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Projeto_romances
Projeto_romances@yahoo.com.br
Digitalizado por Juliana
Almas em chamas
Nora Roberts
Era a primeira vez que Adélia Devlin Viajava de avião, mas nada a distraía
de seus pensamentos.Nem as estranhas formações de nuvens, que se alargavam
e estreitavam diante de seus olhos tristes, chamavam-lhe a atenção.
Sua mente estava povoada de dúvidas e incertezas, que se mesclavam com a
saudade angustiante de uma pequena fazenda na Irlanda. Agora que se
aproximava mais e mais dos Estados Unidos e de pessoas estranhas, sentia-se
apavorada, pois sabia que a vida jamais a havia preparado para lidar
corretamente com pessoas e lugares novos.
Seus pais tinham morrido num acidente de automóvel, deixando-a órfã aos
dez anos de idade.Nos meses seguintes, ela se voltou para dentro de si mesma
e, aos poucos, foi construindo um muro ao redor de sua dor.Na escola, não tinha
amigos e só falava quando solicitada.Em casa, ajudava sua tia Lettie nos
afazeres domésticos e nos trabalhos da pequena Fazenda Devlin.Seca e
autoritária, Lettie Devlin limitava-se a dar-lhe ordens e nunca estendia a mão
para fazer-lhe um carinho.Adélia acabou de crescer num ambiente árido e
fértil de solidão.
A fazenda era o único ponto em comum entre ela e a tia, pois ali tinham
vivido e trabalhado juntas durante quase treze anos.Um dia, Lettie sofreu um
derrame cerebral e ficou paralítica; Adélia viu-se então forçada a redobrar
seus esforços para cuidar sozinha da propriedade e ainda zelar pelo bem estar
da enferma.
Sua maior dificuldade nessa luta cotidiana era a falta de tempo e de
dinheiro.Quando, seis meses depois, a tia faleceu, Adélia verificou que não
tinha condições de manter a fazenda.Embora tivesse trabalhado muito, não
conseguiria pagar os impostos e agora tinha de vender a propriedade para
saldar sua dívida com o governo.
Sem ter onde morar,escreveu para o único parente que lhe restava, Padrick
Devlin.Irmão mais velho de seu pai, Padrick tinha emigrado para os Estados
Unidos havia uns vinte anos.Em resposta ao seu pedido de socorro, enviou-lhe
uma longa e carinhosa carta, pedindo-lhe que fosse viver com ele: “Venha para
a América.Seu lar agora será minha casa”.
Sabendo que não tinha outra saída, ela reuniu seus poucos pertences,
desfez-se de tudo o que não podia levar e disse adeus à velha fazenda, o único
lar que conhecera em toda sua vida...
Um movimento brusco do avião a fez deixar um pouco de lado as
lembranças. Recostou-se na poltrona, mexendo com os dedos na pequena cruz
de ouro que sempre trazia no pescoço.Não lhe restava mais nada na Irlanda e
tudo o que tinha na América era um tio a quem vira aos tr~es anos de idade e
com o qual só dialogava por meio de cartas.Mas ela conquistaria um espaço para
si. Afinal,havia passado a vida inteira lutando.
Estava decidida a trabalhar, como sempre fizera,para não ser um peso para
o tio, que já fazia muito em dar-lhe um quarto, em sua casa.
“Com certeza vou arranjar um emprego”, pensou.”Talvez consiga colocação
na fazenda de criação de cavalos onde o titio vive.”
Adélia tinha uma capacidade inata para lidar com animais.E, com a prática,
adquirira alguns conhecimentos de veterinária.Era tão habilidosa que muitas
vezes a chamavam para ajudar no parto difícil de uma vaca ou para dar pontos
no ferimento de um potro.
Certamente haveria um lugar para ela na Fazenda Campos Reais, onde o tio
trabalhava como treinador de cavalos.Não encontraria campos para arar, nem
vacas para ordenhar, mas, se fosse preciso, trabalharia como copeira para
garantir o pão de cada dia.
O avião aterrissou no aeroporto de Dulles e Adélia logo se viu em meio a
uma incrível mistura de gente de todo tipo físico , que falava as mais variadas
línguas.Dividida entre o fascínio e o medo, olhava para todos os lados, tentando
avistar alguém à sua procura, mas todo mundo passava co pressa, sem lhe dar
atenção.De repente, um voz grave chamou-a:
-Adélia!
Um homem forte e musculoso, de cabelos grisalhos e encaracolados, corria
em sua direção.Antes de receber seu abraço, ela ainda teve tempo de notar os
olhos azuis e brilhantes como os de seu pai.Percebeu, então, que havia muitos
anos ninguém a abraçava com tanto carinho.
-Adélia! Eu reconheceria você em qualquer lugar.Esses olhos claros, esse
sorriso...É como ver de novo o rosto de sua mãe.Você é a imagem perfeita de
Kate.
Adélia tinha os cabelos castanhos, que caíam em ondas brilhantes sobre os
ombros.Os olhos eram verdes e grandes, com cílios grossos e longos.O nariz
arrebitado e a boca firme transmitiam a idéia de altivez e independência.
-E é muito bonita –concluiu o homem, com um suspiro de pura alegria.
-Tio Padrick?
-E quem mais poderia ser?- Ele riu, dirigindo-lhe um olhar tão cheio de amor
que todas as suas dúvidas e temores se dissiparam.
Ela abraçou-o novamente, chamando-o pelo nome carinhoso que lhe dava
quando tinha três anos de idade.
-Tio Paddy!
O velho afagou-lhe os cabelos macios e beijou-a em ambas as faces.Depois,
pegou-lhe a mão e acompanhou-a ao departamento de bagagens.Por fim,
conduziu-a para o pátio de estacionamento e a fez entrar no carro.
Logo que entraram na estrada, Adélia começou a bombardear o tio com uma
série de perguntas.Queria saber qual era a distância do aeroporto até a
fazenda, quantos cavalos havia lá, e quando poderia vê-los.Longe de se
aborrecer com tamanho interrogatório, Padrick respondia a tudo com
satisfação, feliz por ouvir a voz da sobrinha, suave e doce como a brisa típica
da primavera.
-Onde vou trabalhar?
-Você não precisa trabalhar.
-Preciso sim.Sabe, posso muito bem cuidar de cavalos.Tenho jeito para lidar
com animais.
O tio franziu as sobrancelhas cinzentas e lançou-lhe um olhar severo.
-Você não veio da Irlanda para isso.Além do mais, não sei o que Travis
pensaria se eu contratasse minha própria sobrinha para trabalhar na fazenda.
-Oh, mas eu poderia fazer tanta coisa... Escovar os cavalos, limpar os
estábulos, carregar o feno... Por favor,tio Paddy.
-Vamos ver – disse ele, encerrando o assunto.
Só então Adélia se deu conta de que estavam viajando fazia algum tempo e
que o carro saíra da rodovia principal para enveredar por uma estradinha
marcada de pinheiros.Olhou em volta, maravilhada, e durante alguns minutos
ficou em silêncio, usufruindo da calma beleza da paisagem.
Pouco depois, Padrick virou à direita, numa alameda particular, e parou
diante de um pórtico com duas grandes colunas de pedra.
-Bem-vinda à Fazenda Campos Reais, querida.Seu novo lar – ele anunciou, e
seguiu por entre vastos campos verdes, pontilhados de arbustos cujos botões
prometiam flores para breve.À distância, cavalos pastavam preguiçosamente.
-A mais bela criação de cavalos de todo o Estado de Maryland -disse
Paddy.- E, na minha opinião, a mais bela de toda a América.
A alameda terminava num enorme casarão antigo, com três andares, que se
erguia sobre um outeiro verdejante.Balcões guarnecidos de ferro trabalhado
adornavam a fachada dos pavimentos superiores.Portas brancas abriam-se para
o jardim, quebrando a rigidez da pedra com que fora construída a imponente
mansão.
-Bonita casa, não é?
-Linda! Nunca vi nada parecido!
-Bem, a minha casa não é tão bonita.Mas é confortável, e espero que você se
sinta feliz nela.
-Tenho certeza de que serei muito feliz vivendo com o senhor.
Impulsivamente, inclinou-se e beijou o tio na face.Ele segurou-lhe a mão.
-Ah, querida, como estou contente! Com você, chegou a primavera.
O carro continuou por um atalho e parou em frente a uma grande pista oval,
destinada a corrida de cavalos.Do outro lado, uma grande construção branca
abrigava os estábulos.O cenário era dominado por cercados, e o ar estava
impregnado de cheiro de feno e de cavalos.
Adélia não cabia em si de espanto.Acostumada com as pequenas
propriedades de Irlanda, como a sua e as dos vizinhos, mal podia acreditar que
toda aquela terra, a perder de vista, constituía uma única fazenda e pertencia
a um só dono.
