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2021/2022 MCJF Cristiana Sousa

AULAS TEÓRICO-PRÁTICAS DE GARANTIAS1-2

Doutora Irene Seiça Girão3

28 de fevereiro de 2022

I. AS GARANTIAS DAS OBRIGAÇÕES: A GARANTIA GERAL E AS


GARANTIAS ESPECIAIS. BREVES REFERÊNCIAS HISTÓRICAS E DE DIREITO
COMPARADO.

Quando se fala de garantias especiais, fala-se num reforço quantitativo da


probabilidade de satisfação do crédito.

Quanto falamos de garantias reais, em regra existe já uma garantia real


prestada pelo próprio devedor e não por terceiro. Assim, a circunstância de existir
sobre aquele bem um direito real de garantia aumenta a probabilidade de satisfazer o
crédito porque o credor é pago com preferência em relação aos restantes credores e,
por isso, há aqui um reforço qualitativo da satisfação do crédito: é pago com
preferência em relação aos restantes credores pelo valor daquele bem.

A dicotomia garantias gerais/garantias especiais tem sido substituída pela


contraposição reforço quantitativo/qualitativo. Note-se que existe uma coincidência na
medida em que as garantias reais representam reforço qualitativo, mas há outros que
também representam um reforço qualitativo e não cabem na definição de direito real,
v.g., a reserva de propriedade ou alienação fiduciária. É esta a razão pela qual a

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Método de avaliação: avaliação repartida no dia 19 de abril às 14:30 (garantia geral e
garantias especiais de natureza pessoal) e no dia 30 de maio às 14:30 (duração de 90 minutos) com a
restante matéria (+ trabalho facultativo, a entregar até à época normal: escolher um tema e fazer uma
apreciação de um acórdão sobre a matéria) /exame final. Inscrição na avaliação repartida com data-
limite a dia 4 de abril, através de envio de e-mail para afilipa@uc.pt e para o e-mail da professora.
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Bibliografia Principal:
- VASCONCELOS, L. Miguel Pestana, Direito das Garantias, 3.ª ed., Almedina, Coimbra, 2019.
- LEITÃO, Luís Manuel de Menezes, Garantias das Obrigações, 5.ª ed., Almedina, Coimbra,
2016. (para os meios de conservação da garantia patrimonial)
- VARELA, João de Matos, Das Obrigações em Geral, Vol. II, 7.ª Ed., Almedina Coimbra,
1999(reimpressão), (para os meios de conservação da garantia patrimonial)
- GOMES, Manuel Januário da Costa, Estudos de Direito das Garantias, Almedina, Coimbra,
2004.
- MONTEIRO, Jorge Ferreira Sinde, Garantias das Obrigações.
- Publicação dos Trabalhos de Mestrado (coordenação), Almedina, Coimbra, 2007.
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E-mail: UC35425@UC.PT

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doutrina tem preferido esta última opção diferenciadora, entre reforço quantitativo e
reforço qualitativo.

Há um conjunto de garantias que são tipicamente comerciais, tendo nascido


das necessidades do próprio comércio, que faz sentido estudar-se no direito
comercial.

No direito bancário, grande parte dos credores com garantia especial são
bancos. Para garantia destes créditos há um vasto conjunto de garantias, v.g, o
penhor financeiro ou penhor a favor de instituições bancárias (com a especial
característica de ser um penhor sem desapossamento).

Depois, o próprio direito da insolvência – vamos a cada passo das garantias


verificar a situação insolvencial -. Temos, dentro da insolvência, de determinar o valor
daquele crédito, estabelecendo a prioridade das garantias.

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II. A GARANTIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES.

1. Configuração da garantia geral: O património do devedor como


garantia comum dos credores.

A garantia geral das obrigações é o património do devedor. Quando o credor


adquire um determinado direito de crédito, conta com os bens que compõem o
património do devedor. Em caso de incumprimento, a lei permite que o respetivo
credor “ataque” esse património com vista à satisfação do seu direito de crédito.

O legislador estabelece o rateio entre credores a partir do art. 601.º do Código


Civil (pelo cumprimento da obrigação respondem todos os bens do devedor
suscetíveis de penhora, sem prejuízo dos regimes especialmente estabelecidos em
consequência da separação de patrimónios). O devedor responde com todo o seu
património pelas dívidas que assume. Havendo vários credores e não sendo o
património do devedor suficiente para responder a todas as obrigações, há o rateio
feito pelo legislador (art. 604.º), em que se estabelece o critério de preferência entre
credores. Ao contrário dos direitos reais, no âmbito dos direitos de crédito a prioridade
temporal do crédito não confere prevalência jurídica. Assim, os credores pagam-se
tendo em conta o valor dos respetivos créditos, na proporção dos respetivos créditos.

Nem sempre foi assim, nem sempre a responsabilidade do devedor foi uma
responsabilidade patrimonial: no direito romano, a responsabilidade era de natureza
pessoal, sendo que o incumprimento dava o direito ao credor de “atacar” a própria
pessoa do devedor, designadamente mantendo-o em cárcere privado e escravizando-
o. Mais tarde, começou a conceder-se um prazo para o cumprimento antes da
apreensão da própria pessoa. Depois, em vez de aprisionar, passou a possibilitar-se
que pagasse com os respeitos bens. Mais tarde, a prisão por dívidas passou a ser de
natureza pública. Hoje, a responsabilidade do devedor é puramente patrimonial, o
devedor só responde até às forças do seu próprio património.

2. Meios de Conservação da Garantia Patrimonial:

O problema que se coloca é que no momento do nascimento do direito de


crédito, o credor tem em conta a composição do património do devedor. Mas essa
composição não é estática. Entre o momento do nascimento da obrigação e o
momento do seu cumprimento, o património do devedor sofre oscilações, havendo

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oscilações desta garantia. A lei vem prever determinados mecanismos que protegem o
credor contra essas oscilações de património, sobretudo quando elas são legitimas e
visam defraudá-lo. Por isso, falamos dos meios de conservação da garantia
patrimonial (artigos 605.º e ss. – declaração de nulidade; sub-rogação do credor ao
devedor; impugnação pauliana; e o arresto -).

2.1. Declaração de Nulidade.

Encontra-se em causa o poder de invocar a invalidade de atos que


prejudiquem o credor invocante. Esta invocação da nulidade já podia ser feita por força
do artigo 286.º. a utilidade deste artigo 605.º, que vem atribuir a legitimidade que já era
atribuída pelo art. 286.º, a repetição da atribuição deste meio ao credor vem tentar
esclarecer duas questões que eram discutidas na vigência do Código de Seabra.

A primeira delas era saber se esta possibilidade de o credor ter legitimidade


para invocar a nulidade destes negócios só valia relativamente a atos posteriores à
constituição do crédito ou se também podia faze lo relativamente a atos anteriores à
constituição do crédito, v.g., se o ato invalido foi um ato simulado e é um ato de janeiro
de 2019: será que o credor tem também a possibilidade de invocar a invalidade de um
ato praticado antes do nascimento da respetiva obrigação? O legislador vem neste
artigo responder afirmativamente, vindo reafirmar a invocação da invalidade mesmo
relativamente a atos anteriores.

Uma segunda questão que vinha sendo discutida era que era necessário a
provocação da insolvência do devedor para que o credor tivesse legitimidade para a
respetiva invocação. O legislador vem assim dizer que não é necessário que o ato
nulo seja necessário para despoletar ou agrave a insolvência do devedor: o que diz a
lei é que basta a circunstância de aquele ato dificultar a satisfação do crédito.

Assim, a utilidade deste artigo 605.º será o esclarecimento das


supramencionadas questões.

Sabemos já que a declaração de nulidade tem efeitos retroativos. Ora, se se


trata de uma compra e venda simulada (simulação absoluta), em que houve
declarações de compra e venda, mas não quiseram celebrar negócio nenhum. Ora,
vem um credor interessado dizer que há um risco de isso colocar em causa a
satisfação do seu crédito: o negócio é destruído e destroem-se todos os seus efeitos
de forma automática, voltando a propriedade da coisa a ser do respetivo devedor.

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Ainda, note-se que a invocação da respetiva nulidade pelo credor invocante


aproveita a todos os credores.

2.2. Sub-rogação do credor ao devedor

Este instituto encontra-se previsto nos arts. 606.º e seguintes do Código Civil.
Este é um meio que pretende reagir contra uma omissão do devedor quanto ao
exercício de um direito. Aqui, permite a lei que o credor se substitua ao devedor no
exercício desse mesmo direito. Assim, o devedor não põe em marcha determinada
tutela que seria favorável ao seu património, substituindo-se o credor ao devedor no
exercício desse mesmo direito.

a) Modalidades da ação sub-rogatória

Temos de fazer a distinção entre ação sub-rogatória direta e ação sub-


rogatória indireta.

Trata-se, no caso, de uma ação sub-rogatória indireta, pois são efeitos


relativos ao património do respetivo devedor que aproveitam a todos os
restantes credores.

Seria uma ação sub-rogatória direta se o credor se pudesse substitui ao


devedor, podendo apropriar-se ou ficar com ação de preferência relativamente
a determinado crédito. A lei prevê hipóteses muito limitadas em que isto se
admite, designadamente no art. 1181.º (mandato sem representação) e no art.
1063.º, relativo à locação. Assim, são casos muito contados.

O facto de ser uma sub-rogação de natureza indireta resulta do art.


609.º (“aproveita a todos os demais”).

b) Pressupostos

Estabelece o art. 606.º que o respetivo direito tem de ter um conteúdo


patrimonial.

A lei vem ainda excecionar aqui atos que, pela sua natureza – v.g., uma
ação de investigação da paternidade, se há suspeitos de ser um presumível
filho de multimilionário – não permitem a sub-rogação ou substituição. São já

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atos excluídos pela própria lei, como é a revogação da herança por doação por
ingratidão do donatário, na medida em que a lei reserva apenas ao doador
essa possibilidade.

O terceiro requisito encontra-se no seu n.º 2. Tem de ser essencial à


satisfação do credor, tendo o credor de demonstrar a essencialidade.

c) Regime da ação sub-rogatória

A ação sub-rogatória pode ser exercida de forma judicial ou


extrajudicial. Há casos em que o próprio exercício do direito pelo devedor está
sujeito a uma ação judicial devendo assim assumir-se a forma judicial. Poderá
ainda o próprio credor optar pela via judicial.

Estabelece o art. 608.º que é necessário um litisconsórcio necessário


passivo, tendo de se citar o próprio devedor, sob pena de ilegitimidade.

Ora, no art. 2067.º a lei permite que o credor se sobreponha ao


devedor, o qual até remite para o art. 606.º, mas o que aí está em causa já não
é um ato omissivo do devedor: no repudio, o que está em causa é um ato de
natureza positiva! Não há aqui uma verdadeira substituição dos credores ao
devedor num ato omissivo.

De acordo com o art. 2067.º, n.º 3, os bens herdados não vão para o
património do repudiante, mas só na medida necessária para satisfação dos
respetivos credores. No excedente, eles vão integrar a cota dos restantes
herdeiros. Não se trata aqui, assim, de um plena sub-rogação por ambas as
razões4.

7 de março de 2022

2.3. Impugnação pauliana

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Ac. do Tribunal da Relação de Guimarães de 30-11-2017; Ac. da Relação de Lisboa de 04-12-
2012.

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A ação pauliana vem regulada a partir dos artigos 610.º e segs. Do Código
Civil. Tal como a sub-rogação, é uma possibilidade que o credor tem de tentar
conservar a garantia patrimonial.

a) Origens e evolução histórica. Referências ao Direito Comparado.

Apesar de constar do programa, este ponto não foi abordado em aula.

b) Pressupostos

Como prevê o art. 610.º do CC, os atos têm que ser atos suscetíveis de
diminuição da garantia patrimonial de satisfação do crédito, a qual pode ocorrer
por diminuição do ativo, ou até por aumento do passivo.

(1) Estes atos, que são ações do devedor, têm que representar um risco
de não satisfação do crédito do credor. Ao contrário do que sucedia no Código
de Seabra, não é necessário que os atos praticados pelo devedor causem ou
agravem a sua insolvência, mas é necessário que haja uma diminuição da
garantia patrimonial. E não podem ser atos de natureza pessoal, ainda que
tenham repercussões patrimoniais, v.g., a perfilhação, a adoção, não são atos
impugnáveis, assim como o divórcio. Mas já o será a partilha de bens entre
cônjuges, porque são atos com reflexos e conteúdo patrimonial. Assim, a
partilha é suscetível de ser impugnada através da ação pauliana.

(2) Depois, têm de ser atos positivos do devedor, não podendo ser atos
de terceiro, embora em determinados limites se possa admitir que, não sendo
atos do devedor, foram praticados para defraudar o devedor, v.g., se a
sociedade pessoa coletiva autoriza uma diminuição do seu património de modo
a deixar sem conteúdo a sua quota. Assim, apesar do ato de alienação dos
bens da sociedade não ser um ato do devedor, é determinado por ele e pelos
seus interesses, não sendo um ato formalmente do devedor, mas acabando
materialmente por o ser. Pode assim efetivamente ser um ato de terceiro, mas
determinado pelo devedor para defraudar os respetivos credores.

(3) A terceira questão é se podem ser impugnados atos nulos. Em


princípio, a resposta é negativa. Mas não foi essa a opção da lei, que diz no n.º
1 do art. 615.º, que não obsta à impugnação a nulidade do ato realizado pelo
devedor. Percebe-se esta opção, na medida em que muitas vezes é difícil fazer

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prova dos fatores que geram a invalidade do negócio. A título de exemplo, o


nosso devedor celebra um contrato com um terceiro adquirente, mas é uma
venda absolutamente simulada. Ora, pode ser difícil fazer prova da simulação.
Se obrigássemos o devedor a não poder impugnar atos inválidos, estaríamos a
colocá-lo numa posição mais desfavorável do que a dos restantes credores.
Assim, o credor tem de fazer a opção: ou impugna paulianamente, ou recorre à
invocação da nulidade, que pode ser feita a todo o tempo e por qualquer
interessado. Não pode é cumular ambos os pedidos. Assim como quando
recorre à impugnação pauliana, o devedor e o terceiro adquirente, não podiam
por via de exceção invocar a nulidade do ato, porque como já vimos esta
nulidade não impede o respetivo recurso à impugnação pauliana.

(4) Não podem ser atos de alienação de bens impenhoráveis, como o


serão os direitos de autor, dado que o credor não pode contar com eles para a
execução da respetiva garantia.

(5) Pergunta-se ainda se as obrigações vencidas ou, melhor dizendo, o


cumprimento de obrigações já vencidas pode ser objeto de impugnação
pauliana. A resposta é negativa. Poderíamos raciocinar nos termos de que o
devedor que não tem património suficiente para pagar a todos os credores, se
decidir cumprir uma delas, esta a fazer uma opção, beneficiando um credor e
colocando em causa o cumprimento relativamente aos outros credores. Como
vimos nos termos do 604.º, se não pagar a nenhum, todos podem pagar-se na
proporção dos respetivos créditos. Se ele opta por pagar a um, pensaríamos
que os outros poderiam impugnar paulianamente. Mas não podem. Em
primeiro lugar, porque se trata de uma obrigação já vencida. Estaríamos assim
a prejudicar o próprio devedor e, em sequência, os próprios credores. Ele pode
querer pagar àquele em concreto por ser, por exemplo, o seu fornecedor
principal. Trata-se de uma divida já vencida, que é exigível. Depois, da parte do
credor que recebe, não se lhe está a dar nenhuma vantagem, nada a que ele
não tenha direito.

(6) Já não é assim quanto a dívidas ainda não vencidas ou então às


chamadas obrigações naturais. Essas sim, se forem cumpridas, o ato de
cumprimento pode ser impugnado paulianamente (art. 615.º/2). As razões são
semelhantes: tratando se embora de um dever moral, não corresponde a um
dever civil, não podendo faze lo a custa do património dos restantes credores
se não tem património suficiente. O legislador estabelece aqui um critério de

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preferência dos credores civis sobre os naturais. Relativamente as dividas


exigíveis, a solução é a mesma, não podendo prejudicar os credores cujas
obrigações já se encontram vencidas, cumprindo uma que não é ainda exigível.

(7) O legislador também se pronuncia quanto ao direito de o credor


estar, ou não, sujeito a condição suspensiva ou resolutiva. Nega o direito à
impugnação pauliana sempre que esteja em causa uma condição suspensiva,
pois nessa altura o direito do credor ainda não é exigível. Já não assim se se
tratar de uma condição resolutiva: nesta, o direito do credor é atual, pode é,
verificada a condição, vir a extinguir-se.

(8) No n.º 2, al. a), estabelece ainda o legislador que é necessário que o
crédito seja anterior ao ato que se pretende impugnar, só podendo impugnar
atos posteriores à constituição do crédito, porque esses atos pressupõem a
diminuição da garantia com a qual contava para satisfação do respetivo crédito.
Há uma exceção: se for posterior ao ato impugnado, se de alguma maneira o
ato for praticado com a intenção de defraudar o credor. O exemplo que se
costuma dar é o seguinte: se o devedor – que ainda não é devedor, mas que
se constituirá apos a celebração do contrato como devedor – pede a
concessão de um crédito. Entre o momento em que é decidia a concessão do
crédito e o momento da celebração efetiva do contrato, que até é normalmente
sujeito a forma escrita, o devedor decide alienar o seu património. Apesar de o
ato só se contar a partir do momento da sua celebração e essa constituição do
crédito ser formalmente posterior ao ato de alienação impugnada, admite-se a
respetiva impugnação, porque o ato foi praticado com o objetivo de defraudar o
credor (alínea a), parte final).

Vimos que basta que o ato agrave as condições de satisfação do


crédito. A lei vem dizer a quem compete provar o quê. O credor impugnante
não tem de fazer prova desta diminuição da garantia. Uma vez impugnado o
ato respetivo, quem tem de fazer prova que o devedor contém ainda património
capaz de satisfazer o crédito é o próprio devedor e o terceiro (art. 611.º).

Dizer ainda que a impugnação pode ser feita relativamente à primeira


transmissão – quando se trate de transmissão de bens penhoráveis -, mas
também às segundas transmissões, i.e., quando o adquirente de um
determinado bem o transmite para terceiro.

(9) Vimos que têm de se tratar de atos ativos, de caráter patrimonial –


portanto, não de natureza pessoal -, que impliquem a diminuição do crédito,

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que sejam posteriores ao crédito respetivo que se pretende satisfazer. A lei


estabelece agora uma diferenciação quando os atos impugnados sejam
onerosos ou gratuitos. Se o ato for gratuito, v.g., se o devedor constitui de
forma gratuita uma garantia, basta a verificação dos requisitos anteriores para
que a impugnação pauliana tenha êxito. Ora, se for oneroso, que significa uma
diminuição, por um lado, mas um incremento pelo outro, a lei não se basta com
estes requisitos, vindo exigir má fé tanto do adquirente, como do alienante. Má
fé (art. 612.º/2) é a consciência do prejuízo, consciência cumulativa, de ambos.
Tem-se entendido que não é necessário o dolo, a intenção de prejudicar,
bastando o conhecimento do prejuízo, a chamada negligencia consciente basta
aqui – não bastando, é claro, a negligência inconsciente -. Ora, se o ato for
oneroso, é necessário ainda este pressuposto adicional.

(10) O respetivo credor impugnante pode impugnar que o ato de


primeira transmissão – tendo de haver má fé, caso seja oneroso -, como de
segunda transmissão – tendo também de estar verificada a má fé caso se trate
de ato oneroso (art. 613.º). Se for um ato gratuito, basta que se verifiquem os
requisitos da primeira transmissão, para que os da segunda possam também
ser impugnados. Diz ainda o n.º 2 que o disposto no n.º anterior é também
aplicável quando o primeiro adquirente constitui, sobre esses bens, garantias a
favor de terceiros. Não tem assim de tratar-se de uma segunda transmissão,
pode tratar-se da transmissão de uma garantia que pese sobre esse bem
alienado.

c) Efeitos

A impugnação pauliana não gera a invalidade do ato impugnado. Se


houve uma alienação ou constituição de garantia, estas continuam a ser
validas, apenas deixam de ser eficazes relativamente ao credor impugnante,
não aproveitando esta aos restantes credores. É o que resulta do art. 616.º. ou
seja, sobre aqueles bens cuja propriedade se consolida no património do
adquirente, o credor tem um direito de restituição – não no sentido de
restituição em espécie, mas no sentido de poder, relativamente a esse
património, executar o seu crédito, apenas na medida do seu crédito -.

f) Natureza da Impugnação Pauliana

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Ora, a impugnação pauliana, mesmo julgada procedente, não beneficia


os restantes credores. Neste sentido, discute-se a natureza desta ação
pauliana: será uma ação real ou creditória, de natureza pessoal? Tem-se
entendido, na doutrina dominante, ser uma ação de natureza pessoal, na
medida em que desta nasce um direito de crédito do credor impugnante
relativamente ao terceiro adquirente5. É assim uma ação de restituição com
escopo indemnizatório, sendo neste sendo que MENEZES LEITÃO a qualifica,
bem como RICARDO COSTA, no Ac. STJ 341/13 de 11/07/2019, onde se diz
“A impugnação pauliana consiste numa ação pessoal e com escopo
indemnizatório que, tendo como base a ineficácia do acto impugnado, confere
ao credor, na medida do seu interesse, o “direito à restituição” dos bens
visados, tendo, para o efeito de satisfação do valor do seu crédito, o direito a
praticar os actos de conservação da garantia patrimonial autorizados por lei na
esfera jurídica do obrigado à restituição-adquirente e o direito de execução no
património desse adquirente”.

As consequências se a ação vier a ser procedente, nos termos do art.


617.º, se o ato impugnado for de natureza gratuita, o devedor só é responsável
perante o adquirente nos termos do disposto em matéria de doações,
nomeadamente nos termos do art. 957.º, que exige dolo, uma culpa
qualificada.

Se estivermos perante um ato oneroso, o adquirente tem somente o


direito de exigir do devedor aquilo com que se enriqueceu, nos termos das
regras do enriquecimento sem causa. Se o devedor alienou o bem a terceiro,
muito embora o terceiro sabendo do prejuízo, o terceiro pagou um preço e
agora vai-se verificar que fica sem a coisa, porque pode ser a atacada no seu
património, e sem o preço. Ora, o terceiro adquirente ficou empobrecido,
enquanto o alienante vê o seu património aumentado. O terceiro adquirente
pode exigir, nos termos das regras do enriquecimento sem causa, aquilo em
que o devedor ficou indevidamente enriquecido, no momento atual. As regras
do enriquecimento sem causa, como sabemos, funcionam a título subsidiário,
quando não há outro meio de restituição. Ora, o ato é válido, não podendo ir
pelas regras da invalidade. Em princípio também não há lugar a
responsabilidade civil, pois o terceiro adquirente não foi enganado, sabia que

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Ver os acórdãos sobre a sub-rogação e impugnação pauliana que a Doutora irá disponibilizar
no ucstudent.

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havia um credor possivelmente prejudicado. Assim, sobram-nos as regras do


enriquecimento sem causa.

d) O regime Registral

Uma questão que se vem colocando é a de saber se a impugnação


pauliana está, ou na, sujeita a registo, se os bens alienáveis forem bens
imoveis ou moveis sujeitos a registo. O interesse é que a impugnação passaria
a ser oponível a quem viesse a adquirir a coisa, não sendo preciso provar a má
fé do terceiro adquirente.

Sabendo que o direito do credor impugnante é um direito não real, mas


sim um direito de crédito, muita da doutrina foi colocando algumas resistências
à possibilidade, face ao direito vigente, se a ação pauliana ser registável,
excluindo a maior parte da doutrina, bem como pela jurisprudência, essa
possibilidade. Mas nem toda. Porque inclusivamente sabemos que não é
impossível registar direitos de crédito dando-lhe eficácia ampliada, como
acontece com o contrato-promessa, tornando-o oponível a terceiros no sentido
de todo e qualquer direito que venha a ser adquirido sobre a coisa não é
oponível ao promitente comprador. Assim, a natureza creditória do direito do
credor não é incompatível com a impugnação pauliana.

Isso mesmo foi dito num acórdão de uniformização de jurisprudência


6/2004, embora com votos de vencido, defendia que no direito vigente não é
possível o registo.

Mas, depois, disto, houve uma alteração em 2008 do código do registo


predial, passando a ação de impugnação pauliana a ser registada nos termos
do art. 3.º/1 do DL 116/2008, de 4 de julho, embora o registo não seja
obrigatório. A partir desse registo, passa a ser oponível a todos quantos
venham a adquirir bens sobre a coisa, nomeadamente os sub-adquirentes.
Assim, caso tenha sido registada, relativamente às segundas alienações, não
será já necessário provar a má fé do terceiro adquirente.

O caso põe-se sobretudo nas alienações de bens imóveis. No caso da


alienação de automóveis, apesar de sujeita a registo, mas ao contrário do que
acontece no caso da alienação de imoveis, a venda da maioria dos móveis,
nomeadamente de veículos automóveis, não está sujeita a forma, podendo
fazer-se verbalmente.

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Relativamente à questão dos efeitos da insolvência sobre a impugnação


pauliana, temos aqui várias insolvências. A insolvência do devedor, a
insolvência do terceiro adquirente, ou a insolvência do próprio credor.

Quanto à insolvência do devedor, o que acontece é que se o devedor se


torna insolvente, em princípio está vedada aos credores da insolvência a
instauração de ação pauliana, art. 197.º CIRE. Pode acontecer é que os atos
impugnados pelos credores sejam objeto daquela resolução incondicional, que
vai destruir os efeitos dos atos praticados, não podendo já relativamente a eles
haver impugnação pauliana, na medida em que vão integrar a massa
insolvente. Quanto às ações pendentes, os efeitos da impugnação pauliana
considerada procedente são os do art. 616.º, não integrando os bens a massa
insolvente, mantendo-se a impugnação e adquirindo o credor impugnante o
direito de crédito nos termos do art. 616.º.

Se estivermos perante insolvência do terceiro adquirente, pela aplicação


do art. 616.º, ele fica com um direito à restituição sobre esse terceiro. No
processo de insolvência, este art. 616.º não lhe dá preferência alguma
relativamente aos outros credores do terceiro adquirente, sendo tratado como
um credor normal do adquirente e passando a ser graduado em função dessa
sua condição. Assim, os bens que já pertencem ao património do adquirente
passam a pertencer à massa insolvente e este tem de vir reclamar o respetivo
crédito.

Depois, se houver insolvência do credor, pode o administrador da


massa propor determinadas ações de impugnação, ou, não propondo, caso
antes da insolvência já exista o direito de crédito sobre o terceiro, vai o
administrador da insolvência reclamar a restituição, passando a constar da
massa insolvente. Relativamente a esta questão de insolvência do devedor,
temos um Acórdão do STJ de 17/12/2019, relatado por OLINDA GARCIA, onde
é dito “Dado que a procedência da impugnação pauliana não tem como
consequência a extinção do ato translativo da venda, o credor impugnante
executa os bens alvo da impugnação no património do terceiro adquirente.
Assim, o art. 127.º do CIRE determina que a ação de impugnação pauliana não
é apensa aos autos da insolvência do devedor alienante – porque os bens não
regressam ao património do devedor alienante -; tratando-se assim de bens de
terceiro, não pode o administrador apreender esses bens para a massa
insolvente”). Também, “só pode incidir sobre atos praticados com uma

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anterioridade limitada”. Nesses casos, se não há resolução desses atos, ou


relativamente às impugnações anteriores à insolvência, o que acontece é que
se a impugnação for considerada procedente não podem estes bens ser
apreendido para a massa insolvente, e passa o respetivo credor a ter o direito
de restituição relativamente ao terceiro, não tendo nada que ver com a
insolvência do devedor.

e) Extinção do direito à Impugnação Pauliana

Ainda conforme o art. 618.º, o direito do credor à impugnação caduca


no prazo de 5 anos a partir da celebração do ato impugnável.

2.4. Arresto

a) Noção e Pressupostos

O último dos meios de conservação de garantia patrimonial é o arresto,


que vem disciplinado nos arts. 619.º a 622.º CC e no CPC, no 391.º e ss., a
propósito dos procedimentos cautelares. No art. 619.º diz que o credor que
tenha justo receio de perder garantia patrimonial, pode requerer o arresto dos
bens nos termos da lei de processo. Esta é uma apreensão semelhante á
penhora, sendo apenas arrestáveis bens penhoráveis – impenhoráveis são,
v.g., o direito a alimentos, direitos de autor (art. 50.º do Código de Direitos de
Autor), uma parcela do salário, a indemnização decorrente de responsabilidade
civil extracontratual -. Mas, repare-se: embora sujeito às regras da penhora,
não se destinando a venda judicial, tem fins preventivos de dissipação do
património. No art. 391.º CPC vem o legislador dizer que o credor que tenha
justificado receio pode requerer o arresto, sendo uma repetição do art. 619.º
CC.

No tocante à tramitação, há aqui uma espécie de periculum in mora.

b) Responsabilidade do requerente

O requerente deduz os factos que tornam improvável a existência do


crédito e justifica sumariamente que a dívida ou o direito existem, como há

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factos que o levam a supor que o receio de dissipação daqueles bens faz
sentido, identificando os bens que quer ver arrestados.

Podem não ser os bens arrestados no património do devedor, mas no


do adquirente. Mas assim tem de se provar que foi judicialmente impugnado o
ato ou a transferência para terceiro e que é provável que ela venha a ser
julgada procedente.

d) Efeitos do Arresto

O credor tem de, sumariamente, alegar factos que demonstrem o


justificado receio de dissipação de bens que levem à perda da garantia
patrimonial. Mas pode acontecer que não se venha a comprovar esse receio. A
lei estabelece, nessas hipóteses, a responsabilidade do credor, vindo dizer que
se o arresto for julgado injustificado ou caducar -porque, p. ex., não propõe
ação principal -, o requerente é responsável pelos danos causados ao
arrestado quando não haja agido com a prudência normal. A lei quer significar,
com “não ter agido com a prudência normal”, uma referência à culpa – critério
do bom pai de família/bonus pater familiae -.

Diz o art. 622.º que os atos de disposição dos bens arrestados são
ineficazes em relação ao requerente do arresto, de acordo com as regras
próprias da penhora”. O direito do arrestante passa a ter prevalência sobre os
direitos que venham a ser adquiridos por um futuro adquirente, a partir da data
do respetivo arresto.

e) Natureza do Arresto

A doutrina tem-se dividido quando a ser este um direito real – não de


gozo, mas de garantia -, embora de caráter meramente provisório. Há quem
não entenda isto como um direito provisório, não o entendendo como um direito
real, mas como uma expectativa real. É evidente que esta qualificação não
mexe com o regime, é mais uma consequência da sua análise, então somos
livre de optar por aquela que melhor nos pareça6.

6
Apesar de isto ter uma dimensão problemática grande, não iremos abordar isto com
exaustão.

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Bibliografia:

- LEITÃO, Luís Manuel de Menezes, Garantias das Obrigações, 5.ª ed.,


Almedina, Coimbra, 2016, págs. 59 a 92; VARELA, João de Matos, Das Obrigações
em Geral, Vol. II, 7.ª Ed., Almedina Coimbra, 1999(reimpressão), págs. 419 a 467.

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III. AS GARANTIAS ESPECIAIS

1. Classificação: Garantias pessoais e reais; Garantias que reforçam


quantitativamente equalitativamente a probabilidade de satisfação do crédito;
Garantias legais e voluntárias; Garantias típicas e atípicas; garantias prestadas
pelo devedor e por terceiro.

Quando existem garantias especiais existe um reforço da probabilidade de vir


a satisfazer o respetivo crédito. Nas reais existe um direito de preferência
relativamente aos credores comuns; nas garantias pessoais, há junção de patrimónios
alheios que vêm aumentar a massa de bens que são responsáveis pelo respetivo
cumprimento. Sendo que todas as garantias especiais, relativamente à garantia geral,
aumentam a probabilidade de satisfação do crédito, este aumento pode ser
quantitativo:

- Na fiança, que era tradicionalmente a principal das garantias pessoais, um


terceiro torna-se especialmente responsável pela garantia, juntando-se ao património
do devedor, o património de um terceiro que é responsável por aquela dívida;

- Assim como sucede na garantia autónoma – ou até como poderia suceder


num contrato de compra e venda internacional - em que há um banco que funciona
como garante e se responsabiliza perante o ordenante pelo cumprimento da respetiva
obrigação. Imaginando que há um contrato de empreitada e o dono da obra, para se
assegurar do cumprimento, vem exigir ao empreiteiro que este celebre um negócio
com uma entidade bancária, nos termos do qual esta se obriga a celebrar um negócio
de garantia com o dono da obra, i.e., em caso de incumprimento da ação base, o dono
da obra pode acionar a garantia e ser ressarcido por esse mesmo incumprimento pela
entidade bancária, havendo aqui três negócios diferentes. O contrato de empreitada; o
contrato entre o empreiteiro e o banco, nos termos do qual o banco se obriga a dar
garantia a terceiro; e o contrato celebrado entre o banco e o dono da obra, que é o
credor garantido.

Já no que toca às garantias reais, o que sucede é que os credores garantidos


passam a ter preferência ou prevalência relativamente a todos os outros credores pelo
valor desses mesmos bens, ou pelos seus rendimentos. Por isso, as garantias reais
criam fatores preferenciais dos respetivos credores, incidindo sobre bens do devedor –
podendo incidir também sobre bens de terceiro -, aumentando a probabilidade de
satisfação do crédito, não em termos quantitativos, mas sim em termos qualitativos –

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2021/2022 MCJF Cristiana Sousa

note-se que quando a garantia incide sobre bens de terceiro, temos um reforço
quantitativo e qualitativo -. Ora, mas quando as garantias incidem apenas sobre o
devedor, há um reforço meramente qualitativo, no sentido de o seu direito prevalecer
sobre o direito dos demais.

Estas noções de reforço quantitativo e qualitativo não coincidem perfeitamente


com a distinção entre garantias reais e garantias especiais. Se podemos dizer que
todo o reforço quantitativo se conduz na constituição de garantias reais; já as garantias
reais são reforço qualitativo, mas não ocupam todo o terreno do terreno qualitativo,
pois por exemplo a alienação fiduciária em garantia, a reserva de propriedade, os
patrimónios autónomos, em que a propriedade é meramente fiduciária – que tem
finalidades de garantia e não outras – reforçam qualitativamente a probabilidade de
satisfação do crédito, mas não são garantias reais.

Muitas vezes, para garantir o cumprimento da obrigação de pagar o preço,


estabelece-se no contrato de compra e venda ou de financiamento uma cláusula de
reserva de propriedade. Assim, o adquirente até pode usar a coisa que foi vendida,
mas a propriedade não se transfere, sendo a condição o pagamento integral do
respetivo preço. Traduz-se isto na existência de uma condição suspensiva:

- Podemos dizer que o mutuante com reserva de propriedade vê reforçada a


probabilidade de satisfação do seu crédito, porque não fica sem a coisa enquanto não
lhe for pago o preço. Mas não estamos perante uma garantia real.

- Passa-se o mesmo na alienação fiduciária em garantia. A é devedor de B e


para garantia o cumprimento da obrigação aliena o prédio x e a propriedade, em
venda translativa, transfere-se para o credor, para garantir o pagamento de
determinada quantia. O B, credor, fica proprietário, mas é uma propriedade fiduciária,
com fins de garantia. Se o devedor não cumprir a obrigação, o credor pode alienar a
respetiva coisa ou tornar definitiva a aquisição – mas por causa da proibição do pacto
comissório, só pode fazê-lo mediante avaliação por um terceiro independente, sendo
obrigado a entregar o remanescente ao devedor -.

