangeli
(2001) destaca que a pior das penas aplicada nesta época era a pena de morte, que
podia ser executada em quatro formas, levando em consideração uma escala de
crueldade.

1.º) Morte Cruel: a vida era tirada lentamente, entremeada de suplícios [...].
2.º) Morte atroz: nesta, acrescentaram-se algumas circunstâncias agravantes
à pena capital, como o confisco de bens, a queima do cadáver, o seu
esquartejamento, e até a proscrição de sua memória. 3.º) Morte simples: esta
representava apenas a perda da vida, e era executada mediante degolação,
enforcamento, este reservado para as classes mais humildes, porque era tido
como infamante. 4.º) Morte civil: com esta pena eliminava-se a vida civil e os
direitos da cidadania (PIERANGELI, 2001, p. 57).

Tanto é assim, que a exemplo da evidência dos suplícios realizados no Brasil


neste período, cita-se a execução de Joaquim José da Silva Xavier, conhecido como
Tiradentes:

Sentenciado como traidor, Tiradentes foi submetido ao suplício: após ser


levado em procissão pelas ruas do Rio de Janeiro, capital da colônia, o
inconfidente é enforcado em praça pública, tendo seu corpo dividido em
quatro partes, cada qual exposta publicamente em cidades no trajeto até Vila
Rica (atual Ouro Preto), onde sua cabeça foi erguida em um poste (RIBEIRO,
2018, p. 8).

Marcado por um período de penas cruéis, as Ordenações Filipinas ficaram


vigentes até o ano de 1830, quando foi sancionado o Código Criminal do Império do
Brasil, posto que após a declaração de independência do País, a primeira Constituição
de 1824, outorgada por D. Pedro I, pontualmente em seu art. 179, §18, determinava
a organização de um “Código Criminal, fundado nas sólidas bases da justiça e da
equidade”.
Influenciado pela Escola Clássica, o Código Criminal de 1830 inseriu os
princípios da responsabilidade moral e do livre arbítrio, segundo o qual não há

26
criminoso sem má-fé, sem conhecimento do mal e sem a intenção de praticá-lo. Em
que pese a Constituição de 1824 ter abolido a realização das penas cruéis (tortura,
açoites, etc) ainda era possível encontrar vestígios de penas corporais, posto as
práticas das penas de morte e galés aplicadas para os escravos, trazendo outras
formas de penalidades paras os demais cidadãos, como por exemplo o banimento,
multa, degredo, perda e suspensão do emprego (TELES, 2006).
Referido Código apresentava algumas características relevantes, como a
imprescritibilidade das penas e a reparação do dano causado pelo delito, além da
responsabilidade sucessiva nos crimes de imprensa (PIERANGELI, 2001).
Vigente durante o Império Brasileiro, o Código Criminal de 1830 foi alterado
apenas na época da República, pelo Código Penal de 1890, todavia, este considerado
um dos Códigos mais defeituosos do Brasil, sendo necessário a elaboração de
diversas legislações para suprir suas falhas, mas, em que pese suas críticas, o Código
Penal de 1890 não apresentava aplicações de penas corporais, havendo se instalado
o regime prisional de caráter correcional (MIRABETE, 2001).
Devida suas falhas e lacunas, com o decorrer dos anos, as diversas
legislações criadas para suprir seus defeitos foram reunidas em uma só, na
Consolidação das Leis Penas, que se tornou oficial por meio do Decreto nº 22.213, de
14 de dezembro de 1932, vigorando até o ano de 1940. Neste mesmo ano, ocorre o
advento do Código Penal de 1940 que, apesar de marcado pelo autoritarismo da
Constituição vigente, abraça fundamentalmente as bases de um direito punitivo
democrático e liberal, além de trazer um novo sistema para o cumprimento da punição
(TELES, 2006).

O novo sistema elege a privação da liberdade como pena principal, a reclusão


e detenção, para os crimes, e prisão simples para as contravenções penais,
e as medidas de segurança para os incapazes e perigosos. O Código orienta-
se para uma política criminal de transação e conciliação, abraçando princípios
das duas escolas, clássica e positiva. (TELES, 2006, p. 49)

Mais à frente, com a promulgação da Carta Magna de 1988, atualmente


vigente, estabeleceu-se em um dos artigos mais importantes da Constituição, o art. 5,
inciso XLV e seguintes, versando sobre os tipos de penas aplicáveis e vedando o
tratamento de penas cruéis.

27
2.3. SISTEMAS PENITENCIÁRIOS

A esta altura, com a abolição das penas corporais dando lugar ao controle à
disciplina e à correção, é elencando doutrinariamente três tipos de sistema
penitenciários com a aplicação das penas privativas de liberdade: o sistema Filadélfia,
o de Auburn e o sistema Inglês ou Progressivo.

2.3.1. Sistema da Filadélfia (ou celular)

Iniciado de fato no ano de 1829 e influenciado pelas ideias de Beccaria,


Howard e Bentham, o sistema filadélfico apresentava como principal característica o
isolamento rigoroso, a significativa redução dos gastos aplicados com vigilância e a
impossibilidade de introduzir uma organização do tipo industrial nas prisões
(BITENCOURT, 2011).

A estrutura desta forma de execução penitenciária se baseava no isolamento


celular dos internos, na obrigação ao silêncio, na meditação e na oração. Este
sistema garantia, em primeiro lugar, uma drástica redução com as despesas
de vigilância; em segundo lugar, este rígido estado de segregação individual
negava, a priori, a possibilidade de introduzir um tipo de organização
industrial nas prisões. (MELOSSI; PAVARINI, 2006, p.188)

Aplicado à religião como meio de recuperação do transgressor, quando o


detento apresentava sinais característicos de arrependimento, chegava-se à
conclusão que o detento teria encontrado o caminho da “salvação espiritual”, findando
sua reabilitação (BITENCOURT, 2011).
Sua principal crítica era sua principal característica, qual seja: o isolamento
absoluto, posto que, por ser aplicado de forma rigorosa, sua incomunicabilidade fazia
o processo de reabilitação ser angustiante, consideravam que seu método se
convertia na pior tortura, produzindo efeitos mais danosos que a os castigos físicos
alcançariam, sem que fosse notório no corpo do condenado (BITENCOURT, 2011).

2.3.2. Sistema de Auburn

Criado para sanar as críticas e falhas existente no sistema celular, no ano de


1976 o governador John Jay, de Nova York, enviou uma comissão para estudar o

28
sistema da Filadélfia, sendo construída a prisão de Auburn no ano de 1816, todavia,
o presente sistema apresentava características semelhantes ao sistema celular, uma
vez que persistia na reabilitação do transgressor por meio do isolamento, no entanto,
agora com a realização de trabalho durante o dia e isolamento no período noturno.
(BITENCOURT, 2011)

Este novo "sistema penitenciário" estava calcado em dois critérios


fundamentais: o solitary confinement durante a noite e o common work
durante o dia. O princípio do solitary confinement manteve, numa certa
medida, uma influência não desprezível sobre as modalidades de reclusão,
perdurando, ainda, a obrigação mais do que absoluta ao silêncio (às vezes,
o sistema de Auburn aparece indicado como silent-system) no intuito de evitar
os contatos entre os internos e de obrigá-los a uma meditação forçada; foram
também valorizadas positivamente as funções atribuídas à disciplina e à
educação em geral. (MELOSSI; PAVARINI, 2006, p.190)

Inovando na organização carcerária, o sistema auburniano apresentava três

categorias:

1º) a primeira era composta pelos mais velhos e persistentes delinquentes,


aos quais se destinou o isolamento contínuo; 2º) na segunda situavam-se os
menos incorrigíveis, que somente eram destinados às celas de isolamento
três dias na semana e tinham permissão para trabalhar; 3º) a terceira
categoria era integrada pelos que davam maiores esperanças de serem
corrigidos. A estes somente era imposto o isolamento noturno, permitindo-se-
lhes trabalhar juntos durante o dia, ou sendo destinados às celas individuais
um em dia de semana. (BITENCOURT, 2011, p. 87)

Diferente do sistema filadélfico, o sistema auburniano não admitia o


misticismo e a “reabilitação” do delinquente não seguia uma ordem definida,
predominava a preocupação em conseguir a obediência do detento, mas o trabalho
inserido era considerando um meio de ressocializar o detento, além de torná-lo apto
para sua reinserção na sociedade. (BITENCOURT, 2011)
Seu fracasso se deu por algumas razões, na qual destaca-se a insistência da
rigorosidade encontrada no sistema celular, no que tange respeito ao silêncio
absoluto, neste ponto, o sistema auburniano apresentava uma exceção, os detentos
podiam comunicar-se em voz baixa quando havia licença prévia dos guardas. No
mesmo norte, a disciplina aplicada seguia um estilo de vida militar.

29
Os reclusos não podiam caminhar, a não ser em ordem-unida ou fila indiana,
olhando sempre as costas de quem ia à frente, com a cabeça ligeiramente
inclinada para a direita e com os pés acorrentados, movimentando-se de
forma uníssona. (BITENCOURT, 2011, p. 93)

Não bastasse, os internos ficavam submetidos ao poder de castigo totalmente


discricionário dos vigilantes, o que tornou o sistema criticado pela aplicação dos
castigos cruéis realizados de forma excessiva para efetivação do controle, da ordem
e da obediência dos detentos. (BITENCOURT, 2011)
Por fim, Bitencourt (2011, p. 96) afirma que “[...] o sistema auburniano -
afastadas sua rigorosa disciplina e sua estrita regra do silêncio - constitui uma das
bases do sistema progressivo”.

2.3.4. Sistema Progressivo

Imposto explicitamente no decorrer do século XIX, a pena privativa de


liberdade passou a ser o ideal do sistema penal e coincidiu com o abandono dos
sistemas anteriores, substituídos pelo sistema progressivo que, possuía como
princípio a distribuição do tempo de cumprimento de pena em fases, ampliando-se em
cada fase os privilégios que o condenado poderia desfrutar, desde que apresente
boas condutas e bom tratamento reformador. (BITENCOURT, 2011)

A meta do sistema tem dupla vertente: de um lado pretende constituir um


estímulo à boa conduta e à adesão do recluso ao regime aplicado, e, de outro,
pretende que esse regime, em razão da boa disposição anímica do interno,
consiga paulatinamente sua reforma moral e a preparação para a futura vida
em sociedade. (BITENCOURT, 2011, p. 98)

Considerado um dos grandes avanços no sistema penitenciário, o sistema


progressivo abria lugar para a vontade do recluso e diminuía consideravelmente a
disciplina rígida aplicada no sistema auburniano e filadélfico.

2.3.5. Sistema Progressivo Inglês e Irlandês

Elaborado por Alexander Maconochie, no ano de 1840, na ilha de Norfolk, na


Austrália, o sistema progressivo Inglês ou mark system (sistema de vales) tinha como
principal característica a duração da pena por uma soma de trabalho e de boa conduta
imposta ao condenado, tal soma era realizada por meio de marcas ou vales que os
30
detentos recebiam (BITENCOURT, 2011).
À medida que o encarcerado apresentasse boa conduta recebia marcas ou
vales, e os perdia quando apresentava uma má conduta, esse sistema dava início a
condenação indeterminada, pois a duração da pena variava da conduta do apenado
através do aproveitamento do recluso, demonstrado pelo bom proveito no trabalho e
comportamento durante o cumprimento (BITENCOURT, 2011).
Sua progressão, adquirida pelo acúmulo de vales, dividia-se em três períodos,
o primeiro deles constava o isolamento celular absoluto, fazendo com que o preso
refletisse sobre a transgressão praticada; o outro se iniciava com a permissão do
trabalho em comum, em silêncio, passando-se a outros benefícios; e o último permitia-
se a liberdade condicional (MIRABETE, 2001).
Por sua vez, Walter Crofton, aperfeiçoou o sistema Inglês e implementou na
Irlanda mais uma fase para o tratamento dos presos, nesse sistema de progressão a
condenação passava por quatro períodos, o primeiro marcado pela reclusão celular
diurna e noturna; o segundo pela reclusão celular noturna e trabalho diurno em
comum; o terceiro pelo período intermediário (semiliberdade), trabalhando fora das
propriedades da penitência durante o dia, se recolhendo durante a noite; ao quarto
chegava na liberdade condicional (MIRABETE, 2001).
Na inovação criada por Crofton, a terceira fase, Bitencourt (2011) relata as
vantagens que os presos possuíam, como dispor dos uniformes dos presos; não
receber nenhum castigo corporal; escolher a atividade laboral e, em especial, ter a
liberdade para comunicar-se com as pessoas livres.
O Sistema Irlandês foi o sistema progressivo que mais teve repercussão, aliás,
é este que mais se baseia na ideia de ressocialização e reintegração na sociedade do
condenado, simbolizando a melhora do caráter do detento, o sistema progressivo foi
adotado nas ordenações jurídicas brasileira, pois em consonância com o art. 33,
parágrafo 2º do Código Penal, versando sobre a execução progressiva da pena.

2.3.6. Sistema Progressivo Brasileiro

No Brasil, foi em 1830, com o Código Criminal do Império, que a pena de


prisão foi instalada, sob duas formas: a prisão simples e a prisão com trabalho, esta
última podendo ser perpétua. Este Código não optou por nenhum sistema
penitenciário específico, ficando livre para os governos das províncias do Império
31
Brasileiro definirem o tipo de prisão e a regulamentação que seria regida, neste
período, como anteriormente informado, manteve-se as penas de mortes e de galés.
Mais à frente no ano de 1834 foi possível iniciar a obra das Casas de
Correções, sendo aplicado o sistema análogo ao sistema da Filadélfia e Auburn,
apresentavam as mesmas características: isolamento, silêncio absoluto, castigos
físicos para os transgressores das disciplinas impostas, etc. Aqui também se
apresentava a ideia de corrigir os criminosos para assim serem inseridos novamente
na sociedade (ALMEIDA, 2014).
Foi então com o Código Penal de 1940, que o sistema prisional progressivo
foi adotado no Brasil, baseado no Sistema Irlandês, com algumas adaptações,
estabelecendo critérios subjetivos e objetivos para concessão da progressão do
preso.
Em síntese, quatro fases eram apresentadas de cunho progressivo, previsto
no art. 30 do Código Penal de 1940, na primeira fase o preso ficava em isolamento
durante o dia, por tempo não superior a três meses, posteriormente o recluso passava
a desenvolver atividades laborais em comum, com os demais presos. Após, com o
cumprimento de metade da pena, quando esta fosse igual ou inferior a três anos, ou
cumprido um terço da pena, quando superior a três anos, o recluso que apresentasse
boa conduta tinha a possibilidade de ser transferido para uma colônia penal ou
estabelecimento análogo. O livramento da condicional era concedido pelo juiz, desde
que a pena cumprida pelo transgressor fosse superior a três anos e cumpridos os
requisitos presentes no art. 60 do mesmo Código.
Com o advento da lei 6.416/1977 foram realizadas algumas alterações no
sistema progressivo, não perdeu sua essência, mas incluiu três tipos de regimes:
fechado, semiaberto e o aberto.
No ano de 1984, com a reforma penal, classificou-se três espécies de pena:
privativa de liberdade, restritiva de direito e multa, manteve-se os três tipos de regimes
e determinou-se que as penas privativas de liberdade deveriam ser executadas
progressivamente, segundo o mérito do condenado, observado o art. 33 do Código
Penal, seus parágrafos e alíneas.
No mesmo ano, foi instituída a Lei de Execução Penal n. 7.210 de 1984,
versando também sobre o cumprimento progressivo da pena privativa de liberdade
em seu art. 112.

