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Já é sobejamente conhecido, mas não custa repetir, que a palavra “estética” vem do
grego aesthesis e seu principal significado é o sentir, um “sentir não com o coração ou com os
sentimentos, mas com os sentidos, rede de percepções físicas” (SANTAELLA, 1994, p. 11). A
estética, portanto, define a ciência da percepção de modo geral e funciona como um sinônimo
de conhecimento através dos sentidos – definição esta que encontra suas raízes na obra
"Reflexões filosóficas sobre algumas questões pertencentes à poesia", de Baumgarten (1735).
De acordo com seu fundador, a estética seria a equivalente sensual da lógica. Isso significa
que, enquanto a lógica trata do saber analítico, baseado no raciocínio, a estética lida com um
outro tipo de conhecimento, aquele que se realiza pela mediação dos sentidos, por meio da
sensorialidade. O que se tem aí, portanto, é um modo de percepção em que o todo não é
apreendido e reconhecido para propósitos práticos, nem está apto a se submeter a
procedimentos estritamente analíticos, pois depende de uma capacidade sintética, justo aquela
que os sentidos nos fornecem quando atentamos especialmente para os aspectos qualitativos
de que a realidade perceptiva está prenhe, tais como: cores, luzes, formas, pulsações, texturas,
volumes, acelerações, retardamentos, temperaturas, atmosferas, durações, proximidade,
distância, projeções, espelhamentos, expansões, fluxos, ordenamentos, misturas, palpitações,
sequencialidades, animações e muitos outros mais. (ibid., 2011, p. 13-14)
Tomando como ponto de partida a noção acima especificada de estética, o objetivo
deste artigo é discutir os conceitos necessários para a elaboração de uma estética de cunho
semiótico, ou seja, uma estética alinhada à noção de estética desenvolvida por C. S. Peirce nas
relações por ele estabelecidas com a semiótica. Pretende-se que, com isso, possam ser expostos
os fundamentos para se pensar essa estética semiótica como basilar para uma semiótica da arte.
Antes de tudo, entretanto, é preciso considerar alguns pressupostos para que possamos chegar
à estética peirciana pisando em terreno mais seguro e confiável.
Da fenomenologia à semiótica
As muitas décadas que Peirce levou para o amadurecimento de sua obra ficam explicadas
pelo fato de que ele se impôs como tarefa desenvolver uma doutrina dos signos como propedêutica
para o segundo ramo da semiótica, o estudo dos tipos de raciocínio e argumento, a abdução (que
no início ele chamou de hipótese), a indução e a dedução. Estes, por sua vez, estão na base da
metodêutica, o terceiro ramo da semiótica, que tem por função estudar os princípios lógicos que
regulam os métodos das ciências. Contudo, como ponto de partida ainda mais recuado, ele se
impôs a primordial tarefa de estabelecer uma tabela formal e universal de categorias a partir de
uma radical análise de todas as experiências possíveis.
Toda a obra de Peirce está alicerçada nas suas famosas três categorias que, com o tempo,
ele esvaziou de quaisquer conteúdos paralelos aos seus sentidos puramente lógicos, chamando-as
de primeiridade, secundidade e terceiridade. Como breve bússola de orientação para o leitor, basta
informar quais são os territórios de abrangência de cada uma das categorias. Onde houver acaso,
indeterminação, vagueza, indefinição, possibilidade, originalidade irresponsável e livre,
espontaneidade, frescor, potencialidade, presentidade, imediaticidade, qualidade, sentimento, aí
estará a primeiridade. Já a secundidade corresponde ao determinado, terminado, final, objeto,
correlativo, necessitado, reativo, estando ligada às noções de relação, polaridade, negação,
matéria, realidade, força bruta e cega, compulsão, ação-reação, esforço-resistência, aqui e agora,
oposição, efeito, ocorrência, fato, vividez, conflito, surpresa, dúvida, resultado. A terceiridade é o
meio, devir, o que está em desenvolvimento, dizendo respeito à generalidade, continuidade,
crescimento, mediação, infinito, inteligência, lei, regularidade, aprendizagem, hábito, signo (EP
1, p. 280). Assim, por exemplo, o fio da vida é um terceiro, devir sem começo nem fim; o destino
que corta a vida e a determina, força bruta e cega, é o segundo; seu começo indefinido,
indeterminado, frescor da potencialidade livre e espontânea de tudo que apenas começa, é o
primeiro.
A doutrina peirciana dos signos ou semiótica está inteiramente baseada nas três categorias
e não há como compreender as sutilezas de suas inúmeras definições e classificações de signos,
sem um conhecimento cuidadoso da fenomenologia. Definida como a descrição do phaneron
(aquilo que se apresenta à mente), deve ser entendida dentro de um paradigma bastante distinto
da fenomenologia continental de Husserl.
As ciências normativas
Peirce não parou aí. Para ele, a lógica não é autossuficiente. Se todo pensamento lógico
entra pela porta da percepção e sai pela porta da ação deliberada (CP 5.212), a lógica deve estar
indissoluvelmente ligada à ética. Em um salto de originalidade ainda maior, segundo Peirce, o fim
último da ética não reside em si mesmo, mas no admirável estético. O summum bonum da espécie
humana encontra-se, portanto, naquilo que é admirável, sem quaisquer razões ulteriores. Assim,
a fenomenologia fornece as bases para essas três ciências que tratam das relações de finalidade
dos fenômenos, em sua secundidade cujas finalidades estão, respectivamente, na qualidade de
sentimento (estética), na ação ou conduta (ética) e na representação ou pensamento (lógica
concebida como semiótica).
