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“Fotogramas do Medo” na literatura

portuguesa moderna e contemporânea


“Frames of Fear” in modern and contemporary portuguese literature

Leonardo de Barros Sasaki


Universidade do Porto
DOI: http://dx.doi.org/10.5902/2176148532725

Resumo: O presente artigo pretende, panoramicamente, destacar nomes basilares da


literatura portuguesa moderna e contemporânea pela perspectiva do medo. Em um primeiro
momento, apresentam-se as justificativas do foco na emoção, como tema e como elemento
inerente da criação. A seguir, discutem-se os limites e dificuldades dessa abordagem. Por
fim, a partir de nomes portugueses – mas não só –, desenvolvemos como o medo integra-se
às obras ambivalentemente enquanto causa e efeito do ato de escrita. Ao destacarmos o
medo, sobretudo na contemporaneidade, acreditamos encontrar uma proteção do trânsito
dos afetos e uma resistência à banalização e/ou mecanização da experiência.
Palavras-chave: Literatura portuguesa. Emoções. Medo.

Abstract: This article intends to offer a panoramic view of key names of modern and
contemporary Portuguese literature from a fear perspective. At first, we present the
reasons for the focus on the emotion as a theme and as an inherent element of literary
creation. The limitations and difficulties of such approach are hereafter discussed. Finally,
based on Portuguese names – but not only –, we develop how fear ambivalently integrates
itself to literary works as a cause and effect of writing. Highlighting fear, especially
in contemporaneity, means a protection of the transit of affects and a resistance to
impoverishment and / or mechanization of experience.
Keywords: Portuguese Literature. Emotions. Fear.
“O medo é um fotograma entre outros.”
Luis Quintais.

Didi-Huberman (2016), ao considerar a ideia de “emoções primitivas” em Da-


rwin, acredita que, para além de sua dimensão estritamente biológica evolu-
tiva, o termo “primitivo” poderia ser entendido, no campo das ciências so-
ciais, pela ideia de história cultural, isto é, de como “elas [as emoções] passam,
elas precisam passar, por sinais corporais – gestos – reconhecíveis por todos”
(2016, p. 33). As emoções configurar-se-iam, portanto, enquanto textos par-
Leonardo de tilhados e partilháveis, enquanto um código minimamente comum, inserido
Barros Sasaki em determinados contextos históricos e, consequentemente, em constantes
mutações. E cita, em seguida, Marcel Mauss, para quem as emoções
30
são mais do que simples manifestações, são signos de expressões inteli-
gíveis. Numa palavra, são uma linguagem. Esses gritos são como frases
e palavras. É preciso pronunciá-los, mas, se é preciso pronunciá-los, é
porque todo o grupo pode entendê-los. Mais do que simplesmente ma-
nifestar nossos sentimentos, nós os manifestamos para os outros, uma
vez que é necessário fazê-lo. Nós os manifestamos para nós mesmos ao
exprimi-los para os outros e por conta dos outros. Trata-se essencial-
mente de uma simbologia (apud DIDI-HUBERMAN, 2016, p. 33).

Sobre a importância da dimensão expressiva e interativa-comunica-


tiva das emoções, o psicólogo Richard J. McNally, ao recolher os diferentes
posicionamentos teóricos acerca do medo, sublinha as limitações do modelo
não-intencionalista, biologizantes, por ignorar os qualia, isto é, os traços irre-
dutivelmente subjetivos dos estados funcionais que se sucedem no cérebro
humano. Ele destaca a “tendência de alguns cientistas em igualar estados
cerebrais, detectados por neuroimagens, a emoções em si” (2012, p. 19). Isso
ocorreria porque, sobretudo nos modelos animais, desconsidera-se um fator
diferencial determinante do medo humano: a autorrepresentação. Através
dela, humanos adultos são mais vulneráveis a multiplicar angústias, já que os
medos não se atrelam necessariamente ao instante presente e seus, por assim
dizer, indícios mais materiais: “a capacidade de autorrepresentação permite
que as pessoas projetem-se no futuro e no passado” (McNALLY, 2012, p. 20)1.

1 Tradução nossa de “tendency of some scientists to equate brain states, detected via neuroimaging,
with emotion itself” e “self-representational capacity enables people to project themselves into the
future and into the past”.

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Em outras palavras, existe uma dimensão do medo, cuja abor-
dagem não pode prescindir dos qualia; e esses se fazem conhecer de
forma privilegiada no campo da linguagem por meio dos autorrelatos
– exercícios da dita capacidade humana de autorrepresentação: o relato
de si [self-report] é o melhor método, ainda que passível de falhas, para
perceber-se o qualia do medo (McNALLY, 2012, p. 19). “Fotogramas
Os estudiosos em geral convergem na importância de narrativas do Medo” na
de si para o estudo do(s) medo(s). O geógrafo humanista Yi Fu Tuan, por literatura
exemplo, fala da dificuldade de recuperarmos relatos escritos por aqueles portuguesa
que os experimentaram, de fato, durante os séculos XVI e XVII, através da moderna e
fome, da peste e demais calamidades. Para ele, na altura – e ainda não o contemporânea
seria? –, “ser uma vítima era ser desconhecido” (2005, p. 111). A historia-
dora Joanna Bourke, por sua vez, chama atenção para as disputas quanto 31
à “verdadeira” concepção do medo e às possibilidades de tratamento na
primeira metade do século XX. A querela, em muitos aspectos, ignorou os
relatos pessoais em suas especificidades: em vez de escutarem-se os pa-
cientes sobre a forma como elaboravam e construíam suas dores e fobias,
o medo tornou-se metonímia de contendas acadêmicas por espaços de
poder/influência entre diversos campos do saber – a neurologia, psicolo-
gia behaviourista e a psicinálise, para citar alguns.
O resguardo que um psicólogo, um geógrafo e uma historiadora
fazem em proveito do relato de si – e não o de terceiros – corrobora o in-
contornável aporte que os estudos literários podem trazer para as abor-
dagens do medo em outras áreas do conhecimento, já que “o próprio ato
de narrar altera e formula a ‘experiência’” (BOURKE, 2005, p. 288)2. Está
aí um primeiro lembrete para o trabalho proposto: determinada cons-
trução textual – estilística, imagética, narratológica, rítmica etc. – não
apenas nos dá a ver as emoções, mas também lhes confere uma forma,
uma expressão possível. Em outras palavras, na sequência do que desta-
cou Didi-Huberman (2016), a linguagem desempenha papel importante
para o entendimento da experiência emocional, porque, nela, a emoção
se exterioriza e, a partir dela, no limite, passa a existir.
Ao apelar às artes – não se restringindo apenas à literatura – como
canal de acesso às emoções, os sujeitos ultrapassam as negociações autor/
obra, as quais, em suas consequências últimas, implicariam uma leitu-
ra quase terapêutica de sua produção. No caso específico da poesia, por

