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UNIVERSIDADE MANDUME YA NDEMUFAYO

Faculdade de Direito

Departamento de Ciências Jurídico – Civil

Trabalho em grupo de Direito das


Obrigações

Tema: Cessão de Créditos

Docente

____________________________
Msc. Henriques Ernesto
UNIVERSIDADE MANDUME YA NDEMUFAYO

Faculdade de Direito

Departamento de Ciências Jurídico – Civil

GRUPO N.º 1

Lubango, aos 15 de Junho de 2023


Integrantes do grupo
ÍNDICE

RESUMO ................................................................................................................................. III

INTRODUÇÃO .......................................................................................................................... 1

1 CESSÃO DE CRÉDITOS .................................................................................................. 3

1.1 Resenha histórica da cessão de créditos....................................................................... 3

1.2 Noção e admissibilidade da cessão de créditos............................................................ 4

1.3 Objecto da cessão de créditos ...................................................................................... 7

1.4 Cessão de crédito e sua causa ...................................................................................... 8

1.5 Regime e eficácia da cessão de créditos .................................................................... 11

1.6 Requisitos da cessão de créditos ................................................................................ 11

1.6.1 Um negócio jurídico a estabelecer a transmissão da totalidade ou de parte do


crédito 11

1.6.2 A inexistência de impedimentos legais ou contratuais a esta transmissão ......... 13

1.6.3 A não ligação do crédito em virtude da própria natureza da prestação à pessoa


do credor ........................................................................................................................... 13

1.7 Garantia da existência e exigibilidade do crédito ...................................................... 14

1.8 Garantia da Solvência do Devedor ............................................................................ 14

1.9 Os efeitos da cessão de crédito .................................................................................. 15

1.9.1 Generalidades ..................................................................................................... 15

1.9.2 Efeitos em relação às partes................................................................................ 15

1.9.3 Efeitos em relação ao devedor ............................................................................ 19

1.9.4 Efeitos em relação a terceiros ............................................................................. 20

1.10 Algumas figuras especiais ligadas à cessão de créditos ......................................... 22

1.10.1 Cessão de créditos futuros .................................................................................. 22

1.10.2 Cessão de créditos em garantia ........................................................................... 23

1.10.3 Dação de crédito em cumprimento ..................................................................... 24

1.11 Aplicação das regras da cessão de créditos a outras figuras .................................. 25


CONCLUSÃO .......................................................................................................................... 26

BIBLIOGRAFIA ...................................................................................................................... 27
RESUMO

O presente trabalho integra o objectivo de encontrar os contornos e as afeições do instituto


da cessão de créditos. Este será o nosso ponto de partida em prol de uma exposição da matéria
da cessão de créditos, pelo que tentaremos fazer uma análise dogmático – estrutural. Para tal,
em primeiro momento, fizemos uma abordagem histórica sobre o instituto, trazendo diversas
apreciações em que foi recortada em cada período cronológico. Com maior enfâse,
debruçamos sobre a maneira de como era transmitido o crédito na Antiga Roma. Ficou claro
que a transmissão de créditos, apenas, poder-se-ia verificar a título universal, como no caso
paradigmático da transmissão por morte, que era vista como uma continuação da
personalidade do de cuius. A título singular, essa transmissão era vedada com o argumento de
que, uma vez que a obrigação consistia num vínculo pessoal entre duas pessoas, não se
poderia admitir a sua transmissão para sujeitos distintos. Em seguida, conceituamos o
instituto, definimo-lo e enquadramo-lo juridicamente, sempre consciente de que a cessão de
créditos não é um instituto isolado no âmbito da transmissão da matéria obrigacional. Tal
situação, levou-nos, de forma breve, referenciar, superficialmente, outros institutos, com os
quais partilham “meia parede”. Contando que a cessão não seja interdita por determinação da
lei ou convenção das partes, e o crédito não esteja, pela própria natureza da prestação, ligada à
pessoa do devedor. Falamos também do regime e da capacidade, dos requisitos da cessão de
créditos e dos seus efeitos. Frisamos que a cessão de créditos não é autónoma, depende
sempre de um negócio – base, o qual lhe serve de sustentabilidade e afirmação.

Conceitos chaves: cessão de créditos, título universal, título singular, cronológico, negócio –
base.
INTRODUÇÃO

O escopo do presente trabalho consiste em trazer, à visibilidade colectiva, conteúdos


relativos à cessão de créditos, como um dos episódios integrantes à transmissão das
obrigações.

O crédito corresponde à situação jurídica de natureza patrimonial, pelo que não deve
haver obstáculos à sua transmissão, quer integrado num património (transmissão a título
universal), quer isoladamente (transmissão a título singular), até por força do princípio
constitucional que garante a transmissão da propriedade privada, em vida ou em morte
(art.º38.º da CRA). Juntamente por esse motivo, o crédito é objecto de transmissão por morte
(art.º 2024.º) e pode ser transmitido em vida, em virtude da verificação de qualquer dos factos
que produzem esse efeito, como a cessão de créditos (arts.º 577.º e ss.), a sub-rogação (arts.º
589.º e ss.), assunção de dívidas (arts.º 595.º e ss.) e a cessão da posição contratual (arts.º
424.º e ss.)

Nem sempre, no entanto, esta situação se verificou, sendo ela vista como resultado de uma
complexa evolução histórica1. No antigo Direito Romano, a transmissão de créditos, apenas,
poder-se-ia verificar a título universal, como no caso paradigmático da transmissão por morte
que, aliás, era vista como uma continuação da personalidade do de cuius. A título singular,
essa transmissão era vedada com o argumento de que, uma vez que a obrigação consistia num
vínculo pessoal entre duas pessoas, não se poderia admitir a sua transmissão para sujeitos
distintos. Para além disso, o formalismo na constituição das obrigações, em que o Direito
Romano se baseava, implicava que qualquer alteração na pessoa dos sujeitos da obrigação
teria que passar pela repartição das fórmulas em relação ao novo sujeito e, portanto, pela
constituição de uma nova obrigação.

A cessão de créditos, previstas nos arts.º 577.º e ss., consiste numa forma de transmissão
de crédito que opera por virtude de um negócio jurídico, normalmente um contrato celebrado
entre o credor e terceiro. Por vezes, também se designa de cessão de créditos, o próprio
negócio jurídico que serve de base à cessão, mas essa designação deve, a nosso ver, ser
evitada, já que a expressão cessão de créditos designa a transmissão dos créditos com fonte
negocial e não à própria fonte que a desencadeia2. Em consequência, o regime da cessão de

1
Menezes Leitão. Cessão de Créditos. Coimbra. Almedina. 2005. pp. 23 e 24
2
Carlos Mota Pinto. Cessão de Crédito. Almedina Coimbra. 2004. p. 10
1
créditos não constitui um tipo negocial autónomo, mas antes uma disciplina de efeitos
jurídicos, que podem ser desencadeados por qualquer negócio transmissivo (Cfr. art.º 578.º).

O nosso trabalho está articulado nos seguintes moldes:

No primeiro momento, abordamos sobre a resenha histórica, a noção, objecto, regime da


cessão de créditos.

Relativamente à resenha histórica, apresentamos uma abordagem histórica sobre a cessão


de créditos, principalmente as fortes conceituações e apreciações feitas por grandes cultores
do Direitos na Roma Antiga, através deles, herdamos um rico “menu” de conhecimento sobre
a cessão de créditos. Movido pela convicção de que qualquer conhecimento científico tem
como sustentabilidade as abordagens anteriormente lavradas no decurso da sua história.

Relativamente a noção, trazemos uma conceituação legal, sem desprimor da conceituação


doutrinal que, em gesto de uma “velocidade” acima da média, fizemo-lo no decurso do nosso
tema. Achamos nós que as abordagens legais não devem “andar” sozinhas, ao seu lado,
inevitavelmente, faz-se acompanhar um “menu” de abordagens doutrinais, com as quais
fazem um par perfeito.

Quanto ao objecto da cessão de créditos, trazemos, à visibilidade colectiva, o assunto


sobre o qual recai a cessão de créditos, partindo sempre do pressuposto de que, qualquer
abordagem sobre um determinada tema, não se pode deixar, por trás, abordagens relacionadas
ao objecto do tema em discussão.

Relativamente ao regime, por ser pretensiosamente legal, apresentamo-lo tal como está
assegurado nos preceitos normativos do nosso Código Civil, juntamente com as várias
particularidades que os referidos artigos patenteiam.