À distância, onde as colinas ondulavam suavemente, éguas pastavam,
enquanto os potrinhos brincavam, em plena alegria da primavera e da
juventude.
“Travis Grant sabe cuidar muito bem do que possui”, pensou, lembrando-se
do nome do proprietário de Campos Reais, sempre mencionado nas cartas de
Paddy.
-Eis a nossa casa – anunciou o tio, apontando para uma construção quase
duas vezes maior do que sua casa na Irlanda.Uma réplica da sede da fazenda, a
casa tinha as mesmas pedras e as mesmas janelas guarnecidas de sacadas.
-Vamos entrar, querida.
Ele desceu do carro e abriu-lhe a porta.Tomou-a então pelo braço e
caminharam para o seu novo lar.
A sala era aconchegante, com paredes verde-claras e móveis simples, porém
convidativos.As venezianas, abertas de par em par, deixavam ver as colinas,
mais ao longe.
-Oh, é lindo!
-Calma, você não viu nada ainda.Venha.
A cada novo aposento que o tio lhe mostrava, ela soltava uma sincera
exclamação de alegria.A cozinha encantou-a, com seu fogão enorme e seus
utensílios reluzentes, pendurados da maneira mais funcional.No banheiro, os
azulejos cor de marfim e os aparelhos de louça bege fizeram-na sonhar com
demorados banhos de espuma.Até o hall de distribuição dos quartos chamou-
lhe a atenção, por causa de um pequeno baú antigo, que lhe dava um ar
romântico e misterioso.
-E este é o seu quarto – anunciou por fim tio Paddy.
Não era um aposento muito grande, mas, aos olhos de Adélia, parecia
imenso.Todo decorado em azul e branco, tinha as paredes revestias por um
papel de suave estampa floral.Cortinas de voal balançavam suavemente nas duas
janelas abertas à brisa da primavera.Um armário de madeira clara, uma cama
coberta com uma colcha bordada, algumas cadeiras e uma penteadeira com
espelho compunham o modesto mobiliário.
Agradecida e feliz, Adélia virou-se para o tio e envolveu-o num abraço
afetuoso.
Após descansar um pouco, ela trocou seu conjunto de viagem por uma calça
de brim e uma camiseta de algodão, seus trajes habituais, e prendeu o cabelo
com uma fita.Para proteger o rosto do Sol, colocou um chapéu azul-claro, e saiu
para passear com o tio e conhecer os cavalos.
Quando se aproximaram dos estábulos, viram alguns homens em volta de um
puro-sangue de pêlo castanho e ouviram parte da conversa antes que os outros
notassem sua presença.
-O que está havendo aqui?-perguntou Paddy.
-Ainda bem que você já voltou –respondeu um homem alto e forte.-
Majestade acaba de ter um daqueles ataques e deu um coice em Tom.
Paddy dirigiu a atenção para um rapaz miúdo, que sentado no chão
resmungava e massageava o tornozelo.
-Foi grave? Alguma fratura?
-Não.Mas acho que vou ter de ficar uns dias sem montar.Esse cavalo talvez
seja o mais veloz de Campos Reais, mas com certeza é mais bravo que um gato
acossado.-Enquanto falava, o moço olhava para o puro-sangue, numa mistura de
ressentimento e admiração.
-Pois ele não me parece nada bravo - Comentou Adélia.
Pela primeira vez todos os olhares dirigiram-se para ela, curiosos.Paddy
sorriu e fez as apresentações:
-Esta é Adélia, minha sobrinha.Querida, este é Hank Manners, ajudante de
treinador.Tom Buckley trabalha no adestramento dos animais.George Jonhnson
e Stan Bell cuidam da estrabaria.
Adélia cumprimentou um por um e voltou-se para o cavalo.
-É um belo animal!
-Cuidado! – Avisou Hank, quando ela ergueu a mão para alisar o focinho do
puro-sangue.-Não é bom tocar nele agora.Em primeiro lugar, porque está de
péssimo humor.Segundo, porque não é muito dado com estranhos.
-Ora, logo, logo não seremos mais estranhos.-Sorrindo, ela passou a mão
pelo focinho de Majestade.
-Paddy!-Hank ia falar alguma coisa, mas o tio de Adélia ergueu a mão e fez
com que se calasse.
-Você é muito bonito, sabia? Nunca vi outro igual.-Enquanto falava
suavemente com o cavalo, ela acariciava-lhe o pêlo liso e reluzente. –Você foi
feito para correr...Forte, pernas compridas, peito largo...Aposto que ninguém
conversa com você, não é?
Suas mãos alisavam-no à vontade, e Majestade permanecia quieto,
permitindo até que ela lhe roçasse o pescoço com a face.
-Por essa eu não esperava!-exclamou Hank.-Ninguém jamais conseguiu fazer
isso.Nem você Paddy!
Adélia afastou o rosto do pescoço do cavalo e olhou séria para o ajudante
de treinador.
-Os animais também têm sentimentos,sr.Manners.E gostam de ser mimados
um pouquinho.
-Muito bem, você realmente parece saber lidar com ele.-O empregado
demonstrava ao mesmo tempo espanto e admiração.Mas logo se lembrou de que
ainda tinha obrigações a cumprir e voltou-se para Paddy:- Majestade está
precisando fazer mais exercício.Vou chamar Steve.
Nesse momento, Adélia agarrou o braço do tio, os olhos brilhando de
excitação, e pediu:
-Deixe-me monta-lo.
-Não acho que você conseguiria controlar esse cavalo.-interveio Hank
-Está para nascer um cavalo que eu não consiga controlar –respondeu ela, de
cabeça erguida.
-Você não vai deixar Adélia montar Majestade, não é?-O ajudante virou-se
para Paddy, aflito.
O velho olhou bem para a sobrinha, depois para o animal, coçando o queixo
com a mão esquerda, e declarou:
-Eu diria que ela é do tamanho certo.Não deve pesar mais que cinqüenta
quilos.-E, dirigindo-se a ela, concluiu:-Você é uma Devlin, não é? Se diz ser
capaz de montar esse bicho, então deve ser mesmo, ora!
Adélia ficou radiante com a reação do tio.
-Claro que sou uma Devlin!
-Meu Deus! O que não vai dizer o patrão quando souber!-resmungou
Hank ,diante da sólida aliança familiar.
-Deixe Travis por minha conta – respondeu Paddy com toda a calma.
O empregado deu de ombros e resmungou qualquer coisa, mas aceitou
resignado a insensatez de Paddy, que já dava instruções à sobrinha:
-Dê só uma volta na pista.Não corra mais do que puder agüentar.Pelo jeito
de Majestade, estou vendo que ele está disposto a fazer muito exercício.
Adélia ajustou o boné e, de um salto, montou na sela.O cavalo batia os
cascos no chão, em sinal de impaciência.Quando Hank abriu o portão do
cercado, ela conduziu o animal até a pista, inclinou-se para frente e sussurrou-
lhe alguma coisa no ouvido.Então o puro-sangue colocou-se em posição de
largada a ordem de partir.
-Está pronta, querida?-Paddy tirou o cronômetro do bolso.
-Sim.- respondeu ela, endireitando o corpo e respirando fundo.
-Já!- gritou o tio.
Adélia apertou os flancos de Majestade, incitando-o ao galope.Era só o que
o cavalo esperava para sair a toda velocidade.Praticamente agarrada ao
pescoço do puro-sangue, ela falava-lhe com voz carinhosa e alegre.O vento
batia em seu rosto e esvoaçava-lhe os cabelos.Uma inebriante sensação de
liberdade invadiu-a, afugentando todas as angústias e preocupações.Durante os
poucos minutos que durou a corrida, ela sentiu cavalgando numa estrada
forrada de nuvens, que levava de volta à sua infância feliz.
Quando retornavam ao ponto de partida, ela começou a frear o animal,
envolvendo com os braços seu pescoço brilhante de suor e falando-lhe bem
junto à orelha.
-Não consigo acreditar! – Hank estava simplesmente estupefato.
Orgulhoso como um pavão, Paddy mostrou-lhe o cronômetro e replicou:
-O que você esperava? Ela é uma Devlin.E fez p percurso num tempo mínimo.
-Ora, tio, Majestade é o cavalo mais maravilhoso do mundo.Eu me senti
como se estivesse montando o próprio Pégasus.
Hank estendeu-lhe a mão para ajuda-la a saltar e inclinou a cabeça em sinal
de admiração.Tinha apreciado não só a habilidade da amazona, mas também sua
beleza, realçada pelo olhar luminoso e pelo brilho dos cabelos, que agora lhe
caíam soltos, em encantadora desordem.
-Muito bem, senhorita!
-Obrigada, sr.Manners.
-Por favor, chame-me de Hank
-Obrigada, Hank.