2 Tradução nossa de “the very act of narrating changes and formulates ‘experience’”.

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exemplo, uma lírica com dicção intimista, ancorada na experiência pes-
soal, ou até mesmo uma opção pela simulação/hibridização dos gêneros
autobiográficos, como veremos em alguns casos, vai de encontro a essa
lógica ao invertê-la: encontrar no aparentemente mais íntimo, mais nar-
císico dos gestos, uma abertura – dialogal – para questões supraindividu-
ais, para a partilha dos afetos. Com o declínio das grandes narrativas e das
instituições da ordem, o indivíduo e a escrita de si, sua bio-grafia, tornam-
-se os precários sustentáculos da presença no mundo.
No campo literário, a assimilação do “medo” como constituin-
Leonardo de te do processo artístico está na gênese da literatura moderna. Walter
Barros Sasaki Benjamin avaliava que a modernidade de Baudelaire assentava-se, den-
tre outras coisas, no fato de o poeta assumir sua produção enquanto
32 um “duelo em que o artista, antes de ser vencido, dá um grito, assusta-
do”. “Esse duelo”, continua o crítico, “é o próprio processo de criação.
Baudelaire insere assim a experiência do choque no âmago do seu
trabalho artístico” (2015, s/p).
O vocabulário assinalado por Benjamin – grito, susto, choque
– estará patente em obras das primeiras décadas do século XX portu-
guês. Em Húmus, obra capital de Raul Brandão, encontramos a seguin-
te afirmação: “tenho medo de mim, tenho medo da minha alma, tenho
medo de me encontrar sós a sós com minha alma, que é nada, o fim
e o princípio da vida e a razão do meu ser” (2000, p. 114). O medo, aí
repetidamente posto, é o choque do homem diante do absurdo, diante
da derrocada do sagrado. O sujeito que se aplica a buscar o mistério
ou que dele se sente órfão só encontra a (anti-)revelação de um vazio
que se traduz em camadas de medo: “Atrás deste assombro há outro
assombro – e depois outro assombro ainda” (p. 96) ou “Tudo para mim
é uma causa de espanto – e através deste espanto pressinto ainda um
espanto maior” (p. 103). Como em efeito boneca-russa que terminará
no oco de boneca alguma, para quem padece do drama “das consciên-
cias”, o maior deles “é ficar só com o vácuo e em frente do espanto” (p.
114). A súbita percepção, medonha, do vazio é o que resta para preen-
cher a existência. Tal situação vai minando as certezas mais elementa-
res do indivíduo: “Nem sei o que é a vida. Chamo vida ao espanto” (p.
212). Registremos como esse “espanto”, que acaba por ser sinônimo
da vida e que estrutura a mundividência brandoniana, compartilha o
radical de “pavor” em sua memória etimológica – “expaveo”, isto é,
“assustar-se, atemorizar-se”.

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Mário de Sá-Carneiro, à sua maneira, também construiu uma lí-
rica de repetidos duelos – não com o vazio do sagrado, mas com o do
próprio sujeito. Para insistirmos em um substrato lexical comum, sua
busca íntima é permeada pelo “pavor” – emoção cuja raiz deu a palavra
“medo” em muitas línguas românicas: “Corro em volta de mim sem me
encontrar... / Tudo oscila e se abate como espuma... / Um disco de ouro “Fotogramas
surge a voltear... / Fecho meus olhos com pavor da bruma...” (2010, p. do Medo” na
20). Não surpreende, portanto, que, quando em uma narcísica sala, “de- literatura
serta e espelhada”, ocorra ao eu-lírico a fatídica constatação: “Tenho portuguesa
medo de Mim. Quem sou? Donde cheguei?...” (p. 55). moderna e
Álvaro de Campos, por sua vez, é também acossado por um contemporânea
sentimento desestabilizador e ameaçante, sem contornos claros: a
“súbita angústia” de “Bicarbonato de soda” (PESSOA, 1998, p. 380). A 33
emoção será repetida em tantos outros poemas: “minha angústia sem
leme” (p. 360), “angústia excessiva do espírito por coisa nenhuma” (p.
372) e “Esta velha angústia, / Esta angústia que trago há séculos em
mim,” (p. 390). O heterônimo pessoano talvez utilizasse com maior acui-
dade a distinção, já em Kierkgaard e posteriormente em Freud, através
da qual a angústia seria um medo sem objeto, sem foco preciso – pois é
disso que se trata a dita emoção “sem leme”, “por coisa nenhuma”. No
conjunto da obra pessoana, contudo, tal diferenciação já não se aplica
de forma tão evidente no drama O Marinheiro, no qual o(s) objeto(s) do
ali chamado “medo” tem contornos bastante imprecisos. Até mesmo o
Campos, em outros poemas, dá-nos exemplo de como as nomenclaturas
são insuficientes e opta pela acumulação: “relembro, e uma angústia /
Espalha-se por mim todo como um frio do corpo ou um medo” (p. 370).
Isso também se repete no poema de incipit [O tumulto concentrado da
minha imaginação intelectual]:

Minha inteligência tornou-se um coração cheio de pavor,


E é com minhas ideias que tremo, com a minha consciência de mim,
Com a substância essencial do meu ser abstracto
Que sufoco de incompreensível,
Que me esmago de ultratranscendente,
E deste medo, desta angústia, deste perigo do ultra-ser,
Não se pode fugir, não se pode fugir, não se pode fugir!
(PESSOA, 1998, p. 403, grifos nossos).

