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Marcelo Ribeiro dos Santos

TANDIR E MOGUL
Vol. 1: O Despertar dos Drachs

Nº 1: Siga o Dragão

Seriado Eletrônico Mensal de Realismo Fantástico


Esta é uma obra real. Qualquer semelhança com
seres ou acontecimentos imaginários é mera
coincidência.

ISSN 2595-9891

Expediente:

Criação: Marcelo Ribeiro dos Santos

Editor de Arte: Brian S. R. Santos

Revisão: Tânia V. Barela

Contato Comercial: Eric S. R. Santos

Editora: Naos Likaion (CNPJ: 32.216.134/0001-30)

Rua Arthur Nazareno Pereira Villagelin, 125 – Barão Geraldo (CEP:13085-638) Campinas/SP

fone: (19)997231562 mail: naoslikaion@gmail.com

Campinas

03/2020

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Mundo Suave
E tendo saído daquele lugar, retirou-se Jesus para as partes de Tiro e de Sidônia, E eis
que uma mulher de Canaan, que tinha saído daqueles confins, gritou, dizendo-lhe:
“Senhor, Filho de Davi, tem compaixão de mim, que minha filha está miseravelmente
atormentada pelo demônio.” Mas Jesus não lhe respondeu palavra. E chegando-se, os
seus discípulos lhe pediam que a mandasse embora, dizendo: “Despede-a, porque vem
gritando atrás de nós.” E ele, assentindo, lhes disse: “Eu não fui enviado senão às
ovelhas que pereceram da casa de Israel.” Mas mesmo Jesus não a querendo atender, a
mulher de Canaan veio e o adorou, dizendo: “Senhor, valei-me!” Ele, ainda recusando,
lhe disse: “Não é bom tomar o pão dos filhos e lança-lo aos cães.” E ela replicou: “Assim
é, Senhor. Mas também os cachorrinhos comem das migalhas, que caem da mesa dos
seus donos.” Então respondendo Jesus, lhe disse: “Ó Mulher, grande é a tua fé! Faça-
se contigo como queres.” E desde aquela hora ficou sã a filha da cananéia.

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Capítulo 1: Siga o Dragão
Sou Tandir, um lobisomem do povo Grahoul. Cuidar do meu Dragão
é um dos meus maiores prazeres. O skrill escorre de minhas mãos em filetes
finos e translúcidos, que caem no grande dorso de Mogul. As escamas
minúsculas brilham como pequenos diamantes multicoloridos, sob a luz dos
três Sóis do Mundo Suave. Cores intercambiantes, que variam conforme a
direção do olhar ou da incidência da luz. Espalho o skrill em uma camada
fina que recobre uma grande área que já começava a ficar opaca. Mogul
murmura de prazer, esticando-se no chão de pedra. Ele não é um Dragão
plenamente crescido ainda, mas mesmo assim é grande o suficiente para que
eu tenha que gastar um quarto do dia para passar skrill em todo o seu corpo.
É um jovem saudável e impetuoso, assim como eu. Nós nos unimos no
Gramgrad, o grande Campo de Voo de obsidiana da Montanha da Dragão
Mãe, quando eu e Mogul éramos ainda filhotes. Dançamos juntos. Somos
inseparáveis. O vínculo entre um Grahoul e seu Dragão é algo talvez
incompreensível para quem não vive a experiência. Somos individualidades,
mas de tal modo entrelaçadas, por atavismo e gosto, que agimos como um
só ser, sempre em busca da ação perfeita. É com calma e perfeição que passo
o skrill por todo o corpo de Mogul. Ele se levanta e sacode o corpo imenso.
Uma chuva de faíscas luminosas e multicoloridas espalha-se ao seu redor
como aura de arco-íris. Mogul canta um canto grave e poderoso, que vai se
tornando agudo até ficar inaudível, mesmo para um Grahoul. O som
transforma-se em vibração de todo o corpo, fazendo brilharem ainda mais
suas escamas. A eletricidade quase tangível da atmosfera rica em energia,
atravessa o Dragão vibrante. Então, um feixe de fogo intenso e azul se forma
como que saindo de sua boca aberta no canto inaudível. Dragões fazem fogo
incendiando a atmosfera com eletricidade concentrada. Dragões são
condutores elétricos por ressonância. Rimos muito dos sonhos humanos no