Com as ciências normativas, estavam sendo repensando os fins, propósitos, valores, metas
e ideais que atraem e guiam a conduta deliberada. Embora tenha usado a nomenclatura tradicional
-- estética, ética e lógica --, Peirce buscou dar a essas ciências significados originais. A lógica,
para ele, deve ser ocupar do raciocínio como atividade deliberada, tendo por objetivo discriminar
formas boas ou más de raciocínio. Ela estabelece criticamente as regras que devem ser seguidas
ao raciocinar, mas precisa recorrer ao propósito ou meta que justifique essas regras. "A lógica é o
estudo dos meios para atingir a meta do pensamento, mas é a ética que define a meta" (CP 2.198).
É importante frisar que, diferentemente da tradição, para a qual a estética é a ciência do
belo, Peirce viu nisso um grande empecilho para a compreensão mais profunda do papel a ser
desempenhado pela estética, ou seja, sua consideração como a ciência do admirável que integra
a noção de espontaneidade e de qualidade de sentimento, enquanto a forma primeira de ser e
de vivenciar a experiência. É a ciência do admirável, visto que sua tarefa é definir os ideais que
guiam nossos sentimentos. Esses ideais, por sua vez, são também guiados por um ideal
supremo: o admirável, summum bonum da vida humana. Por admirável, Peirce queria significar
aquela que deveria ser a finalidade última, o grande guia de toda conduta e pensamento
humanos, independentemente de contextos históricos ou culturais. Nesse sentido, para ele, o
admirável acabou por se traduzir como a busca de crescimento da razoabilidade concreta no
mundo, ou seja, o crescimento da razão criativa.
Com isso, Peirce concluiu que o ideal do admirável, enquanto aquilo que todo ser
humano, em qualquer tempo ou lugar, deve lutar eticamente para alcançar, está no crescimento
da razão criativa. “O mais alto grau de liberdade do humano está, assim, no empenho ético para
a corporificação crescente da razão criativa no mundo” (SANTAELLA, 2006, p. 172; ver
também IBRI, 2016). Para a compreensão do conceito de razoabilidade concreta, não se deve
reduzir a razão à noção estreita do racionalismo. A razoabilidade concreta é aqui concebida
enquanto a razão em processo de crescimento, dinâmica e nunca esgotada. Sua essência é tal
que seu ser nunca é completamente realizado, vive em estado de incipiência e crescimento
porque a própria realidade está em processo evolutivo contínuo (ibid. p. 173). Ao fim e ao
cabo, a finalidade última da razão estética é a de tornar o humano cada vez mais humano.
Diante do que foi aqui exposto, a estética de Peirce pode então ser compreendida tal
qual ele a concebeu, como uma disciplina filosófica que tem por função determinar qual é a
meta suprema da vida humana, o então chamado ideal admirável, summum bonum, e sua forma
é a estética, por excelência. O ideal estético é adotado pela mediação de um hábito de
sentimento; esses hábitos de sentimento estão sujeitos ao autocontrole, à autocrítica e à
heterocrítica. Tal ideal está sempre em desenvolvimento, num processo de autocorreção que
cabe apenas ao tempo; é apenas dessa maneira que a razoabilidade criativa pode crescer.
Ocorre, como consequência, a integração harmônica das faculdades humanas: o
pensamento, via autocrítica; a ação, via autocontrole; e o sentimento, via atração pelo ideal
(PEIRCE, 1985). À estética cabe a determinação do ideal, meta do pensamento, “sendo a
aquisição de hábitos e mudança de hábitos de pensamento, ação e sentimentos, através do
autocontrole e da autocrítica, aquilo que efetiva essa determinação” (ibid., p. 190). O summum
bonum deve ser uma conduta que atrai de maneira universal, um ideal supremo para toda a
humanidade. A estética, então, é concebida como a "teoria da formação deliberada de hábitos
de sentimento em função de um ideal de razoabilidade concreta, cuja criação e sentimento
depende da pequena função de cada um de nós” (ibid., p. 191).
Referências
BORGES, Jorge Luis. Sete noites. São Paulo: Max Limonad, 1983.
IBRI, Ivo. Sementes peircianas para uma filosofia da arte. Cognitio. Vol.12 (2), p. 205-219,
2011.
_______. Linking the aesthetic and the normative in Peirce’s pragmatism: A heuristic sketch.
Transactions of the Charles S. Peirce Society, v. 52, p. 598-610, 2016.
MARQUES, Lauro José Maia. A estética pragmatista. Dissertação de Mestrado. Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, 2000.
PEIRCE, Charles Sanders. Ideais de conduta. Tradução e introdução de Ivo Assad Ibri.
Trans/Form/Ação, São Paulo, 8:79-95, 1985.
_____________________. Collected Papers, vols. 1-6, ed. Hartshorne, Charles & Paul Weiss,
vols. 7-8, ed. Burks, Arthur W. Cambridge, MA: Harvard Univ. Press (citado como CP,
seguido do no. do volume e parágrafo), 1931-58.
____________________. The Essential Peirce, vol. 1, ed. Houser, Nathan & Christian
Kloesel. Bloomington, IN: Indiana University Press (citado como EP1), 1992.
Aline Antunes de Souza é Mestre em Comunicação e Semiótica também pela PUC-SP, sob
orientação da Profa. Dra. Lucia Santaella, Especialista em Estéticas Tecnológicas pela
Cogeae/PUC-SP e Bacharel em Artes Visuais pela ECA-USP. Atualmente, é professora do
programa de Graduação em Publicidade e Propaganda da Universidade Nove de Julho.