Você está na página 1de 8

SHAMATA E VIPASHYANA

Tulku Urgyen Rinpoche

A frase tradicional é: cultive shamata; treine em vipashyana. O budismo nunca


diz que shamata e vipassana são supérfluos e que deveriam ser ignorados ou colocados
de lado. Nem eu nunca ensinaria isso. Mas existem momentos em que eu
aparentemente deixo shamata um pouquinho de lado. Há uma razão para isso, e esta
razão só é encontrada dentro de um contexto particular.
O contexto geral dos ensinamentos é o de falar para um ser senciente que tem a
experiência de sentir-se atordoado ininterruptamente – um pensamento ou emoção
após o outro como a superfície de um oceano agitado, sem qualquer reconhecimento
da essência da mente. Essa confusão é contínua, sem praticamente nenhuma
interrupção, vida após vida. Dizer para uma pessoa nesta situação que shamata é
desnecessária definitivamente não é o jeito correto de ensiná-la porque a mente desta
pessoa é como a de um elefante bêbado ou a de um macaco louco. Sua mente
simplesmente não fica quieta. Uma mente como essa se formou acostumada ao hábito
de ir atrás daquilo que foi pensado, sem qualquer insight de qualquer tipo. Shamata é
um meio hábil de lidar com este estado. Uma vez que, de certo modo, os pensamentos
confusos se acalmaram é mais fácil reconhecer o insight claro da vacuidade. Deste
modo, nunca é ensinado que shamata e vipashyana são desnecessários.
Os estilos de ensinamentos são adaptados a dois tipos básicos de mentalidades:
uma mentalidade orientada para objetos percebidos e outra mentalidade orientada
para a mente que conhece. O primeiro tipo de mentalidade procura visões, sons,
sabores, texturas e objetos mentais e é instável na natureza de buda. Esta é a situação
com os três tipos de atordoamento: os atordoamentos do objeto, da faculdade dos
sentidos e da percepção, que causam o renascimento em um corpo ordinário. Devido a
este hábito arraigado de ser capturado por um pensamento após o outro nós cruzamos
por um samsara sem fim. Para estabilizar uma mente como esta, primeiramente o
ensinamento precisa mostrar para esta pessoa como se acalmar, como alcançar ou
identificar alguma qualidade estável em meio a agitação. É como o exemplo da água
barrenta: a menos e até que a água esteja limpa, você não consegue ver o reflexo da sua
face. Do mesmo modo, as instruções de shamata são essenciais para os indivíduos que
são carregados pelos pensamentos.
Os pensamentos surgem da nossa cognoscência vazia. Eles não surgem apenas
da qualidade vazia. O espaço não possui nenhum pensamento, tampouco os quatro
elementos possuem. Visões, sons e outras sensações não pensam. As cinco portas dos
sentidos não pensam. Os pensamentos estão na mente e essa mente, como eu tenho
mencionado com frequência, é a união de vacuidade e cognoscência. Se fosse apenas
vazio não haveria jeito algum para os pensamentos surgirem. Os pensamentos surgem
apenas da cognoscência vazia.
Os veículos gerais afirmam que o método de shamata é necessário de modo a
repousar pacificamente. Para neutralizar nossa tendência de constantemente fabricar,
os budas nos ensinaram como repousar sobre um suporte. Ao se habituar a este suporte
nossa atenção se estabiliza, se torna apta a permanecer serena. Neste ponto é muito
mais fácil determinar que a natureza da atenção é cognoscência vazia. Mas por favor
lembre que apenas repousar, meramente descansar na estabilidade da prática de
shamata, não garante o reconhecimento do estado sem véus da qualidade desperta
autoexistente.
Falando de modo geral, a mente possui muitas diferentes características –
algumas boas, algumas más, algumas calmas e algumas indomáveis. Algumas pessoas
se agarram com desejo, algumas são mais agressivas; há tantos tipos diferentes de
atitudes mundanas. Se você deseja que a sua mente se torne quieta e calma ela se
tornará quieta e calma, desde que você pratique o suficiente para tanto. Isto de fato irá
ocorrer – mas este não é um estado liberado.
