Você está na página 1de 283

Samuel Wainer

Minha Razão de Viver

Autobiografia

Organização e edição de textos – Augusto Nunes

Revisão geral Sergio Flaksman


Samuel Wainer

Minha Razão de Viver

Memórias de um Repórter
Ao Samuca
APRESENTAÇÃO
INTRODUÇÃO
O BRASILEIRO SAMUEL WAINER
1ª Parte
CAPÍTULO 1
CAPÍTULO 2
CAPÍTULO 3
CAPÍTULO 4
CAPÍTULO 5
CAPÍTULO 6
CAPÍTULO 7
CAPÍTULO 8
CAPÍTULO 9
CAPÍTULO 10
CAPÍTULO 11
CAPÍTULO 12
CAPÍTULO 13
CAPÍTULO 14
CAPÍTULO 15
CAPÍTULO 16
CAPÍTULO 17
2a Parte
CAPÍTULO 18
CAPÍTULO 19
CAPÍTULO 20
CAPÍTULO 21
CAPÍTULO 22
CAPÍTULO 23
CAPÍTULO 24
CAPÍTULO 25
CAPÍTULO 26
CAPÍTULO 27
CAPÍTULO 28
CAPÍTULO 29
CAPÍTULO 30
CAPÍTULO 31
CAPÍTULO 32
CAPÍTULO 33
CAPÍTULO 34
CAPÍTULO 35
CAPÍTULO 36
EPÍLOGO
APRESENTAÇÃO
Pinky Wainer, 1987

As memórias de meu pai, Samuel Wainer foram ditadas em três etapas,


num depoimento que soma 53 fitas gravadas. Na primeira fase, decorrida
entre 25 de janeiro e 28 de fevereiro de 1980, sucessivas entrevistas
coordenadas pelo jornalista Sérgio de Souza consumiram 35 fitas. Samuel
parece frio, objetivo, percorre os assuntos como se os tivesse editado.
Ressalva que não está empenhado em explicar-se ou justificar-se; deseja,
apenas, contar a sua história. Também conta que já escolhera o título do livro
com suas memórias: “Minha Razão de Viver”.
As entrevistas, ainda coordenadas por Sérgio de Souza, foram retomadas a
25 de junho de 1980, e novamente interrompidas dois dias depois. Em quatro
fitas gravadas, Samuel descreve em detalhes o lançamento do jornal Última
Hora. A terceira etapa, coordenada pela jornalista Marta Góes, é composta de
catorze fitas. Começou em 6 de julho e foi concluída em meados de agosto de
1980.
Pinky Wainer, 2015

Samuel Wainer, morreu no dia 2 de setembro de 1980. Nem teve inventário.


Deixou como herança apenas uma linha telefônica e 5 dezenas de fitas K7,
contendo o seu grande tesouro: suas memórias, ditadas por ele mesmo.
Trancrever, editar e publicar foi uma saga. Decidimos que o material
transcrito deveria ser tratado profissionalmente, objetivamente e por esse
motivo convidamos Augusto Nunes para fazer a edição e organização dos
textos. Além de sua competência profissional, Augusto não conheceu SW e
esse era um importante fator de isenção emocional para lidar com as
turbulentas gravações. AN fez um trabalho impecável, uma edição precisa e
inteligente, difícil de ser superada.
Quem teria autoridade para melhorar, acrescentar ou até censurar a palavra
gravada por Samuel? Todos os dados foram checados, alguns pequenos erros
foram revistos em sucessivas edições mas o mais importante: lidando apenas
com a memória, SW não inventou ou deturpou nada. A prova é que nunca
houve um processo sequer.
O livro saiu praticamente clandestino, em 20 de dezembro de 1987. E em 2
ou 3 dias estava armada a maior operação de divulgação espontânea que se
viu. Todos os jornais, as capas de todas as revistas, todas as primeiras
páginas do Brasil falavam nas memórias de SW em letras garrafais. Foram
semanas, meses de debate. Como sempre, amor e ódio. E surpresa: com
tiragem inicial de 2 mil exemplares, teve uma trajetória absurda de mais 200
mil exemplares vendidos.
Samuel Wainer soube viver, como espectador privilegiado, capítulos
particularmente intensos da História do Brasil. E revolucionou a imprensa
brasileira criando a Ultima Hora, jornal das causas populares, de esquerda,
nacionalista.
Amou e protegeu seus filhos. Nunca falou de humilhações, antissemitismo,
traições, medo. E do sentimento devastador de não pertencimento, que eu só
intui muito tempo depois. Apesar de brasileiro confirmado pelo STF - o que é
para poucos – manteve entre seus assuntos e histórias de fim de noite,
obsessivamente, até o último dia de vida, a questão da nacionalidade e de sua
devoção ao Brasil. Nós, filhos e netos, brasileiros com RG e CPF, somos
também orgulhosos não pertencentes.
A vida e a força de sua história, tão universal e particular, quis que ele não
fosse esquecido. Ele ia gostar de saber que nada foi em vão.

INTRODUÇÃO

Augusto Nunes, 2005

A reedição pela Editora Planeta, em 2005, de Minha Razão de Viver –


Memórias de um Repórter acabou por transformar-se na edição completa – e,
portanto, definitiva – da autobiografia de Samuel Wainer.
Até agora, faltavam ao livro informações complementares (algumas muito
picantes) e, sobretudo, uma grande revelação. Embora não alterassem a
essência da história, nem afetassem a relevância do conteúdo, tais lacunas
sempre incomodaram os guardiães do segredo: faltava alguma coisa,
afligiam-se a cada edição. Como o tempo acaba de revogar o embargo
compreensivelmente imposto por Samuel, agora não falta nada.
As informações complementares invadem labirintos e porões do esquema
de arrecadação de dinheiro destinado a financiar o contragolpe preventivo
rascunhado entre meados de 1963 e abril de 1964 por partidários do
presidente João Goulart. Wainer foi testemunha privilegiada e, com
frequência, protagonista, dos preparativos para a ação abortada por inimigos
mais ágeis. O golpe militar chegou antes.
Em 1980, pouco antes de morrer, ele pediu à filha Pinky que esses campos
minados só fossem inteiramente escancarados 25 anos depois da partida. A
hora chegou. Também chegou a hora de desfazer o grande mistério que
agitou o país nos 50, provocou a abertura de uma CPI no Congresso, seguiu-o
como uma sombra por toda a vida – e sobreviveu à sua morte física: onde
nasceu Samuel? Na antiga Bessarábia ou no Brasil? Nos depoimentos
gravados, ele sempre desconversou sobre o assunto, ou limitou-se a
insinuações que induziam a deduções opostas. Mas a família sabia a verdade:
ele nasceu na Bessarábia e desembarcou no Brasil com seis anos de idade.
Esse brasileiríssimo bessarabiano explicou a Pinky que o sentimento de
gratidão o obrigava ao silêncio. Muitos amigos, para ajudá-lo a espantar o
risco de prisão, haviam mentido com muita convicção em depoimentos à CPI.
Alguns juraram ter presenciado, em São Paulo, o rito da circuncisão do
homem que ferozes adversários afirmavam ser estrangeiro – circunstância
que lhe negaria o direito de controlar um jornal no Brasil. “Só poderia contar
a verdade se todos estivessem mortos”, ponderou.
Todos morreram. O embargo terminou. A história está completa.
A autobiografia de Samuel Wainer seria incorporada às listas de leituras
obrigatórias mesmo se o autor tivesse somado a esses dois embargos os
cuidados e cautelas até então inseparáveis de obras do gênero. Ainda que o
relato contornasse dezenas de episódios que mantinham intocado o altíssimo
teor explosivo, ainda que evitasse escavações nas tumbas dos cadáveres
insepultos, ainda que procurasse abrandar o impacto de revelações
perturbadoras demais – ainda assim soaria irresistível o convite para
acompanhar a singularíssima trajetória de Samuel Wainer.
Como recusar a viagem tão extraordinária, tão encantadora? Ele foi um dos
maiores jornalistas do século XX. Graças a uma espécie de mediunidade que
contempla repórteres uterinos, estava sempre no lugar certo na hora exata.
Nenhum companheiro de profissão conseguiu tamanha intimidade com três
presidentes da República (Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek e João
Goulart). Nenhum teve tantos poderes, nenhum soube exercê-lo com tanta
eficácia. Com a Última Hora, criou a imprensa efetivamente popular no
Brasil.
Menino pobre criado no bairro paulistano do Bom Retiro (“um judeuzinho
como tantos”, repetia), tornou-se um cosmopolita irretocável, uma
celebridade internacional. Conheceu a glória e sofreu a queda até desfrutar
das delícias discretas da planície. Acrescente-se a isso tudo episódios vividos
nos mais luminosos salões europeus, em festas ou jantares decorados por
belas silhuetas e rostos famosos – e se terá a receita irretocável para um livro
de sucesso.
Mas Samuel nunca foi homem de voos rasos, nunca se interessou por
percorrer caminhos já devassados. Ele pertencia à fina estirpe dos
aventureiros genuínos. Eles amam o novo, a invenção, a acrobacia sem rede
protetora, a viagem ao desconhecido. E então Samuel resolveu que Minha
Razão de Viver seria mais que seu derradeiro tributo à informação. Seria uma
obra transformadora. Outra. A última.
Com espantosa sinceridade, com deslumbrante franqueza, contou cada caso
como o caso foi. Reunido em livro no final de 1987, o conjunto de
depoimentos fez de Samuel o fundador da moderna memorialística brasileira.
Antes de Minha Razão de Viver, biógrafos e biografados mentiam
descaradamente. Depois, ficou pelo menos mais difícil. A saudável mudança
seria consolidada por escritores decididos a jamais brigar com fatos, a buscar
a verdade em vez de amontoar versões.
Samuel descreve suas temporadas no céu e no inferno com tão
desconcertante naturalidade que reduz a velharias livros de memórias cujos
autores confirmam o Poema em Linha Reta, de Fernando Pessoa. Todos
foram só príncipes na vida. Samuel foi o primeiro a descrever sem rodeios,
também, pequenas e grandes derrotas, pecados maiores ou menores. Sempre
com pungente sinceridade.
Pungente e engrandecedora. Ele poderia ter se limitado ao relato dos tantos
êxitos, das muitas façanhas, dos momentos de intensa luminosidade. Mas
decidiu que seus olhos revisitariam sem antolhos luzes e sombras do passado.
Essa sinceridade contribui poderosamente para fazer das memórias de
Samuel um depoimento indispensável à compreensão da história do
jornalismo no Brasil e da própria saga republicana, sobretudo no período que
vai de meados da década de 30 a 1970. Se ajuda a iluminar o país que
conheceu, o depoimento escancara a alma do autor. E consolida a suspeita de
que a vida do homem Samuel Wainer foi a melhor reportagem concebida
pelo repórter Samuel Wainer.
O BRASILEIRO SAMUEL WAINER
Jorge Amado, 1987

Não sei se há grande coisa a acrescentar às palavras de Pinky Wainer e de


Augusto Nunes, escritas umas e outras para este volume de memórias de
Samuel Wainer. O curto texto de Pinky revela a essência do autor e da obra:
“a completa ausência de censura”, característica fundamental do livro, e “um
homem que viveu com intensidade, lutou muito, experimentou o poder e
soube perdê-lo”. “Terminou sua trajetória sem rancores, tolerante, otimista...
e ganhando a vida com seu trabalho”. Pinky disse tudo em duas páginas que
Samuel assinaria. Augusto Nunes acrescenta algumas informações precisas e
úteis sobre os anos finais da vida do jornalista. Mas eu prometi a Samuel que
escreveria o prefácio de seu livro, devo fazê-lo.
Samuel me falou deste livro de memórias na última vez em que estivemos
juntos, nos começos de 1980, na Livraria Siciliano, a da rua Dom José de
Barros, em São Paulo, em tarde de autógrafos de Zélia, minha mulher, cujo
livro de estreia, Anarquistas, Graças a Deus, saíra pelo Natal. Num recanto da
livraria ficamos os dois, a sós, matando saudades em uma conversa comprida
e derramada de lembranças, entremeada de risos e lágrimas. Sobretudo de
lágrimas, choramos muito naquele fim de tarde: Samuel era chorão, eu busco
me controlar, nem sempre consigo. Talvez tivéssemos o pressentimento de
ser aquela a última vez em que nos víamos, nossa última conversa. Um dia,
jovens e audazes, havíamos querido mudar a face do mundo, transformar o
Brasil e tornar a vida melhor; juntos, com alguns amigos, partimos para a
guerra. Agora ali estávamos, encostados a um balcão de livros, dois senhores
idosos, mas não graves, mais de quarenta anos depois: “te lembras
quando...?”. Demo-nos conta de que, em realidade, nessa guerra santa e louca
passáramos nossa vida, obstinados, irredutíveis.
Foi então que Samuel me contou e me programou:
– Sabes? Estou escrevendo minhas memórias, escrevendo é uma maneira
de falar, estou ditando, gravando em fitas, depois é só botar no papel. E tu
vais escrever o prefácio, faço questão. Sabes de mim mais e melhor do que
ninguém.
Um exagerado, Samuel. Assim era, sempre pronto a dar a mão aos demais
para ajudá-los, empurrá-los para a frente, tantas vezes esquecendo-se dele
próprio. Neste livro ele afirma que de seus amigos recebeu mais do que lhes
deu, fazendo uma espécie de autocrítica, rematada tolice. Não sei de ninguém
que tenha sido mais generoso na amizade, mais devoto de seus amigos, mais
preocupado com eles. Deixava de lado qualquer problema seu, por maior que
fosse, para tentar resolver dificuldades dos outros. Testemunhei, durante anos
de convivência diária, essa capacidade de abnegação, essa dedicação
intransigente, essa grandeza no amor.
Conheci Samuel nos começos de 1938, nos primeiros meses da ditadura do
Estado Novo. Eu chegara do México e dos Estados Unidos, via Amazonas,
fora preso em Manaus, às vésperas do golpe de Estado, em companhia de
Nunes Pereira, acusados de agentes bolcheviques ali enviados com a missão
de armar um levante de índios. Somente em janeiro recuperei a liberdade, no
Rio, e me encontrei desempregado. Meu romance Capitães da Areia, recém-
publicado, fora apreendido, queimado em praça pública em São Paulo e na
Bahia. Samuel iniciava então sua carreira jornalística, acabara de fundar a
revista Diretrizes, cujo primeiro número acabara de aparecer. Oficialmente,
tratava-se de publicação mensal. De fato, saía quando Deus ou o Diabo dava
bom tempo – o dinheiro necessário para o papel e a gráfica – e o
Departamento de Imprensa e Propaganda, o famigerado DIP, permitia.
Fui levado por Rubem Braga ao pequeno apartamento onde Samuel vivia
com Bluma, sua primeira mulher: ali funcionava a redação da recente e
indômita Diretrizes, fundada para derrubar a ditadura no Brasil e impedir a
marcha do nazismo, que ameaçava o mundo com a guerra. A guerra, aliás, já
havia começado na Espanha.
Um tempo confuso, dramático e difícil: não tínhamos dinheiro nem
trabalho certo, ao menos alguns de nós, vivíamos com os tiras em nossos
calcanhares, fregueses do DOPS, navegávamos em águas revoltas, mas
éramos jovens e fizemos misérias – nem acredito quando me lembro. Num
dos meus romances, Farda, Fardão, Camisola de Dormir, cujo tema é a luta
dos intelectuais contra o Estado Novo, faço aparecer a figura de um
jornalista, de nome Samuel, conto de seu interrogatório por um coronel
policial, fascista e literato, recriando fato real, acontecido com Samuel
Wainer, do qual ele dá notícia nestas Memórias. Vivíamos ardentemente,
mantínhamos o bom humor e a confiança em meio às ameaças e aos tropeços,
não perdíamos a perspectiva, acreditávamos na força da democracia, na
vitória da liberdade: um tempo inesquecível.
Colaboraram em Diretrizes, naquela primeira fase, os maiores nomes da
literatura brasileira, e a redação se compunha de jornalistas de grande talento.
Com o correr do tempo e as inevitáveis discórdias, vários de afastaram,
alguns se transformaram em adversários de Samuel; um deles, Carlos
Lacerda, um feroz inimigo. Um núcleo central, porém, permaneceu unido
desde então, solidário com a proposta da revista e com seu diretor. Esse
grupo de amigos acompanhou Samuel até o fim, esteve a seu lado em todos
os momentos, nos bons e nos maus, nos dias de poder e nos dias de tormenta,
homens da qualidade de Otávio Malta, de Noel Nutels, de Moacir Werneck
de Castro.
Durante anos vivi a aventura de Samuel Wainer no dia a dia, hora a hora. A
partir de certo momento as injunções políticas nos conduziram por caminhos
aparentemente diversos, se bem que continuássemos a guerrear a mesma
guerra com idênticos objetivos. Nem assim nossa fraterna amizade sofreu o
menor abalo; persistiu e se reforçou: sabíamos um do outro, estávamos juntos
sempre que possível, tínhamos a certeza de que podíamos contar um com o
outro para o que desse e viesse, sem vacilações nem dúvidas, sem qualquer
limitação.
“Eu teria a chance de ser, além de testemunha, um protagonista da
História”, escreve Samuel ao fazer, nas páginas deste livro, o balanço do que
foi sua trajetória de jornalista e de homem. No decorrer de nossa vida de
nação, uns quantos jornalistas foram, além de testemunhas, protagonistas da
História do Brasil. Entre eles os dois mais implacáveis inimigos de Samuel
Wainer: refiro-me a Assis Chateaubriand e a Carlos Lacerda. Mas Samuel,
em determinada época, simbolizou tudo quanto neste país significa
independência política, progresso, povo. Levantou as bandeiras das grandes
causas e por elas lutou, usando todos os recursos de uma inteligência lúcida e
de uma imaginação criadora, de um patriotismo sem limites. Patriotismo, eis
a palavra-chave, a que melhor explica a saga histórica de Samuel Wainer. Por
isso mesmo, os representantes da reação, do atraso, do espírito colonial, do
obscurantismo, tentaram por todos os meios destruí-lo, liquidá-lo. Para
acabar com ele, buscaram negar-lhe a condição de brasileiro numa ação tão
cruel e vil quanto idiota.
Não sei de nenhum outro jornalista, de nenhum outro cidadão que fosse um
brasileiro tão completamente brasileiro na maneira de reagir, de sentir, de
viver, de amar, de ser, quanto Samuel Wainer, menino do Bom Retiro, que se
fez, à custa do próprio esforço, uma das maiores figuras intelectuais de nossa
Pátria, um mestre. Sua vida teve o fulgor de estrela a iluminar os caminhos
do Brasil. Nossa guerra continua, a memória de Samuel Wainer é uma arma
do povo.
1ª Parte
CAPÍTULO 1
Perto das dez horas da noite de 6 de outubro de 1950, eu estava
reunido com dois homens num quarto do Castelinho, o chalé que o político
gaúcho Batista Luzardo, um dos heróis da Revolução de 1930, mandara
construir na fazenda estrategicamente situada no triângulo em que o Brasil
faz fronteira com a Argentina e o Uruguai. Sentado num canto, eu lia em voz
alta o texto de uma entrevista com Getúlio Vargas que deveria ser publicada
dois dias depois. Perto de mim, também sentado, João Goulart mantinha
estendida sobre uma pequena mesa a perna esquerda, afetada havia tempos
por uma lesão que prejudicaria para sempre seus movimentos. O terceiro
homem no quarto era o próprio Getúlio.
Getúlio Dornelles Vargas reconquistara a Presidência da República três dias
antes, pela vontade popular manifestada na eleição de 3 de outubro. Fora uma
vitória esmagadora, com números impressionantes. Candidato pelo Partido
Trabalhista Brasileiro, o PTB, Getúlio alcançaria quase 48% dos votos ao fim
das apurações, ainda em curso enquanto conversávamos no Castelinho.
Naquela noite, já havia conseguido uma vantagem de 800 mil votos sobre a
soma dos votos dos principais adversários – o brigadeiro Eduardo Gomes,
lançado pela UDN, e Cristiano Machado, do PSD. Aos 67 anos, estava de
volta ao poder o homem que governara o Brasil entre 1930 e 1945. Primeiro,
como chefe da revolução vencedora. Depois, como presidente constitucional.
Enfim, como ditador. Agora o Velho estava de volta.
Eu não via Getúlio desde o comício ocorrido uma semana antes na cidade
gaúcha de Erechim, já na etapa final da campanha. Ali, combinamos que
voltaríamos a encontrar-nos no Rio, às vésperas do dia da posse. Viajei de
imediato para a capital federal. Logo constatei que, desde os primeiros sinais
de que o triunfo de Getúlio seria inevitável, haviam começado a esboçar-se
manobras golpistas. Alzira Vargas, filha de Getúlio, e João Neves da
Fontoura, o grande tribuno da Revolução de 1930, estavam particularmente
intranquilos com os boatos, e pediram-me que partisse o quanto antes para a
fazenda de São Pedro, o quartel rural de Luzardo. Minha missão era
conseguir de Vargas um pronunciamento destinado a pacificar as Forças
Armadas e neutralizar intrigas ou conspirações ainda em gestação.
Cheguei na tarde do dia 6, levando cartas de Alzira e João Neves. Getúlio
leu ambas e convocou João Goulart para uma conversa a três. Fez-me
algumas perguntas, interessado em saber o que pensava das preocupações da
filha e do amigo. Depois, soltou uma das suas gostosas gargalhadas. E enfim
murmurou o comentário:
– Acho que Alzirinha e João Neves estão assustados demais.
Mas concordou com a sugestão: era o momento de divulgar declarações
tranquilizadoras.
– Bem, tu conheces o meu pensamento – disse-me. – Redige a entrevista,
com perguntas e respostas. Depois do jantar, vamos revê-la em conjunto.
Entreguei-me prontamente à tarefa. De posse de algumas cópias de
discursos pronunciados por Getúlio durante a campanha, datilografei cerca de
doze laudas. Conservei o estilo das diversas entrevistas que me concedera nos
meses anteriores, em forma de diálogo, com uma e outra gargalhada no
percurso, para conceder aos leitores pausas necessárias. Pouco antes das dez
da noite, Getúlio mandou que chamassem a mim e ao Jango. Ele não queria
que gente menos íntima conhecesse as razões de minha visita.
Perto da casa-grande, aglomerava-se uma pequena multidão formada por
jornalistas e políticos, que haviam começado a marchar sobre a fazenda de
Luzardo já no início das apurações. Simulando um passeio de rotina pela
campanha gaúcha, partimos os três em direção ao Castelinho, transformado
em escritório e quarto de dormir de Getúlio. Ele vestiu o pijama e pediu-me
que lesse o texto.
Na entrevista, Vargas afirmava que seu governo não seria sectário.
Prometia recrutar, para a composição do ministério, políticos de partidos
derrotados. Depois de reafirmar sua confiança irrestrita no espírito
democrático e nas raízes populares das Forças Armadas, descartava quaisquer
possibilidades de resistências militares. Fazia acenos de paz aos Estados
Unidos e às classes produtoras. Todas as respostas, em resumo, tratavam de
neutralizar as preocupações dos muitos setores inquietos com sua vitória.
Enquanto eu lia, Getúlio andava de um lado para o outro, soltando
baforadas de charuto e sorvendo goles de uísque. Terminada a leitura, serviu-
me pessoalmente uma xícara de café que o mordomo colocara sobre a mesa.
E então o presidente eleito falou:
– Profeta, gostei muito da entrevista. E gostei por duas razões. A primeira,
porque tu incluíste nela tudo o que eu disse. A segunda, porque incluíste nela
tudo o que eu não disse.
Fiquei emocionado. Pela primeira vez, Vargas me chamara pelo apelido
que dali por diante ele e seus íntimos usariam: Profeta. Meu prenome talvez o
tenha influenciado – Samuel é um bom nome para profetas. Mas ele estava
fazendo uma alusão ao fato de que eu fora o primeiro repórter a prever seu
retorno, e anunciá-lo nas páginas de um jornal.
Passava da meia-noite. Exausto, Getúlio deitou-se e chamou-me à beira da
cama:
– Quando segues para a Europa? – perguntou.
Respondi que pretendia embarcar em dois ou três dias, logo depois de
publicada a entrevista.
– Vai, Profeta, tu mereces um bom repouso – disse. – Mas vem procurar-me
quando voltares. Espero te recompensar pelos serviços que me prestaste.
Comovido, dei-lhe a única resposta possível:
– Presidente, se o senhor soubesse de onde saí, se conhecesse o caminho que
percorri até chegar à beira desta cama para participar de um momento
histórico na vida do país, saberia que não me deve nada. Sou eu que lhe devo
tudo.
Não havia exagero em minha resposta, nem qualquer traço de pieguice. Aos
38 anos, ouvia de um presidente da República que poderia ter o que quisesse.
Quase 25 anos antes, incorporado à saga de uma família de imigrantes
judeus, eu era um dos muitos meninos do Bom Retiro, o velho bairro de São
Paulo, e vivia confinado nas fronteiras de uma infância pobre. Muito tempo
depois, quando tentaram negar-me a condição de brasileiro – num episódio
de que adiante tratarei –, um delegado de polícia, em meio a um
interrogatório que pretendiam humilhante, fez-me a pergunta:
– Senhor Wainer, qual é a primeira imagem física que o senhor guarda de
sua pátria?
– A várzea do Bom Retiro – respondi-lhe em tom sereno.
Minhas mais remotas lembranças de fato se confundiam com a humilde rua
da Graça, uma rua de casas modestas, baixas, sem estabelecimentos
comerciais, que terminava na várzea. Na noite de 6 de outubro de 1950, ao
ouvir as palavras de Getúlio, também irromperia do fundo da memória a
visão da várzea do Bom Retiro. Lembrei-me de que cumprira uma longa e
fascinante trajetória até que me visse, num começo de primavera, perto da
cama de Vargas, numa descansada conversa noturna. Éramos amigos, unidos
por laços que o destino começara a tecer em março de 1949, numa tarde em
que voei ao encontro de Getúlio Dornelles Vargas.
CAPÍTULO 2
Sobrevoávamos o pampa há cinco dias num Cessna bimotor. Eu fretara o
avião em Porto Alegre, para uma reportagem sobre a cultura de trigo no Rio
Grande do Sul que me fora encomendada por Assis Chateaubriand, dono dos
Diários Associados. Além do piloto Nelson, ex-oficial da FAB, que mais
tarde seria piloto particular do presidente João Goulart, viajaram comigo dois
gaúchos, Tadeu Onar e Laudo Porto. Em fevereiro de 1949, um sábado de
carnaval, estávamos na rota de Porto Alegre quando tive a atenção despertada
para a conversa entre Nelson e Tadeu. Falavam de Getúlio.
– De vez em quando levo umas pessoas à estância do homem, depois vou
buscá-las – contou Nelson. – Sou um pouco piloto da família.
– Ele é meu amigo pessoal – gabou-se Tadeu.
Intrigado, perguntei se Getúlio Vargas estava recebendo visitas. Nelson
disse que sim. Deduzi que o movimento “queremista”, cujo programa se
resumia na frase “Queremos Getúlio”, estava efetivamente em marcha. Os
visitantes eram certamente políticos. Em 1947, convencido de que o
Congresso decidira tentar desmoralizá-lo, o parlamentar Getúlio Vargas –
eleito nas eleições gerais de 1945 senador por dois estados e deputado por
nove – resolvera retirar-se para a cidade natal: São Borja, na fronteira com o
Uruguai. Desde então, fechara-se em silêncio, deixara de receber jornalistas.
A conversa entre os pilotos me convenceu de que, naquele momento, Vargas
estava envolvido em articulações políticas.
Eu o vira de perto uma única vez. Em 1947, algum tempo depois de ter
publicado uma série de reportagens sobre a questão do petróleo, fui
procurado por Queirós Lima, assessor do ditador deposto. O emissário de
Vargas informou que seu chefe havia lido o que eu escrevera, gostara das
reportagens e estava interessado em obter cópias do texto. Pretendia usá-lo
para sustentar um discurso no Congresso. Achei interessante ver Getúlio de
perto – nunca tinha visto um ditador à minha frente – e fui ao gabinete no
Senado, no centro do Rio de Janeiro.
Getúlio abriu a porta da sala e perguntou:
– Quem é o Wainer?
Achei-o muito simpático, mas o encontro foi rapidíssimo. Ele elogiou as
reportagens, eu lhe entreguei os recortes. Foi só. Quase dois anos depois, ao
ouvir seu nome nos céus do Rio Grande, a ideia me ocorreu de imediato: por
que não entrevistar Getúlio Vargas? Estávamos nas imediações de Bagé, e
perguntei ao piloto quanto tempo levaríamos para chegar a São Borja. Duas
horas, calculou Nelson. Eram duas da tarde. Então, murmurei, chegaremos às
quatro. O piloto pareceu espantado:
– O senhor pretende ir lá?
Respondi afirmativamente.
– Não faça isso, porque ele não recebe – disse Nelson.
Compreendi que tanto o piloto quanto Tadeu Onar haviam sugerido uma
intimidade com Vargas que na verdade não tinham. Mas eu decidira que
tentaria a entrevista.
– Nelson, o avião é meu e nós vamos para lá – avisei. – Se ele me receber,
farei uma bela reportagem. Caso contrário, farei uma reportagem dizendo que
ele não recebe ninguém.
Como a casa da mitológica Fazenda do Itu estava em reformas, Getúlio
deixara o local onde vivera a maior parte do exílio voluntário para recolher-se
à fazenda Santos Reis, pertencente a um de seus irmãos, Protásio Vargas.
Combinamos que, se tivéssemos acesso a Getúlio, o piloto alegaria que o
avião estava em pane e não poderíamos decolar de volta naquela noite.
Pousamos em meio a um descampado infinito, logo se aproximou um peão a
cavalo.
– Ele é jornalista e quer ver o doutor Getúlio – resumiu Nelson.
– O chefe não vai receber – preveniu o peão. – Mas vamos até lá.
Outro empregado da fazenda, no volante de uma caminhonete, nos levou
até a casa, distante dois quilômetros do local do pouso. Nelson entrou em
casa com meu cartão, fiquei esperando num pátio. O cenário era bastante
romântico: roseiras, bancos de pedra, ao fundo a construção em estilo
colonial, uma típica casa de fronteira. Dois empregados montavam guarda,
armados de facões. Deduzi que o piloto, um fiel queremista, não tentaria
enganar o chefe: ele certamente diria que a história da pane não era
verdadeira. Concluí, também, que Tadeu Onar jamais vira Getúlio
pessoalmente.
De repente, a porta se abriu e vi Getúlio Vargas. Parecia um genuíno
boneco gaúcho, semelhante àqueles que se vendem aos forasteiros como
lembrança do Rio Grande do Sul. Baixinho, bombachas azuis, uma bonita
camisa xadrez, lenço no pescoço, chapéu, botas pretas, charuto na boca, ele
sorria. Pareceu-me um homem no auge do vigor físico e na plenitude da paz
interior. Então repetiu a pergunta feita em 1947:
– Quem é o Wainer?
– Sou eu, senador.
– E como vai o petróleo?
– Pelo que vejo, não sou eu que tenho que lhe pedir uma entrevista –
brinquei. – Eu é que vou ser entrevistado pelo senhor. Estou às suas ordens
para dizer como vai o petróleo. Vamos conversar.
Sempre risonho, ele concordou e mandou que eu me sentasse. Virou-se
para as poucas testemunhas do diálogo e comandou:
– Os senhores podem partir para a casa do capataz. Quero ficar a sós com o
Wainer.
Podia fotografá-lo?, perguntei. Ele atendeu ao pedido e fiz fotos
esplêndidas, ele sempre com um sorriso enorme. Abri a conversa:
– No momento, presidente, o petróleo...
– Estou informado sobre o petróleo – cortou. – Eu vou dizer o que penso do
momento político.
Pressenti, naquele instante, que chegara na hora certa ao local certo e ao
homem certo: Getúlio Vargas estava precisando falar. Quase noventa minutos
depois, eu tinha nas mãos uma entrevista que mudaria a história do país.
Getúlio começou a conversa estimulando uma candidatura militar. Mais
tarde concluí que, dessa forma, ele procurava assegurar a realização das
eleições presidenciais marcadas para 3 de outubro de 1950. Elogiou, por
exemplo, o brigadeiro Eduardo Gomes, um adversário histórico. “É um
homem a quem apoiaria”, disse Vargas. “Trata-se de uma candidatura
natural, uma candidatura lógica.” Tais palavras virtualmente lançavam a
candidatura do brigadeiro. Também elogiou Ademar de Barros, à época
governador de São Paulo. “Ninguém mais que Ademar tem o direito de ser
candidato”, afirmou o ex-ditador. E foi adiante, lançando candidaturas. Com
isso pretendia, acredito, que esses políticos o procurassem.
– E se o senhor viesse a ser candidato? – perguntei.
– Eu não sei... – começou Vargas. – Mas pode dizer uma coisa: eu voltarei.
Tremi. Ele pronunciara duas palavras mágicas. Desde que Getúlio deixara o
poder, pichações em muros de centenas de cidades do país repetiam uma
frase: “Ele voltará.” Agora a frase era formulada na primeira pessoa. Em
seguida, repetiu as palavras mágicas e acrescentou uma ressalva que cairia
como uma bomba sobre o mundo político brasileiro:
– Eu voltarei. Mas não como líder de partidos, e sim como líder de massas.
Quando a entrevista terminou, eu estava trêmulo, a cabeça em tumulto.
Embora um tanto afastado dos políticos, eu sabia que conseguira declarações
importantíssimas. Getúlio olhou para o relógio e, sempre sorrindo, sugeriu-
me que partisse:
– O avião está bom, não houve pane – disse. – O senhor deve levantar voo
agora, antes que o sol baixe.
Explicou-me que, em cinco minutos, estaríamos pousando em São Borja.
Recomendou-me que ali procurasse um jovem estancieiro conhecido pelo
apelido de Jango. Caminhamos juntos até o avião e, antes de subir a bordo,
perguntei-lhe se me autorizava a publicar o que ouvira. Ele me deu sinal
verde.
– E quando terei a segunda entrevista? – quis saber.
– Depende desta, depende da primeira – condicionou Vargas.
Ao despedir-se, pediu que levasse um abraço a Assis Chateaubriand. Os
dois eram inimigos, basicamente por dois motivos. O primeiro é que
Chateaubriand o traíra em 1945, aliando-se aos adversários do ditador. O
segundo é que, no passado, ambos haviam tido um romance com a mesma
mulher.
Em São Borja, corri para o hotel e anotei a lápis o que Getúlio dissera. Essa
era a minha técnica. Nas entrevistas, não fazia anotações, e sempre conseguia
deixar o entrevistado inteiramente à vontade. Pouco depois, eu estava na
praça principal de São Borja, em companhia do piloto Nelson, à procura de
João Goulart. Jango tinha uma forte ligação sentimental com Getúlio,
consolidada durante o retiro do ditador. O jovem estancieiro visitava quase
diariamente o chefe político exilado em seu próprio país. Nelson avistou
Jango, então com pouco mais de trinta anos, numa mesa de bar colocada na
calçada, defronte à praça. Ao ouvir meu nome, Jango, que estava rodeado por
amigos, fez um curto comentário:
– Ah, o senhor esteve com o Chefe.
Entre aqueles gaúchos, Getúlio Vargas era o “Chefe”. Atrás de Jango vi um
negro enorme. Era Gregório Fortunato.
Risonho, simpático, o jovem estancieiro convidou-me a sentar:
– Que tal o Chefe? – perguntou.
Disse-lhe que conseguira declarações muito importantes e pedi autorização
para atribuir-lhe algumas frases que, a meu ver, poderiam parecer demasiado
impertinentes vindas da boca de Vargas. Jango concordou. Fui dormir pouco
depois, porque pretendia viajar bastante cedo no dia seguinte. Decolamos de
São Borja às seis da manhã. Em Porto Alegre, excitado, corri para a redação
do Diário de Notícias, que pertencia à cadeia dos Diários Associados. Escrevi
a reportagem em três vias. Terminado o texto, apareceu o jornalista Ernesto
Correia, já informado de que eu estivera em São Borja. Comuniquei-lhe que
conversara com Getúlio, e Correia duvidou.
– Não pode ser, não pode ser... – repetia.
Entreguei-lhe uma das cópias e disse que, se quisesse, poderia publicá-la
em seu jornal.
À saída da redação, encontrei Alberto Pasqualini, o ideólogo do
trabalhismo gaúcho, e mostrei-lhe o texto da entrevista. Terminada a leitura,
ele pareceu surpreso:
– O Getúlio realmente falou isso que está aí?
Repliquei que não costumava inventar reportagens, nem modificar
declarações de entrevistados. Pasqualini indagou sobre o estado físico e
mental de Vargas. Informei-lhe que o velho ditador estava em pleno vigor
físico e, intelectualmente, em ponto de bala. Ele então se rendeu:
– Wainer, tu tens uma bomba na mão. Trata de soltá-la logo.
Fui para o aeroporto e voei para São Paulo. Na segunda-feira passei pela
sede dos Diários Associados, na rua 7 de Abril, e deixei uma cópia da
reportagem na mesa de Assis Chateaubriand, acompanhada de várias fotos.
Segui para o Rio de Janeiro. Como não se imprimiam jornais durante o
carnaval, tampouco na Quarta-Feira de Cinzas, eu teria de esperar pela
quinta-feira para ver impresso o resultado da minha entrevista com Getúlio.
Valeu a pena esperar: como previra Pasqualini, foi uma bomba que, detonada
na fronteira gaúcha, espalharia estilhaços por todo o país.
Na madrugada de 2 de março de 1949, Quarta-Feira de Cinzas, fui
acordado por um telefonema de Assis Chateaubriand, que ligara de São
Paulo. Ele estava irritado:
– Ó Wainer, então o senhor passou por aqui e não me deixou a reportagem
sobre o trigo no Sul? Preciso dela amanhã – disse Chateaubriand.
Expliquei-lhe que não tivera tempo de escrever a reportagem, ele ficou
furioso.
– Mas o senhor ficou cinco dias – insistia. – Cinco dias para fazer uma
reportagem. O senhor vai me prejudicar.
Sugeri-lhe que fosse até sua mesa – ele havia ligado da redação dos Diários
Associados –, examinasse o material que lhe deixara e voltasse a telefonar.
Chateaubriand esboçou uma reação, tratei de interrompê-lo com voz calma:
– Por favor, doutor Assis. Leia e me telefone.
Ele, afinal, concordou. Às cinco da madrugada, o telefone tocou
novamente. O tom de Chateaubriand era outro.
– Ele falou isso mesmo?
Confirmei.
– O senhor garante? – insistiu.
Lembrei-lhe que nunca tivera uma reportagem desmentida.
– Então, senhor Wainer, vamos engordar esse porco até levar o pânico à
nossa estúpida burguesia – encerrou Chateaubriand.
Com essa imagem grosseira, ele resumia seu projeto político. Para
Chateaubriand, convinha assustar os donos do poder com o fantasma da volta
de Getúlio Vargas; interessava-lhe fortalecer Getúlio, dando ressonância à
voz do ex-ditador. Era isso o que pretendia dizer com a expressão “vamos
engordar o porco”. Segundo a estratégia política do dono dos Associados, o
pânico gerado pelo crescimento do movimento queremista provocaria o
cancelamento das eleições presidenciais de 1950 e a ascensão do então
ministro da Guerra, general Canrobert Pereira da Costa. Era Canrobert o real
candidato de Assis Chateaubriand.
Ainda na madrugada daquela quarta-feira, na mesma conversa telefônica,
Chateaubriand começou a dar ordens: ele queria muito barulho. Mandou que
eu acionasse as chefias de O Jornal e da Rádio Tupi. Queria que a entrevista
fosse transformada em manchete de primeira página do seu jornal e na notícia
principal dos programas informativos de sua emissora de rádio. Na quarta-
feira tudo foi preparado. Na quinta, a bomba explodiu.
O melhor programa noticioso do país era O Grande Jornal Falado Tupi, que
começava às cinco da manhã e terminava às sete. Naquele dia, sucessivas
vezes, repetiu-se uma gravação com a frase que se tornaria famosa: “Eu
voltarei como líder de massas.” A gravação fora feita pelo locutor Silvino
Neto, pai do humorista Paulo Silvino, que imitava à perfeição a voz de
Getúlio. O presidente Eurico Dutra, que costumava acordar bem cedo e ouvir
o Grande Jornal Falado Tupi, levou um susto enorme: ele pensou que a voz
era do próprio Getúlio.
Na mesma quinta-feira, o jornal soltou a manchete: “Eu voltarei como líder
de massas.” No alto, aparecia um selo que se tornaria a marca registrada das
minhas entrevistas com Getúlio: “De Vargas para Wainer.” Meia hora depois
de chegar às bancas, a edição se esgotou. O Jornal vendia em média nove mil
exemplares. Vendeu, naquela quinta-feira, 180 mil. Chateaubriand
imediatamente mandou que a entrevista fosse publicada pelo Diário da Noite,
que também viu esgotar-se uma edição de 180 mil exemplares. Durante um
mês inteiro, o país não falaria de outro assunto. Já no dia seguinte, os jornais
da cadeia associada entrevistaram o líder integralista Plínio Salgado. A
manchete: “O ditador não voltará.” Outros políticos entraram no debate, e a
polêmica permaneceu acesa. Chateaubriand estava felicíssimo: nunca vendera
tantos jornais, e o porco começava a engordar.
Alguns jornalistas se enciumaram com o sucesso da entrevista, mas tive
largas compensações. Passei a ser permanentemente solicitado por políticos
interessados em saber como estava Getúlio; queriam detalhes, quaisquer
detalhes. Nas ruas, populares me abordavam também em busca de
informações. Todos queriam notícias de Getúlio. Colhi, assim, mais
evidências de que eu encontrara um grande assunto. Mas só mais tarde
compreendi que poderia explorar com exclusividade aquele imenso filão
jornalístico.
Comecei a suspeitar de que isso ocorreria alguns dias depois, num fim de
noite na boate Vogue, no Rio de Janeiro. A certa altura, levantei-me para ir
ao banheiro, e um homem sentado perto da mesa onde me encontrava
caminhou em minha direção.
– O senhor é o Wainer? – perguntou, antes de dizer quem era: coronel
Benjamim Vargas, o irmão caçula de Getúlio. Dizia a lenda que Benjamim
era um fronteiriço violento. O homem que conheci naquela noite pareceu-me
extremamente suave. Disse-me que gostaria de conversar a sós, fomos para
um canto da boate.
– Vou ler uma carta que recebi ontem de meu irmão – avisou Benjamim.
Na carta, Getúlio recomendava ao irmão que me procurasse. Dizia que
nenhum outro jornalista havia interpretado com tanta correção seu
pensamento e pedia a Benjamim que me transmitisse seus agradecimentos.
Vargas estava exultante com a repercussão da entrevista. Contava que passara
a ser procurado por dezenas de políticos e que cartas do Brasil inteiro
choviam sobre São Borja. “O povo me redescobriu”, alegrava-se Getúlio a
certa altura. Terminada a leitura, eu estava entusiasmado.
– Espero voltar a ver o presidente – disse a Benjamim.
Ele lembrou que a data do aniversário de Getúlio, 19 de abril, estava
próxima. Seria sua primeira aparição pública depois da longa clausura. Ao
me separar de Benjamim Vargas, eu estava decidido a fazer uma segunda
entrevista com o grande solitário. Compreendera, sobretudo, ter chegado a
hora de me concentrar num assunto fascinante: Getúlio Vargas.
CAPÍTULO 3