Paddy colocou as mãos nos ombros da sobrinha e fiou-a com carinho;
-Bem, minha querida...A Fazenda Campos Reais acaba de contrata-la para
adestrar os cavalos.
Logo após a corrida, Paddy levou-a para casa e foi preparar o jantar, não
permitindo que ela o ajudasse.Enquanto comiam na pequena copa, fez-lhe uma
série de perguntas sobre sua vida na Irlanda e ela respondeu de bom grado a
todas, sempre citando detalhes que tornavam a narrativa mais interessante.Às
vezes gesticulava demais ou enrubescia um pouco, porque sabia que omitia
certos aspectos negativos da verdade e valorizava demais os pequenos
incidentes que lhe haviam proporcionado alguma alegria.Sentia-se tão feliz
agora que queria fazer de seu passado sombrio uma história luminosa.
Terminando o jantar, conversaram ainda por um bom tempo e então Paddy
recomendou-lhe que fosse descansar.Ela obedeceu, não só porque estava
exausta, mas também porque não via a hora de mergulhar naquela banheira que
a fascinara desde a chegada.
Quando finalmente deitou-se entre os lençóis aconchegantes, permaneceu
insone.Nesse curto espaço de tempo havia lhe acontecido tanta coisa que sua
mente estava tomada por imagens e sensações novas e ela não conseguia
adormecer.E seu corpo, habituado ao trabalho extenuante, não conseguia
relaxar.
Reconhecendo que era inútil forçar a natureza, Adélia saltou da cama e
trocou a camisola por uma calça de brim e uma camiseta.Prendeu o cabelo sob
um boné e saiu de casa em silêncio.
A lua brilhava intensamente.Soprava uma brisa leve e o único ruído que se
ouvia era o pio insistente de uma ave noturna.O luar orientou seus passos na
direção dos estábulos.O silêncio, o cheiro conhecido dos animais, tudo
lembrava-lhe sua pequena fazenda na Irlanda.De repente, ela sentiu uma paz e
uma satisfação que antes nem imaginava que existiam.
Parou à porta dos estábulos e hesitou.Nesse exato momento, alguém a
agarrou firmemente pelos braços e a ergueu do chão como se ela fosse uma
boneca de pano.
-Aonde você pensa que vai? E o que está fazendo aqui?
Emudecida, Adélia olhou para o dono da voz, mas viu apenas uma sombra
vaga delineando-lhe o rosto.Tentou falar alguma coisa, porém o susto não lhe
permitia.Em seguida, viu-se arrastada para dentro do estábulo.
-Agora vamos ver quem é você, rapazinho!
Quando o homem acendeu a luz, o boné de Adélia caiu e seus cabelos
soltaram-se pelos ombros.
-Mas... você é uma garota!
Seu susto transformou-se em raiva e ela num instante recuperou a fala:
-Que esperto! Até notou que sou uma mulher.E quem é você, que fica por aí
agarrando pessoas inocentes? Por que não vai esmagar os ossos de alguém do
seu tamanho? Você deveria receber umas boas chicotadas para aprender a não
assustar assim as pessoas! Quase me quebrou o braço...
-Você é pequena, mas brava, hein?
O homem ainda não estava refeito da surpresa, e perguntava-se como podia
ter confundido aquela garota de formas tão femininas com um rapaz.
-Pelo sotaque de irlandesa, aposto que você é a tal sobrinha de Paddy.
-Sou Adélia Devlin, sim.- confirmou, empinando o queixo de tal forma que o
homem se contorceu de tanto rir.Foi o quanto bastou para enfurecê-la ainda
mais.- E quem é você, afinal?
-Travis –respondeu ele, ainda rindo.- Travis Grant.
Capítulo II
Capitulo III
No dia seguinte, sua raiva já tinha passado.Adélia não costumava ficar muito
tempo de mau humor, pois explodia logo e depois se acalmava.Restava-lhe,
porém algo novo e perturbador: a idéia de que um homem atraente tinha feito
brotar nela estranhos desejos de mulher adulta que jamais sentira no mundo
limitado de sua pequena propriedade na Irlanda.
Consciente disso, fez o possível para evitar o olhar de Travis, que parecia
segui-la o tempo todo.Trabalhou normalmente e, cumpridas as tarefas do dia,
foi visitar Salomé.A égua não estava em pé como sempre, mas deitada de lado e
ofegante.
-Vai nascer!-Adélia abaixou-se e, acariciando a barriga do animal, falou-lhe
baixinho: -Fique calma.Vou buscar socorro e volto já!
Saiu correndo dos estábulos e, ao avistar Tom à distância, gritou-lhe:
-Salomé vai dar cria! Chame o veterinário! Chame Travis! –E correu de volta
para a baia.
Quando Travis e Paddy chegaram, ela passava levemente a mão no pelo liso e
suado da égua, tentando tranqüiliza-la com palavras suaves.Travis abaixou-se a
seu lado e começou também a acariciar Salomé.
-O potro ainda está virado – informou Adélia num sussurro, como se
temesse que o animal ouvisse.-Precisamos dar um jeito.Onde está o dr.Loman?
-Foi atender um chamado urgente e vai levar mais de meia hora para voltar.
Pela primeira vez naquele dia, Adélia olhou para ele, apreensiva.
-Não vai dar tempo.Se não virarmos o potrinho agora, tanto ele quanto
Salomé não terão a menor chance de sobreviver.Deixe-me fazer isso.Não vai
ser a primeira vez.
Os dois fitaram-se longamente.Ela esperava a permissão necessária para
ajudar a égua, e ele contraía os lábios e enrugava a testa, tentando tomar a
decisão mais acertada.
-Concordo quanto a virar o potro, mas sou que vou tratar disso.-declarou
por fim.-Paddy, chame os homens para segurar Salomé deitada.
-Não! –exclamou Adélia.- Você não vai chamar um monte de gente aqui para
assustar a égua! Pode deixar que eu sei acalma-la.
Antes que Travis tivesse tempo de retrucar, Paddy intrometeu-se na
conversa:
-Adélia sabe o que faz.É melhor não chamar mais ninguém.
Travis hesitou por um momento, porém acabou concordando e começou a
preparar-se para o trabalho.
-Tenha muito cuidado.Os cascos do potrinho são muito afiados e podem
machucar sua mão – preveniu Adélia.
Abraçando a cabeça de Salomé, pôs-se a acariciar-lhe o focinho e a testa
enquanto cantava baixinho uma antiga canção de ninar de sua terra natal.
Salomé estremeceu quando Travis iniciou seu trabalho, mas não esboçou um
movimento para levantar-se.Suada, parecia sofrer muito, mas também dava a
impressão de que a voz suave de Adélia a aquietava.
Depois de alguns minutos que transcorreram lentos como séculos, Travis
anunciou, aliviado:
-Consegui!
Em seguida, levantou-se, e encostou a um canto, a atenção voltada para
Adélia, que, imperturbável, continuava a alisar o pêlo molhado da égua, sempre
cantando baixinho.
-Está nascendo! –gritou Paddy.
Só então ela parou de cantar e virou-se para admirar o potrinho que vinha
ao mundo.Suas mãos, entretanto, ainda passeavam carinhosamente sobre o
focinho do animal.
-É um lindo filhote, querida!
Voltando-se para Travis, dirigiu-lhe um de seus sorrisos mais maravilhosos e
seus olhos encontraram-se com os dele,Foi como se o tempo houvesse
parado.Sentiu-se incapaz de falar e até de respirar, como se ela e Travis
estivessem dentro de uma redoma de vidro, isolados do resto do mundo.
“Será possível alguém se apaixonar de repente?” perguntou-se,
alarmada.Seu pensamento, contudo, foi interrompido pela chegada de Robert
Loman.
Mal entrou, o veterinário dirigiu-se a Travis e começou a fazer um
verdadeiro interrogatório a respeito do parto.Adélia ergueu-se, um pouco
tonta por causa da tensão que sofrera em função de Salomé e das emoções
fortes que experimentara em relação a Travis.Segurou-se então numa viga e
passou a mão pelo rosto, tentando refazer-se.
-O que houve? –perguntou o tio, segurando-a pelo braço.
-Não foi nada.Uma leve tontura.Acho que fiquei agachada muito tempo e me
levantei meio de repente.
-Leve-a para casa – recomendou Travis.
Seus olhos brilhavam, mas ela estava pálida e sentia-se indefesa e
enfraquecida.Mesmo assim, procurou mostrar-se forte.
-Eu vou sozinha, tio.Não precisa se preocupar.-Adélia sorriu para o velho e,
evitando olhar para Travis, saiu do estábulo.
Enquanto caminhava lentamente para casa, respirava a plenos pulmões o ar
puro e fresco daquela tarde de primavera.
