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NOVA LEX MERCATORIA

A jurisdição internacional brasileira


São difíceis de aceitar os argumentos do emprego do princípio da efetividade em
recente decisão do TJSP

• JOSÉ AUGUSTO FONTOURA COSTA

20/03/2023 05:25
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Crédito: Unsplash

Em recente decisão de primeira instância na Justiça do Estado de São


Paulo houve o afastamento da jurisdição brasileira. Até aí, não há
quaisquer problemas, até porque, conforme argumentação apresentada
na sentença, não haveria incidência de nenhuma das hipóteses
determinantes da extensão do poder brasileiro de julgar previstas
no CPC, com ênfase para a do inciso II do Artigo 21. Porém, os
argumentos adicionais, a respeito do emprego do princípio da
efetividade, são bem difíceis de aceitar.
Conforme o relatório da causa envolvendo a Recepta Biopharma e a
Agenus, a autora iniciou a ação em São Paulo com fundamento nas
normas de competência concorrente do CPC, particularmente o Artigo 21,
II, referente à existência de obrigação a ser cumprida no Brasil. A ré
contestou no sentido de negar a jurisdição brasileira. Deste modo,
ausente cláusula de eleição de jurisdição ou foro e presente a oposição do
réu na contestação, fica clara a ausência de incidência da hipótese do
Artigo 22, III, a qual garante a extensão da jurisdição brasileira em razão
do concerto, expresso ou tácito, da vontade das partes.

Para determinar o afastamento da jurisdição, então, o julgador afirma que


“à luz dos elementos existentes nos autos, conclui-se que as principais
obrigações debatidas não têm o Brasil como local de cumprimento”.
Assim, estando ausente elemento capaz de provocar a cobertura
jurisdicional brasileira sobre o caso, a decisão correta não poderia ser
outra senão a de declinar da competência.

Ao que parece, portanto, o resultado está correto. A análise é bastante


simples: considerando não se verificar a incidência de qualquer das
hipóteses dos Artigos 21 a 23 do CPC e ausentes elementos suficientes
para afirmar uma extensão excepcional da jurisdição brasileira com
fundamento no Artigo 5º, XXXV, da Constituição Federal, o correto é
que o juízo declare a falta de jurisdição, encerrando o feito.

Mas a sentença não se deteve nesse ponto. E os argumentos se tornam


menos sólidos a partir da análise ad argumentandum tantum de outras
potenciais razões do afastamento da jurisdição brasileira. É quando se
inicia a “análise da conveniência para as partes envolvidas” em termos de
facilidade para a produção de provas e efetividade da sentença. A ideia
seria empregar o princípio da eficiência para afastar as hipóteses
taxativas do CPC em razão da conveniência. É aí que a própria escolha da
linguagem denuncia, em seus meandros, uma aplicação ao caso da
doutrina do common law denominada forum non conveniens.

Trata-se, em síntese, de doutrina referente à avaliação pelo juiz da


conveniência em decidir uma determinada causa a partir de critérios
passíveis de indicar se o foro seria adequado. Não se trata de saber qual o
melhor foro, ou de regra tendente a extinguir a existência de
competências concorrentes, mas de fundamento discricionário de
avaliação de pressupostos de eficiência mínima. Os países de tradição
romano-germânica, como o Brasil, são bastante avessos a tal doutrina,
optando por hipóteses claras e rígidas tanto na distribuição interna de
competências, quanto no estabelecimento dos limites da jurisdição
internacional.
Nesse sentido, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) rejeita, de modo
sólido e inequívoco, a inadequação do emprego da doutrina do forum non
conveniens no Brasil. É o caso do REsp 1633275/SC (2016), relatado pelo
ministro Villas Bôas Cuevas, no qual se afirma não haver “no
ordenamento jurídico brasileiro norma específica capaz de permitir tal
prática”. No mesmo diapasão, na MC 15398/RJ (2009), relatada pela
ministra Nancy Andrighi, recorda-se que “apesar de sua coerente
formulação em países estrangeiros, não encontra respaldo nas regras
processuais brasileiras”.

Evidencia-se, dessarte, uma forte limitação ao uso de considerações a


respeito da efetividade para driblar as regras postas no CPC a
impropriedade do uso de elementos como a avaliação das dificuldades de
produção da prova ou da executoriedade da sentença. Mais
concretamente, aliás, se a parte autora optou pelo juízo brasileiro, não lhe
resultaria este conveniente? Não seria essa a parte interessada na
efetividade?