- Sucede o mesmo com a autonomização de patrimónios que ficam afetados


apenas ao cumprimento de determinadas dividas, mas não são também garantias
reais.

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2. A Caução.

Começando pelas garantias pessoais, de reforço quantitativo (até porque são


as que em primeiro lugar aparecem no Código Civil), temos desde logo a prestação de
caução. Muitas vezes, porque a lei o exige, as partes o convencionam, ou
judicialmente é exigido a alguém, pode ser obrigado esse alguém a prestar caução. É
isto uma garantia que assegura o cumprimento de determinadas obrigações, mas que
são meramente eventuais.

Diz o art. 623.º CC que “se alguém for obrigado ou autorizado por lei a prestar
caução sem se designar a espécie que ela deve revestir, pode a garantia ser prestada
por meio de deposito de dinheiro, títulos de crédito, pedras ou metais preciosos, ou por
penhor, hipoteca ou fiança bancária”. São estas as formas de prestar caução.

Mas, como dissemos, existe outras espécies de caução: decorrentes de


negócio jurídico, ou imposta por tribunal. Diz o art. 624.º que “se alguém for obrigado
ou autorizado por negócio jurídico a prestar caução, ou se esta for imposta por
tribunal, é permitido prestá-la por meio de qualquer garantia real ou pessoal”, não
impondo a lei a forma.

Um dos casos em que pode o tribunal exigir que se preste caução – e ela pode
ser prestada por qualquer meio, como aqui se disse – será, por exemplo, no caso do
arresto do art. 620.º, que diz que pode ser exigida ao arrestante, para garantia da sua
obrigação eventual, a prestação de caução, como garantia da eventual
responsabilidade que ele possa vir a ter deixando, por exemplo, caducar o respetivo
arresto. A prestação de caução pode até ser uma maneira de desincentivar o recurso
ao arresto, porque tem assim de prestar-se uma garantia.

Diz o artigo 625.º que se alguém estiver obrigado a prestar caução e não o
fizer, o credor tem possibilidade de registar hipoteca sobre bens do devedor, embora
com a limitação do n.º 2, limitando-se aos bens suficientes para assegurar o direito do
credor, i.e., limitando-se ao valor necessário para salvaguardar a respetiva obrigação.

Também pode acontecer que a prestação de caução se revele insuficiente.


Neste caso, diz-se no art. 626.º que “quando a caução prestada se torne insuficiente
ou imprópria, por causa não imputável ao credor, tem este o direito de exigir que ela
seja reforçada ou que seja prestada outra forma de caução”.

No plano processual temos, nos arts. 906.º e ss. CPC, um processo especial
para a prestação de caução.

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3. A Fiança

Traduz-se em um terceiro se responsabilizar pessoalmente pelo cumprimento


de uma obrigação do respetivo devedor. Vem regulada nos arts. 627.º e ss., onde se
diz, no art. 627.º que o fiador garante a satisfação do direito de crédito, ficando
pessoalmente obrigado perante o credor, o que significa que responde pessoalmente
com todo o seu património pelo cumprimento da respetiva obrigação.

a) Modalidade e forma da declaração

A constituição de caução resulta necessariamente de um contrato, que pode


ser: (1) entre o fiador e o credor; (2) mas pode também resultar de contrato celebrado
entre fiador e devedor, que será nesse caso um contrato a favor de terceiro, pois tem
como beneficiário o respetivo credor – nessa hipótese, a pessoa do fiador pode estar
sujeita a aceitação do credor -; (3) ou pode resultar de contrato trilateral entre todos os
intervenientes, credor, devedor e fiador. Não se constitui fiança por negócio jurídico
unilateral.

A vontade de prestar fiança deve ser expressamente declarada pela forma


exigida pela obrigação principal. Se o negócio subjacente estiver sujeito a documento
particular, então também a declaração do fiador tem de constar de documento
particular. Fazemos referência à declaração do fiador, porque apesar de a fiança ser
um contrato, pode acontecer que num contrato entre credor e fiador, apesar de só ser
válido mediante declaração de aceitação por parte do credor, a aceitação do credor
pode ser meramente verbal, não tem de estar sujeita a forma. Só está sujeita a forma
a declaração do fiador, porque é este que deve ser protegido, na medida em que
exigirá já uma maior reflexão acerca do ato que irá praticar. Assim, a fiança pode
validamente constituir-se sem a aceitação formalizada do próprio credor. Mesmo
quando a forma é necessária, nos termos do art. 628.º, esta forma é exigida apenas
para a declaração do fiador. Diz ainda o n.º 2 que “a fiança pode ser prestada sem
consentimento do devedor ou contra a vontade dele, e à sua prestação não obsta o
facto de a obrigação ser futura ou condicional”, não tendo sequer de se levar ao
conhecimento dele. Quanto ao credor, o mínimo que se exigirá é o conhecimento.7

7
O artigo seguinte, acerca da regulamentação do mandato de crédito, está aqui posicionado
porque às vezes através do mandato de crédito é que se constitui a fiança, mas está aqui um pouco
descontextualizado.

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b) Caraterísticas da Fiança

1. Acessoriedade

É uma marca indefectível da fiança. Tem a ver com a circunstância de o


devedor não se obrigar para lá da obrigação principal, sendo acessória,
dependente desta, e há várias regras que de alguma forma confirma esta nota
da acessoriedade, mas a primeira delas é desde logo o âmbito da fiança, que
não pode ir para além da obrigação principal, e não podendo o fiador obrigar-se
em condições mais onerosas do que o devedor principal. Assim, o âmbito da
obrigação principal determina o âmbito da fiança (art. 631.º CC).

Há até determinadas modalidades de fiança que se poe em causa se


são mesmo fiança ou antes uma garantia híbrida (misto de fiança e de garantia
autónoma), por se pôr em causa esta acessoriedade, como acontece na fiança
à primeira solicitação ou ao primeiro pedido.

A acessoriedade manifesta-se ainda no art. 632.º: a fiança não é valida


se não for valia a obrigação principal, sendo que assim a invalidade da
obrigação principal determina a invalidade da fiança, ainda que com a limitação
do n.º 2, ou seja, se o devedor principal era incapaz ou existe erro, em
princípio, sendo anulável a obrigação principal é também anulável a fiança, a
menos que o fiador conhecesse do vício.

Quanto aos meios de defesa, art. 637.º, também se revela esta


acessoriedade, ou seja, quando o credor lhe exige o cumprimento, ele pode
opor ao credor todos os meios de defesa que decorrem da obrigação principal
e que sejam compatíveis com a posição de fiador, v.g., a exceção de não
cumprimento do contrato.

Também quanto à extinção do art. 651.º, extingue-se a fiança quando


se extingue a ação principal, embora não seja esta uma regra absoluta.

Assim, a fiança depende da sua existência, do seu conteúdo, da sua


validade, etc., do contrato principal.

2. Subsidiariedade

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É uma marca meramente eventual da fiança. Tem que ver com o


benefício de excussão, por ser o fiador um devedor subsidiário. Sendo o fiador
um devedor acessório que garante o cumprimento por parte do respetivo
devedor principal, pode, mesmo que demandado para cumprir, recusar esse
cumprimento enquanto não forem excutidos todos os bens do devedor
principal.

Mas é meramente eventual, porque permite-se que o fiador renuncie a


este benefício, podendo ser demandado antes de executados os bens do
devedor. Por outro lado, há fianças em que não existe benefício de excussão,
na medida em que, no âmbito do direito comercial, a fiança não é subsidiária
(art. 638.º).

Segundo o art. 640.º, dá-se a exclusão do benefício da excussão.


Sendo a obrigação comercial, o art. 101.º do CCom afasta também este
benefício. Na fiança mercantil – quando a obrigação é comercial, é a fiança
também comercial -, a regra é não haver benefício de excussão, podendo o
fiador aparecer em primeira linha, podendo o credor desde logo demandar o
fiador antes de executados os bens do devedor.

14 de março de 2022

Fazendo uma síntese da aula anterior, vimos que o fiador responde


pessoalmente pelas dívidas ou obrigações do afiançado. Há um reforço quantitativo
porque, ao património do devedor, acrescenta-se um outro património que passa a
responder pelas dívidas garantidas.

O âmbito é estabelecido por um contrato entre o credor e o fiador ou entre o


devedor e o fiador, podendo ser trilateral. O que não pode é constituir-se fiança por
simples ato unilateral.

Apesar de ser um contrato, vimos que as exigências de forma valem apenas –


e tao só – para a declaração do fiador (arts. 627.º e ss.).

Vimos que uma das características que marca todo o regime da fiança é a
regra da acessoriedade – o fiador é sempre um devedor acessório, a fiança é sempre
uma obrigação acessória relativamente à obrigação principal. Vimos que esta nota da
acessoriedade que é marcante da fiança, acaba por se refletir em vários pontos do

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regime da fiança: desde logo, relativamente ao âmbito da fiança, art. 631.º, que não
pode exceder o âmbito da obrigação principal; depois, é esta acessoriedade visível no
632.º quando faz depender a validade da fiança da validade da obrigação principal.
Portanto, só em determinados casos em que o devedor conhecia a invalidade é que,
não sendo valida a obrigação principal, é valida a fiança, art. 632.º/2; no art. 637.º

Quanto aos meios de defesa, nas relações entre credor e fiador, quando é
exigido ao respetivo credor o cumprimento há um determinado número de meios de
defesa de que o credor por lançar mão, desde logo os meios próprios do credor, mas
também todos os meios que poderiam ser oponíveis pelo devedor ao credor, que
resultem da relação básica da obrigação principal. Por isso mesmo, há aqui também
essa ligação incindível entre a obrigação principal e a acessória; também o art. 651.º
determina que a extinção da obrigação principal determina a obrigação da fiança;
quanto à qualificação da fiança, se a divida principal for qualificada como comercial,
também a natureza da fiança será mercantil. Vimos também que a forma exigível para
o contrato de constituição da fiança é a que foi exigida para a constituição da
obrigação principal.

Outra característica, essa meramente eventual e não necessária, é a da


subsidiariedade, que consiste na ideia de que em princípio a intervenção do fiador
será subsidiária – só quando o devedor não cumpre ou não tem património para
cumprir é que podem ser executados os bens do fiador, expediente ao qual chamamos
benefício de excussão, art. 638.º -. Quando exista benefício de excussão, alem da
fiança podem existir determinadas garantias reais a garantir aquela divida, ou sobre
bens do devedor, ou de terceiros. Se as garantias reiais forem anteriores à fiança,
então também o fiador pode alegar que não cumpre enquanto não forem acionadas
essas garantias reais, v.g., uma hipoteca sobre um determinado bem do devedor ou
de terceiro, art. 639.º.

Este caráter subsidiário da fiança, esta possibilidade de recurso ao benefício da


excussão, são benefícios meramente eventuais. Na … não existe benefício de
excussão, e mesmo na fiança civil o fiador pode renunciar a este benefício, art. 639.º.

c) Relações entre o credor e o fiador

Quanto à constituição da fiança, veremos agora o que se passa nas relações


entre os vários intervenientes, desde já, entre o fiador e o credor, arts. 634.º e ss..

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(1) Neste caso, vimos já que quando o nosso credor vem demandar o fiador
acionando a garantia, há aqui um mecanismo que pode ser exigido pelo fiador se
houver benefício de excussão, sendo um dos seus meios de defesa. Mas não só: pode
também invocar outros meios de defesa.

(2) Vimos quanto à nota da acessoriedade que o fiador pode ainda invocar
todos os meios de defesa que seriam invocados pelo respetivo devedor, art. 637.º,
salvo se incompatíveis com a sua obrigação.

(3) Depois, temos ainda o caso julgado: pode haver já uma decisão judicial
que, numa ação onde participe o credor e o devedor principal. Será que esse caso
julgado entre devedor e credor é oponível ao fiador? Não é, pois não foi chamado à
ação, não pode exercer o contraditório. Mas pode beneficiar dele. Na parte da decisão
judicial que condene ou infira os direitos do credor face ao devedor, pode utilizar a seu
favor esse mesmo caso julgado, art. 635.º.

(4) Apesar da extinção da fiança estar dependente da extinção da obrigação


principal, podem ocorrer vários prazos de prescrição. Uma vez prescrita a fiança ou
caducada a garantia, pode o credor defender-se invocando tal prescrição, art. 636.º.

(5) Outro meio de defesa que pode ser usado nas relações com o credor é a
chamada exceção de compensabilidade, art. 642.º. Pode acontecer que, tendo o
credor direito a exigir o cumprimento por parte do devedor, esse devedor seja
simultaneamente credor. Na medida em que alguém tem créditos e débitos recíprocos,
até ao montante de cada um, pode haver compensação, v.g., A é devedor de 100
relativamente a B, mas é credor de 50. Se as dívidas forem líquidas e exigíveis,
podem qualquer dos credores fazer operar a compensação – aqui seria uma extinção
meramente parcial. Ou seja, segundo as regras da compensação apenas o credor-
devedor podia chamar à colação, não podendo ser feito por terceiro. O que a lei
permite é que seja invocável também pelo fiador, podendo invocar a exceção de
compensabilidade se forem dividas líquidas e exigíveis, estarem todos os requisitos
previstos para o funcionamento da compensação.

d) Relações entre o devedor e o fiador

Se o fiador demandar para efetuar o respetivo cumprimento da obrigação


principal, a lei vem estabelecer que ele fica sub-rogado nos direitos do credor sobre o
devedor, passando a ter sobre o devedor principal um direito de crédito, sendo
substituído na posição que o credor tinha face ao devedor, art. 644.º. Isto trata-se de

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uma sub-rogação legal à qual se aplica o regime da sub-rogação de créditos do art.


582.º por força do art. 594.º, que regula as hipóteses de sub-rogação legal.

Nesta circunstância de poder ser demandado o devedor para cumprir e


efetivamente cumprir, geram-se deveres mútuo de aviso. Se o devedor demandado
pagar, tem o dever de avisar o fiador de que procedeu ao cumprimento e se não o
fizer e o fiador, sem conhecimento que ele pagou, pagar indevidamente, quer dizer
que o devedor é responsável por todos os prejuízos causados ao fiador.

A indemnização nos termos do enriquecimento sem causa é completamente


diferente do valor real: se o pagamento resultou da falta de cumprimento do dever de
aviso pelo devedor, é ele responsável por esse incumprimento, art. 646.º.

Acontece o mesmo relativamente ao fiador. Se o fiador demandado proceder


ao pagamento da obrigação, deve avisar o devedor de que procedeu ao cumprimento,
sob pena de perder o seu direito contra ele no caso de o devedor, por ele, efetuar uma
nova prestação, art. 645.º. Se o nosso devedor pagar indevidamente ao credor por
falta de aviso do fiador, deixa este de poder exigir ficar na posição do respetivo credor.
O que pode fazer neste caso, não podendo ficar sub-rogado na posição do devedor, é
pedir ao credor a repetição do que lhe pagou, como se a prestação fosse indevida, nos
termos da prestação do indevido – caso específico de enriquecimento sem causa -.

e) Relações entre o devedor e o credor

No que toca à respetiva fiança, a circunstância de credor, nas relações com o


devedor, não ser obrigado a aceitar determinado fiador. Pode no decurso de vida da
obrigação virem a alterar-se condições e, por alteração dessas circunstâncias, vir a
fiança a tornar-se insuficiente, podendo pedir reforço da fiança, art. 633.º.

Diz ainda o n.º 2 do artigo que se o fiador mudar de fortuna de modo que haja
risco de insolvência, tem o credor a faculdade de exigir o reforço da fiança.

Estabelece ainda o n.º 3 que uma das condições para a assunção da obrigação
é haver património que garanta a respetiva ligação. Se o património se alterar de
modo a pôr em risco a devida satisfação do crédito, pode o credor exigir ou o reforço
da fiança, ou a prestação de garantia.

f) Pluralidade de fiadores

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Vem o art. 649.º estabelecer que será o regime diverso caso se obriguem
vários fiadores conjuntamente, ou isoladamente. Quando há vários fiadores e estes se
obrigam isoladamente, aplica-se o regime das obrigações solidárias, i.e., o credor
pode demandar qualquer dos fiadores pela totalidade da respetiva divida, não
podendo eles invocar o benefício da divisão e, se um deles cumprir, fica sub-rogado
na totalidade dos direitos do credor sobre o devedor, e tem também direito de regresso
relativamente aos outros con-fiadores, o que não pode é exercer ao mesmo tempo as
duas opções, art. 649.º. Satisfeita a parte dele, pode exigir dos restantes a sua quota
interna de responsabilidade. O que não pode é depois exigir a totalidade, pois todos os
con-fiadores ficariam assim depois sub-rogados nos direitos do credor. Ora, se exerce
o direito sobre os outros fiadores, não pode ser sub-rogado na totalidade do que
pagou.

Diferentemente, se houver vários fiadores que se obriguem conjuntamente,


resulta da solução conjunta da obrigação que cada um é responsável apenas pela sua
parte da dívida principal. O credor, assim, apenas pode demandar cada um deles pela
sua parte da dívida, art. 649.º/2. Há, no entanto, aqui uma regra que é diferente do que
acontece no regime da conjunção. No regime da conjunção, quem suporta o risco de
insolvência por parte do(s) devedor(es) é o credor. Neste âmbito da fiança conjunta,
veio a lei estabelecer uma regra que aproxima o regime da conjunção do regime da
solidariedade. Quando há insolvência de um dos devedores solidários, são os outros
devedores solidários que têm de pagar, sendo a quota-parte na dívida a distribuída
pelos restantes. Veio aqui o legislador estabelecer que quem suporta a insolvência de
um devedor são os restantes devedores e não o respetivo credor-demandante, art.
649.º/2.

g) Extinção da fiança

Vimos já que a extinção da fiança está ligada à extinção da obrigação principal,


art. 651.º. não se extinguindo a obrigação principal, pode por outro lado extinguir-se a
fiança, se forem diferentes os prazos de prescrição. Pode haver suspensão do prazo
de prescrição quanto á obrigação principal, que não se suspende quando à fiança.
Também pode haver caducidade da fiança, art. 652.º. O que aqui está em causa é
que, quando se trata de obrigações a prazo, não é necessária a interpelação ao
devedor para ser constituído em mora. Findo o prazo respetivo, entramos numa
situação de atraso no cumprimento. Se a obrigação venceu, aquilo que pode fazer o
fiador é: se o respetivo credor não acionou o devedor no sentido de exigir o

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cumprimento, dá-se esta possibilidade ao fiador de lhe exigir, se beneficiar do


benefícios de excussão, art. 652.º/2, que uma vez vencida a obrigação, o credor exija
do devedor o cumprimento no prazo de 2 meses, porque se não o fizer no prazo que
lhe é dado, a fiança caduca e depois não pode já exigir o cumprimento ao respetivo
fiador.

Em terceiro lugar, a lei dá aqui possibilidade de se extinguir a fiança, muito


embora permaneça a obrigação principal, art. 653.º.

Além disso, tem ainda uma outra possibilidade. A fiança pode ainda garantir
obrigações futuras – ainda não constituídas, mas determinadas e que possam ser
constituídas futuramente -. Se se tratar de fiança que visa garantir a obrigação futura,
o fiador pode revogar a garantia enquanto não for contraída a obrigação principal,
enquanto não for constituída a obrigação garantida, se a situação patrimonial do
devedor se agravar em termos de pôr em risco a satisfação do direito que viria a
adquirir posteriormente, art. 654.º.

h) Modalidades particulares de fiança

1. A subfiança

A subfiança é uma modalidade de garantia em que intervém um outro


fiador que assume a obrigação do fiador em caso de incumprimento – e não a
obrigação do devedor principal. Por isso, dizemos que o subfiador tem um
duplo benefício de excussão: pode recusar-se a cumprir enquanto não forem
excutidos todos os bens do devedor e todos os bens do fiador. A subfiança
vem referida nos arts. 643.º. uma outra regra diferente do conjunto das regras
que regulam a fiança é a do n.º 4 do art. 650.º que diz que, havendo pluralidade
de fiadores e um deles tiver um subfiador, este não responde perante os outros
fiadores, i.e., quando o fiador assume a obrigação, assume-a perante o credor,
o que a lei vem aqui dizer é que se levássemos ao extremo esta regra, se o
fiador insolvente tiver um subfiador, não seriam os outros responsáveis pela
sua quota. Ora, o subfiador só responde perante o credor, não perante os
fiadores que cumpram a obrigação do devedor insolvente. Não pode assim um
fiador demandar um subfiador do insolvente para efeitos de direito de regresso.
Se o credor demanda um subfiador e o subfiador paga, ele fica sub-rogado na
posição do credor sobre o devedor, ficando com a possibilidade exigir ao
devedor a obrigação e é uma obrigação garantida com a fiança. Pagando ao

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credor, fica sub-rogado nos direitos do respetivo credor -tal como vimos na
disciplina das relações entre devedor e fiador -, mas com uma obrigação
garantida, com uma fiança.

2. A retrofiança

A retrofiança é uma espécie de contragarantia. É esta a garantia de


cumprimento de uma obrigação eventual, que será a obrigação que venha a
adquirir o fiador que responde perante o credor. Se o credor executar a
garantia porque o devedor principal não cumpriu, vem exigir ao fiador, que fica
sub-rogado nos direitos do credor sobre o devedor. A retrofiança garante este
crédito do fiador, se ele cumprir a obrigação. Assim, o fiador transfere para um
terceiro – o fiador – o risco de o devedor principal não cumprir a respetiva
obrigação. O retrofiador assume uma obrigação para com o fiador e a divida
garantida é o crédito que o fiador venha a adquirir por sub-rogação contra o
respetivo devedor principal. A é devedor, B é credor e C é fiador. O fiador é
chamado a cumprir, paga a dívida de 30000 e fica sub-rogado nos direitos de
B, passando a ter um crédito de 3000 relativamente ao devedor principal. A
retrofiança garante este direito do fiador perante o devedor principal. Por isso é
que dizemos que é uma modalidade de contragarantia, na medida em que
assume a obrigação de garantir o próprio garante. Aqui, diferentemente da
retrofiança, não se assume nenhuma obrigação para com o credor no caso de
incumprimento da obrigação pelo devedor principal.

As coisas funcionam exatamente nos termos da fiança. Se o fiador


adquiriu por sub-rogação o direito de crédito sobre o devedor principal, se ele
não cumpre, pode demandar o retrofiador.

3. A fiança geral ou omnibus

Na fiança omnibus ou fiança geral, em regra o credor garantido é um


banco. Pretende-se que o fiador fique responsável por um conjunto de
obrigações presentes ou futuras que determinado devedor venha a contrair, daí
que o credor garantido seja uma instituição bancária. Ocorre muito isto com as
sociedades. O banco faz uma abertura de crédito e necessita de uma garantia
com alguma flexibilidade. Constitui se assim uma fiança que valha para toda e
qualquer obrigação que a sociedade venha ter relativamente àquele devedor –

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obrigações presentes e futuras. Assume-se como fiadores os sócios-gerentes


ou administradores das sociedades, sendo uma forma mais fácil de obter um
fluxo de capitais alheios para a sociedade, através da responsabilização do
património dos respetivos sócios, podendo assim os sócios capitalizar a
sociedade sem terem de entrar com capitais próprios, os chamados
suprimentos. Tem esta utilidade de, com esta garantia abrangente, permitir que
o banco financiador conceda crédito/vários créditos, porque todos eles passam
a estar, em princípio, cobertos pela respetiva garantia. Ninguém duvida da sua
utilidade, o banco consegue, alem do património societário, um terceiro
património, sendo mais fácil o crédito.

Ora, o problema não se coloca quanto às obrigações presentes, na


medida em que esse conjunto de obrigações já está determinado. O problema
são as obrigações futuras, o problema de controlar a assunção de
responsabilidades por parte da sociedade, o problema da determinação ou
determinabilidade da responsabilidade do fiador. Em termos de validade dos
negócios jurídicos, eles só são válidos quando haja critérios para a sua
determinação. Por isso é que se pode dizer que a fiança constituída nestes
moldes sem critérios de determinabilidade da responsabilidade global do fiador
pode colocar em causa a respetiva validade8. Ora, não havendo critérios que
fixem ou permitam fixar o valor ou a amplitude da obrigação garantida, então a
fiança será invalida por força do art. 280.º, por indeterminabilidade do seu
objeto.

Existem possibilidades de critérios: a possibilidade de fixação de um


limite máximo, á qual há que por reservas, porque não pode estabelecer-se um
limite máximo tao elevado que torne sem sentido o respetivo critério; ou a a
fixação de um prazo máximo pelo qual o fiador é responsável.

Muitas vezes esses critérios não são necessários, porque o respetivo


fiador pode controlar os limites da sua responsabilidade controlando ele próprio
os limites da assunção da responsabilidade da sociedade, a contração de
crédito por parte da sociedade, que é o que ocorre quando os devedores são
os administradores ou sócios-gerentes da sociedade, pois são estes que gerem

8
Ac. de Uniformização de Jurisprudência STJ de 23/01/2001, que diz no sumário “É nula por
indeterminabilidade do seu objecto, a fiança de obrigações futuras, quando o fiador se constitua garante
de todas as responsabilidades provenientes de qualquer operação em direito consentida, sem menção
expressa da sua origem ou natureza e independentemente da qualidade em que o afiançado
intervenha.”

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a assunção de crédito relativamente à instituição financiadora. Ao contrair


determinada divida que tem como devedor a sociedade, e enquanto sócio-
gerente, controla a assunção da sua própria responsabilidade. Quando assim
seja, não se poe nenhum entrave à validade da fiança omnibus ou geral.

Mas pergunta-se: quando o socio gerente que controla as dividas da


sociedade deixa de ser socio, deixa de poder controlar a respetiva assunção de
responsabilidades, pode denunciar o contrato de fiança? São estes aqueles
casos em que a fiança é constituída por tempo indeterminado, em que podem
ser denunciados a todo o tempo e apenas com o respetivo pré-aviso para
conformar as expectativas do credor. Também aqui, no âmbito da fiança
omnibus, relativamente às dividas a contrair no futuro, pode haver denuncia do
contrato. Já se o contrato for a prazo, caduca no termo do respetivo prazo.

E será de exigir que o fiador, querendo denunciar o negócio celebrado


por tempo indeterminado, tenha de fazer um pré-aviso para o efeito? Este pré-
aviso poderia ter efeitos perniciosos: no período entre o pré-aviso e a extinção
da responsabilidade do fiador, poderiam contrair um número de obrigações que
fiquem responsabilizadas pelo fiador. Mas isto é contornável pelas regras
gerais do direito, na medida em que um princípio básico das relações
obrigacionais é o princípio da boa fé, que vai impedir desde logo que a
sociedade contraia dividas para lá do estritamente necessário para a sua
gestão e, também relativamente ao banco, não se lhe permite que ele conceda
crédito garantido além desse limite. Estes entraves decorrentes destas regras
fazem com que nesse período a sociedade não possa contrair crédito
excessivo garantido, ou pelo qual seja responsável o fiador.

4. A fiança ao primeiro pedido ou à primeira solicitação.

Esta modalidade – há que ponha em causa se será uma verdadeira


fiança e não uma figura híbrida – vai perder a característica da acessoriedade
que dissemos ser um elemento natural do conceito de fiança. Quando se trata
de uma fiança ao primeiro pedido, o fiador que podia opor ao credor todos os
meios de defesa, deixa de poder fazê-lo. Ou seja, num primeiro momento,
quando é interpelado para cumprir, ele não pode opor ao credor qualquer meio
de defesa que o devedor pudesse invocar, tendo de pagar sem poder
defender-se. Se ele não o pode fazer nesse primeiro momento e paga
indevidamente, então pode num segundo momento repetir aquilo que

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indevidamente foi pago e pode, aí, invocar os meios de defesa. Assim, neste
segundo momento vem a fiança a readquirir a característica da acessoriedade.
Então, quanto à discussão da natureza deste instituto, MÓNICA JARDIM
entende que, ainda assim, esta fiança pode ser enquadrada na categoria geral
destas garantias pessoais a que designamos como fiança, porque adquirindo o
credor a possibilidade de opor num segundo momento, embora não o possa
fazer num primeiro momento, acaba por não responder de forma mais onerosa
do que aquela que responde o devedor e, portanto, a garantia não viola o art.
631.º, continuando a não ter um âmbito maior que o da obrigação principal.
JANUÁRIO GOMES toma outra posição, com a qual IRENE GIRÃO concorda.
Ora, ele acaba por efetivamente responder autonomamente e de forma mais
onerosa do que o devedor, porque o devedor poderia ter invocado tais meios
de defesa e ele não pode fazê-lo. Isso ultrapassa uma das características
indefetíveis da fiança, que é o da acessoriedade, não sendo o âmbito da
garantia o mesmo do que o da obrigação principal. Embora possamos ter uma
categoria híbrida – esta garantia também não se coaduna completamente com
a garantia autónoma. Na garantia autónoma, o garante nunca pode opor ao
credor nenhum meio de defesa que decorra da relação entre credor e devedor,
da obrigação garantida, e aqui pode. Ora, não se trataria de uma verdadeira
fiança, mas não também de uma garantia autónoma -. Defende então
JANUÁRIO GOMES que se trata de uma garantia híbrida. No primeiro
momento aproxima-se mais da garantia autónoma, aplicando-se as regras da
garantia autónoma. No segundo momento, mais de uma fiança, aplicando-se
as regras da fiança. Ora, podemos até estar perante um caso em que o
respetivo fiador pague e pague devidamente, apesar de não poder invocar os
meios de defesa, nem se colocando o problema.

e) Regime insolvencial.

4. O mandato de crédito.

O mandato de crédito vem regulado no art. 629.º. a ideia do mandato é a de


que há alguém que encarrega outrem de praticar um determinado ato, a quem
chamamos autor do encargo, sendo que aquele que aceita o encargo é o chamado
encarregado. O autor do encargo, de alguma maneira, encarrega o encarregado de

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conceder crédito a um terceiro, mas conceder crédito por conta própria, não por conta
do mandante.

Isto aparece no âmbito das garantias porque a obrigação assumida pelo autor
do encargo é, uma vez feito o encargo, ele responde relativamente ao crédito
concedido como fiador. A assunção da obrigação como fiador trata-se da constituição
de uma garantia meramente legal, não de assunção voluntária, embora se apliquem
as regras, obviamente, quanto á responsabilidade futura, esta consequência é
meramente legal. Então, aquele que dá o encargo assume a obrigação de uma vez
concedido o crédito, relativamente a esse crédito assumir a obrigação de, com o seu
património, garantir essa mesma dívida.

Quanto à natureza deste mandato de crédito, não podemos classificá-lo como


de verdadeiro mandato. Temos mandato quando uma determinada pessoa encarrega
outra da prática de determinados atos jurídicos, mas em que o mandatário assume a
obrigação de praticar esses atos jurídicos por conta do mandante. Para
verdadeiramente estar em causa um mandato em sentido próprio, 1057.º e ss., temos
de ter a assunção da obrigação de praticar atos jurídicos por conta de outrem. Ora, no
mandato de crédito, o ato é praticado por conta própria.

Também não temos aqui obviamente uma verdadeira fiança, pois essa é uma
garantia de natureza voluntaria e a posição de fiador aqui em causa tem origem na
própria lei. Também não se aplica na integra o regime da fiança porque há aqui regras
incompatíveis, nomeadamente a possibilidade que tem o autor do encargo de revogar
o respetivo contrato, como diz no art. 629.º, n.º 2.

Não se trata, portanto, nem de uma verdadeira fiança, nem de um verdadeiro


mandato. Podem ser aplicadas algumas regras do mandato, mas não todas. No
mandato não representativo, uma das consequências que decorrem da prática desses
atos é que todas as consequências na esfera jurídica do mandatário têm de ser depois
transferidas para a esfera jurídica do mandante, quer os efeitos práticos, quer
jurídicos. Aqui, a aplicação dessa regra não faz sentido, porque o encarregado atua
não só em nome próprio, mas também por conta própria, não sendo titular do
interesse gerido como no caso do mandato.

Pensando ainda na regra de o mandante adiantar fundos para que o


mandatário possa fazer despesas também não faz sentido, pois a gestão é feita por
conta própria.

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Ainda, esta revogação a todo o tempo está mais próxima do regime do


mandato do que propriamente do regime da fiança.

Temos uma garantia típica, nominada, mas que vai buscar elementos de
contratos distintos: da fiança e do contrato de mandato. Podemos convocar regras de
um domínio ou de outro, desde que compatível com esta figura.

Vimos já que o dador do encargo, que encarrega alguém, pode revogar e tem a
qualidade de fiador. Enquanto o crédito for conferido, não revogando, encontra-se
desde logo obrigado, mas relativamente a uma obrigação futura, não sendo
necessário qualquer outra intervenção do dador da ordem para a assunção da
responsabilidade do encarregado enquanto fiador.

Quando ao encarregado, diz o n.º 3 que é lícito ao encarregado recusar o


cumprimento do encargo sempre que a situação patrimonial dos outros contraentes
ponha em causa o seu futuro direito. A partir do momento em que aceita o encargo,
fica obrigado a conceder crédito, podendo desvincular-se do contrato apenas nesta
situação: se chega à conclusão ou de que o património do fiador ou o do devedor não
garantem o cumprimento da respetiva obrigação. Se não acontecer nenhuma destas
circunstâncias, fica, por força do mandato de crédito, obrigado a conceder o crédito,
com as consequências que derivam da responsabilidade contratual.

5. O Aval. O Aval Geral.

O aval é uma garantia que anda ligada às chamadas obrigações cartulares,


que são obrigações que estão representadas em títulos de crédito: as letras, as
livranças e os cheques. Esses títulos de crédito são representativos de uma ou mais
obrigações assumidas. O aval incide sobre uma das obrigações assumidas por algum
desses subscritores. O aval vem regulado na Lei Uniforme sobre Letras e Livranças e
na Lei Uniforme sobre Cheques.

Ora, uma letra é uma ordem que o sacador dá ao sacado de pagar uma
determinada quantia, art. .1º LULL. A letra é um título que deve conter um mandato
puro e simples de pagar uma quantia determinada. A pessoa do sacador dá uma
ordem através da letra e diz “pague-se esta quantia e coloque a letra à ordem de
alguém”. A letra é sacada pelo próprio sacador através dessa ordem de pagamento.
Depois, depende da aceitação do sacado, que aceitando se obriga e fica responsável
pelo cumprimento da divida titulada.

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O sacador, quando saca uma letra e dá uma ordem de pagamento – à ordem


de terceiro, ou á sua própria ordem, se ainda não colocou a letra em movimento,
podendo ser o próprio beneficiado através do saque -, o sacador assume desde logo
duas obrigações: em primeiro lugar, garante a aceitação; em segundo lugar, garante o
cumprimento, art. 9.º LULL, não podendo desvincular-se de garantir o respetivo
cumprimento uma vez que a letra seja posta em circulação.

Nas livranças o que está em causa é uma promessa de pagamento por parte
de determinada pessoa, que escreve uma livrança prometendo pagar a outrem uma
quantia determinada.

O cheque é também uma ordem de pagamento, pela qual alguém dá uma


ordem a uma instituição de pagar uma determinada quantia, podendo ser à ordem de
determinada pessoa, ou passado ao portador.

Qualquer destas obrigações são obrigações cartulares, tituladas, que podem


ser transferidas com a simples transferência do título através do respetivo endosso –
com a assinatura do endossante -.