Na manhã de 19 de abril de 1949, dia do aniversário de Getúlio Vargas, voei


para o Rio Grande do Sul e para meu primeiro encontro com o ex-ditador
depois da publicação da histórica entrevista feita no carnaval. Às onze horas,
cheguei à estância São Vicente, de propriedade da família Goulart, palco da
concentração convocada para homenagear o aniversariante. Deparei-me com
um cenário tão grandioso quanto os descritos por John Reed em Dez Dias que
Abalaram o Mundo, um painel perfeito para um filme de Serguei Eisenstein.
Milhares de gaúchos marchavam sobre a fazenda numa gigantesca procissão.
Chegavam a cavalo, chegavam a pé, vinham de longe, trajando ponchos
vistosos. Era o povo marchando ao encontro de seu líder.
Encostado a um canto, observei o espetáculo. Os gaúchos aproximavam-se
do líder, apertavam-lhe a mão e repetiam uma frase: “Doutor Getúlio, conte
conosco.” Sentado na varanda da casa da fazenda, cercado por uma corte
formada por chefes políticos, Getúlio estava feliz. Alternava baforadas em
seu charuto com gargalhadas – ria muito, encantado com as demonstrações
de carinho de sua gente. De repente ele me viu. Chamou-me, trocamos um
forte abraço.
– Olhe, Wainer, estava à tua espera para agradecer a honestidade da
entrevista – disse.
– Não é preciso agradecer, presidente: este é o meu papel – retruquei. –
Limitei-me a reproduzir o que o senhor afirmou.
Getúlio sorriu mais uma vez e observou:
– Sim, mas na imprensa não é esta a regra.
Em seguida, convidou-me a fazer-lhe companhia numa mesa onde se
sentavam alguns de seus mais íntimos aliados. Aproveitei a chance:
– Então, o senhor vai me dar outra entrevista?
– Não, não é hora de falar – negaceou Getúlio. – Quem vai falar agora é o
Jango.
Imediatamente João Goulart subiu a uma árvore enorme e, com sua voz de
menino, fez um discurso em que lançava a candidatura de Getúlio Vargas à
Presidência da República. Jango não era um bom orador – mais tarde ele
aprenderia alguns truques de oratória –, mas falava com a comovente
espontaneidade dos jovens. Sob o completo silêncio da plateia imensa, aquela
voz ecoava pelos pampas, anunciando a volta do ex-ditador. O fotógrafo que
me acompanhava registrou cenas lindas: Jango discursando do alto da árvore,
Getúlio gargalhando na varanda. Eu pressentia que estávamos documentando
um capítulo crucial da História do Brasil.
Deixei a fazenda às quatro da tarde. Em Porto Alegre, escrevi a reportagem
cujo título era “A Rebelião Queremista”. Dormi na capital gaúcha e no dia
seguinte, às seis da manhã, segui para o Rio de Janeiro. Cheguei à redação às
onze horas, e pouco depois os jornais dos Diários Associados contavam o que
eu acabara de testemunhar. Na reportagem eu afirmava que, se as regras
democráticas efetivamente vigorassem no Brasil, nada deteria a maré
queremista. Jango depois me contou que, quando exemplares dos jornais
chegaram a São Borja, os getulistas liam e choravam. Em lágrimas,
carregavam recortes. Os jornais de Chateaubriand começaram a vender mais
de duzentos mil exemplares, os adversários de Getúlio entraram em pânico.
Constataram que a rebelião queremista efetivamente estava em marcha. No
meu primeiro encontro com Getúlio, em São Borja, eu agira com relativa
frieza. Ali estava, claro, um grande entrevistado – mas nada mais que isso.
No segundo encontro, minhas relações com Getúlio começaram a mudar.
Passei a interessar-me também pelo homem Getúlio Vargas, e ele igualmente
passou a encarar-me como ser humano. Entendi que havia uma profunda
afinidade entre nossas ideias. Enfim, eu começara a deixar de ser apenas um
entrevistador de Getúlio para transformar-me, também, num amigo do
homem que poucos meses depois estaria de volta à Presidência da República.
Essa situação, se me transformava num espectador privilegiadíssimo da
História, também me criaria problemas. Velhos amigos que, como eu, haviam
participado da resistência ao Estado Novo passaram a tratar-me como um
oportunista interessado na vizinhança do poder. Além disso, aos olhos de
muita gente, eu deixara de ser um repórter para tornar-me “o amigo do
Homem”. Não cheguei a angustiar-me por isso, e continuei a aproximar-me
de Vargas. Eu sabia que Getúlio me usava para transmitir seus pontos de
vista e, eventualmente, para favorecer suas jogadas políticas. Isso não me
incomodava. Certa feita, por exemplo, ele me convocou para uma entrevista
na qual afirmava que, em 1945, não fora derrubado pelo Exército, e sim,
pelos americanos. Limitei-me a publicar a versão de Getúlio, sempre com
enorme repercussão. No dia seguinte à publicação dessa reportagem, O
Globo publicou uma página inteira sob o título: “A Mentira do Ditador”.
Transformei-me num repórter bajulado por políticos interessados em obter
mais repercussão para suas declarações: se elas aparecessem numa entrevista
assinada por Samuel Wainer, certamente virariam notícia. Participei de
ocorrências extravagantes. Ainda em 1949, Ademar de Barros, governador de
São Paulo, propôs a Assis Chateaubriand que eu o entrevistasse a bordo de
um avião. Ele achava que, a três mil metros de altitude e registradas por mim,
suas declarações alcançariam enorme efeito. Esperto, Chateaubriand
respondeu-lhe que a entrevista seria feita desde que Ademar pagasse
trezentos contos de réis – uma fortuna, na época. Ademar concordou.
Chateaubriand chamou-me, revelou-me o acerto e informou que eu receberia
uma comissão de 20%. Era tanto dinheiro que, com essa comissão, comprei
um apartamento para minha primeira mulher na avenida Nossa Senhora de
Copacabana, no Rio. A reportagem foi publicada na revista O Cruzeiro.
Chateaubriand, que detestava dar dinheiro a seus repórteres, fez-me uma
profecia:
– O senhor vai ficar rico.
Em março de 1950, Ademar de Barros seria um dos protagonistas de um
episódio histórico a que pude assistir graças às trapaças da sorte. Cheguei à
estância em Itu para uma de minhas frequentes visitas a Getúlio e senti que
havia algo de novo no ar. Os empregados da fazenda, que sempre me
recebiam com extrema cordialidade, pareceram ressabiados. Também Getúlio
pareceu-me demasiado reticente. A certa altura, ele próprio revelou-me as
razões daquela mudança de clima.
– Wainer, tenho umas pessoas que hoje vêm me visitar e não gostaria que tu
as encontrasses – disse Getúlio. – Mas, já que estás aqui, espero que
conserves total discrição sobre este encontro.
Pouco depois pousava na fazenda o DC-3 de Ademar de Barros, a famosa
“boate voadora”, trazendo o governador paulista e alguns assessores diretos.
Ademar viajara a São Borja para discutir os termos de um eventual acordo
que lhe permitiria apoiar a candidatura de Vargas. Participaram do encontro
Danton Coelho, que depois seria ministro do Trabalho de Getúlio, e o general
Estillac Leal, que mais tarde assumiria o Ministério da Guerra. Dessa longa
reunião na estância de Itu resultaria o Pacto da Frente Popular Brasileira. Por
esse acordo, Getúlio seria o candidato às eleições de 1950 e apoiaria, em
1955, a candidatura de Ademar de Barros à Presidência.
Não presenciei as discussões, mas não me foi difícil descobrir o que ali se
passara. Eu fiz a viagem de volta no avião de Ademar. O governador paulista
nem bem se acomodara numa poltrona, ajeitando com dificuldade a barriga
imensa, e as queixas já começaram:
– Teu amigo me corneou – disse Ademar com sua legendária sem-
cerimônia. – É um filho da puta, mas não há alternativa: teremos que sair
juntos.
Ademar contou-me, então, um detalhe da reunião que depois se
incorporaria ao folclore das espertezas de Vargas. Ao longo das discussões,
decidiu-se que o vice-presidente seria indicado pelo Partido Social
Progressista, o PSP, controlado por Ademar. O vice de Getúlio, Café Filho,
efetivamente sairia dos quadros do PSP. Decidiu-se, também, que Getúlio e
Ademar estariam juntos na campanha de 1955. Terminadas as conversas,
manifestou-se o estilo de Vargas. Depois de assinar o documento que
continha os termos do acordo, o governador de São Paulo passou a caneta a
Getúlio. Então, Getúlio ponderou que, em função dos esforços que
desenvolvera para a consumação do acordo, Danton Coelho merecia assinar o
documento em nome do candidato. Ademar ficou atônito, mas Vargas tratou
de passar a caneta a Danton. Depois, todos os presentes assinaram o
documento histórico. Entre os signatários, faltava um único nome: Getúlio
Vargas.
Em janeiro de 1951, às vésperas da posse de Getúlio, marcada para o dia
31, o presidente eleito e Ademar encontraram-se em Campos do Jordão, para
discutir algumas nomeações destinadas a preencher cargos no primeiro
escalão. Ademar estava especialmente exigente, e conseguiu mais fatias do
bolo do que Getúlio imaginava ceder. Numa noite, depois de alguns dias de
conversas, Getúlio chamou-me a seu quarto e fez-me um pedido: seria
possível publicar uma notícia nos jornais do dia seguinte? Perguntei-lhe do
que se tratava. Ele pediu-me que divulgasse a informação de que, convidado
a descansar em Campos do Jordão pelo governador de São Paulo, o
presidente eleito tivera a surpresa de ver o anfitrião apresentar-lhe a conta – e
pagara. Publiquei a notícia. Ademar ficou irritadíssimo. Ele compreendera o
recado: por vias sinuosas, Getúlio estava avisando a Ademar que, com as
concessões feitas em Campos do Jordão, estavam quitadas as contas abertas
pelo Pacto da Frente Popular Brasileira. Rompia-se, assim, a aliança que
facilitara a volta de Getúlio ao poder.
Essa aliança fora celebrada naquele encontro no Itu que eu, fiel à promessa
feita a Getúlio, não havia noticiado. Alheio ao que ali se passara, o país
permaneceu atento a uma data decisiva: 2 de abril de 1950. Pelas leis em
vigor, o governador Ademar de Barros teria de desincompatibilizar-se nesse
dia, para ganhar condições de candidatar-se à Presidência da República. A
decisão de Ademar era de importância crucial para os rumos da sucessão. O
brigadeiro Eduardo Gomes já fora lançado pela UDN, e o mineiro Cristiano
Machado era o candidato do PSD. O PSD, contudo, planejava substituir
Cristiano Machado pelo ministro da Guerra, general Canrobert Pereira da
Costa, e para isso montou uma complicada trama destinada a induzir o
governador de São Paulo a apoiar a candidatura do ministro da Guerra.
Para que a trama tivesse êxito, seria indispensável que Ademar deixasse o
governo paulista a 2 de abril para lançar-se candidato. Nesse caso, seria
substituído pelo vice-governador Novelli Júnior, genro do presidente Eurico
Gaspar Dutra. A Novelli caberia promover uma ampla devassa na
administração de Ademar e recolher evidências que permitissem ao governo
federal apresentar ao candidato a seguinte opção: se mantivesse a
candidatura, sofreria uma implacável campanha de desmoralização; se
desistisse do projeto e apoiasse Canrobert, seus deslizes seriam esquecidos.
Habilidoso, certamente a par da trama que se montava às suas costas, Ademar
manteve o país em dúvida até a noite de 2 de abril. Nesta noite, informara,
anunciaria sua decisão.
No dia 2 de abril, dezenas de repórteres correram ao Palácio dos Campos
Elíseos, sede do governo paulista, para registrar a decisão de Ademar. Por
conhecer os termos do acordo do Itu, decidi procurar o general Canrobert na
casa do ministro da Guerra, uma construção colonial localizada perto do
Maracanã, no Rio de Janeiro. Cheguei por volta de sete e meia da noite.
Informado pela guarda de que eu estava à sua procura, o general veio receber-
me. Expliquei-lhe que gostaria de ouvir a seu lado o pronunciamento de
Ademar. Era ele, afinal, o principal interessado na informação que o
governador de São Paulo divulgaria pelo rádio.
– Pois não, Wainer – concordou Canrobert, risonho. – Vamos, então, tomar
um uísque.
Às oito horas, encerrada a Hora do Brasil, Ademar começou a falar. Toda a
família do general já fora dormir. Sozinhos numa sala, ficamos à escuta da
voz fanhosa de Ademar de Barros.
Para Canrobert, o pronunciamento seria uma completa decepção. Ademar
fez uma longa introdução para dizer que, “em defesa da autonomia do Estado
e da democracia”, resolvera permanecer no poder. Ao ouvir essa frase, o
ministro da Guerra – habitualmente um homem cordial, de boas maneiras –
deu uma cusparada que atravessou a sala e disse três palavras:
– Filho da puta!
Depois de menear seguidamente a cabeça – pensava certamente em seus
sonhos presidenciais destruídos –, Canrobert fez um comentário que, no dia
seguinte, todo o país estaria comentando:
– Agora, quem for eleito toma posse – prometeu. – Eu serei o fiador.
Dei-lhe um abraço e corri para a redação. Dali, liguei para a casa de
Chateaubriand.
– Onde estava o senhor? – perguntou-me, em tom aborrecido. – Mandei
procurá-lo por toda parte.
Contei-lhe o que acontecera. Chateaubriand, que até aquele momento agia
como um apaixonado cabo eleitoral de Canrobert, disse uma de suas
inesquecíveis frases cínicas:
– Então, senhor Wainer, dê tudo isso no alto da primeira página. Vamos dar
um enterro de primeira classe a essa viúva rica.
No dia seguinte, O Jornal anunciava que quem ganhasse tomaria posse, e
que o fiador dessa promessa era o próprio Exército brasileiro. Foi mais um
furo jornalístico, que obteria enorme repercussão em todo o país. Foi,
também, mais um serviço prestado aos projetos presidenciais de Getúlio
Vargas. A partir daquela declaração, o ministro da Guerra certamente teria
menos desenvoltura para aliar-se a eventuais manobras golpistas.
CAPÍTULO 4
Outras reportagens e outros furos viriam nos meses seguintes, num ritmo que
logo me levaria ao auge da carreira de repórter. Respeitado, temido, bajulado,
eu saboreava minha glória particular, sem tempo nem disposição para temer
eventuais armadilhas do destino. Uma delas me surpreenderia durante o mês
de setembro de 1949. Numa tarde de muito calor, eu caminhava pela avenida
Rio Branco, no centro do Rio de Janeiro, quando senti que estava bastante
febril. Procurei o consultório de um médico amigo, Jaime Leite de Barros,
perto dali. Ele imediatamente submeteu-me a alguns exames e constatou a
presença de duas manchas num dos pulmões.
– Você tem uma coisa no pulmão – informou, sem entrar em detalhes. – Vá a
um especialista.
Fiquei sobressaltado. “Alguma coisa no pulmão” era um modo eufemístico
de se referir à tuberculose. E tuberculose, naquela época, era virtualmente a
morte.
Jaime Leite de Barros indicou-me um especialista; deixei o consultório
extremamente abatido. Sempre tive muito pudor em relação a doenças – não
gostava de confessar aos meus íntimos que não estava bem, preferia ocultar
meus males. Também naquela ocasião decidi que nada revelaria. Fui ao
endereço recomendado. Era o consultório de um médico que já fora
tuberculoso e que agia como um autêntico açougueiro, de modo brutal.
– Você tem dois furos no pulmão, está condenado – disse-me ele depois de
alguns exames. – A solução é instalar-se em algum lugar e esperar, não há
saída.
Saí dali desesperado, e então o destino colocou em meu caminho, no meio
da rua, um perfeito gentleman chamado Otávio de Souza Dantas. Eu
caminhava chorando, as lágrimas corriam soltas pelo rosto. Otávio, que há
tempos era meu amigo, subitamente surgiu diante de mim. Perguntou-me o
que se passava, contei-lhe.
– Não há problema – comentou Otávio depois de ouvir o relato. – Vamos
tomar um uísque.
Levou-me para um bar ali perto, ordenou-me que tomasse meio copo de
uísque e contou que, muitos anos atrás, também tivera tuberculose.
– Passei seis anos na Suíça, e tanto fiquei bom que fui fazer a guerra de
1914 – disse. – Por isso, não se entregue; vá ver o doutor Aloísio de Paula.
Aloísio de Paula era um homem de espírito extremamente sensível, muito
ligado às artes, além de ser então considerado o maior tisiólogo da América
Latina. Examinou-me minuciosamente e deu seu veredicto:
– Realmente, o caso é muito grave. Os dois pulmões estão afetados e você é
um tabagista incorrigível. A saída é você passar alguns anos na Suíça; é
possível que lá você se recupere.
Reagi: para a Suíça eu não iria. Ponderei que estava no auge de minha
carreira e de modo algum pretendia interrompê-la. Ademais, não tinha
recursos materiais para aquela temporada na Europa. Aloísio insistiu, segui
rechaçando a ideia. Ele então cedeu, admitindo que poderíamos tentar a cura
no Brasil. O essencial era comer bastante, descansar, comer, descansar e, se
possível, conseguir alguns remédios que acabavam de ser lançados no
exterior. Prontifiquei-me a obedecer a uma rigorosa dieta. Naquela época, eu
vivia gloriosamente meu apogeu. Bebia pouco, mas fumava
desesperadamente, tomava comprimidos para não dormir, saboreava meu
sucesso com as mulheres. Mas entendi que deveria abrir mão de tudo aquilo
para salvar minha vida.
Aloísio sugeriu que me transferisse de imediato para um sanatório em
Palmira, uma cidadezinha no interior de Minas Gerais. Viajei no dia seguinte,
de táxi, acompanhado pela minha irmã Berta. Despedimo-nos, e tive um
acesso de choro. Mas logo atirei-me à luta pela sobrevivência. Comia dúzias
de frutas, quilos de chocolate, bebia litros de leite. Lia muito, e reconciliei-me
com o sol: ficava horas estirado num sofá, até que escurecesse. Graças à
comovente movimentação de amigos, injeções de estreptomicina – à época
um remédio moderníssimo – chegavam de todos os cantos do mundo.
Quarenta dias depois, eu ganhara quinze quilos. Fiz então novos exames, e
descobri que estava curado. O diretor do sanatório fez um comentário
pressago:
– É inútil ir embora, porque você acabará voltando; todos voltam.
Telefonei para Aloísio de Paula e informei que estava pronto para deixar o
sanatório.
– Não venha, espere – recomendou.
Mas eu já tomara minha decisão.
– Está bem – admitiu afinal Aloísio. – Mas só concordo com uma condição:
você vai ficar sem sair de casa pelo menos dois meses.
Estávamos no final de outubro. Viajei para o Rio e iniciei meu período de
clausura. Eu tinha medo de caminhar pelas ruas, achava que poderia
contaminar as pessoas. Era, como hoje se sabe, um medo tolo. Duas semanas
depois, fui a um almoço da Associação Brasileira de Imprensa, e meus
colegas me olharam com o olhar perplexo de quem vê um ressuscitado.
Resolvi, então, pedir a Getúlio Vargas que me hospedasse por alguns dias na
estância do Itu.
Getúlio respondeu prontamente: eu deveria viajar o quanto antes. Durante o
meu retiro no sanatório, ele dera poucas declarações. Entendi que lhe fizera
falta, já éramos amigos. Convivemos durante dez dias, ao longo dos quais nos
aproximamos fortemente como seres humanos. Eu tomava muito leite, ele se
distraía com seus cavalos, conversávamos demoradamente. Assaltou-me,
então, a inquietação típica dos tuberculosos recém-recuperados, e voltei ao
Rio. Era dezembro. Faltavam poucos dias para a chegada do ano que seria
marcado por uma campanha presidencial destinada a mudar os destinos do
Brasil.
A campanha do candidato Getúlio Vargas começou a 12 de agosto de 1950
com um imenso comício da Esplanada do Castelo, no Rio de Janeiro, e
duraria 51 dias. Nesse período, o estado-maior getulista percorreria as
principais cidades do país a bordo de dois aviões – a ‘boate voadora’ de
Ademar de Barros e um outro cedido pela Cruzeiro do Sul. Encarregado de
cobrir a campanha para os Diários Associados, incorporei-me à comitiva. E
constatei, um tanto perplexo, que não havia outros jornalistas a bordo. A
grande imprensa parecia decidida a silenciar sobre os passos do ex-ditador.
Um e outro repórteres apareceriam em determinados comícios, mas não havia
jornalistas empenhados na cobertura integral. Eu era o único. Nessa condição
privilegiadíssima, viveria uma das mais apaixonantes aventuras da minha
vida.
Depois do comício de abertura no Rio, voamos para Manaus – e já na
capital do Amazonas pude pressentir que espécie de espetáculo me caberia
testemunhar. No aeroporto, a polícia teve de dispersar o povo para permitir
que o avião encontrasse espaço na pista de pouso. Depois, durante o comício,
o palanque sacudia, abraçado pela multidão. Eram camponeses com pés de
Portinari, brasileiros descalços, gente humilde, homens sem posses que
vinham saudar o “Pai dos Pobres”. Emocionado com o que vira, comparei o
espetáculo oferecido por aquela massa às cenas proporcionadas na Índia pelas
multidões que saudavam Gandhi. Numa reportagem publicada pelos Diários,
afirmei que Getúlio era um Gandhi brasileiro. Essa comparação seria
assimilada pelo próprio Getúlio e por outros oradores da campanha. “Sinto-
me como Gandhi”, disse-me Vargas dois dias depois da publicação da
reportagem, sem contudo informar se a havia lido.
Cruzamos o Norte para depois descermos pelo Nordeste, com o candidato
protagonizando espetáculos cada vez mais impressionantes. As multidões não
portavam cartazes, não bradavam palavras de ordem, não exibiam
consciência política. Eram apenas getulistas. Isso era tudo – e não era pouco.
Não pediam terra, não pediam pão. Pediam Getúlio, e nisso resumiam todas
as suas aspirações. “Getúlio!”, uivavam centenas de milhares de pessoas, em
todas as capitais, em todos os estados. Era um uivo, e pelo resto de minha
vida eu me lembraria daquele som que vinha do fundo da alma do povo.
Logo compreendi que a vitória era questão de tempo, mas haveria de recolher
mais evidências de que estava contemplando a irresistível marcha para o
poder do maior líder popular da História do Brasil.
Nessa marcha, testemunhei episódios que me revelaram mais facetas da
fascinante personalidade de Getúlio Vargas. Num deles, ocorrido em
Teresina, mesclaram-se a tolerância e a esperteza. Por coincidência,
chegamos à capital do Piauí no mesmo dia para o qual estava marcado um
comício do brigadeiro Eduardo Gomes. Entendi que ali surgira uma boa
chance para que os dois adversários dessem ao Brasil uma lição de
democracia. Procurei o deputado federal José Cândido Ferraz, chefe da
campanha do Brigadeiro no Estado, e fiz-lhe uma proposta: que tal se,
encerrados os comícios, Getúlio Vargas e Eduardo Gomes se encontrassem
para um aperto de mãos? O deputado José Cândido pareceu gostar da ideia.
Fui a Getúlio, que concordou prontamente e sugeriu que fotografias da cena
histórica fossem enviadas o quanto antes a todo o país. Em seguida, visitei o
Brigadeiro. Ao ouvir a proposta, o candidato da UDN ficou lívido:
– Não darei a mão a esse homem enquanto for vivo – cortou.
Esse era o clima que cercava a campanha eleitoral de 1950. Getúlio
avaliava com precisão os riscos embutidos nesse clima de radicalização, mas
seguia imperturbável. Estava sempre bem barbeado, com boa aparência,
cheirando a água de colônia. Mostrava-se permanentemente amável, risonho,
conservando o equilíbrio mesmo quando se transformava no alvo da disputa
aberta entre correntes rivais. Em Natal, por exemplo, dois grupos distintos,
cujo único traço comum era o apoio a Getúlio, quase promoveram violentos
distúrbios de rua na tentativa de monopolizar o candidato. A temperatura
estava tão alta que às dez horas da noite chegou à redação dos Associados em
Natal um telegrama de Assis Chateaubriand informando que circulavam
boatos dando conta de que Vargas sofrera um atentado. Chateaubriand queria
uma resposta imediata. Resolvi conferir, e fui à casa onde Getúlio estava
hospedado.
Esbarrei na figura imensa de Gregório Fortunato.
– Quero falar com o homem – avisei.
Gregório respondeu que Getúlio estava dormindo. Pressenti que não era
verdade, insisti, ele afinal cedeu. Ao subir, encontrei Getúlio lendo um jornal,
já de pijamas, e fumando um charuto. Mostrei-lhe o telegrama de
Chateaubriand e o próprio candidato ditou a resposta: “Não houve atentado
contra Vargas. Mas, se atentado houvera, teria sido por excesso de amor.” Ele
ria muito ao reler o texto. Parecia adivinhar a reação de Chateaubriand,
saboreá-la.
As proezas do candidato se sucediam. No Recife, onde também se repetiu o
milagre da união de facções rivais, uma chuva fortíssima começou a cair no
momento em que Getúlio se preparava para falar às trezentas mil pessoas que
se aglomeravam na praça. O discurso não demoraria menos que quarenta
minutos – tratava-se, afinal, do comício marcado para a cidade mais
importante do Nordeste. Vargas imediatamente colocou o texto num bolso do
paletó e limitou-se a pouquíssimas palavras: “Brasileiros, pernambucanos: o
que aqui está escrito é o que está escrito no meu coração”, afirmou. “E todos
vocês sabem o que está escrito no meu coração: meu amor pelo povo!” A
multidão delirou e começou a dispersar-se gritando o nome do candidato.
Eu testemunhava tudo aquilo sozinho. Graças à miopia da imprensa, tornei-
me o dono de uma espécie de marcha de Napoleão. Passava os dias ao lado
de Getúlio, presenciava conversas e acordos decisivos, assistia a comícios
fantásticos – e relatava tudo em longos telegramas para a redação dos
Associados no Rio de Janeiro. Sempre espertíssimo, Chateaubriand entendeu
que sua rede de jornais conseguira a virtual exclusividade na cobertura de um
assunto que apaixonava o Brasil – e abriu-me todos os espaços.
Nenhum outro jornalista descreveu, por exemplo, o espetáculo que foi o
comício em Salvador, na Bahia. Antes do comício, mais uma vez, eu vira
Getúlio entretido na arte de tecer alianças teoricamente inviáveis. No
palanque, cercado de políticos que até então se combatiam com ferocidade,
Vargas falou para centenas de milhares de pessoas que ovacionavam cada
frase do discurso. Naquele momento, concluí que o destino da eleição estava
selado.
De Salvador, passei um telegrama para Assis Chateaubriand com um texto
curto e profético: “Iluda-se quem quiser: a vitória de Vargas está assegurada
se funcionarem as regras democráticas das eleições. Samuel Wainer.” Remeti
cópias do telegrama para o general Góis Monteiro, que garantia sustentação
militar ao candidato, e para o empresário Euvaldo Lodi, presidente da
Confederação Nacional das Indústrias e um dos grandes financiadores da
campanha. Poucos dias depois, já em Vitória, no Espírito Santo, recebi um
telegrama com a resposta do dono dos Associados: “Para Wainer, encontre-se
onde estiver: mandarei comprar um balde de água gelada para sua cabeça
quente. Chateaubriand.”
Chateaubriand recusava-se a admitir as evidências de que a vitória de
Getúlio era inevitável, o que colocava os jornais dos Diários Associados
numa situação curiosa: só minhas reportagens eram simpáticas ao candidato
do PTB – tudo o mais eram editoriais, ameaças e intrigas sempre contra
Vargas. Poucos dias antes da eleição, Chateaubriand, afinal, se convenceu de
que minhas previsões eram corretas. Então, seus jornais viveriam uma curta
lua de mel com o “Pai dos Pobres”. A verdade é que a primeira vitória de
Getúlio na campanha de 1950 foi contra a imprensa. Os jornais não lhe
davam trégua, sequer o tratavam com isenção. Um dos editoriais
encomendados por Chateaubriand, por exemplo, dizia ser indispensável
“evitar a posse desse monstro”. Mas esse esforço da imprensa se revelaria
inútil diante da maciça adesão popular ao candidato, manifestada até mesmo
nos supostos redutos dos seus adversários. Foi o caso de Minas Gerais, a terra
de Cristiano Machado, o candidato do PSD. Ali, nem mesmo os getulistas
esperavam grandes manifestações de apoio. Pois Belo Horizonte
praticamente veio abaixo à passagem de Getúlio Vargas.
Em Vitória, ouvi uma confidência de Getúlio: “Recebi uma notícia
profundamente penosa para mim, uma notícia perigosa”, disse-me. Ele
acabara de receber de Ademar de Barros um ultimato para apoiar claramente
a candidatura à vice-presidência de João Café Filho, ex-deputado pelo Rio
Grande do Norte, que tivera uma vaga participação na Aliança Nacional
Libertadora, a frente esquerdista liderada por Luís Carlos Prestes em 1935.
Café Filho estivera exilado durante algum tempo em Buenos Aires e sempre
fora considerado um homem de esquerda. Ingressara no Partido Social
Progressista, o partido de Ademar, e acabou imposto a Vargas como seu
companheiro de chapa.
Getúlio não confiava em Café, tinha-lhe horror físico. Ele desejava como
vice o general Pedro Aurélio de Góes Monteiro, e até a fase final da
campanha alimentou a esperança de afastar Café. Essa animosidade gerou um
clima de constrangimento. Getúlio evitava a companhia do vice, ignorava-o
ostensivamente. Mas naquele dia, em Vitória, Getúlio recebeu um seco
recado de Ademar: ou aceitava Café ou perderia o apoio do governador
paulista. O candidato, que ainda não visitara São Paulo, resolveu ceder e,
pouco depois, iniciou um giro triunfal pelo grande estado. Em seguida,
viajamos rumo ao Paraná. E no comício de Curitiba, pela primeira vez em
toda a campanha, ele chamou Café Filho a seu lado para apresentá-lo à
multidão: “Este é o meu candidato”, anunciou. Getúlio certamente sentira em
Café o cheiro do oportunismo, da mediocridade, da traição, numa intuição
premonitória que seria dramaticamente confirmada em agosto de 1954.
Terminada a campanha, eu não tinha dúvida alguma quanto ao resultado da
eleição. No Rio de Janeiro, às vésperas do pleito, propus a dois companheiros
dos Associados – os jornalistas Murilo Marroquim, que cobrira a campanha
de Cristiano Machado, e Wilson Aguiar, que acompanhara Eduardo Gomes –
a publicação dos nossos prognósticos. Cada um diria quem seria, em sua
opinião, o vitorioso. Foi a fórmula que encontramos para anunciar na
primeira página o iminente triunfo de Vargas. Murilo apostou em Cristiano,
Wilson no brigadeiro e eu em Getúlio. Àquela altura, não era preciso ser
profeta para adivinhar quem venceria.
A campanha me revelara Vargas por inteiro. Compreendi, entre outras
coisas, que conhecera o primeiro líder burguês da História do Brasil a
conseguir efetiva comunicação com o povo. As classes conservadoras não
souberam captar tal fenômeno, e por isso o mataram. Quando o país perdeu
Getúlio, o capitalismo brasileiro perdeu seu grande defensor. Se ele hoje
estivesse vivo, ainda estaria fazendo composições, aparando arestas,
conciliando. Porque era essa a natureza de Getúlio Vargas.
CAPÍTULO 5
Minhas previsões dando conta da vitória de Getúlio seriam amplamente
confirmadas no dia 3 de outubro de 1950. Logo compreendi que,
transformado em amigo do presidente eleito, eu estava a um passo do poder.
Então, minha memória passeou por tempos distantes, territórios remotos.
Revi as diferentes casas em que havia vivido com meus pais e meus irmãos,
recordei a infância de menino judeu do Bom Retiro.
A família Wainer imigrara para o Brasil no começo do século, a chamado
de um irmão de minha mãe, Salomão Lerner, que então prosperava como
comerciante de tecidos na rua Florêncio de Abreu, no velho centro de São
Paulo. Os Wainer partiram da Bessarábia, então parte da Rússia, e
embarcaram rumo à América do Sul pelo porto de Gênova, na Itália.
Mudaram de país, de vida e de nome. Meu pai, Haim Hersh Wainer, tornou-
se Jaime Antílope Wainer – Hersh, em hebraico, tanto pode ser Henrique
como antílope. Minha mãe, Dvora – o nome bíblico da profetisa Débora –
virou Dora. A dona Dora que, nos anos seguintes à Primeira Guerra Mundial,
reinaria como uma das matriarcas da comunidade judaica do Bom Retiro.
Dona Dora não tinha tempo para ficar triste. Mãe de nove filhos,
comandava uma casa que funcionava como uma espécie de ponto de encontro
de imigrantes. Judeus recém-chegados ao Brasil sabiam que na casa de dona
Dora, onde só se falava iídiche, sempre seria possível encontrar uma cama
vaga, além do esplêndido pão preto servido com queijo do Bom Retiro.
Muitas vezes eu e meus irmãos fomos retirados de nossas camas para abrir
espaços a imigrantes que acabavam de chegar. Dona Dora tinha uma
acentuada vocação para a liderança, e fez das casas onde morou a família
Wainer lugares alegres, movimentados, marcados pelo riso das crianças, pela
música, pela dança. Eram lugares também marcados pela melodia dos
imigrantes conversando em iídiche, ou pelos lamentos dos judeus saudosos
da terra que ficara longe. Ainda assim, eram casas alegres.
Fui estreitamente ligado à minha mãe, e tive a sorte de poder cuidar da
velha Dora Wainer em sua velhice. Ela sofria de uma bronquite terrível, e eu
vivia à procura de sanatórios localizados em cidades cujo clima fosse
favorável ao tratamento da doença. Levei-a para o Rio de Janeiro, para a Vila
Mariana, em São Paulo, para a Cantareira. Nos últimos meses de sua vida,
minha mãe vivia num sanatório em Santos – a proximidade do mar parecia
fazer-lhe bem. Morreu em meus braços, olhando-me com aqueles olhos
profundamente azuis. Isso não impediu que eu fosse trabalhar no dia
seguinte. A morte jamais afetou a minha rotina.
Meu pai morreu em julho de 1958. Eu estava no Rio de Janeiro e chegou-me
pelo telefone a notícia de que o velho Jaime Wainer fora encontrado numa
rua em estado de coma. Passei instruções para que o levassem à Beneficência
Portuguesa e corri ao encontro de meu pai. Minha mãe morrera seis anos
antes. Meu pai morava em São Paulo, só de vez em quando viajava para ver a
família. Foi sempre um homem triste, introvertido. Nos últimos tempos,
minhas irmãs se revezavam para acolher o pai; eu fazia questão de pagar as
despesas. Orgulhoso, fechado em suas reflexões, Jaime Wainer recusava
dinheiro dos filhos. Eventualmente aceitava que eu o ajudasse, sempre com
relutância.
Recém-chegado ao Brasil, ele trabalhou com meu tio Salomão Lerner.
Nessa época, traía um claro ressentimento pelo fato de que, apesar de sua
superioridade intelectual, era apenas um empregado do cunhado. Isso
magoava profundamente Jaime Wainer, um homem que gostava de tocar
violino, lia bastante, ouvia muita música, era extremamente sensível. Meu pai
cantava canções de sinagoga com uma voz parecida com a de Al Jolson (eu
sempre chorei ao ouvir Al Jolson). Depois, ao trabalhar por conta própria,
seguiu perseguindo a independência financeira que jamais alcançaria.
Durante a vida inteira ele acreditou que um dia enriqueceria, numa vingança
final contra as humilhações que sempre o incomodaram. Não enriqueceu,
mas soube manter a dignidade que ajuda a explicar a virtual inexistência de
mendigos judeus. Jamais conheci mendigos judeus.
Taciturno, deslocado no ambiente em que vivia, desgostoso com a vida de
mascate, Jaime Wainer sempre esteve distante dos filhos. Dormia às oito da
noite e acordava às quatro da madrugada. No quarto, ficava fazendo suas
contas de comerciante sem sucesso, murmurando coisas em iídiche.
Comprava e vendia mercadorias, mas certamente teria preferido, se lhe
coubesse a escolha, outro destino. Andava horas a fio pela cidade, fazendo
negócios e cobranças – lembro-me de que o velho Wainer tinha muitos
fregueses entre os soldados da Força Pública. De vez em quando, parava em
algum botequim para tomar pratos imensos de minestrone e beber copos de
vinho Telefone, um vinho gaúcho barato, fortíssimo.
Um dia, ele já no fim da vida, encontrei-o no centro de São Paulo.
Abraçamo-nos carinhosamente, convidei-o a tomar café, ele aceitou. Logo
começou a fazer perguntas sobre a situação política. Olhei seu rosto, sua
roupa, seus sapatos. Ele estava sem capa num dia de chuva, os sapatos
estavam reduzidos a quase nada. E meu pai mantinha a expressão tristonha
que eu conhecera desde menino.
Propus-lhe que comprássemos um par de sapatos. Ele ponderou que os
sapatos que usava durariam mais dois anos. Sugeri-lhe, então, que fizéssemos
uma troca, ele concordou. A transação foi consumada sob a mesa do bar onde
tomávamos café. Passei-lhe um par de mocassins italianos, calcei os sapatos
de meu pai. Depois, fiz com que ele aceitasse a capa que eu vestia. Fomos até
a esquina, beijamo-nos e nos despedimos. Parado na rua, fiquei olhando
aquele homem que interrompia frequentemente a caminhada para examinar
os mocassins que há pouco estavam nos pés do filho. Em seguida, entrei
numa loja e comprei sapatos novos.
Jaime Wainer era assim. Eu lhe dava roupas caras, ele vendia. Em 1951,
dei-lhe uma caminhonete Dodge do ano, que ele passou a abarrotar de
mercadorias até reduzi-la a sucata. Alto, magro, feio, meu pai queria viver
sua vida e morrer sozinho, de preferência numa rua qualquer de São Paulo.
Eu disse a meus irmãos que não tínhamos o direito de perturbar esse destino.
Jaime Wainer morreu da forma que escolhera: na rua, trabalhando, sentiu que
a morte se avizinhava. Ainda pude vê-lo com vida num hospital, e abraçá-lo
pela última vez.
No dia seguinte, eu estava de volta à redação do jornal.