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Mundo Duro, onde acreditam que Dragões cospem líquidos ou gases
inflamáveis! Seria realmente engraçado! Tonéis ambulantes de combustível,
pesados como montanhas, voando no ar fino onde reina a irresistível atração
da Terra. Não nos surpreende que os humanos não acreditem que os Dragões
existiram! Dragões não são e nunca foram seres pesados. Dragões tem o peso
de seus Daimons. Quem são os Daimons? Os Daimons são os Dragões.
Dragões em sua forma humanoide: um pouco menores e mais esguios que
nós Grahouls, de um azul celeste refulgente, com pequenos chifres negros e
arredondados nos dois lados da fronte, com cabelos encaracolados e sedosos.
Suas faces angulosas lembram a de vocês, humanos. Talvez por isso nos
apaixonamos por sua espécie. O rosto azul dos Daimons, no entanto, cobre-
se de uma faixa negra em forma de relâmpago. Quando tomam a forma de
Dragões, o peso de Daimon se preserva. Esse peso se distribui pela imensa
massa fluida do corpo do Dragão, muito mais volumosa e extensa, porém
mais leve que a nossa. Poderão assim entender como um Dragão pode voar
com um Grahoul montado em seu dorso. Dragões são leves e imensos.
Enquanto Mogul chacoalha o corpo, feliz com a sensação refrescante do
skrill, busco meus dois grandes facões pendurados em meu cinto de forte
couro de Murgh. Retiro os facões de suas bainhas e passo um pouco do skrill
em suas lâminas, que respondem com um brilho feliz. Limpo as mãos ainda
escorregadias em meu próprio pelo, que fica macio e leve. Visto minha
grossa calça de montaria, que deixa expostos os pelos internos de meus
tornozelos, feitos para grudar como adesivo às escamas do dorso de Mogul.
Coloco com cuidado o cinto com os facões, prendendo com firmeza a
presilha decorada. Estou pronto para montar. Ele se deita no chão e eu pulo
para o espaço entre suas asas, que contém uma cavidade rasa onde meus
quadris se encaixam perfeitamente. Firmo os tornozelos contra as laterais de
seu corpo, sentindo minha perna aderindo à pele do Dragão. A grande
protuberância córnea que inicia uma crista serrilhada em seu pescoço, possui

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uma fenda onde posso segurar com as duas mãos, durante as manobras de
voo mais arriscadas. Raramente utilizo esta fenda. Minha harmonia com
Mogul é tal, que basta a perna firmemente aderida, que me deixa as mãos
livres para utilizar minhas armas em combates aéreos. Acaricio o dorso
áspero, perfumado de skrill. Mogul salta no espaço, batendo com suavidade
suas grandes e finas asas. A sensação inebriante de subir aos céus me invade
uma vez mais. Quero esta sensação pela eternidade. Mas neste momento
minha eternidade é ver os campos e florestas do Mundo Suave deslizando lá
embaixo, ver as nuvens emparelhadas conosco e os três Sóis brilhando no
horizonte de uma manhã esplendorosa. Mogul vê um rebanho de apetitosos
Fengs correndo na campina verdejante e se forma em minha mente a
sugestão gentil de uma caçada. Respondo a Mogul, também em pensamento,
que nossa caçada precisa esperar. Preciso verificar se encontro algum indício,
na Cidade de Ferro, que possa ajudar nossas Grahouls fêmeas, cada vez mais
impossibilitadas de gestar e parir filhotes saudáveis. No Mundo Suave não
existem leis inexoráveis, existe o arbítrio, cujo domínio não é nada fácil.
Portanto, doenças e mudanças negativas são sempre o resultado do arbítrio
de alguém. Suspeitamos que os cascudos podem estar por trás do
adoecimento de nossas fêmeas. Mogul concorda com minha urgência,
criando um mapa mental para voltarmos ao local com abundância de caça.
Continuamos nosso voo para o sudoeste, nos aproximando do que fora
outrora a Montanha do Dragão Pai. Agora não sabemos mais se este está
morto ou se foi aprisionado pelos cascudos. Os poucos guerreiros Grahouls
e seus Dragões que se aventuraram a investigar não voltaram para relatar o
que haviam visto. Eu e Mogul decidimos ir. Partimos do quintal de nossa
toca, na alta plataforma da Falésia, com seu paredão multicor, fruto do
trabalho minucioso de inúmeras gerações de Grahouls. Aqui estamos,
olhando no horizonte os altíssimos picos negros da Montanha do Dragão Pai.
Levaremos o dia todo voando. Outrora estas montanhas já foram um local

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de peregrinação e devoção dos Grahouls e seus Dragões. Agora eram motivo
de medo e ódio. O Dragão Pai, que nelas fazia sua morada, há muito tempo
desapareceu. Uma cidade de cimento e ferro começou a se formar como um
tumor anguloso e estranho, grudado às rochas e escarpas da montanha. De
seus portões fluem levas de seres esverdeados e de grossa pele com escassos
pelos, lembrando vagamente Grahouls atarracados. Nós os chamamos de
cascudos. No início, ocasionalmente, bandos armados desse povo estranho
raptavam fêmeas Grahouls desavisadas. Não se sabia o motivo. Isso
desencadeou a grande guerra que matou meus pais e toda uma geração de
guerreiros e seus Dragões. A sangrenta Batalha de Mallion definiu territórios.
Cascudos ou Grahouls agora raramente ousavam invadir as respectivas
fronteiras. Mas, o fato é que, há alguns ciclos trissolares, todas as fêmeas
Grahoul em idade de reproduzir, passam por dificuldades de gestação ou dão
à luz filhotes fracos e defeituosos. A dificuldade de se reproduzir não se
limita às Grahouls: a caça de mamíferos ao redor da Falésia escasseou e
somos obrigados a voar longe para não dizimar totalmente os animais de
nossas florestas. Eu e Mogul voamos agora para a muralha imensa de ferro
maciço, para tentarmos descobrir algo que possa ajudar nosso povo. Algo
que possa ajudar Irien, minha amada, e o filhote gestado com dificuldade em
seu ventre. Sabemos do imenso risco que corremos. Os cascudos possuem
geniais armas letais, que já levaram para a morte muitos Grahouls e seus
Dragões. Dadas as condições atuais de nossos sonhos, não estamos muito
ansiosos para morrermos. Melhorar as condições do mundo onde sonham e
morrem os Grahouls e Dragões, o Mundo Duro onde vocês humanos vivem,
é uma tarefa imensa demais. No momento eu e Mogul temos que nos
preocupar com a ameaçadora muralha avermelhada da Cidade de Ferro. O
dia já vem chegando ao fim. Estamos próximos. Já sentimos o odor pungente
dos Dragões verdes que servem os cascudos. Seus condutores também não
exalam odor melhor. Mogul voa baixo e contra o vento, até pousar em uma