Após o jantar, ficou quieta e pensativa durante muito tempo.Não estava
acostumada a conflitos e incertezas, pois uma de suas características era
justamente saber o que e como fazer.Em toda a sua vida, tudo tinha sido
sempre muito definido.Nunca houvera espaço para indecisões.E agora se
deparava com uma situação inquietante, que a deixava incapaz de agir com
decisão.Precisava ver claro dentro de si, identificar o que sentia e expulsar de
seu coração toda ilusão.
“O parto de Salomé foi difícil e eu estava muito tensa.Depois, quando vi o
potrinho, fiquei meio tonta de alegria.Por isso tive aquela reação estranha
quando Travis me olhou.É claro que não estou apaixonada por ele! Mal o
conheço! Além disso, não gosto muito do jeito dele.É grande demais, forte
demais, arrogante demais.Não é o tipo de homem que sonhei ter um dia, se é
que tive tempo de sonhar com essas coisas.”
-Adélia.-Paddy chamou-a – Venha sentar aqui comigo no sofá.
Ela levantou-se, dando-se conta de que ficara todo o tempo na cozinha,
esquecida do tio, e dirigiu-se para a sala.Como uma criança carente de afeto,
aninhou-se no sofá e recostou a cabeça no ombro dele.Um suspiro fundo saiu-
lhe do peito.
-Você está trabalhando demais.
-Que nada! Não cheguei a trabalhar um dia inteiro desde que estou aqui.Na
Irlanda, a essa hora ainda estaria atarefada.
-Sua vida era difícil lá, não era? –Paddy abraçou-a com
carinhosamente,como se quisesse compensa-la, num momento, por toda uma
vida de luta e privações.
-Não era difícil até que papai e mamãe morreram.Pensei que o mundo fosse
acabar – sussurrou ela.
Percebendo sua necessidade de falar sobre o passado, o velho acariciou-lhe
os cabelos e murmurou:
-Desabafe, criança.Não fique com essas coisas atravessadas na garganta.
-Parecia que eu tinha morrido também.Sentia muita raiva, muito medo, e
fiquei insensível por uns tempos.Depois comecei a me lembrar de como se
amavam.Eles se queriam tanto que até uma criança de três anos conseguia
notar.
Alguém bateu na porta, mas os dois estavam tão envolvidos na conversa que
não ouviram.Então Travis entrou e abriu a boca para falar, mas, vendo que não
notavam sua presença, deixou-se ficar junto ao batente.
-Só o que restou foi a fazenda e, mesmo assim, depois de tantos anos de
luta, tive de vende-la para pagar os impostos.-continuou Adélia –Coitada de tia
Lettie! Trabalhava o dia inteiro e ainda tinha de cuidar de mim... Vivia dizendo
que eu corria demais com o cavalo.”E se você quebrar o pescoço, quem é que vai
me ajudar no serviço?”, perguntava.Mas sei que não era só por causa disso que
ela não queria que eu morresse.Lá, à sua maneira, titia gostava de mim.
Ela aninhou-se mais junto ao velho e fechou os olhos, pensativa.Depois,
suspirou e retomou o fio de suas recordações:
-Era trabalho demais só para nós duas, mas não tínhamos dinheiro para
contratar um empregado.Quando me lembro daquele tempo, vejo que todos os
dias eram iguais: trabalho e mais trabalho.Nenhuma distração, nenhum
descanso.Então tia Lettie teve o derrame.Pobrezinha! Foi horrível para ela
ficar na cama, sem poder ajudar em nada.
-Mas por que você não me escreveu, contando como viviam? Eu podia ter
mandado algum dinheiro, ou até voltar para a Irlanda, talvez...
Ela ergueu a cabeça e sorriu-lhe:
-Sei que você ajudaria, mas não seria justo pedir-lhe isso.Você já estava
com sua vida arrumada, por que iria deixar tudo para cuidar de nós?
-Eu o faria de bom grado, querida.
-Sim, mas...Enfim, já passou.Não vamos mais falar nisso.
Ambos silenciaram durante alguns minutos, contentes por estar finalmente
juntos, ligados pelo elo indestrutível do parentesco e do amor.
Depois, como se emergisse do passado, Adélia fez-lhe uma pergunta que há
muito tempo a intrigava:
-Como é que um homem bonito e simpático como você nunca se casou? Nunca
amou ninguém?
Ele hesitou por um instante, mas respondeu com toda a honestidade de um
coração incapaz de mentir:
-Amei, sim, mas ela escolheu seu pai...
Adélia ergueu o rosto e beijou-o na face, emocionada.
Sentindo-se um intruso, Travis deixou para mais tarde o que tinha a dizer e
saiu, silencioso e despercebido como havia entrado.
Capítulo IV
O sábado amanheceu ensolarado, com a brisa levando a toda parte o doce
perfume das flores da primavera.Adélia cantava enquanto escovava Fortuna,
um belo potro de três anos que parecia ouvi-la com atenção.
-Adélia! Adélia! –Mark e Mike entraram correndo0 no estábulo.
-Meus queridos! Que bom vocês terem vindo!
-A mamãe deixou a gente ver o filhote da Salomé.Onde é que ele está?
-Esperem um pouquinho que eu já mostro.Preciso terminar de escovar
Fortuna.-ela respondeu, procurando alguma coisa no bolso da calça. –Onde será
que eu pus a tesourinha? Será que a pegaram de novo?
-Eu não mexi em nada.-queixou-se Mark.
-Eu também não.Os adultos estão sempre pondo a culpa de tudo nas
crianças.-completou Mike.
-Oh, meninos, eu não disse que foram vocês.Estou falando dos elfos.
-Elfos? O que é isso? –perguntaram os dois ao mesmo tempo.
-Como? Vocês não sabem?
-Não.Conte para nós.
-Está bem.Venham cá.-Ela sentou-se num banco e acomodou os meninos cada
um de um lado.-Elfos são personagens de contos de fadas, muito comuns lá na
Irlanda.São figuras estranhas.O pai deles é um espírito maligno, e a mãe, uma
fada que virou bruxa.Sempre fazem o que não devem.Por mais velho que seja
um elfo, nunca tem mais de um metro de altura.Diz-se na minha terra que
gostam de montar em carneiros e cabritos.De manhãzinha, quando alguns
desses animais aparecem cansados, o dono já sabe que os capetinhas andaram
atormentando-os durante a noite.
-E por que eles fazem isso?
-Porque são muito preguiçosos, e quando querem ir para algum lugar, ao
invés de andar, usam carneiros e cabritos como se fossem cavalos.
Os meninos ouviam muito atentos, os olhos arregalados e fixos em Adélia.
-Também gostam de mexer com tudo dentro de casa –continuou ela. –Fazem
o leite ferver e derramar no fogão, derrubam vasos de plantas, escondem
objetos, roubam comida.Às vezes até empurram cadeiras e mesa de um lado
para outro só para se divertirem com o espanto das pessoas.
-Nossa! Eles são terríveis.
-Oh, se são! É por isso que consegue apanhar um elfo ganha uma fortuna.
-Mas não deve ser fácil.
-Não é mesmo.Só é possível pegar um quando ele senta, e ele só senta
quando está com o sapato furado.Sabem, como o elfo sempre está sempre
correndo e andando para lá e para cá, em suas travessuras, gasta muito os
sapatos.Então, ao sentir a sola do pé no chão, senta-se atrás de um arbusto ou
no meio do capim alto, e tira os sapatos para remendar.Nesse momento a gente
chega por trás, no maior silêncio, e...zás! Agarra-o com toda força.
Os gêmeos estremeceram com o gesto repentino que Adélia fez no ar para
ilustrar a narrativa.
-Ao mesmo tempo, a pessoa grita:-Quero seu ouro! –prosseguiu,
engrossando a voz.-E o elfo responde:”Não tenho ouro!”
-E ele não tem mesmo?
-Oh, se tem! Mas só conta onde está se a gente obrigar.
-E como é que se faz?
-Cada um tem seu jeito.Algumas pessoas o agarram pelo pescoço, como se
fossem estrangula-lo.Outras fazem ameaças.Mas, seja qual for o método, não
se pode desviar o olhar de cima do elfo, senão ele desaparece no mesmo
instante.É capaz de fazer milhões de truques para escapar.Mas, se a gente fica
firme e vigilante, consegue tirar-lhe todo o ouro.
-Você já viu um elfo? –perguntaram os garotos, excitadíssimos com a
história.
-Já vi uns dois ou três, mas, sempre que chegava perto, desapareciam.-Ela
se levantou, e carinhosamente encerrou a conversa:-Por isso é que nunca fiquei
com o ouro deles e preciso trabalhar para viver.E é justamente o que vou fazer
agora, senão me mandam embora.
-Mas é claro que isso não vai acontecer, não é meninos?-disse Travis, rindo
e aproximando-se dos três.