No segundo momento, abordamos sobre os requisitos, garantia de existência e


exigibilidade do crédito, garantia de solvência do devedor, efeitos da cessão de créditos,
algumas figuras especiais ligadas à cessão de créditos e aplicação das regras da cessão de
créditos em outras figuras. Se quisermos entrar em detalhe, preferimos nós, deixar que o
nosso trabalho, no momento adequado, apresente-o de forma clara e concisa.

2
1 CESSÃO DE CRÉDITOS

1.1 Resenha histórica da cessão de créditos

No antigo Direito Romano, a transmissão de créditos, apenas, poder-se-ia verificar a título


universal, como no caso paradigmático da transmissão por morte que, aliás, era vista como
uma continuação da personalidade do de cuius. A título singular, essa transmissão era vedada
com o argumento de que, uma vez que a obrigação consistia num vínculo pessoal entre duas
pessoas, não se poderia admitir a sua transmissão para sujeitos distintos3. Para além disso, o
formalismo na constituição das obrigações, em que o Direito Romano se baseava, implicava
que qualquer alteração na pessoa dos sujeitos da obrigação teria que passar pela repartição das
fórmulas em relação ao novo sujeito e, portanto, pela constituição de uma nova obrigação.

No entanto, ainda na época romana, a expansão das trocas comerciais veio suscitar a
necessidade de adopção de formas específicas para a alteração dos sujeitos no vínculo
obrigacional. A primeira situação em que tal se verificou correspondeu à novação por
substituição do credor ou do devedor, em que, por acordo de todos os interessados, extinguia-
se a obrigação anterior e estabelecia-se uma diferente daquela, com alteração de um dos seus
sujeitos. Porém, esse processo trazia dificuldades, uma vez que exigia o consentimento do
devedor, que este normalmente só daria a troco de contrapartidas, o que se tornava
inadequado para a negociação do crédito.

O esquema, que então foi estabelecido para poder possibilitar a aquisição do crédito por
terceiro, foi o da procuratio in rem suam. O credor concederia uma procuração a terceiro para
cobrar o crédito ao devedor, autorizando-o aguardar para si o que houvesse recebido. No
entanto, este processo ainda tinha algumas deficiências, pois, além de a procuração poder ser
revogada e extinguir-se com a morte do representado, a sua outorga nem sequer impedia o
credor de cobrar pessoalmente o crédito. Para evitar esses inconvenientes, o Direito
Justinianus veio admitir a possibilidade de o adquirente do crédito participar a situação ao
devedor, através de uma denuntiatio, a partir da qual o devedor deixaria de poder pagar ao
credor. Ao mesmo tempo, era concedida, ao terceiro, uma actio utilis para cobrar o crédito no
seu próprio nome, e já não como representante do credor, subsistindo, por isso, essa acção,
mesmo que a procuração fosse revogada ou se extinguisse por morte do representado. No
entanto, em homenagem ao princípio da intransmissibilidade do crédito, considerava-se ainda

3
Menezes Leitão. Direito das Obrigações. 2006. Almedina. Volume II. 6ª Edição
3
o primitivo credor como o seu verdadeiro titular, já que o adquirente tinha, ao seu dispor,
apenas uma actio utilis e não uma actio directa.

A partir dos séculos XIV e XV, em virtude do desenvolvimento das trocas comerciais,
esse esquema foi abandonado, considerando-se admissível a transmissão das obrigações, com
a privação integral do direito por parte do transmitente.

A cessão de créditos passou, assim, às diversas codificações, tendo sido consagrada nos
arts.º 1689.º e ss do Código Civil francês, bem como nos Códigos por ele influenciados, entre
os quais o nosso Código Civil de 1967, (art.º 703.º).

A transmissão dos débitos levantou maiores objecções, mas a sua consagração definitiva
no BGB em 1896, (arts.º 414.º e ss.), por influência do trabalho da Escola Pandectista, levou à
sua admissão generalizada nos Códigos que o sucederam, conforme veio a suceder no Código
Civil italiano e no nosso actual Código Civil.

Finalmente, admitiu-se a possibilidade de se transmitirem não apenas créditos ou débitos


enquanto situações isoladas, mas a própria posição contratual, com o conjunto de situações
jurídicas que a compõem. Denomina-se essa figura de cessão da posição contratual, a qual foi
introduzida no Código italiano de 1942, nos (arts.º 1406.º e ss.) e, a partir dai, no nosso
Código Civil, nos (arts.º 424.º e ss.)

1.2 Noção e admissibilidade da cessão de créditos

A cessão de créditos4 é o contrato pelo qual o credor transmite a terceiro, independemente


do consentimento do devedor, a totalidade ou uma parte do seu crédito (art.º 577.º ).

Conforme resulta do art.º 577.º, para a cessão de créditos, não se exige o consentimento
do devedor, nem ele tem de prestar qualquer colaboração para que esta venha a ocorrer. O
crédito é, efectivamente, uma situação jurídica susceptível de transmissão negocial, sem que o
devedor tenha de outorgar ou, de alguma forma, colaborar com negócio transmissivo5.

O art.º 577.º, n.º 1 reconhece a cessão de créditos nos seguintes termos: «o credor pode
ceder, a terceiro, uma parte ou a totalidade do crédito, independemente do consentimento do
devedor, contando que a cessão não seja interdita por determinação da lei ou convenção das
partes e o crédito não esteja, pela própria natureza da prestação, ligado à pessoa do credor».

4
Cfr. Vaz Serra. Cessão de Créditos ou de outros direitos. No BMJ. 2022. pp. 8 e 9
5
Cfr. Antunes Varela. Obrigações. II. 296
4
Como vemos, esta norma consagra, expressamente, a admissibilidade da cessão parcial ou
total do crédito.

Quanto à dispensa do consentimento do devedor, torna-se manifesto que o regime será


outro se a cessão de créditos co – envolver a transmissão de uma obrigação. Exigir-se-á, na
hipótese, o consentimento ou ratificação do devedor – credor (arts.º 424.º e 595.º).

Deriva, também, da norma em apreço que a incedibilidade de um crédito pode resultar da


proibição da lei, do acordo das partes, ou ainda do facto de o crédito ser pôr sua natureza
inerente à pessoa do respectivo titular. Logo, não se mostram cedíveis os créditos com
carácter estritamente pessoal, no qual o direito a alimentos constitui um caso típico6.

Reveste-se, de particular interesse, o disposto no art.º 579.º, que prevê certas categorias de
pessoas a quem não podem ser cedidos, directamente ou por interposta pessoa, créditos ou
outros direitos litigiosos: os Juízes, os Magistrados do Ministério Público, os Funcionários de
Justiça e os Mandatários Judiciais (Advogados, Solicitadores), se o processo decorrer na ária
em quem exercem, habitualmente, a sua actividade ou profissão. E, do mesmo modo, os
peritos, árbitros e demais auxiliares de justiça que tenham intervenção no respectivo processo.

A cessão efectuada contra referida proibição, além de ser nula, sujeita o cessionário à
obrigação de reparar os danos causados. Por outro lado, este não poderá invocar a nulidade da
cessão (art.º 580.º, ns.º 1 e 2).

Abrem-se, todavia, no art.º 581.º, três excepções à proibição da cessão de crédito ou


outros direitos litigiosos:

❖ Quando o cessionário goze de direito de preferência na cessão ou tenha o direito de


remissão;
❖ Quando a cessão se realize para defesa de bens possuídos pelo cessionário;
❖ Quando a cessão se fizer ao credor em cumprimento do que lhe seja devido.

Também se admite, conforme observamos, um acordo entre o credor e o devedor no


sentido de proibir ou restringir a cessão do crédito. Mas um pacto desta natureza não tem
valor absoluto, visto que somente será oponível ao cessionário desde que ele conheça a sua
existência ao tempo da cessão (art.º 577.º, n.º 2).7

6
Cfr. Menezes Cordeiro. op. cit. p. 89
7
Cfr. Pestana de Vasconcelos. Cessão de Créditos. P. 17
5
Observemos que a cessão pode ter vários objectos, isto é, não lhe corresponde uma
finalidade ou causa única e preestabelecida na lei. Assim, o cedente tanto a realiza, porque
recebe uma contrapartida (cessão a título oneroso), deseja fazer uma liberalidade ao
cessionário (cessão a título gratuito), pretende extinguir uma obrigação (cessão solutória), etc.