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reentrância na rocha, a algumas centenas de passos da muralha. Vejo a cena,
sinuosa como um bailado, de Mogul se transformando em Daimon azul. Seu
corpo esguio, musculoso e flexível, desliza como uma sombra pelas rochas
do paredão onde estamos. Sigo Mogul com a cautela e silêncio de que só um
Grahoul é capaz. Nos aproximamos da muralha em seu lado leste, nos
afastando ao máximo dos odores dos guardas que havíamos pressentido. O
caminho parece livre, mas a imensa parede a nossa frente não é muito
convidativa para uma escalada. Suas faces lisas como lâminas não
apresentam reentrâncias que possamos usar para nos apoiar. Voar com Mogul
está fora de questão, pois seríamos rapidamente localizados pela visão aguda
e pelo faro espantoso dos Dragões verdes. Olhamos um para o outro e, em
nossa conversa mental, decidimos contornar o paredão até sua base lateral
rochosa, onde talvez poderemos encontrar condições mais favoráveis para
nossa escalada. Temos que nos afastar do paredão e caminhar rastejando por
entre a vegetação baixa que margeia as extensões de rocha da montanha.
Finalmente chegamos ao final da muralha, onde ela se funde à rocha. Vamos
escalando cuidadosamente, agarrados às mínimas saliências e cavidades na
pedra escura, nunca nos afastando a mais de alguns metros da borda da
muralha de ferro, de altura imensa. Adoramos escaladas, eu e Mogul. Na
verdade, em criança eu não gostava de alturas, até que me uni a meu Dragão.
Voar traz o prazer e a vertigem boa dos espaços infinitos. Nunca mais tive
medo. Escalar era só o exercício de voar com dificuldade, sem asas, usando
o peso do corpo e a inteligência da memória para suplantar obstáculos de
pedra. Um exercício que eu e Mogul fazemos com prazer. Sinto agora a rocha
fria e negra guiando minhas garras, alongando e fortalecendo meus
músculos. Vou subindo com a maestria que o prazer confere e me rejubilo
mais ainda vendo o corpo esguio de Mogul deslizando rocha acima com
leveza e precisão. Mas aqui no alto o prazer da escalada é suplantado pela
ansiedade de sermos descobertos e atacados. Enfim, chegamos arfantes ao

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topo da muralha, saltando de uma pequena plataforma na rocha próxima.
Rastejamos como serpentes pela larga aleia formada entre a parede externa
e a interna. Vemos uma torre de vigia acerca de trezentas passadas. É muito
perigoso estar aqui, então, decidimos passar para o lado de dentro, ainda
usando o paredão de rocha para descer. Ouvimos um alarido vindo do lado
esquerdo e, ao passarmos por uma saliência maior, podemos ver o vasto
descampado onde uma multidão incontável de cascudos se espreme.
Tomamos posição em uma torre de rocha com uma cavidade natural em que
cabemos nós dois, a apenas algumas dezenas de passadas de um grande palco
escavado no paredão natural rochoso que prolonga a muralha de ferro.
Podemos ver um cascudo musculoso, vestido em um uniforme verde escuro
como sua pele, vociferando em um aparelho que lhe ressoa a voz por toda a
extensão da praça imensa. Os demais cascudos ouvem em reverente silêncio,
quebrado eventualmente por gritos de louvor ao orador. O dialeto rascante
dos cascudos é uma variação desagradável da linguagem dos Grahouls mas,
ainda assim, eu e Mogul podemos entender perfeitamente o conteúdo odioso
do discurso. Parece que o destino cruel dos Grahouls no Mundo Duro se
repete agora, aqui no Mundo Suave. Uma multidão se une para ouvir
palavras de ódio contra nós. Palavras de escravidão. Termos que
ridicularizam e ofendem nosso povo, retratado novamente como selvagens
perigosos que devem ser extirpados do Mundo Suave. O orador menciona,
apenas de passagem, algo que interpreto como “envenenamento”. Sem atinar
para o fato de que o indício é tênue demais, decido que nossas suspeitas
estão, portanto, confirmadas. Os cascudos estão fazendo algo que atinge
nossas fêmeas com a maldição da infertilidade e da doença. Mas o que
poderia ser? Nós vivemos a uma distância imensa. Nas fronteiras de nossos
domínios, Grahouls montados em seus Dragões vigiam noite e dia e
impedem ao máximo as incursões de cascudos. Os raptos de nossas fêmeas
ocorrem apenas quando as Grahouls chegam perto demais da Cidade de