Adélia estremeceu e, com o coração disparado, teve de fazer esforço para
respirar fundo antes de falar:
-Mas que costume horrível você tem de aparecer de repente para assustar
as pessoas!
-Acho que confundi você com um elfo.
Ela virou as costas para não responder à provocação e então viu sobre a
mesa a tesourinha que procurava; pegou-a, meio desapontada, e Travis afastou-
se com os gêmeos para mostrar-lhes o potrinho de Salomé.Adélia observou-o
com o canto do olho, admirando seu porte atlético e imponente.
“Por que esse homem me perturba tanto?”, perguntou-se. “Por que meu
coração bate mais depressa sempre que vejo esses olhos tão azuis?” Deu um
longo suspiro e seus pensamentos pela primeira vez ousaram ir mais
longe:”Acho que...estou apaixonada por Travis Grant”. Estarrecida com a
conclusão a que chegara, balançou a cabeça, como se assim quisesse jogar tal
idéia para bem longe.”Que absurdo! Nunca um homem rico e bonito,
proprietário de uma fazenda como Campos Reais, iria baixar os olhos para uma
simples empregada, que cuida de cavalos...” E retomou o trabalho, com
ímpeto.”Além do mais, ele é arrogante e insensível.Não posso estar
apaixonada”, decidiu.
Nesse momento, os meninos chamaram-na; ela se virou, mas a primeira
pessoa que viu foi Travis, que vinha à frente dos gêmeos, falando alegremente
sobre o potrinho.Quando seus olhos depararam com os dele, sentiu que não
conseguia fitá-lo com naturalidade.
-Vão brincar lá fora.Preciso conversar com Adélia.
Obedientes, os garotos afastaram-se e ela reuniu todas as suas forças para
perguntar:
-Eu...fiz algo errado? –As palavras saíram meio gaguejadas, confirmando sua
confusão interior.
-Claro que não!- O olhar de Travis percorreu seu rosto, lentamente,
fixando-se nos olhos verdes, nos lábios trêmulos.-Você achou que eu ia demiti-
la? –disse ele, por fim, numa voz estranhamente suave.
-Bem, você disse que seria uma experiência de duas semanas.Faltam poucos
dias para acabar esse prazo...
-Pois você está contratada.Já decidi que vai ficar aqui.
-Obrigada.-Ela suspirou, aliviada.-Você não imagina como é bom ouvir isso!
Travis passou a mão na crina de Fortuna e depois voltou a olhar para ela
firmemente.
-A sua maneira de lidar com cavalos é algo...estranho e maravilhoso.Não
tenho do que me queixar.O único problema é que você trabalha demais.Não
quero mais ouvir falar que esteve fazendo alguma coisa às dez da noite.
Sob pretexto de colocar a tesourinha de volta em cima da mesa, ela voltou-
lhe as costas.
-Bem...é que eu...
-Não vamos discutir sobre isso.-interrompeu-a, pousando a mão em seu
ombro.-Sabe, parece que você só sabe fazer duas coisas na vida: trabalhar e
discutir.Será que não há outra válvula de escape para toda essa sua energia?
-Não é que eu goste de discutir, mas às vezes...
Ela não tinha coragem de voltar-se e encará-lo.Travis, porém, a fez virar-
se, segurou-a pela cintura e colocou-a sentada no banco.
-Às vezes...?-repetiu Travis, sentando-se ao seu lado.Sem largar-lhe a
cintura, tirou-lhe o boné e pôs-se a admirar seus cabelos castanhos, que caíam
soltos sobre os ombros.
-Preciso trabalhar...
Ele fingiu que não ouviu e começou a acariciar-lhe os cabelos.
-Sempre gostei de cabelos castanhos.Sempre gostei muito...-disse,
puxando-a para bem perto.
Adélia procurava por todas as formas um meio de defender-se do forte
desejo que sentia de entregar-se àquela carícia.Por fim, conseguiu afastar o
corpo e dirigiu a Travis um olhar firme.
-Não vê que está tomando meu tempo?
O riso com que ele respondeu foi sua salvação, pois todo o seu impulso para
abandonar-se desapareceu, deixando no lugar apenas raiva.Ela fez menção de
levantar-se, mas Travis segurou-a com força e murmurou:
-Você se esquece de que quando fica brava eu perco o controle e então não
resisto mesmo.
Mal acabou de falar,beijou-a na boca; enquanto uma de suas mãos alisava-
lhe os cabelos, a outra deslizava sob sua camiseta para afagar-lhe a pele macia
das costas.
Como por encanto, a raiva esvaeceu-se e um desejo avassalador apoderou-se
dela.Não lhe ocorreu mais defender-se nem lutar contra as sensações
deliciosas que se espalhavam por todo o seu corpo.Inebriada por aquele contato
febril, entreabriu os lábios para deixa-lo arrancar de si todo o mel, toda
energia, toda força.Mais do que na primeira vez em que fora beijada.
Adélia sentiu-se verdadeiramente mulher.Uma dor difusa, uma espécie de
angústia inexplicável nascia do âmago de seu ser.Ela gemeu, lamentando
vagamente que aquele instante mágico não pudesse perdurar para sempre.
Como que confirmando seu receio, Travis afastou os lábios.Adélia abriu os
olhos, certa de que não conseguiria esconder mais seus sentimentos: estava
irremediavelmente apaixonada.
-Eu acho...-começou Travis devagar, numa voz muito suave –que isso é
melhor que ficar o tempo todo discutindo.
Ele abaixou os olhos para contemplar seus lábios ainda úmidos, suas faces
coradas, sua expressão de puro encantamento.Então, sorriu e comentou:
-Parece que essa é a única forma de fazer você ficar quieta um pouco.
Acariciou-lhe os cabelos, passou os dedos levemente por seu rosto e
levantou-se.Sentada no banco, incapaz de emitir um som, ela ficou vendo-o
afastar-se.Num gesto instintivo, levou a mão aos lábios como que para sentir
ainda o calor deixado pela boca de Travis e suspirou profundamente.
Depois de muito tempo, ergueu-se devagar e procurou retomar seus
afazeres.Emoções opostas agitavam-lhe a mente.Estava feliz por ter sido
contratada para trabalhar na Fazenda Campos Reais.Assim poderia permanecer
junto a terra e aos animais, que tanto amava, e viver com o tio que a tratava
com tanto carinho.Mas isso significava também que estaria em contato com
Travis; ouviria suas palavras às vezes irônicas, às vezes doces e sentiria sua
presença forte e poderosa, que a atraia irresistivelmente.Não podia,
entretanto, alimentar esse amor em seu coração, pois, para ele, não passava de
uma empregada ingênua e bonita que não lhe despertava senão desejo.Precisava
lutar para dominar seus sentimentos e manter-se à distancia.Nunca mais aquele
beijo tão ardente poderia repetir-se.Travis pertencia o outro mundo, no qual
ela jamais conseguiria entrar.
Dividida entre felicidade e angustia, Adélia passou o resto do dia
trabalhando como um autômato e esforçando-se para que o tio Paddy não
percebesse nada.À noite, depois que o velho se recolheu, tentou sentar-se na
sala e ler um livro, mais sua mente não conseguia concentrar-se nas palavras
impressas.Então resolveu tomar um banho morno e deitar-se, porém o sono
recusou-se a vir.Impaciente, levantou-se, vestiu uma calça de brim e uma
camiseta e saiu para respirar um pouco do ar puro e fresco da noite.
Contemplou por uns instantes o céu estrelado e caminhou até o estábulo,
pensando em olhar os cavalos.Ao entrar, acendeu uma luz bem fraca e deu
alguns passos em direção à baia de Majestade.Nesse momento ouviu uma tosse
de homem.Olhou em volta e notou que o som vinha de um cercado vazio, onde só
avistou um monte de feno.Aproximando-se, viu alguém deitado no feno e
assustou-se.
-Meu Deus! O que aconteceu? –Inclinou-se sobre o homem e percebeu que
ele estava completamente bêbado; indignada, ergueu-se rapidamente e
exclamou:-George Johnson! Que papel!
-Ah, é você? A queridinha do titio...é? –ele balbuciou com voz enrolada, e
começou a levantar-se com dificuldade. –Veio me visitar? Quer beber um pouco
comigo, bonequinha?
George falava e ria ao mesmo tempo, enquanto se aproximava dela, a passos
trôpegos.Assustada, Adélia pensou em gritar, mas logo controlou o medo e
achou que não seria necessário incomodar os outros.Afinal, ele estava muito
bêbado e não teria força para agredi-la.Resolveu então passar-lhe um sermão
para leva-lo a retirar-se dali.
-Não vim beber nem visitar você.Aliás, não tenho a menor paciência com
bêbados.É melhor você ir saindo.Vá esfriar a cabeça em outro lugar.