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Se “pavor”, “medo” e “angústia” sinalizam estados mentais de
ameaça inescapável – “não se pode fugir”, repete-se – que se sobrepõem,
em postura pessoana, à experiência corpórea das emoções – o “ser abs-
tracto” –, as emoções igualmente demonstram como a atividade autor-
reflexiva é, em si, geradora de inseguranças: o perigo não é exterior ao
sujeito, mas o habita no “drama das consciências”, como diria Brandão.
Dando um salto de décadas, leitor atento do legado brandoniano,
Vergílio Ferreira, em seu Para Sempre, apresenta-nos o protagonista Pau-
lo que, em revisitação da antiga residência e de suas memórias afetivas,
Leonardo de “entr[a] medroso, travado de prevenção, na decifração do insondável”
Barros Sasaki (1984, p. 80). O dado que aqui mais diretamente nos interessa é que, em
1979, atendendo ao convite da organização do 1º Simposium Internacio-
34 nal sobre Ansiedade, Vergílio Ferreira profere a conferência “Ansiedade/
angústia e a cultura moderna”, na qual pretendia dar relevo à experiência
dessa, por ser autocrítica, em detrimento da superficialidade daquela.
Em sua fala, o autor dizia não interessar ao escritor “transpor
subtilmente à ‘teoria’ o que devia ser uma profunda vivência” (1995,
p. 64); a arte seria, assim, o arauto “do sentir que não chegou ainda ao
entender” (p. 69). O recado de Vergílio, o crítico, é claro: a “profunda
vivência” artística – bem como, de resto, da própria experiência afetiva
humana – não se enquadra em esquemas preestabelecidos do sentir. In-
subordinados, os textos desafiam as classificações, operam por mesclas
complexas e sutis e indeterminam-se na ambivalência. Daí, Vergílio, o
romancista, igualmente proceder por aglutinação quando o persona-
gem diz procurar a “palavra redentora” “nas esquinas rápidas da minha
desorientação, no medo, na angústia, na aflição exorbitada” (1984, p. 66,
grifo nosso).
Nesses rápidos fotogramas da tradição portuguesa, já nos é pos-
sível exemplificar o quão complexas são as “esquinas rápidas” das emo-
ções, o que, em certo sentido, inutiliza uma taxonomia rígida: os escri-
tores priorizam etiquetas distintas para, no quadro geral, tratarem de
estados bastante próximos; muitas vezes, sequer é preciso migrar de
um autor a outro, emoções correlatas convivem em um mesmo texto,
em um mesmo verso. Se apelássemos aos dicionários, o quadro não é
diferente: temos uma ciranda de definições baseadas, muitas vezes, em
sinônimos de difícil particularização. No Houaiss, por exemplo, encon-
tramos: assombro: grande espanto; espanto: medo, susto; susto: medo
causado por um fato ameaçador súbito e inesperado; horror: repulsa ge-

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rada pela percepção de algo ameaçador; terror: estado de pavor: pavor:
grande susto ou temor; temor: medo, receio; receio: incerteza acompa-
nhada de certo medo; pânico: susto ou medo gerado sem fundamento;
angústia: estado de ansiedade, inquietude; ansiedade: aflição, agonia.
“Medo” alberga, deste modo, um guarda-chuva de qualidades/
características inter-relacionadas com diferentes intensidades e não “Fotogramas
apenas um único estado invariável independentemente dos contextos do Medo” na
e estímulos diversos. A propósito, quando questionado se atualmente o literatura
medo não seria, ao invés, uma angústia ou uma fobia, o filósofo Paul Vi- portuguesa
rilio destaca, na contemporaneidade, a “polissemia” do medo que abar- moderna e
caria, por fim, as três noções (2012, p. 42). Seguindo a sugestão de Jero- contemporânea
me Kagan, em livro intitulado precisamente What is emotion?, adotemos
uma moratoria a palavras isoladas como “medo” e “escrevamos sobre o 35
processo emocional com frases completas em vez de conceitos puros e
ambíguos” (2007, p. 216)3. Por conseguinte, para que a sanha conceitual
não se torne ela mesma uma angústia em nossas abordagens analíticas
das emoções no texto literário, ao utilizarmos a palavra “medo”, toma-
mo-la como ponto de partida – e não o oposto – para aproximarmo-nos
do amálgama de emoções contido nas obras.
Se, por um lado, tal constatação – a de que o medo não cabe na
etiqueta “medo” – torna mais exigente o desafio de tratá-lo em (uma)
poesia – afinal, é tema visto pelos mais diversos prismas, com diferentes
níveis de compreensão, com narrativas em disputa –, por outro lado,
mostra a pertinência do debate na medida em que a poesia – e a arte,
de forma geral –, também ela campo movediço, parece-nos a zona de
convergência entre a voz lírica, sua dicção particular, a tradição poética
e a história mesma da civilização.
Quer seja, sob a espreita de feras, um modo ancestralíssimo de
conseguir uma trégua do medo, quer seja, no teatro, uma forma ca-
tártica de purificar as emoções, tais hipóteses, com maior ou menor
possibilidade de verificação, interessam-nos não para referendarmos
necessariamente qualquer uma delas, mas para pontuarmos a intuição
antiga de que as expressões artísticas possuem vínculos quase genéticos
com a experiência emocional, independentemente de podermos
determinar suas reais causas, aplicações e motivações primigênias.