32
O ápice da progressividade do cumprimento da pena privativa de liberdade
reflete-se hoje em nosso Código Penal e, sobretudo, na Lei de Execução
Penal. Sua ideia básica é que, com o passar do tempo, se o preso cumprir
parte da pena e demonstrar-se digno de confiança, será premiado com a
passagem para um sistema de cumprimento menos rigoroso, de modo a ser
paulatinamente reinserido na sociedade. (ESTEFAM, 2018. p. 390)

Como pode se ver, pelo breve exposto, a pena e o sistema penitenciário em geral
tiveram sua gradativa evolução, no Brasil, em especial, deixamos a aplicação de
penas corporais para realizar a aplicação de penas “justas”, sem a violação do corpo
do condenado, cumprida agora em um sistema penitenciário, busca-se a reabilitação
do detento e não mais a sua correção, quer-se sua integração na sociedade, posto
que devido seu delito cometido, não está apto para viver nela.
Contudo, é fato que o Sistema Penitenciário Brasileiro atual apresenta vários
problemas, violando diversos preceitos fundamentais estabelecidos em nossa
Constituição de 1988, em verdade, encontra-se em crise e, pode-se dizer que devido
às falhas, seja na legislação até a sua efetivação, infelizmente o condenado integrante
da comunidade LGBTQIA+ sofre uma sanção maior dentro desse sistema dado sua
vulnerabilidade, posto que, a heteronormatividade, em âmbito penal, além da
superioridade masculina, obsta a vivência do apenado com orientação sexual ou
identidade de gênero diferente da heterossexual.
Dito isso, não é novidade que o preconceito e da discriminação já é vivenciado
fora das penitenciarias pela população LGBTQIA+, mas agora, quando reclusos, o
que se tem é uma agravação e continuação das violências suportadas durante o
cumprimento da pena, executadas principalmente pela população carcerária.

3. RELEVANTES PRINCÍPIOS APLICÁVEIS NA EXECUÇÃO PENAL

Sabendo que oficialmente o sistema prisional foi criado com o objetivo de cumprir
a sanção do condenado, buscando a reabilitação do detento, efetivando penas
alternativas das executadas antigamente, posto que no seu cumprimento, as penas
privativas de liberdade são cumpridas nos estabelecimentos penais brasileiros, que
se subdividem de acordo com a finalidade da pena a ser cumprida e que a lei n. 7.210,
de 11 de julho de 1984, aduz em seu primeiro artigo que a execução penal tem por
objetivo proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e
do internado, há, nesta ocasião, de se abordar três princípios importantes que regem

33
não só a aplicação da pena mas também sua execução, buscando observar, antes de
abordar a temática do presente artigo em sua essência, as garantias dos condenados.

3.1. Princípio da Dignidade da Pessoa Humana

Afirma Lemos Junior e Brugnara (2017, p. 91) que “[...] a expressão dignidade
vem do latim, dignitas, que significa tudo aquilo que merece respeito, consideração,
reverência, mérito, importância, acatamento ou estima”. Ainda, ilustram os autores
que a dignidade humana consiste em “[...] uma forma de valorização do ser humano”
(LEMOS JUNIOR; BRUGNARA, 2017, p. 91).
Nesse sentido, taxativamente previsto na Constituição da República Federativa
do Brasil de 1988, precisamente em seu art. 1º, é assegurado o exposto princípio
como um dos fundamentos essenciais do nosso Estado Democrático de Direito,
sendo, sem dúvida, o princípio alicerce de todos, posto que deste subdividem-se os
demais:

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos


Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de
Direito e tem como fundamentos:
I - a soberania;
II - a cidadania;
III - a dignidade da pessoa humana;
IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;
V - o pluralismo político.
Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de
representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.

O doutrinador Walber de Moura Agra, conceitua o aludido princípio como:

[...] um complexo de direitos que são inerentes à espécie humana, sem eles o
homem se transformaria em coisa, res. São direitos como vida, lazer, saúde,
educação, trabalho e cultura que devem ser propiciados pelo Estado [...] Esses
direitos servem para densificar e fortalecer os direitos da pessoa humana,
configurando-se como centro fundante da ordem jurídica. (AGRA, 2018, p. 145).

Nota-se que a dignidade da pessoa humana preenche as demais vertentes do


Direito brasileiro, sendo indispensável sua efetivação pelo Estado, uma vez que
abrange a todos os indivíduos pelo simples fato de serem concebidos com vida, nesse
sentido, conforme preleciona Barroso:

O princípio da dignidade humana identifica um espaço de integridade a ser


assegurado a todas as pessoas por sua só existência no mundo. É um respeito à

34
criação, independente da crença que se professe quanto à sua origem. A dignidade
relaciona-se tanto com a liberdade e valores do espírito quanto com as condições
materiais de subsistência. (BARROSO, 2010, p. 288)

Logo, zelando pelos direitos fundamentais positivados em nosso ordenamento


jurídico, como o direito à vida, à liberdade, à saúde, à educação, garantido a todos os
cidadãos, independentemente de sua cor, idade, classe, orientação sexual, origem e
etc, esse princípio visa proteger as pessoas de viverem em condições degradantes,
desprezíveis, garantido condições básicas para seu desenvolvimento, eis que vai de
encontro com sua dignidade.
Não bastasse sua relevância, em decorrência do presente, se originam outros
direitos e garantias espalhados no artigo 5º da Constituição Federal, como a vedação
da tortura, vedação das penas indignas e proteção da integridade do condenado.
Aliás, frisa-se que é no ramo do Direito Penal que os direitos fundamentais mais
sofrem interferência, contudo, ainda assim devem ser garantidos para aqueles
indivíduos que cometeram condutas criminosas, estando sob proteção do Estado.
Nesse linear é a colocação de Ingo Wolfgang Sarlet (2007, p. 45):

[...] não se deverá olvidar que a dignidade – ao menos de acordo com o que parece
ser a opinião largamente majoritária – independe das circunstâncias concretas, já
que inerente a toda e qualquer pessoa humana, visto que, em princípio, todos –
mesmo o maior dos criminosos – são iguais em dignidade, no sentido de serem
reconhecidos como pessoas – ainda que não se portem de forma igualmente digna
nas suas relações com seus semelhantes, inclusive consigo mesmos. Assim,
mesmo que se possa compreender a dignidade da pessoa humana – na esteira do
que lembra José Afonso da Silva – como forma de comportamento (admitindo-se,
pois, atos dignos e indignos), ainda assim, exatamente por constituir – no sentido
aqui acolhido – atributo intrínseco da pessoa humana (mas não propriamente
inerente à sua natureza como se fosse um atributo físico!) e expressar o seu valor
absoluto, é que a dignidade de todas as pessoas, mesmo daquelas que cometem
as ações mais indignas e infames, não poderá ser objeto de desconsideração.

Do acima, cumpre trazer a lição de Michel Foucault (2002, p. 63) ao enfatizar


que “[...] no pior dos assassinos, uma coisa pelo menos deve ser respeitada quando
punimos: sua ‘humanidade”. Colhe-se, que por mais repreensivo tenha sido a conduta
do agente ao praticar qualquer crime, não há de se esquecer que trata-se de uma
pessoa humana, devendo, em tese, ser preservado de circunstâncias vexatórias,
degradantes ou cruéis, tanto é assim que no direito penal a doutrina aplica dois
aspectos a este princípio, “[...] a proibição de incriminação de condutas socialmente
inofensivas (afinal, o Direito é que está a serviço da humanidade, e não o contrário);
e a vedação de tratamento degradante, cruel ou de caráter vexatório” (ESTEFAM;

35
GONÇALVES, 2016, p. 103).
Portanto, o propósito do princípio da dignidade da pessoa humana é
proporcionar ao cidadão um mínimo de direitos a serem respeitados pela coletividade
e entes públicos, a fim de garantir a valorização do ser humano, posto que o princípio
“[...] representa a superação da intolerância, da discriminação, da exclusão social, da
violência, da incapacidade de aceitar o outro, o diferente, na plenitude de sua
liberdade de ser, pensar e criar” (BARROSO, 2010, p. 288).

3.2. Princípio da Igualdade

Também considerado a base do Estado Democrático de Direito, o princípio da


igualdade/isonomia tem sua fixação legal no art. 5º, caput, inciso I, da Constituição
Federal, que também impõe tratamento penal a qualquer ato discriminatório.

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade
do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos
seguintes:
I - homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta
Constituição;
[...]
XLI - a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades
fundamentais;

Aponta Vicente Paulo e Marcelo Alexandrino o seguinte conceito do princípio da


igualdade (2015, p. 167):

O princípio da igualdade determina que seja dado tratamento igual aos que se
encontram em situação equivalente e que sejam tratados de maneira desigual os
desiguais, na medida ele suas desigualdades. Ele obriga tanto o legislador quanto
o aplicador da lei (igualdade na lei e igualdade perante a lei).

Seu encargo nada mais é do que um real princípio a regrar todo o restante do
direito, “[...] é como se tivesse dito: assegura-se o direito de liberdade de expressão
do pensamento, respeitada a igualdade de todos perante este direito” (BASTOS,
2015, p. 154).
Da mesma forma, preleciona Boaventura de Sousa Santos que:

“Temos o direito a ser iguais quando a nossa diferença nos inferioriza; e temos o
direito a ser diferentes quando a nossa igualdade nos descaracteriza. Daí a
necessidade de uma igualdade que reconheça as diferenças e de uma diferença

36
que não produza, alimente ou reproduza desigualdades.” (SANTOS, 2003, p. 56)

Em que pese a pluralidade de indivíduos e suas divergências, todos são sujeitos


de direito, devendo receber igual proteção da lei, sendo que esta não pode realizar
tratamento discriminatório de modo arbitrário, salvo para reverter ocasiões de
desigualdade existentes. Portanto, não se pode condicionar a identidade de gênero
ou orientação sexual do indivíduo ao princípio da igualdade.
Seguindo o entendimento adotado pela doutrina, existem dois tipos de
igualdade, a denominada formal e a material, a primeira, segundo o doutrinador Nunes
Júnior refere-se a expressão de que todos serão iguais perante a lei, “[...] consiste em
dar a todos idêntico tratamento, não impondo a cor, a origem, a nacionalidade, o
gênero ou a situação financeira (NUNES JÚNIOR, 2019, p. 941).
Enquanto a igualdade material "[...] consiste em dar aos desiguais um tratamento
desigual, na medida da desigualdade” (NUNES JÚNIOR, 2019, p. 942), ou seja, tratar
os cidadãos em condições desfavorecidas de forma desigual para alcançar a
igualdade propriamente efetiva desses indivíduos, observando a realidade, diferença
e peculiaridade de cada pessoa.

3.3. Princípio da Proporcionalidade

Conhecido também como princípio da razoabilidade ou proibição de excesso,


este princípio não está expressamente positivado em nossa Constituição Federal,
possuindo origem implícita, contudo, há de se dizer que seu fundamento pode ser
localizado no art. 5º, § 2º, da Carta Magna, que assim dispõe:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade
do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos
seguintes:
[...]
§2º Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros
decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados
internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.

Nesse viés, há doutrinadores que compreendem este princípio como uma norma
constitucional não escrita, pertinente ao Estado Democrático de Direito, enquanto
outros entendem que se flui de outros princípios, como o do devido processo legal ou
da isonomia. Em que pese o conflito, há um consenso doutrinário acerca de sua
37
origem, criado pelo direito alemão.
Sua “[...] essência, consubstancia uma pauta de natureza axiológica que emana
diretamente das ideias de justiça, equidade, bom senso, prudência, moderação, justa
medida, proibição de excesso, direito justo e valores afins” (LENZA, 2014, p. 175)
Conforme leciona Barroso (2020, p. 300) o princípio da proporcionalidade se
trata “[...] de um valioso instrumento de proteção dos direitos fundamentais e do
interesse público, por permitir o controle da discricionariedade dos atos”. Na esfera
penal, o princípio da proporcionalidade deve ser compreendido em seus três
subprincípios: adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito.

1) adequação: a medida adotada pelo Estado (utilização do Direito Penal)


deve ser adequada (apta) para alcançar os fins pretendidos (proteção do bem
jurídico, prevenção e retribuição). 2) necessidade: o Direito Penal só deve
atuar de forma subsidiária, isto é, quando se mostrarem insuficientes as
demais formas de controle social. 3) proporcionalidade em sentido estrito: os
meios utilizados para consecução dos fins não devem extrapolar os limites do
tolerável. Os benefícios a serem alcançados (tutela eficaz do bem, prevenção
e retribuição) devem ser maiores que os custos (sacrifício do autor do crime
ou da própria sociedade). (SALIZM e AZEVEDO, 2017, p. 102)

Isto posto, percebe-se que a função do princípio é proteger o indivíduo de


eventuais abusos do poder do Estado, o qual deve estabelecer parâmetros para
aplicação do poder punitivo, garantindo a proteção das prerrogativas e garantias
individuais do apenado, vez que seu exercício atinge diretamente os direitos
fundamentais, apesar disso, o condenado LGBTQIA+ cumpre uma pena muito maior
do que a cominada pelo seu crime, isso porque é alvo de diversas violências na
execução de sua pena.

4. O DIREITO DO APENADO LGBTQIA+ DE NÃO SOFRER DISCRIMINAÇÃO NO


CUMPRIMENTO DA PENA

O presente capítulo tem por objetivo traçar um panorama das principais


legislações atinentes ao cumprimento da pena pela população LGBTQIA+ no sistema
penitenciário brasileiro, em especial, a abordagem da Declaração Universal dos
Direitos Humanos, os Princípios de Yogyakarta e a Resolução Conjunta n. 1, de 15
de abril de 2014, instrumentos que asseguram os apenados integrantes da referida
comunidade de não sofrerem discriminação em razão de suas orientações sexuais ou
identidade de gênero.

38
Entretanto, inicialmente cumpre-me trazer à presente monografia o primeiro caso
de condenação por orientação sexual no Brasil que se tem história, ocorrido no
Maranhão, logo após a chegada dos franceses no ano de 1613, a vítima, um homem
indígena tupinambá, sentenciado pelo religioso francês Yves d'Évreux, frade
capuchinho, que integrou a expedição francesa ao Brasil Colônia.
Sua execução, com fundamento na sadomia, está retratada no próprio livro
escrito pelo religioso Yves d'Évreux, em sua obra “História das coisas mais
memoráveis acontecidas no Maranhão nos anos 1613 e 1614”, da qual destaca-se o
seguinte trecho:

Um pobre índio, bruto, mais cavalo do que homem, fugiu para o mato por
ouvir dizer que os franceses o procuravam e aos seus semelhantes para
matá-los e purificar a Terra de suas maldades por meio da santidade do
Evangelho, da candura, da pureza, e da clareza da Religião Católica
Apostólica Romana. Apenas foi apanhado amarraram-no e trouxeram-no com
segurança ao Forte de São Luís, onde deitaram-lhe ferros aos pés; vigiaram-
no bem até que chegassem os principais de outras aldeias para assistirem
ao seu processo, e proferirem sua sentença e sua morte, como fizeram afinal.
Não esperou o prisioneiro pelo princípio do processo, e ele mesmo
sentenciou-se, porque diante de todos disse: “Estou morto, e bem o mereço,
porém desejo que igual fim tenham os meus cúmplices.” (d’Évreux, 2007, p.
319-320)

Antes de sua morte, lhe fora concedido o batismo, “[...] cuidou-se em sua alma
dizendo-se-lhe, que se ele recebesse o batismo, apesar de sua má vida passada, iria
direto para o Céu apenas sua alma se desprendesse do corpo” (d’Évreux, 2007, p.
320).