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Ferro, acompanhando as caravanas de mercadores. Devido à natureza
curiosa e destemida de nosso povo, isso não era tão raro, infelizmente.
Mesmo assim, como poderiam os cascudos atingir nossas fêmeas protegidas
nas aldeias por nossos vigias atentos? Como poderiam envenenar nossos
alimentos que provinham da mata e de nossos próprios cultivos? Ou nossa
água, que vem do sagrado Grande Lago da Falésia, com trânsito constante
de Grahouls com seus Dragões e muito longe do território dos cascudos?
Porque só as fêmeas gestantes são atingidas? São perguntas que eu pretendo
responder. Súbito, as questões são afastadas por um odor pungente. O cheiro
inconfundível de um Dragão verde e seu condutor cascudo. Mogul fareja o
ar tentando determinar a direção da aproximação. A noite já se aproxima e a
penumbra confunde e forma falsas visões nas nuvens acima. O cheiro torna-
se mais forte e, quase que por instinto, Mogul se transforma novamente em
Dragão. Salto para a cavidade em seu dorso e firmo as pernas, já puxando os
dois facões de suas bainhas enquanto Mogul alça voo.

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No descampado, a multidão de cascudos grita e aponta para nós, enquanto
guardas corpulentos vestindo armaduras correm com suas armas de fogo.
Estamos já muito acima do alcance de seus tiros. Enquanto subimos, vemos
uma sombra esverdeada e rápida que passa acima de nós com estampidos. A
asa direita de Mogul recebe um pequeno furo em sua membrana. Não é o
suficiente para nos derrubar, mas certamente é o suficiente para nos enfurecer
a ambos. A sensação de ódio gélido que compartilho com Mogul torna nossos
movimentos ainda mais precisos e Mogul acelera para cima em um trajeto
de relâmpago, escondendo-se detrás de uma nuvem. Quando saímos a céu
aberto, estamos já emparelhados com o imenso Dragão verde, muito maior
que Mogul, enquanto o gume longo e afiado de minhas lâminas busca
minuciosamente a garganta do cascudo abaixo de seu capacete. Mogul faz
um volteio e fica invertido sobre o grande Dragão, dando impulso extra aos
facões, que decepam a cabeça do cascudo como se fossem grandes tesouras.
Mogul completa o rodopio e estamos posicionados acima e atrás do Dragão
verde, que se volta ferozmente, urrando ao ver seu condutor caindo das
alturas sem a cabeça. Mogul prevê o jato de fogo e mergulha evitando as
chamas que ele lança contra nós. No mesmo movimento do mergulho,
seguimos por baixo o lençol de fogo, até que vislumbro a imensa garganta
esverdeada e vulnerável, onde um de meus facões se crava com precisão,
continuando a cortar na medida em que Mogul voa em direção à cauda do
Dragão verde. De passagem, o outro facão penetra nos tendões da asa do
inimigo. Quando passamos por ele, olho para trás enquanto Mogul acelera e
se volta novamente para combater. Mas, não é necessário combater mais. O
grande corpo do Dragão verde cai como uma imensa folha que plana por sua
leveza, mas inexoravelmente vai ao chão. Sem outro inimigo à vista, com
nossa fúria conjunta se alimentando mutuamente, passamos em voo raso
sobre a muralha e, enquanto soam os tiros dos guardas ainda fora de alcance,
Mogul emite seu cântico de fogo, intenso como nunca, direcionando as