-Dando ordens, bonequinha? Não sou digno da sua companhia?-George ria e
olhava-a de alto a baixo, com uma expressão bestial, que se tornava mais
repugnante ainda quando ele passava a língua pelos lábios.
-Não se aproxime, seu porco imundo!
-Por que não quer beber comigo? Quer fazer alguma coisa mais
interessante, então?
Antes que ela pudesse esboçar um movimento de defesa, o homem agarrou-
a pelos ombros e beijou-a na boca.Adélia prontamente reagiu e tentou
empurra-lo, mas embora estivesse embriagado, George era muito forte e a
excitação parecia torna-lo invencível.Desesperada, ela aplicou-lhe um violento
pontapé no tornozelo e ele parou de beija-la, mas não a largou.
-Porco imundo! Nojento! Asqueroso!Tire essas mãos sujas de cima de mim!
Solte-me, seu verme!
Ela gritava e se debatia, mas não adiantava.Sua reação deixava-o ainda mais
sequioso e firme.
-Calma, gracinha! Fique boazinha, senão vai se machucar.-disse o bêbado,
rindo, e empurrando-a para o monte de feno.
Embora lutasse furiosamente, ela caiu e percebeu, com horror, que George
se lançava sobre seu corpo, como um animal.Mesmo sabendo que não tinha
forças para afasta-lo, continuou a defender-se, distribuindo murros, pontapés
e dentadas.
Quando, apesar de sua resistência, ele a beijou de novo na boca, ela cravou-
lhe as unhas nos braços com toda a energia de seu desespero.Ferido, ele
ergueu um pouco a cabeça para xinga-la, e ela aproveitou para soltar um grito
de terror, que rasgou o silencio da noite.
George esbofeteou-a com força e tapou-lhe a boca com a palma da mão,
enquanto com a outra mão rasgava-lhe a blusa e agarrava-lhe os seios com
brutalidade.Adélia aos poucos perdia as forças e compreendia que estava
totalmente indefesa, à mercê do selvagem que a violentava.Mal podia respirar,
subjugada por aquele corpo enorme.
“Meu Deus, fazei com que alguém me ajude nessa hora”, rezou mentalmente,
tomada pela dor.
Como que em resposta à sua prece, o peso do homem desapareceu de
repente.Uma voz encolerizada e sons de pancadas fortes chegaram-lhe aos
ouvidos.Ela abriu os olhos e ergueu-se, tremula.Então viu, sob a luz fraca do
estábulo, a silhueta alta e forte de Travis, que estava literalmente esmagando
George.Movido pelo ódio, lançava-o ao chão, para apanha-lo e esmurra-lo
novamente.O outro não resistia mais, pois já estava inconsciente.O sangue
corria-lhe pelas faces, manchando-lhe a camisa imunda.
-Você vai mata-lo!-gritou Adélia ao dar-se conta do que estava acontecendo
e correu a agarrar o braço musculoso de Travis.-Pelo amor de Deus, pare com
isso!
Ele a afastou e olhou-a longamente, o belo rosto transtornado pela raiva e
pela dor, os profundos olhos azuis injetados de sangue.Seu peito poderoso
subia e descia, ao ritmo apressado de sua respiração ofegante.
Adélia estremeceu e, com os olhos fitos naquele rosto endurecido, pediu a
Deus que a fúria de Travis jamais se dirigisse contra ela.
-Você está bem? –perguntou ele, quase sem mover os lábios.
-Sim...-respondeu, e começou a soluçar.Abaixando os olhos, viu que as mãos
dele estavam sangrando.-Oh, as suas mãos...
-Não se preocupe com isso.
Travis segurou-a pelos ombros, e examinou-a.Viu a blusa rasgada, as marcas
dos dedos do bêbado em sua pele macia, o cabelo desalinhado, a expressão
assustada.Um ódio mortal brilhou em seus olhos.
-O que ele fez?
-Só me assustou.Graças a Deus você chegou a tempo.
Ele aninhou-a em seus braços e acariciou-lhe os cabelos, como se tentasse,
ao mesmo tempo, acalmar-se e tranqüiliza-la.
-Ele está vivo? –perguntou Adélia, com voz quase inaudível.
Travis respirou fundo e largou-a para ir até o canto do estábulo onde
George jazia estendido, com a boca meio aberta, o rosto ferido.
-Está vivo, sim.É uma pena.Esse desgraçado merecia morrer.Vou entrega-lo
à policia amanhã.
-Não! Não faça isso!
-Mas você não entende que esse monstro cometeu um crime? Ele tentou
violentar você.
-Sei muito bem quais eram as intenções dele, mas não podemos chamar a
policia.Não quero que Tio Paddy saiba, pois iria se preocupar comigo.Não vim
aqui para causar problemas.Por favor, não deixe esse...incidente se espalhar.
Travis abriu a boca para argumentar, mas, diante do olhar assustado e
suplicante de Adélia, resolveu punir George de outra forma.
-Está bem.Vou mandar dois homens expulsa-lo da propriedade.Agora vamos
para casa.
Passando carinhosamente o braço sobre seu ombro, conduziu-a para porta
do estábulo.Nesse momento, Adélia começou a sentir os efeitos do esforço que
havia feito para livrar-se de seu atacante.Suas pernas estavam bambas,
incapazes de mantê-la em pé, e sua vista pouco a pouco escurecia.
-Acho que vou desmaiar... –Sua voz era um murmúrio fraco e soava estranha
para si mesma.Mal acabou de falar, mergulhou numa treva total e perdeu a
consciência.
A semana seguinte foi a mais longa que Adélia havia enfrentado em todo a
sua vida.Travis e Paddy, os dois homens mais importantes de seu pequeno
mundo, estavam ausentes.
O tio havia seguido para Flórida com Majestade, pois o cavalo devia
apresentar-se na corrida do Grande Prêmio Flamingo.Sem ele, os dias custavam
a passar, as noites pareciam não ter fim e a casa tinha o aspecto de um
mausoléu, silenciosa e vazia.Só então Adélia percebeu como amava aquele velho
carinhoso e doce, que a recebera com tanto afeto.
Quanto a Travis, partira para Nova York a fim de resolver alguns problemas
administrativos de Campos Reais.E sua ausência pesava-lhe na alma como
chumbo.Não via a hora de ele voltar e ao mesmo tempo morria de medo de não
conseguir controlar o desejo, cada dia mais forte, de lançar-se nos braços dele
e deixar-se ficar aninhada, sobre aquele coração que batia tão forte e
descompassado quanto o seu sempre que estavam juntos.
“Será que ele também sente o mesmo que eu?”, perguntava-se sem parar.E
ora respondia-se afirmativamente, pondo-se a sonhar com um futuro de infinita
felicidade, ora decidia-se pela negativa e não podia impedir que lágrimas
amargas lhe rolassem pelas faces.
No final da semana, ao longo de mais uma noite solitária na casa vazia,
Adélia acendeu a lareira, embora não fizesse muito frio, e aconchegou-se numa
poltrona.Estava feliz porque Paddy voltaria no dia seguinte, mas não era a
imagem do tio que lhe vinha à mente, e sim a de Travis.
Embalada pela esperança de que ele voltasse logo e a saudasse com um longo
carinho, adormeceu.Então sonhou que Travis a tomava nos braços e a beijava
ardentemente.Depois, viu-o afastar-se um pouco para murmurar palavras de
amor, enquanto lhe acariciava os cabelos, o rosto, as costas.E ela não sabia se
dava mais atenção aos lábios dele, às doces juras que lhe fazia, ou ao calor de
suas mãos percorrendo-lhe o corpo.
Adélia dormia feliz, o rosto iluminado pelo sonho bom que lhe povoava a
mente e pelas chamas suaves que se desprendiam da lenha na lareira.
-Adélia!
Uma voz conhecida soou muito longe e ela se acomodou na poltrona,
recusando-se a despertar.
-Acorde!
Dedos carinhosos afastaram-lhe os cabelos da face e ela abriu os olhos,
relutando, para deparar com Travis à sua frente.Levou alguns segundos para
compreender que aquela presença tão querida não era um sonho.Então
endireitou-se na poltrona, fechou o decote da camisola azul-clara que vestia e
olhou para ele.
-Eu sentei aqui para descansar um pouco e acabei pegando no sono.-
desculpou-se.
-Não sei como você conseguiu dormir nessa posição, com a cabeça caída
para o lado.-Travis sentou-se no braço da poltrona.
Como sempre, aquela proximidade deixou-a feliz e angustiada, e ela
procurou afastar-se um pouco mais para o lado.”Preciso separar muito bem
sonho da realidade”, pensou, lutando para dominar o desejo ardente que
começava a percorrer-lhe o corpo.
-Você estava com uma expressão tão feliz...Estava sonhando com alguma
coisa boa?
-Não sei...Ah, sim... sonhei que tio Paddy tinha voltado.-gaguejou,
enrubescendo e baixando a cabeça.