Recebeu, com tranqüilidade e sem tristeza, na presença dos principais


selvagens o batismo, depois do que um dos principais, chamado Caruatapirã,
“Cardo Vermelho” (...) lhe disse estas palavras: “Tens agora ocasião de
estares consolado e de não te afligires, pois presentemente és filho de Deus
pelo batismo que recebeste da mão de Tatu-uaçu (nome do senhor de
Pesieux na língua dele) com permissão dos padres. Morres por teus crimes,
aprovamos tua morte, e eu mesmo quero pôr o fogo na peça para que saibam
e vejam os franceses que detestamos as sujeiras que você cometeu; mas
repara na bondade de Deus e dos padres para contigo, expelindo Jiropari
para longe de ti por meio do batismo de maneira que apenas tua alma saia
do corpo vá direto para o Céu ver Tupã e viver com os Caraíbas que o cercam;
quando Tupã mandar alguém tomar teu corpo, se quiseres ter no Céu os
cabelos compridos e o corpo de mulher antes do que o de um homem, pede
a Tupã que te dê o corpo de mulher e ressuscitarás mulher, e lá no Céu ficarás
ao lado das mulheres e não dos homens.” (d’Évreux, 2007, p. 321)

O indígena ou “tibira do maranhão” como ficou conhecido, foi levado até um dos
canhões instalados na muralha do forte de São Luís, local que se procedeu à sua

39
execução.

levaram-no para junto da peça montada na muralha do Forte de S. Luís, junto


ao mar, amarraram-no pela cintura à boca da peça, e o Cardo vermelho
lançou fogo à escova, em presença de todos os principais, dos selvagens e
dos franceses, e imediatamente a bala dividiu o corpo em duas porções,
caindo uma ao pé da muralha, e outra no mar, onde nunca mais foi
encontrada (d’Évreux, 2007, p. 322).

Apesar do fato ter ocorrido no período Brasil Colônia, época ainda marcada pela
realização dos suplícios como forma de condenação, nota-se que a discriminação
contra os homossexuais não é evento recente, faz parte da tradição jurídica brasileira,
inclusive a criminalização do agir homossexual. Diga-se isso, porque vigente no livro
V das Ordenações Filipinas norma que tipificou como crime e estabeleceu punição
aos que praticavam o pecado da sadomia, independentemente se realizado por
homens ou mulheres.
A sadomia encontrava-se tipificada no livro V “Título XIII: Dos que cometem
pecado de sodomia, e com alimárias” determinando que:

Toda a pessoa, de qualquer qualidade que seja, que pecado de sodomia (1)
per qualquer maneira commetter, seja queimado, e feito por fogo em pó (2),
para que nunca de seu corpo e sepultura possa haver memoria, e todos seus
bens sejam confiscados para a Coroa de nossos Reinos, postoque tenha
descendentes; pelo mesmo caso seus filhos e netos ficarão inhabiles(3) e
infames, assi como os daquelles que commetem crime de Lesa Majestade.

Além do crime acima, a Ordenações Filipinas ainda abordava no Livro V em seu


Título XXXIV: “do homem que se vestir em trajos de mulher, ou mulher em trajos de
homem, e dos que trazem máscaras” a vedação expressa do uso de vestimentas
socialmente estabelecidas para o sexo oposto ao do sujeito, presente no seguinte
trecho:

Defendemos que nenhum homem se vista, nem ande em trajos de mulher,


nem mulher em trajos de homem, nem isso mesmo (3) andem com mascaras
(4), salvo se fôr para festas, ou jogos, que se houverem de fazer fóra das
Igrejas, e das Procissões.
E quem o contrário de cada huma das ditas cousas fizer, se fôr peão, seja
açoutado publicamente, e se fôr Scudeiro, e dahi para cima, será degradado
dous annos para Africa, e sendo mulher da dita qualidade, será degradada
trez annos para Castro-Marim.
E mais cada hum, a que o sobredito fôr provado, pagará dous mil réis para
quem o acusar.

40
Somente com o advento do Código Penal do Império, no ano de 1830, foram
revogadas as disposições que versavam sobre crimes nas Ordenações Filipinas,
desaparecendo a criminalização da homossexualidade.

O Código, inspirado pelos ideais iluministas, descriminalizou o ato sodomita,


tipificando, com o fito de proteger os costumes, os delitos sexuais. Desde
então, os cidadãos civis não estão submetidos à tutela penal com base
exclusivamente em uma prática homossexual livremente consentida, desde
que privada. (RIOS; SCHAFER e BORBA, 2012, p. 9)

Com a revogação da criminalização da prática homossexual, à população


LGBTQIA+ passou a ser invisível aos olhos do poder público, carente de políticas
públicas.

Conquanto houvesse o Código Criminal do Império, bem como os códigos


penais posteriores, varrido do sistema legal a criminalização da prática
homossexual, não se tornou mais fácil a vida dos homossexuais, uma vez
que passaram eles a ser “invisíveis” no tocante às políticas públicas, ou seja,
se até 1830 eram tidos por criminosos sujeitos à pena de morte, a partir de
então foram deslocados para a invisibilidade jurídica e social, o que continuou
a acarretar graves distorções sociais [...]. (BOMFIM, 2011, p. 11)

Do ponto de vista histórico, observa-se que de nosso passado colonial sempre


foi concedido ao cidadão desviantes da norma cis-heterossexual um tratamento
preconceituoso, excludente e discriminatório, tratamento exercido tanto perante os
olhos da sociedade quanto pelo poder público ao legislar tais normas.
Como reflexo dessa cultura, colhemos atualmente os atos violentos e
discriminatórios praticados contra essa parte da população, como se observa com os
dados do Grupo Gay da Bahia fornecido em seu “Relatório Anual de Mortes Violentas
de LGBT”, mencionando que 300 integrantes da comunidade LGBTQIA+ foram alvo
de morte violenta em nosso país no ano de 2021, sendo 8% a mais que no ano
anterior, se compondo em 276 homicídios e 24 suicídios. Esses dados não se originam
somente da cultura adotada pela Brasil no tratamento discriminatório do ser humano
com orientação sexual ou identidade de gênero diversa da heterossexual, mas é um
dos fatores que agregaram em seu resultado.
O Brasil continua liderando o ranking de país do mundo onde mais LGBT são
assassinados, obtendo uma morte a cada 29 horas. Logo, se em convívio com a
sociedade a população LGBTQIA+ é vulnerável, sob a ótica dos ambientes prisionais
essa vulnerabilidade se intensifica, reforçando estigmas, discriminações e

41
preconceitos em razão da diversidade.
Portanto, considerando que essa discriminação contra os homossexuais não é
novidade, que novidade é o combate aos preconceitos que historicamente motivam
práticas discriminatórias, há de se abordar algumas normas que amparam a
comunidade LGBTQIA+ no cumprimento da pena.

4.1. Declaração Universal de Direitos Humanos

Não bastando os direitos expressamente estabelecidos em nossa Constituição


Federal e legislações infraconstitucionais, nosso ordenamento jurídico adota outros
direitos implícitos, como aqueles previstos em tratados internacionais, que também
garantem direitos inerentes à dignidade da pessoa humana, ou seja, a não
discriminação.
Com o advento da Segunda Guerra Mundial, além da perseguição e condenação
à trabalhos forçados dos judeus, outros grupos também foram perseguidos, como no
caso dos homossexuais, que no campo de concentração “[...] eram identificadas com
o símbolo de um triângulo rosa” (SOARES, 2020, p. 12). Os “[...] homossexuais não
eram alvo de abuso e violência apenas dos guardas; também sofriam abuso nas mãos
de outros prisioneiros frustrados e raivosos” (SETTERINGTON, 2017, p. 65).

Quando os guardas descobriam que um prisioneiro era homossexual,


geralmente ele se tornava alvo de um tratamento mais duro. “Por causa do
meu triângulo rosa, fui separado dos outros presos”, relata um homem que
foi prisioneiro no campo de Natzweiler-Struthof, perto de Estrasburgo, França.
“Um sargento da SS junto com um kapo me maltratavam das maneiras mais
brutais… três vezes socaram meu rosto, especialmente meu nariz, de forma
que três vezes caí no chão; quando consegui me levantar, eles continuaram
me espancando… Então eu cambaleei de volta ao meu alojamento coberto
de sangue. (SETTERINGTON, 2017, p. 65)

Assim, marcada por grandes catástrofes e genocídios, viu-se a necessidade da


criação de instrumentos internacionais que versassem acerca da proteção dos direitos
humanos, sendo o estopim para criação da Declaração Universal dos Direitos
Humanos pela Organização das Nações Unidas.
Referido instrumento proclama o princípio da não discriminação, contido
especialmente em seu art. 1º ao declarar que “todas as pessoas nascem livres e iguais
em dignidade e direitos” (ONU, 1948). Logo, preconiza que todos somos igualmente
possuidores de direitos, garantindo a todos uma vida plena e livre da discriminação e

42
do preconceito. Ademais, os arts. 2º e 7º dispõem sobre a igualdade a que tem direitos
todos os cidadãos, sem que tenha distinção de qualquer espécie, sob pena de afronta
aos direitos humanos.
Igualmente, seu art. 5º aduz que “ninguém será submetido a tortura nem a pena
ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes” (ONU, 1948), contudo, os corpos
dos apenados e, principalmente dos reclusos da comunidade LGBTQIA+, encontram-
se sujeitos a esta violação.

A população carcerária é tratada como um peso para a sociedade, todos


acreditam que os detentos têm que ter só deveres a cumprir, que eles não
devem ter direitos. Mas todos os cidadãos têm que ter direitos e deveres, e
não é porque ele está preso que perde esses direitos. O preso não só tem
deveres a cumprir, mas é sujeito de direitos, que devem ser reconhecidos e
amparados pelo Estado. O recluso não é um “alieni juris”, não está fora do
direito, pois encontra-se numa relação jurídica em face do Estado, e exceto
os direitos perdidos e limitados pela condenação, sua condição jurídica é
igual à das pessoas não condenadas. (COSTA, 2016, p. 38 apud
ALBEGARIA, 1993, p. 148)

Como se pode observar, a temática da não discriminação por orientação sexual


e da identidade de gênero, encontra-se amparada também no âmbito internacional,
apesar de inexistir menção expressa à comunidade LGBTQIA+ na Declaração
Universal de Direitos Humanos, tem-se a cláusula de abertura presente no art. 2º, vez
que proclama que todos possuem capacidade para gozar os direitos e as liberdade
estabelecidas, sem distinção de qualquer espécie e “qualquer outra condição”,
somando ao fato de que os direitos humanos possuem como características a
universalidade, ou seja, não altera sua natureza devido à ausência de menção à
população LGBTQIA+.

4.2. Princípios de Yogyakarta

Os Princípios de Yogyakarta têm sua origem nos esforços de diversos


especialistas de variadas Organizações Não Governamentais, com o propósito de
mapear as inúmeras violações de direitos humanos sofridas pelos integrantes do
grupo LGBTQIA+ em virtude de sua identidade de gênero e orientações sexuais
(ALAMINO; VECCHIO, 2018, p. 4 apud O’FLAHERTY; FISCHER, 2008, p. 232-233).
Diante disso, com um grupo de vinte e nove especialistas de vinte e cinco
países divergentes, no intuito de conseguir representatividade global, os Princípios de

43
Yogyakarta foram elaborados na Universidade de Gadjah Mada, em Yogyakarta,
Indonésia, no ano de 2006, sendo apresentado em 2007 pelo Conselho de Direitos do
Homem da Organização Internacional das Nações Unidas, não com o objetivo de
realizar a criação de novos direitos à comunidade LGBTQIA+, mas de adequá-los a
este grupo (ALAMINO; VECCHIO, 2018, p. 4-5 apud O’FLAHERTY; FISCHER, 2008,
p. 232-233).
Frisa-se que, atualmente, o material que mais possui disposições garantistas à
comunidade LGBTQIA+ é disposto nos Princípios de Yogyakarta, os quais “[...]
prometem um futuro diferente, onde todas as pessoas, nascidas livres e iguais em
dignidade e prerrogativas, possam usufruir de seus direitos, que são natos e
preciosos” (PRINCÍPIOS, 2006, p. 7).
À vista disso, constitui-se o documento num extensivo rol de princípios que
perpassam as variadas esferas da vida civil, desfrutando sobre a igualdade e a
erradicação da discriminação LGBTQIA+, além de prescrever obrigações e
recomendações específicas aos países que a ele são signatários, visando garantir a
plena implementação dos direitos inerentes as pessoas com orientações sexuais ou
identidade de gênero diversa.

Os princípios traduzem desenvolvimentos legais que os autores consideram


ser mais promissores na criação de desenvolvimentos palpáveis nas vidas
das pessoas que sofrem discriminação, em função da sua orientação sexual
ou identidade sexual. Por outras palavras, os princípios em questão não só
codificam elementos legais em desenvolvimento, como reafirmam o estado
atual da luta LGBT e progressos que já se tenham verificado. Posto de outra
forma, além de reafirmarem e reforçarem princípios e normas já existentes,
os princípios de Yogyakarta visam codificar elementos legais em
desenvolvimento, que são úteis para as vítimas de discriminação, mas que
ainda não adquiriram vinculatividade. (MAURÍCIO, 2018, p. 52)

Essencialmente, o primeiro Princípio de Yogyakarta possui como base tratar a


igualdade de todos em liberdade e direito, devendo ser assegurado a todas as
pessoas, independentemente de qualquer característica distintiva, uma vez que são
direitos de todos os seres humanos.

“Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. Os


seres humanos de todas as orientações sexuais e identidades de gênero têm
o direito de desfrutar plenamente de todos os direitos humanos”.
(PRINCÍPIOS, 2006, p. 12)

Isto posto, torna-se dever do Estado assegurar a aplicabilidade do princípio, por

44
meio da incorporação do texto tanto na Carta Magna, como também em seu Código
Penal, devendo ainda, promover políticas públicas na conscientização da sociedade
para atingir a eficácia da norma, a fim de, promover o gozo universal dos Direitos
Humanos (PRINCÍPIOS, 2006, p. 12).
Por conseguinte, o segundo princípio aborda a não criminalização da
orientação sexual ou identidade de gênero, vez que, diante da igualdade não há o que
se falar sobre qualquer tipo de criminalização, devendo o Estado adotar normas
internas para tanto e buscar sua efetividade na punibilidade (PRINCÍPIOS, 2006, p.
12-13).

