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ANÁLISE DO CONTO “O PRESENTE ABSOLUTO”, DE LUIZ RUFFATO

A colonização da América Latina, de acordo com Santiago, aconteceu de forma


violenta. Uma língua, uma religião e uma ideologia foram impostas de maneira a subjugar a
cultura já existente na época. Por vários anos, os latino-americanos viveram sempre da
cópia do que era europeu e só assim eram considerados civilizados pelos colonizadores e
por eles mesmos.
O conto de Ruffato é centrado em uma personagem européia que vive a maior parte
da vida na França e na Alemanha, onde achava que se concentravam a civilização e a
cultura importantes do mundo. Tudo o mais para representava o bárbaro, o terceiro-mundo.
A fábula do conto é sobre essa personagem, que vive uma epifania durante uma
apresentação de tango e decide aprender sobre a cultura latino-americana e ir à Buenos
Aires para conseguir viver novamente essa sensação de transcendência que teve. Ela conta
sua história para um homem no hall do hotel onde está hospedada, em um dia de muita
chuva.
A personagem é francesa, professora de alemão, casada, tem dois filhos e está a
espera de um neto. Aposentada, se contentava em dar aulas, visitar universidades, ser
elogiada pelos artigos que escrevia e passar as férias na praia com a família. Considerava-
se “mediocremente feliz”.
De acordo com Santiago, a personagem é o típico sujeito europeu original e estável.
Julga a cultura do Outro como inferior, colonizada e bárbara. Não havia nela desejo de
conhecer a cultura dos que considerava de incivilizado.
O homem para quem a personagem narra sua história é um personagem secundário
e plano. Ele está em Buenos Aires a trabalho e o dia chuvoso o detém no hall do hotel.
Conhece a personagem principal ali e conversam durante alguns minutos..
A reviravolta na diegese acontece quando a personagem vai a uma apresentação de
tango de um de seus orientandos. Depois da dança dos alunos iniciantes, entra outro casal
na pista e, ao dançarem, despertam na personagem um sentimento inteiramente novo.
Durante a epifania que se manifestou na personagem, ela viu o casal movimentando-se
harmoniosamente, num ritmo um tanto primitivo e sensual e sentiu como se eles estivessem
fora do corpo, em outra dimensão.
Tudo aquilo era contra o que ela aceitava como “sinônimo de bom gosto e elegância”,
mas a cena fixou-se em sua cabeça e ela passou a reparar
à sua volta, às pessoas que a cercava, e percebeu o quanto estava deixando de aproveitar
a vida.
De acordo com Hall, o sujeito pós-moderno é descentrado, fragmentado, entrecortado
por várias culturas das quais tem acesso atualmente. Esse pensamento corrobora com
Bauman, quando afirma que o indivíduo moderno é líquido, sempre em mutação, composto
por várias identidades como um grande quebra-cabeça, formado por várias peças, mas
nunca completo.
O contato com a cultura do Outro modifica o sujeito, e foi isso que houve com a
personagem principal do conto. O choque com a nova cultura abriu os olhos da personagem
para uma nova realidade.
Santiago elucida que a globalização trouxe consigo uma reação defensiva do latino-
americano, que passou a responder a repressão com rebeldia e apropriação cultural. É
através da antropofagia, termo usado por Oswald de Andrade, que o latino-americano
passou a deglutir a cultura do Outro, usando da subversão e da rebeldia para fazer existir
seu espaço de criação cultural. Esse espaço é chamado por Santiago de “entre-lugar”, um
espaço onde o latino-americano desviou-se da norma, destruiu o conceito de unidade e
pureza, transgride e contesta a cultura imposta.
Esse choque com a cultura do Outro, fez a personagem questionar a própria
identidade. Ela sentiu um arrependimento de não ter se lançado
à vida, de nunca ter vivido experiências diferentes, de ter sido sempre “alicerçada na
segurança”, num caminho previsível e sem turbulências, mas também “sem cor e sem
paixão”.
A partir daquele dia, a personagem buscou aulas de espanhol, aulas de tango e tudo
que lhe remetia à Argentina, coisas que antes considerava incivilizadas e de terceiro-mundo.
Porém, queria sentir novamente aquela sensação da apresentação de tango e por conselho
de seu professor de dança, viajou a Buenos Aires.
Já na Argentina, na véspera de sua volta à Europa, quando já estava sem
esperanças de sentir novamente tudo aquilo, encontrou um velho literato pelas ruas do
Jardim Botânico. Ele se dirigiu a ela e, depois de ouvir a história da personagem, indicou um
endereço onde ela deveria procurar por um homem chamado Gérman.
Neste momento, a personagem até brinca com os nomes e diz para o homem do hall
do hotel que o alemão que ela tanto buscava na Europa, estava na verdade ali em Buenos
Aires.
Ela foi ao endereço indicado e perguntou por Gérman. Enquanto esperava, a mulher
imaginou que Gérman, com esse nome de origem alemã, seria alguém mais velho e bem
vestido. Depois o imaginou como louro e atlético e depois como um republicano espanhol.
Gérman não era nada como ela esperava. Achegou-se dela um rapaz bem jovem,
com um terno surrado, vasta cabeleira negra, um rosto duro “de uma beleza estranha e
hostil”, baixo e de ombros largos. Um autêntico portenho, quebrando todas as expectativas
da personagem.
O rapaz não deu muita atenção a ela, achando que se tratava de mais uma turista
comum. A personagem se zangou e perseguiu-o pela pista de dança improvisada do local.
Gérman, então, a pegou pelo braço e no centro do salão começou a dançar. Poucos
segundos depois, aconteceu, já estavam absortos na música e a personagem sentiu-se
transcender. Já não se sentia mais a professora aposentada, mãe, francesa... Ela não
existia mais no presente e nem no futuro, “havia colocado o pé na eternidade”, sua
identidade já não era mais a mesma, ela habitava o que chamou de “presente absoluto”.
A personagem terminou a história dizendo que queria aquela sensação novamente,
pois como ser humano, sempre está em busca do novo, do prazer e de novas experiências.
A personagem tornou-se o que Bauman chama de sujeito líquido, aquele que está
sempre em mutação, sempre buscando novas sensações, novos relacionamentos, novas
vivências, mesmo que de curta duração.

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