Enquanto meu pai caminhava por São Paulo carregando suas mercadorias e
sua tristeza, minha mãe mobilizava suas enormes energias para que a família
sobrevivesse às dificuldades. Tivemos fases de aguda pobreza. Havia dias em
que faltava comida em casa, mas dona Dora sempre dava um jeito.
Entrávamos e saíamos de colégios, sempre ao sabor das oscilações
financeiras. Ninguém na minha família teve bons dentes, nossa saúde sempre
foi um tanto precária; faltava dinheiro para esses luxos. E sofremos, como
todos, as humilhações reservadas aos meninos de origem judaica. Naquela
época, anterior a Hitler, nós éramos os “assassinos de Cristo”. Nos sábados
de Aleluia, o dia da “malhação do Judas”, ficávamos à beira do pânico. Na
minha infância, praticamente todos os meus amigos eram judeus, e também
as crianças do Bom Retiro falavam iídiche. Só na adolescência eu iria
conhecer melhor o mundo exterior.
Menino, eu não mostrava nenhuma vocação especial para escrever, mas já
era apaixonado por livros. Lia o que me vinha às mãos, frequentava sebos,
fazia esforços desesperados para alimentar essa paixão. Isso me valeu um
episódio traumático aos doze anos de idade. Num dos sebos que ficavam nas
cercanias da praça da Sé, resolvi roubar um livro de Júlio Verne. A técnica
era simples: comprava-se um volume, colocava-se outro por baixo e se
tentava sair. Não percebi que estava sendo observado desde que entrara. Ao
buscar a saída, um grandalhão agarrou-me, deu-me um tapa e tomou o livro.
Trêmulo, ouvi o aviso: da próxima vez, iria parar na cadeia. Fiquei sem ler
Júlio Verne, não havia dinheiro para livros.
Essas dificuldades empurraram-me cedo para fora de casa. Aos doze anos,
fui para o Rio de Janeiro morar com um irmão, Artur. Meses depois, uma
véspera de Ano Novo judeu, voltei a São Paulo. Aos dezesseis anos,
empreendi a segunda viagem rumo ao Rio. Viajei de trem. Nos primeiros
dias, hospedei-me numa pensão, no Flamengo, onde já estavam dois de meus
irmãos. Mais tarde, dividi o aluguel de um apartamento na rua Senador
Dantas com outros estudantes da comunidade judaica. Dessa vez, eu chegara
para ficar.
Chateau D’Oex é uma cidadezinha da Suíça que fica perto de Gstaad. Em
1964, quando eu vivia o segundo exílio político, meus filhos Samuca e Bruno
estudavam numa escola francesa, La Tournelle, localizada em Chateau
D’Oex. Eu morava em Paris, mas viajava com frequência até a cidadezinha
suíça. Num dia de verão, eu lá estava com meus três filhos – Pinky, que
estudava em Paris num colégio interno, também viajara para visitar os
irmãos. De repente, Bruno, então com quatro anos, fez-me uma pergunta:
– Você não vai à missa?
Respondi que não, explicando que era judeu. E quanto a ele?, quis saber
Bruno.
– Bem, você é meio judeu e meio católico – respondi.
Ele saiu-se com uma dedução engraçada:
– Então, não preciso ficar a missa inteira, só até a metade.
Rindo, concordei, e minha filha Pinky entrou na conversa com outra
pergunta:
– Se nós somos metade judeus, de onde é que viemos?
Fiquei intrigado: por que aquela curiosidade?
– É que na escola só me perguntam isso – esclareceu Pinky.
Entendi que precisava inventar uma história. Em consequência do exílio,
meus filhos já estavam enfrentando uma crise de identidade – não se sentiam
brasileiros, nem europeus. Agora, surgia a questão da ascendência judaica.
Contei-lhes, então, uma história com cores bíblicas. Muitos séculos atrás,
ocorrera no Egito uma revolta liderada por um príncipe chamado Moisés, que
montou num cavalo branco e saiu pelo deserto à frente de uma tribo de
judeus. Ao chegar ao mar, Moisés conseguiu secá-lo e o atravessou com sua
gente. Do outro lado do mar, os judeus se espalharam por várias localidades,
cada uma era um principado. Um dos principados se chamava Bessarábia, e o
príncipe era um Wainer. Mas havia problemas: além de assolada por
fenômenos climáticos – secas, nevadas –, a Bessarábia sofria constantes
ataques de outras tribos, que culpavam os judeus por todos os males. Os
atacantes chegavam à noite, roubavam, matavam e defloravam todas as
mulheres. Numa dessas ocasiões, uma velhíssima avó Wainer foi estuprada
por 24 inimigos, todos de raças diferentes. Dessa antepassada descendíamos
todos nós. Éramos, assim, o produto de diferentes raças que se perdiam no
passado, mas éramos, sobretudo, brasileiros.
CAPÍTULO 6
No Rio de Janeiro eu iria descobrir, definitivamente, que era jornalista. Na
minha infância, mesmo no começo da adolescência, não cheguei a destacar-
me por escrever bem. Mas era imaginoso, tinha ideias, gostava de escrever.
Sobretudo sabia examinar assuntos e descrever situações com clareza.
Aprendi a redigir um pouco melhor ajudando a fazer, no Rio, o jornal da
Associação de Estudantes Israelitas. Por volta de 1933, no início da expansão
do nazismo, tive a audácia de aceitar ser responsável por uma coluna, no
Diário de Notícias, encarregada de divulgar pontos de vista da colônia
israelita. Depois colaborei com Israel Dines, pai do jornalista Alberto Dines,
na edição de um Almanaque Israelita que expunha a opinião dos judeus.
Era preciso, contudo, sobreviver – e para tanto eu tinha de somar outras
atividades à minha iniciação jornalística. Um de meus irmãos promovia
leilões populares nos pontos mais movimentados do Rio, e juntei-me a ele.
Eu era praticamente um menino, não tinha desenvoltura alguma para falar em
público, mas virei leiloeiro. Escondido por trás de enormes óculos escuros,
subia numa mesinha e ficava apregoando as qualidades dos artigos leiloados
– por exemplo, tapetes persas que de persas nada tinham. Nessa época, eu
estudava num colégio e me arrastava num curso de Farmácia que jamais
concluiria. Às vezes, um professor me reconhecia em meio a um leilão, eu
ficava constrangido. Mas não havia outra forma de ganhar dinheiro.
Enquanto sobrevivia, colecionava esporádicas incursões pela imprensa e
aguardava uma chance para dedicar-me integralmente ao jornalismo.
Nessa época, a mão do destino – sempre ela – colocou em meu caminho um
grande jornalista, Antônio de Azevedo Amaral, que se tornara conhecido nos
anos 30 graças a seus artigos num jornal chamado Gazeta de Notícias.
Procurei Azevedo Amaral para pedir-lhe um artigo a ser publicado no
Almanaque Israelita. Esse primeiro encontro desencadearia um processo de
aproximação que me colocaria lado a lado com Azevedo Amaral, em março
de 1938, numa revista chamada Diretrizes, destinada a configurar um
capítulo importante da história da imprensa brasileira. Antes disso, porém, eu
começaria a entrar num mundo do qual depois me tornaria íntimo – o mundo
das redações – pelas portas de duas publicações de vida efêmera; a Revista
Brasileira e a Revista Contemporânea.
A Revista Brasileira era uma espécie de livro editado mensalmente, com
mais de trezentas páginas. Tratava-se de uma ideia patrocinada por Antônio
Batista Pereira, genro de Rui Barbosa, e também aí minha ascendência
judaica teve seu papel. Depois de fazer uma conferência em que abordou,
entre outros, o tema do antissemitismo, Batista Pereira conversou com Wolf
Klabin, então chefe de uma família que sempre teve influência junto à
colônia. Nessa conversa, já decidido a lançar a revista, Batista Pereira pediu a
Klabin que indicasse um jovem jornalista judeu para o cargo de secretário da
redação. Klabin indicou-me. Não era fácil fazer tal revista. Ela pretendia
transformar-se numa réplica de uma publicação francesa, Le Mois, uma
revista em formato de livro que reunia alguns dos maiores jornalistas da
Europa. De novo pesou em minha decisão a audácia da raça: aceitei. A
revista não tinha data certa para sair. Além dos problemas inevitáveis que
publicações pobres costumam enfrentar para cumprir o calendário, havia a
crônica social que Batista Pereira adorava fazer. Ele se demorava quinze,
vinte dias na preparação de uma crônica sempre vazada num português
castiço, puríssimo, ainda que se tratasse da descrição de uma festa sem maior
importância em uma embaixada.
Boa parte do material publicado consistia em traduções originais do Le
Mois, mas já era importante a participação de colaboradores brasileiros, entre
os quais tinha peso especial um grupo de professores de esquerda da
Faculdade de Direito liderado por Hermes Lima, Castro Rebelo e Leônidas de
Rezende. Estávamos em 1935, um ano marcado pela ascensão das esquerdas
no Brasil, e eu simpatizava com suas bandeiras. Aos poucos, a Revista
Brasileira inclinou-se nessa direção. Mais que atividades de conteúdo
ideológico, entretanto, absorvia-me a aventura de fazer uma revista.
Eu fazia praticamente tudo. Traduzia textos do Le Mois – mal, mas
traduzia. Como os exemplares eram impressos nas oficinas de um jornal
chamado A Nação, aprendi da forma mais primitiva a marcar a tipologia,
diagramar uma página, acertar um texto. Esse aprendizado teve de ser
interrompido no dia em que Rui Batista Pereira, filho do dono, trouxe para
publicação um artigo do professor Miguel Reale, um dos ideólogos do
movimento integralista, que à época representava uma espécie de sucursal
brasileira do fascismo italiano. A revista costumava abrir-se, na área
internacional, às mais distintas correntes do pensamento político. No plano
nacional, contudo, só publicávamos textos de autores com posições
esquerdistas, ou pelo menos nitidamente democráticas. Opus-me à publicação
do artigo de Miguel Reale, convencido de que, caso concordasse, estaria
dando o sinal verde para que a publicação se convertesse em porta-voz do
movimento integralista. Preferi deixá-la. Pouco tempo depois, a Revista
Brasileira, que chegara a uma tiragem de 1.500 exemplares, saiu de
circulação.
Decidi procurar Caio Prado Júnior, dono de uma editora que mais tarde se
transformaria na atual Brasiliense, e que conhecera como colaborador da
Revista Brasileira. Propus-lhe o lançamento de uma revista nos mesmos
moldes. Caio Prado Júnior gostou da ideia e se comprometeu a comprar as
edições de dois mil exemplares e distribuí-las. Nessa época, eu sobrevivia
trabalhando como vendedor de óleos lubrificantes; era ainda impossível
dedicar-me ao jornalismo em tempo integral. Mas encontrei tempo para
reunir, em poucos dias, o grupo que lançaria, em meados de 1935, a Revista
Contemporânea, uma publicação que duraria apenas alguns meses.
O Brasil vivia um clima tipicamente pré-revolucionário. As forças
esquerdistas aglutinavam-se na Aliança Nacional Libertadora, liderada por
Luís Carlos Prestes, que retornara da União Soviética para articular o que
entraria para a História com o nome de Intentona Comunista, desencadeada
em novembro de 1935. As forças direitistas tinham como ponta de lança a
Ação Integralista Brasileira, movimento chefiado por Plínio Salgado. Era o
confronto entre as forças antifascistas e o fascismo. No meio estava o
governo de Getúlio Vargas, esperando a ocasião ideal para dar o golpe.
Eu tinha declaradas simpatias pela esquerda, mas nunca fui bem assimilado
pelo Partido Comunista e tampouco cheguei a afinar-me com sua ideologia.
De qualquer forma, meu coração pendia para a Aliança Nacional Libertadora,
uma espécie de conglomerado das forças democráticas da época. O
movimento integralista – apesar dos desfiles aparatosos que promovia, da
pesada simbologia condensada no sigma e nas camisas verdes exibidas por
seus militantes – nunca teve penetração popular, jamais foi aceito pelo
brasileiro médio. Getúlio estava atento aos pontos fracos desses dois polos, e
soube esperar o momento para golpeá-los mortalmente.
O fracasso da Intentona, em novembro, permitiu que Getúlio fechasse a
Aliança Nacional Libertadora e desencadeasse uma dura repressão aos
comunistas. Os integralistas permaneceriam em ação até 1937, quando
chegaria sua vez de sentir o peso da mão do governo. Enquanto durou,
naqueles agitados idos de 1935, a Revista Contemporânea alinhou-se à
esquerda e foi agressivamente antifascista. Também ali eu cuidava
praticamente de tudo, intensificando o aprendizado que iniciara na Revista
Brasileira. Um mês depois de minha saída, a Revista Contemporânea deixou
de circular.
Em sua curta existência, a Revista Contemporânea teve como traço
característico também o combate ao antissemitismo, um fenômeno que já se
manifestava de modo inquietante no Brasil, sempre estimulado pelos
integralistas. Esse fenômeno me ameaçava diretamente, mas não o combati
apenas por ser judeu – àquela altura, eu já me tornara essencialmente um
democrata, e compreendia os valores que estavam em jogo naquele delicado
momento político. Nessa época, por sinal, os condicionamentos da formação
judaica já não exerciam efeitos tão agudos sobre mim, embora não tenha sido
fácil livrar-me de certos laços. Isso só ocorreu em 1950, no meu segundo
casamento, com Isa de Sá Reis. Então, telefonei para minha mãe e informei
que decidira casar de novo. A velha Dora gostou da notícia.
– Que bom, meu filho! – alegrou-se. – E com quem?
Disse-lhe que a minha futura mulher era goy, e dona Dora encerrou a
conversa:
– Você não tem uma notícia melhor para me dar?
Com o tempo, essas resistências cessariam, até porque minha família não
tardou a dar-se conta de que eu deixara de ser um menino judeu do Bom
Retiro. Era um jornalista brasileiro, já empenhado em transformar-me em
cidadão do mundo.
Minha primeira mulher, Bluma, pertencia a um universo semelhante ao que
eu conhecera na minha infância no Bom Retiro. Nascera na Bahia, numa
família de judeus, e crescera em meio a um mundo parecido com o meu. Nós
nos casamos em 1933, eu tinha 23 anos. Éramos muito jovens. Nós nos
separamos quinze anos depois, e ela morreu em 1951. Eu a conheci quando
morei na pensão de sua mãe, no bairro do Catete, no Rio. Era uma jovem
bastante nervosa, nossa incompatibilidade de gênios era total. Mas sempre
guardei de Bluma uma doce lembrança. Era uma mulher linda, extremamente
generosa, de ótimo caráter, que dividiria comigo, durante um bom tempo,
uma das experiências mais estimulantes de minha vida – o dia a dia da
redação da revista Diretrizes. Ali, Bluma, uma mulher muito organizada, e
muito querida dos amigos que trabalhavam comigo, seria uma espécie de
secretária-geral. Seria, assim, uma testemunha privilegiada do período em
que amadureci como jornalista.
Ao sair da Revista Contemporânea, tratei de manter ligações com o
mundo da imprensa, e um desses vínculos seria Azevedo Amaral, que já
estava cego. Ele passou a ditar-me artigos que escrevia para algumas
publicações, que eu depois copidescava. Em novembro de 1937, Getúlio
Vargas decretou o Estado Novo, fechando o Congresso e todas as
organizações políticas existentes no país, inclusive o movimento
integralista. Nessa época, Azevedo Amaral convidou-me para trabalhar
com ele no lançamento de uma nova revista. Ao ouvir a proposta, reagi
como se a ideia de uma revista mensal fosse algo em gestação já há longo
tempo num canto qualquer de minha cabeça. Várias ideias estavam
elaboradas.
A ideia essencial era fazer uma revista determinada a registrar a vida
política nacional daquele momento. Parecia absurda. Afinal, não havia
Congresso, nem partidos, a censura afiava suas garras. Mas o mundo
estava às vésperas da guerra, o Brasil estivera em franco processo de
politização nos anos anteriores, e havia leitores à espera de quem
estivesse disposto a dizer, ou pelo menos tentar dizer, a verdade. Enfim,
tínhamos assunto. Azevedo Amaral achou a ideia interessante. Ele tinha
relações com a Light, e conseguiu da empresa uma subvenção mensal no
valor de dois contos de réis, um bom dinheiro para a época. A revista foi
lançada em maio de 1938, no mesmo mês em que os integralistas
cometeram seu grande erro: o ataque ao Palácio Guanabara, onde
Getúlio morava com a família. Surpreendidos pelo Estado Novo, que
pusera fim a seus desfiles enormes, arrogantes e triunfalistas, os
partidários de Plínio Salgado reagiram com o fracassado ataque ao
Palácio. Era a chance que Getúlio aguardava para assestar-lhes o golpe
final. O integralismo entrara no índex do Estado Novo, mas as forças
pró-fascismo eram ainda consideráveis no Brasil, e contavam com várias
autoridades do governo. Diretrizes tinha um poderoso inimigo a
combater.
Para fazer a capa do primeiro número, convidei o pintor Santa Rosa,
um artista de esquerda que frequentava o grupo de Cândido Portinari.
Santa Rosa fez uma capa que mostrava um olho solto no espaço, algo
surrealista, inteiramente fora dos padrões da época. Foi um sucesso. Já
àquela altura, eu reunira um grupo de alto nível, que incluía nomes mais
tarde transformados em frequentadores obrigatórios de qualquer
antologia literária. Estávamos reunidos em torno de uma ideia
extremamente romântica. Os salários eram baixos, a subvenção da Light
era insuficiente para garantir uma folha de pagamentos atraente. O
restante viria do dinheiro obtido com a venda dos exemplares. A redação
de Diretrizes funcionava numa saleta do apartamento de Azevedo
Amaral, e utilizávamos uma pequena oficina para a impressão. O ponto
de encontro do pessoal de Diretrizes era o Amarelinho, um bar na
Cinelândia, que ainda hoje resiste à passagem do tempo, com suas mesas
na calçada. Enfim, Diretrizes nasceu com todos os ingredientes para
durar pouco. Mas durou bastante. Pelo menos, o suficiente para fazer
história.
No começo, eu me limitava a escrever notas curtas, tímidas. Não me
considerava um bom redator, não conhecia a fundo o idioma, e me
retraía diante dos grandes nomes que haviam aderido à ideia. Um deles
foi Rubem Braga, meu grande amigo naquela época, que escrevia
magnificamente. Rubem criou uma seção com o título “O Homem da
Rua”, que abrigaria crônicas maravilhosas. Também juntou-se a nós
Osório Borba, um talentoso polemista pernambucano, liberal, amargo,
feroz. No primeiro número, Borba escreveu um artigo sobre a ditadura
militar do Peru. Para assegurar o equilíbrio editorial, nessa mesma
edição Azevedo Amaral assinou um artigo que elogiava o Estado Novo.
Foi só Diretrizes chegar às bancas para que a esquerda, sobretudo a
esquerda ligada ao Partido Comunista Brasileiro, descobrisse que ali
havia um filão a explorar. Já no segundo número, Diretrizes se
transformara no polo para onde convergiam os sobreviventes da
resistência à ditadura de Getúlio Vargas.
CAPÍTULO 7
O segundo número, fortemente influenciado pelos ventos da guerra que
sopravam na Europa, combatia abertamente o nazismo – uma batalha que
assumiria contornos mais agudos nos meses seguintes. Diretrizes era
submetida à censura prévia do Departamento de Imprensa e Propaganda, o
DIP, encarregado de forjar e preservar uma imagem positiva do Estado Novo.
Tratei de adotar certas cautelas. A composição do conselho diretor da revista,
montado depois da constatação de que a existência de Diretrizes não seria
efêmera, é uma prova desses cuidados. Nele, figuravam nomes como
Astrogildo Pereira, um dos fundadores do PCB, e Graciliano Ramos, um
opositor histórico do Estado Novo. Mas ali também estava, por exemplo, a
poetisa Adalgisa Nery, casada com Lourival Fontes, o todo-poderoso chefe
do DIP. Adalgisa, uma linda mulher, escrevia textos muito interessantes, não
era preciso ser indulgente para publicá-los. Mas o fato de ser casada com
Lourival Fontes, naturalmente, valorizava sua presença na redação de
Diretrizes e oferecia à revista algum tipo de segurança.
O sucesso de Diretrizes tornou-se evidente na segunda edição, que se
esgotou nas bancas. Então, juntou-se ao grupo Jorge Amado, àquela época
um romancista principiante. Pouco depois, a redação da revista já se tornara
ponto de convergência de escritores brilhantes. Além de Jorge Amado, ali
estavam, por exemplo, Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Rachel de
Queiroz e Aníbal Machado. A meu convite, aliás, os cinco escreveram a dez
mãos uma novela com o título Brandão Entre o Mar e o Amor, publicada em
forma de folhetim e depois editada pela Editora Martins. Também em
Diretrizes, sempre em forma de folhetim, Jorge Amado escreveu O ABC de
Castro Alves. Mas essa é outra história, que vale mencionar para ilustrar a
criatividade de Diretrizes. Mais importante, contudo, é examinar a
importância da revista na história do jornalismo no Brasil. Nesse aspecto,
foram muitas e relevantes as contribuições de Diretrizes.
Num dos primeiros números, por exemplo, tive a ideia de envolver
Azevedo Amaral numa manobra destinada a quebrar o silêncio imposto pela
censura do DIP a notícias e comentários sobre a guerra civil espanhola,
iniciada em 1936 e encerrada em 1939. Azevedo Amaral era considerado o
maior comentarista internacional da imprensa brasileira, e consegui
convencê-lo a escrever uma reportagem intitulada “A verdade sobre a guerra
da Espanha”. Até então, a censura promovida pelo DIP procurava transmitir a
versão de que, desde o início da conflagração, não houvera a menor
resistência popular ao avanço das tropas do general Francisco Franco.
Evidentemente, isso era falso. A falsidade dessa versão ficava transparente na
reportagem de Azevedo Amaral, que só foi publicada porque o autor tinha
estreitas ligações com o DIP. A edição que trazia a reportagem também se
esgotou, mas aí começariam a aguçar-se nossos problemas com a censura. O
DIP desconfiou, com razão, de que ali havia o dedo da esquerda. Também
Azevedo Amaral notou que aquele grupo de jovens jornalistas merecia mais
vigilância. De seu lado, a esquerda percebeu que era o momento de influir de
modo mais decisivo nos rumos de Diretrizes.
Publicada a reportagem sobre a guerra civil espanhola, chegou de
Pernambuco, decidido a agregar-se à redação, o jornalista Octávio Malta,
uma figura já lendária na imprensa brasileira. Em 1932, ele chefiara uma
greve de jornalistas. Em 1935, trabalhara no jornal A Manhã, influente porta-
voz da esquerda, como secretário de redação. Malta, um grande editorialista,
passou a cuidar dos textos que traduziam a opinião da revista. Depois de ter
sido redator-chefe na primeira etapa de Diretrizes, eu já era diretor de
redação, mas deixei por conta do Malta o controle do conteúdo dos editoriais.
Eu cuidava, sobretudo, do aspecto formal da revista. Incansável leitor de
publicações estrangeiras, procurava absorver inovações gráficas, fazia títulos
ousados, modificava com arrojo a diagramação das páginas. Evidentemente,
também interferia no conteúdo das reportagens publicadas por Diretrizes.
Mas não compreendia, ou não queria compreender, que a linha editorial da
revista estava atendendo a outros interesses. Só vinte anos mais tarde Octávio
Malta me faria uma revelação da maior importância: ele fora enviado para o
Rio com a incumbência de assegurar para o PCB o controle de Diretrizes.
Essa miopia política, que me ofuscava a visão de coisas óbvias como a
presença do PCB no cotidiano de Diretrizes, tem causas facilmente
identificáveis. Eu estava deslumbrado com a constatação de que tivera acesso
ao clube dos intelectuais de esquerda. Subitamente, surpreendera-me amigo
de intelectuais como Jorge Amado, Zé Lins, Graciliano, Rachel de Queiroz,
José Américo de Almeida, Érico Veríssimo. Participava de rodas animadas
pelas músicas de Dorival Caymmi, que chegara ao grupo pelas mãos de seu
amigo Jorge Amado. Sentia-me honradíssimo por tantos privilégios. Ter a
companhia de Octávio Malta, assim, era um motivo de orgulho
suficientemente poderoso para fechar-me a vista a certas evidências. Malta
era uma figura extraordinária, sempre seríamos amigos.
Nessa época, revi Carlos Lacerda. Eu o conhecera em 1935, quando o
Brasil vivia uma fase de intensa efervescência política, e Lacerda – um jovem
magro, de aparência ascética e oratória brilhante – era um dos heróis da
esquerda. A ele coubera a honra de ler o manifesto de Luís Carlos Prestes na
cerimônia de lançamento da Aliança Nacional Libertadora. Numa noite, eu
estava jantando no restaurante Reis, apelidado de “Meia Porção” por seus
frequentadores, que ficava perto da esquina da avenida Rio Branco com a rua
Almirante Barroso. De repente, Carlos Lacerda aparece e senta-se à nossa
mesa. Fiquei comovido. Eu já fizera a Revista Brasileira e a Revista
Contemporânea, mas sentia-me um ilustre desconhecido comparado às
celebridades que começava a conhecer. E Lacerda era um dos meus grandes
ídolos.
Ele sentou-se, olhou-me e perguntou quem eu era. A pergunta veio num
tom arrogante. Apresentei-me. Então, ele se lembrou de algumas reportagens
que eu fizera e elogiou-me: “Você fez um belo trabalho”, disse. “Fique
conosco, você vai longe”. Estremeci de emoção. Pouco tempo depois, houve
o episódio da Intentona, e perdi Carlos Lacerda de vista. Ele se escondeu na
Bahia e esperou pelo momento do regresso. Em 1938, de volta ao Rio de
Janeiro, juntou-se ao grupo de Diretrizes. Costumávamos visitá-lo num sítio
em que vivia semiclandestino, ouvíamos com certa contrição o que ele dizia.
Cuidávamos de sua sobrevivência levando-lhe dinheiro, mantimentos. Fui
muitas vezes ao sítio em companhia do jornalista Moacir Werneck de Castro,
primo de Lacerda e uma das figuras mais importantes da história de
Diretrizes. Depois, Carlos Lacerda começou a fazer palestras e conferências.
Continuamos a ajudá-lo: lembro-me de muitas noites em que saí à sua
procura para levar-lhe algum dinheiro. A ruptura entre nós só se daria mais
tarde – e seria violenta.
A publicação da reportagem sobre a guerra civil espanhola alertou Azevedo
Amaral para os riscos contidos na convivência com a redação de Diretrizes.
Ele me chamou para comunicar sua insatisfação e informar que deixaria a
revista. Fizemos um acordo. Ele ficaria com os dois contos da Light, eu com
o título. Numa tentativa de rescisão civilizada, acertamos que ele continuaria
a assinar a principal reportagem internacional da revista. A busca de um
desquite amigável resultaria inútil. Quinze dias depois, naturalmente valendo-
se da verba da Light, Azevedo Amaral lançou uma revista chamada Novas
Diretrizes, abertamente patrocinada pelo DIP. E em franca oposição à nossa.
Em contrapartida, estávamos livres para fazer a revista que imaginávamos
adequada ao Brasil daquele momento.
Tal liberdade era relativa, na medida em que sofríamos, como já ressalvei, a
influência do Partido Comunista, cujos líderes exerciam um forte fascínio
sobre o jovem que eu era. Certa vez, ainda em 1938, fui levado ao encontro
de Osvaldo Costa, um dos mitos do PCB. Emocionei-me ao encontrá-lo num
quarto escuro de um prédio no Largo do Machado, no bairro do Catete. Ele
folheou a revista, fez alguns elogios e recomendou-me que mantivesse a
mesma linha que vinha seguindo. Diretrizes, segundo Osvaldo Costa, não
deveria tornar-se porta-voz do PCB; o correto era defender a formação de
uma frente política que unisse as forças democráticas. A formação de tais
frentes, por sinal, era defendida naquela época por comunistas do mundo
inteiro.
Esses vínculos com os comunistas, que tinham como corolário uma franca
simpatia pela União Soviética, exerceriam um efeito paralisante sobre
Diretrizes em agosto de 1939, quando Hitler e Stálin assinaram o célebre
pacto de não agressão entre alemães e russos. Para a redação, aquilo
representou um desastre moral. Até então, adotávamos uma linha
abertamente antinazista e antifascista. Com a assinatura do pacto, ficamos
perplexos. Como sair daquele impasse? Reunimo-nos para debater a questão,
mas não havia solução possível. Os comunistas, sempre disciplinados, tinham
de apoiar o que Stálin decidira. Como eu era controlado pelos comunistas da
redação, acabei concordando. Foi a fase mais difícil vivida por Diretrizes.
Seis meses antes da ruptura do pacto pelos alemães, em junho de 1941, dei
meu grito de independência, ao mandar fazer uma série de reportagens sobre
as possibilidades de a guerra envolver a Inglaterra, retomando a antiga linha
francamente antinazista. Os comunistas tentaram pressionar-me, continuavam
presos aos termos do pacto de não agressão. As pressões só cessariam quando
a Alemanha invadiu a União Soviética.
Descontada essa fase, Diretrizes foi sempre coerente no combate aos
nazistas e seus aliados. Para evitar problemas, agíamos como se o Estado
Novo não existisse – nossos inimigos estavam todos no exterior. A tática
funcionou, até que o governo brasileiro começou a inclinar-se pela
Alemanha. Em fins de 1938, decidi fazer uma edição inteiramente dedicada à
amizade entre os Estados Unidos e o Brasil, com Franklin Roosevelt e
Getúlio juntos, na capa. A revista estava pronta quando fui chamado ao
Ministério da Guerra. Assustei-me. O Ministério da Guerra era o terror dos
jornalistas de oposição: muitos dos que eram convocados àquele prédio, no
Campo de Santana, dali seguiam direto para alguma cadeia.
Fui recebido pelo major Afonso de Carvalho, chefe de gabinete do ministro
Eurico Dutra. Esse major era uma sinistra figura, ostensivamente fascista. Foi
meu primeiro contato direto com agentes da repressão política. Até então, eu
me limitava a levar textos ao DIP, onde esperava humildemente, às vezes
durante horas, que algum censor me atendesse. Agora, eu estava frente a
frente com um dos mais temidos servidores da ditadura. Em tom de voz
histérico, o major Afonso de Carvalho apontou para um exemplar de
Diretrizes colocado sobre sua mesa e informou que a edição não poderia
circular. “Ela contraria a política externa brasileira”, disse o major.
Argumentei que a foto de capa era uma prova de que o Brasil e os Estados
Unidos eram amigos. Ele colocou um dedo sobre a figura do Roosevelt e
comunicou-me:
– Tira esse que a revista sai.
Fui para a redação e troquei imediatamente a capa, tendo o cuidado de
guardar alguns exemplares para a história. Os textos não foram modificados,
mas Roosevelt teve de ser banido.
Voltei ao gabinete do major Afonso de Carvalho em novembro de 1939,
quando preparava o lançamento de uma edição especial sobre o
cinquentenário da Proclamação da República. A capa, desta vez, trazia a
figura de Benjamin Constant, um dos líderes do movimento que derrubou a
monarquia. Tratava-se de um truque para driblar a vigilância do governo.
Naquela época, o Exército brasileiro estava dividido em dois grupos,
“constantistas” e “deodoristas”. Os constantistas, fiéis às teses de Benjamin
Constant, eram pacíficos, democratas e simpáticos aos Aliados. Os
deodoristas, que cultivavam a imagem do marechal Deodoro da Fonseca, o
“Marechal da Espada”, eram marciais, agressivos e, àquela altura, haviam
aderido às teses fascistas. No Ministério da Guerra, o major Afonso de
Carvalho deu um recado curto e grosso:
– Esse número não vai sair porque vocês são traidores da pátria.
Simulei perplexidade, e o major voltou ao ataque. Informou-me que
Benjamin Constant inoculara o germe pacifista no organismo do Exército, e
que isso era imperdoável.
– Um exército não pode ser pacifista – exaltou-se Afonso de Carvalho.
Então, novamente, apontou-me a saída: a revista só circularia se trouxesse
na capa a figura do marechal Deodoro da Fonseca. Agradeci-lhe as
informações históricas, afirmei que tudo não passara de um mal-entendido e
corri de volta à redação. A edição do cinquentenário da Proclamação da
República saiu com o marechal Deodoro na capa, junto a Benjamin Constant.
CAPÍTULO 8
O nazismo e o fascismo encontraram defensores nas Forças Armadas e no
governo brasileiro, mas jamais se fixaram junto à população. Tampouco
conquistaram muitos adeptos entre as classes dirigentes, até porque a cultura
germânica nunca teve, no processo da formação cultural brasileira, a
influência da cultura inglesa ou francesa. Além do mais, o Brasil foi durante
muito tempo, na prática, uma colônia britânica. Graças a esses fatores, a linha
antifascista e antinazista de Diretrizes era vista com simpatia. O brasileiro
médio não nos considerava comunistas; para ele, a revista defendia causas
justas, democráticas.
A situação se agravou em junho de 1940, quando Getúlio Vargas, a bordo
do couraçado Minas Gerais, fez o histórico discurso com o qual praticamente
formalizava a adesão do Brasil ao bloco liderado pela Alemanha. O discurso
continha a frase que ficaria famosa: “Novas forças se erguem no mundo
ocidental.” O texto era elíptico, mas deixou evidente de que lado se
encontrava o ditador. A França fora invadida, a União Soviética parecia
acuada, a Inglaterra estava na iminência de ser invadida. Nós nos sentíamos
perdidos, mas não perdemos a disposição de reagir. Nessa época, fizemos
uma edição dedicada à França. Era uma forma de resistência.
Até o discurso no Minas Gerais, havia simpatizantes dos Aliados em altos
postos do governo, e o grupo de militares antifascistas era numeroso. A partir
dali, o Exército passou a ser inteiramente controlado por germanófilos, e os
dissidentes do governo silenciaram. A redação de Diretrizes saiu à procura de
assuntos que, sem criar problemas graves com o Estado Novo, deixassem
claro que continuávamos a seguir a mesma linha de sempre, favorável aos
Aliados. Descobrimos, então, o filão do nacionalismo, que se tornaria um
capítulo de extrema relevância na história de Diretrizes.
Desencadeamos a campanha da nacionalização do sul do Brasil, abrigo da
lendária Quinta Coluna. A Quinta Coluna seria um agrupamento de
imigrantes alemães e brasileiros traidores, dedicados a trabalhos de
espionagem e sabotagem. O sul do Brasil, naquela época, estava virtualmente
ocupado pela colônia alemã. As cidades tinham nomes alemães, não se falava
português nas ruas, as crianças aprendiam na escola a falar exclusivamente o
idioma alemão. A campanha tinha o apoio do general Cordeiro de Farias,
então interventor do Rio Grande do Sul, mas o ministro da Justiça, Francisco
Campos, tentou proibi-la. Foi uma tentativa inútil. As teses nacionalistas
defendidas por Diretrizes já haviam sido encampadas pelo Exército e por
homens do governo. Mais tarde, quando o Brasil já se engajara na causa dos
Aliados, Getúlio Vargas adotaria providências drásticas para devolver à
cultura brasileira o sul do país.
No final de 1940, Diretrizes já se transformara numa revista moderna e,
apesar de suas dimensões modestas, bastante influente. Embora a tiragem
oscilasse entre quatro e cinco mil exemplares, a repercussão das reportagens
que publicávamos era grande. Textos políticos eram o prato de resistência da
revista, mas também tratávamos com competência de assuntos de outras
áreas. Haviam sido criadas seções de humor, publicávamos charges, questões
literárias importantes eram debatidas nas páginas de Diretrizes. O grupo de
colaboradores aumentara, outros nomes de prestígio haviam se juntado a nós.
O problema da falta de recursos, porém, continuava presente. Conseguimos
ampliar o volume de anúncios, mas ainda faltava dinheiro. Achei que chegara
a hora de procurar algum capitalista que nos ajudasse.
Depois de examinarmos vários nomes, eu e Rubem Braga nos fixamos num
paulista chamado Maurício Goulart, que participara de todos os grandes
eventos políticos importantes desde a Revolução de 1930. Goulart era um
homem extremamente simpático, muito ligado ao grupo que, em 1945, criaria
a União Democrática Nacional. Marcamos um encontro num bar da Lapa.
Rubem e eu expusemos nossos problemas e planos a Maurício Goulart. Ele
logo se entusiasmou com a ideia e aceitou investir cem contos de réis – uma
fortuna – em Diretrizes. Com esse dinheiro, resolvemos transformá-la em
revista semanal.
O sucesso foi imediato. A tiragem logo alcançaria a marca de vinte mil
exemplares, bastante alta para os padrões da época. Os ventos gerados pelos
conflitos na Europa começaram, afinal, a soprar a nosso favor. Homens do
governo pressentiram que os Aliados poderiam ganhar a guerra e passaram a
pressionar Getúlio Vargas. O serviço de propaganda montado pelos ingleses
abastecia-nos com informações, artigos e reportagens. Emissários americanos
intensificaram suas visitas ao Brasil, decididos a conquistar nosso país para a
causa aliada. Diretrizes se tornaria um dos polos aglutinadores desse esforço
antinazista, e essa seria uma das razões do sucesso alcançado pela revista.
Houve outras. Entre elas, uma das mais importantes foi o fato de Diretrizes já
ter consolidado, àquela altura, sua imagem de revista veiculadora de grandes
reportagens.
Uma dessas reportagens, um dos marcos da luta de Diretrizes contra o
nazifascismo e suas ramificações, chegou-me num envelope remetido do Rio
Grande do Sul. O autor, numa linguagem típica de jornalista de província,
pedia-me cerimoniosamente que me desse o trabalho de ler o que escrevera.
Esse texto hoje figura em qualquer antologia das grandes reportagens já
publicadas no Brasil. O título – “Como era verde o meu Brasil” – indicava,
com fina ironia, o assunto abordado. Inspirado no título de um romance
famoso – Como Era Verde o Meu Vale, de Richard Llewellyn –, o repórter
aludia ao verde das camisas dos integralistas. Essa reportagem, uma vigorosa
denúncia de infiltração de agentes e simpatizantes do nazismo no sul do país,
revelaria o talento de um jornalista que logo ficaria conhecido nacionalmente:
Justino Martins.
Justino, que mais tarde se tornaria diretor da revista Manchete, cargo que
ocupou durante muitos anos, trabalhava na Livraria do Globo, em Porto
Alegre. Ele tivera acesso a um relatório do chefe de polícia do Rio Grande do
Sul sobre as atividades da Quinta Coluna e nele baseara sua reportagem. O
assunto não figurava no índex do DIP, e Justino pôde explorá-lo em outras
reportagens, sempre com títulos fortes: “A infiltração integralista no
professorado”, “Dancei um Tango com a Gestapo”. Como os jornais se
comportavam com timidez diante do assunto, as denúncias de Diretrizes
tiveram enorme repercussão.
Outra reportagem antológica teve o título de “Grã-finos em São Paulo” e,
como autor, Joel Silveira. Joel, um dos grandes nomes da história da
reportagem no Brasil, começou a projetar-se com esse texto. A ideia nascera
numa noite em que o pintor Di Cavalcanti, também ligado ao grupo de
Diretrizes, contou-me numerosos casos e incidentes envolvendo personagens
da alta sociedade paulista. Di Cavalcanti frequentava esse meio, era um
observador sagaz e um ótimo contador de histórias. Pensei comigo: isso dá
uma ótima reportagem, e o homem para fazê-la é Joel Silveira. Joel escrevia
muito bem, sabia descrever situações com deliciosa ironia. Ele viajou para
São Paulo acompanhado de Di Cavalcanti. Ao voltar, trazia uma reportagem
que faria furor. Foi a primeira vez na história do jornalismo brasileiro que
uma publicação teve de tirar três edições sucessivas.
Estimulado pela onda nacionalista, o governo decidiu criar, em 1941, a
Companhia Siderúrgica Nacional, que construiria a usina de Volta Redonda.
O DIP organizou uma barulhenta campanha publicitária, convidando o povo
a comprar ações. Elas se esgotaram rapidamente, e os aproveitadores de
sempre compreenderam que ali havia uma ótima fonte de lucros ilegais. O
esquema era simples. Primeiro, procurava-se um nome para uma empresa
fantasma – Companhia Siderúrgica Brasileira, Brasilminas, coisa do gênero.
Depois, botava-se na presidência um general ou almirante reformado. Em
seguida, um vendedor de ações, sempre acompanhado de algum policial,
dirigia-se à casa de alguma família de imigrantes originários da Alemanha ou
de países ligados aos germânicos – japoneses, alemães, austríacos. Àquela
altura, esses imigrantes viviam em pânico. O vendedor argumentava que
quem se recusasse a comprar ações poderia ser preso como “inimigo da
nacionalidade”. Era um golpe infalível. E, além dessa freguesia indefesa
diante de golpes desse tipo, os donos dessas siderúrgicas inexistentes tinham
a seu alcance brasileiros convencidos de que não poderia haver investimento
melhor para suas economias.
Colhi as primeiras evidências desse escândalo numa conversa com meu
irmão Marcos, um homem muito simples, quase ingênuo. Ele me disse que
estava ganhando muito dinheiro com a venda de ações de uma empresa
chamada Companhia Indústria Pesada. Pedi-lhe uma cópia dos estatutos da
empresa e logo constatei a fraude: os autores do golpe se apresentavam como
proprietários de uma mina de aço. Não se tratava de minério, já haviam
chegado ao estágio do aço. Recomendei a meu irmão que se afastasse
imediatamente daquele negócio, e comecei a apurar. Fui a uma dessas
empresas fantasmas e, poucos minutos depois, tornara-me acionista da futura
Usina Siderúrgica de Montes Claros. Havia filas de compradores, todos
alheios ao fato de que a indústria siderúrgica era monopólio do Estado. Em
poucos dias, colhi elementos para uma grande reportagem. Tive a cautela de
providenciar uma cópia de texto e então encaminhá-la ao coronel Edmundo
Macedo Soares, que à época chefiava o grupo encarregado das obras de Volta
Redonda. Macedo Soares respondeu-me com uma carta cheia de elogios ao
que considerava um trabalho patriótico. Então, publiquei a reportagem com o
título “Gângsters siderúrgicos invadem o Brasil”.
Poucas horas depois, a revista estava esgotada nas bancas. Soltamos uma
segunda edição. Em todas as cidades do país onde havia escritórios das
empresas denunciadas, registrou-se uma maciça corrida de compradores de
ações em busca de seu dinheiro. Houve quebra-quebras, multidões
enfurecidas caçavam responsáveis pela fraude. Fui prontamente chamado à
polícia e convidado a explicar de que modo obtivera elementos para a
reportagem. Mostrei ao delegado que me intimara os estatutos de uma das
empresas: as provas estavam ali. Ele me recomendou que fosse para casa e
aguardasse instruções. Fui para um hotel na Cinelândia, protegido por líderes
estudantis. Naquele mesmo dia, o DIP baixou uma ordem proibindo que a
imprensa tratasse da questão das falsas empresas siderúrgicas. Mas já era
tarde para abafar o escândalo. Graças a Diretrizes, o país fora informado dos
mecanismos da fraude e soubera que havia generais e almirantes envolvidos
no golpe. As empresas fraudulentas foram fechadas, ocorreram muitas
prisões. E a ditadura do Estado Novo, que fora no mínimo conivente com
aquilo tudo, teve sua credibilidade fortemente abalada.
Lembro-me de que, nessa época, tive um ligeiro incidente com Carlos
Lacerda. Eu caminhava pela calçada defronte ao Amarelinho, na Cinelândia,
quando alguém me abraça por trás, põe-me as mãos sobre os olhos e solta a
frase:
– Você vai ser o nosso Assis Chateaubriand.
Eu já reunira informações suficientes para concluir que Chateaubriand era
um gângster da imprensa.
– Chateaubriand é a puta que o pariu! – irritei-me.
Só então voltei-me para trás e me deparei com Carlos Lacerda. Ele parecia
desconcertado.
– O que é isso? – espantou-se. – Eu não te insultei.
Ponderei que a frase fora insultuosa.
– Isso não faz sentido – disse Lacerda. – Ser um Chateaubriand é uma
grande coisa.
Insisti em que ser comparado ao homem dos Diários Associados era uma
degradação. Separamo-nos minutos depois, num clima de evidente mal-estar.
Às vezes me pergunto até que ponto incidentes desse gênero contribuíram
para forjar e alimentar o ódio que mais tarde Carlos Lacerda descarregaria
contra mim. Mas esta é outra história, que examinaremos mais tarde.
A disposição para a denúncia e a linha nacionalista adotada por Diretrizes
conjugaram-se para fazer da revista uma pioneira também na abordagem da
questão do petróleo. Participamos ativamente da luta pela nacionalização que
resultaria na Lei 395, destinada a assegurar ao Estado a posse de toda e
qualquer jazida encontrada no subsolo. Em junho de 1939, por exemplo, fiz
uma entrevista com o general Horta Barbosa, presidente do Conselho
Nacional do Petróleo. Eu me aproximara de militares que integravam o CNP,
e frequentava a casa do coronel Ibá Meireles, genro e chefe de gabinete de
Horta Barbosa. Nessa entrevista, matéria de capa de Diretrizes, o presidente
do CNP reafirmava que havia petróleo no Brasil e que o governo estava
decidido a garantir a exclusividade do Estado na exploração das jazidas.
Horta Barbosa, habitualmente um homem tímido, retraído, mostrou-se
bastante loquaz e afirmativo em suas respostas. Ali começariam a germinar as
sementes da futura Petrobrás. Ali, também, começaria a aprofundar-se meu
interesse pela questão do petróleo, que me acompanharia por toda a vida.
No início de 1940, passou pelo Brasil um geólogo americano chamado
Glenn Rugby, ligado a empresas de prospecção. Fui entrevistá-lo. Rugby, que
ficaria famoso por ter descoberto a presença de jazidas de óleo no Alasca,
estava a caminho do Chile, convidado pelo governo daquele país para
comandar algumas prospecções. Ele me contou que, algum tempo antes,
estivera na Bahia, e fez declarações que tiveram muita ressonância. Afirmou,
em tom categórico, que o Brasil era um país petrolífero. Mais: sustentou que
havia, na Bahia, mais petróleo que no Texas. O DIP apressou-se em proibir a
publicação de novas declarações de Glenn Rugby. Interessado em prosseguir
na abordagem do assunto, fiquei à espera de alguma chance para driblar a
censura.
Pouco tempo depois, consegui junto ao CNP uma autorização para visitar a
área de prospecções na Bahia. Os técnicos americanos que dirigiam os
trabalhos foram extremamente solícitos. Deram-me todas as informações
necessárias, levaram-me a ver os poços. Fiz fotos do petróleo jorrando, e
voltei para o Rio com um material excelente. “Eu vi o petróleo brasileiro”, foi
o título da reportagem. O DIP voltou à carga e proibiu que a revista
continuasse a tocar no assunto. A proibição seria parcialmente neutralizada
por um grupo de estudantes já engajados na campanha pela nacionalização do
petróleo. Eles imprimiram milhares de folhetos que reproduziam textos das
reportagens publicadas em Diretrizes e os distribuíram pelo país.
Os repórteres de Diretrizes viviam à caça de grandes assuntos, mas pelo
menos uma vez um grande assunto enveredou redação adentro pelas próprias
pernas. Certo dia, surgiu em minha sala um general fardado, de ótima
aparência, que fez um resumo dos motivos que o haviam levado ali: “Sou o
general Dilermando de Assis, e quero que seja reparada essa injustiça que é
feita contra mim há quase quarenta anos. Quero que todos saibam da
verdade.” Levei um choque. Dilermando de Assis era o assassino do escritor
Euclides da Cunha, uma das glórias da literatura brasileira. Com o tempo,
consolidara-se a versão de que Euclides fora vítima de um atentado político.
O Partido Comunista, que virtualmente se apossara de Euclides da Cunha,
sempre contribuíra para propagar tal versão. Contestá-la seria, na visão dos
comunistas, uma heresia imperdoável. Mas compreendi que tinha à minha
frente um grande assunto.
Encaminhei Dilermando a Francisco de Assis Barbosa, um de meus
melhores entrevistadores. “Não tenho coragem”, disse Assis Barbosa, já
imaginando o impacto das declarações do assassino de Euclides. Eu o instruí
a fazer a entrevista, depois convocaríamos uma reunião para decidir como
agir. Assim, o general Dilermando de Assis pôde, finalmente, apresentar sua
versão da história – aliás, a verdadeira, como ficaria comprovado. O crime
ocorreu quando ele era um cadete de dezessete anos e vivia um romance com
a mulher de Euclides, que morava no bairro de Piedade, no Rio de Janeiro.
Os vizinhos sabiam, o próprio Euclides sabia. Num dia qualquer, espicaçado
pelo ciúme, o escritor procurou Dilermando, na casa do rival, para um acerto
de contas. Euclides atirou duas vezes; errou em ambas. Dilermando, ótimo
atirador, deu-lhe um único tiro na testa. No julgamento, o assassino foi
absolvido, entenderam que ele agira em legítima defesa. Alguns anos depois,
o filho de Euclides tentou vingar o pai e foi também fulminado com um tiro
por Dilermando.
Com a entrevista – uma bomba – nas mãos, convoquei uma reunião da
redação para decidirmos sobre o seu destino. Surpreendentemente para mim,
a maioria entendeu que a revista deveria publicá-la. Essa decisão faria
desabar sobre meus ombros a fúria do Partido Comunista – um de seus
heróis, afinal, fora ultrajado. Diretrizes foi colocada sob suspeita de estar a
serviço da ditadura, dirigentes do PCB acusaram-me de fascista, traidor.
Os dissabores provocados pela entrevista não foram poucos. Mas a edição
alcançou enorme sucesso de público, e as acusações formuladas pelos
comunistas não afetaram sua boa imagem. Estava claro que a revista chegara
à maioridade.
CAPÍTULO 9