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chamas para a multidão abaixo. Tudo o que faço é olhar com satisfação e
ódio os cascudos que se debatem, caindo queimados e retorcidos, como
ramos secos em um incêndio na floresta. Centenas deles. Quando Mogul
interrompeu o fogo, deixando para trás um caminho de cadáveres
enegrecidos, pudemos sentir, juntamente com o cheiro de carne queimada, o
fedor de outros Dragões verdes que se aproximavam. Voamos rapidamente
para longe do cheiro, passando sobre a elevação de pedra ao lado da muralha
e nos dirigindo para o sul, despistando nossos perseguidores. Nenhum
Dragão verde pode voar tão alto quanto Mogul. Nenhum cascudo aguenta o
ar rarefeito das alturas elevadas como um Grahoul. Subimos e subimos. As
nuvens formam um tapete protetor abaixo de nós. A noite se instala ainda
sem as duas luas, em uma escuridão salpicada de estrelas. Fazemos uma
longa volta a leste, nos afastando ao máximo da Cidade de Ferro antes de
retomarmos o rumo da Falésia. Estamos cansados e ansiamos pelo repouso
no aconchego da toca. Mogul plana o máximo possível, evitando
movimentar as asas. Consegue dormitar repousando sobre os ventos. Nasce
a primeira lua no horizonte, com seu brilho de prata e mar. Após algum
tempo, a segunda lua, toda dourada e púrpura, sobe pelo céu imenso. A noite
fica mais clara, mas já estamos muito longe da Cidade de Ferro. Rumamos
para a Falésia. Quase dormindo, cenas do Mundo Duro formam-se em minha
mente. Cenas de guerras e terrores diversos, a que os humanos se sujeitam
por consentimento coletivo. Os poucos Grahouls que lá sonham e se
encarnam após a morte, nada podem fazer para impedir a escravidão
voluntária de seres que se tornam mais e mais tristes e ávidos por trastes.
Agarram-se ao Mundo Duro e aos objetos, temendo a passagem para o
Mundo Suave, e matam-se por isso ainda mais! Negligenciam as ações
perfeitas, perdendo mesmo a noção do que isso significa. Reflexões de um
sonho duro que subitamente se desfaz com a súbita mudança de pressão,
quando Mogul rebaixa seu voo para poupar energias. O Sol Azul já nasceu e

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tudo tinge com sua luz de paz. Em breve surgirão o Dourado e o Vermelho.
Atravessamos a noite voando sobre as pradarias verdejantes e cheias de seres
apetitosos. Bem que precisamos de alimento, mas não ousamos parar
enquanto não chegarmos aos limites do território Grahoul, onde os cascudos
e seus Dragões verdes não ousavam se aproximar. Mogul viu antes de mim
o mosaico de cores do paredão da Falésia, quando o terceiro Sol já
despontava. O ponto multicolorido ao longe me enche de emoções e
lembranças de Irien, fêmea e companheira, grávida a duras penas de um
filhote meu. Quando me lembro dos esgares de dor de Irien e de suas preces
comovidas à Nanshe, a Loba Negra, para trazer a bom termo uma gestação
da qual a maior parte das Grahouls já havia desistido, todo o remorso pela
carnificina de cascudos que fizemos desaparece de minha mente. As palavras
de ódio e a possível alusão a um envenenamento, reverberam feridas
profundas de uma memória que remete às origens dos Grahouls no Mundo
Duro, de onde os Humanos nos expulsaram permanentemente. Desejam os
cascudos nos destruir aqui, no Mundo Suave, para nos condenar a um
renascimento humano? Ou talvez como Kyons, seus cães? Não há mais
estirpes de Grahouls no Mundo Duro, em cujos corpos poderíamos renascer
íntegros. Os cascudos destroem os Grahouls da Falésia, envenenando nossas
fêmeas. Os Grahouls do Norte e os Grahouls do Mar estão sendo poupados,
por enquanto. Mas e se forem destruídos também? Apenas restará a memória
tênue, em espíritos Grahouls exilados em corpos Humanos ou caninos. Isso
não vai acontecer. Aqui no Mundo Suave vale a ação perfeita. Aqui estamos
mais próximos do Mundo da Divina Ação de Nanshe. Aqui as regras da
necessidade podem ser rompidas por um arbítrio forte. Nós Grahouls somos
atores poderosos. Nossa beleza, graça e força se reflete na superfície de rocha
do paredão todo decorado em mosaicos entrelaçados de cores vítreas. Sob o
brilho dos três Sóis, o paredão da Falésia emite toda a alegria e prazer de
viver dos Grahouls, formando padrões coloridos que bailam sob a luz. Mogul

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começa a subir em ângulo para alcançar o topo da grande plataforma, onde
as tocas dos Grahouls se entrelaçam em formas sinuosas. Debaixo de nós
brilham as águas cristalinas do Grande Lago. Subimos acima do paredão e
avistamos o aglomerado de tocas, algumas diretamente escavadas na rocha,
outras, como a minha, esculpidas com arte em grandes troncos que se
encaixam de maneira harmoniosa. Os contornos da aldeia se confundem ao
longe com as próprias rochas e florestas, que são apenas a continuação de
nosso lar. Pousamos na praça, extenuados, aproveitando o vasto espaço para
poupar a asa ferida de Mogul de um pouso vertical. Os Grahouls em nossa
volta olham em silêncio, sem nos incomodar com perguntas que sabiam ser
inconvenientes neste momento. Escorrego do dorso de Mogul, sentindo o
corpo dolorido da luta e do longo voo. Mogul transforma-se em Daimon e
segura a mão onde um pequeno furo lhe relembra a bala que perfurou sua
asa. Caminhamos lentamente pelas vielas e jardins até chegarmos à nossa
toca. A ampla entrada de madeira maciça e polida, nos recebe com o odor
aconchegante e familiar do lar. Sinto o doce almíscar de Irien, que sempre
me deleita e apaixona. Mogul entra cuidadosamente na pequena piscina de
banhos do jardim, regada por água límpida, bombeada do Grande Lago por
um engenhoso sistema de elevação que abastece a aldeia. Deita-se,
resfolegando de prazer. Alcança um pedaço de sabão perfumado na cavidade
da borda e começa a se lavar cuidadosamente, como que em um ritual. Tenho
vontade de fazer o mesmo, mas minha saudade e preocupação por Irien me
impulsionam para dentro da toca. Irien já sentiu nosso cheiro e a encontro se
apoiando sobre o pilar central, com a mão sobre a barriga, com sua gravidez
quase imperceptível para o tempo de gestação decorrido. Vou até ela e a
abraço com delicadeza, tocando seu focinho com o meu, aspirando seu
perfume delicioso. Ficamos abraçados por alguns minutos. Levo-a até o
grande acolchoado no quarto onde costumamos dormir e peço-lhe que se
deite e descanse. Dou-lhe uma lambida carinhosa e vou até a despensa, onde