O aval é como uma garantia nos termos da qual o avalista assume uma das
obrigações de um dos subscritores do título, qualquer que ele seja, garantindo a
obrigação do avalizado. Por exemplo, o aval numa livrança visa garantir o
cumprimento da obrigação daquele que lhe faz a promessa de pagamento de uma
determinada quantia. Portanto, o avalista garante com o seu património a obrigação de
pagar aquela quantia no caso de ela não ser paga pelo devedor originário.

A lei disciplina o aval quanto às letras, que é também aplicável no que toca às
livranças por remissão do art. 77.º, parte final.

No caso das letras, estas podem ter vários subscritores: o sacador, o sacado
(depois do aceite da letra), ou um outro subscritor que seja por exemplo um
endossante. O que garante o aval? Ele pode ser dado por um terceiro ou por qualquer
dos subscritores da letra e relativamente a cada um dos subscritores da letra, v.g., o
avalista pode avalizas as obrigações assumidas pelo sacador, ou pelo sacado, ou por
um terceiro que endosse. O avalista pode ser qualquer um dos subscritores da letra –
à exceção do sacado – e obriga-se nos mesmos termos em que está obrigado o
avalizado.

Quando não se diga na letra quem é o avalizado, a lei, nos termos do art. 31.º,
presume que o aval é dado relativamente ao sacador.

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Ao contrário da fiança, o aval é uma garantia autónoma. O título de crédito tem


a característica da autonomia relativamente à obrigação que titula, por uma questão
de proteção de terceiros. Se no título de crédito diz “bom para aval” e está assinado
pelo avalista, não pode este depois invocar o seu não cumprimento com meios de
reação da obrigação garantida. A sua obrigação mantém-se mesmo no caso de a
obrigação por ele garantida ser nula ou por qualquer razão, desde que não seja um
vício de forma.

Tal como na fiança, se a pessoa avalizada não cumpre e tem de se executar a


garantia, depois fica sub-rogado nos direitos do credor sobre o garantido (art. 32.º).
Fica sub-rogado nos direitos que a letra titula, não apenas relativamente ao sacador,
mas também relativamente aos outros obrigados, v.g., o sacador.

No que toca ao aval, encontramos também a figura do aval geral, que pode
colocar alguns problemas, sobretudo no caso das livranças. Em causa está a eventual
necessidade de uma garantia que seja flexível. Tal como na fiança omnibus, o avalista
acaba por garantir uma obrigação cartular, mas de uma livrança ainda não preenchida.
Quando se trata de aval geral, o eventual avalista, celebrando um contrato com o
credor, vai comprometer-se a avalizar todas as dívidas a contrair por aquele devedor.
Acontece muitas vezes no financiamento de sociedades comerciais: o banco confere
crédito, mas quer outras garantias, recorrendo muitas vezes à fiança omnibus; mas
também pode recorrer a uma livrança que, em caso de não cumprimento por parte do
devedor, garanta.

Temos aqui uma obrigação complexa constituída por dois contratos, sendo o
primeiro um contrato de crédito e o segundo um contrato de garantia, o qual abrange
os créditos já concedidos e os créditos ainda por conceder, sendo a livrança assinada
em branco - será a mesma posteriormente preenchida, na medida da sua
responsabilidade -.

Os sócios intervêm como garantes, avalizando. O dador do aval, o avalista,


assume a obrigação da sociedade que preenche a livrança. Temos um negócio
fiduciário.

O problema que se coloca é que o credor pode lá colocar a quantia que


entender e, se assim for, o aval geral não pode ser admitido. No aval há o problema de
saber a quantia que vai ser colocada na respetiva livrança. Este negócio deixa um
grande poder do lado do credor. Ora, pode haver pactos de preenchimento, mas estes
apenas são eficazes inter partes, não sendo oponíveis a terceiros que adquiram o
título.

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Este aval geral só será válido se houver um pacto de preenchimento que


resulte não só do contrato de crédito, mas também do contrato de garantia (com a
fixação da quantia máxima por que responde o avalista).

Ora, partindo desde já do pressuposto de que, num caso concreto em que se


trata de relações societárias, os avalistas são administradores/gerentes e os contratos
seriam válidos, surge ainda a questão de saber o que ocorre se o sócio-
gerente/administrador deixar de ser sócio. Pode, como na fiança omnibus, denunciar o
contrato de garantia? Em resposta a esta questão, veio o Acórdão de uniformização
de jurisprudência do STJ de 11-12-2012 determinar que, “tendo o aval sido prestado
de forma irrestrita e ilimitada, não é admissível a sua denúncia por parte do avalista,
sócio de uma sociedade a favor de quem aquele foi prestado, em contrato em que a
mesma é interessada, ainda que, entretanto, venha a ceder a sua participação social
na sociedade avalizada”. Assim, no aval geral, não se pode denunciar o contrato de
garantia.

A solução do acórdão deve ser entendida com cuidado. Tem-se entendido que
esta solução abrange o aval, mas quando já se deu o preenchimento da respetiva
livrança. Não assim sucederá quando a letra ainda está por preencher, porque não
existe ainda, verdadeiramente, a obrigação assumida por parte do avalista. Então, só
em caso de incumprimento é que se verifica o facto que constitui a obrigação e aciona
a garantia. E, nos contratos de tempo indeterminado, diz-se que podem denunciar a
todo o tempo. Assim, enquanto não houver incumprimento e preenchimento do título,
não se aplica esta solução, porque não existe ainda a obrigação cartular. Conclui-se,
assim, que o aval geral é permitido quando sujeito a pacto de preenchimento, mas só
nasce a obrigação do avalista aquando do preenchimento da livrança.

21 de março de 2022

6. A Garantia Autónoma

a) Noção

A garantia autónoma é uma garantia não tipificada. É uma garantia socialmente


típica, mas não regulamentada na lei, o que deixa antever a sua grande importância

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sobretudo ao nível do comércio internacional. Apelidamo-la de garantia bancária


autónoma porque normalmente o garante é uma entidade bancária.

O que caracteriza esta garantia e a distingue da fiança é a circunstância de,


enquanto na fiança ser uma garantia acessória da obrigação garantida, e além de o
respetivo garante poder invocar todos os meios de defesa da relação do credor com o
devedor, além disso tem o mesmo objeto da obrigação principal. Na garantia
autónoma isto não acontece, tem caráter indemnizatório, não tendo o mesmo objeto
da obrigação garantida, podendo ser uma obrigação de um outro tipo.

Está aqui em causa que o banco, por força de um contrato de garantia


celebrado com o credor, assume a obrigação de indemnizar pelo não cumprimento ou
pelo cumprimento defeituoso assumida pelo devedor face ao credor, nascida de uma
relação-base. É importante no comércio internacional dada a sua autonomia, não
estando dependente da relação básico-fundamental entre credor e devedor. Assim, o
garante não pode invocar os meios de defesa que resultam dessa relação básica. Ao
nível da compra e venda de mercadorias internacional isto é importante porque como
o credor está garantido por uma garantia forte que não depende das vicissitudes da
relação básica, o seu crédito não fica dependente de qualquer facto que diga respeito
ao devedor, v.g., insolvência. Ao exigir a contratação de uma garantia autónoma, está
a promover a autonomia do seu crédito relativamente a qualquer coisa que venha a
acontecer com a relação base, sendo importante nos contratos de empreitada e de
compra e venda internacional.

Apesar de não estar prevista na lei, a pratica foi impondo uma certa
regulamentação, bem como a sua legitimidade, que esta normativamente justificada
com base no princípio da liberdade negocial e da autonomia privada.

d) Modalidades.

A primeira modalidade é a garantia autónoma simples, em que o credor,


quando executa a garantia, exigindo-a ao garante, tem de justificar o seu pedido e
fazer prova dos factos constitutivos do seu direito.

Isto já não acontece na garantia autónoma à primeira solicitação, que não só é


independente quanto à relação base, como é automática. O credor, quando executa a
garantia, dirige-se ao banco garante e não tem de fazer prova constitutiva do seu
direito, havendo até casos em que não tem de justificar o pedido. Pela liberdade que
dá ao credor, de forma efetiva, é a modalidade mais utilizada.

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Quanto ao objeto, no que toca à obrigação garantida, em regra é uma


obrigação de execução. O banco garante uma obrigação de boa execução, a chamada
performance bond.

A obrigação garantida pode também ser, por exemplo, nos casos em que há
antecipação de pagamento, aquele que antecipa exige uma garantia de reembolso no
caso de a contraparte não cumprir o respetivo negócio.

Outras vezes, mais raro, acontece as chamadas bid bond, garantias de


manutenção de uma determinada oferta, ou de uma determinada licitação.

b) Estrutura da operação

Apesar de se basear num contrato de garantia entre o banco e o credor, resulta


de uma operação mais complexa de determinado outro conjunto de contratos. É uma
espécie de obrigação trilateral: há o devedor (enquanto ordenante), e o credor exige
logo que o devedor ordene ao banco (o garante) a assunção de uma determinada
garantia. Um primeiro negócio entre devedor e credor (relação base do onde decorre a
obrigação garantida), um segundo entre o devedor e o garante (em que se obriga a
celebrar o contrato de garantia) e finalmente o contrato de garantia celebrado entre o
garante (banco) e o credor. Este define o valor a pagar, mas também a forma como o
credor há de executar a garantia e o que pode ou não invocar. Em regra, o garante só
pode defender-se com factos que resultem deste contrato de garantia, não podendo
invocar factos relativos a relação entre credor e devedor ou ao contrato entre o
devedor e o garante.

A fiança tem o mesmo objeto da obrigação garantida. Aqui não: como vimos, a
obrigação garantida pode ser uma obrigação de prestação de facto e a garantia
autónoma é sempre assumida como obrigação de pagar um valor pecuniário a título
de indemnização pelo não cumprimento.

c) O contrato de garantia autónoma

Dada a natureza não típica desta garantia, têm-se colocado algumas questões:
está sujeito a determinada forma? Há doutrina que dizia que como se trata
normalmente de contratos de elevado valor, seria de exigir, para proteção das partes,
a redução a escrito destes contratos. Mas sendo contratos atípicos, não há nenhuma
norma que preveja a sua redução a qualquer tipo de formalidade, tendo de valer o

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princípio da liberdade contratual. Mas a circunstância de a lei não exigir uma forma
não quer dizer que os contraentes não tomem precauções a esse nível. Qualquer dos
intervenientes, em regra, são contraentes profissionais, que se protegem através da
redução a escrito destes contratos, fazendo intervir profissionais do Direito que
assegurem essa mesma proteção.

e) A autonomia.

Esta autonomia traduz-se no facto de o garante não poder invocar qualquer


meio de defesa que decorra da relação entre ele e o devedor ou entre ele e o
ordenante.

Traduz-se também na circunstância de a garantia autónoma ter uma função


indemnizatória e o objeto da garantia autónoma não é o objeto da obrigação garantida
– podendo ser, no entanto, coincidente -.

Relativamente ao regime jurídico, se incorremos no não cumprimento


atempado da respetiva obrigação, pode o respetivo credor, nos termos definidos no
contrato de garantia, executar a garantia. O banco terá de pagar a respetiva
indemnização, tendo depois o direito de reembolso relativamente ao devedor
(ordenante) da obrigação.

Muitas vezes quando há um incumprimento temporário, mas ainda existe


interesse no cumprimento da obrigação, o credor já pode executar a garantia, mas ao
invés solicita ao garante que aumente o prazo (renove) o contrato de garantia. Nestes
casos o banco não pode fazer a renovação sem autorização do devedor. Assim, pode
ser feita a prorrogação a pedido do credor.

Há casos muito excecionais que a prática vai instituindo, permitindo o


levantamento da autonomia, mas são casos muito contados, sob pena de estarmos a
transformar a natureza desta garantia numa espécie de garantia acessório. Esses
casos são se, por exemplo, o devedor vem perante o garante e tenta impedi-lo de
pagar ao credor ou impedir que o credor receba, quando estão em causa
circunstâncias muito próprias, desde logo quando existe abuso de direito por parte do
credor. Imaginando que: o contrato base já foi cumprido e o credor vem exigir, com
fundamento no não cumprimento, a execução da garantia, o garante não pode invocar
nenhuma exceção relativa à relação base mas pode o devedor perante o garante
apresentar prova inequívoca de que o contrato já foi cumprido e aquilo corresponde a
abuso de direito; ou quando existe fraude por parte do credor, desde que haja prova;

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ou se o negócio de que decorre a obrigação garantida for um negócio proibido por lei
ou contrário aos bons costumes, v.g., um contrato internacional em que o objeto seja a
compra e venda de produtos estupefacientes. Aí pode haver levantamento da
autonomia. Também se admite a possibilidade de o devedor recorrer a procedimentos
cautelares para evitar que o credor receba o valor garantido ou que o garante pague,
mas deve nestes casos exige-se que a prova seja inequívoca9.

Em termos de qualificação, apesar de ser um negócio de segurança para uma


das partes, ainda assim podemos considerá-lo um negócio fiduciário, pois é um
negócio que implica um grande investimento de confiança por parte de um dos
intervenientes, nomeadamente por parte do devedor, porque pode acontecer que não
tendo o credor direito a executar a garantia, ele proceda à respetiva execução, o
banco lhe pague (porque não podia deixar de pagar) e o devedor fique obrigado ao
reembolso quando o credor não tinha sequer direito de executar a garantia. Veio assim
a prevalecer-se de um direito que não existe e, com fundamento na relação básica,
pode exigir-lhe aquilo que tinha de pagar. Se o credor vier a tornar-se insolvente, pode
ele nem ver a sua pretensão ser satisfeita. Quem corre aqui o maior risco é o devedor,
correndo o risco de o credor, nos termos do contrato de garantia onde ele não
participa, vir a executar a garantia, e ele ter de proceder ao reembolso, apesar de o
credor não ter direito, e só podendo vir a reagir depois. Nos termos do contrato de
garantia, uma das causas de execução da garantia é o incumprimento de determinada
obrigação. Mas muitas vezes o credor nem tem de fazer prova dos factos constitutivos
do seu direito, v.g., quando se trate de garantia à primeira solicitação. O banco não
pode alegar, a menos que tenha a prova inequívoca realizada pelo devedor10.
Também há risco por parte do garante, mas que tem mais a ver com a própria
situação económica e de solvabilidade do devedor.

f) Regime Insolvencial.

Se for o garante a ficar insolvente, se for uma garantia dada no prazo de 6


meses e sem interesse, não é muito fácil de ser concretizado, porque a prova ampla é
sempre vantajosa, porque recebe uma retribuição. Mas no caso das garantias
constituídas antes de seis meses da abertura da insolvência, podem ser objeto do

9
A maior parte das vezes tem de se fazer prova documental e dessa prova documental resultar
inequívoco (sem qualquer sombra de dúvida) que aquele facto aconteceu.
10
Note-se que pode extinguir-se o contrato de garantia e manter-se a relação de garantia, ou
vice-versa.

40
2021/2022 MCJF Cristiana Sousa

administrador da resolução incondicional do art. 121.º, pondo-se fim ao contrato sem


qualquer motivação.

No caso de haver insolvência do garante, se já houver execução da garantia há


um crédito do credor que tem de reclamar na insolvência do garante. Ao mesmo
tempo, e uma vez paga pelo administrador da insolvência ou cumprido o contrato de
garantia pelo administrador da insolvência, há um crédito da massa relativo ao
respetivo devedor. Há determinados contratos já cumpridos por uma das partes (não
são contratos ainda não cumpridos) em que pode acontecer que o administrador da
insolvência pode decidir se cumpre ou não cumpre. Neste caso, como se trata de
contrato unilateral onde apenas há obrigações para o respetivo garante, sendo
contratos em curso, não há essa possibilidade de o administrador da insolvência
decidir não cumprir. Se vier a executar a garantia, há um crédito por parte do credor
sobre a massa insolvente que é uma dívida da própria massa, e as dívidas da própria
massa são pagas com preferência a todos os restantes créditos (mesmo os
graduados) do próprio devedor insolvente11.

Em caso de falência do credor, parece não haver problema nenhum, porque o


credor é titular do respetivo direito garantido e se eventualmente entrar em situação de
insolvência, o que o administrador da insolvência faz é: estando preenchidos os
requisitos da garantia, o próprio administrador vem executar a garantia perante o
banco. Havendo incumprimento por parte do devedor, o administrador da insolvência
que passa a gerir os negócios da massa acaba por executar a garantia e esse crédito
é um crédito da massa.

Mais complicado é quando é o devedor a entrar em situação de insolvência.


Nessas hipóteses, se há um contrato de garantia entre o banco e o credor, em caso de
incumprimento por parte do devedor, o credor executa a garantia, o banco paga
(porque assumiu o risco de insolvência do devedor) e depois tem um crédito sobre o
devedor, mas se o devedor esta insolvente, vai poder reclamar o crédito na insolvência
do devedor. Muitas vezes esse crédito é garantido. Se não for garantido, esta ao nível
de todos os outros credores comuns do devedor.

7. As Cartas de Conforto.

11
Se existe uma massa insolvente, um crédito sobre a massa, mas ela não for capaz de
satisfazer os respetivos créditos, o credor acaba por não poder executar a garantia, mas essa
circunstância não significa que ele não responsabilize o devedor pelo incumprimento, só que essa
obrigação não é garantida.

41
2021/2022 MCJF Cristiana Sousa

a) Noção e razão de ser.

São declarações negociais por parte de uma determinada entidade que, de


uma forma mais ou menos intensa ou vinculativa, pretende que seja concedido crédito
a uma entidade terceira. O autor da carta de conforto pretende obter crédito para um
terceiro. Para reforçar esta probabilidade de satisfação do crédito por parte do
devedor, ele conforta-o com essa declaração.

c) Modalidades: cartas fracas, médias e fortes.

Esta declaração pode ser mais ou menos intensa. Costuma distinguir-se entre
cartas de conforto fracas, medias e fortes. Só estas fortes é que são verdadeiras
garantias pessoais. Nas cartas de conforto ou de patrocínio fracas, o confortante, que
não podemos chamar garante, pois não garante nada nem aumenta a probabilidade
de satisfação do crédito, mas dá-lhe determinadas informações sobre o devedor, v.g.,
se controla ou tem participação na sociedade devedora ou está a par das suas contas.

Estas cartas de patrocínio nasceram no direito norte-americano no âmbito dos


grupos societários, em que a chamada sociedade—mãe, dada a relação com a
entidade bancaria, vinha tentar obter crédito para outras sociedades pertencentes ao
grupo. Dada a sua relação com o banco, vinha pedir a concessão desse crédito sem
celebrar com o banco nenhuma garantia tradicional. A vantagem é que as cartas de
conforto não afetam a posição negocial, o standing, da sociedade-mãe ou entidade
confortante, não aparecendo como um débito ou responsabilidade. Desde que a
informação que presta seja fidedigna, não lhe traz consequências ao nível dos
negócios.

As cartas de conforto medias, já há assunção de uma obrigação de meios


perante a autoridade bancária, mas ainda não há garantia da obrigação. Apesar de já
existir um certo incremento do conforto ou do patrocínio, não existe ainda verdadeira
garantia pessoal.

Cartas de garantias fortes são aquelas em que o patrocinador assume a


obrigação de garantia, a obrigação de cumprir a obrigação caso haja incumprimento
por parte da entidade creditada.

b) Estrutura

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2021/2022 MCJF Cristiana Sousa

As cartas de conforto são sempre contratos de natureza unilateral: é apenas o


patrocinador confortante que assume obrigações. Mas também não são meros
“acordos de cavalheiros”, não sendo meras declarações negociais vinculativas, trata-
se efetivamente de verdadeiros contratos, que podem ser aceites tacitamente.

A obrigação assumida nas cartas fortes pelo patrocinador pode ser uma
garantia atípica ou típica, tudo dependendo da declaração negocial do patrocinador.
Pode ser, por exemplo, uma fiança. Pela declaração negocial que o patrocinador faz
na carta de conforto pode deduzir-se que aquela garantia dada na carta forte constitui
uma fiança. Mas também pode deduzir-se que se trata de uma outra garantia atípica,
com maior autonomia que a fiança.

d) Regime Insolvencial.

8. O Seguro de Crédito

a) Noção, caracterização e modalidades.

O seguro de crédito vem regulado no DL 183/8812, com as alterações dos


DL127/91, DL31/2007 e DL 94/2018. Trata-se de um seguro de riscos de crédito. É um
contrato de seguro que é concluído entre o credor e uma seguradora (só pode exercer
a atividade seguradora as entidades para tal autorizadas) nos termos do qual esta
assume o risco de um determinado sinistro, contra o pagamento, pelo credor, de um
prémio de seguro. Temos aqui a estrutura de um contrato de seguro, mas que visa
transferir para a seguradora não um qualquer risco, mas o risco de incumprimento de
um direito de crédito. O tomador do seguro, que tem a obrigação de satisfazer o
premio do seguro, é o garantido, o credor, sendo simultaneamente tomador e
beneficiário do respetivo seguro (vamos ver que no segura-caução não é assim).

Este contrato constitui uma garantia pessoal e assume maior relevância no


setor exportador. É frequente que os créditos dos nossos prestadores de serviços ou
clientes internacionais sejam cobertos por um seguro de crédito, ou seja, o próprio
credor nacional é que contrata com a seguradora a transferência deste risco.

12
Este diploma regula todos os seguros do ramo crédito.

43
2021/2022 MCJF Cristiana Sousa

b) Os riscos.

Os riscos seguráveis estão previstos no art. 3.º:

- Al. a), não amortização de despesas suportáveis com operações de


prospeções de mercado;

- Al. b), suspensão ou resolução da encomenda ou resolução do contrato pelo


devedor na fase anterior à constituição do crédito, i.e., a contraparte importador
resolver a encomenda ou não celebrar o contrato;

- Al. c), relações cambiais cujo pagamento seja feito em moeda estrangeira,
i.e., pelo risco de desvalorização;

- Al. d), elevação anormal do custo de produção, i.e., o risco de encarecimento


da atividade.

c) O sinistro

Pode desencadear-se quando aconteça o evento de que depende a


intervenção da entidade seguradora, o sinistro, que é o facto ou evento que
desencadeia a cobertura. O art. 4.º fala dos factos geradores do sinistro.

- Al. a), a insolvilidade justificada por falência do devedor ou outro ato judicial
com mesmo alcance;

- Al. b), insuficiência de meios manifestada em ação executiva, que faz com
que ponha em risco a obtenção do respetivo crédito;

- Al. c), mora do devedor;

- Al. d), ato ou decisão do governo ou entidade pública do país do devedor ou


de um terceiro país que obsta ao cumprimento do contrato (moratória geral decretada,
disposições legais ou atos administrativos visando o comércio externo que
impossibilitem a execução do contrato, etc.).

Quanto aos limites de cobertura (art. 5.º/1), não se segura todo o montante de
crédito: há a obrigatoriedade de um limite a descoberto. Se o crédito é de 1 milhão,
limita-se o valor do crédito segurado a uma percentagem do total (o que já não
acontece no seguro-caução, porque nesse caso o tomador é o próprio devedor, não se
pondo em causa o seu desinteresse). Não se pode segurar todo o crédito porque se
todo o risco fosse transferido para a seguradora, havia o perigo de o credor se

44
2021/2022 MCJF Cristiana Sousa

desinteressar do respetivo direito, inclusivamente não levando a cabo todas as


diligencias necessárias para o respetivo cumprimento.

Uma outra limitação é que na indemnização a pagar pela seguradora, tem esta
a ver com uma percentagem do crédito seguro e não abrange, como diz o art. 12.º
(regra válida também para o seguro-caução), não são indemnizáveis quer os lucros
cessantes, quer os danos não patrimoniais.

Pelo que vimos, é este um contrato nominado ou típico, não se colocando


nenhum problema relativamente à sua admissibilidade. Depois, veremos que
relativamente ao seguro-caução, apesar de típico, questiona-se a sua natureza: se
será contrato de seguro ou algo mais próprio da fiança ou da garantia autónoma.

d) Distinção da fiança.

e) Regime insolvencial

Desde logo, quando há insolvência do devedor, se esta for um dos riscos


cobertos, o segurador paga a indemnização e fica sub-rogado nos direitos do respetivo
credor contra o devedor. Se o devedor é insolvente, é o segurador que assumiu o
risco, sendo que sabemos que o próprio credor continua a ser credor, sendo uma sub-
rogação parcial. Ambos têm de vir à insolvência do devedor exigir os respetivos
créditos.

Se houver insolvência do credor tomador do seguro, que efetivamente é seu


beneficiário, mantém-se o contrato de seguro nos termos do art. 98.º, mas o crédito
que eventualmente o credor tinha sobre a seguradora em caso de vir a ocorrer o
sinistro passa a ser um crédito da massa. Passa a poder exigir do segurador a quantia
em dívida.

9. O Seguro-Caução

a) Caraterização, estrutura e regime.

Diz o art. 1.º que é aplicável também ao seguro-caução.

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2021/2022 MCJF Cristiana Sousa

No seguro-caução, o tomador do seguro não é já o credor, mas sim o devedor,


que contrata com a seguradora, mediante o pagamento de um premio, para que a
seguradora pague uma determinada quantia no caso da verificação do sinistro.

Diz o art. 9.º/2 que o seguro-caução é celebrado com o devedor da obrigação a


garantir ou com o contra garante a favor do respetivo credor (no último caso, seguro-
caução indireta). Aqui o tomador do seguro já não é o seu beneficiário.

b) Natureza jurídica

Mas também este seguro caução é sempre um contrato que tem como
beneficiário uma pessoa diferente daqueles que participam no próprio contrato de
seguro, tratando-se de um contrato a favor de terceiro (arts. 443.º e ss.), em que, por
contrato entre promitente e promissário, se celebra um negócio que beneficiara um
terceiro que não participa nesse contrato e que tem direito a exigir uma prestação.
Ora, há uma relação de natureza trilateral: uma relação básica ou de cobertura, entre
o promissário e o beneficiário, que justifica a atribuição do benefício; mas também há
uma relação entre o promitente e o promissário, que é o próprio contrato a valor de
terceiro, que é a chamada relação de valuta, o que ocorre muito com os seguros de
vida.

O contrato de seguro será a tal relação de cobertura. Mas existe entre devedor
e credor um outro negócio que justifica aquela atribuição, a tal relação de valuta. No
caso do seguro de vida, a relação de valuta é em regra gratuita, mas também pode ser
onerosa. Muitas vezes os bancos como condição para o crédito habitação exige que
seja feito um seguro de vida, sendo a relação de valuta que o justifica um contrato de
mútuo.

Quanto aos limites indemnizatórios, pode ser seguro todo o crédito. O que
continua a não ser indemnizável, nos termos do art. 12.º, são os lucros cessantes e os
danos não patrimoniais.

Este seguro ode ser prestado de forma direta ou indireta (art. 1.º/5). O que os
distingue é que depende de quem é a obrigação segurada, i.e., no seguro-caução
direta é o devedor que contrata com a seguradora no sentido de esta pagar ao credor
uma indemnização em caso de não cumprimento. No caso do seguro-caução indireta,
o segurador intervém como contra garante. O segurador intervém para garantir a
obrigação eventual desse mesmo garante. Por exemplo, o fiador que se obriga a
pagar ao credor em caso de incumprimento do devedor, mas faz um seguro-caução,

46
2021/2022 MCJF Cristiana Sousa

transferindo esse risco eventual para uma seguradora, havendo assim uma dupla sub-
rogação, porque se o devedor não cumprir em primeiro lugar chama se o garante
(fiador) que vem cumprir as obrigações do devedor perante o credor e fica sub-rogado
nos respetivos direitos do credor sobre o devedor, mas como esta relação de garante
estava protegida pelo seguro caução, a seguradora vai ficar sub-rogada nos direitos
do garante contra o devedor13.

Como disse o art. 1.º/5, o seguro-caução pode ser direto ou indireto. Tal como
no seguro de crédito, a lei fala nos riscos seguráveis (art. 6.º/1), risco de
incumprimento ou atraso no incumprimento. Quando existe obrigação por parte de
alguém perante uma entidade de prestar caução – através de prestação de fiança,
aval, etc. -, se a caução tiver de ser prestada perante uma entidade pública, não
podem recusar uma apólice de seguro, i.e., não podem recusar que essa caução seja
assegurada por um seguro-caução indireto.

Quanto à quantia segura, vem o art. 7.º que não é necessário colocar limite a
descoberto, podendo a cobertura ser pela totalidade dos danos causados pelo
incumprimento ou atraso no cumprimento, com exceção dos lucros cessantes ou
danos não patrimoniais.

Sendo direto, verifica-se aqui que o segurador tem a obrigação de pagar a


indemnização ao credor e admite face ao devedor os direitos do credor por sub-
rogação. Sendo indireto, existe dupla sub-rogação: perante o devedor nos direitos do
credor; e depois, em lugar do garante, acaba a seguradora por ficar sub-rogada nos
direitos deste sobre o devedor.

Discute-se a natureza do seguro-caução. Há quem entenda que é pura e


simplesmente um contrato de seguro de crédito, tal como tipificado na lei. Acontece
que neste seguro-caução a lei permite a colocação, no próprio contrato de seguro, de
certas cláusulas de inoponibilidade, podendo estabelecer-se no contrato de seguro
que a obrigação do segurador seja uma obrigação autónoma relativamente à relação
principal entre devedor e credor. Mas também pode acontecer que estas cláusulas não
existam e assim a relação do segurador é uma obrigação acessória, podendo invocar
as exceções decorrentes da relação entre credor e devedor. Vem a doutrina invocar
que não se trata de seguro de crédito: em termos de estrutura é contrato de seguro,
mas tem funções diferentes por isso seria mais qualificável como fiança, no caso de

13
Note-se que até a própria companhia de seguros faz resseguros.

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2021/2022 MCJF Cristiana Sousa

ser acessório da obrigação principal; ou mais próxima da garantia autónoma, quando


fossem apostas no contrato as tais cláusulas de inoponibilidade.

A discussão sobre a natureza pode ter interesse para, nos aspetos em que não
está especialmente regulado, aplicarmos as regras de uma destas figuras: fiança,
garantia autónoma ou contrato de seguro.

Independentemente da qualificação, se devemos qualificar como uma fiança


(CALVÃO DA SILVA, MENEZES LEITÃO), se como um seguro de crédito (MÓNICA
JARDIM E MENEZES CORDEIRO), se como garantia autónoma, é de notar que esta
é sempre uma garantia de natureza pessoal. Nunca sendo verdadeiramente só uma
coisa e outra, acaba por depender da manifestação de vontade das partes e se
quiseram dar-lhe autonomia relativamente à obrigação principal, ou mantê-lo acessório
do respetivo crédito.

c) Regime insolvencial

Numa situação de insolvência do devedor, aquilo que retiramos das regras do


CIRE é que o credor pode exigir que o segurador o indemnize. O respetivo segurador
é que depois adquire um crédito por sub-rogação em relação ao devedor, que tem de
fazer valer no processo insolvencial. Este crédito do segurador perante o devedor por
sub-rogação pode ser um crédito comum ou um crédito garantido: se for um crédito
garantido, terá o valor que representará essa garantia no conjunto das dívidas do
devedor insolvente: é feita a respetiva graduação em função das garantias que lhe são
dadas.

No caso de insolvência do credor beneficiário da respetiva garantia, ou já existe


crédito pela verificação do sinistro e passa-se esse crédito a poder ser exigido ao
segurador pelo administrador da insolvência, ou se eventualmente ainda não existe
esse crédito, quando ocorrer o sinistro pode o administrador da insolvência vir perante
a companhia de seguros e exigir a respetiva indemnização. O crédito que tenha o
credor sobre a seguradora vai integrar os créditos da massa e pode ser feito valer pelo
administrador da insolvência.

10. O Credit Default Swap (CDS)

a) Caraterização

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2021/2022 MCJF Cristiana Sousa

Este é um instrumento financeiro - que muitas vezes pode constituir um


instrumento especulativo, e não uma garantia verdadeira e própria - e constitui, dentro
dos instrumentos financeiros, aquilo que designamos por uma modalidade dos
derivados de crédito. O que está aqui em causa é que há um sujeito que designamos
por comprador de proteção, que celebra com o chamado vendedor da proteção um
contrato m que mediante o pagamento de um determinado premio, esse vendedor
assume a obrigação de pagar um certo valor se se verificar aquilo que chamamos
evento de crédito, dentro de um determinado prazo. É como se o vendedor da
proteção assumisse o risco de vir a ocorrer um determinado evento, que causa
prejuízos, ou não, ao chamado comprador da proteção.

Este contrato de proteção está sempre ligado a uma entidade de referência e a


um ativo de referência. Imaginando: A é um proprietário de determinadas obrigações
(títulos de divida) pertencentes á sociedade B. a sociedade B emitiu um conjunto de
obrigações e A é titular de algumas delas. A celebra um contrato de Credit Default
Swap, i.e., compra proteção a uma terceira entidade, C, que se vai obrigar, em caso
de eventual insolvência da entidade de referencia, ou haver uma desvalorização do
valor de cada obrigação, o vendedor da proteção vai obrigar se ou a adquirir o titulo
pelo seu valor nominal, ou então a indemnizar o respetivo titular da obrigação (do
direito de credito) pelos prejuízos por ele sofridos, pela diferença entre o valor nominal
e o valor da respetiva obrigação. Inclusivamente pode a obrigação valer zero por a
entidade de referência se encontrar numa situação de pura incapacidade para
cumprimento. Há aqui, por parte do credor da entidade de referência, que é o nosso
comprador de proteção, maior probabilidade de satisfação do seu direito, porque no
caso de algum evento, tem garantido, por força da compra da proteção, que é o
vendedor da proteção que arca com esse risco, havendo assim um reforço
quantitativo.

Estes contratos funcionam com verdadeiras garantias, só que estes


instrumentos têm sido utilizados como puros instrumentos especulativos, porque
admite se que o comprador da proteção não seja sequer titular do direito crédito, não
sofra danos com o eventual evento a que é referida a proteção. Pode ser um qualquer
investidor no mercado que em caso de desvalorização de algo de que nem é titular,
ele venha a ser indemnizado. No fundo, um determinado evento relativamente a uma
determinada entidade ou ativo de referência acaba por se repercutir num terceiro que
tem de indemnizar o beneficiário da proteção sem que ele tenha tido qualquer
prejuízo. Ora, obviamente, nestes casos não podem ser considerados garantias
pessoais, pois para o serem seria necessário que este ficasse prejudicado, gerando a

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2021/2022 MCJF Cristiana Sousa

tal obrigação de indemnizar pelos prejuízos que ele teve com esse evento que gera a
dita cobertura.

b) Modalidades e funções

Quanto à modalidade, na maior parte dos casos, eles dizem respeito apenas a
uma entidade. Mas pode acontecer que exista um contrato deste tipo – frequente,
sobretudo com intuitos especulativos – em que a entidades de referência são
múltiplas. Mas só são considerados verdadeiras garantias quando o evento a que se
submete a proteção cause prejuízos ao respetivo titular da proteção, i.e., quando ele
seja titular do ativo de referência.

c) Distinção do seguro de crédito

28 de março de 2022

11. A solidariedade passiva

a) Regime geral da solidariedade passiva.

Como sabemos, a regra no direito civil é a da conjunção. Só havendo


solidariedade quando convencionada pelos contraentes.

É um direito mais preocupado com o crédito e, porque é assim, a solidariedade


é um regime mais amigo do credor. Se um dos devedores não consegue cumprir,
quem suporta o risco de não cumprimento na conjunção é o credor. Já no caso da
solidariedade, pode o credor exigir o cumprimento integral a qualquer um dos
devedores. No plano das relações internas, o devedor que satisfizer o direito ao credor
tem depois o direito de regresso.