3 Tradução nossa de “let us agree to a moratorium on the use of single words, such as fear […] and
write about emotional process with full sentences rather than ambiguous naked concepts”.

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Os rumos dessa estetização do medo são imprevistos. O Museu de
Arte Moderna de Nova York (MoMA), entre 2005 e 2006, abrigou a expo-
sição Safe: design takes on risk. No catálogo, a curadora Paola Antonelli,
sobre o que chamou de “aesthetics of safety and surveillance”, dizia: “Para
cada objeto projetado com segurança em mente, há um medo corres-
pondente. Por outro lado, para quase todo medo, há pelo menos um ob-
jeto projetado para dissipar a apreensão. O medo é um poderoso motor
de invenção” (2005, p. 10) e, mais adiante, acrescentava: “Especialmen-
te no cotidiano, a segurança é uma indústria em expansão constante,
Leonardo de porque, como não há fim para o que pode dar errado, também não há
Barros Sasaki fim para as possibilidades criativas e comerciais que o design pode ofe-
recer” (p. 118)4. Aquilo que Antonelli enxerga como fonte infinita de
36 criatividade tem por pressuposto a ubiquidade do medo da forma como
nossa cultura o entende – inclusive em seu potencial comercial.
A arquitetura, assim como o design, tem assimilado esse movimen-
to com projetos sofisticados – bunkers, condomínios, sistemas de vigilân-
cia e toda uma gama de “privatização” ou “interiorização” dos espaços
públicos –, cujo panorama das discussões está posto de forma instigante
em Architecture of Fear. Nan Ellin, a organizadora do volume, no artigo
de abertura, afirma que a arquitetura espelha essa atitude, claustrofóbi-
ca, de evasão e proteção que tem caracterizado as nossas respostas mais
frequentes ao medo. E conclui: “o ambiente contemporâneo construído
contém um espaço público cada vez menos significativo, e o existente é
cada vez mais controlado por várias formas de vigilância e cada vez mais
investido de um significado privado” (1997, p. 36)5.
Se poucos discordam da força catalizadora criativa do medo, tais
abordagens nos mostram que a arte pode tanto associar-se ao ideário da
segurança e aperfeiçoá-lo continuamente – no paradigma da evasão e au-
toproteção – quanto encarar suas motivações profundas, resistir a ele e
subvertê-lo. Os escritores e pintores aqui evocados estariam, assim, no úl-
timo grupo, já que, na experiência crítica das emoções, ao buscar dar-lhes

4 Tradução nossa de “For every object designed with safety in mind, there is a corresponding fear.
Conversely, for almost every fear, there is at least one object designed to allay the apprehension. Fear
is a powerful motor of invention” e “Especially in everyday life, security is an industry in constant
expansion, because, since there is no end to what could go wrong, there is also no end to the creative
and commercial possibilities design can offer”.
5 Tradução nossa de “The contemporary built environment contains increasingly less meaningful
public space, and existing public space is increasingly controlled by various forms of surveillance and
increasingly invested with private meaning”.

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expressão, questionam e desestabilizam o imperativo privado, asfixiante,
ao qual a vida pública tem sido submetida, garantindo, assim, o fluxo do
trânsito emotivo. Em contraposição aos sujeitos ávidos por anestesiarem-
-se do medo e demais emoções ditas “negativas”, a arte torna-se poderoso
instrumento tanto de resistência e de partilha dos afetos quanto de afir-
mação da sondagem íntima, da experiência emocional reflexionante – tão “Fotogramas
ou mais importante que os imperativos da vigilância externa onipresente do Medo” na
e da experiência transformada em acumulação de vivências de forma de- literatura
senfreada, desesperada, et pour cause, irrefletidas. portuguesa
A seguir tal raciocínio, as expressões artísticas ganhariam cor- moderna e
po enquanto mergulho nesse abismo do homem. Quando observamos contemporânea
os três nomes do modernismo português supracitados – Mário de Sá-
-Carneiro, Fernando Pessoa e Raul Brandão –, podemos dimensionar 37
a ênfase na tematização do medo por meio dos dramas do sujeito – a
fragmentação/vácuo da identidade, a perda do sagrado etc. – trazidos
para o interior da poesia. Em Vergílio Ferreira e na produção mais re-
cente, já não se trata essencialmente de um tema, mas também de um
componente intimamente ligado – e até estruturante – do ato criativo.
Dito de outra maneira, ao abarcar o medo na dimensão metalinguística,
autorreflexiva da escrita, os autores paulatinamente deslocam-se de um
sujeito com medo para um escrever com medo.
O caso mais emblemático de pesquisa profunda sobre o medo tal-
vez seja o de Al Berto, poeta que produziu entre a década de 1970 até
sua morte em 1997 e que reuniu suas obras completas sob o sintomático
e incontornável selo de O Medo. Nele, encontramos, por exemplo, o po-
eta que, sob o efeito de “mais drogas”, parece retroceder ao momento
genético, no qual o homem experimentou, “aterrorizado”, o medo pela
primeira vez:

ingeria cada vez mais drogas, e a dado momento tive a visão do


que deve ter sido o primeiro homem a alinhavar, pela primeira
vez, o seu nome. parei aterrorizado. ali estava, enfim, a morte
da inocência e a revelação do destino que me propunha cum-
prir: escrever, escrever sempre. a partir desse momento acu-
mulei infindáveis cadernos escritos: era esta a única maneira de
remediar o medo e de não possuir nada, e de ter possuído tudo
(2009, p. 367).