Acresce-se que a transmissão singular de um crédito pode efectuar-se através de negócio


jurídico entre vivos, consistindo num contrato, ou em testamento, a título de legado. Só a
primeira modalidade costuma ser considerada cessão propriamente dita, apresenta-se como
um contrato de causa variável. Mas, a nossa lei parece abranger uma e outra num conceito
amplo de cessão (Cfr, art.º 578.º, n.º 2), posto que a transferência «mortis causa» de um
crédito ofereça especialidades próprias da sua natureza de acto de última vontade.

Depois do que salientamos – que a cessão constitui um esquema negocial genérico,


susceptível de concretizações diversas, compreender-se-á o disposto no art.º 578.º, n.º 1,
relativamente ao regime aplicável: «os requisitos e efeitos da cessão entre as partes definem-
se em função do tipo de negócio que lhe serve de base».

Apenas se precisando que «a cessão de créditos hipotecários, quando não seja feita em
testamento e a hipoteca recaia sobre bens imóveis, deve necessariamente constar de escritura
pública» (n.º 2 do art.º acima referido).

Ao credor, que transmite o crédito ao outrem, chama-se cedente; ao adquirente do crédito,


sucessor do credor na titularidade do direito, dá-se o nome de cessionário. E, ao devedor do
crédito transmitido, é usual chamar-lhe devedor cedido (debitor cessos).

O termo cessão tanto designa o acto (contrato) realizado entre cedente e cessionário, como
o efeito fundamental da operação (a transmissão da titularidade do crédito). Como contrato
entre o cedente e cessionário, a cessão distingue-se do contrato a favor de terceiro, em que o
promissário tenha atribuído, a terceiro (beneficiário), o direito de crédito de que dispunha
sobre o promitente (art.º 443.º, n.º 2), embora o resultado prático a que este tende seja
equiparável ao da cessão.

A nota mais destacada, na noção legal da cessão de créditos (art.º 577.º), é a de a mudança
de credor, por ela operado, prescindir do consentimento do devedor.

As mais das vezes, a alteração, na pessoa do credor, não prejudicará o devedor que, em
quaisquer circunstâncias, continuará adstrito à necessidade de efectuar a mesma prestação.
Mas, nem sempre assim sucede. No caso da cessão parcial, há um ou mais cessionários, isso
6
pode não ser de todo em todo indiferente para o devedor ter que efectuar apenas um acto de
cumprimento, como antes da cessão, ou ter que desdobrar o cumprimento em vários actos,
eventualmente realizáveis em locais diferentes.

Se, não obstante tal possibilidade, a lei prescinde do consentimento do devedor, é porque,
deliberadamente, quis-se sacrificar este eventual incómodo ou prejuízo do obrigado às
vantagens que a livre disposição do crédito proporciona, de um modo geral, ao credor.

1.3 Objecto da cessão de créditos

O objecto da cessão de crédito é, precisamente, o direito de crédito. Este tema impõe


algumas considerações:

❖ A primeira é que trata da cessão de bens futuros, visto que os efeitos da cessão
dependem do negocio – base (art.º 578.º, n.º 1). Assim sendo, a questão tem de ser
analisada à luz do negócio - base. A esse, exige-se que o seu conteúdo seja
determinável, que não seja contrário à ordem pública ou aos bons costumes, que não
implique um esquema de jogo ou aposta e que não seja um negócio gratuito. A cessão
de bens futuros, quando onerosa, segue o regime previsto para compra e venda de bens
futuros (art.º 939.º)

A cessão de créditos futuros, regra geral, é possível, podendo verificar-se uma de três
situações:

❖ Crédito já existe, mas é exigível;


❖ Existem os elementos que vão conduzir ao surgimento do crédito;
❖ Não há ainda qualquer processo que conduza à constituição do crédito cedido.
❖ A segunda tem a ver com a venda de mera expectativa, sendo que é possível,
dependendo da transferência do surgimento do direito que dessa expectativa possa
resultar. Havendo excepção de crédito futuro, cabe saber a partir de que momento é
que o mesmo é adquirido pelo cessionário. Para responder a isso, existem duas teorias:
❖ Teoria da aquisição directa – a aquisição do crédito futuro dá-se, directa e
imediatamente, na esfera jurídica do cessionário.
❖ Teoria da transmissão – a aquisição ocorreria na esfera jurídica do cedente, passando
depois à do cessionário.

À estas duas, juntou-se depois uma terceira, sufragada por Larenz. Da mesma, resultaria a
necessidade de distinguir entre:
7
❖ Créditos cujo fundamento jurídico existia no momento da cessão, situação na qual a
aquisição operaria na esfera jurídica do cessionário;
❖ Créditos cujo fundamento jurídico não existia no momento da cessão. Neste caso, a
aquisição dar-se-ia na esfera jurídica do cedente, passando depois a do cessionário.

No Direito Lusófono, vigora a teoria da transmissão. O Professor Menezes Cordeiro diz-


nos que a resposta implica sempre análise do negócio-base. Assim, se for transmitido o status
originador do crédito, quando este ocorra, ocorrerá logo na esfera jurídica do cedente. Se
estivermos a falar de um crédito comum, ele surge na esfera jurídica do cedente, só depois
passando à do cessionário. Neste segundo caso, quando o crédito surgir na esfera do cedente,
o mesmo fica “bloqueado” – ele não poderá ficar com o crédito para si só, porque o mesmo
surge na sua esfera jurídica.

Se, a cessão de créditos futuros operar por via de compra e venda, terá a sua aplicação no
art.º 880.º. Cedente fica obrigado a exercer as diligências necessárias para que o cessionário
adquira os bens vendidos, segundo o que for estipulado ou resultar das circunstâncias do caso.

1.4 Cessão de crédito e sua causa

O contrato de cessão como contrato policausal ou polivalentes reduz a cessão à


transmissão do crédito feito pelo credor a um terceiro, independemente do consentimento do
devedor.

A cessão tem, por conseguinte, a sua causa variável de caso para caso, que o art.º 577.º,
intencionalmente, omite ao definir a figura, por querer introduzir, na noção legal, apenas as
notas comuns a todas as espécies geradoras do fenómeno de transmissão de direitos de
crédito.

Será a omissão do art.º 577.º e prenúncio do que a causa da transferência do crédito não
exerce nenhuma influência no regime jurídico das situações integradora da cessão? Será a
cessão, por outras palavras, um negócio abstracto?8

Diz-se abstracto, o negócio cuja validade não é prejudicada pelas faltas ou defeitos
inerente à relação jurídica fundamental que lhe serve de base. Na fixação do seu regime
jurídico, abstrai-se da causa negotii.

8
O tema é largamente tratado por Mancini (op. cit., p. 124 e ss.) e por Panuccio. op. cit. p. 4
8
A emissão e o endosso da letra de câmbio (ou dos títulos à ordem), no geral, constituem
negócios abstractos no domínio das chamadas relações mediatas, porque nem o aceitante, nem
o endossado, podem opor, ao portador (mediato) do título, os vícios inerentes ao contrato
(relação substancial) que serviu de base ao aceite ou ao endosso. Certos negócios de
transmissão de direitos reais são considerados no Direito Germânico como negócios
abstractos, porque os vícios ligados à relação fundamental (compra, doação, troca,
constituição de sociedade, etc..) podem obrigar o adquirente a restituir nas relações entre as
partes, mas não dão lugar ao efeito real próprio da nulidade ou da anulação.

Por um lado, o art.º 578.º consagra que os efeitos (tal como os requisitos) da cessão entre
as partes se definem em função do tipo de negócio que lhe serve de base. Consequentemente,
se a transmissão do crédito, operada pelo credor, tiver por base uma venda do crédito (Cfr.
art.º 874.º) e a venda for nula ou vier a ser anulada por qualquer vício inerente à formação do
negócio (por ser de outrem o crédito cedido; porque o crédito não existe, contra a convicção
das partes; por causa do erro, dolo ou coacção de que foi vítima o comprador; etc.). Os efeitos
da invalidade repercutem-se na esfera jurídica de terceiros (como o segundo cessionário a
quem o primeiro tenha cedido o crédito; o arrematante do crédito em execução movida contra
o cessionário; o credor do cessionário a quem este tenha dado em penhor o crédito cedido;
etc.), de harmonia com as regras fixadas nos arts.º 289.º a 291.º.

Por outro lado, sabe-se que «o devedor pode opor aos cessionários, ainda que estes os
ignorassem, todos os meios de defesa que lhes seriam lícito invocar contra o cedente» (art.º
585.º). Assim, se o negócio que constitui título do crédito sofrer de qualquer vício que
determine a sua nulidade ou anulação, o devedor poderá invocar os meios de defesa
correspondentes contra o cessionário e os seus sub - adquirente, nos precisos termos em que
lhe era lícito usar deles contra o primitivo credor.