O processo de se tornar quieto é semelhante ao de uma pessoa aprendendo a
como se sentar ao invés de ficar perambulando atordoada e confusa. Ainda assim, olhar
para essa pessoa a uma certa distância enquanto ela está sentada não oferece
necessariamente nenhuma indicação do seu caráter verdadeiro. E, como você sabe, as
pessoas possuem diferentes personalidades. Uma pessoa poderá ser bastante gentil,
disciplinada e querida, mas enquanto ela estiver simplesmente sentada lá você não
saberá disto. Outra pessoa poderá ser bastante cruel, com temperamento explosivo e
violenta, mas você tampouco saberá disto. Estas características apenas se mostram
quando os pensamentos da pessoa começam a se mover novamente. Quando os
pensamentos se movem, nós somos normalmente capturados pela delusão. Ao mesmo
tempo, nossa natureza é primordialmente livre dos obscurecimentos das emoções e dos
pensamentos. Os pensamentos e as emoções são apenas temporários. O caráter
verdadeiro da mente é o estado desperto auto surgido, o estado realizado por todos os
budas.
As instruções do Dzogchen, Mahamudra e do Caminho do Meio explicam como
que qualquer pensamento que surgir é livre de forma, som, cheiro, sabor, tato e assim
por diante. Todo movimento é vazio, movimento vazio. Embora uma emoção seja vazia,
ainda assim ela parece surgir. Uma vez que a nossa natureza é cognoscência vazia,
movimentos de pensamentos podem ocorrer. Ser arrastado por um pensamento é o
estado de um ser senciente. Ao invés de ser arrastado, reconheça o seu estado básico
como sendo a essência, natureza e capacidade que são os três kayas dos budas.
Permaneça numa naturalidade não fabricada por momentos curtos, por repetidas vezes.
Você pode se acostumar a isso. O curto momento pode se tornar longo. Um instante que
você permaneça nessa naturalidade não fabricada purifica um kalpa de carma negativo.
Um instante de naturalidade transforma um kalpa de carma negativo.
Você precisa apenas permitir o momento da naturalidade não fabricada. Ao invés
de meditar sobre isso, ou seja, de focar nesse ponto, simplesmente permita que esta
naturalidade não fabricada seja de modo natural. Na medida em que você treina desse
modo – e as palavras treinar e meditar soam iguais em tibetano, apenas para brincar
com as palavras – se torna mais uma questão de se familiarizar do que de meditar.
Quanto mais você se familiariza com a essência da mente e menos você medita
deliberadamente sobre ela, mais fácil se torna reconhecê-la e mais simples sustentá-la.
O vislumbre de reconhecer a essência da mente que no início durava apenas
alguns segundos, aos poucos passa a durar meio minuto, depois um minuto, depois meia
hora, depois horas, até que ao final se torna ininterrupto por todo o dia. Você precisa
desse tipo de treinamento. Eu menciono isso porque se o objetivo do treinamento
principal for construir um estado no qual os pensamentos desapareceram e você se
sente calmo e quieto, este ainda é um treinamento no qual um estado particular é
deliberadamente mantido. Este estado é a consequência de um esforço mental, uma
busca. Portanto, este não é o ponto último nem o estado natural original.
A essência nua da mente não é conhecida através de shamata pois a mente está
ocupada repousando na quietude, e a essência da mente permanece sem ser vista. Tudo
o que está sendo feito é não seguir o movimento dos pensamentos. Mas estar deludido
pelo movimento dos pensamentos não é a única delusão; é possível se deludir por
repousar na quietude. A preocupação em estar calmo bloqueia o reconhecimento do
estado desperto auto surgido e bloqueia também o reconhecimento dos três kayas do
estado desperto. Esta calma é simplesmente uma calma do não pensar, da atenção
repousando sobre si mesma, enquanto ainda não reconhece a si mesma.
A raiz do samsara é o pensamento. O dono do samsara é o pensamento. Ainda
assim, a própria essência do pensamento é o darmakaya, não é mesmo? Nós precisamos
treinar em reconhecer essa essência do pensamento - as “quatro partes além das três”.
Treinar deste modo não é uma ação de meditar sobre algo, mas é um “se habituar a”.