No direito comercial assistimos à regra da solidariedade, bem como no âmbito


da responsabilidade civil extracontratual em caso de pluralidade de lesantes.

b) Adaptação do regime da solidariedade passiva para efeito de constituição de


uma garantia pessoal.

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2021/2022 MCJF Cristiana Sousa

Muitas vezes, a solidariedade é fixada com fins de garantia, acontecendo


muitas vezes nas relações entre cônjuges. Aqui, a solidariedade tem simples fins de
garantia, não havendo “quotas internas” de responsabilidade.

Quando a solidariedade nos surge com fins de garantia, ela funciona como
garantia pessoal, reforçando quantitativamente a probabilidade de satisfação do
crédito. A circunstância de a solidariedade aparecer com funções de garantia vai fazer
diferença no plano interno.

Do ponto de vista do garante, há aqui uma espécie de negócio fiduciário em


sentido amplo. Convém, por uma questão de segurança do garante (embora não haja
exigência na lei) que se faça contrato escrito. Se não puder fazer prova, no plano das
relações internas acabamos por ter de aplicar a presunção de que as quotas de
responsabilidade são idênticas.

c) Regime insolvencial.

Quanto ao regime insolvencial, aplicamos as regras que aplicaríamos à


solidariedade. Se um deles for insolvente, o risco de não cumprimento é suportado
pelo outro devedor. Se ambos forem insolventes, o art. 95.º CIRE permite que o credor
venha à insolvência de qualquer um dos codevedores exigir a totalidade do crédito.

Se eventualmente é insolvente o verdadeiro devedor, pode o credor exigir ao


garante e este último reclama o seu crédito a título de direito de regresso à massa
insolvente do devedor.

12. A Assunção Cumulativa de Dívida

a) Regime geral da transmissão singular de dívidas.

A assunção cumulativa de dívida encontra-se regulada nos arts. 595.º e ss.


CC. Se for cumulativa, pode esta ter função de garantia.

b) Adaptação do regime da assunção cumulativa de dívida para efeito de


constituição de uma garantia pessoal.

Distingue-se entre duas formas diferentes de assunção de dívida. Há a


assunção liberatória, verdadeira transmissão da obrigação em que o novo devedor

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2021/2022 MCJF Cristiana Sousa

ocupa a posição o antigo e o antigo é liberado pelo credor. Aqui, é sempre necessário
acordo entre devedor e credor, ou entre o novo devedor e o devedor antigo, mas
sempre ratificado pelo credor.

Tem de haver esta ratificação seja na assunção singular, seja na assunção


cumulativa. O que distingue a assunção liberatória da assunção cumulativa, é que há
um novo devedor, C, que assume a obrigação, mas o credor não liberta o antigo
devedor, passando a existir uma assunção plural, com mais do que um devedor. Para
efetivamente garantir o cumprimento da obrigação, o novo devedor assume-se, junto
com o antigo, como devedor perante o credor, havendo aqui junção de um outro
património, aumentando em termos quantitativos a probabilidade de satisfação do
crédito. Mas ambos respondem solidariamente, o credor tanto pode exigir o
cumprimento ao antigo como ao novo devedor, ficando o que cumprir com direito de
regresso sobre o outro. Se o novo devedor funcionar apenas como garante e
responder integralmente perante o credor, então tem um direito de regresso na
totalidade sobre o devedor antigo. Se ao contrário quem satisfizer o direito de crédito
for o antigo devedor, não tem qualquer direito de regresso sobre o novo, porque
apesar de externamente funcionar como solidariedade, internamente não há quotas de
responsabilidade. Retiramos esta possibilidade no n.º 2 do art. 595.º. se não houver
liberação, estamos perante a assunção cumulativa de divida e aí é que podemos falar
de garantia. Também pode significar a assunção efetiva de uma parcela da divida,
mas pode também funcionar com esta função de garantia.

No caso da assunção cumulativa de dívida, ambos os devedores são


solidários, embora possa haver desvios determinados pelo regime da assunção de
divida. O art. 598.º, em relação aos meios de defesa, diz “Na falta de convenção em
contrário, o novo devedor não tem o direito de opor ao credor os meios de defesa
baseados nas relações entre ele e o antigo devedor, mas pode opor-lhe os meios de
defesa derivados das relações entre o antigo devedor e o credor, desde que o seu
fundamento seja anterior à assunção da dívida e se não trate de meios de defesa
pessoais do antigo devedor”.

c) Regime insolvencial. Reforço qualitativo da probabilidade de satisfação do


crédito: Garantias reais e figuras próximas.

Para a questão da insolvência vale o mesmo raciocínio que fizemos para a


solidariedade, pois ambos os devedores, novo e antigo, respondem perante o credor
como devedores solidários.

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2021/2022 MCJF Cristiana Sousa

Como no plano das relações internas não há quotas de responsabilidade, se


aquele que estiver insolvente for o devedor e for o assuntor a cumprir perante o
credor, então ele tem direito a vir à massa insolvente exigir a totalidade daquilo que
pagou ao credor. Se a insolvência for do assuntor e o antigo devedor é que vier
satisfazer o crédito ao credor, não tem depois direito de regresso algum, não podendo
vir à massa reclamar o que quer que seja, pois não existe uma quota interna de
responsabilidade.

Na assunção de dívida, quando esta existe com fins de garantia, existe ainda
assim um contrato de garantia entre o novo e o antigo devedor, que é a relação onde
nos devemos basear para verificar qual é o regime das relações internas e a prova
dessa mesma garantia, tal como vimos para a garantia. É importante que o assuntor
que funciona como garante tenha prova de que funciona apenas como garante e não
como devedor principal14.

14
Fim da matéria para a 1.ª frequência.

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2021/2022 MCJF Cristiana Sousa

AS GARANTIAS REAIS

No âmbito das garantias reais (garantias que reforçam qualitativamente a


probabilidade de satisfação do crédito), vigora o princípio da tipicidade ou numerus
clausus, só tem eficácia real os direitos a que a lei atribua essa eficácia, sendo apenas
direitos reais de garantia os previstos na lei. No que toca às garantias reais, que são
verdadeiros direitos reais, gozam das características da preferência ou prevalência e
do atributo da sequela. Traduz-se isso na ideia de que a anterioridade do direito no
tempo confere-lhe prioridade jurídica. Assim, o direito real prevalece sobre qualquer
outra situação jurídica que venha a constituir-se. Por isso, quando temos um conflito
total ou parcial entre dois direitos reais, prevalece o primeiro constituído, a menos que
seja de aplicar as regras do registo, em que prevalece o primeiro registado. Nos
direitos de crédito, a prioridade temporal do direito do credor não lhe confere
prevalência nenhuma nos termos do respetivo cumprimento. Vimo já que se o
património não for suficiente, eles serão pagos na proporção dos respetivos créditos.
Em segundo lugar, a ideia de sequela, que é uma espécie de possibilidade de
perseguir o bem onde quer que ele se encontre, mesmo que se encontre já na esfera
jurídica de terceiro que não o devedor. A expressão máxima desta possibilidade de
perseguição do bem é a ação de reivindicação, o proprietário que tem o seu direito
esbulhado, pode apreender a coisa mesmo que já no domínio de terceiro. O mesmo
sucede nos direitos reais de garantia. No caso de a hipoteca incidir sobre coisa imóvel,
se o proprietário vender a coisa a terceiro, o credor em caso de incumprimento pode
executar a garantia e penhorar a coisa no património onde ela se encontrar.

Os direitos reais de garantia conferem ao seu titular o poder de se pagar com


preferência em relação aos restantes credores, pelo valor de determinada coisa ou
pelo valor dos seus rendimentos. Em caso de incumprimento do devedor, o que
acontece é que o credor pode, através de ação judicial no caso de alguns direitos
(v.g., hipoteca), ou extrajudicialmente no caso de outros (v.g., penhor), penhorar o
bem através de ação executiva e, pelo preço da coisa vendida, tem preferência sobre
os restantes credores. Por isso é que falamos de reforço qualitativo. Pode haver
também, ao lado deste, reforço quantitativo, mas mesmo que seja o devedor o autor
da garantia (da hipoteca, do penhor, da consignação de rendimento…), há um reforço
qualitativo dada a preferência que dá ao credor.

54
2021/2022 MCJF Cristiana Sousa

13. A Hipoteca15

a) Noção e caraterização.

Grande parte do regime legal da hipoteca serve de modelo e referência às


outras garantias reais, nomeadamente ao penhor, daí que comecemos pelo estudo
desta figura, não pela ordem da sua regulamentação, mas pela sua importância e por
esta circunstância de o regime que a lei prevê ser um modelo de referência para as
restantes garantias reais.

A hipoteca tem como objeto bens imóveis ou móveis equiparados (automóveis,


aeronaves, etc.) e é das garantias reais mais frequentes no tráfego jurídico, o que tem
a ver com a generalização e importância que foi dada na economia de mercado ao
crédito à habitação. Quanto ao objeto, pode ela ainda incidir sobre determinadas
coisas moveis embora ligadas às imoveis e até, dada a sub-rogação real, ela possa ter
como objeto determinados créditos, nomeadamente créditos indemnizatórios.

b) Espécies de hipoteca:

A lei vem desde logo distinguir entre as hipotecas legais, judiciais e


convencionais, em função da sua fonte.

1. Hipotecas legais;

Encontram-se reguladas nos arts. 704.º e ss.. Diz o art. 704.º “As
hipotecas legais resultam imediatamente da lei, sem dependência da vontade
das partes, e podem constituir-se desde que exista a obrigação a que servem
de segurança”. Para que a hipoteca legal se constitua é necessário o registo,
sendo este um registo constitutivo, ao contrário do que sucede por exemplo
nas hipotecas voluntárias, sendo nelas o ato constitutivo o contrato, sendo
antes o registo condição de eficácia, mesmo inter partes.

Casos de hipoteca legal são os do art. 705.º: “Os credores que têm
hipoteca legal são: a) O Estado e as autarquias locais, sobre os bens cujos
rendimentos estão sujeitos à contribuição predial, para garantia do pagamento

15
Início da matéria para a 2.ª frequência.

55
2021/2022 MCJF Cristiana Sousa

desta contribuição;” Pode o estado ou autarquia registar hipoteca sobre o


prédio que gerou uma certa receita, v.g., IMI. “b) O Estado e as demais
pessoas colectivas públicas, sobre os bens dos encarregados da gestão de
fundos públicos, para garantia do cumprimento das obrigações por que se
tornem responsáveis; c) O menor e o maior acompanhado, sobre os bens do
tutor, acompanhante e administrador legal, para assegurar a responsabilidade
que nestas qualidades vierem a assumir; d) O credor por alimentos; e) O co-
herdeiro, sobre os bens adjudicados ao devedor de tornas, para garantir o
pagamento destas; f) O legatário de dinheiro ou outra coisa fungível, sobre os
bens sujeitos ao encargo do legado ou, na sua falta, sobre os bens que os
herdeiros responsáveis houveram do testador”. Há ainda a acrescentar nesta
lista a possibilidade de ser credor com hipoteca legal a Segurança Social para
garantir o pagamento das contribuições (art. 12.º do DL 103/90, que disciplina
as Contribuições para a Segurança Social).

Diz ainda o art. 708.º que pode a hipoteca legal ser registada
relativamente a quaisquer bens do devedor.

2. Hipotecas judiciais;

Decorrem estas do art. 710.º. Após uma sentença condenatória, se o


credor constituir sobre o devedor um direito de crédito, pode este registar
hipoteca sobre os bens do respetivo devedor. Aqui também o registo é
constitutivo, tal como nas garantias legais, mas têm estas – as hipotecas
judiciais - uma menor eficácia na medida em que cedem em caso de
insolvência do respetivo devedor, i.e., se o devedor for considerado insolvente
deixa o respetivo credor hipotecário de poder beneficiar de qualquer
preferência no âmbito da insolvência do devedor.

3. Hipotecas voluntárias.

Encontram-se previstas nos arts. 712.º e ss., decorrendo a hipoteca da


vontade das partes ou de uma simples declaração negocial, um negócio
jurídico unilateral decorrente do titular dos bens a hipotecar. O ato constitutivo
da hipoteca é o próprio negócio jurídico, no entanto, aqui o registo é condição
de eficácia inter partes da hipoteca.

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O registo funciona, em grande parte dos direitos reais, como condição


de eficácia em relação a terceiros, sendo publicidade para proteção de
terceiros.

Quanto às hipotecas voluntárias, temos no art. 713.º a expressão do


princípio da prevalência. Pode acontecer que sobre um mesmo bem exista
mais do que uma hipoteca, no sentido de garantir mais do que uma divida. Se o
valor do bem não chegar para o cumprimento integral das dividas que garante,
prevalece a primeiramente registada. Se chegar, pago o primeiro credor,
depois pelo valor do bem são pagos os credores seguintes também com a
respetiva preferência. Aquilo que vem dizer a lei é que se uma delas se
extinguir, os bens passam em pleno a garantir as restantes dívidas.

c) Regras gerais:

Quanto à forma, a forma exigida em matéria de alienação e oneração


de bens imóveis é definida pelo art. 714.º (escritura publica, testamento ou
documento particular autenticado).

Quanto à legitimidade para hipotecar, pode hipotecar o proprietário dos


bens, i.e., aquele que tem possibilidade de alienar os bens tem também a
possibilidade de os onerar. Temos de ter também em conta aqueles casos em
que a lei exige determinados consentimentos ou autorizações, por exemplo o
caso do art. 1682.º-A, qualquer dos cônjuges, mesmo relativamente a bens
próprios, só pode alienar ou onerar imoveis quando tenha consentimento do
outro cônjuge. Assim, se um dos cônjuges pretender constituir hipoteca de um
dos prédios, soo pode fazer com o consentimento do outro cônjuge.

Como diz o art. 717.º, há até a possibilidade de a hipoteca ser


constituída por terceiro.

1. Os créditos assegurados.

Quanto às regras gerais em matéria de hipoteca, há pouco começamos


por questionar qual era o objeto da hipoteca, mas antes fazer aqui referencia
ao art. 693.º quanto aos créditos que a hipoteca assegura. A hipoteca é
acessória de um determinado crédito e, alem do crédito principal, a hipoteca
assegura os acessórios do crédito que constem do registo (juros, despesas

57
2021/2022 MCJF Cristiana Sousa

com o registo e constituição da hipoteca, cláusula penal para o incumprimento,


etc.). mas há uma limitação no n.º 2 do art. 693.º quanto aos juros: tratando-se
de juros, a hipoteca nunca abrange (norma imperativa) mais do que os relativos
a 3 anos, i.e., a hipoteca só garante os juros vencidos durante 3 anos e ainda
não pagos, contados por referência ao respetivo vencimento. Esta regra, como
vimos, é uma regra imperativa que visa proteger os restantes credores porque,
em caso de vencimento de juros não exigidos, os montantes podiam ser tao
elevados e os restantes credores acabarem por ser prejudicados com esse
alargamento, daí que são garantidos pela hipoteca todos os acessórios, com
esta limitação relativamente aos juros vencidos.

2. O objeto.

Quanto ao objeto da hipoteca, os bens sobre que esta pode incidir,


começamos pelo art. 688.º, que tem precisamente os bens que podem ser
objeto desta garantia: os prédios rústicos ou urbanos, o direito de superfície, o
direito resultante de concessões de domínio público, o usufruto de coisas e
direitos constantes das alíneas anteriores e as coisas móveis que para este
efeito sejam por lei equiparáveis aos imoveis. Nos termos do n.º 2, podem ser
objeto de hipoteca as partes de um prédio suscetíveis de propriedade
autónoma, v.g., as frações autónomas nos prédios constituídos em propriedade
horizontal, podendo a hipoteca incidir apenas sobre a respetiva fração
autónoma e não sobre o prédio todo. Ainda, os bens comuns, a quota de coisa
ou direito comum, por exemplo, uma quota numa compropriedade16-17. Aquilo

16
Mesmo quando a alienação do bem é feita através de execução específica, a lei, no art.
830.º/4, prevê a possibilidade de expurgação de hipoteca, exigindo-se ao promitente-vendedor faltoso
que entregue determinada quantia para haver renúncia à hipoteca e à expurgação da hipoteca.
17
O direito de retenção do art. 859.º prevalece sobre a hipoteca, passando a ser uma garantia
oculta não sujeita a registo, que prevalece sobre a garantia que é dada ao credor hipotecário mesmo
apos ele já ter registado o respetivo direito. Acaba por, ao prejudicar o credor hipotecário, se refletir em
matéria de trafico jurídico com um aumento generalizado da retribuição do crédito, uma vez que o
credor corre mais risco de não satisfação integral do respetivo crédito. Grande parte da doutrina,
entendida que esta proteção dada ao promitente-comprador, tem-se entendido que só é aplicável
quando ele seja consumidor para sua proteção como parte mais fraca, sobretudo quando estamos num
processo de insolvência, porque nós casos de contrato promessa sinalizado, mas com simples eficácia
obrigacional, o administrador da insolvência não é obrigado a executar o contrato. Se for um contrato
promessa com eficácia real, a lei obriga o administrador da insolvência ao cumprimento, dando-se nos
restantes casos a opção por cumprir ou não cumprir o contrato promessa, importando a partir daí saber
qual a indemnização que daí resulta, podendo dar direito ao direito de retenção ou então, de acordo
com alguns acórdãos de uniformização de jurisprudência, admitir que o promitente comprador tivesse
direito a indemnização calculada nos termos do art. 442.º, mas o Ac. 4/2019, para limitar as hipóteses
em que o direito de retenção é oponível a hipoteca, seguem PESTANA VASCONCELOS na linha de que

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que a lei vem dizer no n.º 2 do art. 698.º é que se houver posteriormente
divisão do bem comum, a hipoteca fica restringida à parte que vier a ficar na
titularidade do devedor.

3. A indivisibilidade.

Apesar de os bens comuns poderem ser objeto de hipoteca, nos termos


do art. 690.º não o podem ser a meação dos bens comuns do casal, assim
como não o pode ser a quota de uma herança indivisa. Ora, deve-se isto ao
facto de que não podemos registar uma hipoteca sobre bens não identificados.
A hipoteca abrange ainda, nos termos do art. 691.º, coisas imóveis referidas
nas als. c) a e) do n.º 1 do art. 204.º, por exemplo, as árvores, os arbustos e os
frutos enquanto estão ligados ao respetivo solo. Abrange a hipoteca ainda as
acessões naturais e as benfeitorias. A lei prevê ainda a possibilidade de haver
hipoteca sobre fábricas, sendo o objeto da hipoteca o imóvel onde funciona a
unidade fabril, no entanto a lei permite que esta hipoteca se estenda às coisas
que compõem a fábrica (“maquinismos e demais moveis, desde que
inventariados do título constitutivo, mesmo que não sejam parte integrante dos
respetivos imóveis”). Esta hipoteca de fábricas tinha aptidão para funcionar
como uma garantia muito próxima do penhor de estabelecimento. Como
unidade, não impõe o penhor de estabelecimento o desapossessamento. Nesta
hipoteca de fábrica podia pensar-se que há aqui uma garantia idêntica a este
penhor de estabelecimento, que também permitiria ao proprietário/empresário
poder manter em laboração a sua atividade e, com o produto da atividade,
pagar os respetivos créditos, tendo assim uma garantia muito próxima do
penhor de estabelecimento. O problema é a forma como o legislador vem
regulamentar esta garantia, porque vem exigir o consentimento do credor para
que haja alienação dessas maquinarias e móveis (art. 391.º), trazendo
consequências relativamente à importância da hipoteca de fábricas. É assim

deve valer apenas para o promitente-comprador consumidor, tendo depois gerado o problema de saber
quem é consumidor. Esse acórdão de 2019 acabou por optar pelo conceito restrito de consumidor. Já
veio um acórdão de 2021 dizer que a indemnização não deve ser calculada nos termos do 442.º, mas do
CIRE, não havendo nesses casos direito de retenção. SOVERAL MARTINS, AFONSO PATRÃO e
MARGARIDA COSTA ANDRADE vão no sentido de não admitir nesses casos, uma vez que a indemnização
devera ser calculada nos termos do CIRE porque não corresponde a um incumprimento imputável ao
promitente-vendedor, não havendo nesses casos direito de retenção. Essa oponibilidade generalizada
era injusta e punha em causa a própria confiança do credor hipotecário. Grande parte da doutrina
brasileira, para alargar o conceito de consumidor, lança o tema da vulnerabilidade para se perceber em
que medida se pode alargar esse conceito.

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2021/2022 MCJF Cristiana Sousa

mais interessante a garantia do penhor de estabelecimento, porque mantém a


possibilidade de gerir o próprio estabelecimento18.

No fenómeno da sub-rogação real, em que há substituição do crédito à


hipoteca, tem de haver um determinado cuidado por parte de quem paga a
indemnização (art. 692.º/2). Só nestes casos de sub-rogação real é que objeto
da hipoteca pode ser um direito.

São acessórios do crédito que visam garantir, revelando-se a


acessoriedade ao nível da extinção, como ao nível da defesa do próprio
garante que, uma vez exigido ou respetivo cumprimento ou execução da
garantia, ele pode defender-se com os meios de defesa que pertencem à
relação base de onde nasce o crédito. É, por isso, uma garantia acessória.

4. A proibição do pacto comissório.

É esta uma das normas para onde remetem a maior parte das garantias
reais e que devemos entender aplicável às garantias que representam o
reforço qualitativo do crédito. Diz o art. 694.º que é nula, mesmo que anterior
ou posterior á constituição da hipoteca, a convenção pela qual o credor fará
sua a coisa onerada no caso de o devedor não cumprir, porque em regra o
valor da coisa hipotecada é superior ao valor da garantia. Se o credor, não
havendo cumprimento, pudesse ficar com a coisa que é objeto da garantia, isso
redundaria em prejuízo para o devedor e muitas vezes, o credor, prevalecendo-
se da sua posição contratual, exigiria sempre isto mesmo. Por isso é que
falamos as vezes da admissibilidade de um pacto marciano: se o perigo é a
coisa que é objeto da garantia ter um valor muito superior ao respetivo credito e
o credor, quando pode ficar para si com a coisa em caso de incumprimento,
acaba por ficar com um valor muito superior ao crédito que concedeu e muitas
vezes já parcialmente cumprido, se possa admitir essa possibilidade de o
credor hipotecário ou penhoratício ver para sai respetiva coisa, embora essa
possibilidade esteja sujeita a uma previa avaliação do valor da coisa no
momento do incumprimento. Se nesse momento, avaliada a coisa por uma
entidade independente, se verificar que tem um valor muito superior ao crédito,
o credor tem de devolver o remanescente ao devedor e autor do penhor. Na

18
O grande problema que se punha na questão do penhor de estabelecimento era de saber se
era também necessário haver no penhor civil. Ora, se o penhor comercial estivesse sujeito ao
desapossessamento do penhor civil, perdia-se a vantagem dessa garantia.

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2021/2022 MCJF Cristiana Sousa

hipoteca é mais difícil admitir o pacto marciano porque a execução da hipoteca


tem de ser necessariamente uma ação judicial executiva. Esta proibição de
pacto comissório deve estender-se também a todas aquelas garantias que
utilizem a propriedade como garantia. Não é admitido o pacto comissório, mas
é de admitir o tal pacto marciano, que faz depender isto da condição de uma
avaliação independente. É esta uma norma de referência, por mesmo nas
garantias não legalmente previstas, devemos entender que por via analógica
se deve aplicar os cuidados que o legislador teve aquando da proibição do
pacto comissório.

O que também aqui é proibido é a cláusula de inalienabilidade dos bens


hipotecados. Diz o art. 695.º que é nula a convenção que proíba o respetivo
dono de alienar ou onerar os bens hipotecados. Se A é devedor de B e, para
garantir o respetivo crédito, constitui garantia sobre o prédio X, não pode
obrigar-se a não alienar o prédio respetivo, pois ele conserva o direito de
propriedade e qualquer terceiro que venha a adquirir a coisa tem de contar com
a oneração da hipoteca, pois após o registo é oponível a terceiros, não sendo
necessário uma clausula de inalienabilidade para proteger o credor. Aquilo que
a lei permite no art. 695.º é que as partes podem estabelecer que em caso de
alienação desses bens, podem convencionar que o crédito hipotecário se
vencerá logo que esses bens sejam alienados ou onerados.

4 de abril de 2022

Também é nula a cláusula em que as partes convencionam que o


devedor não pode vender os respetivos bens ou onerá-los. Se os bens se
encontram onerados e houver alienação a um terceiro, ou se faz a chamada
expurgação da hipoteca e o terceiro adquire livre de quaisquer ónus ou
encargos, ou então a hipoteca transmite-se e o credor pode hipotecar o bem no
património do terceiro. Nessa medida, não há nenhum interesse a proteger
com esta cláusula (art. 695.º CC).

Além destas notas e da chamada acessoriedade que também vimos ser


requisito da hipoteca – tal como da fiança -, tem ainda a característica da
indivisibilidade (art. 696.º) – regra supletiva, que admite afastamento pelas
partes -. Quer dizer que quando a hipoteca incide sobre um conjunto de bens,
ela incide sobre o conjunto desses bens e não apenas sobre uma percentagem
de cada um deles, então em caso de incumprimento e execução, o credor pode

61
2021/2022 MCJF Cristiana Sousa

escolher qualquer um desses bens para proceder à penhora. Quando a


hipoteca incide sobre uma coisa, mesmo que partes sejam autonomizadas,
ainda assim continua a incidir sobre todas, não pode ser dividida. Quando não
haja convenção em contrário, a hipoteca incide sobre a totalidade da coisa e
mesmo que haja redução do crédito não passa a incidir sobre uma parcela do
crédito, incidindo na sua totalidade.

5. A substituição ou reforço da hipoteca.

Por vezes entre o momento da constituição e da extinção da hipoteca


ocorrem circunstâncias que causam modificações na garantia. Uma desses
alterações pode ser a eventual necessidade de substituir ou reforçar uma
hipoteca anterior (art. 701.º). Pode acontecer que, durante a vida da garantia, a
hipoteca se venha a extinguir ou a ser necessário reforçá-la porque, por causa
não imputável ao credor, se tornou insuficiente para garantir o respetivo crédito.

Esta regra do art. 701.º deve ser conjugada com a do art. 780.º. A
circunstância de perecer a coisa ou a hipoteca se tornar insuficiente não é
imputável nem ao credor, nem ao devedor, então deve o credor exigir que o
devedor reforce ou substitua a hipoteca. Se ele não o fizer é que pode exigir
que faça o cumprimento através do vencimento antecipado, ou então o registo
de nova hipoteca sobre outros bens do devedor, no caso de dividas futuras.

Quando são imputáveis ao devedor, o art. 780.º admite uma solução


diferente. Diz-se “ou se por causa imputável ao devedor, diminuírem as
garantias do crédito e não forem prestadas as garantias prometidas”. Esta
solução de exigir imediatamente o crédito garantido acaba por ser diferente da
solução do art. 701.º, porque no art. 701.º o credor não pode começar por exigir
o vencimento antecipado do crédito, tem que primeiro exigir o reforço ou a
substituição da garantia. Outra diferença é que no art. 780.º, não se exige que
a garantia passe a ser suficiente, bastando que haja uma sua diminuição.
Assim, não é necessário provar a insuficiência para que se exija imediatamente
o crédito. Depois, dá-se apesar de tudo a possibilidade ao credor de, não
querendo o vencimento antecipado, dar-se o reforço das garantias.

No art. 701.º, obrigatoriamente tem de começar pelo pedido de reforço


das garantias e so depois, não sendo cumprido, pode recorrer ao vencimento
antecipado ou a exigência imediata do respetivo direito, ainda que ainda não

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2021/2022 MCJF Cristiana Sousa

vencido. No art. 780.º da lhe imediatamente a possibilidade do vencimento


antecipado, mas dá ainda a possibilidade da substituição ou reforço das
garantias.

Vimos casos em que o autor da hipoteca não é o devedor, mas terceiro.


Diz o art. 701.º/2 que não obsta ao credor o facto de a hipoteca ter sido
constituída por terceiro, salvo se o devedor for estranho à sua constituição.
Muitas vezes para a constituição da hipoteca exige-se uma simples declaração
unilateral do credor, a qual pode fazer-se com mero acordo do credor, não
sendo chamado sequer o devedor. Ora, se não é chamado o devedor e agora
são diminuídas as garantias, não podemos exigir que por força da insuficiência
o credor exija o cumprimento antecipado ao devedor, porque essa garantia é-
lhe alheia. Mas quando o devedor não é estranho à constituição da hipoteca,
valem as mesmas consequências que resultam do n.º 1.

Pode acontecer que a diminuição ou necessidade de substituição por


perecimento seja imputável ao terceiro. Mesmo neste caso (em que o devedor
é alheio à constituição da garantia), diz o art. 701.º/3 que “se a diminuição for
imputável ao terceiro, o credor tem direito de exigir do terceiro a substituição ou
reforço, ficando mesmo sujeito à cominação do número anterior em nome do
devedor”. Assim, ou exige que o terceiro reforce ou substitua, ou lhe é exigido
em lugar do devedor o cumprimento imediato da respetiva obrigação.

6. A não celebração e a rescisão de contrato de seguro.

Ainda, muitas vezes o credor para se proteger e tornar a garantia


efetiva, no momento da constituição da garantia exige que o proprietário segure
a coisa hipotecada, ou seja, faça um contrato de seguro em que transfira para
a seguradora o risco de a coisa perecer. O art. 702.º tenta responder aos casos
em que o devedor, mesmo se comprometendo a segurar a coisa, não o faz.
Ora, tem o credor a faculdade de segurar a coisa à custa do devedor, mas se o
fizer por um valor excessivo, pode o devedor exigir a redução do contrato nos
termos previstos (limites suficientes ou convenientes). No n.º 2 diz que nos
casos previstos no número anterior, mesmo que a coisa seja segurada e venha
a diminuir a garantia, só o credor pode exigir o cumprimento da respetiva
obrigação, e não a companhia de seguros.

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D) A redução da hipoteca.

Outra vicissitude que pode ocorrer na vida do crédito hipotecário e da


garantia é de haver necessidade da redução da hipoteca, se o crédito se
encontra parcialmente pago, reduziu o seu valor ou a coisa sobre a qual incide
a hipoteca aumentou o seu valor (arts 718.º e ss.). Desde logo, a lei vem
estabelecer duas formas de redução da hipoteca: uma voluntária, que
pressupõe o acordo do credor; ou a redução judicial, em que sem acordo do
credor é o tribunal que procede à sua redução.

A redução acaba por ser uma renúncia parcial e, nessa medida, segue
o regime da renúncia à garantia, tendo de ser expressa e com reconhecimento
escrito, visando salvaguardar o renunciante contra alguma precipitação da sua
parte.

O art. 719.º trata da redução voluntária. Quem pode dispor da hipoteca


é o credor garantido, só ele podendo acordar a redução da garantia quando ela
pareça excessiva.

Trata o art. 720.º da redução legal, que tem lugar nas hipotecas legais e
judiciais, a requerimento de qualquer interessado, exceto se por convenção ou
sentença a coisa onerada tenha sido especialmente indicada.

Se a hipoteca é voluntaria, só se admite a redução voluntária.

Se a hipoteca for legal e, eventualmente, se vem a reduzir o crédito ou


vem a aumentar o valor dos bens sobre que incide, pode qualquer interessado
requerer ao tribunal que proceda à redução da garantia. Só não pode ser assim
no caso em que esses bens são especificamente indicados, v.g., as autarquias
locais podem registas hipoteca para garantia do pagamento do IMI. Os bens
que garantem o pagamento da dívida são especificamente indicados, o prédio
que gera o IMI, não podendo haver redução, estabelecendo-se a garantia
apenas sobre parte do imóvel ou imóvel diferente. Ainda, se de uma decisão
judicial resultar para o credor a entrega em dinheiro ou de coisa fungível, pode
registar a hipoteca judicial, podendo por decisão judicial haver redução da
respetiva hipoteca.

Vem a lei estabelecer limites quer à redução voluntaria, quer à judicial.


Quando é pedida porque o crédito diminuiu, só se diminuiu abaixo de 2/3. No
outro caso, em que o bem aumenta de valor, apenas se o valor hipotecado tiver
aumentado acime da 1/3 do respetivo valor.

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Se eventualmente há a possibilidade da redução, a hipoteca só pode vir


a incidir sobre uma parte se os bens forem divisíveis, v.g., frações autónomas
constituídas em propriedade horizontal.

E) A expurgação da hipoteca.

Outra vicissitude tem a ver com a chamada expurgação da hipoteca,


que se coloca aquando da transmissão dos bens hipotecados. Se houver lugar
a transmissão dos bens hipotecados (coisa que é diferente da transmissão da
garantia ou da transmissão do crédito hipotecado), o art. 721.º vem estabelecer
que se o terceiro adquirente não quiser adquirir a coisa onerada com a
respetiva hipoteca em caso de transmissão do seu objeto, ele tem de proceder
à expurgação da hipoteca, dando-lhe a lei duas possibilidades. Diz-se então
que ou expurga a hipoteca pagando integralmente aos credores hipotecários as
dividas a que os bens estão hipotecados (paga a dívida garantida, extinguindo-
se as dívidas garantidas), ou então pode declarar que está pronto a entregar
aos credores, para pagamento dos seus créditos, até ao preço que pagou
pelos bens. Se for uma alienação a título gratuito, pode expurgar a hipoteca
declarando que está interessado em pagar o valor pelo qual estima os bens.
Neste último caso, o credor não tem de aceitar, porque isto acontece quando o
valor da divida é superior ao que o terceiro adquirente está disposto a entregar.

Quando os credores hipotecados são citados judicialmente, o tribunal


competente é o do art. 70.º CPC (foro da situação dos bens). Refere-se o art.
723.º aos direitos dos credores em caso de expurgação, tendo todos os
credores hipotecários de ser citados, não podendo esta ser oponível ao credor
não citado.

No âmbito da execução específica do contrato promessa há a


possibilidade de requerer também a expurgação da hipoteca. Se o promitente
vendedor não cumprir e houver interesse e possibilidade de alienação da coisa
– se não tiver os impedimentos do art. 830.º - propõe uma ação constitutiva em
que se pede ao tribunal que substitua o faltoso, emitindo uma sentença de
natureza constitutiva porque celebra-se o contrato definitivo. Mas podemos
estar na promessa de alienação perante uma coisa que está hipotecada. Como
é a decisão judicial que vai celebrar o negócio definitivo e em princípio o
promitente comprador só está interessado em adquirir a coisa livre de ónus ou
encargos, esta decisão alem de ser constitutiva pode ser também

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condenatório, condenado o promitente faltoso a entregar a quantia necessária


para a expurgação da hipoteca (art. 830.º/4, que remete para o art. 721.º que
estávamos a analisar). Ali, o tribunal condena o respetivo devedor à entrega do
valor do crédito, não a segunda opção de expurgação do art. 721.º, al. b),
porque aí os credores podem aceitar ou não, podem impugnar essa
possibilidade.

F) A transmissão da hipoteca.

Transmitindo-se o próprio crédito, através de contrato de cessão de créditos,


pode o credor que tem a garantia transmitir o crédito no regime dos arts 577.º e ss.. Se
o crédito estava garantido por hipoteca, o novo credor, credor cessionário, passa a ter
acesso à respetiva garantia. Esta cessão tem que ser notificada ao devedor nos
termos do art. 780.º, sob pena de ser relativamente a ele ineficaz.