Tem-se dito, no entanto, que são irrelevantes, para o devedor (debitor cessos), os vícios de
contrato de cessão: se for notificado da cessão, ou dela tiver conhecimento por outra via e
pagar a divida ao cessionário. O pagamento efectuado pelo debitor cesssos conservará a sua
validade e eficácia, ainda que a cessão venha, posteriormente, a ser declarada nula ou anulada.

Duas observações cumprem, no entanto, registar a propósito do tratamento concedido


nesse aspecto à situação do devedor.

Em primeiro lugar, não é o simples facto de o crédito ter sido cedido a terceiro debitor
cesso do devedor (e agir de boa – fé) que o número do art.º 762.º impõe a ambos os sujeitos
9
da obrigação. E, no recto cumprimento desse dever, incumbe-lhe averiguar da existência e da
validade da cessão, não aceitando como boa qualquer informação irresponsável que,
acidentalmente, chegue ao seu conhecimento ou a afirmação de qualquer pretenso cessionário
de crédito. Do contraio, arriscar-se-á até mesmo que cumprir segunda vez.

Se, depois de se ter devidamente esclarecido, sobretudo junto do cedente, acerca da


existência da validade da cessão, o devedor cumprir junto do cessionário, o pagamento não
perderá, na verdade, a sua validade e eficácia, pelo facto de o contrato de cessão vier a ser
mais a ser declarado nulo ou anulado.

Porém, conjugando esta solução com as soluções aplicáveis aos dois aspectos da cessão
primeiramente analisados, a conclusão lógica a extrair dessa apreciação global, quando ao
regime do pagamento feito ao cedente antes da notificação ou a aceitação da cessão, é que se
trata de proteger o pagamento (do devedor de boa – fé) ao credor aparente, não de considerar
a cessão como negócio abstracto9. Sendo a cessão um negócio causal, visto o seu regime estar
ortodoxamente ligado (quanto aos requisitos e quanto aos efeitos do contrato) à causa domina
a transmissão do crédito, pode provocar alguma estranheza no facto de ela não vier incluída
no título IIº do livro das Obrigações, ao lado dos Contratos em Especial, e de aparecer pelo
contrário, regulada no título que trata das Obrigações em Geral. A explicação, de facto,
assenta na circunstância de, tendo a cessão de créditos, não uma causa fixa, mas uma causa
variável, a lei ter preferido restringido a disciplina legal (típica) da cessão, os aspectos
comuns à diversas espécies que a integram e remeter através da regra estabelecida no número
do art.º 578.º, para os lugares correspondentes à causa de cada uma dessas espécies a
determinação da parte restante do seu regime.

Todavia, desde que a norma permissiva do art.º 588.º incorpora, justificadamente na


disciplina da cessão, os aspectos do seu regime ligados à causa (variável) da transmissão do
crédito, carece, mas conforme, não só com a complexidade vital das espécies reguladas, mas
também com a realidade sistemática legislativa, considerar a cessão como um contrato
policausal ou polivalente que à semelhança de que Mancini10 e outros autores poder chamar-
lhe de um contrato de causa genérica.

Autonomia da cessão, que Mancini diz ser posta em crise, quando se introduz no esquema
dela a causa concreta a que a transmissão do crédito se encontra adstrita, procede,

9
Vaz Serra, ob. cit. p. 13
10
Ob. cit. p. 144 e segs.
10
exactamente, da variabilidade da causa e do carácter específico do fenómeno da transmissão
do crédito.

1.5 Regime e eficácia da cessão de créditos

Os requisitos exigidos para a cessão dependem do negócio – base, art.º 578.º, n.º 1. É
compreensível: a cessão é causal, pelo que depende de uma fonte – o negocio-base. A
hipótese de uma cessão que não tenha qualquer ligação com o negocio-base, é afastada por
dois argumentos:

❖ O próprio art.º 578.º, n.º 1;


❖ O art.º 585.º.

Com isto, conclui-se que é, a partir do negócio – base que se define os requisitos
subjectivos, objectivos e de conteúdos. As regras de negócio – base incluem as regras
atinentes à forma da cessão. A cessão não subsiste sem o negócio – base pelo que, se o
mesmo for nulo, a cessão sê-lo-á também. Seguem-se as regras da restituição – art.º 289.º.

A cessação de créditos é ineficaz, em relação a terceiros, a transmissão de um crédito, se


não se celebrar mediante um instrumento público ou instrumento particular, revestidos das
solenidades.

A cessão de créditos não tem eficácia em relação ao devedor, se não quando a este
notificada; mas por notificado se tem o devedor que, em escrito público ou particular, se
declarou ciente da cessão feita.

1.6 Requisitos da cessão de créditos

1.6.1 Um negócio jurídico a estabelecer a transmissão da totalidade ou de parte do


crédito

O negócio jurídico pode consistir uma compra e venda (art.º 874.º), numa doação (art.º
940.º), numa sociedade (art.º 984.º), numa dação em cumprimento (art.º 837,º), etc.

A cessão de crédito apresenta-se como um efeito deste mesmo negócio, no qual se integra.
Dai que a lei determina, expressamente, que os requisitos e os efeitos da cessão entre as partes
se definem em função do tipo de negócio que lhe serve de base (art.º 578.º, n.º 1), nos termos
do qual se estabelece ainda a garantia quanto à existência e exigibilidade do crédito (art.º
587.º). Assim, será através do regime do negócio – base que se determinará qual a forma e o
11
regime jurídico aplicável a cessão de créditos (a compra e venda de um crédito está sujeita ao
regime da consensualidade – arts.º 219.º e 875.º, ao contrário da doação, que terá de ser
realizada por escrito – art.º 947.º, n.º 2). No entanto, o art.º 578.º, n.º 2 exige a forma de
escritura pública para cessão de créditos hipotecários quando esta não seja feita em testamento
e a hipoteca recaia sobre bens imóveis.

Será, também, em função desta remissão para o negócio que serve de base à cessão que
deverá resolver a questão da admissibilidade da cessão de créditos futuros. Efectivamente,
prevendo, genericamente, a prestação de coisas futuras (art.º 399.º), a lei admite que os bens
futuros possam ser objecto de venda (art.º 880.º), mas não de doação (art.º 942.º, n.º 1).
Assim, desde que esteja preenchido o requisito de determinabilidade (art.º 280.º, n.º 1), é
possível a cessão onerosa de créditos futuros, podendo estes resultar, quer do negócio jurídico
já celebrados (ex.: rendas futuras relativamente a um arrendamento vigente), quer de negócio
ainda não celebrado (ex.: preço das mercadorias que o cedente irá vender). Já não parece,
porém, admitir a cessão gratuita de créditos futuros11.

É, ainda, discutido se na cessão de créditos futuros, o crédito surge directamente na esfera


do cessionário (teoria da imediação) ou venha a passar primariamente pelo património do
cedente (teoria da transmissão). Professor Menezes Leitão adopta a teoria da transmissão.

Normalmente, o negócio jurídico que serve de base à cessão será um contrato, pelo que,
será necessário para sua formação, tanto a declaração negocial do cedente, como do
cessionário12. Não há, porém, obstáculos a que a cessão de créditos resulte de negócios
jurídicos unilaterais, nos casos em que estes são admitidos (art.º 457º e ss). Efectivamente, a
lei prevê, igualmente, a possibilidade de a cessão de créditos resultar do contrato a favor de
terceiros (art.º 443.º, n.º 2), caso em que aquisição do crédito também se verificará sem a
declaração do cessionário (44.º, n.º 1).

Se o negócio transmissivo vier a ser declarado nulo ou anulado, é manifesto que tal
determinará a anulação da transmissão do crédito de acordo com as regras do arts.º 289.º a
291.º.

11
Cfr. Antunes Varela. op. cit. pp. 317 e ss.
12
Cfr. Ribeiro de Faria. Obrigações. II. pp. 525 e ss.
12
1.6.2 A inexistência de impedimentos legais ou contratuais a esta transmissão

Relativamente aos impedimentos legais à transmissão do crédito, verifica-se que, em


certos casos, a lei proíbe que o crédito seja cedido. Estão, nesta situação, créditos como o
direito de preferência (art.º 420.º) ou direito a alimento (art.º 2008.º).