Tampouco não é como memorizar, como aprender alguns versos decorando-os.
Meditar geralmente significa prestar atenção. Mas neste caso nós precisamos
treinar em estar livres do observador e do que estiver sendo observado. Em shamata há
um observador e um objeto observado. Então, honestamente, shamata também é um
treinamento em bloquear a vacuidade. Shamata torna a mente acostumada e ocupada
em estar quieta. Algo está sendo sempre mantido. Este tipo de estado é produto de uma
técnica. Nós aplicamos um monte de esforços para fabricar um certo estado mental. E
qualquer estado que seja produto de um treinamento não é a liberação. Simplesmente
estar apto a permanecer quieto não faz com que a confusão colapse.
O oceano pode parecer completamente quieto se você conseguir de alguma
forma acalmar as ondas, mas dentro da água todo o tipo de sedimento ainda está
flutuando. A água pode estar livre das ondas, mas não está livre dos resíduos. Do mesmo
modo, durante um estado sustentado de quietude as tendências habituais dos oitenta
estados mentais inatos, os cinquenta e um eventos mentais e todas as emoções
virtuosas e não virtuosas estão todas presentes de modo latente. Elas podem não estar
óbvias, podem não estar ativas, mas elas ainda não estão liberadas.
O que eu estou criticando aqui é a ideia de que a quietude da mente livre de
pensamentos é preferível incondicionalmente ou um objetivo em si mesma. O
ensinamento do Buda diz que ela não é; a quietude em si mesma não é a liberação. Ao
buscar isto, se pode alcançar longos, longos períodos de completa tranquilidade, mas
eles não são a mesma coisa que a verdadeira liberação.
O estado desperto de rigpa, por outro lado, é amplamente aberto. Nada está
fixado nele, como o oceano no qual nenhum sedimento permanece. Quando você
mistura terra com água, a água fica suja. Do mesmo modo, você não atinge a iluminação
apenas com shamata. Você precisa de vipashyana, a qualidade de ver claramente que é
inerente a vacuidade além da mente conceitual.
Em todos os níveis da prática budista esses dois precisam andar juntos: quietude
e insight, shamata e vipashyana. No começo da prática de shamata, pode-se utilizar
tanto uma pedra quanto a respiração como objeto da atenção, mas neste caso há
sempre uma dualidade: a divisão entre o objeto da atenção e a atenção plena ela mesma
– aquilo que mantém o olho no objeto que estivermos focando e do qual não
deveríamos nos distrair. No Dzogchen, por outro lado, você é introduzido ao estado
despido do darmakaya desde o princípio. No contexto do Dzogchen é dito algumas vezes
que a quietude não é absolutamente necessária. Isso é válido apenas para as pessoas de
capacidade superior, não é válido para todo mundo. Não há um ensinamento geral do
Dzogchen que dispense a prática de shamata, de modo algum. No Dzogchen, no
Mahamudra e no Caminho do Meio nunca é ensinado que você não precisa de shamata;
é apenas a limitação mencionada mais acima que deve ser evitada.
Então, você começa com shamata e continua até que você se torna apto a
permanecer razoavelmente estável. Deste ponto é muito mais fácil ver a sua essência
nua. É como querer ver a sua face refletida numa poça d’água – não ajuda muito mexer
continuamente na superfície da água. Pelo contrário, você precisa permitir que a água
fique quieta e plácida. Para ganhar o insight de vipashyana é necessário primeiro
permitir a mente repousar de modo que a sua essência possa ser vista claramente. No
sistema geral do budismo isso é indispensável.
A medida que você progride pelos veículos você descobre mais profundamente
os significados de shamata e de vipashyana. Por exemplo, existe a shamata e vipashyana
ordinária e a extraordinária. De modo último, é dito que a mente búdica é a união de
shamata e de vipashyana, mas esse tipo de shamata e de vipashyana não é a do tipo
ordinário, conceitual de uma quietude induzida, seguida pelo atingimento de um insight.
O nome usado neste ponto é shamata e vipashyana que deleitam os tathagatas. Em
outras palavras, eles estão agraciados com este tipo de prática porque é sem máculas.