Todas as pessoas têm o direito de desfrutar de todos os direitos humanos


livres de discriminação por sua orientação sexual ou identidade de gênero.
Todos e todas têm direito à igualdade perante à lei e à proteção da lei sem
qualquer discriminação, seja ou não também afetado o gozo de outro direito
humano. A lei deve proibir qualquer dessas discriminações e garantir a todas
as pessoas proteção igual e eficaz contra qualquer uma dessas
discriminações.
A discriminação com base na orientação sexual ou identidade gênero inclui
qualquer distinção, exclusão, restrição ou preferência baseada na orientação
sexual ou identidade de gênero que tenha o objetivos ou efeito de anular ou
prejudicar a igualdade perante à lei ou proteção igual da lei, ou o
reconhecimento, gozo ou exercício, em base igualitária, de todos os direitos
humanos e das liberdades fundamentais. A discriminação baseada na
orientação sexual ou identidade de gênero pode ser, e comumente é,
agravada por discriminação decorrente de outras circunstâncias, inclusive
aquelas relacionadas ao gênero, raça, idade, religião, necessidades
especiais, situação de saúde e status econômico. (PRINCÍPIOS, 2006, p. 12-
13)

Versando também sobre a segurança da comunidade LGBTQIA+ dispõe os


Princípios de Yogyakarta que seus integrantes merecem proteção estatal, vedado a
agressão pelos agentes públicos ou qualquer outro grupo, determinando os Estados
adotarem as seguintes medidas:

a) Tomar todas as medidas policiais e outras medidas necessárias para


prevenir e proteger as pessoas de todas as formas de violência e assédio
relacionadas à orientação sexual e identidade de gênero;
b) Tomar todas as medidas legislativas necessárias para impor penalidades
criminais adequadas à violência, ameaças de violência, incitação à violência
e assédio associado, por motivo de orientação sexual ou identidade de
gênero de qualquer pessoa ou grupo de pessoas em todas as esferas da vida,
inclusive a familiar;
c) Tomar todas as medidas legislativas, administrativas e outras medidas
necessárias para garantir que a orientação sexual ou identidade de gênero
da vítima não possa ser utilizada para justificar, desculpar ou atenuar essa
violência;
d) Garantir que a perpetração dessas violências seja vigorosamente
investigada e, quando provas adequadas forem encontradas, as pessoas

45
responsáveis sejam processadas, julgadas e devidamente punidas, e que as
vítimas tenham acesso a recursos jurídicos e medidas corretivas adequadas,
incluindo indenização;
e) Realizar campanhas de conscientização dirigidas ao público em geral,
assim como a perpetradores/ as reais ou potenciais de violência, para
combater os preconceitos que são a base da violência relacionada à
orientação sexual e identidade de gênero. (PRINCÍPIOS, 2006, p. 15-16)

De todos os vinte e nove princípios existentes no documento, merece atenção


nesta ocasião o nono princípio, que versa sobre o direito a tratamento humano da
pessoa LGBTQIA+ durante o cumprimento de sua detenção.

Toda pessoa privada da liberdade deve ser tratada com humanidade e com
respeito pela dignidade inerente à pessoa humana. A orientação sexual e
identidade de gênero são partes essenciais da dignidade de cada pessoa.
(PRINCÍPIOS, 2006, p. 19)

Referido princípio se constitui em sete alíneas contendo deveres para os países


signatários, os quais consistem nos seguintes termos:

a) Garantir que a detenção evite uma maior marginalização das pessoas


motivada pela orientação sexual ou identidade de gênero, expondo-as a risco
de violência, maus-tratos ou abusos físicos, mentais ou sexuais;
b) Fornecer acesso adequado à atenção médica e ao aconselhamento
apropriado às necessidades das pessoas sob custódia, reconhecendo
qualquer necessidade especial relacionada à orientação sexual ou identidade
de gênero, inclusive no que se refere à saúde reprodutiva, acesso à
informação e terapia de HIV/Aids e acesso à terapia hormonal ou outro tipo
de terapia, assim como a tratamentos de reassignação de sexo/gênero,
quando desejado;
c) Assegurar, na medida do possível, que todos os detentos e detentas
participem de decisões relacionadas ao local de detenção adequado à sua
orientação sexual e identidade de gênero;
d) Implantar medidas de proteção para todos os presos e presas vulneráveis
à violência ou abuso por causa de sua orientação sexual, identidade ou
expressão de gênero e assegurar, tanto quanto seja razoavelmente
praticável, que essas medidas de proteção não impliquem maior restrição a
seus direitos do que aquelas que já atingem a população prisional em geral;
e) Assegurar que as visitas conjugais, onde são permitidas, sejam concedidas
na base de igualdade a todas as pessoas aprisionadas ou detidas,
independente do gênero de sua parceira ou parceiro;
f) Proporcionar o monitoramento independente das instalações de detenção
por parte do Estado e também por organizações não-governamentais,
inclusive organizações que trabalhem nas áreas de orientação sexual e
identidade de gênero;
g) Implantar programas de treinamento e conscientização, para o pessoal
prisional e todas as outras pessoas do setor público e privado que estão
envolvidas com as instalações prisionais, sobre os padrões internacionais de
direitos humanos e princípios de igualdade e não-discriminação, inclusive em
relação à orientação sexual e identidade de gênero. (PRINCÍPIOS, 2006, p.
19)

Imperioso destacar a alínea “a” acima, ordenando como dever do Estado a

46
proibição da marginalização das pessoas com orientação sexual ou identidade de
gênero diversa, assegurando que estejam livres de maus tratos ou abuso físico,
mental ou sexual.
No mesmo sentido, segue o princípio dez, estabelecendo o direito do apenado
LGBTQIA+ de não sofrer tortura, tratamento ou castigo cruel, desumano ou
degradante:

Toda pessoa tem o direito de não sofrer tortura e tratamento ou castigo cruel,
desumano ou degradante, inclusive por razões relacionadas à sua orientação
sexual ou identidade de gênero. (PRINCÍPIOS, 2006, p. 20)

Evidente é a relevância desses princípios, sendo um marco importante na luta


dos direitos, dado a invisibilidade que a comunidade LGBTQIA+ enfrenta não somente
na sociedade, mas também no cárcere privado, sem a proteção de seus direitos,
ferindo, muitas das vezes, sua dignidade humana. A orientação sexual e identidade
de gênero das pessoas pertencentes a esse grupo não devem ser motivos para gerar
tortura, tratamento cruel ou até mesmo degradante, deve-se buscar a efetivação das
soluções apontadas no documento para enfrentar os obstáculos e vulnerabilidade
suportada por seus integrantes, observado o tratamento com dignidade durante a
detenção, pois inerente à pessoa humana.
O documento é material único na área internacional que discorre de forma
objetiva e detalhada acerca da discriminação e a proteção do apenado LGBTQIA+ no
cumprimento da detenção, contudo, sabe-se que demais normas, tratados e
convenções acerca de direitos humanos garantem amparo à vítima, que, como a do
presente estudo, são alvos de discriminação pelo simples fato de existirem do jeito
que são, seres humanos com orientação sexual ou identidade de gênero distinta da
maioria heterossexual.

4.3. Aspectos da Resolução Conjunta n. 1, de 15 de abril de 2014

Por mais que os Princípios de Yogyakarta tenham sido elaborados no ano de


2007, sendo nosso País um dos signatários, somente no ano de 2014 o legislador viu
a necessidade da criação de normas regulamentadoras à comunidade LGBTQIA+
privada de liberdade, o que ensejou na criação da Resolução Conjunta n. 1, de 15 de
abril de 2014.

47
Considerada uma grande conquista para a proteção do detento LGBTQIA+, a
Resolução Conjunta nº 1, de 15 de abril de 2014 elaborada entre o Conselho Nacional
de Política Criminal e Penitenciária e Conselho Nacional de Combate à Discriminação
versa sobre os parâmetros para a proteção dos apenados LGBTQIA+ em privação de
liberdade no Brasil.
Pautada em artigos constitucionais, em especial no art. 5º, incisos III, XLI, XLVII,
XLVIII e XLIX, que assim dispõem:

III - ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou


degradante;
[...]
XLI - a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades
fundamentais;
[...]
XLVII - não haverá penas:
a) de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX;
b) de caráter perpétuo;
c) de trabalhos forçados;
d) de banimento;
e) cruéis;
XLVIII - a pena será cumprida em estabelecimentos distintos, de acordo com
a natureza do delito, a idade e o sexo do apenado; e
XLIX - é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral.

Como também em tratados internacionais alicerçados pelos Direitos Humanos,


como a Declaração Universal dos Direitos Humanos, a Convenção contra a Tortura e
Outras Penas ou Tratamentos Cruéis e os Princípios de Yogyakarta, a presente
resolução se compõem em 12 artigos que vieram para servir de base jurídica para
evitar os atos discriminatórios sofridos pela população LGBTQIA+ no cumprimento da
pena, por mais que evidente que os artigos e tratados citados se destinam a toda
população carcerária, a fim de que o apenado cumpra sua ressocialização com crivo
no princípio da dignidade da pessoa humana, inerente a todo ser humano, como já
dito.
Não obstante, se fundamenta ainda na Lei de Execução Penal n. 7.210, de 1984
- a qual é totalmente omissa em relação à população LGBTQIA+ privada de liberdade
- especificamente nos artigos. 40, 41 e 45, que asseguram a integridade do apenado:

Art. 40 - Impõe-se a todas as autoridades o respeito à integridade física e


moral dos condenados e dos presos provisórios.
Art. 41 - Constituem direitos do preso:
I - Alimentação suficiente e vestuário;
II - Atribuição de trabalho e sua remuneração;
III - Previdência Social;

48
IV - Constituição de pecúlio;
V - Proporcionalidade na distribuição do tempo para o trabalho, o descanso e
a recreação;
VI - Exercício das atividades profissionais, intelectuais, artísticas e
desportivas anteriores, desde que compatíveis com a execução da pena;
VII - Assistência material, à saúde, jurídica, educacional, social e religiosa;
VIII - Proteção contra qualquer forma de sensacionalismo;
IX - Entrevista pessoal e reservada com o advogado;
X - Visita do cônjuge, da companheira, de parentes e amigos em dias
determinados;
XI - Chamamento nominal;
XII - Igualdade de tratamento salvo quanto às exigências da individualização
da pena;
XIII - Audiência especial com o diretor do estabelecimento;
XIV - Representação e petição a qualquer autoridade, em defesa de direito;
XV - Contato com o mundo exterior por meio de correspondência escrita, da
leitura e de outros meios de informação que não comprometam a moral e os
bons costumes.
XVI – Atestado de pena a cumprir, emitido anualmente, sob pena da
responsabilidade da autoridade judiciária competente.
[...]
Art. 45. Não haverá falta nem sanção disciplinar sem expressa e anterior
previsão legal ou regulamentar.

Dessa forma, imperiosa se torna a análise da Resolução Conjunta n. 1, de 15 de


abril de 2014, que logo em seu art. 1º apresenta sua finalidade, compreende e
conceitua a população LGBT privada de liberdade no Brasil.

Art. 1º Estabelecer os parâmetros de acolhimento de LGBT em privação de


liberdade no Brasil.
Parágrafo único. Para efeitos desta Resolução, entende-se por LGBT a
população composta por lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais,
considerando-se:
I - Lésbicas: denominação específica para mulheres que se relacionam
afetiva e sexualmente com outras mulheres;
II - Gays: denominação específica para homens que se relacionam afetiva e
sexualmente com outros homens;
III - Bissexuais: pessoas que se relacionam afetiva e sexualmente com ambos
os sexos;
IV - Travestis: pessoas que pertencem ao sexo masculino na dimensão
fisiológica, mas que socialmente se apresentam no gênero feminino, sem
rejeitar o sexo biológico; e
V - Transexuais: pessoas que são psicologicamente de um sexo e
anatomicamente de outro, rejeitando o próprio órgão sexual biológico.

Por sua vez, o art. 2º da resolução garante que “[...] a pessoa travesti ou
transexual em privação de liberdade tem o direito de ser chamada pelo seu nome
social, de acordo com o seu gênero'' (CNCD, 2014). Agregando a este artigo, soma-
se o art. 2 do Decreto n. 8.727 de 28 de abril de 2016 que assim dispõe:

Art. 2º Os órgãos e as entidades da administração pública federal direta,

49
autárquica e fundacional, em seus atos e procedimentos, deverão adotar o
nome social da pessoa travesti ou transexual, de acordo com seu
requerimento e com o disposto neste Decreto.
Parágrafo único. É vedado o uso de expressões pejorativas e discriminatórias
para referir-se a pessoas travestis ou transexuais.

Ademais, dada a vulnerabilidade da comunidade LGBTQIA+ no âmbito prisional,


o art. 3º da Resolução Conjunta e seus parágrafos estabelecem que deverão ser
oferecidos espaços de vivência específicos, que não se destinem a aplicação de
medidas disciplinares, preservando a vontade do apenado.

Art. 3º Às travestis e aos gays privados de liberdade em unidades prisionais


masculinas, considerando a sua segurança e especial vulnerabilidade,
deverão ser oferecidos espaços de vivência específicos.
§ 1º Os espaços para essa população não devem se destinar à aplicação de
medida disciplinar ou de qualquer método coercitivo.
§ 2º A transferência da pessoa presa para o espaço de vivência específico
ficará condicionada à sua expressa manifestação de vontade.

Oportunamente, em tópico próprio, abordar-se-á acerca das celas e alas


destinadas a esta comunidade no sistema prisional brasileiro. Extrai-se, em primeiro
momento, que as unidades prisionais devem reunir esforços para destinar espaços
específicos para o cumprimento de pena de presos homoafetivos, assegurando dessa
forma a integridade física, psicológica e a plena expressão de identidade individual do
detento.
Por sua vez, o art. 4º da Resolução narra que para as pessoas transexuais
masculinas e femininas deve ser garantido a transferência ao presídio feminino, local
em que deve receber tratamento isonômico.

Art. 4º As pessoas transexuais masculinas e femininas devem ser


encaminhadas para as unidades prisionais femininas.
Parágrafo único. Às mulheres transexuais deverá ser garantido tratamento
isonômico ao das demais mulheres em privação de liberdade.

Nesse ponto, vislumbra-se também a Arguição de Descumprimento de Preceito


Fundamental n. 527, na qual o ministro Luís Roberto Barroso, em 18 de março de
2021, determinou que presas transexuais e travestis com identidade de gênero
feminino possam optar por cumprir penas em estabelecimento prisional feminino ou
masculino, contudo, em área reservada, que garanta a sua segurança.
Em continuidade, fundamentalmente o art. 5º da Resolução dispõe sobre a

50
liberdade da pessoa travesti ou transexual usar da disposição do seu corpo,
reforçando sua identidade de gênero.

Art. 5º À pessoa travesti ou transexual em privação de liberdade serão


facultados o uso de roupas femininas ou masculinas, conforme o gênero, e a
manutenção de cabelos compridos, se o tiver, garantindo seus caracteres
secundários de acordo com sua identidade de gênero.

Outro ponto importante da resolução é o direito do apenado LGBTQIA+ em


receber visitas íntimas, conforme previsto no art. 6.

Art. 6º É garantido o direito à visita íntima para a população LGBT em situação


de privação de liberdade, nos termos da Portaria MJ nº 1190/2008 e na
Resolução CNPCP nº 4, de 29 de junho de 2011.

Do mesmo modo, o art. 7º dispõe sobre a garantia do tratamento de saúde ao


preso LGBTQIA+, inclusive na manutenção hormonal aos detentos transgêneros,
referido artigo encontra-se em consonância com o princípio 9 dos Princípios de
Yogyakarta, promovendo a necessidade de ampla proteção da saúde.

Art. 7º É garantida à população LGBT em situação de privação de liberdade


a atenção integral à saúde, atendidos os parâmetros da Política Nacional de
Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais -
LGBT e da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas
Privadas de Liberdade no Sistema.
Parágrafo único - À pessoa travesti, mulher ou homem transexual em
privação de liberdade, serão garantidos a manutenção do seu tratamento
hormonal e o acompanhamento de saúde específico.