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O despertar da consciência do “primeiro homem” era acompa-
nhado pelo nascer da escrita – enquanto objetivação mesma da subjeti-
vidade – e pelas tentativas de “remediar” o medo daí advindo. Em outra
versão dessa entrada, contida em rascunhos de seu espólio, o nexo fica
ainda mais evidente: “estava, enfim, a inocência, a minha inocência,
e com ela revelava-se também o medo e o destino que me propunha:
escrever sempre” (E49, cx. 35). Na aproximação medo-destino, “reme-
diar” é verbo ambíguo: pode significar tanto uma cura quanto um palia-
tivo. O conjunto da obra nos mostra, ao seu turno, que não há soluções
Leonardo de definitivas para o medo; existem apenas atenuantes.
Barros Sasaki Se a escrita da intimidade faz de cada indivíduo o Adão de si, a
entrada de 14 de junho de 1982 de seus Diários ilustra o quão central é
38 o papel que a emoção desempenha nesse imaginário: “Dantes, eu podia
confundir-me às paisagens; hoje, apenas as percorro. Mal pouso as mãos
sobre um rio, e já não reconheço as aves que fulguram no fim da me-
mória. Assustado, continuo a viver” (2012, p. 45). “Confundir-se às pai-
sagens” lembra a situação edênica de comunhão com a natureza. O seu
rompimento, no mito adâmico, marca a concepção da natureza como
figura antagonista, por incontrolável, da vontade humana; marca ainda
a fundação da consciência, do “percorrer” da experiência em uma obra
que se entende como uma “laboriosa travessia da vida”, uma “lentíssima
decifração do medo e dos sinais” (2009, p. 505). O fim da inocência marca,
por fim, o começo da experiência, isto é, a passagem de um estado de in-
diferenciação com o ambiente para a vivência das individualidades.
O medo, nessa perspectiva, foi a primeira das emoções, aquela
que inaugura no homem seu apego primitivo, sua vinculação umbilical
à travessia do viver. Adão, após comer o fruto proibido, conversa com
Deus: “‘Ouvi teu passo no jardim’, respondeu o homem, ‘tive medo por-
que estou nu, e me escondi’” (Gen 3:10). O primeiro homem, “assustado,
continuou a viver” – ou melhor seria dizer: “começou a viver”?
Também utilizando o medo como emoção iniciática, no caso da
vida adulta, Herberto Helder, voz cimeira da poesia portuguesa, morto
em 2015, emparelha em seu Photomaton & Vox as afirmações: “Comecei
a ter medo. [...] Esta é realmente minha embaraçosa chegada à maturi-
dade” (2006, p. 32). Continua o poeta, em outra altura, “o medo que faz
respirar e viver até a morte” (p. 34). Se até aqui a emoção é um marca-
dor e uma garantia da vida, na obra, ela assume-se ainda como força-
-violência motriz da escrita: “Apesar de tudo há ainda as palavras que

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nos metem medo. Delas irrompe a cega proliferação de imagens”; é com
ele e através dele que as palavras o interpelam, em letras capitais, na
práxis inventiva-criativa: “Tens medo? – pergunta-nos a palavra MEDO.
Tens medo? – pergunta-nos o MUNDO, sensível, visível forma dessa pa-
lavra. E a nossa homenagem à invenção é uma pura urgência do medo”
(p. 55). Não seria esse, então, mais um exemplo do dito deslocamento “Fotogramas
do medo como emoção-etiqueta em poéticas de expressão afetiva para do Medo” na
o medo como palavra-emoção que se materializa na escrita e, a partir literatura
dela, no limite, é também “sensível, visível forma” em uma poética – e portuguesa
não apenas nelas – com forças cosmogênicas qual a herbertiana? moderna e
Maria Rita Kehl, em seu artigo “Elogio ao medo”, lembra o quanto, contemporânea
para a arte, o medo pode ser “estímulo à criatividade”. Para ela, é o medo,
em seu tensionado relacionamento com o desconhecido, que “ocupa 39
grande parte de nossa capacidade de simbolização na esperança de domi-
nar aquilo que, mais cedo ou mais tarde, nos aniquilará” (2007, p. 90). Na
mesma direção, Julia Kristeva enxerga no embate que se dá na linguagem
um privilegiado ponto de partida para pensarmos o ofício poético e o ofí-
cio do medo. De forma lapidar, registra sua premissa: “O escritor: um fó-
bico capaz de metaforizar não para morrer de medo, mas para ressuscitar
nos signos” (1980, p. 49). Para ela, o medo caracteriza-se pela “linguagem
da falta” [langage du manque], isto é, aquela que abarca a incapacidade
de lidar diretamente com os objetos fóbicos e, por isso, metaforiza-os,
simboliza-os. Aí, perde-se “a garantia com a qual usamos geralmente o
uso automático da fala, a garantia de ser nós mesmos” (p. 49)6.
Desarticular a estabilidade/automatização do sujeito e da escrita e
subtrair-lhes a ilusão de um mundo “seguro demais de si mesmo” está na
base da bildung de Julio Cortázar, conforme diz em crônica de 1983, publi-
cada na revista mexicana Proceso, na qual tematiza sua “infância medrosa”:

Se o medo me encheu de infelicidade na infância, em contra-


partida multiplicou as possibilidades de minha imaginação e
me levou a exorcizá-lo com a palavra; contra meu próprio medo
inventei o medo para os outros, se bem que ainda não está bem
claro se os outros me agradeceram por isso. Em todo caso, creio
que um mundo sem medo seria um mundo seguro demais de si

6 Tradução nossa de L’écrivain: un phobique qui réussit à métaphoriser pour ne pas mourir de peur
mais pour ressusciter dans le signes” e “l’assurance dans laquelle nous tient d’ordinaire l’usage auto-
matique de la parole, assurance d’être nous-mêmes”.