Palavras similares, significados diferentes: shamata e vipashyana ordinária e
extraordinárias são tão diferentes quanto o céu e a terra.
Mais uma vez, não pense que shamata e vipashyana são desnecessários. Em
rigpa, a estabilidade intrínseca é shamata e a qualidade desperta é vipashyana. A
estabilidade livre de pensamento é a shamata última. Estar livre do pensamento
enquanto reconhece sua essência é a união indivisível de shamata e de vipashyana que
deleitam os tathagatas.
O Dzogchen também usa as palavras shamata e vipashyana, mas neste ponto
não se refere mais ao resultado da prática. O Tesouro do Darmadatu de Longchenpa diz:
A natureza original, totalmente livre de todos os pensamentos, é a shamata última.
Natural cognoscência, espontaneamente presente como a radiância do sol,
É a vipashyana que é completamente não fabricada e naturalmente presente.

Desta perspectiva Dzogchen, shamata é a qualidade imutável da estabilidade


inata, enquanto que a sensação natural de estar desperto é o aspecto de vipashyana.
Nenhum desses dois foi produzido ou fabricado de qualquer modo. Dizer que shamata
não é necessária refere-se a quietude fabricada pela mente. Quando eu disse
anteriormente para não meditar era no sentido de uma meditação fabricada pela
mente. Foi esse tipo de shamata que eu disse para você parar de fazer.
Ver claramente, vipashyana, é a sua cognoscência vazia, a sua consciência nua
além de crescimento e declínio. Isto possui um enorme significado. No Dzogchen isto se
refere ao verdadeiro reconhecimento de rigpa, enquanto que no Mahamudra isto é
chamado de tatata. Isto ocorre quando o real é reconhecido. Pode ser chamado de
muitas formas, mas em resumo é ver a essência da mente simultaneamente com olhá-
la. “Ver o momento que você olha. Liberar o momento que é visto”. Não há um único
pensamento que pode se fixar nesse estado. Entretanto, depois de um tempo você
descobre que está novamente olhando para algo visto. É neste momento que o
pensamento chega. Então você precisa “se relembrar” e, mais uma vez, imediatamente
o observador desaparece. Relaxe nessa naturalidade não fabricada!
Quando se permanece sem fazer absolutamente nada, há um total deixar ir.
Neste mesmo momento há também uma sensação de estar amplamente desperto; há
uma qualidade desperta que é não produzida.
Simultaneamente com o desaparecimento do pensamento, há uma qualidade
desperta que é como a chama flamejante de uma vela, que existe totalmente por si
mesma. Essa qualidade desperta não precisa ser sustentada pela meditação porque não
é algo que é cultivado. Uma vez que este reconhecimento dura apenas um curto
momento, é necessário que você relembre a si mesmo novamente. Mas francamente,
quão distante está este momento? Quando você levanta seu dedo no ar para tocar o
espaço, quão longe você precisa mover sua mão adiante para encontrar o espaço? Do
mesmo modo, no exato instante que você reconhece a essência da mente, ela é vista no
exato instante que você olha. Não é que em algum momento futuro você a verá ou que
você tenha que continuamente procurar, procurar, procurar por ela. Não há duas coisas
diferentes acontecendo aqui.
O reconhecimento da vacuidade é alcançado no momento que você olha. “Ver
coisa alguma é a visão suprema”. Quando você vê a vacuidade, você não precisa fazer
coisa alguma com ela. A palavra chave aqui é não-fabricado, o que significa que você
não precisa alterá-la de nenhum modo; apenas deixe-a como ela naturalmente é. Neste
momento você estará totalmente “desocupado”; não há nada que você precise fazer
com isso. Em outras palavras, nenhum ato de meditar é necessário neste ponto. Isto é
o que eu quis dizer com “não medite”. Porque no exato momento que você tenta
qualquer coisa para manter ou prolongar este estado natural, isto apenas acarreta em
mais atividade e complexidade, o que não é o que realmente nós precisamos. Nós temos
feito isso de todo o jeito sem parar, por vidas incontáveis.
O darmakaya perfeito é quando se permite que o pensamento repouse. Seres
ordinários caíram sob a influência dos pensamentos, é uma questão de reconhecê-los
ou não. No Dzogchen, a essência é vista no momento em que você olha. Ainda assim,
Darmata não é algo para ser visto. Se fosse, seria um produto da mente.