De mais a mais, compõe-se a resolução na vedação da transferência


compulsória entre celas e alas do apenado como medida de punição, castigo ou
tratamento desumano e degradante em razão de sua orientação sexual ou identidade
de gênero. Ainda, assegura ao detento a igualdade de condições, tanto na
continuidade da sua formação educacional quanto profissional.
Ao mesmo passo, o art. 10 aborda a necessidade de treinamento dos agentes
penitenciários, bem como demais profissionais que atuam nas unidades prisionais, a
fim de evitar eventual violação dos direitos humanos, isonomia e discriminação em
relação à orientação sexual e identidade de gênero do que cumpre a sanção. Por fim,
a resolução em seu art. 11 garante ao presidiário LGBTQIA+ o direito ao benefício do
auxílio-reclusão aos seus dependentes, inclusive ao cônjuge ou companheiro do

51
mesmo sexo.
Como pode se notar, o objetivo primordial das normas apresentadas consiste em
conceder ao infrator LGBTQIA+ condições dignas no cumprimento de sua pena, de
maneira humanizada, abstendo-se de eventuais violências, discriminação, abuso,
excesso ou barbárie em razão da orientação sexual e identidade de gênero, posto que
essas e outras situações são, de fato, vivenciadas pela população LGBTQIA+ privada
de liberdade, em razão do desapreço da população carcerária, como se observará a
seguir.

5. SISTEMA PRISIONAL BRASILEIRO E OS APENADOS LGBTQIA+

Por outro lado, além de conhecer a legislação é preciso conhecer a realidade


enfrentada diariamente das Unidades Prisionais, dessa forma, o presente tópico tem
por finalidade abordar o tratamento que é concedido aos apenados pertencentes ao
grupo LGBTQIA+, apresentado dados do mapeamento nacional, celas destinadas ao
seus integrantes além de também demonstrar o quão são vulneráveis em um local
que, na maioria das vezes, não dispõe condições dignas para os que ali realizam o
cumprimento da pena.

As carceragens dos presídios brasileiros são fortemente remetidas à ideia de


superlotação, precariedade e a um ambiente degradante - apesar de terem a
função de ser o estabelecimento em que o apenado cumpriria sua sentença
penal como uma forma de lição, o ressocializando e o reeducando na
sociedade –, que acabam por violar os direitos fundamentais desses presos.
(FRANÇA, 2020, p. 5)

Partindo do pressuposto que o Brasil é um dos países com maior população


carcerária do mundo, em constante crescimento e, inclusive um dos países mais
violentos mundialmente em relação às pessoas LGBTQIA+, não há de se olvidar que
os ato violentos e discriminatórios ocorridos dentro das penitenciárias é somente o
reflexo reproduzido internamente do preconceito presente na sociedade (BARBOSA,
2019).
Dessa forma, insta mencionar que assim que um detento ingressa no sistema
penitenciário, lhe é dada a oportunidade de filiar-se a uma das facções criminosas,
caso não tenha. Todavia, em relação apenado LGBTQIA+ não há essa escolha, vez
que nenhuma facção criminosa acolhe um detento com orientação sexual ou

52
identidade de gênero diversa da heterossexual. Assim, o integrante da comunidade
LGBTQIA+ que cumpre pena privativa de liberdade se depara em primeiro momento
com seu não acolhimento dentro do ambiente prisional, aliado ao medo de conviver
com os que ali o renegaram (BARBOSA, 2019).

5.1. A violação massiva de Direitos Fundamentais no sistema prisional brasileiro

Pelo já exposto no decorrer da presente monografia, sabe-se que as normas


brasileiras asseguram diversos direitos básicos ao apenado, com o objetivo de
resguardar sua dignidade e condição de ser humano, tudo no intuito de garantir a
ressocialização do encarcerado ao decorrer do cumprimento da pena. Aliás, tais
garantias também se encontram previstas em tratados internacionais, como na
Declaração Universal de Direitos Humanos, conforme abordado anteriormente.
Todavia, a realidade enfrentada pelos carcerários destoa da teoria humanista
adotada pelo legislador, em virtude das situações fáticas encontradas nas
penitenciárias, dessa forma, os sentenciados acabam por suportar realidade diversa
daquela determinada e garantida pelos dispositivos legais.

A superlotação das celas, sua precariedade e insalubridade tornam as


prisões um ambiente propício à proliferação de epidemias e ao contágio de
doenças. Todos esses fatores estruturais, como também a má-alimentação
dos presos, seu sedentarismo, o uso de drogas, a falta de higiene e toda a
lugubridade da prisão fazem com que o preso que ali adentrou numa condição
sadia de lá não saia sem ser acometido de uma doença ou com sua
resistência física e saúde fragilizadas. (ASSIS, 2007, p. 3)

Nesse sentido, os encarcerados são obrigados a suportar o cumprimento da


pena em celas úmidas e escuras, na maioria das vezes superlotadas, sem acesso a
condições mínimas de higiene, pontos que afrontam a resistência física dos apenados
e, por consequência, afetam à dignidade da pessoa humana.

Os presos adquirem as mais variadas doenças no interior das prisões. As


mais comuns são as doenças do aparelho respiratório, como a tuberculose e
a pneumonia. Também é alto o índice de hepatite e de doenças venéreas em
geral, a AIDS por excelência. (ASSIS, 2007, p. 3)

Nesse contexto, “[...] acaba ocorrendo a dupla penalização do condenado: a


pena de prisão propriamente dita e o lamentável estado de saúde que ele adquire
durante a sua permanência no cárcere” (ASSIS, 2007, p. 3).
53
Frisa-se que essas condições são vivenciadas por todos os apenados que se
encontram privados de liberdade, independentemente de sua cor, orientação sexual,
identidade de gênero e etc.
Onofre (2012, p. 2) aborda as consequências dessas situações, ao afirmar
que:

A arquitetura dos cárceres acentua a repressão, as ameaças, a


desumanidade, a falta de privacidade, a depressão, em síntese, o lado
sombrio e subterrâneo da mente humana dominada pelo superego onipotente
e severo. Nas celas lúgubres, úmidas e escuras, repete-se ininterruptamente
a voz da condenação, da culpabilidade, da desumanidade.

Nota-se que as condições das penitenciárias não auxiliam na reintegração


social do sentenciado, eis que a insalubridade que o condenado vive apenas acentua
a noção de culpabilidade.

Não são raras as constatações de que esta situação é largamente aceita por
grande parcela da sociedade brasileira, que pautada no senso comum,
acredita que os detentos realmente devem sofrer duras sanções e até mesmo
penas cruéis. (PEREIRA, 2017, p. 6)

As falhas presentes no sistema prisional de nosso país ensejam em outros


problemas além da superlotação. As alas se tornam reais galpões superlotados
favorecendo as condições desumanas, ferindo uma multiplicidade de direitos ao invés
de ressocializá-los. Pereira (2017, p. 6) expressa que essas violações não se dão
apenas na desobservância as normas nacionais, mas também se violam direitos
previstos em tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário:

O que se constata atualmente no país é que, no momento em que uma


pessoa é reclusa, ela acaba não apenas dando início ao cumprimento da
pena privativa de liberdade que lhe foi imposta pelos crimes praticados, mas
se torna vítima de uma série de violações de direitos que lhe são garantidos
por normas domésticas e internacionais. A punição estatal torna-se então um
castigo em virtude da falta de respeito com a sua vida e sua dignidade.

Outro ponto falho do sistema prisional do Brasil é o fato de o cárcere estar


reforçando “[...] mecanismos de reprodução de um ciclo vicioso de violência que,
como padrão, envolve a vulnerabilidade, o crime, a prisão e a reincidência e, por
vezes, serve de combustível para facções criminosas” (INFOPEN, 2014, p. 7).

54
Tamanha violação de direitos fez com que em 2015, o Supremo Tribunal
Federal (STF) reconhecesse um Estado de Coisas Inconstitucional no sistema
carcerário brasileiro, ocasionada por violação de direitos fundamentais e reiterada
inércia estatal, por meio da arguição de descumprimento de preceito fundamental n.
347, proposta pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL).
Como já dito, nossa legislação garante de maneira vasta os direitos humanos
e fundamentais a todas as pessoas, portanto, deveria o vigente sistema prisional ter
como objetivo a sanção proporcional a pena, a regeneração do condenado e a
garantia dos direitos fundamentais. Entretanto, conforme exposto acima, o que se tem
é a violação generalizada dos direitos dos presos no tocante à dignidade da pessoa
humana.
Precipuamente, insta destacar o voto do Ministro relator Marco Aurélio de
Mello no julgamento da ADPF 347, afirmando que diversas são as violações de
direitos fundamentais no tocante aos sentenciados.

[...] diversos dispositivos, contendo normas nucleares do programa objetivo


de direitos fundamentais da Constituição Federal, são ofendidos: o princípio
da dignidade da pessoa humana (artigo 1º, inciso III); a proibição de tortura e
tratamento desumano ou degradante de seres humanos (artigo 5º, inciso III);
a vedação da aplicação de penas cruéis (artigo 5º, inciso XLVII, alínea “e”); o
dever estatal de viabilizar o cumprimento da pena em estabelecimentos
distintos, de acordo com a natureza do delito, a idade e sexo do apenado
(artigo 5º, inciso XLVIII); a segurança dos presos à integridade física e moral
(artigo 5º, inciso XLIX); e os direitos à saúde, educação, alimentação,
trabalho, previdência e assistência social (artigo 6º) e à assistência judiciária
(artigo 5º, inciso LXXIV). Outras normas são afrontadas, igualmente
reconhecedoras dos direitos dos presos: o Pacto Internacional dos Direitos
Civis e Políticos, a Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos e Penas
Cruéis, Desumanos e Degradantes e a Convenção Americana de Direitos
Humanos. (STF – ADPF 347 – DF)

O Ministro Relator destaca com precisão em seu voto as violações acima:

Os presos não têm acesso a água, para banho e hidratação, ou a alimentação


de mínima qualidade, que, muitas vezes, chega a eles azeda ou estragada.
Em alguns casos, comem com as mãos ou em sacos plásticos. Também não
recebem material de higiene básica, como papel higiênico, escova de dentes
ou, para as mulheres, absorvente íntimo [...]. Além da falta de acesso a
trabalho, educação ou qualquer outra forma de ocupação do tempo, os
presos convivem com as barbáries promovidas entre si. São constantes os
massacres, homicídios, violências sexuais, decapitação, estripação e
esquartejamento. Sofrem com a tortura policial, espancamentos,
estrangulamentos, choques elétricos, tiros com bala de borracha. Quanto aos
grupos vulneráveis, há relatos de travestis sendo forçados à prostituição.
(STF – ADPF 347 – DF)

55
De igual modo abordou o Ministro Luís Roberto Barroso na exposição do seu
voto:

[...] as pessoas foram condenadas a serem presas. E, em certos casos,


devem permanecer presas. Mas não foram condenadas a sofrerem violência
físicas, a sofrerem violências sexuais, a não terem sabonete, pasta de dente,
escova de dente, papel higiênico, nem lugar para fazer as suas necessidades
básicas. (STF – ADPF 347 – DF)

Ainda, outro aspecto importante no ilustríssimo voto do Ministro Marco Aurélio


é no que tange a falência do sistema penitenciário por não servir mais a
ressocialização dos apenados, isso comprovado pelos altíssimos índices de
reincidência.

Os cárceres brasileiros não servem à ressocialização dos presos. É


incontestável que implicam o aumento da criminalidade, transformando
pequenos delinquentes em “monstros do crime”. A prova da ineficiência do
sistema como política de segurança pública está nas altas taxas de
reincidência. E o que é pior: o reincidente passa a cometer crimes ainda mais
graves. Segundo dados do Conselho Nacional de Justiça – CNJ, essa taxa
fica em torno de 70% e alcança, na maioria, presos provisórios que passaram,
ante o contato com outros mais perigosos, a integrar alguma das facções
criminosas. A situação é, em síntese, assustadora: dentro dos presídios,
violações sistemáticas de direitos humanos; fora deles, aumento da
criminalidade e da insegurança social. (STF – ADPF 347 – DF)

Com a análise e julgamento cautelar da Arguição de descumprimento de


preceito fundamental n. 347, a Suprema Corte, em suma, adotou o entendimento de
que ocorre violação generalizada de direitos fundamentais dos presos no tocante à
dignidade, higidez física e integridade psíquica.
Ou seja, o cenário apenas corrobora a dupla penalidade vivenciada
diariamente pelos sentenciados. Portanto, o preso que cumpre pena por meio do
regime fechado, não só está restrito de sua liberdade, como também aos direitos
fundamentais previstos em diversas Leis, que garantem os direitos dos presos, logo,
caberia ao Estado preservar por esses direitos, criando condições dignas ao indivíduo
que se encontra sob sua custódia.

5.2. O mapeamento nacional das pessoas LGBTQIA+ privadas de liberdade

Neste subcapítulo o objetivo primordial é apresentar os dados da população


LGBTQIA+ em situação de cárcere no Brasil, apresentados no documento “LGBT nas

56
prisões do Brasil: Diagnóstico dos procedimentos institucionais e experiências de
encarceramento”, realizado pelo Ministério da Mulher, da família e dos Direitos
Humanos no ano de 2020.
Para tanto, no intuito de elaborar dados quantitativos acerca do perfil da
população carcerária LGBTQIA+, o Departamento Penitenciário Nacional enviou um
ofício com o questionário online para os órgãos da administração penitenciária de
cada Estado do Brasil, recebendo como retorno um total de 499 respostas, cerca de
34% das 1499 instituições deste sistema em nosso país (BRASIL, 2020, p. 13).
Da mesma forma, foi designado um servidor por unidade prisional para
responder o questionário, dividido em quatro itens:

A. IDENTIFICAÇÃO: A primeira seção tratou da identificação do


estabelecimento prisional, bem como do agente responsável pelo
preenchimento do mesmo. B. ESTRUTURA: A segunda seção abordou o
aspecto estrutural da prisão. Além de mapear a relação entre quantitativo de
vagas e população carcerária, foram produzidos dados sobre como é feita a
segmentação do espaço interno de cada instituição. Foi possível mapear
quais as categorias que orientam a organização interna de cada prisão e se
a instituição possui, ou não, um espaço reservado para LGBT. C.
GALERIAS/ALAS/CELAS LGBT: A terceira seção tratou da caracterização
das galerias, alas e/ou celas reservadas LGBT. Foi possível mapear a relação
entre o quantitativo de vagas dos espaços reservados e relacioná-los com o
número de LGBT em casa prisão. Para as prisões que não possuem espaço
reservado, no mesmo questionário foram feitas perguntas a fim de mapear a
opinião sobre a relevância da criação dessas galerias. D. PERFIL
POPULACIONAL: A quarta, e última, seção do questionário reúne perguntas
com o objetivo de traçar o perfil da população LGBT nas prisões. Foi possível
identificar quantitativo de pessoas que se declaram pertencentes a cada um
dos segmentos que compõem o público LGBT. (BRASIL, 2020, p. 13-14)

Considerando que o questionário enviado a todas as unidades prisionais do


país não era obrigatório, a adesão à pesquisa dependeu das administrações
penitenciárias de cada Estado, acarretando na ausência de resposta por alguns
Estados, um tanto com adesão parcial e outros responderam densamente. Portanto,
no total, segundo o Departamento Penitenciário Nacional (2016), foram 508 unidades
que retribuíram com respostas, entre masculinas, mistas e femininas, de um total de
1499 estabelecimentos prisionais no país.
Colhido os dados e inseridos em gráficos, obteve-se as seguintes informações
acerca da população LGBTQIA+ presentes nas unidades prisionais masculinas e
femininas:

57
Imagem n. 1 - População LGBTQIA+ em unidades masculinas

Fonte: Ministério da Mulher, da família e dos Direitos Humanos, 2020.