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mesmo, mecânico demais. Desconfio dos que afirmam que nun-
ca tiveram medo; ou estão mentindo, ou são robôs dissimulados,
e nem queiram saber o medo que tenho de robôs (CORTÁZAR,
2010, p. 211).

Há aqui a afirmação que antecipa, em certa medida, as precárias


conclusões desse artigo: o medo torna-se uma salvaguarda importante
do humano em tempos de mecanização da vida, em tempos de controle
e vigilância da experiência. O depoimento interessa-nos ainda pela ideia
Leonardo de de que o autor, a partir da estetização-exorcização de seu medo, gera
Barros Sasaki outros, isto é, a arte torna-se a elaboração de uma emoção autônoma e,
por isso, multidimensional que se transmite ao leitor.
40 Para o poeta Al Berto – e, antes dele, já indiciado em Sá-Carneiro
– “inventar o medo para os outros” significa também criá-lo para si em
uma poética de espelhos em constante luta com seu(s) duplo(s). Nisso,
atribuem-se, aí, novas conotações ao duelo que Benjamin detectava em
Baudelaire –: o eu, aqueloutro ameaçador. Nessa diretação, não são raras
as ocorrências em que o sujeito manifesta temor diante de suas imagens:
“passei a amedrontar-me quando apercebo o meu reflexo nos espelhos”
(2009, p. 368). O “coração onde o corpo segrega a agonia da escrita” (p. 63)
mostra-nos o ágon, o combate interno, da poesia que, em si, não encontra
meios de se apaziguar: “não encontrará na fala sossego algum / depois
do susto das palavras murmuradas” (p. 353). Na luta, diferentemente de
Cortázar, portanto, Al Berto não tem na escrita uma forma de esconjurar
o “susto”, causado, inclusive e sobretudo, pelas palavras.
Aquilo que Kristeva (1980) julga inerente a qualquer escritor – a
“operação fóbica” de metaforizar – ganha uma tensão irresoluta em Al
Berto. Em certo sentido, a literatura é um ato reativo daquele que “es-
creve para não lhe deixar invadir o medo” (2012, p. 370), como está igual-
mente dito em epígrafe retirada dos Cadernos de Malte Laurids Brigge, de
Rilke, para a primeira edição de sua recolha poética: “Fiz alguma coisa
contra o medo. Fiquei toda a noite sentado a escrever” (2009, p. 661). Em
outro sentido, é a própria poesia fonte dele: “sempre tive medo quando
começo a escrever” (2009, p. 19) e “(j’ai peur d’écrire)” (2009, p. 95).
Outros poetas contemporâneos também têm estruturado a ques-
tão através dos dois polos: o medo surge das palavras, como na pergunta
de Manuel António Pina, vencendor do Prêmio Camões de 2011 – “Serei
capaz / de não ter medo de nada, / nem de algumas palavras juntas?”

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(2001, p. 107); e também nos leva a elas, como diz Filipe de Castro Mendes
– “Quase sempre a angústia / instaura a luz por dentro das palavras / e
lhes rouba os sentidos. / Quase sempre é o medo / que nos conduz à poe-
sia” (1991, p. 64). O curioso no caso específico de Al Berto é que ambos os
paradigmas estão em repetida e inconciliável interação e atrito em um ci-
clo que se retroalimenta de modo incessante: o poeta é simultaneamente “Fotogramas
aquele que teme às palavras e que recorre a elas para confrontar o medo. do Medo” na
O processo criativo, dessa maneira, ganha contornos outros que literatura
não os de uma expectativa de controle do medo. O pintor expressionista portuguesa
Edvard Munch talvez seja um dos casos mais canônicos. Nos escritos moderna e
que integram seu espólio, encontramos a revelação: “Vim ao mundo contemporânea
assustado e vivi em medo perpétuo da vida e das pessoas” (apud PRI-
DEAUX, 2005, p. 18). Como no mito adâmico, o advento da consciência 41
é acompanhado pelo medo – “o medo da vida desencadeou-se em mim
desde que o pensar [thought] surgiu em minha mente” (p. 19)7 – e, como
parte constituinte da identidade mesma do indivíduo, entranha-se de
forma irreparável:

Eu não quero livrar-me da doença, por mais antipaticamente


que eu a descreva na minha arte... O meu medo da vida é ne-
cessário para mim, assim como minha doença. Sem a ansiedade
e a doença, sou um navio sem leme. Minha arte baseia-se nas
reflexões sobre ser diferente dos outros. Meus sofrimentos são
parte de mim e da minha arte. Eles são indistinguíveis de mim,
e sua destruição destruirá minha arte. Eu quero manter tais so-
frimento (apud PRIDEAUX, 2005, p. 251)8.

O mais próximo que disso encontramos na obra albertiana foi


tomado de empréstimo d’O Marinheiro pessoano: “sentias uma feroz ne-
cessidade de ter medo” (2009, p. 596). Se, por um lado, não encontramos
em Al Berto uma defesa proclamada do “ser fóbico” como em Munch, o
medo é parte indissociável de sua arte – queira ou não. Em entrevista de

7 Tradução nossa de “I came frightened into the world and lived in perpetual fear of life and of
people” e “the fear of life that has raged in me since thought entered my mind”.
8 Tradução nossa de “I don’t want to get rid of illness, however unsympathetically I may depict it
in my art… My fear of life is necessary to me, as is my illness. Without anxiety and illness, I am a ship
without rudder. My art is grounded in reflections over being different to others. My sufferings are part
of my self and my art. They are indistinguishable from me, and their destruction would destroy my art.
I want to keep those sufferings”.