Um caso específico, em que a situação também sucede, diz respeito à cessão de crédito e
direitos litigiosos, prevista nos arts.º 579.º e ss..

Se, apesar da proibição, vier a ser realizada a cessão, é essa considerada nula (art.º 580.º,
n.º 1). A lei prevê, porém, que a nulidade não pode ser invocada pelo cessionário (art.º 580.º,
n.º2).

A cessão de créditos pressupõe, ainda que não tenha sido convencionado entre o devedor e
o credor, que o crédito não seria o objecto de cessão (art.º 577.º). Trata-se de denominado
pactum de nom cedentum, o qual pode ser estipulado expressa ou tacitamente13. No entanto, a
nossa lei restringe bastante a eficácia prática deste pacto, uma vez que faz depender a sua
oponibilidade ao cessionário do seu conhecimento no momento da sua cessão (art.º 577.º, n.º
2).

1.6.3 A não ligação do crédito em virtude da própria natureza da prestação à pessoa


do credor

Estão, nessa situação, os créditos que se constituem para a satisfação das necessidades
pessoas do credor, como o direito a alimento (art.º 2003.º) ou apanágio dos cônjuges
sobrevivo (art.º 2018.º, os créditos de onde resulte uma dependência pessoal entre credor e
devedor, como o contrato de serviço domestico, e ainda os créditos em que se tomem, em
especial consideração, as qualidades ou condições do credor, como a prestação de serviço dos
Médicos ou dos Advogados.

Em todas estas situações, a prestação encontra-se, intimamente, ligada à pessoa do credor,


não sendo assim admitida a cessão, uma vez que ela implicaria sujeitar o devedor até que
realizar a prestação à pessoa diferente daquela, em relação à qual a prestação se encontra, por
natureza, intimamente ligada. Neste caso, a natureza da prestação constitui um obstáculo à
cessão do crédito, pelo que, se ela, apesar disso, for realizada, deverá considerar-se nula (art.º
294.º).

13
Cfr. Carlos Mota Pinto. op. cit. 227 e ss.
13
1.7 Garantia da existência e exigibilidade do crédito

O art.º 794.º do Código de 1867 prescrevia que “O cedente é obrigado a assegurar a


existência e a legitimidade do crédito ao tempo da cessão, mas não a solvência do devedor,
salvo se assim for estipulado.”

O sentido geral da disposição não levantava dúvidas. Sabia-se que o artigo pretendia
consagrar, no fundo, a ideia profundamente enraizada no instituto de que o cedente garante ao
cessionário o nomen verum (a sua qualidade de credor cível), mas não o nomem bonum (o
pagamento efectivo, a solvência do devedor).

Mas, a redacção do preceito é que levantava reparos, como suscitava crítica a solução
adoptada. Sendo a existência e a legitimidade do crédito ser um facto objectivo, independente
da vontade das partes, começa por não ser muito própria a afirmação de que o cedente é
obrigado a assegurar uma e outra, como se qualquer dos requisitos dependesse da prestação a
que ele se encontra adstrito.

Pior, no entanto, do que esse efeito, mas formal do que substancial, era o facto de o art.º
794.º não distinguir, na responsabilidade que lançava sobre o cedente, entre as várias causas
(possíveis) da transmissão do crédito. O art.º 587.º do novo código procurou atalhar a um e
outro dos defeitos apontados. Por um lado, dizendo que o cedente garante (e não que ele é
obrigado a assegurar) a existência e a exigibilidade do crédito. Por outro, acentuando que a
garantia varia, consoante a natureza gratuita ou onerosa do negócio em que a cessão se
integra.

Assim, se a transmissão for operado por compra do crédito, o cedente responderá pela
existência e exigibilidade do direito, nos termos dos arts.º 892.º e ss. Se o crédito for doado, a
sua responsabilidade definir-se-á nos termos menos severos dos arts.º 956.º e 957.º.14

1.8 Garantia da Solvência do Devedor

Respondendo pela existência e exigibilidade do crédito, o cedente não responde depois


pela realização efectiva da prestação. Não garante o cumprimento da obrigação. Salvo se, por
declaração expressa (art.º 217.º n.º 1), tiver garantido a solvência do devedor. Não há
fórmulas sacramentais para esse efeito, bastando, por conseguinte, qualquer expressão que

14
Sobre o alcance preciso da garantia da existência e da exigibilidade do crédito, Panuccio, op. cit., n. 22
14
traduza a ideia de o cedente se obrigar a reparar o prejuízo resultante para o cessionário da
insolvência do devedor, nos termos próprios das declarações expressas (art.º 217.º).

1.9 Os efeitos da cessão de crédito

1.9.1 Generalidades

Relativamente à cessão de créditos, deveremos distinguir os seus efeitos em relação às


partes dos seus efeitos em relação ao devedor e em relação a terceiros.

Examinemos sucessivamente estes efeitos:

1.9.2 Efeitos em relação às partes.

1.9.2.1 A transmissão do crédito do cedente para o cessionário

Em relação as partes, a cessão opera apenas por efeito do contrato, determinando logo este
a transmissão do crédito para o cessionário. No entanto, essa transmissão não é,
imediatamente, oponível a terceiros, uma vez que a lei dispõe que a cessão só produz os seus
efeitos em relação ao devedor após a sua notificação, aceitação (art.º 583.º, n.º 1), ou
conhecimento (583.º, n º 2). Sendo também a notificação ou aceitação pelo devedor que
decidi qual a cessão que vai prevalecer em caso de dupla alienação do mesmo crédito (art.º
584.º). Verifica-se, assim, uma diferenciação temporal na eficácia da cessão de créditos que,
em relação às partes, opera no momento da celebração do contrato, mas em ralação do
devedor ou a terceiros, só ocorre em momento posterior, quando o devedor é notificado da
cessão, a aceitação, ou dela tem conhecimento.

A ideia da diferenciação dos planos de eficácia da cessão de créditos, em relação às partes


ou em relação ao devedor e a terceiro, corresponde à forma clássica de explicação deste
regime. Ela veio, no entanto, a ser contestada por Mancini, que sustentou que, devido à
importância desempenhada pelo devedor na obrigação, seria um verdadeiro absurdo lógico
defender que o crédito pode ser transmitido para outrem, sem que a posição do devedor seja
logo afectada15. O autor defendeu, por isso, que a transmissão do crédito ocorre apenas com a
notificação, aceitação ou conhecimento pelo devedor, permanecendo até essa data o cedente
como titular do crédito, o que explicaria a eficácia liberatória do pagamento que a este venha
a ser feito, bem como a possibilidade de o cedente continuar a dispor do crédito, celebrando
outros contratos de alienação.

15
Cfr. Mancini. op. cit., pp. 29 e ss.
15
Apesar do carácter sedutor desta argumentação, ela não pode manifestantemente
proceder. Efectivamente, a tese que refere a perfeição do contrato, apenas ao momento da
notificação, a aceitação ou conhecimento pelo devedor, é manifestantemente incompatível
com a remissão do art.º 578.º para o negócio que serve de base à cessão, uma vez que, quer na
compra e venda (art.º 879.º, al. a)), quer na doação (art.º 954.º, al. a)), consagra-se a solução
da transmissão do direito por mero efeito do contrato. Após a sua celebração, é assim o
cessionário o verdadeiro titular do direito, podendo exercer perante o cedente as faculdades
que a ele correspondem como, por exemplo, a entrega dos documentos respeitantes ao crédito
(art.º 586.º) da mesma forma que o cedente pode, por sua vez, exigir-lhe que cumpra as
obrigações. A ineficácia do contrato, em relação ao devedor ou terceiros adquirentes,
constitui, assim, um mero limite à tutela do direito de crédito que não prejudica o facto de o
cessionário passar logo a ser perante o cedente, o efectivo titular do direito transmitido.

A transmissão pode ocorrer em relação à totalidade, ou apenas em relação à parte do


crédito, sendo que, neste último caso, ambos os créditos terão o mesmo grau, pelo que
nenhum deles terá preferência no pagamento.

1.9.2.2 A transmissão das garantias e acessórios do crédito

A transmissão do crédito verifica-se com todas as vantagens e defeitos que o crédito


tinha. Abrangendo, portanto, garantias e outros acessórios (art.º 582.º)16.