Maurício Goulart, nosso providencial capitalista, que durante os primeiros


meses de sua convivência com Diretrizes se mantivera à distância das
decisões sobre o conteúdo das reportagens, resolveu interferir mais
diretamente – e esse seria seu grande erro. Prudentemente, evitávamos
desafios frontais ao governo de Getúlio Vargas. Goulart, que nessa época
flertava com o núcleo oposicionista que mais tarde estaria aglutinado na
UDN, entendeu que deveríamos dar algum tipo de ajuda a um grupo de
conspiradores mineiros. Todos os anos, esse grupo mandava celebrar uma
missa no dia do aniversário de Pedro Aleixo, que fora constituinte em 1934 e
perdera o mandato com o advento do Estado Novo. Aleixo era um dos líderes
dos conspiradores de Minas Gerais. No final de 1942, Maurício Goulart
compareceu à missa em Belo Horizonte e, de volta ao Rio de Janeiro, trouxe
um material para ser publicado em Diretrizes.
Ponderei que, aos olhos do DIP, aquilo configuraria um desafio intolerável.
Maurício Goulart insistiu. Levei a revista ao DIP com um pedido de
autorização para a publicação da nota. O veto, previsível, veio acompanhado
de uma ordem emitida por Lourival Fontes: ou Maurício Goulart deixava a
revista, ou Diretrizes deixava de circular. Fui a Goulart e lhe transmiti o
ultimato: era ele ou a revista. Sempre elegante, Maurício Goulart resolveu
afastar-se de Diretrizes, e escreveu seu artigo de despedida.
A partir daquele número, o controle acionário da revista passou
inteiramente às minhas mãos. Diretrizes sobrevivia com as dificuldades
financeiras de sempre. Politicamente, a situação melhorou bastante quando o
Brasil entrou na guerra ao lado dos Aliados. Ampliada a margem de manobra
que o DIP nos concedia, a linha editorial de Diretrizes pôde acentuar sua
vocação democrática. Planejei uma série de reportagens sob o título geral de
“Memorialismo libertário”, para lembrar ao país o que já se fizera na luta pela
liberdade. A primeira delas tratava da figura de Pedro Ernesto, prefeito do
Rio de Janeiro em 1935, que morrera depois de ter sido preso sob a acusação
de inclinações comunistas. Em seguida, vieram a história da Coluna Prestes,
outros episódios históricos, os perfis de tenentes como Siqueira Campos ou
Juarez Távora. O DIP acordou, mas já se tornara difícil estancar a torrente –
até porque seria difícil justificar o veto à publicação dos perfis de homens
como os tenentes, que se haviam incorporado à própria história da Revolução
de 1930. A essa altura, praticamente todos os jornais haviam embarcado na
causa dos Aliados. Já não estávamos sozinhos.
As coisas andaram bem até que tive a ideia de entrevistar Fernando
Lacerda, tio de Carlos Lacerda, um lendário dirigente comunista. Fernando
fugira para a União Soviética alguns anos antes, e fora o único brasileiro a
ingressar no Komintern, uma espécie de cérebro da revolução mundial. Ali se
congregavam líderes comunistas do mundo inteiro para planejar a
transformação da Terra num planeta vermelho. No começo dos anos 40, para
dar uma demonstração de boa vontade ao Ocidente, Stálin dissolveu o
Komintern. E Fernando Lacerda, que não participara da chamada Intentona
de 1935 por já estar vivendo na União Soviética, resolveu regressar ao Brasil.
Foi então que decidi entrevistá-lo. Vários companheiros de redação tentaram
dissuadir-me. “Dá cadeia”, repetiam.
Mandei a Fernando Lacerda um questionário com as perguntas. Alguns dias
depois, vieram as respostas por escrito. Pela primeira vez, um dirigente
comunista falaria a uma publicação da chamada imprensa burguesa brasileira.
Resolvi que aquele texto não seria submetido à censura do DIP. Para evitar
que algum funcionário das oficinas denunciasse ao DIP o que estávamos
preparando, montamos uma edição falsa. Quando o expediente da gráfica se
encerrou e só ficaram dois funcionários de confiança, trocamos a capa,
substituímos páginas ocupadas por outros textos pelas declarações de
Fernando Lacerda e concluímos a edição. Ao contemplar a revista pronta,
com um dirigente comunista na capa, compreendi que a profecia de meus
amigos seria cumprida.
– Vai dar cadeia – comentei.
Deu.
Na noite do dia em que o número 152, com a entrevista de Fernando
Lacerda, chegou às bancas, fui para o apartamento onde morava, em
Copacabana, e dois policias já me aguardavam. A revista estava esgotada.
Conduzido à Central de Polícia, ali encontrei Fernando Lacerda. Entramos na
cela por volta de cinco horas da madrugada, ouvindo gritos de presos
políticos submetidos a torturas em salas próximas. A população da cela que
nos coube era bastante heterogênea. Nela, conviviam um alemão acusado de
pertencer à Quinta Coluna, dois negões que haviam roubado fusíveis do
couraçado Minas Gerais e um investigador envolvido com o jogo do bicho. A
luz se acendeu, e o velho Fernando Lacerda ensaiou uma apresentação
solene:
– Peço aos companheiros que durmam. Eu sou Fernando Lacerda, preso por
ser patriota. Aqui, ao meu lado, o jornalista Samuel Wainer, preso pelo
mesmo motivo.
Um dos negões cortou o discurso:
– Cala a boca, queremos dormir!
Atendemos ao apelo, mas ninguém conseguiria dormir. À exceção do
próprio Fernando: ele roncava como um leão velho. De manhã, o negão, que
naquele dia estava encarregado da faxina, começou a limpar a cela sempre
olhando para Fernando.
– Como é o nome desse velho? – perguntou. Respondi. Ele continuou seu
trabalho repetindo um lamento que se transformaria no refrão oficial de nossa
temporada na cadeia:
– Seu Lacerda, que merda, seu Lacerda...
Sugeri a Fernando que dormisse durante o dia para permitir nosso direito ao
sono à noite. A ideia revelou-se desastrada: ele passou a dormir durante o dia
e também à noite.
Fiquei preso 28 dias. Só alguns anos mais tarde eu ficaria sabendo, pelo
próprio Getúlio Vargas, que fora libertado graças ao chefe de polícia Alcides
Etchegoyen, já meu amigo naquela época. Getúlio chamou Etchegoyen para
saber o que ocorrera com um “tal Wainer”, e contou-lhe que o ministro do
Trabalho, Marcondes Filho, recomendara a transferência do meu caso ao
temido Tribunal de Segurança. Etchegoyen sabia que, se isso ocorresse, eu
seria condenado a, no mínimo, dois anos de cadeia. Ponderou a Getúlio,
então, que tal providência não era necessária, recorrendo a uma expressão
gaúcha: disse que já me pusera “o freio nos dentes”. Vargas ordenou que eu
fosse libertado. Reassumi a direção efetiva da revista imediatamente.
Fernando Lacerda foi libertado alguns dias depois. Previsivelmente, a
repercussão do episódio ampliou a notoriedade de Diretrizes.
Entre abril de 1939 e julho de 1944, Diretrizes sustentou contra o DIP uma
luta sem tréguas, apoiada pelo entusiasmo ideológico e pela capacidade
intelectual de cada um de seus componentes. Essas virtudes compunham seu
capital. Em 1944, a revista estava profissionalizada, mas devia sua
sobrevivência à visão romântica que tínhamos do jornalismo. Faltavam
anunciantes, faltava capital, a venda em bancas não bastava para assegurar
salários justos para os homens que faziam a revista, e a dívida com a gráfica
aumentava. Ainda assim, prosseguíamos. Também o eterno combate de gato
e rato travado com o DIP começava a nos cansar. Certa vez, José Américo de
Almeida atribuiu a relativa longevidade de Diretrizes à “flexibilidade
intelectual do judeu que a dirige”. Eu tinha, de fato, evidente capacidade para
adaptar os rumos da revista às circunstâncias. No primeiro semestre de 1944,
contudo, a luta contra toda espécie de adversidade se mostrava demasiado
exaustiva. Hoje tenho consciência de que, nessa época, comecei a provocar o
fechamento de Diretrizes, pautando ou fazendo pessoalmente reportagens
sobre temas considerados tabus.
A gota d’água foi uma reportagem sobre o general Miguel Costa, que
dividira com Luís Carlos Prestes o comando da célebre Coluna – seu nome
original, aliás, foi Coluna Miguel Costa-Prestes. Miguel Costa, um argentino
naturalizado brasileiro, fizera sua carreira na Força Pública de São Paulo. Por
isso, o Exército o menosprezava. A chamada de capa era “Miguel Costa, o
General do Povo”, e o texto saudava seus feitos. No dia 4 de julho de 1944,
mandei o material para o DIP. Poucas horas depois, recebi um aviso que
significava uma sentença de morte para Diretrizes: por ordem do diretor do
DIP, a revista perdera o direito à cota de papel que garantia sua impressão.
O comunicado trazia a assinatura do capitão Amílcar Dutra de Menezes,
um facínora que costumava tratar-me aos berros quando eu ia à sua sala.
“Você está nos enganando!”, gritava o capitão depois de ler algum texto
suspeito. Eu lhe explicava que aquele assunto não fora proibido.
– Qualquer dia eu te pego! – berrava o capitão.
Ele afinal encontrara o pretexto para cumprir a ameaça. Decidi escrever
uma carta ao diretor do DIP, denunciando a violência que sofrera. Entreguei
uma cópia da carta a Paulo Silveira, vice-presidente da União Nacional dos
Estudantes, que saíra há pouco da clandestinidade. Comuniquei ao pessoal
da redação, por telefone ou pessoalmente, o que acabara de ocorrer, e
recomendei a todos que se dispersassem. Tomadas essas providências, tomei
um táxi e me refugiei na embaixada do México. Informei ao embaixador o
que se passara e pedi-lhe asilo. Ele me explicou que, como não havia até
aquele momento uma ordem de prisão contra mim, não se tratava de um caso
de asilo. De qualquer modo, aconselhou-me a ficar por ali até que as coisas
se aclarassem.
A imprensa não publicou uma única linha sobre o fechamento de
Diretrizes, mas a UNE distribuiu por todo o país milhares de cópias de
minha carta ao diretor do DIP. O governo começou a temer que o caso
assumisse dimensões de escândalo. Assim, quando o embaixador do México
comunicou ao Itamaraty que eu pedira asilo, emissários do governo
esclareceram que aquilo era desnecessário – eu obteria um visto de saída
sem maiores complicações. Permaneci na embaixada três dias, ao fim dos
quais, acompanhado por vários amigos e militares democratas, fui para a
Central do Brasil no carro de Orlando Leite Ribeiro. Embarquei num trem
para São Paulo na companhia do general Estillac Leal, que viajava para o
sul do país, onde deveria assumir um cargo de comando. Em São Paulo,
Estillac me entregou à proteção do general Horta Barbosa, que eu
conhecera como presidente do Conselho Nacional de Petróleo, e naquela
época era comandante de região. Ambos eram militares francamente
favoráveis aos Aliados.
À espera do trem para o Rio Grande do Sul, que sairia às seis horas da
madrugada, fiquei num quartel localizado na rua Conselheiro Crispiniano,
no centro de São Paulo.
Resolvi rever meu pai, que morava na casa de uma de minhas irmãs, na
rua Aurora. Acordei-o às quatro horas da madrugada, com batidas na
janela. Expliquei-lhe que teria de deixar o Brasil. Ele quis saber por quê.
Contei que estava sofrendo uma perseguição política e pretendia viajar para
os Estados Unidos. Meu pai perguntou-me se sabia falar inglês, esclareci
que falava o suficiente para sobreviver no exterior. Com ar de surpresa, ele
quis saber onde eu aprendera a falar inglês. Depois contou-me que, quando
criança, tentara fugir da aldeia onde nascera, mas foi impedido pelo pai. E
recomendou-me que partisse: eu já era um adulto.
Segui para a estação, reencontrei o general Estillac Leal e seguimos para
Porto Alegre, numa viagem de vinte horas. Na capital gaúcha, fiquei três
dias num hotel e aproveitei a chance para rever os muitos amigos que fizera
na cidade. Enfim, segui para a minha primeira temporada no exílio,
convencido de que não seria difícil manter-me nos Estados Unidos. Também
ali eu tinha bons amigos, entre os quais Nelson Rockefeller, que tempos antes
visitara o Rio de Janeiro e convivera amistosamente com o pessoal de
Diretrizes. E, antes de deixar o Rio, eu recebera do jornal O Globo uma
credencial para trabalhar como correspondente nos Estados Unidos. Através
de amigos comuns, o jornalista Roberto Marinho propôs enviar-me duzentos
dólares por mês. Eu não poderia assinar minhas reportagens – Samuel
Wainer era agora um nome inscrito no livro negro do DIP. Mas eu
carregava a certeza de que a ditadura não duraria muito. Muito mais tempo
duraria minha trajetória na imprensa brasileira.
CAPÍTULO 10