Da mesma forma, com os indivíduos LGBTQIA+ em penitenciárias femininas,


tem-se:

Imagem n. 2 - População total LGBTQIA+ em unidades femininas

Fonte: Ministério da Mulher, da família e dos Direitos Humanos, 2020.

De acordo com o relatório elaborado, a diferença das proporções de dados


nas unidades “[...] é mais um indicativo de que ser reconhecida LGBT em uma prisão
feminina majoritariamente não implica em risco à vida, em oposição ao que ocorre
com os LGBT em unidades masculinas” (BRASIL, 2020, p. 21).
Com os dados preenchidos no questionário, foi possível verificar o perfil dos
apenados LGBTQIA+, mais precisamente a suas faixas etárias, dos quais destaca-se
os custodiados Gays, Mulheres Transexuais, Travestis e Lésbicas:

58
Imagem n. 3 - Faixa etária da população privada de liberdade (Gay)

Fonte: Ministério da Mulher, da família e dos Direitos Humanos, 2020.

Imagem n. 4 - Faixa etária da população privada de liberdade (Mulheres Transexuais)

Fonte: Ministério da Mulher, da família e dos Direitos Humanos, 2020.

Imagem n. 5 - Faixa etária da população privada de liberdade (Travestis)

Fonte: Ministério da Mulher, da família e dos Direitos Humanos, 2020.

59
Imagem n. 6 - Faixa etária da população privada de liberdade (Lésbicas)

Fonte: Ministério da Mulher, da família e dos Direitos Humanos, 2020.

No geral, nota-se que a faixa etária predominante da população carcerária


LGBTQIA+, tanto em unidade masculinas como femininas é de pessoas com 18 aos
29 anos, sendo importante observar o elevado número de travestis e transexuais em
cárcere com a faixa etária de 18 aos 29 anos, isso porque de todas as siglas da
população LGBTQIA+, a sigla “T” é a mais vulnerável e a mais marginalizada desse
grupo, sofrendo na maioria das vezes o abandono de sua família, ficando à mercê,
levando a prática de atividades ilícitas.

as travestis são assujeitadas a um conjunto de processos sociais que as


colocam em situação de vulnerabilidade desde a mais tenra idade. São
diversos relatos de abandono familiar, expulsão escolar, alta dificuldade de
acesso a postos de trabalho regulamentados, entre outras situações comuns
a essa população. Essa situação produz condições favoráveis para a
captação dessas pessoas pelas atividades ilícitas. A proporção expressiva da
faixa etária dos 18 aos 29 anos para a população de travestis é um indicativo
que reitera, não apenas o alto grau de vulnerabilidade vivenciado por essa
população, mas também como o sistema prisional é especificamente seletivo
para esse público. (BRASIL, 2020 p. 24)

De acordo com dados da Associação Nacional de Travestis e Transexuais -


ANTRA (2018, p. 18), cerca de 90% da comunidade Travestis e Transexuais recorre
a prostituição para obter uma fonte de renda e possibilidade de subsistência, em
virtude da dificuldade de ingressar no mercado formal de trabalho e a deficiência em
obter qualificação profissional causada pela exclusão social, familiar, educacional,
fazendo com que a prostituição se torne um recurso imediato de sobrevivência
econômica.
Em observação ao documento, outro dado importante refere-se a

60
porcentagem de visitas dos carcerários LGBTQIA+, com os dados obtidos viu-se que
apenas 40% dos integrantes da comunidade possuem visita cadastrada nos registros
das instituições, porém, a porcentagem informada “[...] não implica necessariamente
no mesmo de número de visitas que, de fato, ocorrem. Ou seja, a proporção de
pessoas LGBT que efetivamente recebem visita é ainda menor que esse número”
(BRASIL, 2020, p. 25), logo, reforça os “[...] relatos de abandono familiar narrados
pelos LGBT, sobretudo da população de travestis e mulheres transexuais” (BRASIL,
2020, p. 25).
Por fim, em relação aos tipos criminais praticados pela população LGBTQIA+
privada de liberdade, o levantamento de dados colhido durante as visitas institucionais
apresentou os seguintes gráficos referente aos que se consideram Gays, Travestis e
Mulheres Transexuais.

Imagem n. 7 - Tipos Criminais (Gays)

Fonte: Ministério da Mulher, da família e dos Direitos Humanos, 2020.

Imagem n. 8 - Tipos Criminais (Travestis e Mulheres Transexuais)

Fonte: Ministério da Mulher, da família e dos Direitos Humanos, 2020.

Observa-se no gráfico acima que os tipos criminais realizados por detentas


travestis e mulheres transexuais são, em sua maioria, roubo, furto e tráfico, compondo

61
um total de 88,5% das condenações, portanto, “[...] esse número pode ser relacionado
aos riscos decorrentes da atividade de prostituição mencionada anteriormente”
(BRASIL, 2020, p. 28).

Os riscos vão desde da exploração sexual e tráfico de pessoas vivenciados


em casa de cafetinas/cafetões, até a obrigatoriedade de realizar atividades
de tráfico agenciado por essas figuras. Os trabalhos sexuais, realizados
nessas casas ou em territórios comandados por traficantes nas ruas, tornam
as travestis e mulheres trans que se prostituem mais vulneráveis à cooptação
por esse agentes criminogênicos (BRASIL, 2020, p.28).

Compreende-se, portanto, que a carência das mulheres transexuais e


travestis é alvo de traficantes, os quais aproveitam-se da situação de vulnerabilidade
que elas se encontram.

Imagem n. 9 - Tipos Criminais (Lésbicas)

Fonte: Ministério da Mulher, da família e dos Direitos Humanos, 2020.

Por fim, no tocante aos tipos criminais praticados por mulheres bissexuais, os
dados apresentam o elevado nível da prática do tráfico de drogas, compondo 64,8%
das carcerárias, permanecendo em segundo lugar o ato ilícito de roubo no montante
de 14,3%. Da mesma forma, acerca dos tipos criminais perpetrados por homens
bissexuais, prevaleceu a prática do tráfico de entorpecentes com 26,7% dos
apenados, em segundo o crime de estupro com 21,7% e em terceiro o crime de roubo
com 21,5% (BRASIL, 2020, p. 26-27).
O tópico a seguir apresentará as situações e os tipos de risco que enfrentam
os detentos LGBTQIA+ envolvidos no sistema penitenciário brasileiro, não será
apresentada uma lista exaustiva de todos os fatores de riscos, mas sim um delinear
dos mais comuns. Portanto, em que pese todos os sentenciados tenham sua

62
dignidade humana violada, seja por celas insalubres, ou pelo risco de sofrerem tortura
e outros meios de maus tratos que ocorrem frequentemente no início do regime
fechado, os detentos LGBTQIA+ estão mais vulneráveis as formas de abuso, ao
assédio, a violência física e psicológica, aos estupros por outros presos ou por agentes
penitenciários.

5.3. A vulnerabilidade do apenado LGBTQIA+ no cumprimento da pena

O percurso da comunidade LGBTQIA+ no Brasil, apesar das conquistas


mencionadas em capítulos anteriores, é, ainda, marcada pela invisibilidade, pelo
desencorajamento e desaposta social. No caso da população LGBTQIA+, “[...] as
intersecções entre classe e orientação sexual e/ou identidade de gênero geram
tendências inequívocas de marginalização que dificultam fortemente a mobilidade
social deste grupo” (KALUME e ITABORAHY, 2017, p. 3).
Um dos fatores que amplia a vulnerabilidade social desta comunidade é o
posicionamento de boa parte da sociedade, como sendo a heterossexualidade a única
forma de identidade e/ou orientação social, ensejando o movimento da
heteronormatividade.

[...] a heteronormatividade é um conjunto de prescrições que fundamenta


processos sociais de regulação e controle, até mesmo aqueles que não se
relacionam com pessoas do sexo oposto. Assim, ela não se refere apenas
aos sujeitos legítimos e normalizados, mas é uma denominação
contemporânea para o dispositivo histórico da sexualidade que evidencia seu
objetivo: formar todos para serem heterossexuais ou organizarem suas vidas
a partir do modelo supostamente coerente, superior e ‘natural’ da
heterossexualidade (MISKOLCI, 2009, p. 155).

Esse sistema não se trata de algo natural, mas sim resultado de uma cultura
patriarcalista, vez que “[...] desde a aferição do sexo durante a gestação, somos
preparados para assumir uma determinada função social” (SILVA e ARCELO, 2016,
p. 4). Trata-se, então, de um fenômeno vulgarmente interpretado de forma precoce e
performativa, havendo outros meios que reafirmam isso, como o sistema penitenciário
que prega pela seletividade heteronormativa.

Aqueles e aquelas que transgridem as fronteiras de gênero ou sexualidade,


que as atravessam ou que, de algum modo, embaralham e confundem os
sinais considerados “próprios” de cada um desses territórios são marcados
como sujeitos diferentes ou desviantes. Tal como atravessadores ilegais de

63
territórios, como migrantes clandestinos que escapam do lugar onde
deveriam permanecer, esses sujeitos são tratados como infratores e devem
sofrer penalidades. Acabam por ser punidos, de alguma forma, ou na melhor
das hipóteses, tornam-se algo de correção. Possivelmente experimentarão o
desprezo ou a subordinação. Provavelmente serão rotulados (e isolados)
como “minorias” (SILVA e ARCELO, 2016, p. 4 apud LOURO, 2004, p. 132).

Apesar das normas garantistas do apenado LGBTQIA+, no ambiente


carcerário elas se encontram falhas, conforme citado anteriormente, nosso país detém
um sistema prisional precário, desumano, marcado por disputa de facções que
intensificam as grandes rebeliões e colocam todos os encarcerados expostos a
violência, questões que aumentam o índice de violação de direitos e garantias
fundamentais no cumprimento da pena.
Nesse sentido, os sentenciados ao integrarem as penitenciárias brasileiras se
esbarram com um código interno e paraestatal, no qual não havendo cumprimento da
ordem emanada, estará sujeito a diversas punições, como mutilações,
espancamentos, estupro e outros castigos desumanos. No tocante ao sentenciado
LGBTQIA+, preleciona Guimarães (1997, p. 78) que este integra “[...] uma minoria
desprezada pelo sistema penitenciário, eles não têm outra escolha senão conformar
suas atitudes ao conjunto de "leis" não escritas estabelecidas por outros detentos”.
Essas punições ficam mais latentes e frequentes ao interno integrante desta
comunidade quando observamos que, majoritariamente, nesses locais demais
prisioneiros apresentam preconceito e desprezo em relação à eles, o que por si só
prejudica a convivência, atividades, educação e outras programações que podem
reduzir a pena e facilitar o processo de integração e a ressocialização.
Conforme explica Nascimento (2017) os apenados LGBTQIA+ enfrentam
desafios adicionais em comparação aos carcerários heterossexuais e, para evitar que
isso ocorra, acabam tentando esconder sua identidade de gênero ou orientação
sexual quando estão reclusos, devido ao fato de que, caso eles forem descobertos
com orientação sexual diversa da cis-heteronormativa, tendem a enfrentar um risco
elevado de abuso sexual.

Somadas a essas violações ocorrem também discriminações praticadas pela


própria população carcerária, e não coibidas de maneira eficaz pelo sistema
penitenciário [...] como discriminação relativa à orientação sexual, travestis e
homossexuais. (LAUXEN e CAMARGO, 2016, p. 6-7 apud TORRES, 2001,
p. 81)

Muitos são aproveitados como moedas de troca, sendo hostilizados e


64
torturados por outros carcerários e, além de estarem submetidos às práticas sexuais
sem consentimento, às vezes como forma de “correção”, também estão sujeitos às
inserções de objetos no canal anal, como aparelhos celulares e entorpecentes,
ensejando situações propícias para contrair doenças sexualmente transmissíveis.
Do mesmo modo, os sentenciados LGBTQIA+ se veem impedidos de utilizar
os mesmos utensílios que os outros detentos usam, tais como talheres, copos e
pratos, por serem vistos como inferiores, sujos ou doentes aos olhos da população
carcerária.
Portanto, com o objetivo de apresentar os fatores de vulnerabilidade
vivenciados pela comunidade LGBTQIA+ no cumprimento da pena, mostra-se
essencial buscar essas violações por meio de documentários e entrevistas, obtendo
uma visão da realidade, onde se consegue sentir o sofrimento social e psicológico que
esse grupo suporta nas penitenciárias brasileiras. Desse jeito, abordar o assunto por
esse meio é a forma que mais se perfectibiliza de mostrar a história real dessa
população carcerária, ouvindo-os contar sobre violação de direitos inerentes à
dignidade da pessoa humana durante a convivência com outros presos considerados
heterossexuais.
Com base no Documentário denominado “Passagens: ser LGBT na prisão”,
produzido pela ONG Somos - Comunicação, Saúde e Sexualidade, durante a
realização do projeto “Passagens - Rede de Apoio a LGBTs nas Prisões”, elaboradora
entre o ano de 2018 e 2019, financiado pelo Fundo Brasil de Direitos Humanos, é
possível observar o retrato da vivência de internos LGBTQIA+ no sistema prisional
brasileiro.
Nesse contexto, das declarações prestadas por cada pessoa entrevistada é
possível perceber o desamparo, o medo e a insegurança de viver em um ambiente
onde a heteronormatividade é aplicada em meio ao preconceito e a discriminação, por
possuírem orientação sexual e identidade de gênero diversa da “tradicionalmente”
aceita.
No documentário, em seu início é abordado o depoimento de uma das internas
que relata que devido à ausência de oportunidade e grande preconceito pela
sociedade, se viu na necessidade de entrar no mundo do crime para valer de sua
subsistência.

65
Entrar nessa vida do crime, de cometer alguns assaltos foi justamente a falta
de oportunidade, porque o mercado de trabalho me rejeitou. Quando viam o
meu currículo, por mais que eu tivesse um bom grau de escolaridade e vários
cursos, só por ter uma foto aparentemente de uma mulher [...] e o nome
masculino, “ah, é travesti, é transexual, não presta, é símbolo de prostituição,
é marginalidade. A gente não pode dar uma chance para uma pessoa assim
[...]”. (SOMOS, 2019, 3‘00s’’ - 3’37s’’)

Evidencia-se, de imediato, que o preconceito contra a população LGBTQIA+


toma a frente das situações, fazendo com que essas pessoas se prejudiquem na
procura de emprego, sofrendo a exclusão da sociedade, ficando à mercê da pobreza,
indo ao caminho do crime para sobreviver.
Em continuidade, o documentário em questão apresenta depoimentos que
discorrem sobre a violência que os internos LGBTQIA+ sofrem durante o cumprimento
de sua detenção, nesse viés, colhe-se o seguinte trecho:

“[...] já passei por outra cadeia em Alta Floresta que não tinha uma ala como
essa, entendeu. Eu sofri bastante, apanhei, fui oprimida, entendeu. Já fui
automaticamente molestada várias e várias vezes. (SOMOS, 2019, 0’39s -
01’04s)

Além de suportar atos violentos praticados por outros internos, verifica-se


também a ausência do não entendimento referente a identidade de gênero e
orientação sexual de cada condenado, cumulado com o desrespeito até mesmo das
pessoas que integram e equipe de trabalhadores do sistema prisional brasileiro, indo
desde a gestão da penitenciária até os agentes penitenciários, conforme verifica-se
em um dos depoimentos:

[...] a gente sabe que não é fácil para a gente que é homossexual. Não é
muito fácil porque é muito preconceito, entendeu. Muito preconceito, com
agentes, entendeu, que zoam, entendeu, xingam, maltratam. (SOMOS, 2019,
4’55 - 5’12)

Agressões por parte da instituição que não medem seu nível de crueldade e
violação da dignidade da pessoa humana.