Relativamente às garantias, a lei determina que se transmitam as que não forem


inseparáveis da pessoa do cedente, excepto se este a estiver reservado ao consentir na cessão
(art.º 582.º, n.º 1). Assim, parece claro que as garantias de crédito como a fiança (arts.º 627.º e
ss), a consignação de rendimentos (arts.º 646.º e ss), o penhor (arts.º 666.º e ss), hipoteca
(artesº 689.º e ss) se transmitem para o cessionário, a menos que o cedente as reserve ao
consentir na cessão. Neste último caso, as garantias extinguir-se-ão, já que não ficaram a
garantir qualquer crédito.

Quanto aos privilégios creditórios, (arts.º 733.º e ss), a sua concessão atende
especificamente a causa do crédito, pelo que sempre que não continuam uma garantia
inseparável da pessoa do cedente, parece deverem poder ser transmitido para o cessionário17.

16
Cfr. Antunes Varela. op. cit. pp. 323
17
Cfr. Vaz Serra. op. cit. pp. 117 e ss.
16
Já relativamente ao direito de retenção (arts.º 754.º e ss), a questão apresenta-se
controvertida, defendendo a maioria da doutrina que se trata de uma garantia ligada
intimamente à pessoa do cedente, pelo que só poderá ser transmitida por acordo expresso
entre o cedente e o cessionário18.

Também, quanto à reserva de propriedade (art.º 409.º), é duvidoso que esta poder ser
transmitida com a cessão de crédito, uma vez que, para o seu exercício, seria necessária a
resolução do contrato por falta de pagamento do preço e, este é um poder que, apenas no
âmbito da cessão da posição contratual, poderia ser transmitido.

A lei considera também admissível a cessão do penhor ou da hipoteca sem o crédito (Cfr.
Art.º 676.º, 727.º e ss) para garantia de outros créditos sobre o mesmo devedor, mas já não do
direito de retenção (art.º 760.º).

Para além das garantias, transmitem para o cessionário os outros acessórios do crédito.
Assim, se o crédito vence juros, parece claro que o crédito a juros vencidos se transmite para
o cessionário, já relativamente aos juros vencidos, art.º 561.º determina a sua autonomia em
relação ao crédito principal, designadamente para efeitos de cessão, pelo que parece, não
deverá considerar-se abrangido pela transmissão do crédito principal, a menos que a tal seja
expressamente estipulado. Também, as cláusulas penais estipuladas, para a hipótese de
incumprimento, são transmitidas para o cessionário.

1.9.2.3 A transmissão das excepções

A transmissão abrange ainda as excepções que o devedor possuía contra o cedente (art.º
585.º). Efectivamente, a cessão de crédito não pode colocar o devedor em pior situação do que
aquela que se encontrava antes dela se ter realizado, pelo que é lógico que ele conserve todas
as excepções que possuía contra o cedente e as possas invocar perante o cessionário, mesmo
que este as ignorasse. Assim, se o devedor pode opor ao cedente as excepções que
impedissem o nascimento do crédito (v.g.: invalidade do negócio constitutivo), produzissem a
sua extinção (v.g: solução do contrato, cumprimento, prescrição19, compensação ou outra
causa de extinção), ou paralisassem o seu exercício (prazo da prestação, excepção de não
cumprimento do contrato, direito de retenção) continua naturais que resultem de factos

18
Ribeiro de Faria. op. cit. p. 532
19
No caso de o prazo de prescrição já ter sido iniciado, mas ainda não ter integralmente decorrido, a transmissão
do crédito não prejudica o seu decurso normal (art.º 308.º, n.º 1)
17
posterior à cessão ou, no caso do cumprimento e outros negócios relativos ao crédito, do seu
conhecimento pelo devedor (art.º 583.º, n.º2)

1.9.2.4 A garantia prestada pelo cedente

É elemento essencial da cessão e transmissão do crédito, pelo que a lei determina que o
cedente tenha que prestar, ao cessionário, a garantia da existência e exigibilidade do crédito
ao tempo da cessão, nos termos aplicáveis ao negócio gratuito, ao oneroso em que a cessão se
integra (art.º 587.º, nº 1). No entanto, o cedente só garante a solvência do devedor, se tiver
expressamente obrigado (art.º 587.º, n.º 2).

A garantia a prestar pelo cedente diz assim, regra geral, apenas respeito à existência e
exigibilidade do crédito, consistindo uma garantia por vícios do direito, que compreende o
segurar da subsistência e acionabiliadade do crédito ao tempo da cessão20, com todas as suas
garantias e acessórios, a qualidade de credor no cedente e a faculdade de dispor do crédito.
Naturalmente que essa garantia varia consoante o negócio que serve de base à cessão seja uma
compra e venda ou uma doação. No primeiro caso, o incumprimento da garantia dá lugar à
aplicação do regime do art.º 892.º e ss, enquanto no segundo caso, a situação será regulada
pelo art.º 956.º e 957.º21. Assim, no caso de se estar perante uma venda, o cedente terá que
restituir ao cessionário o preço do crédito (art.º 894.º) e responde objectivamente pelo danos
emergentes (art.º 899.º), podendo ainda constituir-se em responsabilidade pelo incumprimento
da obrigação de convalidação (art.º 900.º, n.º 1). Havendo porem, dolo da sua parte, o cedente
responderá por lucros cessantes, que podem ter por base o interesse contratual negativo (art.º
898.º) ou o incumprimento da obrigação de convalidação, no caso de o cessionário pretender
optar por essa solução, (art.º 900.º, n.º 2). No caso de doação, o cedente não responde
objectivamente pela existência da referida posição contratual, apenas tendo que responder se
tiver expressamente responsabilizado ou houver actuado com dolo (art.º 956.º e 957.º).

Pode, porém, além da garantia da existência e exigibilidade do crédito, o cedente ainda


assegurar a solvência do devedor, desde que a força por declaração expressa (art.º 217.º). Esta
situação distingue-se quer da solidariedade, quer da assunção cumulativa de divida, uma vez
que nela o credor pode exigir de qualquer dos obrigados o cumprimento da obrigação,
enquanto nesta garantia a o cedente só responde uma vez comprovada a insolvência do

20
O cedente não responde assim por causa extintivas do crédito posterior, à cessão, a menos que a sua
verificação lhe seja imputável, como por exemplo, não ter avisado o cessionário de que o créditos e encontrava
na iminência de prescrição
21
Cfr. Antunes Varela. op. cit. p. 331
18
devedor e apenas nos limites do prejuízo sofrido pelo cessionário, limitando-se até que
indemnizar o prejuízo que lhe cause essa insolvência. No entanto, ao contrário do que se
prevê noutros ordenamentos, não existente entre nós qualquer limitação da garantia da
solvência ou preço recebido pelo cedente22, podendo assim, a garantia prestada por este
extravasar daquilo que se recebeu do cessionário23.

1.9.2.5 Obrigação de entrega de documentos e outros elementos probatórios do crédito

A lei determina ainda que o cedente deve entregar ao cessionário os documentos e outros
probatórios do crédito, em cuja conservação não tenha interesse legítimo (art.º 586.º). Trata-se
de uma solução que bem se compreende já que, uma vez verificada a transmissão do crédito
devem ser entregues ao cessionário todos os elementos necessários para que ele possa ser
accionado. Dai que só havendo interesse legítimo (como no caso da cessão parcial), poderá o
cedente conservar estes elementos.

1.9.3 Efeitos em relação ao devedor

A cessão de créditos apenas produz efeitos em relação ao devedor, desde que lhe seja
notificada, ainda que extrajudicialmente, ou desde que ele aceite (art.º 583.º). A notificação e
a aceitação não estão sujeitas à forma especial (cfr. 219.º)24, podendo inclusivamente a
aceitação ser efectuada tacitamente (art.º 217.º), como acontecerá no caso de o devedor
combinar com o cessionário qualquer alteração na obrigação (lugar e tempo do cumprimento,
garantias, etc.).

Se o devedor, antes da notificação ou aceitação, por ignorar a cessão de créditos, pagar ao


cedente ou celebrar com ele algum negócio relativo ao crédito, quer o pagamento, quer o
negócio têm efeitos sobre o crédito, podendo inclusivamente produzir a sua extinção e esses
efeitos são oponíveis ao cessionário, excepto se ele demonstrar que o devedor tinha
conhecimento da cessão (art.º 583.º, n.º 2). A razão para esta restrição reside na má fé do
devedor que, sabendo que ocorreu a cessão, decide pagar ao cedente ou celebrar com ele
qualquer negócio relativo ao crédito. A alegação deste conhecimento por parte do cessionário
equivale assim a uma exceptio doli. É, por isso, necessário que tenha ocorrido um

22
A limitação da garantia ao preço recebido pelo cedente existe tanto no Código Francês (art.º 1694.º), como no
Código italiano (art.º 1267.º).
2323
Neste sentido, Antunes Varela, Obrigações. II. pp. 331 – 332, que conclui em consequência ser entre nós a
função da garantia pela solvência mais satisfatória do crédito do cessionário do que ressarcitória.
24
Neste sentido, Cfr. Menezes Leitão op. cit. p. 361, e na Jurisprudência
19
conhecimento efectivo, não bastando desconhecimento por negligência. Verificando-se, no
entanto, esse conhecimento, ele terá o mesmo efeito que a notificação ao devedor.