Quando parti para o exílio, meu destino já se havia cruzado com o de dois
homens que teriam presença decisiva em minha vida: Getúlio Vargas e
Carlos Lacerda. Ainda não conhecia Vargas pessoalmente, mas era ele, a
meus olhos de jovem jornalista, a encarnação do mal, o grande adversário a
combater. Mais tarde, nós nos tornaríamos amigos íntimos. O contrário
ocorreu em relação à trajetória de Carlos Lacerda. Hoje, muitos brasileiros
recordam o ódio animal que ele dedicou a mim, suas tentativas desesperadas
de destruir-me por todos os meios, a guerra de morte que travamos. Poucos se
lembram de que fomos muito amigos nos verdes anos de Diretrizes.
A amizade estreitou-se no período em que ele viveu escondido no sítio em
Vassouras. Éramos cinco amigos solidamente unidos. Carlos Lacerda tinha a
liderança política do grupo. Jorge Amado, a liderança literária. Moacir
Werneck de Castro, primo-irmão de Carlos e intelectual de alto nível,
também integrava esse círculo completado por Rubem Braga e por mim.
Nessa época, Carlos casou-se com uma professora que morava em Valença,
Letícia, e começou a publicar artigos em Diretrizes. Pouco depois, com o
relativo abrandamento da perseguição aos envolvidos no episódio da
Intentona Comunista, ele se transferiu para um apartamento em Copacabana.
Carlos Lacerda não demorou muito tempo em Diretrizes. Talentoso, redator
brilhante e já fascinado pelo poder, aceitou um convite para trabalhar numa
revista chamada Observador Econômico e Financeiro, à época uma espécie
de Fortune brasileira, que pertencia a Valentim Bouças, representante no país
de uma empresa que seria o embrião da atual IBM. A revista era dirigida por
Olímpio Guilherme, um grande economista que seria um dos inspiradores do
DIP. Com salário bem mais compensador que o que poderíamos oferecer-lhe
em Diretrizes, Carlos mostrou-se, no começo, um bom repórter – fez um bom
levantamento, por exemplo, sobre a questão da infiltração germânica no sul
do Brasil. Mas uma dessas reportagens exerceria dramáticos efeitos sobre a
sua vida.
A revista de Valentim Bouças encomendou-lhe uma reportagem contando a
história do Partido Comunista Brasileiro, ao qual Lacerda ainda era filiado.
Carlos aproveitou-se dos laços que mantinha com comunistas militantes para
levantar informações necessárias. Ele era frequentador, por exemplo, da casa
do escritor gaúcho Álvaro Moreyra, uma maravilhosa figura de comunista,
cuja mulher, Eugênia, era igualmente fascinante. Eugênia, uma intelectual
ligada aos meios teatrais, tinha uma aparência máscula, fumava charutos,
seria uma das pioneiras do feminismo. E era, naquela época, comunista até a
medula. Na casa de Álvaro e Eugênia Moreyra, Carlos Lacerda era tratado
como um filho querido, venerado como um revolucionário romântico. Carlos
tinha na adolescência um charme enorme. Era o jovem tribuno, o líder dos
moços comunistas, filho de Maurício de Lacerda, um orador lendário da
República Velha, sobrinho de dirigentes comunistas respeitados, como Paulo
e Fernando Lacerda. Pois bem: valendo-se dessa mística e dos laços de
amizade, Carlos conseguiu de Eugênia revelações minuciosas sobre a
infraestrutura do PCB.
Lacerda também obteve informações junto a Astrogildo Pereira, um dos
fundadores do partido, além de vários militantes, e reuniu um ótimo material.
A reportagem, muito bem escrita, descia a detalhes inteiramente
desconhecidos até então, e descrevia com competência a trajetória do PCB.
Mas seus efeitos foram desastrosos. Mais tarde, Lacerda diria, em sua defesa,
que qualquer reportagem escrita por algum anticomunista seria muito mais
prejudicial ao partido. O fato é que, em consequência das revelações que
fizera, ocorreram prisões, várias células foram desbaratadas, a perseguição
aos militantes recrudesceu e registrou-se o assassinato de alguns comunistas.
Numa tarde de 1940, eu caminhava pela Cinelândia em companhia de
Moacir Werneck de Castro quando começaram a voar papéis que atraíram
nossa atenção. Apanhei um deles, li o que estava escrito e fiquei pasmo:
tratava-se de um panfleto que anunciava a expulsão de Carlos Lacerda pela
direção do PCB. No texto, ele era apresentado como traidor e acusado de
responsável, graças às delações da reportagem, pela morte de vários
militantes. Em seu livro de memórias, Lacerda conta que a notícia da
distribuição de panfletos dando conta de sua expulsão do partido lhe foi
levada por Moacir Werneck de Castro. Ele se esqueceu, ou fingiu esquecer,
de que Moacir e eu fomos juntos à sua casa, naquela mesma noite, para
mostrar-lhe o panfleto. Estávamos penalizados. Ao ler o texto, Carlos ficou
pálido, prostrado. Negou, em termos veementes, como faria até o fim de sua
vida, que tivesse tido qualquer intenção de prejudicar o partido e, no começo,
procurou fazer acreditar que o texto fosse apócrifo. Mas logo sentiria o peso
da reação dos antigos companheiros. Velhos amigos passaram a repeli-lo,
outros o marginalizaram ostensivamente, seu isolamento tornou-se completo.
Ainda naquela noite em que lhe mostrei o panfleto, convidei-o a voltar a
escrever em Diretrizes – ali, ponderei, era o seu lugar. Foi uma forma de
mostrar minha solidariedade a um amigo duramente golpeado. Carlos aceitou
fazer críticas literárias para a revista. Os comunistas da redação – e eram
muitos – reagiram com indignação, mas mantive minha posição. Mesmo
Moacir Werneck de Castro, que naquela fase era formalmente o diretor da
revista, discordou da minha decisão, embora depois acabasse por aceitá-la,
até porque era primo-irmão de Lacerda.
Carlos sofreu bastante com esse repúdio generalizado, do qual lhe ficaram
feridas que jamais cicatrizariam. Pude testemunhar alguns penosos efeitos
sobre seu comportamento provocados por esse trauma. Numa noite em que
eu estava com Bluma no apartamento onde morávamos, nas imediações da
Cinelândia, por exemplo, ouvi gritos e o som de murros e pontapés.
– Abra! Abra! – berrava uma voz que a princípio não reconheci.
Assustei-me, já passava de meia-noite, poderia ser algum policial. Abri a
porta e vi diante de mim, completamente bêbado, Carlos Lacerda.
Lacerda literalmente desabou no chão. Eu e Bluma o arrastamos para uma
cama. Ele não parava de chorar e gemer, balbuciando sempre a mesma frase:
– Mataram minha mãe, fiquei órfão.
A mãe, no caso, era o Partido Comunista Brasileiro. Nós o consolamos até
que dormisse.
Convidá-lo a voltar a escrever em Diretrizes não se revelaria uma boa ideia.
No primeiro artigo, Carlos Lacerda praticamente arrasou com o poeta Jorge
de Lima, atacando com incrível violência sua obra e sua figura. Jorge de
Lima, além de grande poeta, era um homem extremamente bondoso. Médico,
costumava tratar gratuitamente dos comunistas. As reações foram imediatas:
“Veja no que deu você trazer esse crápula aqui para dentro”, disse-me Jorge
Amado. Moacir Werneck de Castro ameaçou abandonar a revista. Resisti. O
segundo artigo, tão violento e ressentido quanto o primeiro, teve como alvo o
pintor Cândido Portinari. Moacir pediu demissão. Com o terceiro artigo,
chegou a vez de Mário de Andrade. Constatei, então, que Carlos Lacerda não
se emendara. Eu havia imaginado que, com o episódio da expulsão do PCB,
ele se tornaria mais tolerante, humilde, compreensivo. Nada disso acontecera,
e tive de ceder às evidências: comuniquei-lhe que não havia mais clima para
que ele continuasse a escrever em Diretrizes.
Esse incidente com certeza contribuiu para antecipar a ruptura que ocorreria
mais tarde – era mais uma semente do ódio que ele depois manifestaria em
relação a mim. Outro incidente seria registrado em 1943, quando começaram
a voltar ao Brasil vários brasileiros que se haviam exilado no momento mais
agudo da repressão política. Voltavam para juntar-se à luta contra o inimigo
comum, o nazifascismo que, em 1944, tropas brasileiras ajudariam a derrotar
nos campos de batalha da Europa. Nessa época, o Partido Comunista
Brasileiro estava dividido em dois grupos. Um deles, liderado por Luís Carlos
Prestes, aglutinava-se em torno de uma palavra de ordem: união
incondicional com Vargas contra o Eixo. O termo incondicional tornava
possível até mesmo a presença de integralistas. O outro grupo, reunido em
torno de Agildo Barata, defendia a formação de uma frente política, a União
Democrática Brasileira, menos abrangente. Diretrizes apoiava a tese da UDB.
Nessa época, Carlos fez uma tentativa de reaproximar-se dos comunistas,
usando como ponte seu tio Fernando Lacerda. Ele queria voltar a qualquer
preço ao antigo convívio, e Prestes fez-lhe uma exigência: a publicação de
uma carta em que Carlos apoiaria integralmente a linha da união
incondicional em torno de Vargas. Ele foi à minha procura num fim de tarde,
com a carta nas mãos.
– Samuel, preciso publicar essa carta – disse-me Carlos na redação de
Diretrizes. – Para mim, é uma questão de sobrevivência.
Respondi que tinha o maior prazer em atender a seus pedidos e comecei a
ler. Já nas primeiras linhas, compreendi que toda a argumentação ali contida
se chocava frontalmente com a orientação seguida por Diretrizes. Sugeri-lhe
que deixasse a carta comigo. Imediatamente, passei-a ao grupo de comunistas
da redação.
– Isso é com vocês; resolvam – avisei.
Nos dias seguintes, enquanto eles deliberavam, fui obrigado a tergiversar
com Carlos Lacerda. Dizia que a carta sairia num determinado número,
depois que a publicação fora adiada para a próxima edição, estava
praticamente composta na gráfica. Até que um dia resolvi contar-lhe a
verdade.
– Carlos, eu não posso publicar tua carta – informei. – Ela foi repelida por
toda a equipe.
Ele arrancou-me a carta das mãos e dirigiu-me um olhar que jamais
esqueci. Era um olhar de frustração e ódio. Virou-me as costas e saiu. Só
muitos anos depois eu voltaria a encontrá-lo. A carta acabou sendo divulgada
por uma publicação semiclandestina, chamada Revista Acadêmica. Teve
pouca repercussão.
Quando parti para o exílio, Carlos estava escrevendo no Diário Carioca.
Continuava preso à ideologia comunista, mas não fora aceito de volta ao
partido. Responsável pelo veto: Luís Carlos Prestes. Eu praticamente me
esquecera dos incidentes com Lacerda quando deixei o Brasil pela fronteira
do Rio Grande do Sul.
CAPÍTULO 11
Deixei Porto Alegre de trem, fiquei dois dias em território uruguaio e afinal
cheguei à Argentina. Estávamos em setembro de 1944 quando desembarquei
em Buenos Aires. Saí imediatamente à procura de um querido amigo: o
jornalista americano Allan Hayden, correspondente do Chicago Daily News,
que eu conhecera na redação de Diretrizes, escala obrigatória de todos os
profissionais da imprensa estrangeira de passagem pelo Brasil. Fui
carinhosamente recebido por ele e por vários outros correspondentes que
também me haviam conhecido em Diretrizes e agora estavam em Buenos
Aires. Enquanto esses amigos se mobilizavam a fim de conseguir-me o
dinheiro necessário para seguir viagem, pus-me em campo para saber o que
estava acontecendo na capital argentina.
Soube que Armando de Salles Oliveira, candidato à Presidência da
República nas eleições programadas para 1937 e frustradas pela decretação
do Estado Novo, estava lá. Muito doente, Salles Oliveira chegara do México,
decidido a morrer em seu país. Procurei-o em Buenos Aires para contar-lhe
que surgira no Brasil um movimento clandestino, já com força ponderável,
cuja bandeira era a imediata restauração da democracia. Em resumo,
conspirava-se, e muito, para a derrubada da ditadura. Salles Oliveira não
sabia disso, embora muitos conspiradores tivessem sido seus aliados em
1937. Tampouco sabia disso o correspondente da revista Time em Buenos
Aires, que se mostrou bastante interessado nessas informações, quando lhe
relatei o teor da minha conversa com Salles Oliveira. Encomendou-me uma
reportagem sobre o assunto. Recebi setecentos dólares pelo texto, o primeiro
publicado na imprensa internacional sobre a conspiração em curso no Brasil.
Allan Hayden também me encomendou seis artigos sobre a situação
política brasileira para o Chicago Daily News, pagando seiscentos dólares
pela série. Com esse dinheiro, eu já podia viajar para os Estados Unidos,
conforme meus planos originais. Mas resolvi ficar mais algum tempo em
Buenos Aires, à procura de reportagens para o jornal O Globo. Achei que um
bom assunto estava na postura do governo argentino em relação à guerra. Da
mesma forma que o Brasil, a Argentina se mostrara simpática ao Eixo
enquanto Hitler parecia perto da vitória. Em setembro de 1944, os governos
dos dois países, ambos autoritários, procuravam alguma fórmula que lhes
permitisse conservar o poder mesmo com a vitória das forças democráticas.
Era um bom tema para reportagens. Consegui, então, marcar uma entrevista
com o general Peluffo, ministro das Relações Exteriores da Argentina. Só
mais tarde pude constatar que fora uma má ideia.
Na véspera do dia da entrevista, eu enviara a Chicago o texto de uma
reportagem que denunciava a presença, em Buenos Aires, de uma Quinta
Coluna fascista, integrada também por brasileiros. Um deles, citado
nominalmente no despacho, era o correspondente dos Diários Associados,
Caio Júlio César Vieira, uma espécie de agente da ditadura brasileira junto à
ditadura argentina. Já com a atenção concentrada na reportagem para O
Globo, fui ao encontro do general Peluffo. Ao entrar na sala do ministro, vi
sobre sua mesa um cartão de apresentação que eu lhe mandara horas antes. O
general começou a despejar os conhecidos lugares-comuns sobre a amizade
entre o Brasil e a Argentina, os vínculos históricos que unem os dois países –
aquela retórica me era muito familiar. De repente, ergueu o tom de voz para
queixar-se da existência de um tipo inimigo disposto a arruinar essa amizade:
o correspondente estrangeiro.
– Vou dar-lhe um exemplo – disse. Em seguida, chamou um major que
trabalhava no gabinete. – Traga aquele despacho de que falamos hoje –
ordenou.
Quando o major voltou, fiquei em pânico: ele trazia uma cópia da
reportagem que eu enviara na véspera.
Pedi licença para examinar o despacho, o general recusou: ele mesmo faria
a leitura. Compreendi, imensamente aliviado, que o ministro não havia
associado meu nome ao do autor da reportagem. A cada pausa na leitura, ele
espumava de ódio.
– Miserável! Bandido! Vamos destruí-lo! – exclamava.
Ao terminar, enrolou a cópia, devolveu-a ao major e me fez uma exortação
final:
– Volte a seu país e conte o que ouviu aqui. Mostre que é preciso impedir de
qualquer forma que esses inimigos, traidores, sabotadores, perturbem a nossa
tradição de amizade!
Tentando aparentar tranquilidade, apanhei o cartão sobre a mesa, agradeci-
lhe a entrevista e saí. Entendi que era hora de sair de Buenos Aires – àquela
altura, Caio Júlio César Vieira com certeza já se movimentava para atirar
contra mim a polícia argentina. Mas ainda haveria uma outra coincidência.
Horas depois, quando eu jantava em companhia de Allan Hayden, chegou o
homem que meu amigo convidara a juntar-se a nós: era o mesmo major que
trouxera o despacho naquela manhã, a pedido do general Peluffo.
– Creio que já vi o senhor hoje – disse o major.
Respondi que sim.
– Então vou dar-lhe um conselho – avisou o oficial. – Vá para a estação e
tome o trem que parte à noite para o Chile. Amanhã pode ser tarde.
Caio Júlio fora ao Ministério naquela tarde, fazendo um barulho enorme,
exigindo que eu fosse localizado. Só então o general e o major se deram
conta do episódio ridículo da leitura da reportagem para o seu próprio autor.
Allan Hayden divertiu-se muito com o incidente, que mais tarde relatou numa
de suas reportagens para o jornal de Chicago. Também o major, um homem
sensível, bem-humorado, achou tudo aquilo extremamente cômico, mas
precisava conter o riso diante do chefe.
O major acompanhou-me até a estação, junto com Hayden.
– Não volte mais – recomendou-me.
Fiquei 22 dias no Chile, à espera de que me fosse concedido o visto de
entrada nos Estados Unidos. Eu tinha muitos e bons amigos também no Chile
– era bastante ligado a políticos, como os futuros presidentes González
Videla, Eduardo Frei e Salvador Allende, e poetas como Pablo Neruda e
Gabriela Mistral. Fiquei hospedado na casa de Allende, e passei a frequentar
com assiduidade o círculo de González Videla. Desde então eu teria para
sempre, no Chile, uma espécie de segunda pátria.
Depois de subir a costa do Pacífico, cheguei aos Estados Unidos a 12 de
outubro de 1944. Procurei Nelson Rockefeller, um bom amigo, que me
recebeu fraternalmente. Nelson escalou, para me fazer companhia, o
jornalista Dick Iperroiser, que trabalhava na revista Life, um beberrão com
quase dois metros de altura, inteligentíssimo. Também não demorei a ligar-
me aos comunistas. Eu chegara a Nova York com a recomendação, dada por
amigos da redação de Diretrizes, de procurar a primeira mulher de Fernando
Lacerda, que militava no Partido Comunista Americano. Ela ajudou-me a
encontrar um apartamento, que aluguei por cerca de trinta dólares. Mais
tarde, eu saberia que a ditadura de Getúlio Vargas instruíra alguns agentes
para manter-me sob vigilância. Também o governo dos Estados Unidos,
desconfiado de meu currículo, tratou de seguir meus passos enquanto
permaneci no país.
Em companhia de Dick Iperroiser, passei a frequentar os lugares elegantes
de Nova York. Naturalmente, ele pagava a conta. Numa noite, em meio a
uma dessas celebrações, Dick, que bebera tonéis, teve um acesso de
melancolia etílica e caiu no choro. Confessou-me, então, que Nelson
Rockefeller lhe dava dinheiro para distrair-me.
– Eu não sou teu amigo – lamuriava-se Dick. – Estou te traindo.
Poucos dias depois, Nelson Rockefeller chamou-me para dizer que havia
um emprego para mim na Biblioteca do Congresso, em Washington. Eu
ficaria encarregado de fazer pesquisas sobre bibliografia brasileira. Eu achava
Washington detestável e pressentia que me sentiria deslocado no emprego:
havia lido meia dúzia de livros, como poderia fazer esse tipo de pesquisa?
Mas não resisti à tentação de aceitar um emprego que me renderia 450
dólares por mês.
Depois de algumas semanas em Washington, fui convidado a escrever um
artigo para uma revista muito importante chamada Atlantic Monthly. Título:
“I am a South American Refugee” (eu sou um refugiado sul-americano).
Ofereceram-me mil dólares pelo trabalho, e suspeitei de que também ali havia
o dedo de Rockefeller. Fui à redação e recebi a péssima notícia. Haviam
estourado conflitos na Grécia e, como aquele país era, para os norte-
americanos, bem mais importante que a América do Sul, o espaço que seria
ocupado pela minha reportagem fora reservado ao material do correspondente
em Atenas. Mas havia uma boa notícia: eu deveria procurar um homem
chamado Harold Pitt, bastante conhecido em Nova York; ele tinha um
emprego para mim.
A conversa com Pitt foi decididamente incomum. Nas paredes de sua
antessala havia inúmeros retratos de gente famosa – George Bernard Shaw,
Greta Garbo – com amáveis dedicatórias a meu anfitrião. Estava claro que ele
era um homem com amizades interessantes. Subitamente, abre-se a porta da
sala e me vejo diante de um homem diminuto, cerca de um metro e meio,
com nítidos traços judaicos.
– Você tem o físico para o papel – comentou Pitt.
– Que papel? – perguntei, começando a ficar intrigado.
Ele explicou-me que, durante o inverno, organizava grupos de
conferencistas para percorrer os clubes do país, fazendo todo tipo de palestra.
No meu caso, eu deveria substituir um argentino que abandonara o grupo e se
engajara no Exército americano.
Expliquei-lhe que era jornalista, não conferencista. Ele ponderou que
bastaria contar uma história, uma só, durante cinco anos, o tempo de duração
do contrato. Como eu jamais faria duas vezes uma palestra num mesmo
clube, não haveria problemas. Além do mais, eu receberia quinhentos dólares
a cada apresentação. Informei que mal sabia falar inglês. Pitt retrucou que eu
teria seis meses para aprender, ressalvando que os americanos gostavam de
oradores com sotaque estrangeiro. Perplexo, pedi tempo para pensar e fui
para casa. Então caí em mim. Se eu ficasse mais de seis meses nos Estados
Unidos trabalhando regularmente, eu poderia ser legalmente incorporado ao
Exército americano. Fora precisamente isso que acontecera ao conferencista
argentino. Decidi livrar-me o quanto antes desse risco.

Fui salvo por um telegrama de Roberto Marinho, orientando-me para


deslocar-me até a Cidade do México e cobrir a Conferência de Paz a ser
realizada no Castelo de Chapultepec no começo de 1945. Fui até o serviço
burocrático encarregado de cuidar da papelada dos estrangeiros residentes
nos EUA e prometi que regressaria ao país depois de concluir meu trabalho.
Só dois anos mais tarde eu saberia que nunca mais poderia circular com
desembaraço pelos Estados Unidos. Em 1947, quando eu já estava
trabalhando nos Diários Associados, Assis Chateaubriand encarregou-me de
fazer uma reportagem no país que eu conhecera no meu primeiro exílio.
Mandei o passaporte para obter o visto, o documento voltou em branco.
Assustei-me – aquilo poderia custar-me o emprego. Para minha sorte,
Chateaubriand sentiu-se insultado pela atitude da embaixada americana.
Pediu explicações, que não vieram. Aos poucos, soube que eu fora
enquadrado em uma legislação que dificulta a entrada no país de pessoas
consideradas inimigas dos Estados Unidos. Para que tais restrições fossem
esquecidas, eu deveria escrever um número determinado de artigos favoráveis
aos americanos e contrários à União Soviética. Achei que não tinha motivos
para prestar-me a isso.
Desde então, só pude viajar aos Estados Unidos com a expressa autorização
do Ministério da Justiça, sempre por períodos curtos, e com números
cabalísticos anotados no passaporte. Já no aeroporto, eu era afastado dos
demais passageiros e submetido ao rigoroso crivo da alfândega. Esses
incômodos, que se repetiam ao longo de minha estada, naturalmente
embaraçavam minha movimentação; eu não me sentia à vontade. Nos
primeiros tempos, até procurei descobrir o que ocorrera. Havia evidências de
que algumas de minhas reportagens tinham desagradado as autoridades
americanas, mas eu não sabia exatamente quais. Depois, desisti de buscar
explicações detalhadas. É provável que o governo dos Estados Unidos tenha
concluído, num dado momento, que eu era comunista.
Nunca me considerei inimigo dos Estados Unidos, e é evidente que senti
muita saudade daquele país. A sociedade americana sempre me fascinou,
conviver com ela me ajudara a amadurecer. Eu ali vivera uma riquíssima
experiência profissional. A imprensa americana é a melhor do mundo, e eu
passava horas, às vezes dias inteiros, examinando a forma e o conteúdo dos
jornais locais. Fascinava-me também a figura mítica do jornalista americano,
cujo estereótipo é o herói que costuma aparecer nos filmes de Hollywood.
Aprendi a avaliar, em meus tempos de Estados Unidos, a força da imprensa.
Foi uma pena ter perdido o direito de viajar quando quisesse à América do
Norte. A caminho do México, eu sequer imaginava que isso aconteceria dois
anos depois.
Viajei para o México com o pressentimento de que de lá eu seguiria para o
Brasil. Nessa temporada mexicana, tive a alegria de reencontrar, num
banquete oferecido pela embaixada da União Soviética, meu amigo Orson
Welles, que eu conhecera no Rio de Janeiro em 1942. Welles era uma figura
incrível, um homem extremamente engraçado, agitadíssimo. Naquela época,
ele resolvera ser jornalista e estava na Cidade do México como
correspondente do New York Post. Nessa festa da embaixada soviética, ele
propôs que erguêssemos um brinde à saúde de cada um dos Estados
brasileiros. Começamos pelo Rio Grande do Sul, homenageado com um copo
de vodca russa. Ao chegarmos a São Paulo, eu já estava completamente
grogue. Não consegui ir além de Minas Gerais: Orson Welles e Allan Hayden
me levaram para casa quase desmaiado.
Na manhã seguinte, encontrei Welles num café próximo ao Castelo de
Chapultepec, onde se realizava a Conferência da Paz. Fomos para a galeria
dos jornalistas. Alguém propôs que fizéssemos um concurso entre nós para
ver quem acertava a primeira frase do discurso de um dos três primeiros
oradores. Como a lista de oradores era organizada pela ordem alfabética dos
países que representavam, percebi que o embaixador Pedro Calmon falaria
pelo Brasil em terceiro lugar. Apostei que um dos três primeiros mencionaria
a águia asteca. Confiante, esperei pela frase de abertura de Calmon: “Debaixo
das bênçãos da águia asteca...” Ganhei o concurso e a admiração de Welles,
que costumava repetir para amigos comuns a história do concurso no Castelo
de Chapultepec.
Ainda no México, recebi um intrigante telegrama de Roberto Marinho:
“Procure localizar filha Luís Carlos Prestes. Faça reportagem”, dizia o texto.
Compreendi que estavam ocorrendo mudanças profundas no cenário político
brasileiro. A filha de Prestes era Anita Leocádia, que nascera num campo de
concentração na Alemanha depois de sua mãe, a judia Olga Benário Prestes,
ter sido entregue aos nazistas pela ditadura do Estado Novo. Até então,
reportagens sobre qualquer integrante da família Prestes, sobretudo a filha,
que fora resgatada ao cabo de uma campanha que mobilizou a opinião
pública internacional, eram um tabu. Algo, portanto, mudara.
Localizei a menina na Cidade do México e fiz uma reportagem patética,
telenovelesca. Obtive um dos cartõezinhos que Prestes costumava enviar à
filha da prisão, com versinhos, desenhos de pequenos animais – esses ardores
paternos que chefes comunistas não gostam de exibir. Mandei tudo para o
Brasil. O Globo, que era ainda um jornal de tiragem modesta mas já
importante, abriu toda a primeira página para o grande furo: um jornalista
finalmente vira a filha do Cavaleiro da Esperança. Em março de 1945, ao
receber um exemplar do jornal na Cidade do México, tive a consciência do
peso da reportagem. Graças à proibição do DIP, ainda em vigor, meu nome
não constou da edição, mas todos sabiam quem era o autor do texto.
Imediatamente, decidi regressar ao Brasil e reabrir Diretrizes.
Naquela época, uma viagem de avião entre o México e o Brasil demorava
cerca de trinta horas. Meus amigos e muitos adversários do regime se
mobilizaram para propiciar-me uma recepção de herói nacional. Tão logo
desembarquei desvinculei-me de O Globo e entreguei-me à tarefa de
concretizar meu grande sonho: transformar Diretrizes em jornal diário. Seria
o meu maior fracasso jornalístico, e também a maior lição de toda a minha
carreira profissional.
CAPÍTULO 12
Saí em busca de dinheiro para a materialização do meu projeto, e logo reuni
recursos suficientes para transformar Diretrizes numa publicação diária –
muita gente estava interessada em contribuir financeiramente com o jornal
que prometia apressar o ocaso da ditadura. Convoquei integrantes da minha
antiga equipe, à frente Octávio Malta. Não convidei Carlos Lacerda, e é
provável que essa exclusão lhe tenha doído na alma. A eles se juntaram
intelectuais do porte de Carlos Drummond de Andrade e Jorge de Lima.
Outros jornais cederam parte da cota de papel a que tinham direito para que
Diretrizes pudesse voltar à luz. E fiz um contrato para imprimir o jornal na
gráfica do Diário Carioca. Tudo estava pronto para a ressurreição.
O lançamento do jornal foi acompanhado de uma ruidosa promoção: “A
primeira grande eleição nacional depois da ditadura”, como avisava a
primeira página de Diretrizes. Selecionamos algumas dezenas de pessoas
muito conhecidas no Rio de Janeiro, fizemos cartazes com o rosto de cada
uma, espalhamos os cartazes pela cidade e convidamos a população a
escolher, entre elas, o seu deputado federal. A repercussão foi decepcionante.
Pressenti que o povo se desabituara a participar de eleições, seria demorado
resgatar o interesse perdido. E já então comecei a suspeitar de que aquela
experiência estava destinada ao fracasso. Se continuasse uma publicação
semanal, Diretrizes talvez encontrasse boas chances de sobreviver. Mas
faltavam recursos para sustentar um diário e meios de competir com os
grandes jornais da época.
Um mês depois do lançamento, estava claro para mim que o naufrágio era
iminente. Foi um período dramático. Eu praticamente não dormia nem comia,
atormentado pela desconfiança de que arrastara toda uma equipe de
profissionais para o desemprego. Além disso, eu estava me separando de
minha primeira mulher, Bluma, o que agravava meu estado de espírito.
Diretrizes vendia dois, às vezes três mil exemplares por dia. E, paralelamente
a tantos problemas, eu ainda enfrentava um obstáculo demasiado penoso: a
hostilidade do Partido Comunista Brasileiro.
Essa hostilidade foi pessoalmente estimulada por Luís Carlos Prestes, que
ficara indignado com a reportagem sobre sua filha Anita Leocádia. Essa
indignação manifestou-se diante de meus próprios olhos, num episódio
extremamente constrangedor, ocorrido pouco depois de minha volta do
México. Dois dos maiores amigos de Prestes, Trifino Correia e Orlando Leite
Ribeiro, levaram-me a visitá-lo na prisão. Eles queriam que eu lhe contasse
de viva voz como estava sua filha. Prestes fora retirado da cela onde
permanecera isolado dez anos e gozava de relativa liberdade de movimentos
na cadeia. Enquanto esperava pela minha vez, notei que ele repreendia um
grupo de comunistas – visitas de delegações comunistas ao Cavaleiro da
Esperança ainda preso eram já frequentes naqueles dias. De repente, ele
percebeu minha presença e, a alguns metros de distância, perguntou:
– É você o Wainer?
Identifiquei-me.
– Então, venha cá – comandou.
Caminhei até Prestes e lhe estendi a mão, mas ele quase não deixou tempo
para cumprimentos.
– Queria dizer a você que não aceitei o fato de você ter explorado o
sentimentalismo da pequena burguesia brasileira com a minha filha –
censurou-me.
Fiquei perplexo. Ele não perguntara pela cor dos olhos da filha, não quisera
saber da cor dos cabelos, não se interessava por qualquer detalhe da criança;
fora direto ao problema político. Expliquei-lhe que não tivera qualquer
intenção de explorar reações sentimentais. Ele insistiu nas suas queixas e
acrescentou outra:
– Além do mais, você voltou politicamente errado.
Não havia clima para prosseguir o diálogo. Prestes estendeu-me a mão,
virou-se e deixou-me ali plantado, ainda mais perplexo.
Nunca fui comunista, mas desde a adolescência o Cavaleiro da Esperança
era um de meus heróis, e eu tinha como projeto, naquele momento, servi-lo.
Senti-me decepcionado. Comecei a pensar seriamente em passar o controle
de Diretrizes e partir para outra temporada no exterior. Esse plano tomaria
forma poucos dias depois dessa visita a Prestes, quando o PCB, muito
influente junto aos gráficos, deu ordem para que os funcionários das oficinas
do Diário Carioca se recusassem a imprimir Diretrizes. Eu passara a ser visto
como o inimigo a destruir, queriam condenar meu jornal à morte por
estrangulamento. Então, passei a buscar uma saída honrosa.
Decidi procurar um dos mitos do tenentismo – João Alberto – e oferecer-
lhe o jornal. O tenente João Alberto participara da marcha da Coluna Prestes
e fora um dos líderes militares da Revolução de 1930. Era protagonista de
vários episódios heroicos, um dos quais ocorrido quando conspirava contra
Washington Luís, às vésperas da deflagração do movimento que levaria
Getúlio Vargas ao poder. Ele viajava de avião entre Buenos Aires e
Montevidéu, em companhia do tenente Siqueira Campos, e o aparelho caiu
no mar perto da costa uruguaia. Siqueira Campos morreu afogado. João
Alberto, bom nadador, salvou-se. Mais tarde, ele seria interventor em São
Paulo e ocuparia inúmeros postos de importância. Foi um de meus grandes
amigos.
Disse a João Alberto que gostaria de passar-lhe o jornal, sob uma única
condição: a equipe da redação teria de ser preservada. Ele gostou da ideia.
– Você aceita o Osvaldo Costa como diretor? – perguntou.
– Acho que não há um nome melhor – ponderei.
Osvaldo Costa, o velho dirigente comunista, era uma de minhas admirações
antigas. Ele fora também diretor do jornal A Gazeta, em São Paulo, e eu o
considerava um bom profissional.
– E você, quanto quer? – quis saber João Alberto.
Respondi-lhe que queria deixar algum dinheiro com minha mãe e ter o
suficiente para me sustentar na Europa durante dois anos. Ele propôs pagar-
me trezentos contos de réis; concordei de imediato. Deixei cem contos com
minha mãe e saí à procura de algum navio que me transportasse para fora do
país.
Os companheiros de redação ofereceram-me uma grande festa de
despedida. Expliquei-lhes que minha saída era indispensável para que
Diretrizes vivesse, sem trair suas tradições. Convenci minha mulher a
acompanhar-me na viagem e, numa noite de 1945, embarquei num navio de
transporte chamado Mariposa, que em outros tempos fora um vaso de guerra.
A entrada de João Alberto e Osvaldo Costa em Diretrizes deu-lhe nova
vida. João Alberto conseguiu uma oficina que passou a imprimir o jornal em
cores. Osvaldo Costa, que não tinha os meus poderes, abriu Diretrizes para a
massa. O jornal começou a cobrir escândalos, crimes, sempre carregando nas
tintas sensacionalistas. Mais tarde, Diretrizes perderia por completo suas
características originais e teria uma morte inglória. Antes disso, porém, pôde
conhecer tempos de prosperidade, com tiragens que oscilavam entre quarenta
e cinquenta mil exemplares.
Segui para a Europa como correspondente de guerra de Diretrizes, mas não
levava sequer credenciais. Confiava, como sempre, na minha boa sina e,
sobretudo, em minhas amizades – e mais uma vez essa confiança não se
mostraria excessiva. Em Paris, encontrei o diplomata americano Jefferson
Caffery, que fora embaixador no Brasil, e ele me prestou uma ajuda
extraordinária. Entre outras preciosidades burocráticas, Caffery conseguiu-me
uma credencial de correspondente de guerra junto ao Exército americano. A
guerra na Europa já terminara, mas o conflito no Pacífico só chegaria ao fim
três meses depois, e as tropas continuavam mobilizadas. Graças a essa
credencial, o dinheiro deixou de ser necessário: os americanos asseguravam
aos correspondentes roupas, rações de comida e meios de transporte. Livre de
preocupações materiais, saí em busca das reportagens para Diretrizes, e nos
dois anos seguintes meu nome estaria vinculado a trabalhos de intensa
repercussão. Ao sair do Brasil pela primeira vez, no final de 1944, eu tivera
meu batismo de fogo como correspondente no exterior. Agora, eu viveria
meu amadurecimento como jornalista internacional.