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acho deliciosos nacos de Goflin defumado. Devoro a carne, juntamente com
frutas desidratadas de Lotka. Apaziguada a fome, bebo uma garrafa inteira
do maravilhoso hidromel com ervas que Irien prepara como ninguém. Só
então me dirijo meio grogue para a piscina de banho, tirando minha calça de
montaria e desafivelando o cinto com os facões, que deixo caídos a um canto.
Mogul já saiu e veste um confortável e macio roupão, enquanto passa skrill
no ferimento da asa, que agora é mão. O efeito é imediato e posso ver o furo
se fechar lentamente, até sobrar apenas a pele brilhante e azul do Daimon.
Ele se levanta e entra na toca para saciar sua fome, enquanto eu entro na
piscina de água tépida e clara. Recosto a cabeça na borda arredondada e
deixo meu corpo flutuar na correnteza fraca. Após um tempo de letargia
abençoada, reúno forças para me lavar com o sabão de odor calmante.
Mergulho na piscina retirando toda a espuma e então praticamente me arrasto
para fora, alcançando meu roupão pendurado ao lado. Enxugo-me com
movimentos lentos. Penduro o roupão e vou até o quarto onde Irien dormita
febril. Deito-me ao lado dela e me aconchego a seu corpo quente.
Rapidamente deslizo para um sono pesado, onde o corpo descansa, mas a
mente sonha sonhos graves, no Mundo Duro. Longas caminhadas. Gestos
repetidos. Palavras caindo no vazio. O cheiro de guerra e violência no ar.
Ritmos frenéticos de máquinas, máquinas, máquinas. Papeizinhos
numerados, chamados de dinheiro. Matava-se por isto! Sonhos duros e
confusos que fazem do sono uma angústia. Breves momentos de paz com
humanos que amo, breves momentos de nostalgia quando acaricio os Kyons
– os cães onipresentes. Acordo com os gemidos baixos de Irien, que aperta a
barriga dolorida. Abraçados, conversamos sussurrantes. Levanto-me do
acolchoado e vou buscar um punhado de raiz de Bak macerada. Dou uma
dose adequada para Irien mascar e coloco o resto na boca, sentindo o sabor
agridoce do sumo enquanto mastigo. Irien masca de olhos fechados e em
breve ambos suspiramos de prazer com o alívio da dor que a raiz de Bak

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proporciona. Irien consegue esboçar um sorriso e eu retribuo com um toque
de meu focinho no seu. Vou até a despensa e pego os ingredientes para
preparar um caldo leve para Irien e uma substancial refeição para mim e para
Mogul. Irien consegue caminhar até próximo do fogareiro onde preparo a
comida e senta-se na larga poltrona de madeira forrada de peles.
Conversamos sobre trivialidades da aldeia, mas Irien sabe que há uma
tempestade em minhas emoções. Eu sei que ela sabe, mas calo, por enquanto.
Falo de nossas perspectivas e de nossos amores, enquanto Mogul mastiga
silenciosamente um grande naco de carne, sentado sobre a pele felpuda de
um Kariak que caçamos há alguns ciclos. Dormimos todos desde a tarde do
dia anterior e desfrutamos agora de uma manhã iluminada e fresca. Estendo
um manto limpo no capim baixo do jardim. Irien deita-se, expondo a barriga
aos Sóis benfazejos. Deixo Mogul lhe fazendo companhia, visto-me com
uma túnica leve e saio portão afora, caminhando pelas vielas sinuosas da
aldeia. Passo por amigas e amigos que me cumprimentam cordialmente,
esperando o tempo certo para saber de novidades que certamente viriam. O
imenso Runik, invencível na luta clássica, acena com suas garras fortes e
maciças. Retribuo o cumprimento com um meneio da cabeça e um sorriso.
Passo pela toca de Ragnulf e Frida, parceiros de lutas e amores, que estão a
aproveitar os Sóis matinais, espreguiçando-se sobre um grande acolchoado
estendido sobre o capim. Lanço um uivo feliz de saudação, que é respondido
pelo casal em uníssono, ainda que Ragnulf não seja dos Grahouls mais
afinados. Prometo-lhes que volto para conversarmos e continuo a seguir a
viela principal, até sair no descampado de treinos. Jogo-me ao chão quando
um Dragão, brilhante de skrill, passa sobre mim em um rasante que quase
me arranca o crânio. Uma gargalhada ecoa enquanto o Dragão se afasta, com
Ingriar, a guerreira Cinza, montada em seu dorso e balançando de rir
enquanto me faz um gesto mal-educado. Respondo-lhe com o gesto do
Coração e ela e seu Dragão volteiam acima. Ingriar grita declarações de