Igualmente equivocada a interpretação extensiva da cláusula de escolha


da lei aplicável – do estado de Nova York – como indício da conveniência
do foro. É comum, muito comum, encontrar contratos em que o local
escolhido para a solução das controvérsias é diverso do da lei aplicável e,
decerto, são assuntos diferentes e não permitem, na prática internacional,
qualquer tipo de ilação: assim como indicar o foro não implica, per se, na
indicação da lei aplicável ao contrato, tampouco a escolha da lei autoriza
percurso inverso.

Para terminar causando ainda maior estranhamento, a decisão esposa a


ideia de que o Judiciário brasileiro tem poderes para determinar a
competência dos magistrados estrangeiros. Por isso, ordena a sentença:
“a lide ser decidida pelo Poder Judiciário dos Estados Unidos, mais
precisamente pela Corte de Massachussets”. Resta saber se isso foi
previamente combinado com o juiz americano. Aliás, não deixa de ser
irônico que uma sentença pretensamente fundada no princípio da
efetividade contenha, em seu dispositivo, determinações de eficácia
natimorta, pois é evidente a ausência de qualquer submissão do juiz
estrangeiro a essa sentença brasileira.

Não custa lembrar: o Direito Internacional Público não dispõe de um


regime geral de distribuição internacional da jurisdição dos tribunais dos
quase duzentos Estados. Há, com limitações territoriais e materiais,
acordos sobre este assunto, como, por exemplo, o Regulamento
1.251/2012 da União Europeia. Na imensa maioria das situações há
sobreposição das várias jurisdições estatais, sendo bastante raros os
conflitos negativos de jurisdição. Aliás, o próprio CPC, em seu artigo 24,
deixa claro ser o Brasil avesso a noções como a litispendência ou a
prevenção internacional, regra que decorre da ausência de coordenação
internacional para eliminar conflitos de competência.

O princípio da efetividade, decerto, é um importante guia para o


legislador, que deve acautelar-se contra a eventual extensão da jurisdição
para áreas em nas quais a tutela do Estado brasileiro possa produzir seus
efeitos. Boa parte das hipóteses do CPC seguem essa diretriz: domicílio do
réu, lugar da obrigação e vínculos econômicos do réu em ações de
alimentos. Outras hipóteses tratam da conveniência do curso do feito,
sobretudo a de se basear a ação em ato ou fato no Brasil, facilitando a
instrução probatória. Pode, ainda, favorecer vulneráveis, como o autor da
ação de alimentos ou o consumidor domiciliado no Brasil. Por fim,
estabelece a possibilidade de estender a jurisdição em razão da vontade
das partes – e nem nesse aspecto particular faculta o uso da doutrina
do forum non convenines pelo juiz do feito. Assim, o próprio uso de um
princípio de efetividade é temperado e mitigado pelo legislador em favor
da conveniência da instrução, da proteção de vulneráveis e da autonomia
privada; isso sem contar a complexa hermenêutica do Artigo 5º, XXXV da
Constituição Federal.

Não é que a observação ao princípio da efetividade, em óbvio cotejamento


com os demais princípios presentes no Ordenamento brasileiro, esteja
vedada ao juiz, seja a qual instância este pertença. Entretanto, para
aqueles casos em que a incidência das hipóteses legais para a delimitação
da jurisdição internacional brasileira ocorre, não lhe é dado o condão de
restringir a prestação da proteção judicial estatal. Fazer isso é tentar
forçar a entrada no Direito brasileiro, por via jurisprudencial, da doutrina
anglo-americana do forum non conveniens. Há, porém, boas razões para
não o fazer, inclusive a linha adotada pelo legislador e confirmada nas
cortes superiores

O feito em tela, porém, não terá prosseguimento e, portanto, não se terá


decisão colegiada a respeito do tema. Não obstante, a bem da segurança
jurídica e do respeito à letra da lei, seria importante cuidar de não
reforçar os argumentos em torno de uma aplicação de princípio da
eficiência capaz de reduzir o alcance das normas jurisdicionais
brasileiras.

JOSÉ AUGUSTO FONTOURA COSTA – Professor de Direito do Comércio


Internacional da Faculdade de Direito da USP, professor da UniCEUMA
(São Luís) e da Faculdade de Direito de Sorocaba. Bolsista produtividade
CNPq. Advogado. Consultor em Barral, Parente e Pinheiro Advogados.

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