-Ele deve chegar amanhã.Eu também gostaria de ter ido para Flórida, mas
tinha muita coisa para resolver em Nova York –comentou, tomando-lhe o rosto
com a mão e obrigando-a a encara-lo.-Você sente muito a falta dele, não é?
-Sinto.E de Majestade também –respondeu, enquanto mentalmente
completava:”E de você...”
Travis pareceu captar seu pensamento, pois endereçou-lhe um sorriso
luminoso, cheio de ternura.Adélia correspondeu-lhe, mas logo se lembrou de
que estavam sozinhos e que precisava controlar seus impulsos.Resolveu então
falar do Grande Prêmio, dando à sua voz um tom casual:
-Achei uma pena Majestade não ter ganho a corrida.
Adélia alisava o tecido da camisola, enquanto Travis continuava mexendo em
seus cabelos.
-É, foi uma pena...-repetiu ele, meio enlevado pelo momento.Em seguida,
como que voltando a si, comentou:-Mas teve um bom desempenho.Para vencer,
faltou-lhe ter paciência e usar uma boa tática.
Era evidente que suas palavras não se referiam apenas a uma corrida de
cavalos, porém Adélia não conseguia atinar com seu sentido oculto.Antes que
pudesse refletir sobre isso, ele enfiou a mão no bolso e tirou a corrente de
ouro.
-Quase me esquecia de lhe entregar isto.
-Você mandou consertar!
-Não disse que mandaria?
-Sim...É que...obrigada.-balbuciou, estendendo a mão para pegar a corrente.
Ao invés de entrega-la, no entanto, ele abriu o fecho e colocou-a em seu
pescoço.Os dedos dele em sua pele eram quentes e suaves, e Adélia baixou os
olhos para não encara-lo tão de perto.
-Melhor agora? –perguntou ele, tirando as mãos de seu pescoço.
-Muito melhor.
-Bem, agora vou sair.Feche a porta e vá dormir.Você parece cansada.
Ele atravessou a sala, mas parou junto à porta e olhou para trás.Adélia
fitava-o sem conseguir dizer nada.Os cabelos caíam-lhe sobre os ombros,
refletindo o fogo da lareira.
-Você parece uma criança.Precisa receber um beijo toda noite, antes de
dormir –disse com voz suave e voltou-se novamente em sua direção.
Antes que ela pensasse em evitar, Travis afagou-lhe a nuca, o braço, as
mãos e aproximou-se de seu rosto.Ardente de desejo, Adélia entreabriu os
lábios, à espera, mas ele beijou-lhe suavemente as faces e afastou-se.Ela
enrubesceu e ficou olhando-o até vê-lo sair, fechando a porta atrás de si...
“Por que será que ele riu quando falou que, para vencer, é preciso ter
paciência e usar uma boa tática?”, perguntou a si mesma.
Capítulo V
Capitulo VI
Capitulo VII
-Por que você fez isso? Como pode dizer para meu tio que vai se casar
comigo? Por que mentiu assim, descaradamente?
-Não menti –respondeu ele, com toda a calma.-Eu quero mesmo me casar
com você.
-O que é que você está pensando? Não devia ter dito aquelas coisas –
continuou ela, como se não o tivesse ouvido.-Isto que você fez foi uma grande
maldade.Tio Paddy está mal, sofrendo muito, e não merece que você abuse da
confiança dele.Você não tinha o direito de prometer que vamos nos casar.
-Controle-se e escute –ordenou Travis, segurando-a pelos ombros. –Eu disse
o que ele precisava ouvir.E, se é para salva-lo, você vai se casar comigo.
-Não.Não quero participar desta farsa.A idéia da mentira foi sua... Agora
você que se arranje.Mas não faça nada que agrave ainda mais o estado de meu
tio, por favor.
-Ele não significa nada para você? Será que é tão egoísta e tem o coração
tão duro que não pode fazer um pequeno sacrifício por ele?
Adélia sentou-se numa cadeira com o olhar perdido.Era grande a confusão
em sua mente.Queria uma pausa para refletir, mas Travis continuou falando:
-Hoje à tarde nos casaremos ao lado de Paddy, como eu lhe prometi.E você
vai deixar claro que está muito feliz, porque era justamente o que
queria.Depois, quando ele estiver fora de perigo, você pode pedir o divórcio.
“Tio Paddy quase morrendo... Travis dizendo que quer se casar comigo e já
avisando que podemos nos divorciar em seguida... Oh, preciso de alguém para
me dizer o que devo fazer...”, pensava, transtornada com a situação.
Tudo o que mais desejava era pertencer a Travis, mas nunca lhe passara
pela cabeça que o casamento fosse o caminho normal para chegar a isso.Jamais
sonharia que um dia ele pudesse propor-lhe que se casassem.E agora só o fazia
para salvar Paddy, não para dar-lhe amor.Tanto era assim, que se apressara em
falar sobre divorcio, pronunciando a palavra com toda a naturalidade.Como
podia pensar em divorcio antes mesmo de pôr a aliança em seu dedo? Adélia
respirou fundo e procurou refletir friamente sobre a situação, porém estava
angustiada demais.
“Eu daria tudo para ser sua, mas não desse modo... Deve haver uma saída...
Eu tenho de encontrar uma solução”.
Com voz a voz mais firme que conseguiu ter nesse momento, declarou
secamente:
-Sou católica e não posso me divorciar.
-Então poderá pedir a anulação do casamento.
As palavras de Travis tiraram-lhe o resto das forças que ela ainda
procurava conservar.
-Anulação? –repetiu apalermada.
-Sim, anulação.É um processo relativamente simples, quando a união não se
consuma.É só uma questão de burocracia.
Travis falava com voz calma, como se tratasse de negócios, mas logo
indicava que estava começando a se impacientar.
-Pelo amor de Deus.Será que você não pode fingir para o bem de Paddy?
Não vai lhe custar nada! E, para ele, é uma questão de vida ou morte.Seja
realista!
Segurou-a pelos ombros, tentando controlar a raiva, e fitou-a bem nos
olhos, que expressavam medo e preocupação, confusão e insegurança.Sem ter o
que responder, ela baixou as pálpebras e deixou as lágrimas correrem
livremente por seu rosto pálido.Travis abraçou-a, conduzindo-a até um sofá.
-Desculpe.Gritar com você não vai adiantar nada, não é mesmo? Sente-se
aqui comigo.Já faz algumas horas que você está se controlando...Pode chorar,
acho que vai lhe fazer bem...Depois a gente conversa.
-Não quero chorar.Não adianta nada chorar.Solte-me –ela pediu, mas ele a
abraçava firmemente. –Tenho muito medo...
-Mas eu estou com você.
Ela o olhou, desesperada, e pôs-se a soluçar convulsivamente, empapando de
lágrimas a camisa de Travis, que a amparava em seu sofrimento.
-É a primeira vez que choro desde que meus pais morreram... –disse de
repente, numa voz entrecortada.
Ele se manteve em silêncio, abraçando-a e acariciando seus cabelos.Aos
poucos, Adélia acalmou-se e, por fim, após um longo suspiro, olhou-o
demoradamente e murmurou:
-Faço o que você achar melhor.
Toda a angustia de Adélia se desfez quando viu que o tio havia recuperado a
cor e apresentava um aspecto quase normal.A voz ainda estava um pouco fraca,
mas saía praticamente sem esforço.
-Já estou bem, não preciso mais desse monte de fios e aparelhos –disse o
velho, rindo, enquanto Adélia lhe beijava a mão.
A visita foi breve e, tão logo saíram do quarto, os dois dirigiram-se para a
saleta onde tinham conversado no dia anterior.
-Hoje não podemos ficar muito tempo com ele.O médico falou que Paddy
precisa descansar muito ainda, e vê-la de vez em quando...
-Mas eu não vou cansá-lo.Só quero ficar mais um pouquinho com ele.
Travis sorriu, acariciando-lhe o rosto.
-Tenho de voltar para a fazenda agora, mas Trish logo vem busca-la para
irem as compras.Acho que ela sabe melhor do que eu o que você
precisa.Enquanto a espera, você pode ficar com Paddy.
-Você é muito bom fazendo essas coisas todas por mim... –Adélia tocou-lhe o
braço timidamente.-Não sei como lhe agradecer.
-Ora, deixe disso... –Travis tirou umas notas da carteira e colocou-as na mão
dela.-Já providenciei um depósito em sua conta no banco, mas acho que vai
precisar de dinheiro também, além de cheques.
-Mas eu não posso...
-Não discuta, por favor.E não se esqueça de comprar umas bolsas... acho que
já está na hora.Vejo você à noite.
Travis afastou-se pelo corredor do hospital e ela ficou olhando-o,
novamente atormentada por pensamentos confusos.