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amor. Damos boas risadas, enquanto ela se despede, voltando aos
treinamentos. Os demais Grahouls também voltam a se concentrar nos
combates simulados e nos reparos de armas, enquanto atravesso o campo em
direção ao Templo Branco. Que não se imagine este templo como uma
construção monumental, pois nós Grahouls apreciamos a simplicidade. O
templo Branco é construído em pedra, madeira e argila, possuindo abóbadas
e volteios inusitados em suas três torres. A entrada é uma grande porta de
madeira maciça, trabalhada com entalhes delicados representando os relatos
míticos dos Grahouls. Hoje, não é ao templo que eu quero ir. Passo ao lado
da grande parede alva e irregular, tomando uma simples trilha de terra que
leva até uma toca bastante humilde. Cercado por árvores frondosas e animais
de todos os tipos, aqui mora Rothrak, o mais velho e sábio entre os Grahouls.
Tenho por ele a adoração que um filho tem por seu pai, visto que meu próprio
pai e minha mãe morreram na batalha contra os cascudos, defendendo a
Falésia de uma invasão inesperada de maior porte. A hostilidade dos
cascudos é antiga. Meu ódio também. Como um cultor da ação perfeita,
busco a paz. Talvez Rothrak possa me falar palavras que retirem o peso de
minha alma. Com esta disposição vou a seu encontro. Bato levemente na
porta de entrada cheia de buracos. A voz áspera de Rothrak responde lá de
dentro convidando-me a entrar. Empurro a porta e o cheiro forte do ermitão
solitário atinge minhas narinas. A toca toda cheira a comida rançosa e poeira.
Rothrak cheira pior que a casa. É um cultor da linha do desapego e acredita
que banhos são uma vaidade desnecessária. Em minha opinião, não ofender
o faro aguçado dos demais Grahouls não deveria ser uma vaidade, mas os
sábios têm suas idiossincrasias e devemos saber respeita-los ainda assim.
Respeitosamente me sento no banco que Rothrak me indica, acenando com
a mão enquanto folheia um pergaminho antigo. Após alguns minutos de
silêncio, durante os quais observo todos os detalhes estranhos da toca,
Rothrak finalmente fecha o livro com um grunhido de enfado. Sinto-me um

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pouco embaraçado, mas meu relato é urgente o suficiente para vencer minha
timidez perante o velho sábio. Observo sua face de pelos brancos,
emoldurados pelo cinza prateado já escasso de seu pescoço fino. Em tom
baixo, faço as saudações usuais e começo meu relato sobre o episódio na
Cidade de Ferro, engasgando envergonhado no trecho sobre o massacre de
cascudos que eu e Mogul perpetramos. Rothrak escuta, inclinando levemente
a cabeça para ouvir melhor. Os Grahouls vivem muito e Rothrak é
especialmente idoso. Ninguém sabe ao certo, mas já deve beirar quatrocentos
ciclos trissolares. Atentem, humanos, que um ciclo trissolar equivale a
aproximadamente dois de seus anos no Mundo Duro. Rothrak é velho. Velho
e sábio, mas seu corpo já não responde como antes aos anseios do espírito.
Termino meu relato e aguardo. Rothrak me encara com olhos turvos. Fala
com voz roufenha: “Há um jogo e um equilíbrio. Sem o jogo, vida não há.
Não é aqui que devemos cultivar nossos sonhos. O Mundo Duro é para onde
iremos finalmente após esta vida de tormentos. Se não limparmos nosso
destino no Mundo Duro, à sujeira estaremos condenados. Quantos cascudos
você enviou para a morte? Onde imagina que suas almas irão? Você sabe.
Irão para o mundo de seus sonhos. Irão para o mundo de sua morte.” Então
Rothrak calou-se. Suas palavras batem fundo em meu coração culpado. Mas
não é de culpa e remorso que o ancião falou. Um Mestre dos Jogos, como é
o velho sábio, saberia conjurar emoções respaldadas por um sólido
argumento racional. Sou jogador também. Por entre as brumas de meu
remorso, minha razão se rebela contra seu argumento. Priorizar o Mundo
Duro sobre o Mundo Suave é uma escola de pensamento. Eu a conheço e sei
reconhecer seus traços de antemão. É a filosofia dos eremitas desapegados
da vida – um tanto obcecados com a morte – bastante popular entre as
Escolas Sacerdotais, onde se formam sábios como Rothrak. Eu não partilho
dessa posição. Amo o Mundo Suave e minha vida nele, totalmente
entrelaçada com uma multiplicidade de seres. Meu zelo pelo filhote Grahoul