A posição do cessionário que veja o seu direito afectado, resume-se à possibilidade de


instaurar uma acção de enriquecimento sem causa contra o cedente (neste caso,
enriquecimento por intervenção através da disposição eficaz de um direito alheio) 25. É por
isso, do interesse do cessionário fazer a notificação ao devedor. Sendo a obrigação solidária,
parece que a notificação deve ser efectuada a todos os devedores, já que um devedor não
notificado poderia cumprir perante o credor, sendo o efeito extintivo comunicado a todos
devedores, mesmo notificados, por força do art.º 523.º.

Conforme se referiu, o devedor pode opor ao cessionário, ainda que este o ignorasse,
todos os meios de defesa que lhe era lícito invocar contra o cedente, com ressalva dos que
provenham de factos posterior ao conhecimento da cessão (art.º 585.º). Efectivamente, se a
cessão dispensa o consentimento do devedor, não o pode colocar em pior situação do que
aquela em que ele anteriormente se encontrava. Assim, toda e qualquer excepção, seja ela
temporária ou definitiva que o devedor antes da cessão possuísse contra o cedente (v.g., prazo
da prestação, excepção de não cumprimento do contrato, prescrição ou compensação) é
oponível ao cessionário, permitindo ao devedor recusar-se a efectuar-lhe o cumprimento26.

1.9.4 Efeitos em relação a terceiros

Em relação a terceiros, a cessão produz efeitos, independemente de qualquer notificação,


pelo que, a partir da sua verificação, os credores do cessionário podem executar o crédito ou
exercer acção sub – rogatória.

Há, no entanto, um caso em que a eficácia da cessão em relação a terceiros depende da


notificação ao devedor ou da sua aceitação por este, o que consiste na situação de o crédito ser
cedido a mais de que uma pessoa. Neste caso, a lei determina que prevalece a cessão de que
primeiro tiver sido notificada ao devedor ou por este tiver sido aceite (art.º 584.º), sendo
assim, a notificação ou aceitação pelo devedor o factor que determina quais os diversos
cessionários irá efectivamente adquirir o crédito. Em consequência, se algum dos cessionários

25
Cfr. Menezes Leitão. O enriquecimento sem causa no Direito Civil (estudo dogmático sobre viabilidade de
configuração unitária do instituto face à contraposição entre as diferentes categorias de enriquecimento sem
causa). Lisboa. C.E.F. 1996 pp. 785 e ss.
26
Caberá, neste caso, ao cessionário exercer a garantia de que eventualmente disponha contra o cedente, ao
abrigo do art.º 587.º.
20
decidem notificar o devedor da cessão, parece que ele perderá a possibilidade de efectuar o
pagamento, quer ao cedente, quer a qualquer outro cessionário, sendo essa a cessão que irá
prevalecer.

Pode, porém, perguntar-se o que sucede se o devedor conhecer a prioridade da primeira


sessão e decidir aceitar a segunda. A questão é legítima, uma vez que não foi estabelecida
nesse domínio a ressalva da possibilidade de o cessionário provar o conhecimento do devedor
da sua prioridade, à semelhança do previsto no art.º 583.º, nº 2. Assunção Cristas vem, no
entanto defender a mesma solução, considerando que se o devedor conhece a prioridade da
primeira cessão e decide pagar o segundo cessionário não realizará um pagamento
liberatório27. Já Pires de Lima e Antunes Varela pronunciam-se no sentido da rigidez da
solução estabelecida no art.º 584.º. que se afastaria do regime do art.º 583.º, nº 2, por uma
razão de certeza e de segurança, tanto em benefício do devedor quanto dos próprios
cessionários28.

Cabe tomar posição neste debate. Em primeiro lugar deve-se salientar que resulta da
redacção do art.º 584.º que este resolve a questão da prevalência das cessões de créditos, não
com base na prioridade do negócio celebrado, mas na notificação que venha a ser realizada ao
devedor ou na aceitação da cessão por ele emitida. O primeiro cessionário do crédito vem
assim a perdê-lo, se o segundo se adianta na notificação já que o devedor não a pode rejeitar
mesmo que conhecesse a prioridade de uma cessão anterior. Se não ocorrer a notificação é a
aceitação que produz os mesmos efeitos, resolvendo-se por essa via a questão da prevalência
entre as cessões.

Este regime não é, porém, incompatível com a solução do art.º 583.º, n.º 2, uma vez que
esta norma se refere a inoponibilidade ao cessionário do pagamento ou de outros negócios
jurídicos de disposição do crédito, ocorridos antes da notificação ou aceitação. Se ocorre uma
dupla alienação do crédito e o devedor tem o conhecimento positivo da situação, ele já não
pode pagar ao cedente, uma vez que o cessionário poderia invocar contra ele a exceptio doli
do art.º 583.º, n.º2. Mas nesse enquadramento, que sentido faz admitir que o cessionário não
possa usar da mesma exceptio doli, se o devedor, antes de qualquer notificação paga a um
segundo cessionário que sabe não ser o efectivo titular do crédito? Não nos parece que haja
quaisquer razões de segurança jurídica que obstem à sua invocação.

27
Cfr. Assunção Cristas. Direitos das Obrigações. (2000). II. pp. 239 e ss.
28
Cfr. Pires de Lima/Antunes Varela. Código Civil Anotado. I. 4ª ed., Coimbra. p. 600
21
Mas, neste enquadramento, fará sentido admitir que o devedor, tendo conhecimento
positivo da dupla alienação possa, antes da notificação, escolher a seu bel – prazer qual o
cessionário que pretende ter como credor, através da aceitação de qualquer uma das cessões?
Não nos parece que a lei possa consagrar uma situação deste tipo, uma vez que a escolha do
devedor seria determinada por conveniência pessoais, que não merecem tutela legal. Deve,
por isso, interpretar-se restritivamente o art.º 584.º e considerar-se que a aceitação pelo
devedor de uma das cessões só releva para a escolha do cessionário nos casos em que o
devedor desconhece a existência de varias cessões29. No caso contrario, o primeiro
cessionário pode sempre, ao abrigo do art.º 583.º, n.º 2, considerar inoponível a aceitação da
segunda cessão, demonstrando que o devedor conhecia a prioridade do negócio que este
celebrará. Efectivamente, neste caso, a aceitação é realizada dolosamente, pelo que deve ser
sujeita a mesma exceptio doli.

Assim se consegue compatibilizar os arts,º 583.º, n.º 2 e 584.º. no caso de dupla alienação
do mesmo crédito, a prioridade é atribuída com base na notificação que primeiro vier a ser
efectuada ao devedor, salvo se ele antes, desconhecendo a dupla alienação, tiver aceite
alguma das cessões. Tendo, porém, o devedor conhecimento positivo de quem é o verdadeiro
titular de crédito, este pode considerar inoponível qualquer pagamento ou negócio jurídico a
este respeitante, celebrado pelo devedor com qualquer falso titular, aqui se incluindo
naturalmente a própria aceitação desse falso titular como cessionário.

1.10 Algumas figuras especiais ligadas à cessão de créditos

1.10.1 Cessão de créditos futuros

O ponto de maior discussão envolvendo a denominada cessão de créditos futuros diz


respeitos a saber se o crédito se forma directamente no património do cessionário ou se, ao
contrário, se forma inicialmente no património de cedente, para então ser transferido ao
património do cessionário. Trata-se da oposição entre a teoria da imediação e a teoria da
transição.