Os seres sencientes se agarram a este momento. No momento presente, o
passado cessou e o futuro ainda não chegou. Esteja livre dos três tempos; assim não
haverá nada exceto ser vazio. Trekchö é como cortar uma corda; não há nenhum
pensamento conceitualizando o passado, o futuro ou o presente. Livre dos pensamentos
dos três tempos, o seu estado desperto presente e fresco é rigpa.
A shamata da qual eu disse a vocês para estarem livres, no sentido de não
meditarem, é a da paz fabricada mentalmente. É extremamente bom que você tenha
soltado isto. Paz fabricada mentalmente não é o caminho perfeito para a iluminação.
Existência e paz, samsara e nirvana – nós precisamos estar livres de ambos. Este é o
estado perfeito da iluminação.
O estado natural da consciência totalmente despida possui a qualidade de ser
desimpedida; essa é a verdadeira liberdade. Reconheça o momento da consciência
totalmente aberta e desimpedida que não sustenta ou se apoia sobre nada de modo
algum. Esta não é a mera ausência de atividade mental, como ocorre na serenidade
induzida. Essa é a maior diferença. Essa é também a razão principal pela qual shamata
por si mesma não é o caminho verdadeiro para a liberação; shamata precisa ser
combinada com a visão clara de vipashyana em todos os níveis, durante todo o caminho
até a iluminação completa.
O atingimento último através da prática de shamata, com a visão parcial mas não
completa ou clara de vipashyana, que é o reconhecimento da essência da mente, é
atingir o nirvana de um arhat, mas não é a iluminação verdadeira e completa de um
buda. Nós deveríamos sempre aspirar pela iluminação completa que não reside nem no
samsara nem no nirvana.
É também possível ter um estado meditativo sustentado de serenidade e ainda
assim não estar liberado. Aqui segue uma história sobre isso. Uma vez eu estava com o
meu pai na casa de um benfeitor. O homem que nos trouxe o chá era um meditante.
Enquanto ele carregava o chá pela porta, ele de alguma forma repentinamente congelou
com a chaleira de chá suspensa no ar. Um dos garotos quis chamá-lo, mas meu pai disse:
“Não, deixe ele – se ele deixar cair a chaleira de chá no chão vai causar uma tremenda
sujeira; apenas deixe-o como está”. Ele permaneceu ali por horas, e quando o sol já
estava se pondo meu pai gentilmente chamou o seu nome no seu ouvido. Lentamente
ele recobrou os seus sentidos. Alguém disse: “O que aconteceu?”. Ele respondeu: “O
que você quer dizer com ‘o que aconteceu?’. Eu estou trazendo o chá”. Eles disseram a
ele: “Isso foi pela manhã, agora já é de tarde”. Ele disse: “Não, não, é agora mesmo, eu
acabo de vir com o chá”. Ele foi questionado mais sobre o que ele experenciou, e disse:
“Eu não experenciei absolutamente nada, era totalmente vazio, com nada para
expressar ou explicar, apenas totalmente quieto”. Quando lhe foi dito que tantas horas
haviam se passado ele ficou bastante surpreso, porque para ele era como se nenhum
momento tivesse passado.
O ponto chave aqui neste contexto é não meditar. Isso não significa que você
tenha que desprezar todos estes anos de treinamento que você dedicou a meditação.
Tal treinamento foi benéfico no que se refere a ter menos pensamentos. Porém, não é
benéfico continuamente almejar um estado mental especial, livre de pensamentos. Ao
invés disso, simplesmente permita a você mesmo repousar numa naturalidade livre de
qualquer fabricação. Esta naturalidade não fabricada é, em si mesma, o remédio para
os pensamentos ou as emoções.
A mente é algo espantoso. É dito ser como um tesouro que realiza desejos, uma
arca do tesouro de qualquer coisa possível. Onde quer que você coloque a mente ela
pode produzir (esta experiência). O modo verdadeiro de ir além da quietude é o de,
sempre que você experenciar quietude da ausência de pensamentos e emoções,
reconhecer aquele que está experenciando – o que é isso que sente a quietude, o que é
isso que permanece. Nesse exato instante se torna transparente; em outras palavras, a
fixação na quietude se desintegra.