A e B são simultaneamente credor e devedor e A cede o crédito a C. o respetivo


devedor não tem de autorizar a cessão – ao contrário do que sucede na assunção de dívida,
sobretudo se for liberatória – mas tem de ser notificado para a cessão poder relativamente a
ele produzir efeitos. Se ele não for notificado e pagar, esse cumprimento considera-se
liberatório, sendo as coisas depois resolvidas no plano das coisas entre cedente e cessionário,
em matéria de enriquecimento sem causa. Mas ora, o devedor pagou e pagou bem, porque
não tinha como saber que já não era ele o devedor.

Diferentemente, a transmissão da própria garantia pode ocorrer sem haver


transmissão do respetivo crédito que ela garante. Esta é a transmissão apenas da
garantia e vem regulada nos arts. 727.º e ss.. mais uma vez se remete aqui para as
regras que regulam a cessão de créditos (arts. 577.º e ss.), nomeadamente quando há
oponibilidade da cessão ao devedor, tendo a simples cessão da hipoteca de ser
notificada ao devedor, estando sujeito a forma de escritura pública ou documento
particular autentificado e a registo (embora não tenha efeito constitutivo nem seja
condição de eficácia inter partes), como condição de eficácia em relação a terceiros
/art. 2.º/1, al. h) do Código de Registo Predial) e art. 101.º/1, al. c) do mesmo código.
Diz o n.º 1 do art. 527.º que a hipoteca pode ser cedida sem o crédito garantido, para
garantia de crédito pertencente a outro credor do mesmo devedor.

Se A é devedor de B e C, sendo que o crédito de B é de 1000 e o de C é de 1200. B é


um credor cujo crédito tem garantia hipotecária, e C não. são dois credores do mesmo
devedor. O credor B, sem acordo do devedor (tendo apenas de notificar) pode ceder a garantia

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sem o crédito, continuando a ser credor de 1000 perante o A, mas pode ceder a garantia a C
que é credor do mesmo devedor, passando o crédito de C a estar garantido nos limites da
garantia cedida, ou seja, apenas no crédito de 1000.

Mais uma vez, e como reflexo da indivisibilidade, o credor não pode transmitir
parcialmente a hipoteca, tendo de transferi-la na totalidade. Assim, não é admitida a
cessão parcial (art. 727.º/2).

Esta transmissão da hipoteca também abrange outra modalidade, que é a


transmissão do grau hipotecário. Existindo várias hipotecas sobre o mesmo bem ou
conjunto de bens, sabemos já que o critério de rateio é que prevalece a hipoteca
primeiramente constituída. Acontecendo isto, i.e., tendo o mesmo devedor vários
credores garantidos pelo mesmo bem, cada um dos credores pode ceder o grau
hipotecário.

O credor preferencial, B, decide ceder o seu grau hipotecário ao credor D, passando D


a ocupar a posição preferencial que detinha B. o credor D passa a poder exercer o seu direito
nos mesmo termos em que podia exercer o credor B, e até ao limite do seu crédito. Se o
crédito de B for de 1000 e o de D for de 1200, D vai ocupar a posição ocupada por D em
termos de preferência, mas só tem preferência até ao limite de 1000.

Não sendo possível a execução específica, caímos nos casos de indemnização


do art. 442.º. Se o promitente vendedor não cumprir, ele tem direito de retenção, tendo
direito a ser pago antes do credor hipotecário.

G) A extinção da hipoteca.

Diz o art. 730.º que o caráter acessório da garantia leva a que uma vez extinta
a obrigação, se extinga a garantia.

Diz ainda a al. b) que se extingue por prescrição quando há alienação do


crédito hipotecado e não há expurgação da hipoteca, ou seja, o terceiro adquirente
adquire o prédio onerado com a respetiva garantia. Estes dois prazos enunciados no
preceito são cumulativos. Para haver prescrição da hipoteca, só passados 20 anos
após o registo, mas ainda tem de estar assegurando dentro desse prazo o prazo de 5
anos após o vencimento da obrigação. Ocorre isto por uma questão de segurança e
certeza. Só ocorre relativamente ao terceiro adquirente, nunca quando se mantém na
titularidade do autor da própria hipoteca.

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A al. c) trata do perecimento da coisa hipotecada. Se perece, extingue-se a


hipoteca porque deixa de ter objeto, mas nesse caso o respetivo credor tem direito a
substituição.

Quanto ao art. 692.º, trata-se de casos em que há sub-rogação legal, em que


por virtude da destruição de uma coisa há um terceiro que fica obrigado ao pagamento
de indemnização, passando o direito do credor a incidir sob o crédito indemnizatório.

A coisa perece, extingue-se a hipoteca, mas a garantia mantém-se sob coisa


diferente. Mas acaba por ser também uma garantia diferente, porque o objeto é
diverso, podendo até ser um caso em que a hipoteca incide sobre um direito e não
sobre um bem imóvel.

Na al. d) extingue-se também por renúncia do credor. A redução so pode ser


feita por quem tem legitimidade para proceder à renúncia, ou seja, o beneficiário da
hipoteca, o credor. Note-se que é renuncia à hipoteca, não ao crédito hipotecário, o
que é importante porque na renúncia à hipoteca o legislador não faz depender esta da
aceitação do autor da hipoteca, proprietário dos bens hipotecados. Na renúncia ao
crédito, a remissão de créditos é considerada pela lei civil portuguesa como uma figura
de natureza bilateral, ou seja, não basta a declaração do renunciante, tendo o perdão
de dívida que ter o consentimento do devedor, com base na ideia de que ninguém
deve ser obrigado a aceitar um benefício que não queira aceitar, art. 863.º (remissão
de dívida). Aqui, a renuncia à própria dívida tem de ser de natureza contratual, já não
a renuncia à hipoteca, que pode ser feita por mera declaração do renunciante (art.
831.º/1), não necessitando de qualquer consentimento por parte do onerado pela
hipoteca, seja ele o devedor ou terceiro.

Claro que se houver remissão ou renúncia do próprio crédito hipotecário


também há extinção da garantia, mas isso por extinção e não propriamente pela
renúncia.

Se a hipoteca estiver sujeita a prazo ou condição resolutiva, uma vez


verificados, extingue-se também a hipoteca. Não decorre do regime específico da
hipoteca, mas do regime geral das causas de extinção.

Também havendo expurgação da hipoteca, no caso de alienação ou aquisição


por terceiro, extingue-se também a garantia.

Também nos termos do art. 717.º pode acontecer um caso especial de


extinção quando o autor da hipoteca é terceiro e não o devedor, na medida em que
por facto negativo ou positivo do credor, não possa dar-se a sub-rogação dele nos

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direitos deste. Se o autor da hipoteca é um terceiro e for alvo da execução – o devedor


não cumpriu, sendo executada a garantia e penhorado o bem do terceiro e vendido
para pagar o crédito -, o terceiro adquire os direitos por sub-rogação. Pode acontecer,
por omissão do credor que não exige o cumprimento, ou por qualquer ato que possa
pôr em perigo essa execução, de maneira que uma vez executada a hipoteca não
possa o terceiro exigir do devedor o cumprimento dessa obrigação, então extingue-se
a garantia, a hipoteca.

Ainda, o caso do art. 699.º/2, hipóteses em que quem constitui a garantia é não
o proprietário, mas o usufrutuário. A preferência ou prevalência acaba por existir em
relação ao direito do usufruto e não alienação da propriedade. Se o objeto é o
usufruto, quando se extingue o usufruto, extingue-se também a respetiva garantia.

H) A execução da hipoteca.

Havendo hipoteca, se o devedor não cumprir pode o credor executar a


garantia. Esta execução é necessariamente uma execução judicial, tendo o credor
hipotecário necessariamente de propor uma ação executiva onde vai pedir a penhora
dos bens hipotecados e, através da alienação desses bens, satisfazer o seu direito.
Esta necessária ação judicial, de alguma maneira, efetiva a tal proibição do pacto
comissório, porque o credor não pode fazer seus os bens objeto da garantia para
satisfação do respetivo crédito. Nem faz sentido falar aqui do chamado pacto marciano
– no penhor é possível, porque a execução da garantia pode ser extrajudicial,
estabelecendo-se que o credor possa alienar a coisa objeto da garantia por um preço
avaliado por uma terceira entidade independente e o remanescente ser dado ao
devedor -. Essa execução da garantia vem regulada em matéria substantiva, nos arts.
697.º e 698.º CC, remetendo-se para o art. 752.º CPC, que regula de forma genérica a
ação executiva, mas que se refere aqui à possibilidade de nomeação de bens à
penhora. O credor de facto tem de propor ação executiva nos termos da lei de
processo, sendo nomeados bens à penhora.

Há aqui algumas defesas do devedor ou autor da hipoteca relativamente aos


bens penhorados (art. 697.º). se há um bem onerado com a garantia, quando o credor
executa a hipoteca, em princípio so pode ser nomeado a penhora o bem objeto da
garantia, salvo se se reconhecer que o seu valor é inferior e não dá para satisfazer a
totalidade do crédito. Reconhecida a insuficiência, podem ser nomeados outros bens.
Mas enquanto não se reconhecer que o valor do bem não satisfaz o direito do credor,
pode o devedor opor-se a que outros bens sejam penhorados.

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Em segundo lugar, mesmo relativamente ao conjunto dos bens onerados, pode


acontecer que não haja necessidade de os executar a todos e também o devedor
pode opor-se a que a execução se estenda alem do necessário para satisfação do
direito do credor.

O art. 698.º também estabelece algumas formas de defesa do dono da coisa


objeto da garantia. Diz o n.º 1 que nos casos da hipoteca constituída por terceiro, é-lhe
lícito opor ao credor os meios de defesa que o devedor tenha contra o crédito. Se o
devedor for o mesmo que o titular dos bens, esta norma não faz sentido porque já
poderia invocar os respetivos meios de defesa. Diz ainda o n.º 2 que o terceiro tem a
faculdade de opor à execução enquanto o devedor puder impugnar o negócio.
Também, vimos que o credor podia invocar a exceção de compensabilidade, poder
invocar uma dívida que o credor tivesse perante o devedor e que pudesses ser
compensada. Assim como poderia invocar a compensação de um crédito contra o
credor.

O art. 752.º/1 CPC vem dizer aquilo que diz o art. 797.º CC.

Estamos perante uma hipótese em que é o próprio credor hipotecário que


perante o incumprimento por parte do devedor vem executar a garantia, propondo
ação executiva. Mas podemos ter casos em que a ação executiva seja proposta por
outro credor qualquer, que vem nomear à penhora os bens objeto da garantia para
satisfazer o seu próprio crédito. As consequências que dai decorrem são as do art.
786.º/1 CPC. São citados para a execução, al. b), os credores titulares de garantia.
Ora, se houver hipoteca registada, uma vez feita a penhora dos bens,
necessariamente têm de ser citados os credores garantidos para que possam executar
os seus créditos.

Outra questão interessante é quanto à dação em cumprimento. Foi esse


assunto muito discutido durante a crise de 2008-2011, em que grande parte das
famílias deixaram de poder pagar os créditos habitação. Será que podem entregar a
casa como forma de cumprimento do direito de crédito? Será o credor obrigado a
aceitar esta forma de cumprimento? O que está aqui em causa é a possibilidade, ou
não, da extinção da obrigação não por cumprimento, mas por dação em cumprimento.
A dação em cumprimento necessariamente está dependente da aceitação do credor.
O bem pode ter diminuído de valor, fazendo com que aquilo que ele vale já não
corresponda ao montante do valor em dívida. O princípio da pontualidade diz que as
obrigações devem ser cumpridas ponto por ponto. Do lado do devedor, tendo em
conta a proibição do pacto comissório, também isto podia ser uma forma de contornar

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esta proibição. Portanto, há que ter cautelas não apenas do ponto de vista do credor,
cuja dação não lhe pode ser imposta, mas tem também de se proteger o interesse do
devedor e não aceitar essa dação sem uma avaliação do valor da coisa por entidade
independente. De outra maneira, estaríamos a subverter as razoes que levaram o
legislador a proibir o pacto comissório. Assim, não devemos aceitar mesmo quando o
credor aceite, sem que haja esta tal avaliação independente.

I) O regime insolvencial.

Se a insolvência disser respeito ao autor da hipoteca, que pode não ser o


devedor, pode ser terceiro, desde logo podemos pôr a questão de saber se não pode
haver a resolução incondicional prevista no art. 121.º CIRE. Uma hipoteca constituída
ficaria sem efeito se se enquadrasse nesta previsão. A al. c), constituição pelo devedor
de garantias reais nos 60 dias antes do início do processo de insolvência, esta
hipoteca é resolúvel de forma incondicional (sem outros requisitos). Ainda, quando a
dívida já existia, é também resolúvel a constituição pelo devedor de dividas já
existentes em que se constituiu garantia real nos 6 meses anteriores ao processo de
insolvência.

Quando haja má-fé do credor insolvente, são resolúveis, preenchidos que


sejam os requisitos, as garantias prestadas nos dois anos anteriores à data de início
do processo de insolvência. Entende-se por má-fé o disposto no art. 120.º/5 CIRE.
Nestes casos, o direito do credor hipotecário nem sequer vinga.

Também se extinguem com o início do processo de insolvência todas as


hipotecas judiciais e algumas hipotecas legais (art. 97.º CIRE). A al. c) do art. 97.º
CIRE fala das hipotecas judiciais nos 2 meses anteriores ao processo de insolvência.
No art. 140.º/3 tem também a previsão da extinção de algumas hipotecas,
concretizando na fase da reclamação dos créditos ou do estabelecimento da
graduação, aquilo que já se diz a propósito da extinção dos créditos.

Quanto às hipotecas que se mantêm, o credor tem de vir reclamar os créditos


ao processo insolvencial.

Relativamente à venda judicial dos bens hipotecados, o credor hipotecário


adquire preferência sobre os outros credores no valor dos bens objeto da hipoteca.
Mas a hipoteca não prevalece sobre todos os direitos de preferência, v.g., privilégios
creditórios imobiliários ou o direito de retenção (art. 759.º). Assim, pode haver
concorrência de outros direitos, ainda que posteriores. O crédito relativamente aos

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salários, por exemplo, é um privilégio creditório dos trabalhadores que não cede
perante a insolvência e, apesar de serem garantias ocultas, sobrepõe-se à hipoteca.

Há algumas regras importantes em matéria de alienação dos bens. Desde logo,


quando o administrador da insolvência pretende alienar os bens, tem de comunicar
aos credores da insolvência a modalidade de venda por que opta. Os credores podem
propor um tipo de alienação diverso. O credor com garantia real pode propor a
aquisição, para si, do respetivo bem objeto da hipoteca, por um preço superior àquele
que está previsto vender-se na venda judicial ou na venda escolhia pelo administrador
da insolvência. Isto não conflitua com a proibição do pacto comissório, desde logo
porque pelo meio há o administrador da insolvência que representa o devedor e
salvaguarda os seus interesses. Por outro lado, ele vai fazê-lo no âmbito do processo
insolvencial, e propõe comprar por preço superior (art. 164.º). No art. 164.º/3 lê-se “Se,
no prazo de uma semana, ou posteriormente, mas em tempo útil, o credor garantido
propuser a aquisição do bem, por si ou por terceiro, por preço superior ao da alienação
projectada ou ao valor base fixado, o administrador da insolvência, se não aceitar a
proposta, fica obrigado a colocar o credor na situação que decorreria da alienação a
esse preço, caso ela venha a ocorrer por preço inferior”. Se o administrador da
insolvência recusa a oferta, a lei diz que o administrador da insolvência tem de dar-lhe
preferência pelo valor ofertado pelo credor e não pelo valor da venda.

O bem objeto da garantia pode ter sido utilizado em benefício da massa e ter
sofrido uma desvalorização. No art. 166.º, a lei vem prever a possibilidade de atraso
na venda do bem objeto da garantia real. O credor deve ser compensado pelo prejuízo
que não lhe seja imputável, ou pelo atraso na alienação que fez com que o credor
viesse a receber menos do que receberia.

Sabemos que o administrador da insolvência pode optar por pagar ao credor


antes de proceder à venda do bem (art. 166.º/2). Quando se estabelece a graduação e
se começa a pagar aos credores, antes dos credores são pagas as dívidas da própria
massa (custas judiciais, pagamento ao administrador da insolvência, etc.), desde que
não ultrapasse os 10% dos bens.

J) As hipotecas mobiliárias.

Podem ser objeto da hipoteca os bens moveis sujeitos a registo (moveis


equiparados), i.e., automóveis, navios e aeronaves, que têm, salvo algumas regras
especiais em material de registo, de obedecer ao regime civil em matéria de hipoteca.

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O DL 54/75 foi revogado pelo DL 277/95 que aprovou o Código do Registo dos Bens
Mobiliários, mas este código nunca chegou a entrar em vigor por falta de requisitos de
forma, pelo que continua a ser aplicável. O DL 54/75. Este art. 4.º do DL 54/75 admite
que os veículos automóveis sejam objeto de hipoteca legal, judicial ou voluntaria. Em
termos de execução da hipoteca, prevê o DL 178-A/2005, no art. 15.º, a possibilidade
de apreensão judicial do veículo a requerimento do credor, sendo que este auto de
apreensão judicial do veículo vale como auto de penhora. Quanto aos navios, o art.
544.º Ccom., manda aplicar o regime geral da hipoteca. Quanto á legitimidade para
hipotecar, o art. 586.º. o art. 588.º Ccom. sujeitava a constituição de hipoteca sobre
navios a escritura publica e atualmente o DL201/98 de 2 de julho sujeita apenas a
forma escrita com reconhecimento da assinatura dos intervenientes. Tal como as
restantes hipotecas está sujeita a registo, modificando-se apenas o local onde se
regista, que será registada na Conservatória do Registo onde a matrícula está aberta.
Quanto as aeronaves, o registo é da competência da autoridade nacional de aviação
civil, registo conhecido internacionalmente nos termos da Convenção de Genebra de
19 de junho de 1949.

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2 de maio de 2022

14. O Penhor

a) Noção e caraterização.

O penhor é também uma garantia real, inserindo-se também no reforço


qualitativo da probabilidade de satisfação do crédito, e vem regulado nos arts. 666.º e
ss.. Desde logo, a lei estabelece uma distinção quanto ao objeto, entre o penhor de
coisas e o penhor de direitos, embora a regulamentação do penhor de coisas seja a
regulamentação-modelo e só existam regras para o penhor de direitos sobre aspetos
que não são compatíveis com o regime do penhor de coisas.

Estamos a falar do penhor civil. Alem deste, encontramos muitas outras


categorias especiais de penhor. O penhor é uma daquelas garantias que podemos
dizer que se reinventou, no sentido de que já vem enquanto garantia real do direito
romano, mas o próprio comercio jurídico foi demonstrando a existência de certas
necessidades que fizeram com que este surgisse não só no ramo civil, mas também
noutras categorias. No âmbito das garantias reais, não podemos encontrar garantias
que não são típicas. O que dizemos é que há modalidades de penhor que acabaram
por nascer, na prática, por necessidades do comércio jurídico e que o legislador teve
de legitimar: o penhor mercantil, o penhor de estabelecimento comercial, penhor
financeiro, penhor de garantia de créditos de estabelecimentos bancários, etc.

Conforme o art. 666.º/1, desta noção retiramos já uma ideia do que é o penhor
e as suas características. Desde logo, é seguramente uma garantia real e, como
garantia real que é, confere preferência ao credor penhoratício no pagamento do
respetivo crédito ou no cumprimento do crédito de que é titular, com preferência
relativamente aos outros credores, preferência esta quanto ao valor de determinadas
coisas (móveis) ou direitos sobre que não incide hipoteca.

Também se admite aqui que o penhor é, tal como a hipoteca, uma garantia
acessória que garante o cumprimento de determinada obrigação, sendo acessória
desta.

Depois, tal como a hipoteca, o autor do penhor pode ser o próprio devedor ou
um terceiro. No fundo, sabemos que, não sendo ele devedor, pode onerar um bem
que lhe pertença como garantia da respetiva obrigação, embora esta não lhe pertença.
Pode também, tal como a hipoteca, garantir obrigações condicionais ou futuras (art.
666.º/3).

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Quanto ao seu objeto, podem ser coisas móveis corpóreas ou então


determinados direitos. Mesmo no que toca às coisas móveis corpóreas, nem todos os
móveis, pois há móveis equiparados aos imóveis que podem ser hipotecados
(automóveis, navios, aeronaves).

Qualificamos o penhor como uma garantia real que incide sobre móveis ou
direitos, podendo o autor do penhor ser, desde que tendo legitimidade para dispor da
coisa, um terceiro. Neste caso temos não apenas um reforço qualitativo, como
também quantitativo: além de dar preferência, alarga também o acervo sobre o qual o
credor pode obter a satisfação do crédito.

b) As regras gerais:

1. Legitimidade para a constituição do penhor.

Quem pode constituir um penhor, tal como na penhora, é que tiver


legitimidade para alienar o respetivo bem: o devedor ou terceiro. Diz o art.
667.º que só tem legitimidade para dar bens em penhor quem os puder alienar.
Sendo o autor da garantia proprietário do bem, pode não ter legitimidade se
necessitar do consentimento de outrem para onerar o bem, mas isso acontece
sobretudo na hipoteca, não tanto no penhor. Como aqui estamos perante um
bem móvel ou um determinado direito, não se coloca com a mesma premência
essa questão do consentimento.

No n.º 2 a lei faz aqui a primeira remissão para o art. 717.º, n ocaso da
hipoteca constituído por terceiro.

2. Forma do contrato.

3. As obrigações garantidas.

É o próprio capital em dívida mais os seus acessórios do respetivo


crédito e os respetivos juros, tal como na hipoteca. A única diferença no penhor
é que não há aqui qualquer limite temporal (na hipoteca só se garantem os
juros até 3 anos, a menos que se registe nova hipoteca que os garanta).

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4. O objeto da garantia.

Podem ser coisas móveis corpóreas ou respetivos direitos. Veremos


que pode também ser estabelecimento comercial, participações sociais (sejam
elas ações ou quotas). A própria lei salvaguarda a existência dos regimes
especiais de penhor.

Quando falamos no possível objeto do penhor há que perceber, desde


logo, que o objeto podem ser coisas móveis corpóreas não sujeitas a hipoteca,
mas têm de ser coisas infungíveis, não podem ser coisas fungíveis ou
genéricas. Uma determinada quantia em dinheiro não pode ser objeto de
penhor, sobretudo se o dinheiro for olhando tendo em conta o seu valor venal,
enquanto instrumento de mercado. Se for um conjunto de notas numeradas,
em que exatamente são aquelas e não outras, pode já ser objeto de penhor. Já
100.000 euros integram espécies monetárias, mas não se olha para eles tendo
em conta a sua especificidade. Esses 100.000 euros visto tendo em conta o
valor que representam em termos de mercado, de valor, não podem ser objeto
de penhor, quando muito estar-se-ia perante um penhor irregular.

Distinguindo da hipoteca e tendo que ver com o objeto do penhor, é a


circunstância de o penhor civil exigir desaposses amento. Exige para a sua
constituição a entrega da coisa ou os documentos que dão acesso a
determinados direitos. Este desapossamento é uma marca importante do
penhor civil. Na hipoteca isto não acontecia, porque a hipoteca só se constitui
com o registo (não era apenas condição de eficácia relativamente a terceiros e
nas legais ou judiciais o registo é mesmo o facto constitutivo da garantia, mas
mesmo nas voluntarias aparece o registo como condição de eficácia mesmo na
relação inter partes). no penhor são bens móveis não sujeitos a registo, então
para que a garantia não se torne sem valor, foi necessário o legislador
encontrar outra forma, que é a entrega da coisa, o desapossamento, retirar da
disponibilidade do autor da garantia (que é em regra o proprietário da coisa,
podendo ser ou não o devedor) a sua disponibilidade material.

As funções do desapossamento são desde logo publicitar a existência


do penhor relativamente a terceiros, mas não é esta a principal função. Uma
outra função é a função de preservar a garantia, porque haveria o risco de, se a
coisa ou o direito se mantivessem na disponibilidade do autor do penhor, ele
poder dissipar a garantia. Se se constitui penhor sobre uma joia de valor ou
quadro de autor famoso, sem mais se a coisa se mantivesse na disponibilidade

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do autor do penhor, ele podia dissipá-la através de alienação ou doação, e o


credor penhoratício não conseguia controlar essa possibilidade. O autor da
hipoteca também pode onerar, mas o credor hipotecário pode executar a coisa
mesmo que já na esfera jurídica de outrem, por causa do registo que permite a
oponibilidade a terceiros. Este desapossamento é uma forma de preservar a
garantia, por isso é que aparece aqui como um dos contratos reais quanto à
constituição.

Fizemos na licenciatura a distinção entre contratos reais quanto ao


efeito (v.g., compra e venda) que são contratos que transferem direitos reais
sobre determinada coisa, e contratos reais quanto à constituição. Na compra e
venda, para o vendedor nasce a obrigação de entregar a coisa ao comprador,
mas essa entrega significa o cumprimento de uma obrigação que decorre de
um contrato já celebrado.

Nos contratos reais quanto à constituição, a entrega aparece como um


elemento formativo do próprio contrato. O penhor não tem qualquer efeito,
mesmo inter partes, sem esta entrega. O contrato não se encontra constituído
antes da entrega da respetiva coisa. Por isso é que dizemos que é um contrato
real quanto à constituição, na sua constituição pressupõe-se a entrega da
coisa, não havendo penhor sem desapossamento.

c) Penhor de coisas:

1. Constituição.

No art. 669.º, aquilo que acabamos de dizer resulta logo do n.º 1: o


penhor só produz os seus efeitos pela entrega da coisa empenhada ou de
documento que confira a exclusiva disponibilidade dela.

Também no art. 682.º, quanto ao penhor de direitos, tem a mesma


função. Esta entrega dos documentos significa uma retirada simbólica da
disponibilidade do exercício do direito do autor do penhor para com o credor.

Não existe nenhuma regra especial de forma quanto ao penhor de


coisas, mas o n.º 2 vem de alguma maneira comprovar o que já dissemos:
pode constituir na simples atribuição da composse ao credor, se essa
atribuição privar o autor do penhor da possibilidade de dispor materialmente da

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coisa. Qualquer forma de entrega é admissível desde que cumpra este efeito.
Não se exige qualquer documento ou a redução a forma escrita.

2. Direitos e deveres do credor pignoratício.

Uma vez constituído o penhor, nasce uma outra relação de garantia


entre o credor penhoratício e o autor do penhor, que vem regulada também no
Código Civil. Desde logo, determinados direitos que, pela constituição do
penhor, são adquiridos pelo credor penhoratício (art. 670.º).

Quanto à al. a), aqui a doutrina tem discutido se o credor penhoratício


deve ser considerado um verdadeiro possuidor em nome próprio (com o corpus
e o animus), ou se deve ser considerado possuidor em nome alheio/detentor.
Temos seguido a opinião de MESQUITA e ANTUNES VARELA no sentido de
considerar o credor penhoratício como mero detentor. Mas confere-lhe a
possibilidade de recorrer às ações que a lei dispõe para defesa da posse,
mesmo que a afetação venha do proprietário da coisa, independentemente de,
em termos dogmáticos, não o considerarmos um verdadeiro possuidor.

Tem também, na alínea b), o direito de ser indemnizado pelas


benfeitorias necessárias e uteis. Se durante o tempo que tem a posse da coisa,
aplica-se o regime das benfeitorias. Se puder levantá-las pode levantar, se não
puderem ser levantadas tem direito a ser indemnizado das benfeitorias que
efetuou quando restitui a coisa.

Na al. c), se durante a vida da garantia a coisa diminuir de valor ou ficar


afetada, pode o credor exigir o reforço ou a substituição da garantia ou, se este
reforço ou nova garantia não lhe for concedido, pode exigir o cumprimento
imediato da obrigação, ainda que ainda não vencida, nos mesmos termos que
estabelece o art. 701.º para a hipoteca.

Diz o art. 671.º, al. a) que o credor penhoratício é obrigado a guarda e


administrar como proprietário medianamente diligente e prudente a coisa
empenhada. Não pode deixar deteriorar a coisa que está à sua guarda, tem de
relativamente a ela funcionar como proprietário diligente, dar-lhe uso se o uso
for necessário para a sua conservação e fazer as despesas necessárias para a
conservar.

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Diz a al. b), não usar dela sem o consentimento do autor do penhor,
exceto se o uso for indispensável à conservação da coisa. A sua intervenção é
apenas justificada para dar segurança à garantia, não sendo justificada por
nenhum outro interesse do credor penhoratício. Podemos aqui remeter para o
art. 673.º, onde se estabelece o regime do uso da coisa empenhada. Se a
atuação do credor estiver a pôr em causa a existência ou manutenção do
objeto da garantia, para tutela do proprietário, uma de duas: ou ele garante
através de caução esse direito eventual do autor da garantia, que é a
restituição da coisa nas coisas em que se encontrava; ou procede-se á entrega
da coisa a um terceiro que ficará como fiel depositário. Diz ainda a al. c) do art.
671.º que deve restituir a coisa extinta a obrigação a que serve a garantia.
Sendo acessório, uma vez finda a dívida, cessa também a garantia.

3. O destino dos frutos da coisa empenhada.

Se a coisa empenhada for uma coisa produtiva, a lei vem dispor no art.
672.º, numa solução muito próxima da consignação de rendimentos, é que os
frutos serão descontados nas despesas que o credor tiver de fazer com a
produtividade da coisa. Pode haver coisas móveis que sejam produtivas,
produzindo determinados rendimentos, mas para tal também é necessário
fazer despesas. Assim, os rendimentos são descontados nas despesas que o
credor fizer, são de seguida canalizados para o pagamento dos júris da dívida
e em terceiro lugar, se houver remanescente, são canalizados para o
abatimento do próprio capital, isto se não houver convenção em contrário.

Também na consignação de rendimentos há uma espécie de pacto


mobiliário anticrético, sendo tudo descontado no próprio capital (já não relativo
aos juros ou despesas).

Diz o n.º 2 que havendo lugar à restituição de frutos, não se consideram


estes abrangidos pelo penhor. Há lugar a restituição de frutos quando estes
não podem ser utilizados para abater no capital, por convenção das partes.
Havendo lugar à restituição, devem eles ser restituídos, não podendo o credor
penhoratício mantê-los na sua disponibilidade material como mantém na sua
disponibilidade material o objeto do penhor.

Dá-se aqui a possibilidade de existir venda antecipada. Quando o


credor pode executar a garantia, isto faz-se pela venda da coisa para que este

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se possa pagar pela sua venda com preferência aos restantes credores. Mas a
lei prevê, mesmo antes de incumprimento, a possibilidade da venda antecipada
no art. 674.º, sempre que haja receio fundado de a cousa se perde ou
deteriorar, mas está sempre sujeita a prévia autorização judicial.

4. Casos de sub-rogação real.

Sobre o produto da venda fica o credor com os direitos que lhe cabiam
em relação à coisa vendida, podendo o tribunal ordenar que o preço seja
depositado. Uma quantia em dinheiro não pode, em regra, ser objeto de
penhor. Isto reflete-se aqui pelo facto de o legislador prever desde já a
possibilidade de haver uma sub-rogação real se a coisa é vendida antes de
incumprimento do vendedor, sendo que a garantia se transfere para o preço da
venda. Teríamos aqui um penhor irregular, sobre determinada quantia em
dinheiro. Mas como acontece a outro propósito que iremos ver, para preservar
a garantia a lei vem estabelecer a possibilidade de aquela quantia em dinheiro
ser deixada na posse de um terceiro como depositário.

O tribunal vai em regra determinar esse deposito, seja depósito a favor


de terceiro, ou em nome do devedor, ou em nome do credor penhoratício.
Quando seja deposito a favor de terceiro, aí ele fica como fiel depositário e não
há problema da segurança da própria garantia. Mas se é o devedor que pede
ao tribunal para que possa vender antecipadamente a coisa, o tribunal
consente e ele fica depositário da quantia. Assim como, se for o credor a
proceder à venda e se receber em depósito aquela quantia que é produto da
venda, aquele depósito tem de ficar desanexado do restante património. Esta
possibilidade de deposito é uma forma de garantir a integridade da respetiva
garantia. Mas há aqui como que um penhor irregular, a existência de uam
garantia sobre uma quantia em dinheiro.

Conforme o n.º 3 do art. 673.º, apesar dos perigos sobre a coisa, se o


credor não quer proceder à venda antecipada: se é o credor que pede para
vender, o autor do penhor pode impedir a venda se tiver fundado receio de que
a coisa não possa a vir dar-lhe a preferência sobre o seu crédito. Mas se for
substituído por outra garantia real idónea, os seus direitos são assegurados,
nada obstando a que o tribunal valorize a sua pretensão. Se é um objeto com
valor sentimental que não quer que se venda, ou se está a desvalorizar muito
no mercado, já não vindo a cobrar o valor da dívida no momento da venda, etc.

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5. Disposições do regime da hipoteca aplicáveis ao penhor.

Tal como acontece na hipoteca, também pode haver uma cessão da


garantia (art. 676.º), sem haver alienação ou cessão da dívida garantida.
Remete-se para as regras da cessão de créditos.

Se o credor B é um credor penhoratício e esse devedor tem outros


credores, o credor C e o credor D. uma vez que pelo produto da coisa móvel, o
credor penhoratício B tem preferência sobre os restantes credores. Pode é
ceder a sua garantia, mantendo a dívida garantida, a um dos credores do
mesmo devedor. Se cede a garantia ao credor D, fica o credor D com a
preferência pelo valor da coisa aos restantes credores, assumindo a posição do
credor B. mantem se a dívida, mas este credor B deixa de ser garantido pelo
penhor, passando o credor D a ter preferência até ao limite dos direitos do
credor B. Se a dívida garantida de B é de 1.000 e o crédito é de 1.200, D vai
ocupar a posição do credor B tendo preferência até ao limite dos 1.000.

Há uma remissão genérica no art. 678.º para as regras da hipoteca,


designadamente no art. 692.º, nos casos de sub-rogação real, art. 694.º
proibição do pacto comissório, art. 695.º que proíbe a alienação da coisa, art
696.º indivisibilidade, art. 697.º possibilidade de a hipoteca ser constituída por
terceiro, etc.

6. A execução do penhor.

Se o devedor não cumpre, é necessário executar a garantia, art. 675.º.


Esta regra é completamente diferente da execução da hipoteca, pois a hipoteca
pressupõe sempre a existência de uma ação executiva. No penhor a lei dá
possibilidade de haver venda executiva, ou, se as partes convencionarem
nesse sentido, uma venda extraprocessual (sem estar precedida de ação
executiva). Podíamos perguntar se isto não representará um perigo, pois o
credor, se as partes acordares, não usando da diligência que lhe seria exigível,
vendendo por preço muito inferior ao valor de mercado. A indicação em regra é
que não, porque apesar de a lei não estabelecer regra particular nesta matéria,
as relações entre autor do penhor e credor penhoratício estão sempre sujeitas
ao princípio da boa-fé, que impõe ao vendedor, para salvaguarda dos próprios
interesses da sua contraparte autor do penhor, que ele venda pelo melhor

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preço possível, comportando-se como vendedor medianamente prudente e


diligente, sob pena de responsabilidade.