A cessão de créditos futuros, na realidade, apenas necessita que se determina, o que se


cede, vale dizer: é preciso que, quando do nascimento do crédito, se saiba ao certo qual será o
crédito cedido. No momento em que nasce o crédito no património do cedente, transmite-se

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O conceito de aceitação do art.º 584.º é idêntico ao do art.º 583.º, n.º 1, e refere-se a uma única cessão de que
se teve conhecimento, não correspondendo a uma escolha entre várias cessões
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ao cessionário; a eficácia em relação ao devedor depende, contudo, da notificação ou
declaração de ciência deste (art.º 290.º.C.C.), assim como a eficácia a terceiros depende da
forma pública ou forma particular revestida das especificidades do art.º 654.º, nº1 C.C., mais
registo (art.288.º.C.C.). Em verdade, o cessionário adquiriu o crédito como sucessor do
cedente (aquisição derivada), e não directamente.

Importante questão de regime a ser considerada em face da cessão de créditos futuros diz
respeito a substância da operação perante a falência do cedente. Uma primeira tese aponta no
sentido de que a cessão de créditos futuros não pode subsistir, uma vez reconhecida a situação
de insolvência do cedente. Uma vez que não se verifica a imediata transferência do crédito, a
posterior declaração de falência obsta a translação. Já uma segunda tese impressionada pela
circunstância de que a operação já se realizou já estava consolidada ao tempo da insolvência,
afirma que não pode ser tocado pela insolvência posterior do cedente. Em conformidade com
a teoria da transição ou transmissão, é de se reconhecer que o crédito, ao se formar, se forma
no património do cedente antes de passar ao do cessionário, de maneira que a verificação da
situação de insolvência bloqueia o poder de disposição do cedente (posição jurídica subjectiva
elementar incerta no crédito) – competindo ao administrador da massa definida sobre a
concretização ou não cessão.

1.10.2 Cessão de créditos em garantia

A cessão de créditos em garantia ou em segurança é cessão fiduciária, assim como a


cessão de créditos para fins de cobrança. Há um plus, um fim especial que é conferido à
operação, além do seu fim fundamental de translação do crédito.

Tem sido proposta uma distinção entre a cessão de créditos em garantia e a cessão de
créditos com fins de garantia, sendo que esta última se diferencia por envolver créditos
futuros. Estruturalmente, na cessão de créditos dita com fins de garantia à cessão de créditos
ainda não materializados, mas a serem constituídos no património do cedente em face de
terceiro, com o escopo de garantir um débito do cedente para com o cessionário (e.g.,
derivado de um mútuo). Caso o cedente cumpra oportunamente a prestação que deve ao
cessionário antes da constituição efectiva dos créditos cedidos, estes se formaram no seu
património e não passaram para o do cessionário; caso não haja o citado cumprimento, os
créditos se formaram no património do cedente, mas serão automaticamente transferidos ao
património do cessionário, que poderá cobrá-los aos respectivos devedores e, assim, recompor
a sua situação.

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Como se percebe, o núcleo da diferença entre as duas modalidades está em que, na cessão
em segurança comum, a garantia se exprime para a transferência de um crédito (actual), ao
passo que na cessão para fins de garantia, a garantia se exprime pela possibilidade da
transferência do crédito futuro, em caso de não cumprimento da divida garantia.

O mecanismo da cessão com fins de garantia (que, para se evitar confusão com a figura
da cessão em segurança, deve ser chamada, preferencialmente, pelo nome completo de cessão
de créditos futuros com fins de garantia). Encontrou largo campo de aplicação na actividade
de financiamento à exportação. A instituição financeira, em garantia de um financiamento de
um funcionamento concedido ao exportador, recebe título emitida por este (conhecidos como
export notes), os quais se referem a créditos futuros, em face de compradores estrangeiros, a
se constituírem por ocasião da entrega das mercadorias.

No regime da cessão de créditos futuros com fins de garantia, combinam-se regras


próprias da cessão de créditos futuros e regras próprias da cessão de créditos em garantia.

1.10.3 Dação de crédito em cumprimento

A dação de um crédito em cumprimento consiste, apenas, em um processo de cessão de


créditos, no qual o negócio basilar é uma dação em pagamento. Esse modo de encarar a figura
dentro de uma visão de processo de direito material da cessão de créditos, esclarece o seu
mecanismo sobre maneira: estando na base da operação, uma dação em soluto, o regime
jurídico aplicável é aquele próprio da dação em soluto (arts.º 356.º a 359.º).

Apenas ocorre que, na dação em soluto, o que está presente é negócio jurídico bilateral
oneroso de alienação, no qual se dá o objecto de uma prestação para se satisfazer a prestar do
credor, em troca à solução da dívida. As regras relativas à evicção e aos vícios da coisa se
aplicam em virtude de se tratar do contrato comutativo e oneroso, mas, para além disso, há o
reenvio do art.º 357.º do C. C. a disciplina da compra e venda.

Há, na dação em cumprimento, dois elementos sobre os quais versam o acordo entre as
partes: a realização de uma atribuição patrimonial distinta daquela devida (nesse caso, a
transmissão de um crédito); o efeito extinto da dívida em razão dessa atribuição patrimonial.

Mais um argumento no sentido da causalidade do acordo de transmissão no processo da


cessão de créditos é extraível a partir do art.º 359.º do C.C.: em virtude da evicção que se
refere ao negócio basilar da dação.

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1.11 Aplicação das regras da cessão de créditos a outras figuras

O Código Civil, nos arts.º 577.º a 587.º, ocupa-se directamente da cessão de créditos.
Contudo, o art.º 588.º permite a aplicação das regras da cessão de créditos à figuras diversas.
Declara-se que tais regras «são extensivas, na parte aplicável, à cessão de quaisquer outros
direitos não exceptuados por lei, bem como à transferência legal ou judicial de créditos»30.

Resulta da primeira parte deste preceito que as normas da cessão se aplicam a direitos
diferentes dos direitos de créditos, desde que a lei os não exceptue. Tiveram-se principalmente
em vista os direitos de autor (obras literárias, artísticas, etc.) e outros direitos sobre bens
intelectuais (inventos, marcas, etc.) (art.º 1303.º), assim como os direitos potestativos
autónomos, isto é, susceptíveis de transmissão isolada (ex.: 420.º e 927.º). Esta extensão está
excluída quanto aos direitos reais, visto que os respectivos modos de transmissão se
encontram submetidos a regras próprias (art.º 1316.º), e também não se verifica em relação
aos direitos de família, estritamente pessoais e, portanto, intransmissíveis31.

A segunda parte do art.º 588.º refere à transferência legal ou judicial de créditos.


Exemplos de transferências de créditos por força da lei constituem as que se realizem na
aquisição de coisa locada, relativamente aos créditos do locador (art.º 1057.º), e no mandato
sem representação, quanto aos créditos obtidos pelos mandatários (art.º 1181.º, n.º 2). As
transferências de créditos determinadas pelo tribunal, aliás frequentes, podem exemplificar-se
com a transmissão do direito ao arrendamento para os cônjuges do arrendatário e com a que
se realiza através da penhora (Código Proc. Civil, arts.º 856.º e ss.).

30
Carlos Mota Pinto. op. cit. p. 234 e ss.
31
Vide Vaz Serra. op. cit. pp. 282 e ss.
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CONCLUSÃO

O termo cessão tanto designa o acto (contrato) realizado entre cedente e cessionário, como
o efeito fundamental da operação (a transmissão da titularidade do crédito). Como contrato
entre o cedente e cessionário, a cessão distingue-se do contrato a favor de terceiro, em que o
promissário tenha atribuído a terceiro (beneficiária) o direito de crédito de que dispunha sobre
o promitente, embora o resultado prático a que este tende seja equiparável ao da cessão.

As mais das vezes, a alteração na pessoa do credor não prejudicará o devedor, que em
quaisquer circunstâncias continuará adstrito à necessidade de efectuar a mesma prestação.
Mas nem sempre assim sucede. No caso da cessão parcial há um ou mais cessionários pode
não ser de todo em todo indiferente para o devedor ter que efectuar apenas um acto de
cumprimento, como antes da cessão, ou ter que desdobrar o cumprimento em vários actos,
eventualmente realizáveis em locais diferentes.

Portanto, para a cessão de créditos não se exige o consentimento do devedor, nem ele tem
que prestar qualquer colaboração para que esta venha a ocorrer. O crédito é efectivamente
uma situação jurídica susceptível de transmissão negocial, sem que o devedor tenha outorgar
ou de alguma forma colaborar com negócio transmissivo. Quanto à dispensa do
consentimento do devedor, torna-se manifesto que o regime será outro se a cessão de créditos
co – envolver a transmissão de uma obrigação. Exigir-se-á, na hipótese, o consentimento ou
ratificação do devedor – credor (arts.º 424.º e 595.º).

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BIBLIOGRAFIA

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