Atingi a maioridade como jornalista internacional ao longo dos julgamentos


de Nuremberg, o histórico ajuste de contas entre a consciência jurídica
mundial e os criminosos de guerra nazistas. Eu estava em Paris quando
começaram os preparativos para a instalação do Tribunal de Nuremberg, e
compreendi que não poderia perder tão fascinante oportunidade de ver a
História sendo escrita. Obter uma credencial era uma tarefa complicadíssima.
Os organizadores do julgamento haviam reservado 450 vagas aos
correspondentes de guerra e, desse total, cerca de trezentas estavam
destinadas a jornalistas americanos. Centenas de repórteres ingleses,
franceses, soviéticos – povos que haviam sofrido direta e duramente as
consequências do conflito – reivindicavam credenciais. Sobravam, portanto,
poucas vagas para jornalistas de outros países, e as chances de repórteres sul-
americanos estavam virtualmente reduzidas a zero. Mas quando o julgamento
começou, eu estava lá.
Fui o único jornalista brasileiro a cobrir as sessões do Tribunal de
Nuremberg, graças a uma autorização que me foi concedida pela embaixada
dos Estados Unidos em Paris. Consegui convencer o embaixador de que o
Brasil, por ter participado dos combates na Europa, merecia ter um
representante junto à imprensa credenciada para a cobertura. Em outubro de
1945, viajando num avião militar das tropas aliadas, cheguei a Nuremberg.
Fora perfeita a escolha da cidade que serviria de cenário para o julgamento.
Nuremberg havia sido o palco das grandes concentrações nazistas, e agora
estava reduzida a escombros. Restavam pouquíssimas construções. Entre elas
estava um velho castelo onde seria instalado o tribunal.
Cheguei na véspera da sessão de abertura, e fui informado das regras que
estariam em vigor dali em diante. Eu teria direito a um quarto de hotel,
refeições, roupas e transporte, além das rações de cigarros, café, chocolate e
manteiga. Deveria estar presente ao comitê de imprensa, montado no castelo,
às nove horas da manhã, e só poderia sair às seis da tarde, ao final da sessão.
Nessa hora, chegariam os ônibus blindados destinados ao transporte dos
presos. O regulamento a que os correspondentes precisavam obedecer era
rígido. Num determinado dia da semana, deveríamos encaminhar roupas à
lavanderia. Bebidas correriam por nossa conta, para desolação dos
americanos, que corriam para o bar tão logo terminavam de jantar.
Estabelecidas as regras, comecei a viver uma experiência profissional que me
marcaria de modo inesquecível.
Antes de viajar para Nuremberg, eu conversara por telefone com Paschoal
Carlos Magno, cônsul do Brasil em Londres. Combinamos que eu mandaria
despachos radiofônicos para o horário brasileiro das transmissões da BBC.
Assim, além das reportagens que eu planejava enviar por avião para a
redação de Diretrizes, trabalharia como correspondente da BBC de Londres.
Instalei-me no reservado da imprensa já informado de que não poderiam ser
feitas fotografias. O ambiente era incontrolavelmente passional. Os
correspondentes ficavam a alguns metros dos réus, e muitos haviam perdido
pais, mães, irmãos em campos de concentração. De repente, alguns se
erguiam das cadeiras decididos a investir contra os nazistas, outros sofriam
ataques histéricos. Era uma tensão terrível, até porque muitos réus também
pareciam descontrolados.
Já no primeiro dia, mandei para a BBC um relato sereno, equilibrado, sobre
o que vira. O chefe da seção brasileira da BBC, um jornalista inglês que
havia nascido em Vitória, no Espírito Santo, remeteu-me um telegrama
elogiando a objetividade, a isenção e a honestidade de minha crônica. Fiquei
entusiasmado. Era uma sexta-feira, e no dia seguinte o tribunal não se
reuniria. Mesmo assim, decidi fazer uma segunda crônica. Imaginei como
seria o primeiro fim de semana de Hermann Goering, o legendário chefe da
Luftwaffe, em sua cela no castelo, e cometi uma vasta subliteratura. Pouco
depois chegou-me um recado por telegrama, remetido pelo chefe da seção
brasileira da BBC: “Se você fizer outra crônica assim, será demitido. Seu
papel não é fazer literatura, e sim jornalismo.” O julgamento se estenderia por
quase dez meses, e nesse tempo, somadas todas as temporadas que ali passei,
permaneci cerca de quatro meses em Nuremberg. Aproveitava os intervalos
para fazer reportagens em outros países. Mas desisti definitivamente da
literatura. Ou, para ser mais preciso, da subliteratura. Eu havia aprendido
mais uma lição.
Uma das normas do regulamento estabelecia que os réus não poderiam ser
entrevistados. Resolvi buscar alguma fórmula que me livrasse dessa restrição.
Tratei de aproximar-me de um advogado alemão que participava dos
trabalhos em Nuremberg – era um dos encarregados da defesa, todos
designados pela justiça alemã – e que tinha parentes em Santa Catarina.
Convidava-o a tomar café, fazia-lhe pequenas gentilezas, até que chegou o
momento da proposta: e se ele tentasse agir como intermediário das
entrevistas que me interessavam? Minha meta principal era conseguir
algumas declarações do almirante Karl Doenitz, que chegara ao fim da guerra
como o segundo homem do Terceiro Reich, logo abaixo de Hitler, e herdara a
incumbência de assinar a rendição da Alemanha. Basicamente, eu tinha uma
pergunta a fazer ao almirante Doenitz: qual fora a importância das bases
aliadas no Nordeste do Brasil para a derrota da Alemanha? Também pedia ao
advogado alemão que encaminhasse uma pergunta a Goering e outra a
Joachim von Ribbentrop, o chanceler da Alemanha nazista. Ofereci a meu
intermediário, em troca desse favor, meio quilo de café e meio quilo de
chocolate. Ele ficou radiante. Na bolsa de valores da época, café e chocolate
valiam tanto quanto um automóvel.
Poucos dias depois, chegou-me a resposta do almirante Doenitz, redigida de
próprio punho, em alemão. Era uma preciosidade. Além de ter sido o número
dois do Terceiro Reich, Doenitz fora responsável por toda a estratégia da
guerra submarina, com resultados extremamente satisfatórios para os
alemães. Em sua resposta, ele escreveu que a instalação de bases aliadas no
Nordeste brasileiro permitira aos aviões americanos, que ali se reabasteciam,
estreitar a vigilância sobre os submarinos do Eixo. A declaração de Doenitz
era um atestado de que a contribuição do Brasil ao esforço de guerra fora
efetivamente valiosa. Publiquei uma reportagem sobre o assunto em
Diretrizes, e mandei o papel com a resposta do almirante ao presidente da
Associação Brasileira de Imprensa, Herbert Moses. Esse documento
encontra-se atualmente no Museu da Marinha do Brasil.
Fui ganhando desenvoltura e aprendendo a movimentar-me com
desembaraço entre as feras do jornalismo mundial presentes em Nuremberg.
Ali estavam praticamente todos os grandes nomes da imprensa – por
exemplo, o americano William Shirer, que se consagraria com o livro
Ascensão e Queda do Terceiro Reich. Enfim, eu ia aprendendo a jogar no
primeiro time, e a driblar os problemas que surgiam. O correspondente da
agência Tass no Rio de Janeiro passou à imprensa de seu país a notícia de que
eu entrevistara o almirante Doenitz, e os soviéticos se aborreceram. Os
dirigentes russos estavam convencidos de que a divulgação de declarações
dos chefes nazistas configuraria uma propaganda favorável à Alemanha
nazista. Eles haviam sido os inspiradores da norma que proibia entrevistas.
Quando a informação sobre minha reportagem chegou a Nuremberg, um
general americano que fiscalizava o comportamento dos jornalistas
interpelou-me. Limitei-me a negar que fizera qualquer entrevista. A rigor, eu
estava dizendo a verdade.
Tornei-me cada vez mais desinibido. Perdi, por exemplo, o receio de fazer
perguntas nas entrevistas coletivas concedidas pelas autoridades do Tribunal
de Nuremberg. Numa delas, com o procurador-geral do tribunal, perguntei-
lhe por que não fora incluído entre as testemunhas convocadas o
generalíssimo Francisco Franco, ditador da Espanha. Os juízes haviam
intimado, afinal, todas as personalidades da era pré-fascista e dos tempos de
esplendor do fascismo. Por que deixar Franco de fora? O procurador
sustentou, em tom ríspido, que eu não tinha o direito de fazer tal pergunta, e
acusou-me de agente provocador. Não prolonguei o incidente, mas senti que
grandes repórteres presentes à entrevista passaram a olhar-me com respeito.
Uma das frequentas viagem que eu faria nos intervalos das sessões levou-
me a Londres, onde fui receber as libras esterlinas que ganhara em
pagamento pelas minhas crônicas para a BBC. Havia 111 libras à minha
disposição, mas constatei que não poderia gastá-las em outros países.
Naqueles tempos de economia de guerra, só os ingleses aceitavam libras
esterlinas. Não me aborreci. Aquantia representava um bom dinheiro, e decidi
gastá-lo em Londres. Vivi uma temporada animadíssima. Conheci mulheres,
vi ótimas peças de teatro, circulei pela noite, diverti-me o tempo todo.
Quando voltei a Nuremberg, não restava uma única libra. Mas eu estava feliz.
No dia em que os juízes leram as sentenças aplicadas aos chefes nazistas,
compreendi que ali se encerrava uma era. Até então, os oficiais acusados da
prática de crimes de guerra podiam alegar, em sua defesa, que haviam
cumprido ordens emanadas de seus superiores. Depois de Nuremberg, ficou
estabelecido que havia um limite moral para tais ordens. A partir daquele
momento, chefes militares não mais puderam abdicar de suas
responsabilidades. Hoje, por exemplo – e isso vale também para o Brasil –,
um torturador já não pode argumentar que infligiu tormentos físicos a um
prisioneiro em obediência a ordens superiores. Nuremberg escreveu um
capítulo revolucionário na história do Direito, e eu pude vê-lo sendo escrito.
Testemunhei cenas apaixonantes. Uma delas foi a reação de Goering à
notícia de que fora condenado à morte pela forca. Ele parecia um leão ferido.
Arrancou os fones pelos quais ouvia a tradução simultânea, jogou-os ao chão,
recusou-se a bater continência – os réus, militaristas fanáticos, julgavam
imprescindível bater continência em momentos solenes. Goering foi arrastado
por dois guardas para fora da sala de sessões. Ele escaparia à execução
ingerindo uma cápsula de cianureto que conseguira manter oculta. O suicídio
de Goering, por sinal, provocaria uma das maiores gafes jornalísticas de
todos os tempos.

Depois da leitura das sentenças, os correspondentes estrangeiros foram para


o bar. Ali ficamos à espera da consumação das penas de morte. Por sorteio,
quatro jornalistas haviam sido escolhidos para assistir ao enforcamento dos
nazistas. Eles ficaram encarregados de acompanhar os momentos finais dos
condenados, registrar a reação de cada um, descrever o cenário e passar-nos
todos esses dados, para que transmitíssemos ao mesmo tempo o noticiário tão
aguardado pelo resto do planeta. Um dos correspondentes do Daily Express,
jornal inglês de enorme circulação naquela época, não resistiu à ansiedade e
resolveu dar um furo mundial. Foi uma ideia extremamente infeliz, sobretudo
porque esse repórter britânico abriu sua reportagem com a minuciosa
narrativa da morte de Goering. Quando os quatro companheiros que haviam
assistido às execuções chegaram com a informação de que Goering cometera
suicídio horas antes, o Daily Express já circulava pelas ruas de Londres
descrevendo a cena do enforcamento. O autor do desastrado furo de
reportagem acabou banido para sempre da profissão.
CAPÍTULO 13
Numa de minhas escapadas de Nuremberg, viajei até Paris, disposto a
chegar a Portugal. Eu estava interessado em fazer uma reportagem sobre a
situação da ditadura de Antônio de Oliveira Salazar e as dimensões reais da
oposição ao regime. Estava interessado também em encontrar uma mulher
por quem me apaixonara. Àquela altura, meu casamento com Bluma já
chegara ao fim. Em Paris, lembrei-me que a França e a Espanha haviam
rompido relações diplomáticas e as fronteiras estavam fechadas. Como eu
teria de passar pela Espanha para alcançar Portugal, constatei que surgira
outro problema a contornar.
Embora confiasse na mística do passaporte azul de correspondente de
guerra, que era às vezes confundido com um passaporte diplomático, achei
conveniente recorrer à embaixada do Brasil em Paris. Foi uma ótima ideia.
Ao ouvir meu plano de viagem, o embaixador Souza Dantas abriu um sorriso:
ele estava justamente à procura, naquele momento, de alguém que pudesse
entrar na Espanha e voltar com um pequeno carregamento de frutas. Eu
poderia atendê-lo? Hoje, um pedido desse gênero poderia parecer soar
ilógico. Nos estertores da Segunda Guerra Mundial, era facilmente
compreensível. Na França daquela época, frutas frescas eram uma raridade.
Desde que o conflito começara, a França deixara de receber frutas de suas
colônias, as importações se tornaram virtualmente impossíveis. Depois,
começou a faltar dinheiro para buscá-las em países vizinhos. Souza Dantas,
assim, tinha vários amigos cujos filhos – crianças de nove, dez anos – jamais
haviam provado o sabor de certas frutas. Ele queria que eu trouxesse algumas
da Espanha para distribuí-las entre famílias de suas relações. Um caixote
bastaria, explicou o embaixador. Em troca, ele conseguiria que o embaixador
Pimentel Brandão, representante do Brasil em Madri, me arranjasse
facilidades para cruzar de volta a fronteira. Entre essas facilidades, eu
ganharia credenciais de correio diplomático.
Concordei de imediato. Fui para a Espanha num trem que saía de Frankfurt,
na Alemanha, passava por Paris e seguia até San Sebastian, já na Espanha, a
poucos quilômetros da fronteira francesa. Em San Sebastian, os passageiros
eram transferidos para um trem espanhol, que seguia até Madri. Uma viagem
extremamente romântica, um roteiro de cinema. Embarquei carregado de
curiosidade. Sempre achei que é o mundo que está à espera de um jornalista,
não o contrário. Embarquei, também, com o pressentimento de que me
ocorreriam coisas incomuns – um jornalista precisa viver na eterna
expectativa de que pode viver situações que não ocorrem em outras
profissões. Sobretudo quando se é correspondente de guerra, convém
entender que o imponderável viaja permanentemente em nossa companhia,
pronto para alterar planos e destinos.
Assim foi nessa viagem à Espanha. Eu pretendia fazer ali uma curta escala,
viajar até Portugal, voltar para recolher as frutas encomendadas por Souza
Dantas e regressar a Paris. Acabei ficando dez dias, absorvido por uma
empolgante reportagem sobre a oposição que sobrevivera à Guerra Civil e,
depois, à perseguição movida pela ditadura do generalíssimo Franco. Já no
primeiro táxi que tomei comecei a ouvir informações sobre a rede clandestina
de resistência ao ditador. Logo percebi que a rede era extensa, e nos dias
seguintes, em conversas que se encadeavam umas às outras, fui ampliando a
coleta de dados.
Naquele momento, as forças democráticas da Europa mobilizavam-se para
impedir o fuzilamento de um guerrilheiro chamado José Gomez preso pela
polícia de Franco. Gomez estava em Barcelona, junto a um grupo de
condenados à morte. Integrantes da resistência entregaram-me o manifesto
com que o guerrilheiro se despedia dos companheiros e da vida. Era um
documento de extraordinária importância histórica. Além do manifesto de
Gomez, eu tinha em meu poder outros documentos, revistas clandestinas,
entrevistas com militantes oposicionistas. Tinha, enfim, o suficiente para uma
grande reportagem. Bastava uma maneira de deixar o país sem esbarrar na
vigilância da polícia franquista.
Assim, eu deveria ir a Portugal. Já não tinha tanta pressa, até porque a
reportagem sobre a oposição espanhola, embora fosse a mais importante, não
era a única razão que me retinha em Madri. Na viagem de trem entre San
Sebastian e a capital eu conhecera a outra razão: Helen, uma linda americana
de pouco mais de trinta anos. Ao me ver fardado, perguntou-me se eu era
americano. Expliquei-lhe que não. Continuamos a conversar e ali começou
uma história extremamente romântica.
Mais tarde eu saberia coisas que tornaram Helen ainda mais interessante a
meus olhos. Apesar da nacionalidade americana, ela nascera em território
francês e, durante a guerra, começara a fazer serviços de espionagem. Estava
casada com um conde, que a protegera de eventuais represálias do governo
colaboracionista. Terminada a guerra, fora encarregada de ajudar na caça aos
responsáveis por crimes econômicos ocorridos ao longo do conflito, e era
com esse objetivo que estava viajando a Madri. Alta, loira, muito inteligente
e culta, tinha um agudo senso de humor. Vivemos juntos dez dias magníficos,
até que julguei ter chegado a hora de embarcar para Lisboa. Ficamos algum
tempo num bar chamado Don Quijote. Ali, Helen apresentou-me a um amigo
polonês que acabara de chegar a Madri. Depois, ela me levou à estação
ferroviária, chorou bastante, entregou-me um bilhete com palavras
comoventes e despediu-se. Prometi voltar logo, mas nunca mais a veria.
Quando regressei a Madri, soube que ela partira para Paris. Ainda a procurei
por algum tempo, até convencer-me de que nossos caminhos jamais
voltariam a se cruzar.
Dez anos depois, reencontrei em Paris o polonês que Helen me apresentara
no bar Don Quijote, e pude conhecer alguns detalhes do epílogo de nossa
curta história.
– Ela me convidou para aquele drinque porque queria que eu o conhecesse –
revelou-me o amigo polonês de Helen, provavelmente também engajado na
rede de espionagem –, e me contou que estava apaixonada por um
correspondente estrangeiro.
Depois de deixar-me na estação, Helen foi à procura do amigo, que a
aconselhou a esquecer-me. Horas depois, ela deixou Madri. Nesse dia em que
nos reencontramos, o polonês parecia tristonho.
– Talvez eu tenha sido o culpado pela separação de vocês – disse-me.
Confortei-o: essas histórias são inevitáveis na vida de um correspondente
de guerra.
Fiquei alguns dias em Portugal, encontrei-me com a mulher que procurava
e reuni as informações necessárias à reportagem que planejara. Esse texto foi
publicado em Diretrizes algumas semanas mais tarde. Voltei a Madri.
Fui à procura do embaixador Pimentel Brandão, com quem já havia
conversado nos primeiros dias de minha passagem pela Espanha, e acertei o
embarque das frutas solicitadas por Souza Dantas. Mas ampliei a encomenda:
disse-lhe que gostaria de levar dois caixotes. Ele achou a ideia muito boa, e
providenciou dúzias de frutas de diferentes qualidades. O embaixador do
Brasil em Madri nunca soube que eu havia pedido mais frutas porque
pretendia embrulhá-las, uma a uma, com os papéis que serviriam de base à
reportagem sobre a oposição espanhola. Páginas de revistas, folhas de
caderno e, naturalmente, o manifesto de José Gomez cruzaram a fronteira
naqueles dois caixotes. Ambos foram lacrados, e transformados em mala
diplomática, transportados até minha cabine no trem para Paris por dois
funcionários da embaixada brasileira.
A vigilância era intensa, mas a carga que eu levava era inviolável. Em cada
estação, dois guardas franquistas vigiavam cada cabine e me olhavam com
ódio quando percebiam que eu tinha imunidades diplomáticas. Certamente
imaginavam que eu levava armas ou ouro. Ao chegar a Paris, levei as frutas à
embaixada. Fizeram-me uma festa imensa. Com os papéis que haviam
servido de embalagem, escrevi seis reportagens que descreviam, em detalhes,
o inferno franquista. Foram publicadas em Diretrizes, que sobrevivia como
diário, e também no vespertino do Partido Comunista Francês, Ce Soir.
Depois de enviar a série de reportagens à redação de Diretrizes, eu havia
contado a comunistas franceses amigos meus o que vira na Espanha. Alguns
deles se entusiasmaram com o conteúdo, ponderando que era indispensável
divulgar também na Europa aquelas informações. Fui encaminhado por esses
amigos à redação de Ce Soir, dirigido pelo poeta Louis Aragon, que me
recebeu pessoalmente. Ele me ofereceu quinze mil francos pela série de
reportagens. Não era muito, mas eu teria meu nome impresso nas páginas de
um grande jornal da França. Dois dias depois, saiu publicado o primeiro dos
seis textos, com enorme destaque. Preparei-me para saborear a leitura do meu
nome como autor. Lá estava: “Correspondência especial de André de La
Guerre para Ce Soir.”
Indignei-me – afinal, que estranho pseudônimo era aquele? – e fui à
procura de Aragon. Ele me recebeu de modo bastante efusivo,
cumprimentando-me pela repercussão da reportagem. Retruquei que não
havia entendido por que a autoria não fora atribuída a mim. Ele argumentou
que se tratava de uma tradição da imprensa francesa não recorrer a
correspondentes estrangeiros – tudo deveria ser feito na própria redação. Fui
incisivo: ou publicavam meu nome ou interrompiam a série. Aragon
ponderou que, se confiasse nele, eu não me arrependeria. Em seguida, pediu-
me que posasse para um fotógrafo do jornal. Não tive forças para resistir, e
autorizei-o a seguir publicando a série. Como prometera Aragon, eu não me
arrependeria.
Na edição em que foi publicada a sexta e última reportagem, os editores de
Ce Soir incluíram minha foto e uma explicação extremamente simpática.
Nesse texto, afirmavam que meu nome fora preservado para poupar-me o
risco de eventuais tentativas de vingança por parte de agentes da Espanha
franquista. Agora, passado o perigo, eles afinal podiam anunciar o autor da
reportagem que por vários dias atraíra a atenção de uma multidão de leitores
franceses: “O jornalista brasileiro Samuel Wainer, que se encontra na
Europa.” Ao ler aquilo, quase desmaiei de emoção. Mas logo me refiz, ciente
de que deveria preparar-me para viver meus dias de triunfo entre os
jornalistas baseados em Paris.

Entre 1945 e 1947, em sucessivas andanças pela Europa, vivi fantásticas


experiências jornalísticas e humanas. Para um jovem profissional, nada
poderia haver de mais emocionando que ver a História acontecendo diante
dos próprios olhos. Além de Nuremberg, testemunhei, por exemplo, o
dramático julgamento dos chefes do governo de Vichy, uma espécie de
sucursal francesa do regime nazista. Os grandes réus eram o marechal
Philippe Pétain – o velho herói da Primeira Grande Guerra, lendário
comandante da batalha de Verdun, que concluíra de forma tão deprimente sua
biografia ao aliar-se aos invasores alemães – e o ex-primeiro ministro Pierre
Laval. No tribunal instalado em Paris, Pétain passou todo o tempo sentado no
banco, silencioso, impassível. Laval preferiu lutar encarniçadamente pela
sobrevivência.
O júri fora montado de modo a não permitir qualquer chance de
sobrevivência aos réus: os juízes de Pétain e Laval eram quase todos irmãos,
parentes ou viúvas de vítimas do governo de Vichy. Ainda assim Laval
procurou defender-se. Condenado à morte, tentou suicidar-se. Na França,
contudo, a condenação à morte é um ritual que precisa ser cumprido em todos
os seus detalhes. Laval ingeriu veneno na véspera da data marcada para seu
fuzilamento, e os médicos franceses esforçaram-se durante a noite inteira
para reanimá-lo. Conseguiram ao menos evitar que morresse antes da hora da
execução. Então, o condenado foi conduzido, moribundo, ao local do
fuzilamento, e ali amarrado a uma cadeira. Logo se ouviram tiros: o ritual
fora obedecido.
Circulei com olhos de jovem repórter por aquela Europa devastada pela
guerra. Em Milão visitei o lugar onde, semanas antes, o ditador Benito
Mussolini e sua amante Clara Petacci haviam sido pendurados de cabeça para
baixo, os corpos massacrados pela fúria da multidão. De passagem por Triste,
emocionei-me com as cenas de Roma, Cidade Aberta, o filme de Roberto
Rossellini que inaugurou o ciclo do neorrealismo italiano. Na Inglaterra,
testemunhei o espírito de sacrifício de um povo que sempre soube preservar
seu orgulho. Como, por exemplo, o couro se transformara numa preciosidade,
os ingleses aboliram os cintos e, em seu lugar, passaram a usar velhas
gravatas. Usavam-nas como se estivessem no rigor da moda. Como os
casacos se desgastavam nos cotovelos, os ingleses inventaram um pequeno
pedaço de couro como proteção, algo que ainda hoje se usa. Eram provas de
que o povo se mantivera criativo em meio aos horrores da guerra.
CAPÍTULO 14