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na barriga de Irien, encadeia meu Amor e minha Fúria. São uma coisa só e
são o fogo de Mogul que consumira os que falavam em altos brados em nos
destruir. Respondi a Rothrak, levantando com tristeza minha cabeça e
olhando-o nos olhos: “Paz, Mestre, mesmo na luta. Minhas ações se
confundem.” Rothrak assente com um leve aceno das orelhas. Levanta com
dificuldade e caminha com passinhos miúdos para o fogareiro. Pega uma
caneca um tanto engordurada e nela verte água. Acende o fogareiro,
friccionando um graveto fosfórico contra a pedra, colocando a caneca sobre
ele. Alcança, em um nicho na parede, um pequeno saco de fibra, do qual
retira, com as garras em pinça, uma pequena quantidade de pó, que coloca
na água que já começa a ferver. Sua voz rouca soa gentil: “Um chá, jovem
Tandir. Pela paz de nossos espíritos, que só se encontra na ação perfeita.”
Verte um pouco do líquido em uma chávena rústica que me oferece. A
aparência não é muito boa, mas eu não ousaria recusar um chá de um Mestre
das Ervas consumado. Bebemos em silêncio, em pequenos goles, a bebida
amarga e poeirenta. Rothrak se acomoda novamente na poltrona em frente à
sua mesa de estudos. Parece cansado e contrariado com o que sucedeu
comigo. Passamos um longo tempo em silêncio. Aos poucos, noto que seus
olhos adquirem um brilho azulado. Aliás, todo o aposento adquire um brilho
azulado. Estariam meus olhos também emitindo esse brilho que eu via nos
olhos de Rothrak? O brilho das águas claras. Nuvens e tempestade formam-
se, no entanto, nas feições retorcidas do velho. Suas feições se tornam
femininas, fato que, em seu rosto multicentenário, dá a sensação de uma
antiguidade incomensurável. Pássaros suaves e pequenos peixes brilhantes
nadam na atmosfera da sala. Os olhos de Rothrak se abrem
desmesuradamente, cedendo lugar a um olhar de Mar. Nanshe, toma seu
velho sacerdote. A Deusa diz uma frase apenas: “Siga o Dragão.” As palavras
flutuam no ar brilhante e penetram meus ouvidos como uma carícia. Rothrak,
então, desaba na cadeira, desfalecido, e todo o brilho mágico desaparece de

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súbito. Ainda um tanto atordoado, recordo os acontecimentos e guardo como
preciosidades, em um templo mental, todas as palavras que foram
pronunciadas ali. As palavras da Deusa pairam acima de todas. O velho sábio
continua a dormir a sono solto. Cubro seu corpo emaciado com algumas
peles um pouco mais limpas que encontro a um canto. Silenciosamente, saio
da toca para o ar livre. Sigo de volta pela trilha de terra, passando ao lado do
Templo Branco. Um arrepio percorre os pelos de minha nuca. Atravesso o
campo de treinamento e volto pelas vielas até minha toca, onde me esperam
Irien e Mogul. Este compreende o que as palavras não dizem. Irien
compreendeu também, com uma conversa franca, sem recursos retóricos.
Olho com atenção amorosa sua face suave, coberta de sedosos pelos curtos
e prateados, herança de seus ancestrais do Norte. Seus lindos olhos
amendoados são de uma sensualidade estonteante, mesmo com o brilho
esmaecido pela dor da doença desconhecida que a aflige. Meu carinho por
ela e por nosso rebento por nascer, é algo que eu posso apalpar em meu
coração. Meu brilhante tesouro no Mundo Suave. É por esse tesouro que eu
tinha que partir. Vou primeiro passar alguns dias na floresta de Lotkas, lugar
sagrado e vital para Grahouls e Dragões. Irien sabe da necessidade de termos
um estoque de skrill e frutas de Lotka, para o seu bem e para o nosso. Nossos
amigos e vizinhos, Frida e Ragnulf, cuidam dela como de praxe, quando
preciso me ausentar com Mogul. Coloco minha calça grossa de montaria e
afivelo à cintura o cinturão com os dois facões. É só o que precisamos.
Despeço-me de Irien com um beijo longo e suave. Mogul, em forma de
Daimon, lhe beija gentilmente o dorso da mão. Abraço Ragnulf e Frida, que
estão presentes para minha partida e que estarão atentos a qualquer
necessidade de Irien. Mogul lhes faz uma mesura respeitosa. Caminhamos
para fora da toca, andando até o campo de voo na beira da Falésia. Mogul se
transforma em Dragão e eu salto sobre seu dorso. Saltamos sobre o paredão
colorido, enquanto abaixo de nós alguns filhotes escorregam para as águas

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límpidas do Grande Lago no grande tobogã esculpido nas pedras. Mogul
emite um alegre jato de chama saudando o grupo de pequenos, que emitem
uivos finos de alegria em resposta.

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