Eu sofri uma agressão física [...] uma coisa que eu nunca imaginei que
pudesse acontecer. Eu perdi um testículo de tanto apanhar de um agente
penitenciário, da COP, sabe. (SOMOS, 2019 5’13 - 5’24).

Os relatos vivenciados se intensificam ainda mais quando observado a


travesti e a mulher transexual privada de liberdade, no qual o preconceito possui um

66
grau elevado. Nesse viés, aduz Monteiro (2019, p. 155) que:

São inúmeros os relatos de pessoas “trans” e travestis que sofrem abusos


diários nos estabelecimentos penais espalhados pelo Brasil. E é certo afirmar
que são abusos “institucionalizados”, que se materializam desde atos mais
“simples”, como os de raspar a cabeça, o chamamento pelo nome civil -
ignorando o nome social-, forçar o uso de uniformes masculinos, até atos
mais “graves”, como a ocorrência de estupros e outras violações de cunho
sexual cometidos pelos próprios agentes penitenciários e também por presos,
companheiros de cela.

Torna-se mais complexo para a interna travesti e transexual viver dentro do


cárcere, em uma realidade friamente cruel, posto que seus corpos são considerados
promíscuos, abjetos, perversas e que merecem ser violentadas. Por vezes, são
impedidos de usufruir benefícios ofertados pela legislação brasileira, acarretando em
um retrocesso social.

Tendo que conviver diariamente com o preconceito e as piadas dos


companheiros de cela, os presos LGBT possuem constantemente o receio de
serem agredidos; ficam responsáveis por todo o trabalho de limpeza das
celas; não são tratados pelos seus nomes sociais, por vezes são proibidos
pelos chefes de facções de estudarem ou trabalharem, quando o
estabelecimento prisional oferta tal opção. Acrescenta-se ainda que, não lhes
é permitido o acesso ao acompanhamento médico adequado, e, além de
serem privados da sua liberdade, os detentos LGBT são vítima do retrocesso
social e estatal, sendo privados de exercerem a sua verdadeira identidade.
(CINQUE e DORIGON, 2020, p. 10)

Isso também se encontra amparado no documentário supracitado, ao ser dito


seguinte:

Eu já sofri preconceito aqui dentro da parte dos funcionários, da parte até da


Chefe de Segurança. É que nem na cozinha, as gurias que trabalham na
cozinha falam: “a gente está precisando de gente, tem bastante vaga”. Mas
quando a gente chega pra pedir, nunca tem. E se tu perguntar, conversar com
qualquer uma da cozinha, elas vão dizer: “machorra não trabalha na cozinha”.
(SOMOS, 2019, 5’35 - 6’00).

A vulnerabilidade de ser travesti ou mulher transexual no sistema prisional


brasileiro se soma ao depoimento de grande repercussão de uma travesti, descrito no
Jornal Estado de Minas Gerais:

[...] era obrigada a ter relação sexual com todos os homens das celas, em
sequência. Todos eles rindo, zombando e batendo em mim. Era ameaçada
de morte se contasse aos carcereiros. Cheguei a ser leiloada entre os presos.
Um deles me “vendeu” em troca de 10 maços de cigarro, um suco e um

67
pacote de biscoitos. [...]. Fiquei calada até o dia em que não aguentei mais.
Cheguei a sofrer 21 estupros em um dia. Peguei hepatite e sífilis. Achei que
iria morrer. Sem falar que eu tinha de fazer faxina na cela e lavar a roupa de
todos. Era a primeira a acordar e a última a dormir. (KIEFER, 2014, p. 1).

Nota-se que o sistema carcerário é excessivamente cruel para a população


LGBTQIA+, isso porque a pena não fica restrita ao regime pelo delito cometido, leva
o/a interno pagar com o seu próprio corpo, se submetendo a tratamento desumano e,
ainda, a humilhação para adquirir o mínimo, conforme consta no documentário:

O agente chegou na cela. Uma travesti, amiga minha pediu para ele um pão,
porque ela estava com fome [...]ele falou para ela: “eu te dou o pão se você
me mostrar os seios”. Ela mostrou e ganhou o pão, porque ela estava com
fome e teve que mostrar. (SOMOS, 2019, 6’55 - 7’12)

Desde a não utilização do nome social, sob pena de, ao reclamar, perder o
direito de visita, ajuda da família, ficar sem banho de sol, até o rigor no cumprimento
de normas internas estabelecidas, como vedação do compartilhamento de utensílios,
chantagens por demais internos, manter relação sexual com outros detentos sob sigilo
absoluto, são temas abordados pela população LGBTQIA+ privada de liberdade que
integrou a película.
Igualmente, o documentário denominado “Close”, realizado no ano de 2016,
na unidade prisional Irmã Imelda Lima Pontes, localizada na região metropolitana de
Fortaleza, com direção de Rosane Gurgel, é possível verificar as mesmas
vulnerabilidades desses internos quando cumpriam pena em unidades prisionais que
não possuíam celas destinadas especialmente à eles. Narram, para tanto, que era
visível a presença de duas prisões, a física, no qual proíbe a expressão de ser quem
você é através de sua aparência, seja usando roupas femininas ou deixando seu
cabelo crescer, e a prisão psicológica, a qual não permite que você se sinta da forma
que gostaria, levando muitas vezes até a depressão.
Ainda, insta mencionar a entrevista realizada por um detento homossexual à
Human Rights Watch, que apresentou o relatório chamado “Brasil atrás das grades”,
escrito por Joanne Mariner, no qual o prisioneiro narra o tratamento concedido pelos
companheiros heterossexuais da cela.

Eles dizem que nós não temos dignidade, honra e direitos. Eles são
orgulhosos de serem homens, bandidos; eles são durões… Eles nos vêm
como objetos para serem usados. Se há uma rebelião, nós somos os que
sofrem. Os guardas não têm controle da situação aqui dentro. (MARINER,

68
1998, p. 78)

Do mesmo modo, outro preso homossexual acrescenta na entrevista acima


que cumprem duas sentenças no sistema prisional.

Nós cumprimos duas sentenças aqui: uma imposta pelo juiz e outra imposta
pelos prisioneiros. Nós não temos valor para eles. Ninguém presta atenção
para a palavra de um homossexual. Eles nos deixam falar com eles até um
certo ponto. Nenhum deles beberia do meu copo. (MARINER, 1998, p. 78)

Não bastando as agressões, devido às brigas entre facções dentro do sistema


penitenciários, eventualmente o condenado LGBTQIA+ é alvo de coações com o
objetivo de “[...] esconder armas, drogas, telefones celulares e outros objetos ilícitos
dentro de seus corpos, através da introdução dos mesmos pelos ânus.” (SILVEIRA,
2013, p. 8). Atinente a esse ponto, destaca-se a experiência excessivamente cruel de
uma interna travesti, apresentado no documento “LGBT nas prisões do Brasil:
Diagnóstico dos procedimentos institucionais e experiências de encarceramento”, no
qual pode-se observar que, às vezes, a pena passará da pessoa do condenado.

Eu fico em uma cela que têm traficantes. Eu sou sozinha aqui. Eu sei que tem
outras travestis, mas a gente fica espalhada. Quando eu cheguei na cela, eles
chegaram pra mim e falaram que pra ficar ali eu tinha que esconder droga
dentro de mim. Na hora eu disse que não ia fazer isso e ficou por isso mesmo.
Quando foi na primeira visita, minha mãe veio me visitar. Quando eu olhei pra
ela eu levei um susto porque a cara dela tava toda quebrada. Foi horrível! Eu
perguntei pra ela o que tinha acontecido, mas eu já sabia o que tinha
acontecido. Ela disse que pegaram ela na rua e bateram nela e falaram pra
ela que eu tinha que esconder a droga. Quando eu voltei pra cela eu fui lá e
disse que ia esconder a droga. Pouco tempo depois teve uma revista na cela
e eles foram direto em mim. Quando me revistaram mandaram eu agachar e
viram que eu tava com a droga. Eu já era pra ter saído daqui. Eu sou primário
e fui presa porque eu roubei um cliente. Já era pra eu ter saído daqui. Agora
que me pegaram com droga eu peguei uma pena maior e vou ficar uns bons
anos. Os agentes aqui não querem saber da gente. A gente é bicho pra eles.
Nem adianta falar nada que eles não vai acreditar na gente. Aí eu fico
naquela, se eu não escondo droga eles matam a minha mãe, se eu escondo
a droga eu fico aqui pro resto da minha vida. (BRASIL, 2020, p. 113-114)

Sem destoar da realidade das demais violações descritas, ainda informa a


interna os abusos que sofreu:

Eu apanhei, quebraram esses meus dois dedos porque eu não queria lavar
roupa pra eles. Então aí, se junta mais de um e a gente não tem muito o que
fazer, porque daí que eles venham ouvir o que a gente tem a dizer, a gente
já foi estuprado, a gente já apanhou. A gente não pode falar. Tem agente que
manda a gente resolver aqui. A gente não aguenta mais. A gente já está

69
pagando a nossa pena. A gente não merece isso. Eu já fui estuprada. Falei
pra minha mãe e ela ficou desesperada. (BRASIL, 2020, p. 115)

Assim, aqueles que se assumem integrantes desse grupo nas cadeias e


presídios, são totalmente violados e desrespeitados quando comparados com os
demais apenados, ou seja, seus direitos fundamentais são bruscamente ofendidos.

[...] outros detentos acabam tendo uma impressão errada com relação aos
presos que são homoafetivos e acreditam que só por este fato, são obrigados
a ter relação com eles quando quiserem, e isso acaba fazendo com que eles
se tornem uma moeda de troca para sexo entre outros presos. Ou seja, eles
não possuem controle sobre o seu próprio corpo, estando submetidos a regra
dos demais companheiros de sexo quanto a sua integridade física. (FRANÇA,
2020, p. 4)

Por todos os relatos apresentados e vividos, compreende-se que a população


carcerária LGBTQIA+ é intensamente abusada e violada sexual e psicologicamente
no cumprimento de sua pena que, frisa-se, ultrapassa os limites da razoabilidade e
impossibilita a plena reintegração social. Logo, aqueles que antes mesmo de serem
inseridos no meio carcerário já são discriminados e violados na sociedade, agora,
privados de liberdade, sofrem as opressões em dobro por serem presidiários e
detentores de orientação sexual/identidade de gênero diferente da heterossexual.

5.4. As Alas e celas destinadas à LGBTQIA+ no sistema prisional brasileiro

Na tentativa de fazer respeitar os direitos humanos do interno LGBTQIA+ no


sistema prisional brasileiro, em algumas penitenciárias cumpriu-se o disposto no art.
3º da Resolução Conjunta no 1, de 15 de abril de 2014, criando espaços de vivências
específicos para este grupo.
Retomando o documento elaborado pelo Ministério da Mulher, da família e
dos Direitos Humanos, denominado “LGBT nas prisões do Brasil: Diagnóstico dos
procedimentos institucionais e experiências de encarceramento”, é possível observar
que das 508 unidades prisionais que responderam ao questionário, 106 unidades,
todas para homem, informaram que possuem um espaço de convivência para
homossexuais, bissexuais, travestis, mulheres trans e, ainda, para heterossexuais que
se relacionam com essa população (BRASIL, 2020, p. 17).
Da mesma forma, apresentaram a tabela indicativa das unidades prisionais
que possuem celas LGBTQIA+ por Estado de Federação:

70
Imagem n. 9 - Quantitativo de alas LGBTQIA+ por Estado

Fonte: Ministério da Mulher, da família e dos Direitos Humanos, 2020.

Apesar do alto número de penitenciárias que não possuem política


institucional voltada para os detentos LGBTQIA+, cerca de 58% das unidades
respondentes afirmaram e reconheceram ser importante a separação dos apenados
homossexuais, bissexuais, travestis e transexuais dos internos heterossexuais.
Informando, ainda, que encontram obstáculos estruturais e na superlotação para
criação das respectivas celas, enquanto pouco mais de 41% das unidades informaram
não ser essencial a criação desses espaços (BRASIL, 2020, p. 18).
Frisa-se que criar alas/celas para a população carcerária LGBTQIA+ não é
“[...] uma garantia da anulação das violações de direitos às quais essa população está

71
submetida” (BRASIL, 2020, p. 19), contudo, se mostra eficaz na redução da crueldade
concedida no cumprimento da pena. Além disso, deve-se compreender que separar
os apenados LGBTQIA+ não se trata de um “[...] mecanismo de segregação, mas sim,
como meio de proteção para indivíduos que, em razão de sua condição afetiva, são
alijados dos direitos fundamentais” (MARINA; CARTAXO e CORREIA, 2018 p. 19).

Não que se pretenda uma classificação em um bloco único de sexualidade e


condição afetiva, mas sim, preservar um conjunto de pessoas que são
negligenciadas, muitas vezes, por não pertencerem a um modelo tradicional
de heteronormalidade. Para isso, é necessário pensar em estratégias que
enfatizem a constante vigilância e a profunda sensibilidade às necessidades
de indivíduos socialmente vulneráveis. (MARINA; CARTAXO e CORREIA,
2018 p. 19)

Com o objetivo de abordar uma das unidades prisionais da região sul do nosso
país, que possui população LGBTQIA+ privada de liberdade, torna-se essencial a
apresentação dos aspectos e características da Penitenciária Industrial de Blumenau,
localizada na região de Ponta Aguda, inaugurada em 27 de janeiro de 2016. Referida
unidade possui estrutura arquitetônica padrão, com característica marcante no que se
refere ao sistema de segurança, “[...] se aproxima de uma releitura do modelo
panóptico onde os agentes de segurança têm completa visão do cotidiano dos
apenados, enquanto que os apenados não conseguem visualizar a atuação dos
agentes (BRASIL, 2020, p. 32).
A Penitenciária Industrial de Blumenau (PIB) é efetivamente destinada à
população carcerária condenada, possuindo 599 vagas, contando, atualmente, com
617 internos, a unidade prisional é dividida em alas e subdivide-se em celas. Frisa-se
que esta penitenciária não possui espaço destinado especialmente para reclusos
LGBTQIA+, de acordo com a administração do local, não existe nenhuma cela ou ala
reservada para essa população no estado de Santa Catarina. Contudo, a equipe
técnica da penitenciária identificou nos atendimentos cinco detentos integrantes dessa
comunidade, no qual dois se declaram gays, outros dois bissexuais e um deles
heterossexual que possui relação afetiva com uma travesti (BRASIL, 2020, p. 32).
Referidos internos declarados gays, ao serem entrevistados, informaram que
não possuem sua orientação sexual declarada perante os outros condenados. No
mesmo linear, os detentos bissexuais também não se declaram abertamente sobre
sua sexualidade para os demais apenados, deixando claro o medo de sofrer punições
pela população carcerária (BRASIL, 2020, p. 32).