Diz o n.º 2 que é lícito aos interessados convencionar que a coisa


empenhada seja adjudicada ao credor pelo valor que o tribunal fixar. Vamos
ver penhores em que se dá possibilidade de apropriação da coisa ao credor
penhoratício havendo o incumprimento da obrigação. Perguntamos então se
isso não é contra a proibição do pacto comissario, a qual, por remissão do art.
678.º para o art. 694.º, que proíbe o pacto comissório, não podendo haver
apropriação pelo credor garantido da coisa objeto da garantia, de modo a
proteger o autor da garantia, na medida em que o objeto da garantia tem
frequentemente um valor muito superior ao valor do crédito garantido. Quando
muito, nalgumas garantias, permite-se o chamado pacto marciano, e vamos ver
que nos regimes especiais do penhor é possível apropriação mediante eventual
avaliação por um terceiro independente. Mas em regra, quer no penhor civil
quer na hipoteca, não se permite nem o pacto comissório nem o pacto
marciano. Esta solução aqui prevista no art. 675.º/2 é completamente diferente,
porque a adjudicação é mediada pela intervenção do tribunal. O tribunal é que
vem aqui ser a tal entidade independente que vem avaliar a coisa e que
permite a respetiva adjudicação. Não só não vai contra a proibição do pacto
comissório, nem do próprio marciano, pois não há entidade que seja mais
independente e isenta relativamente a ambas as partes como o tribunal.

Diz-se aqui que o credor penhoratício tem uma espécie de preferência


sobre todos os restantes credores do devedor, sobretudo sobre os credores
não preferenciais. Em regra, diz-se que o penhor, depois de constituído e uma
vez que a publicidade é dada através do desapossamento, prevalece sobre os
direitos que venham a ser adquiridos sobre a coisa por qualquer terceiro. Isto é
assim, mas há exceções: existe um privilégio mobiliário geral que prevalece
sobre o penhor de coisas, ainda que anteriormente constituído. Os privilégios
mobiliários são uma espécie de garantias reais quase ocultas, dadas tendo em
conta a qualidade do crédito: são uns dados ao Estado por créditos de imposto,
outros dados à Segurança Social, outros que garante o crédito dos
trabalhadores por incumprimento do contrato de trabalho ou por violação desse
mesmo contrato, ou privilégios creditórios dados ao credor de alimentos. Estas
são garantias legais, que não decorrem da vontade das partes e podem ser
mobiliários (se incidirem sobre móveis) ou imobiliários (se incidirem sobre
imoveis) e podem ser gerais (se incidirem sobre o conjunto dos móveis

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pertencentes ao devedor) ou especiais (se incidirem sobre um móvel


especificado). Há um privilégio mobiliário geral da Segurança Social pela falta
de cumprimento das contribuições para a Segurança Social, que prevalece nos
termos do art. 747.º sobre o penhor, ainda que o penhor tenha sido
anteriormente constituído (art. 204.º do Código do Regime Contributivo da
Segurança Social , que estabelece que este privilegio prevalece sobre o
penhor, mesmo que anteriormente constituído, embora se tenha já levantado a
questão da inconstitucionalidade desta regra do art. 204.º, porque poe em
causa a confiança e destrói a garantia, pois é uma garantia oculta). Este
privilégio configura uma exceção ao que diz o art. 847.º e a não prevalência
dos privilégios quando eles forem gerais. Na insolvência não é assim, porque
estes privilégios gerais extinguem-se com a declaração de insolvência.

7. A extinção do penhor.

Quando a dívida ou obrigação garantida se vence, se houver


cumprimento da obrigação, já sabemos que como a garantia é acessória do
crédito, extingue-se o penhor pela restituição da coisa empenhada ou do
documento ainda pelas mesmas causas que cessa o direito hipotecado. Da
mesma forma que é necessária a entrega a terceiro para haver formação do
penhor, também é necessária a entrega para haver extinção.

O penhor extingue-se pela restituição da coisa empenhada ou do


documento que lhe atribui a disposição material da coisa, e ainda pelas
mesmas causas por que cessa o direito de hipoteca, com exceção da al. b), ou
seja, no que se refere à prescrição. Tal como na hipoteca, extingue-se pela
extinção da obrigação (quando há restituição), desaparecimento do objeto, pela
renúncia ao credor penhoratício, etc.

d) O penhor de direitos:

Todas estas regras que vimos relativamente ao penhor de coisas


também são aplicáveis ao penhor de direitos, salvo quando são com ele
incompatíveis (art. 679.º).

1. O objeto

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Diz o art. 680.º que só é admitido quando tenha por objeto coisas
móveis com conteúdo patrimonial e que sejam suscetíveis de transmissão.
Estão de fora os direitos de crédito em que o credor possa exigir coisai móvel,
ou os direitos de crédito em que o credor tem direito a uma prestação de facto,
v.g., o direito que tem o mandante sobre o mandatário e que nasce sobre a
relação de mandato, o direito de exigir que pratique determinados atos jurídicos
por sua conta, porque não pode esse direito ser penhorado, ou o direito que
tem o dono da obra relativamente ao empreiteiro. Assim, alem de ter de ser um
direito transmissível, tem de tratar-se de um direito que confira a pretensão de
entrega de uma coisa móvel. Há, no entanto, outros direitos que podem, em
virtude de previsão em legislação extravagante, ser objeto de penhor, como o
são os direitos de autor, por força do art. 36.º Código de Direitos de Autor e
Direitos Conexos.

2. Forma e publicidade.

Quanto ao penhor de coisas, disse-se que a sua constituição não está


sujeita a determinadas formalidades, valendo o princípio da consensualidade.
Em matéria de penhor de direitos vem estabelecer-se algumas regras: diz o n.º
1 do art. 681.º que está sujeita à forma e publicidade exigida para a
transmissão dos direitos empenhados.

É o que acontece no art. 578.º/2 para os créditos hipotecários, créditos


garantidos com hipoteca, que podem ser constituídos com penhor, estando
também sujeitos a publicidade nos termos do art. 2.º do Código de Registo
Predial.

Ao falarmos de devedor-credor vamos ter de fazer algumas precisões.


O objeto agora não é uma coisa, é um direito de crédito. Se o credor B constitui
penhor sobre um direito de crédito que tem sobre A, é da relação originaria que
B adquire a posição creditória. Nasce desta relação o direito x. B contrai uma
dívida relativamente a C e, para garantir esta obrigação, constitui um penhor
que tem como objeto este direito x. temos aqui dois devedores. C é o credor
penhoratício relativamente a B, o objeto do penhor é o crédito x, que tem como
devedor A. A titularidade é de B e tem como devedor B. É este crédito x objeto
da relação entre A e B que é objeto do penhor. Temos assim dois devedores: o
da obrigação subjacente e o da dívida garantida. Se o objeto do penhor for o
crédito hipotecário, então está sujeito à forma do art. 578.º/2, ou seja, exige-se

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escritura publica ou documento particular autenticado para a constituição, e


esta sujeito a registo nos termos do art. 2.º, al. a) do Cód. Reg. Pred.. Este será
um crédito hipotecário garantido por uma hipoteca e ao mesmo tempo pode
constituir um penhor sobre este crédito. não é um crédito que lhe dê uma
proteção á entrega de coisa imóvel, senão não podia ser objeto de penhor. No
entanto, está garantido com uma hipoteca. Está sujeito às regras em termos de
forma do art. 578.º o objeto do penhor quando seja um crédito hipotecário, um
crédito garantido por uma hipoteca, não estando só sujeito às regras de forma
como também ao registo. O nosso B, autor do penhor, é titular de um crédito
hipotecário.

3. Relações entre o obrigado e o credor pignoratício.

Quando se tratava de penhor de coisas, o penhor só se constituía pela


entrega da coisa. O que acontece no penhor de direitos (e vimos que também
aqui é necessário o desapossamento pela retirada da disponibilidade material
dele do respetivo autor e pela entrega de documentos que confiram essa
disponibilidade), mas porque precisamente temos um devedor do direito que é
objeto do penhor pergunta-se se a constituição do penhor produz efeitos
relativamente a este devedor. Estamos a referir-nos ao devedor A. O B, que é
autor do penhor, faz um contrato de garantia com o credor penhoratício nos
termos do qual constitui a favor dele um penhor que tem como objeto um direito
de crédito que resulta da sua relação com A. O devedor, neste direito que é
objeto da garantia, é o A. A constituição do penhor é ou não oponível a A? Aqui
funcionam mais ou menos as regras que funcionam para a cessão. Se, por
exemplo, A é devedor de B e B pode ceder o seu crédito a C, esta cessão de
crédito não necessita da autorização do devedor A, assim como aqui a
constituição do penhor também não necessita da autorização, no entanto tem
de ser notificada para que relativamente a ele produza efeitos. Passa-se mais
ou menos o mesmo na constituição do penhor, o autor do penhor não necessita
de obter a autorização do devedor para constituir o penhor, no entanto para
que produza efeitos relativamente ao devedor A é necessário que ele seja
notificado, ou pelo menos que haja prova de que ele o tenha aceitado (art.
681.º/2).

O n.º 3 diz que se o devedor do crédito empenhado pagar ou celebrar


com ele algum negócio, se não há notificação, em princípio não lhe é oponível,

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a menos que se chegue à conclusão de que ele o conhecia ou devia conhecer.


Assim, em princípio tem efeitos liberatórios, a menos que se possa concluir que
ele conhecia a existência do penhor. Se ele não for notificado ou se provar que
não conhecia a existência do penhor, se pagar, tem o seu pagamento feito com
efeitos liberatórios.

4. Os deveres do credor pignoratício e os deveres do titular do direito


empenhado.

Tal como o credor penhoratício no penhor de coisas tinha determinados


deveres quanto à conservação da coisa empenhada, também se coloca o
problema no penhor de direitos no art. 683.º. É obrigado a praticar os atos
indispensáveis à conservação do direito empenhado, não pode, v.g., deixar
passar o prazo de prescrição, tem de cobrar os respetivos juros e as
prestações acessórias.

Ao cobrar os juros, temos aqui uma situação parecida com os casos de


penhor de coisa frutífera ou de coisa que é suscetível de gerar rendimentos,
impondo-se a mesma regra: os juros cobrados serão canalizados para o
pagamento das despesas com o exercício do direito, depois o remanescente
para pagar os juros da dívida garantida, e depois usados para abater no próprio
capital em dívida. A lei não o diz expressamente, mas podemos aplicar por
força do art. 679.º, porque não contraria o disposto.

Nas relações entre o obrigado A e o credor penhoratício C, o que se diz


aqui no art. 684.º é que, mais uma vez, se remete para as regras da cessão.
Tal como nas restantes garantias reais, as regras aplicáveis à oneração são
muitas vezes as aplicáveis à transmissão, aqui passa-se exatamente a mesma
coisa. Os meios invocáveis são os mesmos.

Deve o credor penhoratício praticar todos os atos necessários à


conservação do direito. Relativamente à cobrança dos créditos empenhados,
na dívida de A, o crédito de B, crédito empenhado que é objeto da garantia, se
vencer temos mais uma vez a questão da sub-rogação real: o penhor incidia
sobre um direito de crédito, mas agora que se venceu e o credor o cobrou, o
penhor passa para a quantia que foi cobrada. O problema é que se trata de
penhor irregular porque não há penhor sobre quantias em dinheiro. Então, ele
fica como titular fiduciário da garantia, no sentido de ter um dever de desanexar

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essa quantia do seu restante património, pois essa quantia visa tao somente a
garantia do respetivo crédito.

Agora, pode aquilo que se entrega não ser uma quantia em dinheiro. Se
a pretensão de B sobre A não é a entrega de uma quantia em dinheiro, mas de
uma coisa móvel, quando vai cobrar o respetivo crédito é entregue ao respetivo
credor penhoratício a coisa devida a B. o n.º 2 é que então se refere à questão
que estávamos a tratar em primeiro lugar, se o objeto for uma quantia em
dinheiro. Se tiver outro objeto, o devedor não pode fazê-la senão aos dois
credores conjuntamente. Mas pode, por exemplo, e mantém-se o interesse
naquela afirmação, é que o que não pode fazer o A é pagar a um deles sem
haver acordo de ambos, mas podem as partes estabelecer que o pagamento
será feito ao autor do penhor sendo o pagamento liberatório, ou então ao
credor penhoratício C, sendo também liberatório. Em qualquer dos casos há
essa obrigação de desanexação. Se aquele montante em dinheiro for pago ao
autor do credor, para manter a garantia ele tem de desanexar do restante
património porque pode vir a ser executado para fins de garantia. Já se pagar
ao credor penhoratício, tem também, sob pena de responsabilidade. Neste
sentido, tratando-se da entrega de uma coisa há transformação do penhor de
direitos em penhor de coisa pela entrega ao credor, tratando-se de entrega em
dinheiro paga ao credor penhoratício, este tem de a conservar com fins de
garantia até à execução ou cumprimento do respetivo penhor, sendo então
titular dela, mas titular fiduciário, com fins de garantia.

Temos aqui, portanto, as regras do penhor de direitos distintas das


regras do penhor de coisas, sendo no restante aplicável esse regime por
remissão do art. 678.º.

e) O regime insolvencial.

f) Regimes particulares do penhor

1. O penhor mercantil.

O penhor mercantil vem regulado nos arts. 397.º e ss. do Ccom, sendo
mister que a dívida que se cauciona proceda de um ato comercial.

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A questão que aqui se coloca é a de saber se, tal como o penhor civil,
também o penhor mercantil exige desapossamento, a retirada da
disponibilidade material da coisa ao devedor ou autor do penhor. Pela leitura do
art. 398.º há autores que estabelecem a desnecessidade de desapossamento.
Diz este artigo que a entrega do penhor mercantil pode ser simbólica e pode
efetuar-se por declarações ou verbas nos livros de quaisquer estações públicas
onde se encontrem as coisas empenhadas, pela tradição da via de transporte,
pelo endosso da cautela de penhor… Assim, podia substituir-se a entrega
material das respetivas coisas por estes atos simbólicos de desapossamento.
Autores da Escola Clássica de Lisboa (ROMANO MARTINEZ, MENEZES
CORDEIRO) entendem que isto significa que não é necessário
desapossamento. Nós não concordamos com esta posição, com base em
várias razões:

(1) Os casos de entrega simbólica que a lei prevê, em caso algum,


permitem que a coisa empenhada fique sob o controlo material do devedor,
nem mesmo como fiel depositário, portanto simbólico ou não, não deixa de ser
um desapossamento, porque cumpre as mesmas funções do desapossamento
material da coisa (que pretendia dar publicidade e sobretudo proteger os
interesses do credor, salvaguardando a garantia de modo a evitar que o credor
destruísse ou alienasse o objeto). Ora, estes atos também retiram à
disponibilidade do objeto do autor do penhor, não podendo dispor dela e
servindo assim os mesmos interesses que o desapossamento em termos
materiais.

(2) Outros argumentos têm que ver com a comparação com outro tipo
de penhores. Desde logo, vamos estudar o penhor bancário, que é constituído
a favor de estabelecimentos bancários. Esse penhor é um penhor mercantil,
está preenchido o critério do art. 497.º: trata-se de dívida comercial, um dos
intervenientes nomeadamente o credor penhoratício é comercial, portanto trata-
se de penhor mercantil. Este penhor conferido a favor de estabelecimentos
bancários +e um penhor sem desapossamento, em que a lei, dado que os
bancos não têm vocação para guardar as respetivas coisas que são objeto do
penhor (não têm vocação de depositários), pretendem que as coisas não lhe
sejam entregues, que fiquem na disponibilidade material do devedor. Então, a
efetividade da garantia, para ser assegurada, protegendo-se os interesses do
credor bancário que não recebe a coisa, era protegido através de sanções
penais. Há uma lei de 1989 que estabelecia que se o devedor autor do penhor

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viesse a pôr e causa a garantia destruindo ou deteriorando a coisa que é objeto


dela, responde nos mesmos termos do crime de furto. Seria uma espécie de
possuidor em nome alheio e, portanto, havia sanções penais para quem
dissipasse a respetiva garantia. O argumento que podemos retirar daqui é que
este penhor é um penhor mercantil e se, de facto, o legislador teve
necessidade de impor aqui um regime especial de não desapossamento, era
porque esse regime especial não resultava do art. 398.º, ou seja, o art. 398.º
impõe o desapossamento, embora por atos meramente simbólicos e não
materiais.

(3) Por outro lado, também temos algum apoio neste sentido no Direito
Comparado, nomeadamente se verificarmos o Código Comercial de Macau.
Este sofreu grande influência do direito comercial português e o que acontece é
que no Código Penal de Macau, quando ao penhor mercantil o código vem
admitir algumas hipóteses de penhor sem desapossamento, prevendo quer um
quer outro. No âmbito do penhor com desapossamento, prevê que esse
desapossamento se faça por atos simbólicos, o que é um indício de que os tais
atos simbólicos não significam que não existe desapossamento. Assim,
retirando a possibilidade de dispor ao respetivo autor, tem as mesmas funções
da entrega material. Todas estas regras nos levam a supor que o legislador, no
art. 398.º, não pressupõe nenhuma regra que dispõe o desapossamento.

(4) Também o penhor financeiro, cuja regulamentação DL 65/2004 (que


resultou de transposição de uma Diretiva), é também um penhor mercantil e
não deixa de prever a obrigatoriedade de desapossamento, nomeadamente no
art. 6.º, que tem esta função de tutela do credor penhoratício e exige para tal a
retirada do bem do controlo material do autor do penhor e neste sentido
também não prescinde do desapossamento.

Todas estas regras nos levam a crer que o penhor mercantil geral, tal
como o penhor civil, é um penhor com desapossamento, embora se prescinda
dessa regra por exemplo no penhor relativamente a determinados
estabelecimentos bancários.

Houve alterações no penhor mercantil através do DL 75/2017, de 16 de


junho. Esta lei veio estabelecer uma disciplina própria para a execução de
determinados penhores mercantis, permitindo a apropriação por parte do
credor penhoratício do bem que é objeto do penhor. Veio assim permitir que a
dívida garantida se extinga pela apropriação por parte do credor penhoratício

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do bem que é objeto da garantia e desta forma dá guarida não ao pacto


comissório, mas pelo menos dá guarida ao pacto marciano, pois esta
possibilidade de apropriação tem que ser precedida de acordo e de avaliação
por parte de uma entidade que seja independente. Logo na exposição de
motivos, um dos objetivos de que o legislador fala é a eliminação ou mitigação
dos constrangimentos com que as empresas atualmente se deparam no
acesso ao financiamento por capitais próprios ou alheios, i.e., ao vir a
disciplinar as garantias do crédito de forma a torná-las mais fortes, esta assim a
permitir-se que o crédito seja concedido em condições menos onerosas (ideia
de dinamização do mercado de capitais). Depois, dá-se expressamente guarida
ao pacto marciano. O bem dado em garantia transfere-se para o credor,
ficando este obrigado a restituir ao devedor a soma correspondente à diferença
entre o valor do bem e o montante em dívida, que é o que nos permite aceitar o
pacto marciano e não o pacto comissório em que não há avaliação nem
restituição. Permite-se que se aproprie, mas com obrigação de restituição do
excesso relativamente ao valor em dívida (art. 1.º, regime de apropriação). No
art. 2.º, lê-se que é lícito às partes convencionar que o credor se aproprie, mas
para que seja possível esta convenção e o penhor fique sujeito a este
dispositivo, é necessário que o prestador desta garantia seja um comerciante.
Pode acontecer que o prestador da garantia mercantil não seja comerciante.
Ainda, a avaliação só se faz depois no não cumprimento.

Obviamente, esta disposição não invalida aqueloutra solução que vimos


no penhor de coisas de ser o tribunal a proceder à respetiva adjudicação, na
medida em que valem as regras gerais que vimos para o penhor também.
Assim, a venda da coisa empenhada pode ser por venda judicial ou
extrajudicial, por adjudicação da venda ao credor pelo tribunal ou, sendo o
prestador da garantia um comerciante, abre-se ainda a possibilidade de acordo
entre as partes correspondente ao pacto marciano, sendo que após o não
cumprimento se faz a respetiva avaliação.

Através deste diploma, dá-se então aqui guarida, no penhor mercantil,


ao pacto marciano.

No penhor, proíbe-se o pacto comissório e só será admitido o pacto


marciano nos casos expressamente previstos na lei. Este é um dos casos,
assim como o será também o penhor financeiro.

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9 de maio de 2022

2. O penhor de estabelecimento.

O penhor de estabelecimento é um penhor mercantil, também


pressupondo o desapossamento. Mas isso não cumpre nenhum interesse: nem
interessa ao devedor, porque necessita de ter a disponibilidade para continuar
a rentabilizar o próprio estabelecimento; como não interessa ao próprio credor.
Mesmo que não seja um credor bancário, o credor continua a ter interesse em
que o devedor continue a ter a disponibilidade do bem, daí que se entenda que
o desapossamento no penhor de estabelecimento não cumpre nenhuma
função, não satisfazendo nenhum interesse nem do credor nem do devedor. Na
medida em que o desapossamento poderia conduzir a prejuízos,
designadamente até no próprio valor do estabelecimento (que se não estiver a
funcionar, perde clientela). Neste âmbito, tem-se entendido que há uma lacuna
a preencher, ou com recurso ao penhor constituído a favor de
estabelecimentos bancários, que dispensa o desapossamento e em que a
subsistência da garantia é assegurada por outros meios, nomeadamente pelo
estabelecimento de sanções penais (hoje já não em vigor). Mas de qualquer
forma o penhor constituído a favor de estabelecimentos bancários continua a
não ter desapossamento, podendo nos aplicar analogicamente essas regras.
Ou então, a orientação mais sufragada pela doutrina é aplicar analogicamente
as regras que disciplinam o e.i.r.l., que pressupõem a possibilidade de
estabelecimento de um penhor sem entrega do estabelecimento, art. 20.º/1 do
DL 248/86. Estes e.i.r.l. produz efeitos independentemente da entrega do
estabelecimento, mas acaba por ser oponível relativamente a terceiros porque
é registável. E, desde logo, cumpre a função de oponibilidade da constituição
do penhor relativamente a terceiros. Poderíamos aqui tirar um princípio geral
de admitir o penhor d estabelecimento comercial sem desapossamento,
aplicando analogicamente esta art. 20.º/1 do DL 248/86. O problema seria a
publicidade e oponibilidade de terceiros, problema que não se coloca
relativamente ao e.i.r.l, mas pode colocar-se relativamente a outros
estabelecimentos comerciais não sujeitos a registo. A constituição do penhor
não será oponível a terceiros se dela não lhe for dado conhecimento ou pelo
menos se não for cognoscível pelo terceiro. Há formas de poder dar alguma
publicidade à constituição do penhor: notas nos livros de encomenda, nas

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faturas, nos recibos, como forma dos clientes, designadamente clientes,


conhecerem essa oneração. Mas, claro, não têm o efeito de publicidade do
registo. Por aplicação analógica das normas do e.i.r.l., admite-se o penhor de
estabelecimento comercial, que será válido sem desapossamento.

3. Penhor em garantia de créditos de estabelecimentos bancários.

Penhor em que o credor beneficiário da garantia é um banco. Este


penhor goza de um regime especial que foi estabelecido em 1939 com o DL
29000/833. Estes credores penhoratícios (os bancos) não têm interesse em
receber a entrega da coisa que é objeto da garantia, não tendo vocação para
ser depositários das coisas que são dadas em garantia e, por outro lado, a
guarda e frutificação destas coisas implica determinadas despesas e atividades
para as quais não estão vocacionadas as entidades de crédito.

São penhores sem desapossamento e a garantia torna-se efetiva pela


existência de determinadas sanções penais. Apesar de o proprietário da coisa,
autor do penhor, continuar com a disponibilidade dela, estabelecem-se sanções
para o caso de ele a alienar ou onerar, que eram sanções de natureza penal.
Uma vez constituído o penhor, o proprietário considerava-se proprietário em
nome alheio e se destruísse a efetividade da garantia estava sujeito às
mesmas sanções aplicadas ao crime de furto, garantindo-se que ele
continuasse na posse do bem, mas ao mesmo tempo aplicando-se sanções
para o caso de vir a prejudicar os interesses do credor bancário. Estas sanções
penais foram postas em causa, designadamente no TC, porque havia violação
do princípio da igualdade, dando-se mais vantagens aos credores bancários
em detrimento dos outros, mas o TC entendeu não haver inconstitucionalidade,
porque este benefício é justificado por razões de natureza material,
inclusivamente tendo em conta a proteção do próprio crédito. Se se facilitar a
constituição de garantias tornando-as fortes e suficientemente robustas, de
alguma forma está a facilitar-se a obtenção de crédito com mais facilidade e em
condições menos onerosas, sendo até uma proteção do próprio devedor.

O que se tem entendido segundo alguns penalistas, nomeadamente por


FIGUEIREDO DIAS, é que estas sanções penais foram revogadas com a
entrada em vigor do Código Penal de 1982. Baseia-se, desde logo, no
tratamento ou em normas que foram alteradas nesse Código e que tratam
situações semelhantes. Havia também, antes de 1982, a previsão de uma

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sanção de natureza penal para as hipóteses em que a coisa havia sido


confiada a alguém com o propósito de a guardar, e esse alguém acabava por
destruir ou provocar descaminho à respetiva coisa. Este comportamento foi
descriminalizado em 1982, daí que se tenha entendido que em situações
semelhantes em que o devedor tenha ficado com a disponibilidade da coisa,
devia valer para si, até por força do princípio da proporcionalidade, esta
descriminalização. Esta descriminalização já decorreria das alterações feitas ao
código penal de 1982 e, nessa medida, entender-se-iam como revogadas.
Apesar de se considerar que as normas penais não estão em vigor, continua a
haver penhor sem desapossamento em relação aos estabelecimentos
bancários, sendo, no entanto, uma garantia menos forte e pedindo as
entidades bancarias outras garantias adicionais.

4. O penhor financeiro:

4.1. Requisitos: os sujeitos; o objeto; as obrigações garantidas;


prestação do objeto da garantia financeira; suscetibilidade de prova por
documento escrito.

Estas garantias financeiras estão disciplinadas no DL 105/2004,


por transposição de uma diretiva comunitária, contando-se o penhor
financeiro e a alienação fiduciária em garantia. Temos penhor caso a
propriedade sem mantenha no autor da garantia, embora lhe retirando a
disponibilidade material. Já na alienação fiduciária em garantia, o que
pode acontecer é que as partes dispõem que o objeto da garantia se
transfere ao tempo da constituição para o credor. Quer um, quer outro,
são modalidades das garantias financeiras.

A circunstância de ter um regime insolvencial muito próprio faz


dele uma “supergarantia” ou garantia reforçada, justificado pelo facto de
ter o legislador entendido que há que assegurar as operações
transfronteiriças, de modo a terem um regime comum, havendo um
esforço de harmonização dos Estados da União. Em segundo lugar,
pretendeu-se facilitar o crédito e a liquidez, diminuindo os riscos
sistémicos, os riscos que correm as instituições de crédito ao conceder
crédito e obter liquidez: consegue-se colocar liquidez no mercado e, ao
mesmo tempo, em contrapartida, reforças as garantias de modo a

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proteger as instituições do risco sistémico de que se fala nos mercados


financeiros.

Estas garantias são muito particulares e especificas tendo em


conta não apenas as obrigações que podem ser garantidas, os sujeitos
que podem prestar e que são beneficiários da garantia e tendo em
conta o próprio objeto da garantia. Não pode ser qualquer objeto ou
qualquer sujeito.

O art. 2.º distingue as modalidades de garantia financeira.

Quando aos sujeitos, são só os referidos no art. 3.º. Quer o


credor penhoratício, quer o devedor têm que ser entidades públicas ou
então os constantes na al. f).

No artigo 4.º, as obrigações garantidas são obrigações cuja


prestação consista numa liquidação em numerário (v.g., a liquidação do
valor de um milhão de euros, já pré-determinados. Já não pode é ser
uma dívida de valor, como o caso de uma indemnização. Pode ser
também a entrega de valores mobiliários) ou na entrega de
instrumentos financeiros.

Quanto ao objeto do penhor, estabelece o art. 5.º que pode ser


uma quantia em numerário existente numa conta bancária, instrumentos
financeiros, créditos sobre terceiros (direitos de crédito sobre terceiros),
desde que não seja créditos ao consumo ou créditos concedidos a
micro ou pequenas empresas, o que tem a ver com a pouca robustez
que estes créditos têm, sendo muitas vezes difícil a obtenção do
respetivo cumprimento.

4.2. O regime geral.

O penhor financeiro pressupõe desapossamento, art. 6.º


(“efetivamente prestado”, tendo de haver a retirada da disponibilidade
material). Diz o n.º 2 que “Considera-se prestada a garantia financeira
cujo objecto tenha sido entregue, transferido, registado ou que de outro
modo se encontre na posse ou sob o controlo do beneficiário da
garantia ou de uma pessoa que actue em nome deste, incluindo a
composse ou o controlo conjunto com o proprietário”. Aqui a nossa lei

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inovou um pouco relativamente às outras, vindo permitir uma situação


de composse: que seja retirada parte dos valores ao autor da garantia,
mas ele se mantenha na posse de alguns desses valores. Ao mesmo
tempo que parte da posse é dada ao credor penhoratício, a outra
mantém-se no devedor podendo ele dispor materialmente ou pelo
menos fazer frutificar os respetivos bens que são objeto da garantia.

Quanto aos requisitos de forma, vem a lei falar de requisitos de


forma para fazer a prova, podendo ser prova por documento escrito ou
forma juridicamente equivalente ou registo em suporte eletrónico ou
equivalente. Estas não são meros requisitos ad probationem, são
requisitos ad substanciam, necessários para a validade do respetivo
contrato de garantia financeiro, quer seja a alienação fiduciária em
garantia, quer seja o penhor.

São estas as regras gerais para ambas as garantias.

O penhor vem regulado a partir do art. 9.º. O que dá um pendor


especial a este penhor é que, desde logo, a lei permite que as partes
acordem em que o beneficiário da garantia possa ter o poder de dispor
do objeto da garantia antes do vencimento da obrigação garantia, antes
de haver incumprimento, art. 9.º/1.

Segundo o art. 9.º, pode o beneficiário da garantia dispor e


onerar, não pode é relativamente aos créditos sobre terceiros. Pode
onerar ou dispor do saldo da conta ou de instrumentos financeiros, não
pode é onerar se o objeto da garantia forem créditos sobre terceiros.

Diz o n.º 1 do art. 10.º que exercido o direito de disposição, deve


o beneficiário da garantia, restituir ao prestador objeto equivalente ao
objeto da garantia financeira. Se alienou determinados valores
mobiliários (ações ou obrigações) deve até ao momento do vencimento
da obrigação restituir objeto equivalente. Diz ainda a al. b) que deve
entregar quantia em dinheiro correspondente ao valor da garantia.
Ainda, a al. c), quando o contrato o preveja, livrar-se da sua obrigação
de restituição por meio de compensação, sendo o crédito do prestados
avaliado no momento do respetivo vencimento.

Relativamente à execução, o beneficiário da garantia pode


proceder à sua execução fazendo seu o objeto da garantia mediante

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venda ou oneração. Mais uma vez, está aqui esta possibilidade, tal
como no penhor mercantil com apropriação. Podíamos perguntar se isto
não vai contra as regras da proibição do pacto comissório. No
preambulo, a lei fala na legitimação do pacto comissório, mas há um
equívoco do legislador, porque o que de facto se legitima não é um
pacto comissório, mas o pacto marciano. Basta vermos como se faz a
apropriação das coisas: só se faz se houver acordo das partes
relativamente à avaliação dos instrumentos financeiros e dos créditos
dados em garantia. O beneficiário fica ainda obrigado a restituir a
diferença entre o objeto da garantia e as obrigações garantidas, tendo
de restituir o excedente. Em terceiro lugar, diz o n.º 3 impõe-se uma
avaliação quer da obrigação garantida, quer do objeto da garantia, para
não prejudicar o autor da garantia através de um valor do objeto muito
superior ao da obrigação garantida. Assim, o que se legitima aqui é um
pacto marciano, a possibilidade de apropriação, mas mediante a
realização de uma avaliação independente feita no momento do não
cumprimento, através dos critérios comerciais razoáveis.

Outra possibilidade é a do credor garantido de executar a


garantia: pode acontecer que as partes prevejam que a execução se
fará não apenas na hipótese de incumprimento, como também na
hipótese de ocorrer outro facto que possa pôr em causa o cumprimento
da obrigação, embora ainda não vencida. É o que acontece com a
existência de insolvência por parte do devedor ou então nos casos de
haver uma queda no rating atribuído ao próprio devedor, em que a sua
organização fica menos valorizada do que era, podendo assim haver
um vencimento antecipado da obrigação de restituição da garantia. É
este conjunto de funcionalidades de garantias que se dá ao credor que
torna este penhor uma espécie de garantia muito forte.

4.3. O regime insolvencial.

No art. 17.º, a lei vem prever uma exceção forte àquilo que vimos
para a constituição da maior parte das garantias, designadamente das
garantias reais, que dá a possibilidade de resolução incondicional pelo
administrador da insolvência de garantias constituídas nos 6 meses
anteriores ao início do processo de insolvência (art. 121.º CIRE). Aqui

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não há esta possibilidade de resolução incondicional, os contratos


mantêm-se e são eficazes relativamente á massa insolvente. Diz ainda
o n.º 2 que não podem ser declarados nulos ou anulados as prestações
de nova garantia (que no caso eram suscetíveis de resolução
incondicional), a prestação de garantia financeira adicional ou por objeto
equivalente. Essa constituição de nova garantia não é suscetível de
resolução incondicional, ainda que sejam constituídos no dia anterior ao
processo de insolvência.

Outras normas que dão um reforço a esta garantia é a


circunstância de estes contratos de garantia financeira que ainda não
foram executados terem de o ser por parte do administrador da
insolvência. Há contratos cuja execução ainda não se iniciou, e em
muitos deles pode o administrador da insolvência optar por cumpri-los
ou não. Mas nestes contratos, o administrador da insolvência é obrigado
a cumpri-los, sendo oponíveis à própria massa, quer seja na insolvência
do autor do penhor, quer seja na insolvência do beneficiário da garantia,
tendo de haver em qualquer uma a execução dos respetivos contratos.

5. O penhor de participações sociais.

O tipo de participações sociais depende do tipo de sociedade em causa.


Este penhor vem consagrado no art. 23.º CSC. Diz este artigo no n.º 3 que o
penhor de participações sociais só pode ser constituído “na forma exigida e
dentro das limitações estabelecidas para a transmissão entre vivos de tais
participações”. Essa forma varia em função do tipo de sociedade que esteja em
causa.

No caso das sociedades por quotas, o penhor de quotas é celebrado


por escrito particular, exigindo-se o consentimento da sociedade (art. 228.º
CSC).

Quanto ao penhor de partes sociais no caso das sociedades em nome


coletivo, estabelece o art. 182.º CSC que não se exige o consentimento da
sociedade, mas o consentimento dos sócios.

No caso das sociedades anónimas, cujas participações são ações, vem


já disciplinado no Código dos Valores Mobiliários. Estas podem ser ações
escriturais ou tituladas e a forma de oneração depende desta diferença. Dizem

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o art. 81.º CVM, respetivamente, relativamente às ações escriturais, são estas


registadas na conta a quem pertencem, e nessa conta é registado o penhor,
mas não apenas o seu objeto, como também a obrigação que visa garantir e a
identificação do beneficiário da garantia, sendo uma forma de proteger
terceiros e tornar o penhor oponível aos respetivos terceiros. Quanto às ações
tituladas, art. 103.º CVM.