Conheci num bar, em Paris, uma jovem que, apesar do nome Natasha – e
dos traços mongólicos, era francesa. Sempre fui tímido para aproximar-me de
mulheres sozinhas em bares, mas o garçom tratou de estabelecer a ponte.
Horas depois, estávamos no meu hotel, onde ouvi uma história que pouco
tinha de original. Com ar triste, ela me contou que a família morava num
subúrbio daquela capital empobrecida pela guerra. E falou-me com particular
compaixão de um irmão de vinte anos que participara dos combates e agora
mal tinha o que comer. Era uma história como tantas outras, mas fiquei
comovido. No pós-guerra, a elegância dos franceses no trajar desaparecera.
Quase todos se vestiam pessimamente, nivelados pela miséria.
Natasha vestia roupas modestas, enquanto eu saboreava os privilégios
reservados a oficiais americanos: o tecido do uniforme era da melhor
qualidade, tinha direito a cuecas de lã, pulôveres, calças, camisas. Além
disso, havia as roupas que eu trouxera do Brasil. Ela viu sobre a mesa do meu
apartamento um robe de chambre de seda. Pareceu deslumbrada: “Que coisa
macia”, repetia. Disse-lhe que podia ficar com o robe de chambre. Ela
explicou, emocionada, que o daria a seu irmão. Resolvi presenteá-la também
com um par de meias de lã, uma camisa de tricoline, várias peças de roupa.
Ela transpirava comoção.
Assim foi ao longo de uma semana. Ela me visitava, falava do irmão, eu lhe
dava presentes. Acabei por desfazer-me de um finíssimo terno azul de
casimira inglesa, incluindo a gravata. Eu fazia questão de que o irmão de
minha jovem namorada andasse bem vestido. De repente, Natasha
desapareceu. Reencontrei-a alguns dias depois, no mesmo bar em que a
conhecera, que à noite se transformava em cabaré. Ela estava dançando
amorosamente com um homem que usava meu terno de casimira inglesa. Ela
não tinha um irmão – tinha um gigolô. Eu apenas sorri: éramos todos
protagonistas de histórias do pós-guerra.
Histórias assim enriquecem extraordinariamente um ser humano. Vivi
dezenas delas, uma das quais no interior da Tchecoslováquia, outro país
devastado pela guerra. Resolvi viajar até Praga e aluguei um carro. Perto de
Bratislava, derrapei na neve que cobria a estrada e caí num buraco.
Imediatamente, dezenas de pessoas apareceram para socorrer-me. Eu não
falava tcheco, eles não entendiam inglês nem francês, mas de alguma forma
estabelecemos uma comunicação. Usávamos a linguagem dos gestos, dos
sorrisos, dos olhares. Eles me levaram à casa de um mecânico. O carro foi
para a oficina, fiquei hospedado na casa desse mecânico. Sua mulher serviu-
me sopa, depois chocolate, conversamos muito, sempre recorrendo à
linguagem da mímica. Deram-me um pijama e fui dormir. Pela manhã, depois
do café, tirei do bolso um punhado de coroas, a moeda local, e entreguei-as à
mulher. Ela se recusou a aceitar a oferta. Virou-se para mim e disse uma
palavra cujo significado, naquela época, qualquer ser humano entendia: dólar.
Fiquei chocado – até aquele momento, eu pensava estar sendo contemplado
com regras de hospitalidade capazes de sobreviver mesmo a uma guerra.
Concluí que ela estava me cobrando, e na moeda determinada pelo anfitrião.
Tirei do bolso quarenta dólares e passei-lhes as cédulas. Ela foi para o interior
da casa e voltou em segundos trazendo o equivalente em coroas a quarenta
dólares. Meus hospedeiros tchecos não queriam pagamento: queriam dólares,
o ouro do pós-guerra. Com aquela moeda poderiam, por exemplo, comprar as
mercadorias existentes nas lojas controladas pelas tropas americanas. Fiquei
penalizado, quis dar-lhe mais dólares. A mulher não aceitou.
No pós-guerra, a regra era sobreviver, e milhões de pessoas estavam
envolvidas nessa luta para chegar ao dia seguinte. Algumas tinham de
enfrentar problemas adicionais, e nessa categoria estavam enquadrados os
displaced people – gente deslocada, em inglês. Os DP, no jargão do Exército
americano, eram pessoas que simplesmente não tinham para onde ir. Alguns
haviam perdido todos os seus documentos e, com a burocracia desorganizada
pela guerra, não encontravam meios de substituí-los. Outros haviam
colaborado com governos nazistas e, com a vitória dos Aliados, viram-se
transformados em párias. Enfim, os DP eram apátridas. Durante o julgamento
em Nuremberg, soube que existia em Munique um campo onde estavam
concentrados milhares de DP. Resolvi visitá-lo: e se houvesse brasileiros ali?
Havia. Cheguei a Munique num jipe que requisitei ao Exército americano.
Os americanos também cuidavam da manutenção do campo de concentração
dos DP, à espera de que alguém se interessasse pelo destino de seus
habitantes. Levaram-me ao encontro do grupo de brasileiros. Eram alemães
de Santa Catarina que haviam resolvido voltar à Alemanha para colaborar no
esforço de guerra. Muitos deles tinham filhos que, embora nascidos no Brasil,
não sabiam uma única palavra de português. Ao entrar no dormitório
reservado ao grupo, vi na parede o desenho do Pão de Açúcar, em verde e
amarelo. Eles começaram a cantar o Hino Nacional brasileiro com acentuado
sotaque alemão. Não passaram da primeira estrofe: naturalmente, faltara
tempo para ensaiar. Queriam a qualquer custo seduzir o correspondente e
convencê-lo a ajudar o grupo a regressar ao Brasil.
Contaram-me ali histórias rigorosamente inverossímeis. Uns diziam que
haviam viajado para a Alemanha às vésperas da guerra, em visita à família, e
acabaram impedidos de voltar ao Brasil. Outros afirmavam que tinham sido
prisioneiros de Hitler. Logo pude constatar que os brasileiros do campo de
Munique, da mesma forma que os integrantes de outros grupos étnicos que
entrevistei naquela visita, não estavam desesperados. Dançavam à noite ao
som de músicas típicas, sonhando com o embarque para a América. Decidi
visitar outros campos de DP, e fui confrontado com pessoas que haviam
sofrido terríveis tragédias familiares, dezenas das quais ocorridas em campos
de concentração nazistas. Pois também nesses campos pude captar a força de
um sonho comum: recomeçar a vida, a qualquer preço, em qualquer lugar.
No começo de 1946, em Paris, revi Carlos Lacerda. Meses antes, quando eu
passara o controle de Diretrizes a João Alberto e partira para a Europa,
Lacerda havia escrito uma pequena nota no Diário Carioca usando, acoplado
a meu nome, um adjetivo que ele repetiria com enorme frequência no futuro:
“Seguiu para a Europa o aventureiro Samuel Wainer.” O recorte com a nota
chegou-me algum tempo depois. Nela, Lacerda fazia elogios a Prestes,
criticava João Alberto e censurava minha decisão de vender o jornal. Não dei
maior importância àquilo: a agressividade do meu amigo de adolescência
começava a tornar-se famosa, e preferi atribuir o texto a uma pequena
explosão. Assim, em 1946, quando o reencontrei em Paris, tratei-o com a
cordialidade de sempre.
Ele fora encarregado pela revista Observador Econômico de fazer uma
reportagem sobre as cooperativas suecas e, a caminho de Estocolmo, fizera
uma escala em Paris. Fomos almoçar no Café de la Paix em companhia de
outros amigos brasileiros: Danton Jobim, Arlindo Pasqualini e Barreto Leite.
Foi um almoço alegre, cheio de histórias e piadas. No meio da conversa,
contei que havia sido convidado para viajar à Iugoslávia, onde talvez
conseguisse uma entrevista com Josip Broz Tito, o líder da resistência
antinazista. Os iugoslavos, naquela época, disputavam com a Itália o controle
da região de Trieste e estavam interessados em conseguir a solidariedade dos
correspondentes estrangeiros baseados em Paris. Terminado o almoço,
despedimo-nos como velhos amigos.
Pouco depois, viajei para a Iugoslávia. Fui o primeiro brasileiro a
entrevistar Tito, visitei a região de Trieste e acompanhei por alguns dias a
magnífica aventura configurada pela construção da Ferrovia da Juventude,
uma estrada de ferro que saía de Zagreb e se estendia por 120 quilômetros.
Milhares de voluntários, na maioria jovens, passavam o dia inteiro colocando
dormentes – era um esforço comovente. Escrevi várias reportagens sobre a
Iugoslávia, todas publicadas em Diretrizes. Semanas mais tarde, de volta a
Paris, recebi um recorte da coluna que Lacerda começara a publicar no
Correio da Manhã, com o título de “Tribuna da Imprensa”, e na qual se
referia a mim como “agente de Tito”.
Quando voltei da Europa, em 1947, era um repórter famoso. Fui recebido
no aeroporto por vários amigos de Diretrizes, entre os quais Osvaldo Costa,
que imediatamente me arrastou para jantar num bordel.
– Foi bom você ter voltado – disse-me Osvaldo, indo direto ao assunto que o
interessava. – Você é o homem que sabe arranjar dinheiro, e é disso que mais
precisamos.
Fiquei chocado: não era exatamente aquele tipo de conversa que eu
esperava encontrar logo ao chegar. Osvaldo explicou que precisava de cem
contos. Era muito dinheiro.
– Só você pode conseguir essa quantia – disse-me Osvaldo, sugerindo que
eu fizesse uma reportagem de encomenda na Bahia com Otávio Mangabeira,
governador do estado e líder da UDN. Seria uma matéria paga, mas publicada
em forma de reportagem. Reagi:
– Não vou, isso não faz meu gênero.
Osvaldo insistiu, sempre lembrando a importância do empréstimo para a
sobrevivência de Diretrizes. Definitivamente, o velho Osvaldo havia mudado
muito.
– Vou dar a você uma prova de força – disse. – Arranjarei o dinheiro.
Fui ao Banco do Distrito Federal, controlado pelo deputado Drault
Ernanny, e pedi cem contos em nome de Diretrizes. Um diretor explicou-me
que Osvaldo Costa estava desmoralizado como devedor. Então, pedi um
empréstimo pessoal. Consegui o dinheiro, mas tive de pagar um preço
adicional imposto por Drault Ernanny: ele queria que eu fizesse uma série de
reportagens mostrando a importância das refinarias de petróleo, algumas das
quais controladas por empresários ligados ao Banco do Distrito Federal.
Drault Ernanny era uma das fontes de sustentação financeira de Assis
Chateaubriand, e conseguiu espaço nos Diários Associados para a publicação
das reportagens. Chateaubriand jamais recusava algum pedido de seus
banqueiros, mesmo quando se tratava de algo contrário a seus interesses. Na
questão do petróleo, por exemplo, Chateaubriand era um entreguista radical.
Mas não se opôs à publicação de reportagens que defendiam a nacionalização
das jazidas e sua exclusiva exploração pelo governo brasileiro.
Fui contratado como freelancer. Recebi uma razoável ajuda de custo e
comecei a viajar, para ver como agiam nesse campo outros países. Estive no
Uruguai, na Argentina, na Venezuela. Estudei a fundo a questão do petróleo.
Esse, por sinal, era meu estilo: encarregado de escrever sobre um
determinado assunto, eu me entregava inteiramente à tarefa de estudá-lo em
profundidade, fazia uma espécie de curso completo sobre a matéria. No
Brasil, apurei em detalhes a movimentação das várias correntes existentes nas
Forças Armadas, que estavam divididas quanto ao problema da exploração
das jazidas. Reunidas as informações, publiquei a série de reportagens. Como
já informei em capítulos anteriores, as informações que divulguei serviriam
de base a um discurso pronunciado no Senado por Getúlio Vargas. Também
dessa vez a repercussão das reportagens foi intensa.
Consegui os cem contos que Osvaldo Costa me pedira, e pedi demissão de
Diretrizes. Não demorei a encontrar um novo emprego: Chateaubriand, que já
me respeitava como repórter e gostara bastante do meu trabalho sobre a
questão do petróleo, convidou-me para trabalhar em seu grupo. Chegara a
hora de viver minha aventura nos Diários Associados.
CAPÍTULO 15
Assis Chateaubriand convidou-me a assumir a chefia de O Jornal. Pedi um
salário equivalente a vinte salários mínimos da época. Ele quase me expulsou
da sala.
– O senhor vai ganhar mais do que eu! – espantou-se.
Era um exagero, evidentemente, mas o salário que eu pedira era realmente
altíssimo. Chateaubriand regateou durante algum tempo, acabou
concordando. Comecei, então, outra etapa decisiva da minha formação
profissional. Eu nunca havia vivido o dia a dia de um jornal diário. E sabia
ser indispensável conhecer por dentro o ventre desse monstro, compreender
os interesses que ali se cruzavam, absorver os detalhes técnicos de sua
confecção.
O Jornal era a ponta de lança do império. Àquela altura, Assis
Chateaubriand era o dono de uma cadeia que incluía cerca de vinte jornais e
várias emissoras de rádio. Poucos desses jornais alcançavam grande
circulação – O Jornal, por exemplo, tinha uma tiragem diária de nove mil
exemplares. Mas a força política dos Associados era enorme, e
Chateaubriand sabia como poucos usá-la em proveito próprio. Eu não tinha a
menor simpatia por aquele paraibano baixinho, elétrico, que representava
uma espécie de versão cabocla do “Cidadão Kane” retratado no famoso filme
de Orson Welles. O futuro mostraria que Chateaubriand era pior do que eu
imaginava.
Nunca fomos íntimos. Eu o chamava de dr. Assis, ele me tratava de sr.
Wainer. Não tenho dúvida de que ele sempre me considerou um bom
repórter, da mesma forma que jamais deixei de reconhecer em Assis
Chateaubriand um homem com agudo faro jornalístico e talentoso em várias
coisas, entre as quais ser influente e ganhar dinheiro. Ficaríamos juntos até a
posse de Getúlio Vargas e, ao longo desses anos, eu teria a chance de
conhecer profundamente essa lenda do jornalismo brasileiro. Quando
comecei a trabalhar nos Associados, Diretrizes vivia os momentos finais de
sua melancólica agonia. Contratei alguns antigos companheiros e tratei de
modernizar O Jornal. Implantei técnicas de diagramação que não eram
utilizadas até então, lancei seções novas, reservei a última página para
grandes reportagens, passei a publicar fotos enormes na primeira página. A
tiragem logo subiu para dezesseis mil exemplares. Aumentei os salários da
redação, que eram aviltantes – o chefe da seção internacional, por exemplo,
ganhava salário mínimo. Tentei, também, convencer Chateaubriand a tratar
com mais respeito seus funcionários.
Entusiasmado com as inovações que fizera em O Jornal, lembrei-lhe que há
quatro anos ele não visitava a redação. Seu escritório ficava no quarto andar
de um prédio na rua Venezuela e a redação, no terceiro. Não lhe custaria
nada, observei, fazer um dia qualquer uma escala no terceiro andar, para que
o pessoal sentisse seu interesse pela renovação que estávamos promovendo.
– Não vou – reagiu Chateaubriand. – São todos uns analfabetos.
Insisti, ele acabou aceitando. Dois dias depois dessa conversa, avisaram-me
da portaria que Chateaubriand estava chegando. Esperei-o à porta do
elevador, e entramos juntos na redação. Em cada mesa, ouvíamos um
cumprimento: “Boa tarde, dr. Assis!”, “Como vai, dr. Assis?” Em surdina, ele
respondia a cada cumprimento com comentários que só eu ouvia: “Filho da
puta!”, “Cafajeste!”, “Estão roubando meu dinheiro!”, “Analfabeto!”.
Quando chegamos à outra extremidade da sala, onde havia uma pequena
porta que dava para uma escada levando ao quarto andar, decidi voltar. Se
subisse a seu escritório, acabaríamos discutindo. Eu não podia admitir tanto
ódio de um dono de jornal por seus empregados.
Assis Chateaubriand não era um homem rústico. Aos 23 anos, já era
professor de Direito Romano na Faculdade do Recife. Viajara muito, vivera
na Europa, estudara na Alemanha. Mas odiava suas redações com o rancor de
um cangaceiro, e achava que todos os seus funcionários estavam interessados
em lesar seu patrimônio. Alguns meses depois do início de minha
experiência, ele me chamou para informar que havia problemas. Disse-me
que eu estava gastando muito dinheiro.
– O senhor está fazendo um jornal para a academia de letras – afirmou.
Era um jornal bonito, bem acabado, com muitas seções e muitos
colaboradores. O problema é que se tornara inflacionário. Entendi o recado, e
sugeri que eu voltasse à condição de repórter. Ele concordou. Foi, como
demonstraria o futuro, uma excelente ideia. A vida de repórter, afinal, me
levaria alguns anos depois ao encontro de Getúlio Vargas.
Longe da chefia da redação de O Jornal, minha convivência com Assis
Chateaubriand tornou-se mais fácil. Nos meses anteriores fora complicado
aceitar seus métodos. Ele costumava chegar ao prédio da rua Venezuela às
duas horas da madrugada; o jornal rodava às quatro. Sentava-se em sua mesa
e jogava sobre ela o revólver do qual não se separava; gostava de preservar
certos hábitos de cangaceiro. Como dono de jornal, mantinha um estilo
imperial. Mesmo sabendo que a edição estava praticamente pronta, mandava
trocar fotos, legendas, manchetes, jogava artigos fora. Era impiedosamente
desrespeitoso. Logo ao chegar, chamava-me para saber as últimas notícias.
Depois, telefonava para ministros, governadores, empresários, banqueiros,
trocando informações. Acordava qualquer pessoa no meio da noite. Assis
Chateaubriand jamais respeitou os horários alheios.
Não havia horário predeterminado, por exemplo, para a chegada à gráfica
do artigo de Chateaubriand, publicado diariamente na quarta página de O
Jornal. O artigo, manuscrito, vinha em qualquer papel, cheio de garranchos
ininteligíveis – um único linotipista era capaz de decifrar a letra do patrão. A
quarta página ficava com um buraco, à espera do artigo. Numa noite, notei
que o texto de Chateaubriand era maior do que o buraco. Eu estava na
oficina, e acabara de assumir a chefia da redação. Então, vi o paginador
subtraindo dois parágrafos de um artigo que seria publicado ao lado do texto
do patrão. Protestei, observando que aquilo era um insulto a um profissional
que certamente consumira algumas horas de trabalho para escrever.
Candidamente, o paginador informou que agia daquela forma há cinco anos.
Ninguém jamais reclamara.
Chateaubriand começou a construir seu império ao comprar O Jornal, nos
anos 20, com um dinheiro que conseguira da Light. Cresceu ao apoiar a
Revolução de 1930, viveu uma fase de ostracismo depois de ligar-se à
Revolução Constitucionalista de 1932, em São Paulo – quando teve de ir para
o exílio –, e nesse momento viu que o melhor caminho era apoiar o governo,
qualquer governo. Ele seria, durante muitos anos, um dos homens mais
poderosos do Brasil. Graças à influência dos Diários Associados, elegeu-se
senador pelo Maranhão, estado que mal conhecia, e foi mais tarde
embaixador do Brasil na Inglaterra. Um cangaceiro na Corte de Sua
Majestade.
Ele jamais teve qualquer estima pelo Brasil, convencido de que era
habitado por uma raça inferior. Preso a tais convicções, foi um entreguista
inacreditavelmente desembaraçado. Escrevia artigos pregando a entrega das
riquezas naturais do país aos monopólios estrangeiros, argumentando que
nunca seríamos capazes de desenvolver o Brasil por conta própria. Todas as
campanhas supostamente patrióticas patrocinadas por Chateaubriand visavam
obter determinadas vantagens ou atender a seus interesses. Ele liderou, por
exemplo, a campanha para a proliferação de campos de pouso no país, sem
revelar que lucrava com a venda dos aviões Paulistinha, fabricados pela
família Pignatari. Estimulou, também, a instalação de postos de puericultura,
quando, no fundo, queria vender mais remédios e aumentar a receita dos
laboratórios farmacêuticos nos quais tinha interesse.
Todos os jornais da rede dos Associados eram deficitários, e nada pode
degradar mais a imprensa que uma publicação com buracos no caixa. Um
jornal deficitário geralmente sobrevive à custa de golpes financeiros, de
favores oficiais. Por trás de cada jornal de Chateaubriand havia um
banqueiro. Por trás de cada campanha movida pelos Associados havia
interesses econômicos. Ele tinha uma enorme capacidade para levantar
recursos, conseguia créditos infinitos. Chateaubriand me disse, certa vez, que
nada sustenta uma empresa com mais eficiência que uma boa dívida. Vivia de
tal forma endividado que o capital privado não podia cogitar a aquisição dos
Associados. O governo, banqueiros e empresários do círculo de relações de
Chateaubriand não tinham alternativa além de ajudá-lo a sobreviver.
Ele adorava frequentar festas e ser cortejado pelas elites que em outros
tempos haviam tentado discriminá-lo por suas origens modestas. Apesar do
sobrenome imponente, Francisco de Assis Chateaubriand Bandeira de Melo,
vinha de uma família empobrecida. Impunha-se mais pelo temor que pelo
talento, que era enorme; mais pela agressão que pela cultura, que era
vastíssima. Cultivava ódios irremediáveis. Depois da Revolução de 1932, um
de seus jornais foi expropriado pelo governo federal em consequência de
gestões promovidas pelo tenente João Alberto. Ao voltar do exílio e
recuperar a empresa, Chateaubriand tratou de marcá-lo para sempre: desde
então, os jornais da cadeia só se referiam a João Alberto, que era um homem
honrado, como “o ladrão”. Outro desafeto histórico foi o conde Francisco
Matarazzo. Ele costumava ajudar Chateaubriand com empréstimos ou
comprando anúncios. Numa ocasião, o conde recusou-se a atender-lhe um
pedido qualquer, e foi incluído no índex dos Associados. Chateaubriand fazia
provocações incríveis. Certa feita, publicou em seus jornais a notícia de que
as Indústrias Matarazzo distribuiriam metade de seus lucros aos pobres que
comparecessem à praça do Patriarca, em São Paulo, onde ficava a sede da
empresa. Centenas de pessoas acreditaram nessa notícia falsa, houve um
enorme tumulto, a polícia teve de intervir. A partir daí, o velho conde
Matarazzo jamais voltaria a pronunciar o nome de Assis Chateaubriand: dizia
apenas “o lazarento”.
A corrupção nos Associados transformou-se numa instituição, praticada em
todos os níveis. Contínuos extorquiam gorjetas para permitir a entrada de
alguém, redatores tomavam dinheiro de açougueiros para não denunciar o
aumento no preço da carne, secretários de redação chantageavam empresas
para impedir a publicação de críticas a seus produtos. Os negócios em nível
mais alto, naturalmente, ficavam por conta do chefe. Quando vagava um
cargo de direção no Banco do Brasil, por exemplo, Chateaubriand
movimentava-se para nomear algum preposto. Quando conseguia, instalava
no Banco uma espécie de máquina de arranjar dinheiro. Cobrava quantias
para apresentar alguém ao diretor que nomeara, associava-se a negócios,
fixava porcentagens. E se fazia ainda mais temido.
Poucos se arriscavam a recusar seus pedidos e convites – eram, na verdade,
imposições. Gostava de acordar um banqueiro no meio da noite e convocá-lo
para a inauguração de um posto de saúde num estado qualquer do Nordeste.
Fez o Museu de Arte de São Paulo, o MASP, à custa de extorsões: ele ia até a
casa de um milionário qualquer e simplesmente confiscava um quadro,
frequentemente valiosíssimo. Quem ousasse dizer não entraria na lista negra
dos Associados. Com esses métodos de gângster, Assis Chateaubriand
marcou fortemente sua passagem por um trecho da História do Brasil, mas
seu legado acabaria por esfarelar-se rapidamente. O MASP, é verdade, ficou.
Mas onde estão os postos de puericultura, os clubes de aeronáutica que
fundou? Seus jornais morreram, os Associados se desfizeram. A revista O
Cruzeiro e a TV Tupi representaram, nos anos 50, verdadeiras minas de ouro.
Hoje, os jovens brasileiros nem mesmo sabem que um dia existiram uma
revista O Cruzeiro e uma TV Tupi. Assis Chateaubriand foi uma das últimas
expressões do Brasil colonial. Ele e seu império não poderiam sobreviver à
modernização do país.
Em seu reinado, porém, soube viver como monarca. Mantinha autênticos
palácios no Rio de Janeiro e em São Paulo. Tinha uma vida social
extremamente movimentada. Numa única noite, comparecia a quatro, cinco
recepções. Escrevia seus artigos durante viagens aéreas e obrigava seus
súditos a aguardar a palavra do rei. Não demorou a juntar uma fortuna
enorme, transformando-se num industrial com interesses em numerosos
campos de atividade. Creio que, numa determinada fase de sua vida, Assis
Chateaubriand pretendeu ser apenas jornalista, mas não tardou a ser
deformado por sua imensa ambição. Alguns de seus parceiros na aventura
dos Associados costumam apresentá-lo como responsável por uma revolução
na imprensa brasileira. De fato, Chateaubriand fez coisas relevantes –
importou a primeira máquina de rotogravura utilizada no país, comandou
publicações que ajudaram a fazer história, implantou a primeira emissora de
televisão. Mas é um equívoco encará-lo como revolucionário: Chateaubriand,
ao contrário, retardou em algumas décadas a evolução da imprensa nacional.
Ele era o atraso.
Definitivamente, Chateaubriand não gostava de seus jornais, detestava os
funcionários de suas redações. Mas tinha faro de repórter, sabia onde estavam
os assuntos efetivamente importantes. Em 1948, por exemplo, compreendeu
que acontecimentos históricos estavam prestes a ocorrer no Oriente Médio, e
que valia a pena encarregar alguém de testemunhá-los. Graças a esse faro, eu
pude ver com meus próprios olhos o nascimento do Estado de Israel.
CAPÍTULO 16
Por decisão das Nações Unidas, numa assembleia presidida pelo brasileiro
Osvaldo Aranha, a criação oficial do Estado de Israel, resultado da chamada
partilha da Palestina, seria proclamada no dia 14 de maio de 1948. Tratava-se
de uma velha reivindicação do crescente movimento sionista, surgido no
começo do século. Depois da Primeira Guerra Mundial, os ingleses, que
controlavam a Palestina, prometeram a líderes judeus um pedaço de terra para
a edificação de seu país. Com as atrocidades cometidas pelos nazistas na
Segunda Guerra Mundial, a palavra de ordem “Um lar para os judeus”
ganhou uma força quase irresistível. Chegara a hora de devolver à sua pátria
um povo disperso e perseguido há mais de dois mil anos.
Naquela época, à exceção do Egito, os países árabes não tinham maior peso
político ou econômico – todos estavam enquadrados na categoria de países
medievais. Assis Chateaubriand, que tinha muitas ligações com judeus,
decidiu fazer uma cobertura favorável à criação do Estado de Israel e, no
começo de 1948, mandou à Palestina dois repórteres dos Associados. O
jornalista pernambucano Murilo Marroquim, um tarimbado profissional que
cobrira a Segunda Guerra Mundial para a BBC de Londres, foi encarregado
de acompanhar os fatos do lado judeu. Coube a David Nasser o lado árabe.
Preparados para a luta inevitável, árabes e judeus haviam consolidado
posições e controlavam grandes porções da Palestina. Murilo Marroquim
instalou-se em Tel-Aviv, já então uma cidade moderna, de aspecto europeu, e
David Nasser no Cairo. Em vez de verificar pessoalmente como andavam as
coisas na zona conflagrada, David Nasser começou a enviar reportagens
baseadas em material de propaganda árabe que lhe era entregue no hotel onde
se alojava. Nesses textos, evidentemente, os judeus eram tratados como
bárbaros assassinos. Chateaubriand, irritadíssimo, ordenou a David Nasser
que voltasse imediatamente ao Brasil e escolheu-me para substituí-lo na
cobertura da partilha da Palestina. Ficou decidido que eu permaneceria em
Tel-Aviv, deslocando-se Murilo Marroquim para o Cairo.
Viajei no começo de abril. Em Roma, fiz uma conexão para Tel-Aviv, onde
Murilo me esperava. Apesar do nariz adunco, da aparência de judeu sefardi,
ele pertencia a uma das mais tradicionais famílias de Pernambuco. Instalei-
me no hotel onde meu companheiro estava hospedado. Tel-Aviv não figurava
entre as várias frentes de combate, mas não escapava ao clima de aguda
tensão que envolvia a Palestina. Em toda aquela região dilacerada pelo ódio,
sucediam-se atentados terroristas de parte a parte, tiroteios, emboscadas,
massacres. Sabia-se que os ingleses planejavam retirar suas tropas no dia da
criação oficial do Estado de Israel, deixando o território entregue às leis da
violência. Assim, judeus e árabes trocavam golpes enquanto se preparavam
para a guerra total.
Organizações terroristas judaicas, como a Haganah e o Irgun, espalhavam o
medo pela Palestina. Militantes do Irgun foram responsáveis, por exemplo,
pelo célebre atentado que reduziu a escombros o hotel King David, em
Jerusalém, onde estava alojado o estado-maior das tropas inglesas.
Disfarçados de leiteiros, os terroristas entraram no hotel pela manhã.
Colocaram galões de leite na cozinha do restaurante e se retiraram. Alguns
continham explosivos. Quando explodiram, o hotel voou pelos ares, matando
todos os integrantes do alto comando inglês. Eu estava em Tel-Aviv quando
houve o atentado.
Nos primeiros dias, senti-me prisioneiro na cidade. Não conhecia ninguém,
sentia os olhares desconfiados que me acompanhavam pelas ruas. Eu não
tinha aparência de judeu, e o pouco que aprendera de iídiche nos tempos de
menino do Bom Retiro já se perdera na memória. Podia ser facilmente
confundido com um espião. Mas não tardei a estabelecer contato com
correspondentes que haviam participado da cobertura do Tribunal de
Nuremberg, e me senti mais seguro. Enquanto Murilo Marroquim buscava
algum meio de passar para o lado árabe, eu procurava os caminhos que me
permitissem entrevistar militantes terroristas.
Graças a insinuações feitas por um correspondente americano, deduzi que o
correspondente da France Presse em Tel-Aviv, um judeu polonês que estava
paralítico, tinha ligações com o terrorismo. Ele me recebera como amigo, não
custava tentar.E teimei o quanto pude, até ele se render ao meu assédio.
Concordou em conseguir-me um contato com os terroristas, desde que a
reportagem lhes fosse simpática e mostrasse ao mundo que eles agiam
movidos pelo patriotismo. Aceitei. Ele me informou que nas horas seguintes
alguém me procuraria no hotel. No outro dia, recebi a visita de uma jovem
loura, linda, muito elegante, que me convidou a um passeio por Tel-Aviv.
Paramos defronte ao Café Brasil, uma espécie de sede do governo judeu na
clandestinidade.
– Sente-se naquela mesa. Daqui a alguns minutos, duas pessoas vão sentar-
se ali também – instruiu a moça loura antes de desaparecer.
Logo depois, dois jovens se aproximaram e ocuparam as cadeiras restantes
em minha mesa. Comunicaram-me que militavam no Irgun e haviam sido
designados para conceder-me uma entrevista. O Café Brasil – enorme, cheio
de mesas – era movimentadíssimo. Em meio àquele burburinho, conversamos
longamente, interrompidos de vez em quando por judeus que se acercavam
dos meus interlocutores, cochichavam alguma coisa e se afastavam. Os dois
jovens descreveram em detalhes, num inglês impecável, o funcionamento da
sua organização. Um deles participara do atentado ao hotel King David, que
descreveu minuciosamente. No fim da conversa, os dois me pediram que
procurasse apresentar o Irgun de forma simpática.
Àquela altura, eu deixara de enviar pelo telex meus despachos para o
Brasil. Era mais prudente fazer anotações manuscritas e guardá-las para
quando voltasse.

Mais familiarizado com a Palestina, comecei a deslocar-me pela região.


Fiquei três dias visitando colônias de judeus no deserto do Neguev,
deslumbrado com a aventura daquela gente que chegava de todos os cantos
do mundo. Depois, em companhia de Murilo Marroquim, que não conseguira
passar para o lado árabe, fui até Jerusalém. Encontramos a cidade em plena
exaltação histérica, traumatizada por um atentado praticado por terroristas
árabes duas horas antes: um jipe carregado de dinamite explodira e matara
oitenta pessoas. Fomos, a princípio, confundidos com espiões, mas
conseguimos tranquilizar os inquietos militantes da Haganah que
patrulhavam a área. O som das balas de franco-atiradores era praticamente
ininterrupto. Murilo tentou novamente atravessar para o outro lado, de novo
em vão. Então, combinamos que ele regressaria a Tel-Aviv. Eu ficaria em
Jerusalém, acompanhando os desdobramentos do atentado.
Entre os judeus orientais, grupo ao qual pertenciam as vítimas do atentado,
a morte é um espetáculo particularmente impressionante. São choros e gritos
lancinantes, mulheres com ar trágico e vestidas de preto, homens entregues a
lamentações profundas. Mas o episódio a que eu estava assistindo em
Jerusalém apresentava uma carga dramática adicional. Segundo milenares
tradições judaicas, só corpos santificados podem ser enterrados dentro dos
limites de Jerusalém. Os mortos nos atentados eram judeus comuns; teriam,
portanto, de ser enterrados no cemitério que ficava fora da cidade. Ocorre
que, para chegar a esse cemitério, o cortejo teria de atravessar uma área
controlada por árabes e, nesse caso, um novo massacre seria inevitável.
Como solucionar o problema?
A solução foi encontrada num conclave noturno entre os rabinos da cidade:
eles decidiram santificar os corpos das vítimas, única forma de sepultá-los, no
dia seguinte, em sua cidade santa. O cemitério de Jerusalém ficava no monte
das Oliveiras. Eu não podia perder aquela cena. Consegui permissão para
acompanhar o cortejo, seria o único jornalista de todo o mundo a documentar
o desfecho do drama. Com minha máquina fotográfica Leica em punho,
entrei em ação, registrando cenas fantásticas. Para não despertar a atenção
dos árabes, os próprios parentes das vítimas abriam as covas, em silêncio – o
som de um choro poderia ser fatal. Perto dali, combatentes judeus com
granadas nas mãos protegiam o cemitério. O enterro foi marcado para a hora
do crepúsculo, de modo a dificultar a visibilidade dos inimigos. Fotografei
tudo. Só quando o enterro ia chegando ao fim descobri que esquecera de
puxar o visor da minha Leica. Salvaram-se apenas duas fotos, mais tarde
publicadas na revista O Cruzeiro. Como repórter, eu me saíra
magnificamente. Como fotógrafo, fora um fracasso.
No começo de maio, às vésperas do nascimento oficial do Estado de Israel,
chegou ao escritório da France Presse em Paris um recado da sede dos
Diários Associados, pedindo que tentassem localizar-me em Tel-Aviv:
Chateaubriand estava precisando dos meus serviços no Brasil. O aviso foi
retransmitido ao escritório da France Presse em Tel-Aviv e seus funcionários
identificaram meu paradeiro. Eu já estava de volta à cidade; Murilo
Marroquim, também a chamado de Chateaubriand, regressara alguns dias
antes ao Brasil. Tratei de conseguir uma vaga num ônibus blindado que fazia
o percurso entre o hotel e o aeroporto de Tel-Aviv. A distância entre os dois
pontos era de apenas dois quilômetros, mas se tratava de uma terra de
ninguém. Invariavelmente, havia grupos terroristas no caminho, prontos para
emboscadas e atentados.
Embarquei nesse ônibus na madrugada de 13 de maio de 1948,
precisamente a véspera da criação formal de Israel. Eu não veria a guerra que
já se desenhava há tantos meses, mas o que eu testemunhara me bastava. A
bordo do ônibus, surpreendi-me ao encontrar um dos militantes do Irgun com
quem conversara no Café Brasil. Ele sussurrou-me um apelo em inglês:
“Espero de você a generosidade de esquecer que nos conhecemos”. Então,
sempre em voz baixa, perguntou-me para onde estava indo. Expliquei-lhe que
viajava de volta ao Brasil, mas antes faria uma escala no Cairo.
No meio do caminho, ouvimos um imenso estrondo e o veículo sacudiu
violentamente. Passáramos ao lado de uma mina que, embora tivesse
explodido, não atingira diretamente o ônibus. Em seguida, começamos a
ouvir tiros – eram combatentes árabes que disparavam contra nós. Deitado no
chão, vi o terrorista do Irgun com um revólver na mão, atirando pela janela.
Ele estava trêmulo, visivelmente amedrontado. O motorista acelerou,
chegamos incólumes ao aeroporto. Ao descermos, o terrorista abordou-me
novamente, informando que viajava em direção a Paris, onde deveria manter
contatos. Quando nos despedíamos, ele fez uma confidência. Havia notado
meu espanto por ter percebido que sentira medo durante o tiroteio. Não havia
razões para espanto, ponderou.
– Todo homem treme na hora do medo da morte – disse-me. – Não se deve
ter vergonha disso.
Guardei aquelas palavras para sempre.
Embarquei para o Cairo num pequeno avião, e fui recebido pelo
embaixador Caio de Mello Franco. A pedido de Chateaubriand, ele tomara
providências para que eu viajasse no voo seguinte para o Brasil. Deveria
aguardar dois dias no Cairo, hospedado na embaixada, e nesse período não
poderia de forma alguma atravessar o portão. Na mesma noite, porém, o
próprio Caio de Mello Franco convidou-me a acompanhá-lo num jantar no
clube mais elegante do Cairo, frequentado pela aristocracia egípcia. Mais
tarde eu soube que o convite fora provocado pela princesa Fátima, que estava
prestes a casar-se com dom João de Orleans e Bragança, da família real
brasileira. Ela estava interessada em saber se eu tivera acesso a algum
segredo militar da parte judaica. A princesa Fátima não conseguiu o que
queria, mas proporcionou-me um esplêndido jantar.
De volta ao Brasil, publiquei várias reportagens sobre a Palestina, fui
convidado para fazer inúmeras conferências sobre a questão de Israel.
Chateaubriand se mostrava extremamente orgulhoso – eu fizera um bom
trabalho. Ele me tratava como grande repórter, encarregando-me de
sucessivos trabalhos. No começo de 1949, o dono dos Associados resolveu
enviar-me ao Rio Grande do Sul para fazer uma reportagem sobre a questão
do trigo. Sem saber, ele estava me enviando ao encontro de Getúlio Vargas.
CAPÍTULO 17