Quando shamata é destruída ou se desintegra há então a verdadeira vacuidade,
uma vacuidade natural. Esta vacuidade primordial é o darmakaya indivisível do
sambogakaya e nirmanakaya. É a natureza dos três kayas – um instante da essência da
mente. Shamatha macula os três kayas com trabalho. Os três kayas eles mesmos são
totalmente sem esforço.
Nossa aspiração deveria ser: “Sem nos confundirmos na experiência do samsara,
sem repousar na paz quiescente do nirvana, possamos liberar todos os seres”. Através
do reconhecimento da essência da mente, nós com certeza nos liberaremos das
emoções perturbadoras que criam mais samsara. Mas atingir a paz da ausência das
emoções perturbadoras não é o suficiente para ir além do nirvana. Portanto, firme a
decisão de ir além de ambos.
Há um jeito de ter cem por cento de certeza que a sua prática espiritual vai na
direção correta, que é apenas o das três excelências. Procure se lembrar sempre, não
importa qual prática você esteja fazendo, de começá-la com refúgio e bodicita. Não
importa o quão habilidosa for a sua prática de se manter livre de conceitos; apenas
treine no melhor da sua habilidade durante a parte principal da sessão. Sempre finalize
dedicando o mérito para todos os seres sencientes e formulando aspirações puras. Unir
a sua prática espiritual com estas três excelências garante que você estará andando na
direção correta.
De outro modo, nós podemos facilmente estar “meditando” de uma maneira
que não necessariamente leva a verdadeira liberação. Existem alguns estados no
samsara chamados de “reinos da não-forma”. Muitas pessoas cultivam as causas para
os reinos da não-forma como sendo a verdadeira prática de meditação. Entretanto,
cultivar a prática deste modo os levará a nada além do que uma visita prolongada a este
estado. Sempre que algo é deliberadamente mantido na mente, aos poucos vai se
tornando mais fácil porque a mente assume o hábito de fazer deste modo. Ao final, o
praticante acredita que este estado é totalmente sem esforço.
Pode-se empregar esforço de modo prolongado para repousar na ideia de
vacuidade, ou apenas repousar na sensação de estar claro e quieto. Então “atinge-se”
este estado mas devido ao fato de este estado ser um produto, ao final este estado
desaparece. Amortecido por um reino dos deuses sem forma, você acorda após uma
longa e bela estadia no reino da meditação e descobre que o seu corpo morreu há algum
tempo, em algum ponto do passado. Você agora reconhece: “Eu estou morto, eu não
estou liberado apesar de tudo o que fiz, e toda essa meditação não serviu para nada”.
Neste instante, o ressentimento que você sente devido a futilidade dos seus esforços se
torna a causa direta para o renascimento em algum dos reinos inferiores. Assim, faz uma
tremenda diferença o que neste momento você reconhece como sendo o seu estado
meditativo e com qual motivação você pratica.
Para muitas pessoas, shamata pode ser um modo de prepará-las para o reino da
não-forma. Isto pode também ser simplesmente um aquietar a mente ou imaginar um
estado de vacuidade. Tenta-se repetidamente aquietar a mente, acalmá-la e manter a
ideia de vacuidade sem um real conhecimento sobre o que é isso que está sendo
sustentado. O que nós precisamos é combinar shamata com a visão clara da essência da
mente. Neste contexto, essa visão é chamada de vipashyana e está totalmente além de
qualquer coisa que se fixe e de qualquer coisa a qual se possa fixar. Este é o momento
no qual shamata e vipashyana são uma unidade. Entender este ponto é extremamente
importante.

Trecho extraído de Quintessential Dzogchen – Confusion Dawns as Wisdom. Traduzido do


tibetano e compilado por Erik Pema Kunsang e Marcia Binder Schmidt. Rangjung Yeshe
Publications: Boudhanath, 2006 (pp. 147-60). Traduzido do inglês por Henrique Lemes e
revisado por Lia Beltrão.

Você também pode gostar