Capitulo VIII
Capitulo IX
Poucos dias depois, Paddy voltou a viver em sua própria casa, e Adélia sentiu
muito a sua falta, embora fosse visitá-lo todas as tardes.Finnegan também se
afeiçoara ao velho e passou a dividir seu tempo entre as duas casas.
Travis não fez nenhum comentário sobre Margot Winters, nem sobre o que
Adélia tinha dito a ela, e a relação dos dois voltou a esfriar novamente.Quando
compareciam a alguma recepção ou a qualquer lugar onde houvesse outras
pessoas, ele a tratava com a atenção que se esperava de um recém-casado.Mas,
assim que chegavam em casa, permanecia distante, demonstrando-lhe apenas o
afeto que teria naturalmente por uma prima ou uma velha amiga.
A depressão e a frustração que essa atitude lhe causava mantinham-se
ocultas, pois Adélia reagia conforme Travis desejava, retribuindo-lhe a
frieza.Procurava manter-se sempre calma, pois sabia que ele também se
controlava ao máximo para não dar margem a qualquer discussão.
Em algumas ocasiões, tinha a impressão de que eram apenas dois fantoches
presos a fios invisíveis, desempenhando papéis absolutamente
estranhos.Desesperada, perguntava-se até quando suportariam aquela situação,
e não encontrava resposta.
Numa tarde quente de verão, ao atender a campainha da porta principal,
deparou com a figura elegante de Margot Winters.Sua calça de brim e
camiseta branca contrastavam violentamente com o fino vestido de seda rosa
da visitante.
Ao abrir a porta, Margot entrou sem esperar convite, deixando o ambiente
todo perfumado.
-Boa tarde, sra.Winters –cumprimentou Adélia decidida a recebe-la como
uma anfitriã bem-educada.-Entre e sente-se, por favor.Travis deve estar no
estábulo, mas posso mandar chamá-lo.
-Não é necessário –respondeu a outra, sentando-se muito à vontade numa
poltrona, como se estivesse em sua própria casa.-Vim para conversar com você
mesma.Ana! –chamou, virando-se para a velha criada, que apareceu à porta.-Eu
aceito um chá, por favor.
Ana olhou para sua patroa, que apenas consentiu com a cabeça, e saiu.
-Vou direto ao assunto. –Margot estendeu as mãos nos braços da poltrona e
encarou Adélia.-Você deve saber que eu e Travis estávamos praticamente de
casamento marcado quando tivemos uma... briguinha, há alguns meses.
-Não diga! –exclamou Adélia com ironia, demonstrando pouco interesse pelo
assunto.
-Sim, é verdade.Todo mundo sabia.Mas resolvi ir para a Europa, para dar-
lhe uma lição.Achei que, enquanto eu estivesse fora, ele teria tempo para
pensar melhor e sentir minha falta.Assim quando eu voltasse, nós nos
casaríamos.-Margot fez uma pausa para avaliar o efeito de suas palavras e
prosseguiu: -Quando vi nos jornais a fotografia dele beijando uma garotinha,
pensei: “Ora, não é nada.A imprensa vive aumentando os fatos”.Mas quando ouvi
dizer que ele realmente ia se casar com uma funcionária da fazenda, achei que
devia voltar e esclarecer as coisas.
-E será que essa garotinha... essa funcionária poderia perguntar o que
pretende fazer, sra.Winters?
-Claro, é bem simples.Assim que terminar esse caso, eu e Travis podemos
realizar nossos planos.
-A senhora chama meu casamento de caso?
-Basta você se olhar, menina.É evidente que Travis só se casou para me
fazer voltar.Ou você achava que ia ficar com ele muito tempo? Você não tem...
o estilo, a sofisticação necessária para viver no ambiente dele.
Adélia teve ímpetos de erguer-se da cadeira e pôr aquela mulher para fora,
mas resolveu esperar um pouco e ver até onde ela seria capaz de
chegar.Margot, porém, parecia não ter mais nada a dizer.
-Sra.Winters, vou explicar-lhe uma coisa: Travis casou-se comigo por amor,
não porque queria alguém de volta.Verdade é que eu não tenho a sua elegância,
nem sou tão fina, mas tenho uma coisa que a senhora não tem: uma aliança no
dedo.
Nesse momento, Ana entrou com a bandeja,Adélia levantou-se e dirigiu-se à
criada.
-A sra.Winters já está de saída.Não precisa trazer o chá.
-Pode brincar de dona de casa por enquanto –comentou Margot, enquanto se
retirava. –Você vai voltar para o estábulo mais cedo do que está pensando.
Ana pôs a bandeja numa mesinha e foi fechar a porta.Ao voltar, piscou
sorridente para Adélia.
-Essa mulherzinha não tem jeito! Além de desrespeitar todo mundo,ainda é
extremamente presunçosa.
-Não vamos dar muita importância a ela.E que essa visita fique só entre nós
duas, está bem?
-Se prefere assim...
-Prefiro...
Durante vários dias Adélia esteve com os nervos à flor da pele.Sua relação
com Travis estava ainda mais fria, e eles quase não trocavam palavras.
Uma noite, após o jantar, Travis lia o jornal numa poltrona da sala, quando
ela entrou e anunciou:
-Vou dar uma volta com Finnegan.
-Faça como quiser –respondeu ele, sem levantar os olhos do jornal.
-Faça como quiser! –respondeu ela, explodindo toda sua raiva com a
situação.-Não agüento mais ouvir você falar isso.Não vou fazer como quiser!
Não quero mais fazer como quiser, será que você não percebe?
-Mas é ridículo você dizer isso.
-Ridículo coisa nenhuma! Você é que não quer entender!
-O que houve?
-Nada, não há nada errado.
-Então pare de se comportar como uma megera.Estou cansado desse seu
jeito.
-Uma megera? –Adélia estava absolutamente furiosa com o comentário de
Travis.
-Exatamente –respondeu ele, tentando ainda aparentar calma.
-Bem, se você está cansado do meu jeito, pode deixar que eu desapareço do
seu caminho.
Sem esperar por resposta, Adélia saiu com o cachorro para tomar ar fresco
da noite e andou até que suas pernas, exaustas, se recusaram a dar mais um
passo.Então voltou para casa, cabisbaixa, subiu a escada pé ante pé, e
conseguiu pegar no sono.
Quando acordou, de manhã, sentia-se angustiada.Sabia que não tinha sido
justa com ele e que, ainda por cima, fizera um papel de boba.Ao invés de gritar,
devia ter enfrentado a situação e procurado esclarecer as coisas.
“Agora é tarde para consertar o erro de ontem”, pensou, enquanto vestia
sua roupa de trabalho.”Mas posso tentar me comportar melhor daqui para a
frente”.
Quando desceu a escada, já estava decidida a pedir desculpas e a agir como
a esposa mais dedicada do mundo, mas Ana avisou-a de que Travis já tinha
saído.
Adélia suspirou e resolveu lançar-se ao trabalho com afinco, para não
pensar mais em sua situação.Perto do meio-dia, quando já estava menos
deprimida e fisicamente exausta, ouviu alguém chamá-la:
-Adélia.Preciso falar com você.
-Travis! –Ela voltou-se e segurou-a pelo braço.-Desculpe o meu jeito ontem
à noite.Eu não tinha motivos para agir daquela forma.Desculpe, por favor.Mas
por que você está rindo?
-Você se desculpa do mesmo jeito como fica com raiva.É fascinante.Agora
esqueça –respondeu ele, abraçando-a –Todo mundo tem momentos de mau
humor.Veja ali adiante.
Adélia olhou na direção apontada e avistou uma égua muito bonita, de
brilhantes pêlos castanhos, perto da cerca da pista.
-Oh, é a égua mais linda que já vi!
-Você sempre diz isso.
-Com quem ela vai cruzar?
-Isso é problema seu.A égua é sua.
-Minha?
-Queria dá-la de presente, no seu aniversário, no mês que vem –respondeu
ele, passando a mão em seu rosto.-Mas achei que você estava precisando de um
agrado e então resolvi dar um pouco antes.
-E depois de tudo o que eu fiz, você ainda... quis me dar um presente? Eu
não mereço...
-Confesso que ontem à noite pensei mais em dar-lhe umas palmadas.Depois
pensei melhor e...
-Oh, querido! –disse ela, comovida, enquanto se abraçavam.-Nunca me deram
um presente tão maravilhoso.-E procurou os lábios dele, apaixonadamente, mas
ele se virou e ofereceu-lhe a face.
-Agora é melhor você ir se acostumando com ela.-Travis largou-a e apontou
para o animal.-À noite conversamos melhor.
Ela ficou observando-o afastar-se e mordeu os lábios para não chamá-lo de
volta.Sentia-se rejeitada.”Ele não gosta de mim... e não sei como fazê-lo me ver
como sua mulher”, pensou.
Capitulo X
FIM
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