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1987 para o Diário Popular, o poeta atribui ao medo a função de nutrição
do processo gestacional artístico, reforçando, de certa forma, a prima-
zia da emoção na gênese da vida afetiva:

O título [da recolha de seu trabalho poético] tem a ver com a


palavra medo, que aparece com certa insistência no que escre-
vo. Acho que tenho imenso medo quando escrevo. É a placenta.
Quando se nasce tem-se medo, a escrita tem uma relação com o
medo, e medo é uma coisa que toda a gente sentiu pelo menos
Leonardo de uma vez na vida.
Barros Sasaki
Tratar a emoção como algo a ser ‘exorcizado’ pela escrita reduz
42 a potência, a violência da qual a poesia se sustenta; tal dimensão ambi-
valente do medo parece-nos basilar na compreensão da obra albertiana.
Para um “pequeno demiurgo” (2009, p. 244), arquiteto atento às inti-
midades e emoções, o ofício poético não poderia prescindir do medo,
não poderia ainda não lhe dar centralidade, quando é ele que inaugu-
ra e alimenta – causa e efeito – o próprio ato da criação, quando é ele
que instaura um ponto comum, de ligação e partilha, entre os homens:
“toda a gente sentiu”.
Assim, quebram-se os limites do individual e a arte deixa de
ser expressão de fobias particulares para ganhar outra dimensão. Ao
citar a obra de outro expressionista, Otto Dix, Virilio adverte que “o
medo produziu uma arte que o excede, desconectada dos impulsos que
a criaram; torna-se o medo em si [fear itself], uma angústia autôno-
ma” (2012, p. 57)9.
Munch, igualmente atento às interioridades afetivas, explica sua
poética nos termos de uma necropsia: “Assim como Leonardo da Vinci
estudou a anatomia humana e dissecou cadáveres, eu também tentava
dissecar as almas” (apud PRIDEAUX, 2005, p. 49)10. O medo é a matéria-
-prima dessa arte, é aquilo que se encontra nos processos dissecantes.
Ainda sobre o pintor sueco, em concurso de cenas biográficas, é curiosa
a necessidade de localizar na infância a experiência transformadora e
inaugural da emoção: “Os anjos do medo, da dor e da morte estiveram

9 Tradução nossa de “fear produced an art that outlasts itself, disconnected from the impulses that
created; it becomes a fear itself, an autonomous anxiety”.
10 Tradução nossa de “Just as Leonardo da Vinci studied human anatomy and dissected corpses, so I
was trying to to dissect souls”.

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ao meu lado desde o dia em que nasci. Eles seguiam-me enquanto brin-
cava – seguiam-me em todos os lugares” (p. 2). Como se marcado por
uma sina ditada por um dos anjos tortos drummondianos, que vivem
na sombra, o eu-lírico de Livro dos Regressos, dedicado precisamente ao
tema, anuncia nos versos iniciais: “do antigo medo da infância regressas
/ por onde pedra raízes e bichos se tocam” (2009, p. 549) ou, em livro “Fotogramas
anterior, “nada me pertence aqui, tenho medo deste mobiliário, destes do Medo” na
objectos que evocam uma infância pouco feliz” (2009, p. 226). literatura
Para um exemplo a nós contemporâneo, a artista plástica por- portuguesa
tuguesa de maior expressão internacional na atualidade, Paula Rego moderna e
também vai à infância para pontuar suas primeiras experiências com a contemporânea
emoção: “gostava daquele frisson de ter medo ao ver gravuras de Doré”
(apud RIBEIRO, 2016, p. 24). Nem sempre desejado e prazeroso, sua mãe 43
dizia que a menina “tinha medo de tudo, até das moscas” (2016a), rela-
tou para Notícias Magazine, em 2016. A condição parece não ter mudado
na vida adulta – “[quando criança] tem-se medo de muita coisa, e agora
também” (apud RIBEIRO, 2016, p. 103) – a ponto de evitar, como nos ver-
sos albertianos, até mesmo visitas à sua antiga casa (p. 64). Ao Telegraph,
também em 2016, repetiu, autodepreciativa, que a velhice não signifi-
cou a superação ou apaziguamento dos medos: “Sou hoje a mesma de
antes, que azar. É horrível, ainda tenho medo. É ridículo alguém ser tão
velho e tão medroso” (2016b, s/p).
Quando perguntada sobre a relação que sua obra teria com a
emoção, Paula Rego responde: “É uma forma de enfrentar as coisas que
não gostamos de olhar” (apud RIBEIRO, 2016, p. 24) e, mais recentemen-
te, “quando estou a trabalhar esqueço o medo… ou pinto-o” (2016a).
Poderíamos talvez acrescentar, retirando-lhe a construção alternativa,
que o esquece justamente porque pinta-o. Isso tem a ver com a con-
jugação de dois fatores: primeiro, aquilo que a motiva como pintora:
“interessa-me pintar aquilo que dói, magoa. Que me magoa a mim. Só
isso” (apud RIBEIRO, 2016, p. 61); e, segundo, uma constatação onto-
lógica que vai enfaticamente se repetindo nas entrevistas: “O medo é
constante. Vive comigo todos os dias” (p. 103) e “Não gosto de acordar.
Tenho medo. A minha vida é medo. Medo, medo” (p. 157).
“Minha vida é medo” encerra uma mundividência tão crua e ao mes-
mo tempo tão produtiva para nossa análise. Descontados certos distúrbios
patológicos, todos sentem algo que se poderia chamar de medo, mas ter a
vida pautada por ele ou, ainda, ter nele a sua dominante é algo de nature-