O art. 23/4.º CSC diz que os direitos inerentes à participação, em


especial relativamente aos lucros (assim como os direitos de voto) continuam a
pertencer ao autor do penhor. Só não é assim se houver convenção das partes
em contrário, no sentido de se transferirem quer os lucros, quer os outros
direitos conexos.

6. O penhor de letras e livranças.

Quanto à letra, art. 19.º LULL (endosso em garantia). É aplicável o


mesmo regime à livrança, por remissão do art. 77.º.

Diz o art. 19.º LULL que o portador pode exercer todos os direitos
emergentes da letra, mas o endosso feito por ele só vale como endosso a título
de procuração. Pretende-se desde logo o assentimento de que a letra ou a
livrança podem ser dadas como garantia. Depois, a indicação de que, quando
alguém com legitimidade para tal endossa a letra em garantia, o credor
garantido tem a possibilidade de exercer relativamente a ela todos os poderes,
nomeadamente o poder de a alienar, apresentar a letra a pagamento, proceder
ao protesto, etc. todas as prerrogativas que caberiam ao titular da letra podem
ser exercidas pelo credor penhoratício. Pergunta-se: mas e se o credor
apresenta a letra a pagamento antes do incumprimento da obrigação? Nesse
caso, passamos a ter um penhor irregular, uma vez que a quantia em dinheiro
não pode ser objeto de penhor, a única coisa que surge aqui é um devedor por
parte do credor de não utilizar aquele montante para outros efeitos que não
sejam garantir o cumprimento da obrigação e no momento em que há
cumprimento, transferir esses montantes para o respetivo credor. A quantia em
dinheiro ou as coisas fungíveis só podem ser objeto de penhor considerado ele
de forma ampla, considerado ele penhor irregular, mas há aqui uma espécie de
um contrato de garantia que é apenas oponível às partes e uma espécie de
negócio fiduciário, porque o devedor acaba por ficar numa posição de poder vir
a ser prejudicado cumprindo e não lhe sendo transferido o respetivo montante.

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Este dinheiro recebido passa a fazer parte do património do credor e por isso é
que se diz aqui que há um negócio fiduciário.

Também se admite no endosse de letras e livranças uma espécie de


alienação fiduciária, um endosso pleno, em que a letra se transfere
imediatamente, com fins de garantia, para o património do credor garantido e,
não se tratando de um verdadeiro penhor, é um negocio fiduciário em que há
um investimento de confiança grande por parte do devedor.

7. O penhor de conta bancária.

As contas bancárias, sejam à ordem ou a prazo, podem ser objeto de


penhor. O penhor de conta bancaria funciona como um penhor de direitos, pois
existe um direito de crédito, o direito de lhe ser restituída a quantia depositada.
Nasce um direito do depositante relativamente ao banco, o direito à restituição
daquela quantia. Admite-se claramente hoje o penhor de conta bancaria. O que
tem de se ter cuidado é que se a conta for à ordem, tem de haver uma cláusula
de indisponibilidade por parte do depositante, ficando sem possibilidade de
movimentar a conta, sendo uma forma de lhe retirar a disponibilidade. Há
assim a possibilidade de bloquear a movimentação por parte do titular da conta
aquando da constituição do penhor. Durante muito tempo, a doutrina veio
levantar objeções à admissibilidade do penhor de conta bancária. Uma delas
tinha a ver com a proibição do pacto comissório: quando o devedor não
cumpre, este penhor permitiria ao credor movimentar a conta bancária que é
objeto da garantia, para satisfação do direito de crédito, como se houvesse
uma espécie de apropriação do valor contido na conta. Mas não é assim. Se há
incumprimento do devedor e há penhor de conta bancaria, a quantia que o
credor pode movimentar é apenas a quantia em dívida, não havendo nenhum
perigo para o devedor de ele vir a receber mais, não representando o perigo
típico do pacto comissório. Depois, toda a execução da garantia se faz de
forma extraprocessual, não há necessidade de ação executiva, pois pode o
credor penhoratício satisfazer o seu direito recorrendo à movimentação da
conta.

A execução do penhor pode ser uma execução extraprocessual,


inclusivamente se prevê que a venda da coisa objeto do penhor seja uma
venda executiva, extraprocessual, que não dependa da propositura de uma
ação de execução, não havendo nenhuma regra que subverta as regras em

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matéria de penhor, não havendo nenhuma oposição valida ao penhor de conta


bancaria, podendo sim este dar-se.

8. O penhor geral ou omnibus.

No fundo é constituir-se uma garantia que de alguma maneira possa


reforçar o cumprimento de determinadas obrigações ou de um conjunto não
determinado de obrigações, quer presentes, quer futuras. Serviria a
constituição do penhor para garantir um conjunto diversificado de obrigações.
Aqui, o problema que se coloca é que também se exige a determinabilidade
das respetivas obrigações garantidas, sob pena da invalidade do penhor nos
termos do que decorre do art. 281.º quanto à fiança geral ou omnibus. No
penhor não é tao grave como na fiança, porque na fiança o fiador responde
com todo o seu património, mas aqui já esta definido um limite máximo. Mas
também não devemos presumir que o autor do penhor quis garantir obrigações
até ao valor máximo do bem objeto de garantia, daí a exigência de
determinabilidade. O problema coloca-se relativamente às obrigações futuras,
relativamente a essas têm de ser definidos critérios para a sua determinação,
não bastando estar limitado pelo valor do bem objeto da garantia. Podem ser
critérios de natureza temporal ou de estabelecimento de limites máximos.

9. O penhor rotativo.

A doutrina fala no chamado penhor rotativo, figura que não vem


disciplinada no direito positivo português, mas é por exemplo admitido no
direito italiano e noutros ordenamentos jurídicos. Em Itália, consagra-se a
possibilidade deste penhor rotativo em termos gerais. Como o próprio nome
indica, traduz-se em poder alterar-se o objeto da garantia, mantendo-se a
identidade da própria garantia. Podem as partes estabelecer que começa o
objeto por ser uma obra de arte x e, a partir de determinado momento, o objeto
se altere para o quadro y, de valor equivalente. Se considerarmos que a
substituição do objeto representa a contratação de uma nova garantia, se ela é
feita nos seis meses anteriores à insolvência, pode ser resolvida (art. 121.º
CIRE). Já se considerarmos o contrário, a garantia é inatacável.

Parece ser de admitir no nosso ordenamento, garantidos os


pressupostos, mesmo não estando consagrada essa possibilidade consagrada,

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o penhor rotativo. Desde logo, porque a propósito do penhor financeiro admite-


se essa rotatividade, porque admite-se que o credor venha a alienar o bem
objeto do penhor e substitua esses valores por outros. Depois, também no
penhor de coisas, nos casos de sub-rogação real, relativamente à possibilidade
de venda antecipada do objeto do penhor quando alguma circunstância
ameace a garantia, diz o art. 674.º/2 que há possibilidade de o objeto inicial do
penhor se alterar.

A lei admite determinados casos em que muda o objeto do penhor. Se


pode haver esta sub-rogação legal, propõe CALVÃO DA SILVA que devemos
então admitir a sub-rogação condicional (este penhor rotativo) por convenção
das partes. Até porque ao beneficiário da garantia o que interessa é que esta
tenha como objeto um objeto do mesmo valor.

Note-se que os pressupostos são: (1) é necessário que a rotação seja


antecipadamente convencionada pelas partes; (2) que em cada momento
esteja definido qual é o objeto da garantia; (3) que a garantia, quando
substituída, seja substituída por bem de valor equivalente.

Então, admitimos entre nós, mesmo convencionalmente, este penhor


rotativo.

10. O penhor irregular: Caraterização e qualificação; Regime: o


mecanismo de satisfação do credor; A aplicação de algumas disposições do
penhor.

Este penhor irregular tem por objeto dinheiro (relembre-se que o objeto
do penhor tem de ser coisas corpóreas infungíveis ou determinados direitos,
não podendo ter por objeto dinheiro ou coisas fungíveis). Ora, não pode haver
um penhor regular de uma quantia em dinheiro, portanto sempre que tem como
objeto quantia em dinheiro ou coisas fungíveis, é um penhor irregular. É
irregular desde logo porque as coisas fungíveis ou esse dinheiro, a sua
titularidade transfere-se para a esfera jurídica do credor penhoratício. A
titularidade dos bens mantem-se no devedor ou autor do penhor e quando
temos transferência da titularidade dos bens já não estamos propriamente
perante um penhor, pois se são coisas substituíveis, aquando da substituição a
titularidade dele transfere-se para o credor, não podendo ser um penhor
regular. Esta figura é no art. 1851.º do Codice Civile italiano. No fundo, temos

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um contrato de garantia, qualificado pelas partes como penhor, tendo por


objeto da titularidade de coisas fungíveis ou dinheiro, mas cujas coisas passam
para a titularidade do credor. O credor tem é a obrigação de retransmissão de
idêntica quantia em dinheiro ou eventualmente pagar-se com essa quantia em
caso de incumprimento da obrigação, ou eventualmente o caso das coisas
fungíveis que não dinheiro, transferir para o devedor coisas idênticas com o
mesmo valor. Trata-se de um contrato fiduciário, pois ao transmitir-se a
propriedade há um investimento de confiança grande por parte do devedor. As
partes qualificam-no como penhor, mas não é um verdadeiro penhor. Mesmo
não sendo um penhor regular, há determinadas regras do penhor que lhe
podem ser aplicáveis, nomeadamente o art. 671.º (deveres gerais do credor
penhoratício: administração de bens, o facto de não poder usá-los em seu
proveito). Enquanto não há vencimento da obrigação, há o dever de
segregar/separar do seu património e de o rentabilizar.

Há aqui várias regras do penhor que podem ser aplicadas a este


contrato de garantia, mas não se trata de verdadeiro penhor.

O investimento de confiança por parte do devedor é muito visível no que


toca ao regime insolvencial, porque se há insolvência do credor, os bens foram
constituídos para o património deste credor garantido e se estão no seu
património, podem ser penhorados e fazem parte da massa insolvencial. O
risco que corre o devedor é que este devedor vai ter que cumprir a sua
obrigação para com a massa e depois exigir o cumprimento á massa da
obrigação de transferência, mas vai lá como um credor comum, um credor não
garantido. Por isso é que dizemos que há aqui sempre, apesar de estas
garantias serem reguladas através de contratos, um investimento de confiança
por parte do devedor.

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16. O Direito de Retenção.

a) Noção e caraterização.

Ao contrário do penhor e de parte das hipotecas, sendo embora uma garantia


real, é uma garantia de natureza legal. Vem previsto no art. 754.º, que consagra
genericamente a figura. O direito de retenção funciona como uma garantia legal, e
funciona como garantia porque o retentor tem o direito de se pagar. Pode não entregar
a coisa ao respetivo credor da entrega, mas o seu direito não prevalece sobre a
penhora. Os direitos que tinha sobre a coisa passa a valer sobre o valor da coisa. Se
for coisa móvel, tem os mesmos direitos que o credor penhoratício (direito de, com
preferência aos restantes credores, se pagar pelo valor da coisa). Se o direito de
retenção incidir sobre imóvel, tem os mesmos direitos do credor hipotecário). Vem o
art. 759.º estabelecer que o direito de retenção, nesses casos, prevalece sobre a
hipoteca mesmo que anteriormente constituída (n.º 2).

Alem de funcionar como garantia, funciona também enquanto maio de coerção


ao cumprimento. É um meio privado de tutela porque é um meio de constranger o
devedor ao cumprimento do crédito indemnizatório. Pode ser meio de coerção ao
cumprimento neste sentido, porque sobretudo quando o valor da coisa retida é muito
superior ao valor da dívida, a circunstância de o retentor se recusar a entregá-la pode
ser uma forma de coerção para que lhe seja pago.

Os pressupostos constam do art. 754.º. desde logo, o direito de retenção


pressupõe a detenção licita de uma coisa que deve ser entregue. O retentor tem a
obrigação de entregar uma determinada coisa, mas pode retê-la legitimamente quando
preenchidos determinados pressupostos. Depois, ser o credor a pessoa a quem deve
fazer a entrega. Assim, retém a coisa porque é credor. Em terceiro lugar, o crédito
garantido tem que resultar de despesas feitas com a coisa ou por causa dela, ou então
por danos causados por ela. Tem, portanto, de haver aqui uma conexão, não basta
deter uma coisa e fazer pressão com essa detenção relativamente ao dono dela a
quem deve ser feita a entrega por uma qualquer dívida que esse dono tenha para com
o retentor. A dívida tem que ter uma conexão com a própria coisa, tem que ser uma
dívida resultante de despesas feitas na coisa e por causa dela, ou resultante de danos
dela causados. são estes os pressupostos genéricos do direito de retenção, que
estando preenchidos esta legitimado o retentor.

A lei vem estabelecer casos especiais do direito de retenção, não subsumíveis


na previsão genérica do art. 754.º, porque a lei não resultava de despesas feitas na
coisa ou danos causados por ela. Assim, o art. 756.º: enquanto não for pago o

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transporte, tem o transportador o direito de reter as coisas transportadas. Depois, o


albergueiro, sobre as coisas que as pessoas tenham trazido para a pousada ou
albergue, enquanto não pagarem a hospedagem. O mandatário, sobre as coisas que
lhe tiverem sido entregues no mandato, etc. Depois a al. f) o beneficiário da promessa
de constituição de direito real a que se refere o contrato prometido, pelo crédito
resultante do não cumprimento imputável à outra parte. Havendo incumprimento do
contrato promessa num contrato promessa em que houve traditio rei, lançamos mão
da tutela indemnizatória do art. 442.º: tem o promitente comprador direito à
indemnização correspondente ao dobro do sinal (se sinalizado) ou, se eventualmente
fizer essa opção e houver valorização do bem, a chamada indemnização pelo
aumento do valor, calculada tendo em conta o valor do bem na data do não
cumprimento, deduz-se o preço convencionado e esse é o montante da indemnização,
a isso se acrescentando o valor do sinal entregue. Muitas vezes quando a valorização
do bem é superior ao sinal, o comprador tem interesse em optar por esta
indemnização pelo aumento do valor. Esta indemnização fazia sentido na época em
que foi prevista devido à inflação que se fazia sentir no mercado imobiliário, na medida
em que os vendedores tinham interesse em incumprir o contrato, sujeitando-se à
indemnização pelo sinal, com prejuízo para o promitente-comprador, que até já estava
na detenção da coisa e agora se quisesse adquirir coisa equivalente tinha de a adquirir
já por preço muito superior. Daí que hoje em dia não há muito interesse por parte dos
promitentes compradores a optarem por esta indemnização pelo aumento do valor,
mas há esta opção.

O direito de retenção aparece como garantia desta indemnização calculado nos


termos do art. 442.º. O promitente comprador a quem foi atribuída a retenção da coisa
tem o direito de a reter nos termos do art. 755.º para garantir o cumprimento da
obrigação fixada nos termos do art. 442.º.

b) Requisitos constitutivos.

c) Casos particulares:

1. O direito de retenção do empreiteiro;

Uma das questões discutida tem a ver com a existência de direito de retenção
a favor do empreiteiro como garantia do crédito resultante da execução da respetiva
obra. Saber se o empreiteiro pode ou não reter a respetiva obra antes de lhe ser pago

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o correspetivo. Nós, a admitirmos este direito de indemnização do empreiteiro, é no


quadro do art. 744.º, não do 755.º. se entendemos que o crédito do empreiteiro tem
aquela conexão com a coisa, então devemos admitir que tenha direito de reter a obra.
A doutrina dividiu-se muito tempo e parte da doutrina (ANTUNES VARELA, ALMEIDA
COSTA) que não admitiam este direito de retenção porque a retribuição do empreiteiro
não tem essa conexão com a obra, não é devida a despesas feitas com a coisa e não
pode reter, tanto mais que ao tempo da realização das despesas a coisa ainda não
existia. Em segundo lugar diziam que não faz sentido conceder ao empreiteiro direito
de retenção pois é em regra a parte com mais poder contratual, podendo munir-se de
outras garantias. Esta posição encontra-se hoje largamente ultrapassada pela doutrina
e jurisprudência, que entendem ter o empreiteiro direito de retenção nos termos do art.
754.º. Se o crédito do empreiteiro resulta de gastos que fez para a construção da obra,
parece artificioso dizer-se que não existe conexão entre o seu crédito e a própria
coisa. O que pode perguntar-se é se tem direito de retenção só para proteger o crédito
relativo às despesas que efetuou na obra, ou o direito também existe relativamente
aos lucros. CALVÃO DA SILVA, PESTANA DE VASCONCELOS e a doutrina
dominante entendem que o direito de retenção protege todo o crédito do empreiteiro,
tanto mais que na maior parte das vezes nem é distinguível o crédito em despesas
com o crédito a título de lucros. Quanto ao argumento de que pode munir-se de outras
garantias, nem sempre o empreiteiro detém esse poder contratual, não sendo a parte
mais forte da negociação.

2. O direito de retenção do promitente comprador que obteve a tradição


da coisa como garantia do crédito indemnizatório resultante da aplicação do
art.º 442.º do C.C.

Este direito de retenção incide sobre imóvel e, como tal, é oponível ao credor
hipotecário, prevalecendo sobre a hipoteca ainda que a hipoteca seja anteriormente
constituída. Isto levou a que se gerasse alguns conflitos. Este artigo 759.º foi levado à
apreciação do TC porque haveria aqui a afetação, de forma desproporcionada, do
princípio da confiança do credor hipotecário, porque este, no momento em que
concede crédito e constitui, para defesa do seu crédito, uma hipoteca sobre
determinado imóvel, não tem a perspetiva de sobre esse imóvel vir a incidir um direito
de retenção que prevaleça sobre essa hipoteca. E repare-se que o direito de retenção
é uma garantia oculta, legal, não sujeita a registo, e ainda por cima posterior à
hipoteca. Autores entendiam que consistiria esta prevalência sobre a hipoteca um

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atentado à confiança do credor hipotecário, atentado que vai muito para além daquilo
que a própria lei fundamental prevê.

A questão colocava-se sobretudo naquelas hipóteses em que o credor


hipotecário era um credor bancário que concedia crédito, por exemplo, ao construtor
civil para a construção de edifícios, o construtor civil prometia vender as frações
autónomas, e os respetivos promitentes compradores entregavam no início da
construção determinados valores a titulo de sinal, sendo até uma forma de financiar a
construção. Finda a construção, dava-se a chave aos promitentes compradores e se
não fosse possível a celebração do contrato prometido por qualquer razão, eles
ficavam com o tal crédito indemnizatório que prevalecia sobre o do credor hipotecário.
Como garantia oculta, acabava por ser um ataque à confiança do credor hipotecário. O
TC entendeu que não havia inconstitucionalidade do art. 759.º porque isso
correspondia a uma escolha legislativa clara de proteção do promitente comprador.

O direito de retenção foi concebido para garantir o pagamento de valores de


pequeno montante. Então, os créditos previstos nas outras als. do 755.º não fazem
grande afronta ao credor hipotecário. Coisa diferente é este do art. 755.º entre 1980 e
1986 discutia-se esta questão do art. 759.º e da prevalência do direito de retenção,
mas apesar da discussão o legislador manteve o art. 759.º e o art. 755.º, tendo em
atenção a posição do promitente comprador, parte em regra mais débil no respetivo
contrato. Agora, parte da doutrina, porque entende que de facto pode estar em causa
a confiança do credor hipotecário ou eventualmente até estar em causa a conceção do
crédito e em última análise até o preço da habitação, isto leva a que em última análise
quem acaba por sofrer as consequências é o próprio promitente-comprador. Por isso,
grande parte da doutrina, atendendo à posição do credor hipotecário e à sua confiança
que aqui sai violada, vieram dizer que esta proteção por parte da lei ao promitente-
comprador teve em conta a sua posição enquanto consumidor (unidades habitacionais
para habitação própria), o que resulta do preambulo da própria lei de 1986 que altera o
contrato-promessa. Apesar de o legislador dizer isto no preambulo, não faz referência
aos promitentes-compradores consumidores, generalizando o preceito mesmo quando
está em causa a promessa de compra e venda de edifícios ou de prédios rústicos. Por
isso, o mais lógico é entender que este direito de retenção pertence a qualquer
promitente-comprador que tenha obtido a tradição da coisa e não apenas ao
promitente-comprador enquanto consumidos.

Esta questão foi ainda mais discutida estando em causa a questão de saber se
mantinha o direito de retenção em caso de insolvência e se a garantia prevalece sobre

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a hipoteca. No CIRE, a questão coloca-se desta forma: não estamos a falar daqueles
contratos em que já houve incumprimento por parte

Se já nasceu o crédito indemnizatório porque foi violado ou não foi cumprido


pelo promitente alienante antes de iniciado o processo de insolvência, já nasceu o
crédito indemnizatório, tendo o crédito calculado pelo art. 442.º e tendo direito de
retenção pelo 755.º e prevalência sobre a hipoteca nos termos do 759.º a dúvida surge
nos contratos que estão ainda em execução, em que não chegou ainda do
incumprimento.

Ora, relativamente aos contratos em curso e sobretudo relativamente a estes


contratos promessa, o art. 106.º vem dizer que se se tratar de contrato de compra e
venda com eficácia real, o administrador da insolvência é obrigado ao respetivo
cumprimento, tem que celebrar em nome da massa insolvente o contrato prometido, o
contrato definitivo.

Se se tratar de contrato promessa com simples eficácia obrigacional, mas em


que há sinal e houve traditio rei, o art. 106.º vem dizer que o administrador da
insolvência nesses casos não está obrigado ao seu cumprimento, no exercício de um
direito potestativo pode optar pelo seu cumprimento ou eventualmente pelo não
cumprimento (pela não execução do contrato promessa). Se optar pelo cumprimento,
não se coloca nenhum problema. Mas se optar por não cumprir, parte da doutrina
entende que assim será devida a indemnização dos arts. 102.º e 104.º, que se refere à
indemnização devida quando o administrador da insolvência decide não cumprir os
negócios em curso. Seria nos termos do art. 104.º (relativo á venda com reserva de
propriedade) que se calcularia a indemnização devida ao promitente-comprador.
Apesar de tudo, nos processos insolvenciais o legislador tem também que ter em
conta os interesses do conjunto dos credores da massa insolvente. MARGARIDA
COSTA ANDRADE, AFONSO PATRÃO E SOVERAL MARTINS entendem que a
indemnização devia ao promitente-comprador é calculado nos termos da lei da
insolvência e, se assim for, a conclusão que se retira é que como o art. 755.º só
admite a existência de direito de retenção como garantia do crédito indemnizatório
resultante do art. 442.º, porque este crédito indemnizatório do art. 442.º pressupõe um
incumprimento imputável ao promitente vendedor e não é ele, aqui, que incumpre o
contrato. Daí que se venha dizer que no processo de insolvência, o direito de retenção
do promitente-comprador nem chega a existir e como tal o crédito que ele tem nem
pode ser oponível ao credor hipotecário, não tendo essa prevalência nos termos do
art. 759.º.

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Este não foi, no entanto, o entendimento do AUJ 4/2014. Nesta sede, entende
o tribunal que o art. 102.º e 104.º não podem ser aplicados ao contrato promessa
sinalizado com direito de retenção com traditio rei. Nesta matéria, haveria uma lacuna,
a lei insolvencial não determinaria o montante indemnizatório. Haveria aí uma lacuna,
que só seria suscetível de ser preenchida com recurso ao art. 442.º, mas havia um
problema: o administrador da insolvência não celebra o contrato definitivo e esse
incumprimento não lhe é imputável, ou não é imputável pelo menos ao promitente
vendedor, em primeiro lugar porque a decisão não é dele e o administrador de
insolvência exerce um direito potestativo, uma possibilidade que a lei lhe confere. A lei
fala de uma imputabilidade reflexa: apesar de não se poder dizer que o incumprimento
é imputável ao promitente-vendedor, reflexamente isso acontece porque ele é que se
colocou em situação insolvencial, aplicando-se o art. 442.º assim, teria o promitente
comprador direito de retenção e, tendo direito de retenção, esse direito prevalecia
sobre o direito do credor hipotecário.

Veio ainda o acórdão aplicar a restrição de que só teria direito de retenção o


promitente comprador que tivesse a qualidade de consumidor. Mas levanta-se a
questão sobre quem é consumidor para este efeito.

A noção de consumidor em sentido estrito usada pela Lei de Proteção do


Consumidor de 1986, é toda a pessoa que adquire bens ou serviços para os utilizar
fora do exercício da atividade profissional. Se fosse assim, só estaria protegido o
promitente-comprador que adquirisse edifícios para fins de os habitar.

Depois, alguns autores e Conselheiros vieram defender uma noção mais


ampla: só não seria consumidor, quem no âmbito da sua atividade profissional
adquirisse a coisa objeto da retenção para fins de revenda ou de locação. Mas já
estariam incluídos nesta noção mais lata todos aqueles que adquirissem para qualquer
outro fim profissional que não o de revenda ou locação.

Veio o AUJ n.º 4/2019 optar pela noção restrita: só é consumidor quem
pretende adquirir o imóvel objeto de retenção para fins privados ou familiares.

Em 2021 veio o AUJ n.º 3/2021 estabelecer jurisprudência uniforme,


relativamente aos processos insolvenciais, completamente desconforme, dizendo que
o cálculo da indemnização é feito no sentido dos arts. 102.º e 104.º. Há até quem diga
que isso não tem nada a ver com o direito de retenção. Poe-se em causa os
pressupostos, porque o Ac. de 2014 só atribuiu o direito de retenção porque havia uma
lacuna e a indemnização devia ser calculada nos termos do art. 442.º e nesse sentido
teria direito de retenção.

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Tanto o AUJ 4/2004, como o 4/2019, como o 3/2021 têm imensos votos de
vencido, cada um deles com uma argumentação diversa de não concordância.

IRENE GIRÃO tende a ir no sentido do último acórdão, de calcular a


indemnização nos termos da lei insolvência, porque o processo de insolvência tem de
qualquer maneira de ser tratado de forma diferente das restantes execuções. O
legislador, ao dar possibilidade ao administrador da insolvência de cumprir ou não
cumprir estes contratos promessa, e de estabelecer regras sobre o cálculo da
indemnização para a maior parte dos contratos em curso cujo administrador decide
não cumprir, o legislador fez uma opção clara tendo tido em conta todos os interesses
em conflito no contrato de insolvência, não existindo lacuna que faça necessitar do art.
442.º. depois, quer no âmbito do processo insolvencial, quer fora, esta restrição do
direito de indemnização ao consumidor também não convence, porque o legislador
não fez essa opção, muito embora no preambulo se manifeste o conhecimento da
problemática mas venha dizer que se alarga a solução a todos os promitentes-
compradores. Embora a ratio legis esteja na proteção do consumidor, não faz uma
opção clara de proteção do consumidor e onde a lei não distingue, não pode o
interprete distinguir. É forçado dizer que se o administrador da insolvência decide não
celebrar um negócio em curso, isso é imputável ao promitente vendedor, porque
mesmo aquela imputabilidade reflexa nem sempre se pode estabelecer, porque muitas
vezes a situação de insolvência não é culposa. É assim de excluir a indemnização
calculada nos termos do art. 442.º.

Mas, repare-se que a maior parte da jurisprudência, bem como PESTANA


VASCONCELOS, entendem diferentemente, que deve ser protegido o promitente-
comprador, embora apenas nos casos em que seja consumidor.

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16 de maio de 2022

17. Os Privilégios creditórios.

a) Noção e caraterização.

São também uma garantia legal, decorrendo não da vontade das partes, mas
da própria lei. São previstos pela lei a partir do art. 733.º e ss. São garantias legais
atribuídas a determinados credores em razão do respetivo crédito. Em terceiro lugar, o
grande problema destes privilégios é a circunstância de serem garantias ocultas,
porque quer incidam sobre móveis ou imoveis, não são sujeitos a qualquer tipo de
publicidade para além daquela que é a existência da dívida. E são oponíveis a
terceiros que tenham adquirido o direito anteriormente, opondo-se até à hipoteca ainda
que anteriormente constituída. Pode haver uma espécie de atentado ou
comprometimento da própria confiança do credor das outras garantias, que acaba por
ver estes privilégios prevalecer em detrimento das respetivas garantias quando não
tinha como contar com elas.

Os privilégios incidem sobre todo o património do devedor. Nos privilégios


mobiliários gerais e imobiliários gerais, inclusivamente não são verdadeiras garantias
reais e nas normas em que a lei previa a sua prevalência sobre garantias reais
anteriores, os tribunais, nomeadamente o TC, já veio pôr em causa a sua
constitucionalidade, por isso já não acontece com os privilégios gerais, mas continua a
acontecer com os privilégios imobiliários.

Dado esse comprometimento da confiança do credor, que se traduz no


comprometimento do próprio crédito, esse acaba por ser um ataque não só à
confiança dos credores como também aos interesses do comercio jurídico. Muita da
doutrina tem sugerido transformar-se parte destes privilégios creditórios em hipotecas
legais, pois até podem ser atribuídas a muitos destes créditos com privilégios
creditórios, sobretudo os imobiliários especiais.

A lei não só mantém os privilégios, como cria amiúde privilégios creditórios em


legislação extravagante. Temos as características da prevalência e da sequela.

b) Espécies:

Temos a distinção entre privilégios mobiliários (se tiverem por objeto


bens móveis) e imobiliários (no caso de erem por objeto bens imóveis).
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Dentro de cada uma destas categorias, temos os gerais e os especiais.


Se incidem sobre bens móveis determinados, são privilégios mobiliários
especiais. Se incidem sobre todos os bens móveis que compõem o património
do devedor, são privilégios mobiliários gerais. O mesmo raciocínio fazemos
para os privilégios imobiliários.

Os privilégios gerais, quer mobiliários, quer imobiliários, não são


verdadeiras garantias reais, pois teriam que incidir sobre bens determinados do
devedor. Os que são garantidos com privilégios especiais são créditos
garantidos. Os que são garantidos com privilégios gerais, porque não
correspondem a verdadeiras garantias reais, vamos chamar-lhes créditos
privilegiados. Mas quer um, quer outro, conferem ao respetivo credor a
possibilidade de se fazerem pagar pelo valor de certos bens com preferência
relativamente aos outros credores, aumentando a probabilidade em termos
qualitativos de satisfação do respetivo crédito.

O problema da ocultação da garantia coloca-se sobretudo quanto aos


privilégios gerais. Por isso é que o legislador do Código Civil de 1966 veio
consagrar vários privilégios quer gerais, quer especiais, mas veio dizer, quanto
aos imobiliários, que todos os privilégios deste Código são especiais. O que
não quer dizer que não existam, consagrados em legislação extravagante.

1. Privilégios mobiliários gerais

Quanto aos privilégios mobiliários gerais, são desde logo credores


garantidos ou privilegiados com estes privilégios o Estado e as autarquias
locais para garantir créditos de impostos indiretos e também pelos impostos
diretos inscritos para cobrança no ano corrente (art. 736.º CC).

Também a segurança social tem privilégios mobiliários gerais, art. 204.º


do CRCSPSS, por créditos relativos às contribuições à Segurança Social.

Os créditos dos trabalhadores quer resultantes do contrato de trabalho,


quer créditos relativos à violação do contrato de trabalho (créditos
indemnizatórios) estão garantidos com um privilégio nos termos do art. 333.º do
CT. Têm ainda um privilégio mobiliários especial que incide sobre os bens
imoveis do devedor entidade patronal, os imoveis afetados ao exercício da
atividade.

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Gozam também de privilégio as despesas com o funeral do devedor,


com despesas por doença ou a quem deva prestar alimentos nos últimos seis
meses.

Ora, ou é o Estado, ou estão em causa créditos a que se atribui grande


importância. Por definição, quando estão em causa créditos deste tipo, o credor
tem a possibilidade de se fazer pagar com preferência a “todos” os outros:
todos entre aspas, porque parte destes privilégios cessam com o início da
insolvência, e é tão só relativamente aos credores comuns.

Outros ainda, resultam dos arts. 204.º e 205.º do CRCSPSS e do art.


111.º do CIRS e do art. 116.º CIRC. Também os créditos de imposto de IRS e
IRC são créditos privilegiados porque existe um privilégio creditório incidente
sobre todos os bens móveis do respetivo devedor.

Também há aqui um outro privilégio mobiliário criado pelo art. 98.º do


CIRE (concessão de privilégio ao credor requerente): “os créditos não
subordinados do credor a requerimento de quem a situação de insolvência
tenha sido declarada passam a beneficiar de privilégio creditório geral,
graduado em último lugar, sobre todos os bens móveis integrantes da massa
insolvente, relativamente a um quarto do seu montante, num máximo
correspondente a 500 UC”.

O credor que requereu o processo de insolvência acaba por lhe ser


atribuído um privilégio incidente sobre todos os bens móveis do devedor, com
prevalência sobre todos os credores comuns.

3. Privilégios mobiliários especiais.

Estes privilégios incidem sobre determinados bens móveis do devedor:

(1) Os créditos por despesas de justiça (art. 738.º) feitas diretamente no


interesse comum dos credores (v.g., se no âmbito de uma execução ou
situação insolvencial se fizerem despesas com a execução ou liquidação dos
bens). Veja-se desde logo que no conjunto dos privilégios creditórios estes
estão em primeiro lugar, sendo os seus credores pagos em primeiro lugar.

(2) Têm também privilégio mobiliário especial os créditos do Estado


resultantes dos impostos sobre as sucessões e doações (art. 738.º/2), como é
o caso do IMT (imposto municipal sobre as transações) e o caso do imposto de

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selo, o antigo imposto sobre as sucessões e doações. Por exemplo, se as


dívidas do falecido incidem sobre os bens da herança, abre-se um processo de
liquidação dos bens da herança para pagar as respetivas dividas antes mesmo
de qualquer partilha e de acesso à herança, se eventualmente no interesse dos
credores foram feitas despesas com a penhora ou venda desses mesmos
bens, sobre os bens que deram origem a essas despesas, por exemplo se se
penhorou um automóvel que era do falecido, esse automóvel esteve a cargo de
um depositário com as respetivas despesas, teve de permitir as visitas de
eventuais interessados na compra, e mesmo a própria remuneração do agente
de execução são despesas de justiça. Essas despesas podem ser privilegiadas
no caso de terem um privilégio geral ou garantidas aqui neste caso do art.
738.º através de um privilégio mobiliário especial.

Diz depois o art. 739.º (privilégio sobre os frutos de prédios rústicos)


que gozam de privilégio sobre os frutos: a) os créditos pelos fornecimentos de
sementes, plantas e adubos, e de água ou energia para irrigação ou outros fins
agrícolas. Portanto, os créditos que resultem desta despesa têm um privilégio
mobiliário especial que incidem sobre os rendimentos desse prédio.

Depois, o art. 739.º. a al. b), que fala sobre dívidas de foros, assim
como os privilégios sobre rendas de prédios urbanos, são normas que se
devem ter como caducadas, ou seja, a solução que representam encontram-se
revogadas porque deixou de se admitir a enfiteuse como um direito real e,
portanto, estas dividas de foros deixaram de existir. Não faz assim sentido esta
al. b) do art. 739.º, assim como o art. 740.º (os créditos por dívidas de foro
relativas ao ano corrente na ata da penhora, etc.

Também aparece aqui o crédito de indemnização, o crédito da vítima de


um facto que implique responsabilidade civil tem privilégio sobre a
indemnização devida pelo segurador da responsabilidade em que o lesante
haja incorrido (art. 741.º). Portanto, se o lesante adquire, por força da
existência de um contrato de seguro, uma indemnização ou uma reparação do
segurador, quem tem um privilégio creditório mobiliário é o lesado.