72
Isso corrobora-se com a narrativa dos internos gays, ao declararem a
sensação “[...] de insegurança e da falta de liberdade para viverem suas
conjugalidades” (BRASIL, 2020, p. 32), conforme segue:

Tipo assim, aqui nessa unidade aqui, então não tem célula, né? Tinha um
parceiro aqui e foi embora. né? Mas daí nós convivia uma célula com
simpatizantes, né? 18 vagas. [...] Eu era casado aqui, mas ele recebeu
liberdade. A gente foi preso junto. Agora que ele saiu eu tou sozinho aqui.
Não dá para confiar. (BRASIL, 2020, p. 32)

Por enquanto eu não vivi nenhuma violência, mas a gente fica com medo,
né? A gente nunca sabe quando um doido vai vir pra cima, né? Eu não
conheço nenhum outro (gay) aqui. Cada pessoa tem o seu o seu modo de
pensar, né? Cada pessoa tem um jeito de pensar. Tem pessoas que não
ligam para a orientação sexual que eu tenho, mas tem pessoas que têm
preconceito. Tem! A gente ver pelo jeito na hora que a gente tá aqui que te
cumprimenta. Eles nem cumprimentam. (BRASIL, 2020, p. 32)

Quando questionados sobre a implementação de um espaço reservado para


os internos LGBTQIA+, afirmaram ser proveitoso:

Na realidade se nós tivéssemos um cantinho para né para quem tem essa


orientação porque assim nós temos também o direito eu acho né que nós
temos nosso direito também de ter o nosso cantinho né porque nós somos
todos nós temos né. Eu sou um ser humano também tem mesmo então na
realidade assim eles misturam eles colocam nos tudo junto. (BRASIL, 2020,
p. 33)

No mesmo sentido, outro interno relata:

Eu acho que tem mais (gays) aqui. A questão é que eles não falam. Não
querem correr o risco. Eu acho que se tivesse um lugar pra gente, que a gente
pudesse ficar, ia ter mais saindo do armário. É que é difícil, né? A gente aqui
sozinho, sem poder confiar em ninguém. (BRASIL, 2020, p. 33)

Importante destacar que os condenados que se consideram bissexuais na


unidade, declaram que “[...] mantém relações sexuais tanto com homens quanto com
mulheres e que a condição de se relacionar com homens não é algo iniciado após o
encarceramento” (BRASIL, 2020, p. 33).
Apesar de alguns reclusos manifestarem sua vontade de ter um local
destinado à população carcerária LGBTQIA+ na penitenciária, outros também
manifestaram sua oposição.

73
Ah, eu acho aí um pouco de problema. A gente chama família para a visita e
ela ia saber que você é assumido. Uma coisa é aqui dentro, outra é nossa
casa, né? E na verdade eu não queria. Eu, na verdade, eu não queria que
soubessem por enquanto. Depois quando eu tivesse na rua de volta para
casa já eu posso falar para eles. (BRASIL, 2020, p. 33)

Pelo estudo feito na penitenciária Industrial de Blumenau, fica evidente que a


população carcerária LGBTQIA+ ali presente compactua dos mesmos sentimentos,
qual seja, a insegurança e a manifestação de vontade de uma cela reservada. Além
disso, o documento deixa claro que esses internos nem se conhecem, pois, a
princípio, estão em celas diferentes.
Destaca-se que, além das dificuldades estruturais e da superlotação, consta
no relatório elaborado pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos
que quando os próprios internos recorrem ao direito de possuir uma cela separada
para o cumprimento da pena, são impedidos pela força que as facções criminosas
impõem nesse local. Como é o relato de uma informante que cumpre pena no Instituto
Penal de Campo Grande, localizado no estado do Mato Grosso do Sul (BRASIL, 2020,
p. 40).

Eu estava em outra prisão. Era eu e mais trans. A gente tentou abrir uma cela
pra gente. Conversar com o pessoal, os agentes da prisão. Só que a gente
não conseguiu porque a facção não deixou. (BRASIL, 2020, p. 40)

Os empecilhos não se limitam somente aos acima, mas também ao elemento


da reconhecibilidade para integrar uma cela ou ala LGBTQIA+ pelo interno solicitante.
Ou seja, uma travesti ou uma mulher transexual seria sujeita a esse direito por ser
mais visível, enquanto um detento cisgênero gay não tem a mesma garantia de ser
reconhecido de imediato como detentor desse direito e, assim, ser transferido para
um espaço protetivo.

Para além da bissexualidade, que num contexto de encarceramento produz


o mesmo tipo de risco ao qual um homem gay está submetido, é importante
chamar a atenção para algumas particularidades fundamentais que surgem
em prisões sem espaço reservado para LGBT e sujeitos que precisam
declarar sua sexualidade [...]. Em geral, esse grupo não encontra amparo
institucional que produza proteção suficientemente efetiva para que possa
ocorrer a declaração de sexualidade não-heterossexual [...] diferente de uma
travesti ou de uma mulher trans, que, via de regra, é identificada pelos
agentes de segurança, solicitar a transferência para uma cela reservada para
LGBT pode significar uma visibilidade extramuros de sua sexualidade.
(BRASIL, 2020, p. 33)

74
Os apenados LGBTQIA+ reconhecem que um homem gay necessita de maior
esforço “[...] declaratório ou até mesmo performático, para que seja reconhecido
institucionalmente como um sujeito de direito de práticas institucionais protetivas”
(BRASIL, 2020, p. 42).

Pra mim foi mais fácil porque eu já tenho engajamento no núcleo LGBT e eu
sou afeminado e uso maquiagem, tenho cabelo comprido, então fica mais
nítido. Mas, realmente, pro gay masculino, aquele gay que se passa como
hétero, é mais difícil. Talvez mesmo ele expondo a sexualidade, talvez o juiz
não acate. A gente tem casos de gente que passou muito tempo em alas
evangélicas em outros presídios até que conseguissem ser inseridos no
projeto. Que vieram de outras cadeias do interior, de outras comarcas. De o
magistrado de outro lugar não entender que uma figura masculina é gay. Pra
mim não foi nem um pouco porque eu sou afeminado, cabelo comprido e tudo
mais. Acredito que pra quem tenham o perfil masculino, bem másculo, seja
mais difícil. (BRASIL, 2020, p. 42)

Visualizando a região nordeste de nosso país pelo documento elaborado,


apesar da Penitenciária Masculina Baldomero Cavalcanti de Oliveira, localizada na
cidade de Maceió, estado de Alagoas, possuir portaria que regulamenta o acolhimento
da população carcerária LGBTQIA+, verifica-se pelos depoimentos prestados pelas
internas travestis que apesar dos direitos estabelecidos, muitos são violados, a par
disso, novamente se verifica o tratamento desumano que lhe dispensam (BRASIL,
2020, p. 51).

Eles não deixam o cabelo da gente crescer. Eu cortei uma camisa e eles
tomaram. Não deixam nenhum tipo de roupa feminina. Tem a portaria, mas
eles não estão usando. (BRASIL, 2020, p. 51)

Na casa de pedra [triagem] me pegaram e rasparam meu cabelo e me


colocaram em uma cela de homem. Eles me pegaram na força. A cela lá me
botaram no meio de todo tipo de homem que tinha lá. Me tiraram a roupa e
eu fiquei nua e depois me botaram em uma cela cheia de macho que eles
pegaram. Os macho lá me pegaram tanto que pocou um caroço no meu ânus
[...]. (BRASIL, 2020, p. 52)

Do contexto da unidade prisional em questão, verifica-se que apesar da


existência de uma portaria estabelecendo parâmetros para o tratamento da população
carcerária LGBTQIA+, quando visto na prática, não há sua concretização.
Apesar da grande maioria dos estabelecimentos prisionais do Brasil não
destoar da inefetividade do cumprimento da Resolução Conjunta no 1, de 15 de abril
de 2014, esta quando de fato efetivada se obtém a real proteção das garantias dos
condenados LGBTQIA+, como é o caso do Centro de Ressocialização de Cuiabá,

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unidade prisional localizada na capital do estado do Mato Grosso, que compõem uma
ala arco íris com oito celas reservadas para a população LGBTQIA+. Nesta ala,
ocupada por 24 pessoas, entre travestis e homens gays, as celas se abrem no início
do dia e se fecham à noite, além disso, os internos possuem seu próprio espaço para
banho de sol, sem a necessidade de compartilhar com outros presos e a realização
de escala para o seu uso (BRASIL, 2020, p. 41).
Além das ações no que se refere a população carcerária LGBTQIA+, tendo
em vista suas especificidades, a administração prisional do Centro de Ressocialização
de Cuiabá se mostra pertinente na realização de projetos sociais, permite o uso de
roupas femininas e demais acessórios fundamentais para a construção e manutenção
da expressão de gênero das travestis e mulheres transexuais, fazendo a coleta
desses materiais por meio de doações. No mesmo norte, seus internos tiveram acesso
a curso de manicure e artesanato, possuem acesso à preservativo e gel lubrificante
mediante simples solicitação, além de ter ocorrido manifestação para a
implementação da hormonioterapia na unidade (BRASIL, 2020, p. 43).
Por mais que em outras penitenciárias do Brasil não exista celas e alas
destinadas ao público LGBTQIA+, existindo tão somente a alocação desses internos
com outros detentos, a criação desses locais é de grande importância para essa
população, o encaminhamento desses internos para uma penitenciária com espaço
reservado é a garantia de sobrevivência, até porque “[...] a eventualidade de morte no
cárcere é o risco mais grave do encarceramento” (CARNELUTTI, 2009, p. 112).
Como visto, o vigente sistema prisional brasileiro é precário, um ambiente
social restrito e hostil e nele o preso LGBTQIA+ sofre duplamente devido a condição
afetiva ou identidade de gênero que possui. Contudo, o reconhecimento das normas
desta comunidade pelas unidades prisionais ultrapassa as questões do mero
chamamento ao nome social, atingem diretamente que sua dignidade, integridade
física, psicológica e a expressão de identidade individual não seja violada.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este trabalho buscou apresentar as diversas formas de violência que a


população LGBTQIA+, mais precisamente os considerados gays, lésbicas,
bissexuais, mulheres transexuais e travestis enfrentam no sistema penitenciário
brasileiro, comunidade que fora deixada à mercê por vasto período, fato que contribuiu
para a geração de inúmeros conflitos e problemas na sociedade em geral. Ainda, se
esclarece que abordar todas as pessoas que compõem a referida sigla torna-se uma
tarefa quase impossível, uma vez que, conforme exposto no decorrer da monografia,
o preso LGBTQIA+ evita apresentar sua real identidade perante os demais detentos
para não se tornar alvo violência.
Preliminarmente, buscou-se apresentar, em termos gerais, as questões de
gênero e sexualidade, tema notadamente polêmico e pouco abordado em nosso país,
logo, se fez essencial conceituar essas identidades que muitos desconhecem ou
cometem equívocos.
No mesmo norte, fora apresentado a utilização da privação de liberdade como
meio de resposta estatal à pratica considerada delituosa, passando pela evolução do
instituto que, inicialmente, possuía natureza cautelar para a realização dos suplícios
e, então, com a evolução da sociedade, precisamente pelos ideais iluministas, a
privação de liberdade foi considerada a principal forma de sanção penal, em tese, sem
que houvesse a violação do corpo do condenado.
À luz do exposto em todo o trabalho, há de ressaltar o já dito, o Brasil é o país
que mais mata pessoas LGBTQIA+ no mundo, questão completamente angustiante,
não somente o “portar-se homossexual” já sido considerado crime, atualmente, suas
vidas são ceifadas desde cedo e suas lutas ecoam por todas as esferas da sociedade.
Igualmente, quando essa comunidade quando inserida nas unidades prisionais esses
pontos não apresentam características diferentes, visto que esse sistema, em sua
maior parte, não consegue garantir a dignidade do preso, quiçá do detento LGBTQIA+.
Logo, se abordou de forma objetiva e complexa as problemáticas
apresentadas, evidenciando as diversas formas de violência que o detento LGBTQIA+
é submetido no cumprimento da pena, como os abusos e, por consequência, o medo
de contrais doenças sexuais, piadas, preconceitos, tortura, insegurança,
vulnerabilidade, a estigma do corpo infectado e potencialmente transmissor de
doenças, além de serem alvo de facções, são fatos que infelizmente fazem parte do

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cotidiano LGBTQIA+ que cumpre pena, dessa forma, por todas as barbáries e
violências desumanas apresentadas, mais do que claro é a confirmação de que sim,
existem violações de direitos dos indivíduos LGBTQIA+ no sistema prisional brasileiro
que afrontam integralmente a dignidade e a observância dos direitos humanos. Para
além disso, é possível concluir que o condenado integrante desta comunidade sofre
duplamente, primeiro por ter sua liberdade privada e, a segunda, em razão da
vulnerabilidade agravada por serem quem realmente são, seres humanos.
Ou seja, apesar da existência do princípio da dignidade da pessoa humana,
inclusive, servindo de base para o Estado Democrático de Direito, sendo assegurado
ao cidadão todas as garantias mínimas existenciais, há um descaso pelos institutos
responsáveis pela administração e execução do sistema no sentido de preservar a
dignidade humana e os direitos inerentes ao sentenciado, gerando a violação dos
direitos fundamentais do ser humano.
Aliás, em que pese as regulamentações de políticas públicas e normas
internacionais que promovam a proteção dos sujeitos integrantes da comunidade
LGBTQIA+, como a Resolução Conjunta n. 1 de 15 de abril de 2014 e os Princípios
de Yogyakarta, estabelecendo detalhadamente os parâmetros para o acolhimento
desses detentos garantindo a proteção de suas dignidades, na prática, verifica-se que
não são totalmente efetivadas, faltando, até mesmo, capacitação técnica das próprias
instituições penitenciarias brasileira para atuar e proteger essa população, pois, como
visto, os apenados LGBTQIA+ além de serem alvos por outros detentos, em razão da
heteronormatividade e preconceito, são também alvos dos próprios agentes
penitenciários.
No tocante a segunda hipótese, também pode-se confirmar que há
necessidade de criação de alas e celas especificas para o apenado LGBTQIA+
realizar o cumprimento de sua pena, visto que a existências desses espaços, alas e
celas reservadas culminam em uma segurança para estes, local em que podem
expressar e exercer o seu “verdadeiro” ser, sem a angustia de sofrer represálias. Isso
se observa não só nos estabelecimentos prisionais que possuem espaço reservado
para os apenados LGBTQIA+, mas também no próprio depoimento desses reclusos
que almejam a criação desses locais para a efetivação de seus direitos.
Ressalta-se, por todo o exposto, que se a dignidade da pessoa humana e
todos os outros institutos que norteiam a proteção do apenado no cumprimento de
sua pena estivessem efetivados, respeitados e integralmente cumpridos, sequer este

78
tema estaria sendo pauta, tão pouco seria essencial a criação de alas/celas
específicas para a comunidade LGBTQIA+.
Portanto, cabe ao Estado, em um todo, analisar as diretrizes do sistema
penitenciário brasileiro que não é capaz de cumprir o seu papel, qual seja, realizar a
efetiva ressocialização e reintegração do apenado na sociedade, garantindo a
proteção da integridade física e psicológica de qualquer detento, independentemente
das características que compõem sua sexualidade.

79
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