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za diversa. Sob essa perspectiva, que lógica subjaz naqueles que, domina-
dos, escavam seus medos e defrontam-se com eles no campo artístico? No
que tais sujeitos diferem-se daqueles que, dominados, preferem evitá-lo,
amortecê-lo ou pulverizá-lo em sempre renovados medos que acabam por
mascarar angústias mais profundas e mais exigentes em sua elaboração?
Qualquer teorização ou categorização sobre isso ignoraria fatal-
mente a complexidade de relações intrínsecas ao ato criativo. De toda for-
ma, a partir de nosso pequeno acervo de exemplos, poderíamos grossei-
ramente estabelecer que, para uns, a arte é uma forma – ou tentativa –, ao
Leonardo de experimentá-lo, de “libertar-se” do medo, “exorcizá-lo” ou “esquecê-lo”;
Barros Sasaki para outros, não é algo a ser superado, mas parte essencial – voluntária
ou não – do processo, pedra angular de uma estética e de um sujeito mar-
44 cados por uma ruptura, por um desnível com a voltagem convencional
dos afetos, que alça maior carga e maior amplitude. O esquema, contudo,
só funcionará de modo operativo. Além do fato de sentirem-no em ex-
cesso, pode haver linhas de continuidade, nuances e qualquer coisa de
misterioso na razão de ser do medo que se figura na/pela arte desses dois
grupos: “não sei bem explicar como é que é” (p. 61), concluía Paula Rego.
A poeta russa Ana Akhmátova, em poema dedicado a Ossip Mandel-
shtán, após retratar festivamente a cidade de Vorônej, onde ele vivia “de-
gredado”, conclui a ambientação de forma soturna: “Mas, no quarto do po-
eta degredado / o Medo e a Musa velam em rodízio, / e uma noite cai / que
não traz esperança de alvorada” (apud COELHO, 2008, p. 166). Akhmátova
proporciona-nos uma amostra do clima de terror vivido na Rússia stalinista
que perseguia – e acabaria por vitimar – o amigo poeta. Para além de sua
referência mais imediata, tais versos configurariam ainda uma forma de
entendimento – e até um modo – do fazer poético. Uma escrita presidida,
em iguais proporções, pela inspiração e pelo medo ecoa pergunta lançada
por Ruy Belo, poeta que produziu, nas décadas de 1960-70, um interessante
trabalho com emoções ainda por ser analisado a contento; perguntava-se
ele: “Que nome dar ao poeta esse ser dos espantos medonhos?” (2014, p.
334). O rótulo “poeta”, implicitamente, talvez dê conta apenas dos inspi-
rados pelas musas; logo, ficaria ainda por inventar um novo nome para o
agente dessa experiência artística – constitutiva e não apenas circunstan-
cialmente – atrelada aos “espantos medonhos”: como chamá-lo?
Nessa direção, Alexandre O’Neill, em seu “Poema pouco original
sobre o medo” (1984, p. 144-145), escreveu dos versos mais emblemáticos
sobre o tema na tradição portuguesa contemporânea. Como no caso de

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Akhmátova, a ditadura do Estado Novo português e seu forte clima de vi-
gilância, delação e ubíqua suspeição configuram os dados circunstanciais
do poema datado de 1951 – o que fica sugerido, por exemplo, nos versos
“ouvidos não só nas paredes / [...] / e talvez até (cautela!) / ouvidos nos
teus ouvidos”, que incutem no homem o seu próprio censor. O poema
excederia os seus limites históricos. “O medo vai ter tudo”, espécie de “Fotogramas
estribilho, inverte a lógica agente/paciente da emoção e lança-a para o do Medo” na
futuro – como é de sua natureza. Acertadamente, o medo continua a ter a literatura
nós nas “ambulâncias / e [n]o luxo blindado / de alguns automóveis” ou portuguesa
nas “seguras casas de penhor / maliciosas casas de passe / conferências moderna e
várias” e, claro, nos “poemas originais / e poemas como este”. contemporânea
São típicos cenários da emoção; por entre eles, não lhe escapava
o fato de o medo continuar a gerar arte. Ainda assim, terminava dizendo 45
que “havemos todos de chegar / quase todos / a ratos // Sim / a ratos”.
Tal conclusão, talvez, padeça da pouca originalidade denunciada no
título, pois trata o afeto através do velho binômio coragem/covardia: os
amedrontados equivaleriam a meros roedores.
Os dados mais referências, de contextualização, ainda que estrutu-
rantes, interessam-nos – e foi essa a opção para os limites desse artigo –
como ponto de partida para outros desdobramentos. Sob tal perspectiva,
é inegável que o medo possa subtrair a dignidade humana em contextos
de opressão extrema. A variedade de experiências e pesquisas afetivas, ao
seu turno, talvez nos obrigue a desfazer sua expressão na forma de uma
antinomia, pois há coragem em se ter medo. Enquanto emoção fundadora
de narrativas genéticas coletivas ou pessoalíssimas, ela está no epicentro
inconciliável, no lugar em que O’Neill detectava um beco – “Ah o medo
vai ter tudo / tudo / (Penso no que o medo vai ter / e tenho medo / que é
justamente / o que o medo quer)” (1984, p. 144-45)–, e até mesmo no exa-
to reconhecimento desse sem-saída, ao convertê-lo em verso, a poesia – e
a arte de uma forma geral – admite e acolhe o estatuto íntimo desse nosso
inimigo interior e deixa-se inundar por ele. Aí, nesse convívio próximo,
busca outras potencialidades – violentas, motoras – em que só parecia
haver paralisia e cerceamento, mesmo que, para isso, tenha de construir
uma obra sempre em choque, sempre entre o ataque e a fuga, entre es-
crever o medo e temer a escrita – que é justamente o que o medo quer – e,
ainda assim ou exatamente por isso, continuar a escrever no recomeçado
risco da/sobre a folha branca.

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Recebido em maio de 2018
48 Aceito em julho de 2018

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