O crédito de autor da obra intelectual, art. 742.º (em causa os direitos


patrimoniais da obra de autor), tem privilégio sobre os exemplares da obra
existentes em poder do editor. No caso de não ser satisfeita a sua participação
nos proveitos da alienação dos exemplares, tem um privilégio creditório que
tinha em mãos ou em poder do editor.

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Além deste privilégio, foi criado também um outro privilégio mobiliário


especial que resulta do art. 17.º-H do CIRE. no n.º 2 diz que os credores que
no processo financiem a atividade do devedor, disponibilizando-lhe capital para
a sua revitalização, “gozam de um crédito sobre a massa insolvente, até um
valor correspondente a 25 porcento do passivo não subordinado da empresa à
data da declaração de insolvência, caso venha a ser declarada a insolvência da
empresa no prazo de dois anos a contar do trânsito em julgado da decisão de
homologação do plano de recuperação”. Prevalece inclusivamente sobre os
créditos dos trabalhadores, sendo graduado este crédito antes dos dos
trabalhadores. Trata-se de credores que tenham entrado num processo de
revitalização da atividade, antes mesmo de haver declaração de insolvência, na
tentativa de salvar a posição dos credores, mas também a do próprio devedor.

Quando existam vários privilégios, sejam gerais ou especiais, a ordem


por que são pagos é dita pelo artigo 745.º (concurso de créditos privilegiados –
créditos gerais). São em primeiro lugar pagos os privilégios por despesas de
justiça, em segundo lugar, o 17.º-H do CIRE, depois o créditos mobiliários
gerais dos trabalhadores, em quarto lugar os créditos de impostos, em quinto
lugar os créditos por fornecimentos destinados à produção agrícola, em sexto
lugar os créditos da vítima por facto que dê lugar a responsabilidade civil, em
sétimo lugar os créditos do autor de obra intelectual, e depois os créditos com
privilégio mobiliário geral, pela ordem do art. 737.º (art. 747.º).

2. Privilégios imobiliários gerais.

No domínio fiscal foram criados alguns privilégios imobiliários gerais em


legislação extravagante, como é o caso do imposto do IRS e do IRC, nos
termos do art. 205.º CRCSS. Nos termos deste artigo, temos um privilégio
creditório incidente sobre todos os bens imóveis do devedor e ainda também o
art. 111.º CIRS e 116.º do CIRC.

4. Privilégios imobiliários especiais.

(1) Em primeiro lugar temos, desde logo, aquele que vemos já existir no
mobiliário, que garante as despesas de justiça.

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(2) Em segundo lugar créditos dos trabalhadores incidentes sobre


bens imóveis do empregador onde o trabalhador presta a sua atividade
(art. 333.º do CT), regra que tem sido interpretada de diversas formas.
Colocava-se a questão se o crédito do privilégio só incide sobre o prédio onde
esse trabalhador exerce atividade. Vários tribunais e o próprio STJ vêm
entender que apesar de ser exigível uma conexão entre o crédito de que é
titular o trabalhador e o exercício da atividade profissional pela empresa, não é
de exigir que incida apenas e tão-só sobre o prédio onde o trabalhador exerce
a sua atividade, sob pena de se criar uma certa desigualdade entre os
trabalhadores (se os que trabalham num prédio teriam um privilegio sendo
pagos com preferência, mas o trabalhador que exercesse a sua função num
simples armazém já não estaria tao protegido como o trabalhador que exerce
na sede; se exercessem funções num prédio arrendado, já não teriam o
privilégios; ou se pura e simplesmente trabalhassem a partir de casa, em caso
de incumprimento não tinham privilégio creditório e o seu crédito indemnizatório
não estaria garantido).

Para evitar tratar de forma diferente aquilo que é igual, tendo em conta
que o que se pretende é proteger a condição de especial debilidade do
trabalhador, para proteger esse crédito acabou por se lhe dar um privilégio
especial. Apesar de se entender que é necessária esta conexão de o crédito do
trabalhador resultar do seu contrato de trabalho e haver uma conexão com o
exercício da atividade por parte da empresa. Também não é sobre todos os
prédios pertencentes à entidade patronal, sob pena de estarmos a transformá-
lo num privilégio geral. São os prédios afetados ao exercício da atividade que é
exercida pelo trabalhador.

Relativamente a esta questão, a Doutora colocou dois acórdãos no


ucstudent: um do TRC que chega a esta conclusão e um do TC que veio a
propósito de se ter pedido a declaração de inconstitucionalidade de um
acórdão do STJ que dava uma determinada interpretação a esta norma do
Código do Trabalho. O TC recusou, dizendo que o requerente tinha feito uma
interpretação errada. No fundo, o que queria o requerente era que o TC
entendesse inconstitucional aquela interpretação por ter considerado que o STJ
disse que o trabalhador só tinha privilégio sobre o edifício onde ele exercesse a
respetiva atividade. O TC disse que não era nada isso a interpretação que o
STJ faz. Mas a ideia que fica é este: tem de haver conexão, mas o privilégio

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não incide apenas sobre o edifício onde o trabalhador exerce atividade, mas
sim tem que estar sobre os edifícios da entidade patronal.

Uma outra questão colocou-se relativamente a estes privilégios dos


trabalhadores. Sobretudo nas empresas de construção civil que constroem
para alienação, o trabalhador que trabalha na construção desses imóveis
exerce nesses locais a sua atividade profissional. Será que também tem sobre
esses prédios, que continuam a ser da entidade empregadora, mas se
destinam a revenda, privilégio creditório? o STJ19 foi questionado se o privilégio
também abrange esses imoveis e a conclusão vai no sentido negativo. Assim,
excluem-se estes imóveis que se destinam a venda.

(3) Aparecem em terceiro lugar os créditos por contribuição predial


(IMI, imposto municipal sobre imóveis). Também o crédito de IMI é garantido
por um privilégio creditório especial que incide sobre o imóvel que lhe dá o
respetivo crédito.

(4) Os créditos do Estado sobre a sisa (o IMI, o IMT, imposto


municipal sobre as transações, em caso de transmissão onerosa de
prédios) e o imposto sobre sucessões e doações quando incidam sobre
bens imóveis.

(5) Créditos da Segurança Social, art. 205.º, privilégio imobiliário


geral.

(6) Os créditos fiscais, que resultam de IRS e de IRC, art. 111.º CIRS
e art. 116.º CIRC.

c) Concurso de créditos privilegiados.

Quando confrontados os privilégios creditórios com eventuais direitos de


terceiros, aparece o problema do caráter oculto destes privilégios. Quanto a
isto, desde logo no que toca ao confronto entre os privilégios mobiliários com
direitos de terceiro, o que vem a lei dizer é que prevalece sempre o
primeiramente constituído (art. 749.º, que diz que o privilégio mobiliário geral
não é oponível a terceiros.

19
Foi também colocado este acórdão do STJ no material de apoio.

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d) Concurso entre privilégios e garantias reais de terceiros.

Quanto aos especiais, diz o art. 750.º que salvo disposição em


contrário, no caso de conflito entre o privilégio mobiliário especial e um de
terceiro, prevalece o primeiramente constituído. Por exemplo, se há um
privilégio mobiliário sobre determinado bem móvel e que sobre esse mesmo
bem móvel incide um penhor, prevalece o primeiramente constituído (sabendo
nós já que a própria publicidade se faz pela apreensão da coisa).

Neste caso, o conflito entre um privilégio creditório especial e um


qualquer outro direito de terceiro, eles só são oponíveis aos direitos que se
vierem a adquirir posteriormente sobre os mesmos bens. E, mesmo assim,
pode pôr-se o problema do caráter oculto, porque mesmo quando o credor
adquire um determinado direito não tem conhecimento da existência do penhor
e pode estar a aceitar uma garantia que acaba por claudicar depois perante um
privilégio primeiramente constituído.

Vimos já que o art. 204.º do CRCSS prevê um privilégio mobiliário geral


que acabaria por prevalecer relativamente ao penhor ou outras garantias
mesmo que anteriormente constituídas, mas dado o ataque que isso
representa à confiança dos credores e à própria concessão de crédito, tem-se
entendido que esta norma, na parte em que se refere à prevalência, é
inconstitucional, não devendo admitir-se tal solução. Isto tem que ver também
com as alterações que foram feitas no Código Civil nos privilégios creditórios
imobiliários.

Já quanto aos privilégios imobiliários, diz o art. 751º que “os privilégios
imobiliários especiais são oponíveis a terceiros que adquiram o prédio ou um
direito real sobre ele e preferem à consignação de rendimentos, à hipoteca ou
ao direito de retenção, ainda que estas garantias sejam anteriores”. Isto
significa que, desde logo, se existe um privilégio imobiliário incidente sobre um
determinado bem imóvel, esse privilégio opõe-se desde logo a quem venha a
adquirir um direito real sobre a coisa (imaginando que um terceiro vem a
adquirir a coisa, o privilégio prevalece sobre o terceiro, podendo o credor com
garantia real executar o bem no património do terceiro, aliená-lo e pagar-se
com preferência aos restantes credores).

Em segundo lugar, prevalecem também sobre as restantes garantias,


nomeadamente a hipoteca ou o direito de retenção, ainda que sejam garantias
anteriores.

117
2021/2022 MCJF Cristiana Sousa

Este artigo 751.º, na redação que tem hoje, resulta de uma alteração
que foi feita em 2003 e o legislador refere-se expressamente e tão só aos
privilégios creditórios imobiliários especiais, porque na versão originaria referia-
se genericamente aos privilégios imobiliários, quer gerais, quer especiais. Claro
que o legislador não contava com os imobiliários gerais, pois vem dizer que
todos os imobiliários são especiais. Mas vimos que depois foram criados
privilégios imobiliários gerais em legislação extravagante. E naturalmente
perguntava-se: esses criados em legislação extravagante, que são também
gerais, prevalecem ou não sobre garantias anteriormente constituídas? Havia
posições que diziam que sim, na medida em que a lei não distinguia. O
Tribunal Constitucional, precisamente atendendo ao caráter oculto destas
garantias que não estão sujeitas a registo e que violavam a confiança dos
respetivos credores e prejudicava, em última análise, o próprio comércio
jurídico e as possibilidades de financiamento, acabou por considerar que,
alargando esta norma a todos os privilégios, sendo eles gerais ou especiais,
seria inconstitucional e desprotegeria a confiança do credor. Por isso, o
legislador teve naturalmente o impulso de alterar esta regra, tendo estabelecido
expressamente que o art. 751.º só se aplica aos privilégios imobiliários
especiais. Portanto, os privilégios imobiliários gerais que existem não
prevalecem sobre as garantias anteriormente constituídas, tendo de se lhes
aplicar a regra que aplicamos aos mobiliários e dizer que, em regra, não são
oponíveis a terceiros. Trata-se do Ac. do TC 362/2002 e do Ac. TC 363/2002,
que se referem a esta questão do art. 751.º, considerando-o inconstitucional se
aplicável também aos privilégios imobiliários gerais.

Quanto à extinção dos privilégios, aquilo que a lei faz é dizer que eles
se extinguem pelas mesmas razões por que se extingue a hipoteca, remetendo
para o art. 730.º da hipoteca, e também faz depois no art. 753.º uma remissão
genérica para as regras da hipoteca.

e) Regime Executivo.

Quanto à execução singular, diz o art. 788.º CPC, a propósito da reclamação


de créditos, que não é admitida a reclamação do credor com privilégio creditório geral
(mobiliários ou imobiliário) nas situações que aí se descrevem. Nestas hipóteses
admitidas no n.º 4, quando existem créditos ou garantidos ou privilegiados e há uma
execução individual, os credores são chamados a reclamar os seus créditos e são

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2021/2022 MCJF Cristiana Sousa

pagos com preferência aos credores comuns. Aqui, o que a lei diz é que não permite
ao credor com privilégio creditório geral reclamar nestas situações, pretendendo
proteger o exequente, dando-lhe algum incentivo para requerer a execução, na
medida em que muitas vezes não se sabe se ou quando existem estes privilégios.
Note-se que esta ressalva não se aplica aos privilégios creditórios dos trabalhadores,
podendo eles reclamar.

Outra norma para favorecer o exequente é o art. 796.º/3 CPC, em que se


reserva uma parte do produto da venda para o credor exequente à custa do credor
com privilégios creditórios gerais. Graduam-se os respetivos créditos, se houver
garantidos pagam-se primeiro, mas depois do crédito que seria pago ao credor com
privilégios creditório geral, reserva-se uma parcela até às 250UC para entregar ao
exequente, ou seja, até esse valor ele paga-se com preferência ao credor com
privilégios gerais.

f) Regime Insolvencial.

Quanto aos privilégios existentes e àqueles que forem criados, alguns


privilégios creditórios extinguem-se com o início do processo de insolvência (art. 97.º
CIRE).

Os privilégios creditórios gerais (mobiliários ou imobiliários) de que forem


titulares Estados e as autarquias locais ou instituições de segurança social, extinguem-
se com a declaração de insolvência (assim, estão de fora os privilégios de que são
titulares os trabalhadores). Ainda, na al. b), fala daqueles privilégios de que estes são
titulares, vencidos antes dos 12 meses da declaração de insolvência. Vimos já que o
art. 98.º concede o privilégio mobiliário geral ao requerente.

Quanto aos privilégios que se mantêm, vimos que se forem gerais, entendemos
que são créditos privilegiados, não sendo verdadeiras garantias reais. Se forem
especiais, são verdadeiras garantias reais. Esta distinção tem importância também
para a posterior graduação dos créditos garantidos (art. 174.º CIRE) e privilegiados
(art. 175.º CIRE) na insolvência. Mesmo se houver um privilégio imobiliário e uma
hipoteca, prevalece o privilégio imobiliário sobre a hipoteca, só estando fora aqueles
que se extinguem.

119
2021/2022 MCJF Cristiana Sousa

15. A Consignação de Rendimentos.

a) Noção e caraterização.

Vem regulada nos artigos 656.º e ss. deixamo-la para o fim das garantias pois
também há uma remissão para o regime da hipoteca.

O que está em causa é que a garantia dá prevalência ou preferência de se


pagar relativamente aos outros credores, não pelo valor do bem sobre que incide a
garantia, mas sobre os seus rendimentos. Diz então o art. 656.º que o cumprimento da
obrigação, ainda que condicional ou futura (pode servir para garantir dívida sob
condição ou dívida futura) pode ser garantido mediante a consignação de rendimentos
de certos bens imoveis ou de certos móveis sujeitos a registo (também se permite a
consignação de determinados direitos de crédito). Assim, esta garantia pode incidir
sobre o rendimento de determinados imoveis, ou móveis sujeitos a registo e ainda
sobre o rendimento de determinados créditos.

Esta garantia, apesar de a qualificarmos como verdadeira garantia real, tem um


modo de funcionamento diferente das outras garantias, na medida em que a execução
das outras garantias depende de um incumprimento por parte do devedor, já esta
garantia tem também uma função solutória, ou seja, a canalização dos rendimentos de
determinada coisa para o credor faz-se não aquando e tão-só do incumprimento da
obrigação, mas tem uma eficácia solutória, sendo uma forma de ir amortizando o
próprio capital e os juros devidos, o próprio credor pode reter o rendimento das coisas
como pagamento dos juros ou do capital.

Por esta razão, há quem diga que pode não ser uma verdadeira garantia real,
aproximando-se mais da datio pro solvendo, forma de extinção das obrigações
prevista no art. 840.º CC, que diz que se o devedor efetuar uma prestação diferente da
devida para que o credor obtenha mais facilmente, pela realização do valor dela, a
satisfação do seu crédito, este só se extingue quando for satisfeito e na medida
respetiva. Repare-se: o devedor aqui entrega os rendimentos como forma de o credor
ir satisfazendo o seu crédito. Temos assim uma figura aproximada. Esta datio pro
solvendo é diferente da dação em cumprimento, em que o devedor, por acordo com o
credor, entrega coisa diferente da devida e fica exonerado. Na datio pro solvendo não
se entrega uma coisa e extingue-se a dívida, mas sim entrega-se uma coisa para que
com ela o credor possa satisfazer mais facilmente o seu crédito, por isso extingue-se
na medida em que for satisfazendo o seu direito. Podemos estabelecer um paralelo e
dizer que não estamos aqui perante uma verdadeira garantia real, mas sim perante
uma dação pro solvendo. Mas é errado. Dizer isso: se tem um funcionamento e

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2021/2022 MCJF Cristiana Sousa

eficácia diferente, no entanto, enquanto garantia real tem os mesmos predicados que
as outras garantias reais: a preferência e a sequela, sendo este direito oponível a
terceiros. Ao contrário da dação em função do cumprimento, que tem simples efeitos
obrigacionais, não sendo oponível a qualquer terceiro que venha a adquirir direitos
sobre a coisa. Assim, apesar das semelhanças, devemos considerá-la verdadeira
garantia real.

Diferente é também a consignação de receitas. A afetação ou canalização de


um conjunto de receitas para a satisfação de determinadas obrigações, mas mais uma
vez com eficácia meramente obrigacional. Isto nada tem a ver com garantias reais,
para a constituição da garantia exigem-se requisitos de forma e publicidade que aqui
não são respeitados, não tendo qualquer eficácia relativamente a terceiros.

b) A legitimidade.

Pode tratar-se de bens do próprio devedor ou de bens de terceiro (pode o


terceiro também um garante e afetar rendimentos de bens ao cumprimento de
determinada obrigação). Aqui a legitimidade exigida não é para alienar os bens, mas
exige-se sim para alienar ou onerar os respetivos rendimentos. Repare-se: um
proprietário tem legitimidade tanto para alienar ou onerar os bens de que é
proprietário, mas um usufrutuário terá legitimidade apenas para afetar os rendimentos
dos bens e não para alienar ou transmitir a propriedade. Para constituir um direito de
hipoteca sobre determinado bem, o usufrutuário não o pode fazer, mas para constituir
um direito a ser autor desta consignação de rendimentos, quer o autor quer o devedor
têm que ter apenas legitimidade para dispor dos rendimentos consignados. Assim, não
se exige que tenha legitimidade para dispor dos bens. Aplica-se o art. 760.º relativo à
hipoteca.

Esta consignação é as mais das vezes voluntária, por contrato ou ato unilateral,
nomeadamente através de testamento, podendo ser também judicial. Há aqui um caso
de consignação judicial no âmbito da execução, art. 803.º CPC, que se traduz em que
entre o momento da penhora e o da venda judicial, o exequente pode requerer ao
tribunal que em vez da venda judicial lhe sejam consignados os rendimentos de
determinada coisa. O tribunal pode, obedecendo a determinados requisitos, considerar
essa mesma consignação. Diz o art. 803.º que enquanto os bens penhorados não
forem vendidos ou adjudicados, o exequente pode requerer ao agente de execução
que lhe sejam consignados os rendimentos dos imoveis ou de móveis sujeitos a
registo em pagamento do seu crédito. Tem de ser ouvido o executado, sendo a

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2021/2022 MCJF Cristiana Sousa

consignação de rendimentos efetuada se ele não requerer que se proceda à venda


dos bens (pode pretender, ainda assim, que o bem seja alienado, sendo que aí o
agente de execução não pode proceder à execução).

A consignação pode incidir sobre rendimentos dos bens imóveis ou sobre


rendimentos dos bens móveis. Em princípio, a consignação está sujeita a um termo,
faz-se por um determinado prazo. Quando se trate de bens imoveis, a consignação de
rendimentos não pode exceder o prazo de 15 anos, nos termos do n.º 2 do art. 659.º.

c) O objeto.

O objeto da consignação são os rendimentos de imoveis ou móveis sujeitos a


registo.

d) A forma.

O ato da consignação deve constar de escritura pública, de documento


particular autenticado ou de testamento, se respeitar a coisas imóveis, e de escrito
particular quando recaia sobre móveis (art. 660.º).

e) A publicidade.

A consignação está sujeita a registo, salvo se tiver por objeto os rendimentos


de títulos de crédito nominativos. Sejam bens imóveis ou móveis sujeitos a registo, é
necessário regista a existência da garantia no registo predial no caso de bens imoveis
e no registo comercial ou IMT no caso de bens móveis. Se se tratarem se créditos
nominativos, créditos titulados, não é necessário proceder ao registo, pois a
publicidade faz-se no próprio título.

f) Espécies.

A lei dá várias possibilidades: os bens ou ficam no poder material do próprio


concedente; ou do concessionário (do credor garantido); ou no poder de um terceiro.
O que diz o artigo 661.º é que na consignação é possível estipular que continuem em
poder do concedente os bens cujos rendimentos são consignados. Se continuam no

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poder do concedente, ele tem de entregar os respetivos rendimentos ao credor


cessionário.

Depois os bens podem passar para o poder do credor, que fica na parte
aplicável equiparado ao locatário, sem prejuízo da faculdade de, por seu turno, os
locar. Se o bem é entregue ao credor garantido, ele fica na posição de locatário, e ou
ele próprio usa a sua atividade de imóvel, ou dá-o em locação, recebendo o valor da
respetiva renda, mas em qualquer das hipóteses goza dos rendimentos da respetiva
coisa. Neste caso tem, obviamente, que prestar contas ao concedente acerca dos
rendimentos concedidos.

Depois, pode ficar em poder de terceiro quer a título de locação (tendo de


pagar a renda ao credor) ou por qualquer outro título, ficando o credor com direito de
receber os respetivos frutos ou rendimentos.

Em qualquer destas hipóteses, aquele que ficar com o poder dos bens deve
prestar as respetivas contas quer ao concedente, quer ao credor.

Se esses bens, diz o art. 663.º, ficarem em poder do credor, este credor tem
determinadas obrigações: deve administrá-los como um proprietário diligente e pagar
as contribuições e demais encargos das coisas, um pouco à semelhança daquilo que
vimos no penhor. Só pode livrar-se dessas obrigações renunciando à respetiva
garantia.

g) O prazo.

h) Modalidades.

i) Destino da consignação na venda executiva.

j) Extinção.

Quanto à extinção, mais uma vez a remissão para o regime da hipoteca, com
exceção da questão da prescrição. Há ainda uma remissão genérica quanto aos
privilégios creditórios no art. 665.º para o regime da hipoteca.

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l) O regime insolvencial.

Esta figura da consignação de rendimentos não é muito utilizada na prática, e à


partida estranhamente. Isso tem justificação porque é uma garantia fraca, na medida
em que cede, desde logo, perante uma execução individual em caso de penhora: em
caso de penhora, cessa a consignação de rendimentos (art. ?). Em caso de execução
individual, com a penhora cessa a consignação de rendimentos.

Quanto ao regime insolvencial nada se diz, mas o que se tem admitido é que
se cessa na execução individual, também cessará em caso de execução coletiva,
portanto nesse sentido a consignação de rendimentos cessa também perante o início
do processo de insolvência, e por isso justifica a fragilidade desta garantia e também
que o respetivo credor recorra em regra a outras garantias e não queira estar sujeito a
esta fragilidade da consignação de rendimentos.

124
2021/2022 MCJF Cristiana Sousa

18. A Penhora

A penhora ocorre no âmbito de uma ação executiva. Em termos processuais, é


uma apreensão judicial dos bens do executado que estão afetados à garantia do
crédito, à garantia da obrigação exequenda. Pode ser qualquer bem do património do
respetivo devedor, obviamente bens sujeitos a penhora (sabemos que há bens
absoluta ou relativa ou parcialmente impenhoráveis).

No fundo, coloca-se aqui a questão de saber se pode ser qualificada como


verdadeira garantia real ou apenas como uma figura similar. Quando vemos as
funções da penhora, chegamos à conclusão de que no plano substantivo ela também
funciona quase como uma garantia, ou seja, atribui ao respetivo credor exequente,
que promove a execução, o direito de se pagar com preferência aos restantes
credores sobre o valor da coisa que foi executada. Se em termos processuais
representa a mera apreensão de um determinado bem, em termos substantivo atribui
ao exequente preferência na satisfação do seu crédito sobre os bens que são objeto
da penhora.

Apesar de podermos eventualmente qualificá-la pelo menos com uma garantia


similar às garantias reais, é também uma garantia imperfeita, porque também ela
cessa em caso de insolvência. Em caso sede insolvência, cessam todas as penhoras
que tenham sido decretadas e executadas pelo próprio tribunal. Assim, mesmo que a
possamos qualificar como garantia real – e há autores que não consideram que o seja,
por funcionar de maneira diferente das garantias reais -, é com esta limitação. Se bem
que esta limitação também não é impeditiva da qualificação de determinadas garantias
como reais, porque vimos já que há muitas garantias que cessam, por exemplo os
privilégios creditórios gerais que em caso de insolvência muitos deles cessam. Por
exemplo, nas hipotecas judiciais não se poe em causa a sua natureza de garantias
reais e no entanto algumas delas decaem perante o início do processo de insolvência.
Assim, não é isto um impedimento à consideração da penhora como garantia real,
sendo-o mais o modo de funcionamento, porque ela não funciona como as restantes
garantias.

Em princípio, todos os bens do devedor suscetíveis de penhora respondem


pelas suas dividas e podem, portanto, ser penhorados.

A penhora insere-se no âmbito de uma ação executiva: aquando do


incumprimento, o respetivo credor tem que munir-se de um título executivo ou
começar com uma ação declarativa de onde obtenha uma sentença como título

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2021/2022 MCJF Cristiana Sousa

executivo e depois recorrer à ação executiva que vem então regulada no CPC nos
arts. 735.º e ss.

Se estivermos perante bens penhoráveis, pode proceder-se à penhora, que


significa exatamente a apreensão judicial desses mesmos bens. Repare-se que para
essa apreensão funcionar ou dar prevalência ao exequente na venda da coisa, há
desde logo que chamar à ação os outros credores que tenham sobre a coisa alguma
garantia. Imagine-se que se penhora determinado crédito que é objeto de hipoteca:
tem de se chamar o credor hipotecário para que possa na execução reclamar o seu
crédito e se possa pagar com preferência mesmo ao exequente.

Quando se efetua a penhora é necessário dar-lhe alguma publicidade, sendo


efetuada a penhora de forma diferente consoante o bem apreendido. Se se tratar de
bens imóveis, tem de se fazer a comunicação eletrónica à conservatória do registo
predial. No caso de móveis, tem de haver a efetiva apreensão dos bens móveis não
sujeitos a registo, retirando-a da disponibilidade material do devedor e concedendo a
um depositário, normalmente o agente de execução. Quanto à penhora de direitos, ou
se apreende o título de crédito, ou então, se não são dívidas tituladas, tem que se
notificar o devedor ou a instituição de crédito de que o direito em causa fica à ordem
do agente de execução.

Quanto à penhora de estabelecimentos comerciais, esta é feita através de um


auto nos termos do art. 782.º.

Quanto aos efeitos e à função da penhora, desde logo esta tem uma função de
individualizar os bens que estão sujeitos a execução. Através da ação executiva, o
credor exequente pretende que certos bens sejam alienados para que com o seu
produto possa satisfazer o seu direito no caso de incumprimento por parte do devedor,
e a penhora tem desde logo a função de individualizar, dentro do património do
devedor, os bens que respondem por aquela dívida. É a partir desse momento que a
penhora passa a incidir sobre bens determinados, sendo que antes o credor
exequente via o sei direito ser garantido com todo o património do devedor, passando
agora, depois da penhora, a ter a garantia a incidir sobre determinados bens, tendo
esta função individualizadora. Por isso é que se diz que a penhora tem uma função de
garantia, porque ela confere ao credor exequente o direito de ser pago com
preferência a todos os restantes credores que não tenha garantia real anterior sobre o
mesmo bem, sobre o valor desses mesmos bens. Assim, no plano substantivo tem os
mesmos atributos dos direitos reais, conferindo-lhe a prevalência sobre os restantes
credores, da mesma forma que a partir da apreensão essa passa a ser oponível a

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todos os que vierem a adquirir determinados direitos sobre os bens penhorados. Por
exemplo, no caso dos bens móveis não sujeitos a registo, a apreensão material dá
publicidade e impede a transferência da respetiva coisa, passa a ser oponível a quem
vier a adquirir direitos sobre ela. No caso do registo de bens imoveis, fica lá a penhora
regista e quantio a quem venha a adquirir direitos sobre o imóvel, a penhora é-lhe
oponível. Não é que exista uma situação prática de total indisponibilidade, a
indisponibilidade aqui significa uma indisponibilidade material no caso dos bens
móveis e, no caso dos imoveis, apesar de o proprietário poder continuar a aliená-los,
os direitos que venham a existir são inoponíveis.

Tem também uma função conservatória, porque se o proprietário perde os


poderes de gozo sobre as coisas entregues no caso dos bens móveis, passa o
respetivo credor exequente a ter não uma disponibilidade, mas a garantia de que o
seu crédito será satisfeito sobre aqueles bens, havendo no fundo uma função de
conservar a integridade dos bens para permitir a satisfação do crédito. No fundo, esta
indisponibilidade quer absoluta, quer relativa, quer material, quer meramente jurídica,
tem também esta função de conservar a sua apetência para a satisfação do direito do
credor.

Tem assim uma função de individualização dos bens, uma função de garantia e
uma função conservatória.

Relativamente à extinção da penhora, aplicam-se também analogicamente os


arts. 730.º relativamente à hipoteca quando incida sobre bens imóveis ou móveis
sujeitos a registo e o art. 777.º relativo ao penhor quando incida sobre bens móveis.

Quanto à natureza da penhora, será que se trata de verdadeira garantia real?

Há doutrina que entende que não, nomeadamente MIGUEL TEIXEIRA DE


SOUSA e ALMEIDA COSTA. MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA defende que a penhora
não é um direito real de garantia, uma vez que a sua função é meramente
conservatória, não tendo qualquer função de garantia. Também ALMEIDA COSTA diz
não se tratar de uma garantia real, mas de um simples ato processual que visa criar
indisponibilidade dos bens executados mediante a produção dos mesmos efeitos
substantivos das garantias reais, portanto, não seria uma verdadeira garantia.

Já MENEZES LEITÃO integra a penhora no âmbito das garantias reais.

Posição intermédia é a de PESTANA VASCONCELOS, com a qual


concordamos. Segundo o autor, não há nenhum inconveniente em incluir a penhora
dentro das garantias reais, embora numa categoria à parte, tratando-se não de uma

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verdadeira garantia real, mas de uma figura com efeitos similares às garantias reais,
que por um lado confere prevalência ao respetivo credor exequente, mas que cessa
em caso de insolvência, portanto, a ser uma garantia real, seria uma garantia
imperfeita. Além disso, o próprio mecanismo de funcionamento dela é diferente do
mecanismo que vimos para as restantes garantias gerais, ou seja, inverte os termos:
nas restantes garantias reais, a garantia existe, há incumprimento e recorre-se à
execução; aqui, recorre-se à execução, há penhora e a garantia passa a existir. Tem
assim este cunho processual, mas em termos de efeitos substantivos produz efeitos
similares.

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19. O recurso à titularidade de um direito com função de garantia:


Referência a algumas dessas figuras20.

Não correspondendo às garantias reais, significam estas figuras um reforço


qualitativo da probabilidade de satisfação do crédito.

Algumas dessas garantias recorrem ao estabelecimento da propriedade com


uma função de garantia e, neste âmbito, pode parecer à partida que encontramos so
figuras novas, mas encontramos já algumas figuras contempladas no Código Civil e
que acabam por não ser utilizadas com função de garantia.

19.1. A reserva de propriedade.

a) Noção e caracterização.

Na compra e venda com reserva de propriedade, sendo a compra e


venda um contrato real quanto aos efeitos, a propriedade transfere-se por mero
efeito do contrato (art. 408.º).

O que acontece aqui é que, uma vez transferida a propriedade, o


contrato de compra e venda não é suscetível de resolução, mesmo em caso de
incumprimento pelo comprador do pagamento do respetivo preço (art. 886.º).
no caso dos contratos bilaterais, uma das possibilidades do credor geralmente
é o de resolver o contrato perante o incumprimento, mas o caso da compra e
venda é um daqueles em que tal não acontece – claro, com exceções -.

b) O objeto, a forma e a publicidade.

c) O regime da venda com reserva de propriedade em caso de


incumprimento do comprador.

Portanto, uma de duas: ou as partes consagram uma cláusula resolutiva


expressa que dá ao vendedor o direito de resolução em caso de
incumprimento, ou então impedem a condição de que a lei faz depender a não
resolução, que é a transmissão da propriedade, através de uma cláusula de

20
NOTA do ano precedente: As matérias questionáveis em sede de exame escrito ou oral
abrangem apenas os conteúdos até ao momento sumariados. Excluem-se, não sendo por isso objeto de
avaliação, os conteúdos abaixo referenciados (19, 20 e 21).

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reserva de propriedade. O vendedor, apesar de alienar a coisa e como forma


de garantir o seu direito ao preço, reserva para si a propriedade enquanto o
preço não for pago. A propriedade mantém-se na esfera jurídica do vendedor
como garantia da obrigação de pagamento do preço respetivo. A doutrina tem
considerado que esta cláusula é uma espécie de condição suspensiva a que
está sujeita a transferência da propriedade.

Esta cláusula de reserva de propriedade, muito utilizada sobretudo na


compra e venda a prestações, enquanto garantia, foi pelo menos em
determinado momento tao usada que muitas vezes se estabelecia a favor do
financiador e não do próprio vendedor (contrato de mútuo garantido com uma
reserva de propriedade), por exemplo na compra e venda de bens de consumo
duradouros, v.g., o caso da compra e venda de automóveis, em que em vez de
se recorrer à locação financeira ou leasing, continua a ser frequente fazer uma
venda com reserva de propriedade.

19.2. A locação-venda.

A locação-venda vem regulada no art. 936.º.

19.3. A venda a retro.

Esta venda a retro vem regulada no Código Civil, nos arts. 927.º e ss. podemos
perguntar: então, mas se há transferência da propriedade, não há possibilidade de
haver violação da proibição do pacto promissório? Para já, a ideia é a de quem fica
com a possibilidade de resolver a venda, apesar de a propriedade se transferir para o
???, a possibilidade de resolver o contrato é do comprador, resolvendo e readquirindo
novamente a propriedade. A lei, para evitar a usura, vem dizer que a transferência da
propriedade não pode fazer-se por valor superior ao preço pago na compra e venda.
Se ele pagar o valor recebido, e só o valor recebido, pode resolver o contrato.

(…)

Pode acontecer que no momento da celebração do contrato de compra e


venda se faça o contrato por um valor muito inferior ao valor da coisa, o devedor não
tem condições de força negocial para impor outro tipo de solução e acaba por alienar
por um preço inferior e, à partida, sabe o credor que o comprador não vai estar em
condições de naquele prazo vir a resolver a venda, estando a aproveitar-se de uma

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necessidade de concessão de crédito do…, o que vai contra a proibição do pacto


comissório. Havendo aqui uma lacuna, devemos recorrer às regras de integração de
lacunas, ao art. 239.º.

(…)

Quando muito admite-se o pacto marciano e não o comissório, pois outra


solução (…).

19.4. A locação financeira.

19.5. O reporte.

19.6. O Depósito em garantia.

19.7. As alienações em garantia.

a) Cessão de créditos em garantia.

b) Alienação de coisas corpóreas em garantia.

c) Alienação fiduciária em garantia como modalidade dos contratos de


garantia financeira.

131
2021/2022 MCJF Cristiana Sousa

20. A criação de patrimónios autónomos.

21. Outros instrumentos de garantia: compensação; exceção de não


cumprimento; a cessão de crédito em função do cumprimento; crédito
documentário irrevogável; cláusulas de garantia.

132

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