No começo de 1949, Assis Chateaubriand decidiu incumbir-me de uma


grande reportagem sobre a questão do trigo. Naquela época, discutia-se se o
Brasil tinha ou não condições de tornar-se autossuficiente na produção desse
cereal, e o dono dos Diários Associados participava ativamente da polêmica,
com a cautela de não esclarecer por inteiro os interesses que o moviam.
Chateaubriand era contra a autossuficiência brasileira na produção de trigo
porque não convinha aos trustes internacionais que detinham o monopólio do
comércio. Mas alegava apenas que, se o Brasil parasse de importar trigo da
Argentina, os argentinos deixariam de comprar o nosso mate. Assim, era
contra o plantio de trigo em terras brasileiras. Ao mandar-me para o Rio
Grande do Sul no começo de 1949, orientou-me no sentido de conduzir a
reportagem na direção que lhe interessava: eu devia demonstrar que o Brasil
jamais conseguiria a emancipação nessa área da agricultura.
Viajei extremamente aborrecido – aquilo, evidentemente, não era honesto.
Resolvi, então, colher todas as informações disponíveis, para só depois
refletir sobre a maneira de utilizá-las. Poucos dias depois, estava claro a meus
olhos que o país tinha todas as condições para produzir toneladas e toneladas
de trigo. Entrevistei produtores, visitei fazendas, conversei com técnicos e
concluí que, definitivamente, a posição de Chateaubriand era insustentável.
Eu me metera numa enrascada. Não podia afirmar que o trigo brasileiro era
inviável e tampouco defender, nas páginas dos Diários, uma postura
frontalmente contrária à de seu dono.
Salvou-me desse impasse a providencial ideia de tentar uma entrevista com
Getúlio Vargas. A reportagem sobre a questão do trigo jamais seria escrita.
Ao ler a entrevista com Vargas, Chateaubriand esqueceu completamente o
assunto que me levara ao Rio Grande do Sul. Havia outro, muito mais
palpitante, muito mais dramático, a explorar em seus jornais.
A partir daquele momento, eu me tornei uma espécie de príncipe dos
Diários Associados. Chateaubriand passou a levar-me aos lugares que
frequentava e a exibir-me como um ursinho, um animal de estimação.
Admito que aquilo me envaidecia. Ele me aproximou da plutocracia, dos seus
amigos aristocratas, dos donos do poder.
Aos sábados, havia um almoço famoso na casa do superintendente da
Light, John McCrimmon – o célebre major McCrimmon, um escocês gordo,
enorme, que influiu fortemente na vida política brasileira durante anos a fio.
Receber um convite para esse almoço dos sábados era um sinal de altíssimo
status: lá podia estar, refestelado numa cadeira, o presidente da República,
cercado por ministros, senadores, industriais. Num determinado dia,
Chateaubriand levou-me à casa do major McCrimmon para que eu contasse
ao presidente Eurico Gaspar Dutra, também convidado, como estava Getúlio
Vargas. Era impressionante o desembaraço com que Chateaubriand tratava o
presidente. Em meio a meu relato sobre as conversas com Getúlio, ele dava
gargalhadas e, de vez em quando, tapinhas no traseiro de Dutra.
– Temos que continuar essa ditadura – dizia Chateaubriand, rindo muito. –
Aquele homem precisa ser liquidado. – Também McCrimmon parecia
divertir-se bastante.
– Conta! Conta! – convidava o homem da Light, enquanto eu falava sobre
Getúlio. – Conta mais!
O clima era de puro deboche.
As relações de Chateaubriand com o poder eram extremamente cínicas. Ele
mudava a direção quando lhe convinha, fiel apenas a seus próprios interesses.
Esses interesses, por sinal, incluíam a vassalagem à Light, que sempre deu
dinheiro aos jornais de Chateaubriand. Fui testemunha, às vezes protagonista,
de episódios que ilustram à perfeição a subserviência dos Associados à
poderosa empresa. Certa vez, Chateaubriand telefonou-me às onze horas da
noite, na redação de O Jornal, ordenando que eu fosse imediatamente à casa
de McCrimmon para entrevistar o superintendente da Light. Naquele dia, o
então general Juarez Távora, um militar muito influente desde a Revolução
de 30, fizera acusações à Light, denunciando ações de sabotagem contra as
obras da Usina de Salto, e Chateaubriand não podia permitir que elas
ficassem 24 horas sem resposta. McCrimmon estava à minha espera para dar
o troco.
Tentei ponderar que já era tarde, e que minha presença na redação naquela
hora se tornava indispensável.
– O senhor vá pessoalmente e se vire – cortou Chateaubriand.
Fui à casa de McCrimmon acompanhado de Augusto Rodrigues. Encontrei
meu anfitrião completamente bêbado, ao lado de um padre escocês
igualmente embriagado. Augusto Rodrigues logo bebeu três uísques e
também ficou grogue. Fiz o possível para entrevistar o superintendente da
Light, passando as declarações diretamente ao linotipista, pelo telefone. Ele
me dizia frases temerárias.
– Pode escrever que Juarez Távora não é um homem sério – declarou
McCrimmon a certa altura, com a voz engrolada.
Ponderei que se tratava de uma acusação muito grave a um militar com
bastante prestígio nos quartéis.
– Então, diga que ele é burro – sugeriu McCrimmon.
Insisti nas minhas ressalvas, lembrando o passado de Juarez. De repente,
McCrimmon mudou bruscamente de direção.
– Pois então diga que Juarez Távora é um patriota – decidiu o
superintendente da Light.
Saí de sua casa perplexo, mas não demorei a compreender que McCrimmon
e Chateaubriand tinham um forte traço comum: o cinismo. Era o cinismo
típico dos poderosos.
McCrimmon comandava uma empresa que distribuía propinas a todos os
jornais da época. Mesmo o jornal do Partido Comunista, A Manhã, chegou a
receber verbas. Os editorialistas mais influentes recebiam diretamente da
empresa pagamentos destinados a torná-los dóceis diante das imoralidades
que a beneficiavam. As exceções eram raríssimas. Só no dia em que forem
abertos os arquivos da Light se saberá até que ponto este país foi corrompido
pelo famoso “polvo canadense”, um apelido muito pertinente. Afinal,
estavam sob o controle da empresa, naquela época, a luz, o gás, a água, os
bondes, os telefones. Tamanho era o seu poder que conseguiu até mesmo a
aprovação de uma lei que lhe permitia mandar seus lucros para o exterior em
ouro.
Chateaubriand agia com a mesma desfaçatez que marcava McCrimmon:
chegava a cobrar quantias previamente fixadas de industriais em dificuldades
para abrir-lhes as portas do Banco do Brasil. Não havia dúvida de que ali
estavam homens muito parecidos.
Chateaubriand, convém insistir nesse aspecto, escrevia admiravelmente bem,
era um enorme polemista. Escrevia bem e curto, seus artigos nunca tiveram o
derramamento prolixo dos textos de Carlos Lacerda. Em 1949, ele não me
considerava um jornalista completo. Eu era autodidata, ainda não aprendera a
escrever com desembaraço. Meu texto tinha erros – vírgulas fora de lugar,
preposições mal colocadas, escorregões desse gênero. Mas eu sabia contar
histórias com alguma fluência e já conseguia uma grande empatia com o
leitor. Chateaubriand captara essas qualidades e me tratava com bastante
simpatia. Continuava a levar-me a toda parte, mas mantínhamos uma
distância respeitosa. Jamais seríamos íntimos.
Ele não era generoso. O homem do Nordeste, aliás, não costuma ser
generoso. É valente, é hospitaleiro, mas não é generoso, talvez porque se veja
forçado a lutar permanentemente pela sobrevivência. Chateaubriand
procurava destruir seus adversários, reduzi-los a uma posta de carne. Com os
três filhos, nunca teve relações carinhosas. Teve amigos, mas jamais foi
homem de grandes amizades. Isso era impossível para um homem que não
conseguia viver sem humilhar os que lhe eram próximos. Certas humilhações
eram decididamente originais. Um bom exemplo foi a Ordem do Jagunço,
criada por Chateaubriand. Teoricamente, tratava-se de uma homenagem. Mas
bastava ver a foto dos homenageados na primeira página dos jornais dos
Diários Associados, envergando um ridículo chapéu de cangaceiro, para
concluir que aquilo configurava uma humilhação. Chateaubriand conseguiu
colocar o chapéu de cangaceiro até mesmo em Winston Churchill, o estadista
inglês que salvara a civilização com sua resistência ao avanço da Alemanha
nazista. Nesse caso, porém, vale registrar que Churchill não entendeu
exatamente o que estava acontecendo. É provável que tenha experimentado a
mesma sensação dos chefes de Estado que, em visita à África, são abordados
por um nativo que lhes coloca um cocar na cabeça.
Em abril de 1950, Chateaubriand convocou-me para informar que tivera
uma ideia genial: decidira-me nomear “embaixador dos Diários Associados
junto ao Principado de Itu”. Fiquei estarrecido. Sempre fui muito avesso a
esse tipo de exibicionismo, e pressenti o que viria. Ele então chamou Carlos
Rizzini, um de seus assessores imediatos.
– Traga o pergaminho do nosso embaixador – disse Chateaubriand a
Rizzini.
Permaneci em silêncio, mas fervendo de indignação. Naquele momento,
tive certeza de que poucos minutos mais tarde estaria desempregado. Rizzini
voltou com o pergaminho, em letras góticas, que me nomeava embaixador
plenipotenciário junto ao Principado de Itu, com o direito de mandar
reportagens e outras especificações igualmente ridículas. O pergaminho,
datado de 21 de abril de 1950, era assinado por Carlos Rizzini.
– E tem mais, seu Wainer – disse Chateaubriand. – Já mandei fazer seu
fraque e sua cartola.
Dava gargalhadas homéricas. Contou-me, também, que telefonara na
véspera a Benedito Valadares, para revelar a brincadeira que havia planejado,
e que o velho político mineiro gostara muito da boutade. Então, com voz
baixa, quase num murmúrio, soltei as palavras que, tinha certeza,
representariam a perda do meu emprego:
– Dr. Assis, lamento muito, mas não aceito essa função.
Chateaubriand empalideceu.
– Como? O senhor não aceita a missão? – espantou-se.
Insisti:
– Lamento, mas não aceito. Não é esse jornalismo que sei fazer, não sou
homem para esse cargo.
Ele se voltou para Rizzini:
– O senhor Wainer recusa essa honraria! – exclamou, subindo o tom de voz.
Chateaubriand já estava falando aos gritos, algo que até então jamais fizera
comigo. De repente, pareceu cair em si.
– Está bem, vou pensar no que fazer – disse, abrandando a voz. – Pode se
retirar.
Saí da sala, logo fui alcançado por Rizzini.
– Você fez a maior loucura, vai perder o emprego – disse Rizzini,
desconcertado com a cena que testemunhara.
Não fui demitido, certamente porque Chateaubriand me considerava útil
naquele momento. Ele nunca mais voltou a tocar no assunto. Muitos anos
depois, seu filho Gilberto Chateaubriand deu-me de presente o pergaminho,
que encontrara nos arquivos do pai. Guardei-o como lembrança; má
lembrança.
Quando Getúlio Vargas se elegeu presidente da República, Chateaubriand
assustou-se. Em 1945, pouco depois da queda de Getúlio, Chateaubriand, que
havia prosperado enormemente durante o Estado Novo, escrevera um artigo
sobre o ditador destronado cujo título dizia tudo: “O monstro”. Com a
ressureição política de Getúlio, ele ficou à beira do pânico, certamente
esquecido de que o antigo ditador nunca teve amigos nem inimigos. Vargas
era um animal político destituído de emotividade, não tinha reminiscências,
não tinha idiossincrasias. Atribuíram-lhe, aliás, uma frase bastante
reveladora: “Os Vargas não perdoam, mas esquecem...” Getúlio não teria,
portanto, maiores problemas para entender-se com Chateaubriand, mas o
dono dos Diários aparentemente não sabia disso.
Na noite de 24 de dezembro de 1950, fui buscar Chateaubriand em sua
casa, na avenida Atlântica, no Rio de Janeiro, para irmos juntos a uma ceia de
Natal na casa de Rosalina Larragoiti, dona da Companhia Sul América de
Seguros. Enquanto ele se vestia, ponderei-lhe que era hora de reencontrar-se
com Getúlio Vargas.
– Ele não me recebe – disse Chateaubriand.
Discordei, observando-lhe que eu me encarregaria pessoalmente de
estabelecer o contato entre ambos. Getúlio estava no Rio, hospedado na casa
de Epitacinho Pessoa, cuidando da montagem do governo. No dia 6 de
janeiro, o presidente eleito ofereceria um almoço em homenagem a Nelson
Rockefeller. Ali estava uma boa ocasião para reaproximar Getúlio e
Chateaubriand.
Ele ficou deslumbrado com a proposta.
– Que coisa maravilhosa, nem acredito! – entusiasmou-se. – A propósito, seu
Wainer, o senhor tem automóvel?
Surpreendi-me com a pergunta – falávamos, afinal, de outros assuntos.
Expliquei-lhe que não tinha carro e que nem sequer sabia dirigir.
– Mas um homem como o senhor tem que ter um automóvel – insistiu.
Sugeri, em tom de brincadeira, que me aumentasse o salário. Com a
diferença, eu compraria um carro.
– Eu compro – replicou Chateaubriand, que sabidamente detestava aumentar
salários.
Àquela altura, ele mal me ouvia, enlevado com a própria voz e, sobretudo,
com os projetos que começava a fazer para tirar vantagens da reaproximação
com Vargas.
– Logo que fizermos as pazes, tomaremos a Schering – continuou
Chateaubriand. – Faremos uma grande campanha para inundar o país de
postos de puericultura e o senhor será diretor da Schering.
A Schering fora desapropriada durante a guerra e agora pertencia ao
governo brasileiro.
– Não quero, obrigado – retruquei. – Não quero ser outra coisa além de
jornalista.
Era inútil argumentar.
– Eu lhe farei diretor da Schering – repetia Chateaubriand.
Disse-lhe que conversaríamos sobre isso mais tarde, e saí para caminhar um
pouco na avenida Atlântica. Eu me sentia humilhado. Considerava-me um
grande jornalista, um repórter que buscara um expatriado no fim do mundo e
voltara com ele ao poder. Eu fizera uma campanha singularíssima na
imprensa brasileira. Na hora de colher os frutos desse trabalho, eu não
recebera um convite para ocupar um cargo de direção nos Diários
Associados, nem mesmo um aumento de salário. Em vez disso,
Chateaubriand me oferecera um carro primeiro, e depois um cargo de diretor
da Schering. Ele não me compreendia. Naquela noite, caminhei cerca de uma
hora pela avenida Atlântica. Terminado o passeio, eu concluíra que
Chateaubriand ignorava minha personalidade e desconhecia meu valor como
jornalista. Só mais tarde eu saberia que, também naquela noite, a Última
Hora começou a nascer. Em algum canto da minha mente, desenhou-se a
certeza de que eu deveria ter o meu próprio jornal.
Fui a Getúlio e propus-lhe que recebesse Chateaubriand. Ele deu uma de suas
sonoras gargalhadas e concordou. “Pode trazer, não tem importância”,
concedeu Getúlio. A 6 de janeiro de 1951, acompanhei Chateaubriand à casa
de Epitacinho Pessoa, um palácio no alto da Gávea. Gregório Fortunato
estava plantado na porta, sempre vigilante. Quando viu o homem que
qualificara seu chefe de “monstro”, Gregório não se conteve: deu-lhe um
empurrão. Chateaubriand ficou atônito por alguns segundos. Entramos.
Getúlio estava numa sala, de terno preto e meias de seda, à espera do
convidado. Ao vê-lo, Chateaubriand parecia um cachorrinho prestes a ser
castigado por uma má ação. Tirou o chapéu e aproximou-se timidamente do
presidente eleito, que prontamente tratou de amenizar o clima:
– Doutor Assis, que prazer revê-lo! – saudou.
Minutos depois, Chateaubriand estava inteiramente à vontade, dando tapas
na bunda de Getúlio.
– O senhor veio para não sair mais – dizia. – Vai ser de novo o nosso
ditador, vai me dar a Schering de presente.
Os dois riam muito. Não houve cobranças, não se falou em brigas passadas.
Getúlio era tudo que Chateaubriand abominava, Chateaubriand não merecia a
menor confiança de Getúlio. Mas pareciam velhos amigos. Durante o almoço,
Chateaubriand não parou de falar. Era um grande contador de causos, e
divertiu a mesa com piadas e histórias sobre Eurico Dutra. Como Dutra
deixara o poder, perdera a importância para o dono dos Diários.
Depois do almoço na casa de Epitacinho, Vargas concedeu uma entrevista
coletiva. A certa altura, um repórter perguntou-lhe se eu teria algum cargo no
governo. Getúlio deu uma gargalhada e respondeu que me nomearia
embaixador do Brasil em Israel. Aparteei a conversa para afirmar que preferia
ser embaixador de Israel junto ao governo de Getúlio. Todos riram muito, o
bom humor era geral. Secretamente, porém, tornava-se cada vez mais nítido o
projeto que surgira em minha mente na véspera de Natal. Poucas semanas
depois, eu começaria a viver a fantástica aventura da Última Hora.
a
2 Parte
CAPÍTULO 18
O Getúlio Vargas que no começo de 1951, conforme prometera ao longo da
campanha, subiria com o povo as escadarias do Catete, era um homem
diferente do chefe do Estado Novo. Ele se tornara um nacionalista muito mais
convicto, mais consistente. Além disso, suas ideias sobre justiça social se
haviam tornado mais nítidas. Enfim, ele se convencera da necessidade de
consolidar a burguesia nacional. Essas três linhas de ação, sobretudo a opção
nacionalista, marcariam sua trajetória até o dia do suicídio.
A grande dúvida histórica, que só o próprio Vargas poderia desfazer, é
saber por que, exatamente, ele quis voltar ao poder. É possível que tenha
resolvido voltar simplesmente porque quem passou pelo poder sempre deseja
retomá-lo. Mas também é possível que se sentisse impelido pelo destino a
concluir uma obra cujos exatos contornos e dimensões só ele próprio
conhecia. Logo no começo da campanha, pouco depois de aceitar a
candidatura, Getúlio inclui no discurso uma expressão que ficaria célebre:
“Levai-me convosco”, disse Vargas ao povo que o saudava. Nesse discurso,
previu que caminhava para a tragédia, para a destruição. Parecia saber que as
mudanças operadas em sua postura resultariam num desfecho dramático.
Tais mudanças foram provavelmente maturadas nas longas noites de exílio,
de silêncio, nos dias de expatriado vividos na fronteira gaúcha. Não creio que
tenham sido fruto de conversas, diálogos – Vagas não cultivava o hábito do
debate intelectual. Gostava muito de conversar, era um adorável interlocutor,
um bom ouvinte, mas não costumava extrair decisões de diálogos ou
consultas. Tampouco acredito que as mudanças tenham decorrido de leituras:
ele era um homem de leituras esparsas e descosidas, não exibia admiração
especial por algum autor. Getúlio preferia construir seu pensamento baseado
em linhas de raciocínio próprias, guiado por seu admirável instinto político.
Sempre mostrou inclinações nacionalistas, até porque essa tendência é
natural do homem da fronteira. Essas inclinações foram reforçadas pelo fato
de que passou praticamente toda a vida sem viajar ao exterior. Com exceção
da Argentina, que visitou quando presidente, ele não conheceu nenhum outro
país. Antes de 1950, contudo, o nacionalismo de Getúlio Vargas era um
nacionalismo confuso, às vezes primário. Agora não: voltava ao poder
decidido a percorrer um caminho traçado com clareza na solidão da fronteira
gaúcha.
Sabia, certamente, dos riscos que o aguardavam nesse caminho, mas
confiava nas suas habilidades, principalmente no seu desconcertante talento
para captar as nuances da alma brasileira. Ele conhecia o homem brasileiro,
suas virtudes, suas fraquezas, suas debilidades – e só graças a essa
sensibilidade pôde ficar tantos anos no poder. Impressionava-me
especialmente a competência com que manobrava os que o cercavam,
antecipando-se a pressões que se desenhavam, jogando uns contra os outros
sempre que necessário. Entre 1930 e 1954, Vargas conviveu com políticos
brilhantes como Osvaldo Aranha, João Neves da Fontoura, Virgílio de Mello
Franco, Lindolfo Collor, tantos outros. Mas foi sempre o primeiro entre
todos, o mais hábil, o comandante. Como não tinha paixões personalistas,
nada o impedia de desfazer e recompor amizades. Em 1937, por exemplo,
matou com o Estado Novo a candidatura presidencial de José Américo de
Almeida, que ele mesmo lançara. Pois bem: nos anos 50, conseguiu
reaproximar-se de José Américo e o nomeou ministro. Também com Osvaldo
Aranha teve uma longa história de desencontros e reatamentos. Algumas
brigas entre ambos foram decididamente feias, mas era impossível resistir ao
charme de Getúlio quando ele se dispunha a recompor-se com um
companheiro de outros tempos. Por tudo isso, passou a encarnar, aos olhos do
povo, a imagem do brasileiro esperto, o malandro simpático que sempre sai
ganhando. O anedotário sobre as espertezas de Getúlio era imenso. Em todos
os episódios, era invariavelmente ele quem passava a perna nos outros,
criando armadilhas que desorientavam e derrotavam os adversários do
momento. Mas essas habilidades seriam insuficientes para deter a trama que
contra ele se armou a partir de sua vitória nas eleições de 1950.
Nada se podia alegar contra a honradez pessoal de Vargas, que tinha
padrões de vida modestos e mostrava o respeito pelo dinheiro típico dos
fronteiriços. Há um episódio que revela com nitidez essa faceta de Getúlio.
Nos tempos da ditadura, seus filhos faziam o percurso entre o Palácio
Guanabara, onde moravam, e o centro da cidade nos ônibus da linha Clube
Naval-Laranjeiras. A passagem custava quatrocentos réis. Anos depois,
quando o pai voltou ao poder, o filho Maneco pediu-lhe dinheiro para ir ao
centro. Getúlio deu-lhe duas moedas de quatrocentos réis. Ele não sabia que o
preço da passagem estava dez vezes maior. Esse episódio mostra, também,
até que ponto era comedido nos gastos.
Os próprios adversários reconheciam sua honradez pessoal, e mesmo no
auge da campanha que o levaria à morte ninguém ousou molestá-lo nesse
aspecto. É preciso destacar essa particularidade, porque nenhum outro
homem público foi tão duramente combatido na História do Brasil. As
classes dirigentes sabiam que era preciso destruir Getúlio, e nisso tinham a
simpatia dos Estados Unidos. Os americanos jamais gostaram de presidentes
com ideias nacionalistas, e essa rejeição era agravada naquela época pelos
ventos da Guerra Fria. A hostilidade das classes dirigentes brasileiras se
refletia com inteira clareza na imprensa. À exceção dos jornais de
Chateaubriand, que reatara seu namoro com Vargas, toda a imprensa
devotava ao novo governo uma animosidade total e incontornável. A
imprensa atacou diuturnamente Getúlio ao longo da campanha, endureceu as
críticas depois de sua vitória nas urnas e deixou claro, já no dia da posse, que
não haveria tréguas na guerra de extermínio.
Getúlio tomou posse em 31 de janeiro de 1951, em meio a imensas
celebrações populares. A esmagadora maioria da imprensa reagiu com frieza,
com reportagens que de modo algum refletiam o que efetivamente ocorrera.
Contrariando as previsões, o presidente Dutra compareceu à cerimônia de
transmissão do cargo. Getúlio entrou no Catete carregado pelo povo, foi um
espetáculo magnífico. Eu sabia que contribuíra decisivamente para que aquilo
ocorresse, sentia-me vaidoso. Assisti à festa no meio do povo, sozinho com
minha vaidade. Foram cenas rigorosamente inesquecíveis, mas a imprensa
procurou ignorá-las.
No dia seguinte, fiel às tradições da época, Getúlio subiu a serra rumo a
Petrópolis, onde passaria as férias de verão instalado no Palácio Rio Negro. A
2 de fevereiro, seria realizada a primeira reunião do novo ministério. Viajei
para Petrópolis, encarregado de fazer a cobertura para os Diários Associados.
Tratava-se, evidentemente, de uma reunião importantíssima, ao fim da qual
seriam anunciadas algumas diretrizes do governo Vargas. Ao chegar ao
Palácio, constatei, espantado, que além de mim só um repórter da Agência
Nacional subira a serra. Percebi que a imprensa decidira fechar o cerco a
Getúlio Vargas através da conspiração do silêncio.
Terminada a reunião, fui convidado a ficar e jantar com a família
presidencial. Depois, Getúlio chamou-me a acompanhá-lo à sua sala de
despachos, um enorme salão que ele usava para conversas reservadas, entre
baforadas de charuto e curtas caminhadas de um lado para outro.
– Tu te lembras de uma frase que me disseste no dia em que começamos a
campanha? – perguntou-me de saída o presidente.
Não me lembrava.
– Era uma frase sobre o jornalismo – disse Vargas.
Só então recordei a frase que dissera a Getúlio no dia em que me sentei a
seu lado para voarmos do Rio de Janeiro ao Amazonas: “A imprensa pode
não ajudar a ganhar, mas ajuda a perder”.
Naquele dia, eu lhe chamara a atenção para o fato de que era o único
jornalista destacado para cobrir sua campanha, enquanto a do brigadeiro
Eduardo Gomes mobilizava pequenas multidões de repórteres e fotógrafos.
Eu o advertira de que ele teria toda a grande imprensa contra a sua
candidatura. Getúlio retrucara que não precisaria da grande imprensa para
ganhar. Ele provavelmente pensava no exemplo famoso de Franklin
Roosevelt, que sempre venceu eleições apesar da oposição que lhe moviam
os jornais americanos. Em resposta, eu ponderara que, ao contrário do que
ocorria em países como os Estados Unidos, no Brasil a imprensa tinha um
fortíssimo poder de manipulação sobre a opinião pública, e que não era fácil
enfrentá-la. Então, disse-lhe a frase que meses depois seria por ele lembrada
na sala de despachos do Palácio Rio Negro.
– Tu reparaste que hoje não veio ninguém cobrir a reunião? – perguntou
Getúlio.
Respondi que sim, e observei que fora desencadeada a conspiração do
silêncio.
– O senhor só vai aparecer nos jornais quando houver algo negativo a
noticiar – preveni. – Essa é uma tática normal de oposição, e a mais
devastadora.
Ele andava de um lado para o outro. De repente, parou e me disse sete
palavras que seriam a senha para abrir-me as portas da grande aventura:
– Por que tu não fazes um jornal?
Alguns anos mais tarde, durante uma sessão da comissão parlamentar de
inquérito que tentava promover a devassa da Última Hora – e que produziu a
mais cruel e intensa investigação da trajetória pessoal e profissional de um
jornalista brasileiro em todos os tempos –, fui submetido a centenas de
perguntas. A maioria tentava levar-me à confissão de que algum dia Getúlio
me pedira para fazer um jornal. Meus inquisidores perseguiram
permanentemente uma resposta que confirmasse essa versão. Não
conseguiram. Revelo-a só agora. Na pergunta formulada por Getúlio naquela
noite em Petrópolis havia, evidentemente, um pedido:
– Por que tu não fazes um jornal?
Respondi que aquele era o sonho de um repórter com o meu passado.
Ponderei que não seria difícil articular a montagem de uma publicação que
defendesse o pensamento de um presidente que, como era o seu caso, tinha o
perfil de um autêntico líder popular.
– Então, faça – determinou Getúlio.
Perguntei-lhe se queria saber como faria.
– Não – cortou. – Troque ideias com a Alzira e faça rápido.
Reagi com o otimismo de sempre:
– Em 45 dias dou um jornal ao senhor.
– Então, boa noite, Profeta – encerrou Getúlio.
– Boa noite, presidente.
A Última Hora começava a nascer, e eu a encontrar a minha razão de
viver.
Alzira Vargas já mantinha comigo, àquela altura, uma relação de amizade
total, absoluta. Tratava-se de uma pessoa excepcional. Alzirinha foi a mais
extraordinária mulher do Brasil moderno, sobretudo pela influência que
exerceu sobre Getúlio, sempre em favor de posições nacionais e populares.
Não seria difícil entender-me com ela em torno da ideia de criar um jornal
pró-Getúlio. Antes de conversarmos, porém, decidi fazer algumas sondagens.
Eu precisava de algumas informações sobre o mundo cujas fronteiras iríamos
atravessar.
Poucos dias depois de iniciar minhas sondagens, encontrei-me casualmente
na avenida Rio Branco, numa manhã de março de 1951, com o diplomata
José Jobim. Éramos amigos. Ele convidou-me para almoçar no Jockey Club,
e durante a conversa contei-lhe que estava à procura de uma oficina para
imprimir meu jornal.
– Caiu a sopa no mel – comentou Jobim.
Informou-me, então, que não achava difícil fechar um acordo com o Diário
Carioca, um jornal que, embora tivesse bastante prestígio junto ao restante da
imprensa, atravessava uma fase de fortes dificuldades financeiras. Jobim era
muito ligado ao grupo que fazia o Diário Carioca – o redator-chefe, por
sinal, era seu irmão, o jornalista Danton Jobim. O dono era José Eduardo
Macedo Soares, que pertencia a uma família de perfil aristocrático e recebia o
tratamento de “senador” entre o pessoal da redação. Escrevia bem, assinava
editorias demolidores na primeira página. Abaixo de José Eduardo, na
hierarquia do Diário Carioca, estava Horácio de Carvalho, um jovem de uma
antiga família fluminense, que mais tarde se tornaria riquíssimo. A equipe de
redação era comandada por Pompeu de Souza e Danton Jobim, e dela faziam
parte jornalistas importantes, como Prudente de Moraes, neto.
O grupo do Diário Carioca, de muito bom nível intelectual e social, havia
rompido com Getúlio no fim da ditadura, em consequência de disputas pelo
controle do governo do Estado do Rio. Contrariando os interesses do grupo,
Getúlio nomeara interventor do Estado do Rio de Janeiro seu genro,
almirante Ernâni do Amaral Peixoto, marido de Alzirinha. O jornal brigou
com o ditador e apelidou Amaral Peixoto de “Alzirão”. A briga ficou feia;
numa noite, por razões obscuras, José Eduardo Macedo Soares foi agredido
na Cinelândia por dois integrantes da Polícia Especial. A partir daí, o Diário
Carioca transformou-se num dos símbolos do antigetulismo, e soube
capitalizar politicamente esse trunfo quando Vargas caiu.
Embora vivesse em situação pré-falimentar, o Diário Carioca conseguira
recursos, durante o governo do presidente Eurico Dutra, para construir um
prédio próprio com quatro andares, na avenida Presidente Vargas. Para
comandar a construção do prédio, Macedo Soares contratou o arquiteto Redig
de Campos. A sede do Diário Carioca tinha requintes surpreendentes. A
cozinha, por exemplo, era a mais luxuosa jamais encontrada em qualquer
jornal do mundo, em alumínio brilhante. Havia salões com colunas de
madeiras exóticas, um jardim de inverno no quarto andar. A sala de José
Eduardo abrigava um busto do próprio dono e, entre outras extravagâncias,
uma mesa negra em S, de ônix, feita especialmente para o “senador”. Em
contrapartida, o equipamento era extremamente precário, pois os homens do
Diário Carioca nunca haviam se preocupado em investir nessa área. Não
havia no prédio nenhum vestígio de laboratório fotográfico. As impressoras
estavam desgastadas e eram insuficientes para imprimir sem sobressaltos um
jornal moderno. Essas deficiências eram compensadas pelo brilho dos
redatores, que escreviam com malícia e ironia, características que fizeram do
Diário Carioca um dos grandes renovadores da linguagem da imprensa
brasileira.
Apesar disso, estava com a saúde financeira abalada, conforme revelou-me
José Jobim naquele almoço no Jockey. A empresa devia bastante dinheiro ao
Banco do Brasil, as máquinas estavam hipotecadas à Caixa Econômica
Federal. E Horácio de Carvalho, que àquela época dirigia de fato a empresa,
mostrava-se decidido a vendê-la. Decidi procurá-lo. Ele me informou que
queria passar adiante a parte gráfica, mas não o jornal. Sem o jornal, sabia
Horácio, a importância social do grupo seria nenhuma. Expliquei-lhe que o
que me interessava era justamente a gráfica. Ele me propôs que assumisse as
dívidas do jornal com o Banco do Brasil e a Caixa Econômica. Eram quantias
consideráveis, mas aceitei. Além disso, teria de pagar-lhe outra quantia em
dinheiro e comprometer-me a imprimir o Diário Carioca, gratuitamente,
durante dois anos.
De imediato, eu deveria conseguir trinta mil cruzeiros para assumir o
controle da empresa que controlava a gráfica. O nome da empresa, Érica,
ficaria famosos nos anos seguintes, durante a campanha com a qual meus
adversários tentaram destruir-me.
Só então fui ao encontro de Alzira, para relatar-lhe meus planos com
relação ao jornal e também o teor da conversa que tivera com Horácio de
Carvalho. A filha de Getúlio aprovou inteiramente a ideia de criar um jornal,
mas deixou claro que eu deveria encontrar os recursos sozinho.
– Se você conseguir, pode fazer – resumiu.
Saí em busca de três pessoas que me emprestassem dez mil cruzeiros cada
uma, subscrevendo cotas de ações da Érica. Não tardei a encontrar
financiadores. O primeiro deles foi Walter Moreira Salles, então um jovem
banqueiro em franca ascensão, que mais tarde construiria o império
financeiro liderado pelo Unibanco. Ele emprestara bastante dinheiro ao
Diário Carioca e tinha interesse na recuperação da empresa. Depois, entendi-
me com Euvaldo Lodi, um poderoso empresário paulista sempre ligado à
cúpula da Federação das Indústrias, que ambicionava candidatar-se à
sucessão de Getúlio. O terceiro foi Ricardo Jafet, então presidente do Banco
do Brasil.
Lodi e Moreira Salles, cautelosos, subscreveram as ações, mas logo as
repassaram a terceiros, para evitar complicações futuras. Jafet também adotou
tais cuidados, mas cometeu um escorregão que mais tarde criaria graves
problemas tanto para mim como para ele próprio. Em vez de entregar-me
diretamente os dez mil cruzeiros, Jafet mandou que o Banco Cruzeiro do Sul,
pertencente à sua família, me emprestasse o dinheiro. Em seguida,
redescontou esse título no Banco do Brasil e devolveu a quantia ao Cruzeiro
do Sul. O futuro mostraria que se tratara de uma manobra irremediavelmente
infeliz.
Obtidos os trinta mil cruzeiros, fechei o negócio com o Diário Carioca. Eu
já tinha uma oficina, mas ainda me faltavam recursos para fazer um jornal. Só
agora, nestas memórias, faço uma revelação que mantive em segredo durante
toda a minha vida. Obtive a maior parte desses recursos junto a um homem
que começava a crescer na cena política brasileira: Juscelino Kubitschek.
CAPÍTULO 19

Procurei Juscelino a conselho do jornalista Carlos Medeiros Lima, um


antigo integrante do Partido Comunista que mais tarde se tornaria biógrafo de
Tristão de Athayde. Medeiros Lima era muito bem relacionado em Minas
Gerais, e me acompanhou no encontro com JK em Belo Horizonte. Eu
conhecia Juscelino desde a década de 40, quando prefeito de Belo Horizonte,
mas ainda não tínhamos a intimidade que se consolidaria nos anos seguintes.
Ele acabara de assumir o cargo de governador, e algumas semanas antes eu
lhe havia conseguido uma audiência com Getúlio. JK recebeu-me com a
simpatia de sempre. Expliquei-lhe meus projetos e a necessidade de
conseguir recursos, ressalvando que qualquer ajuda que ele me prestasse
deveria permanecer sob completo sigilo.
– Caso contrário, toda a imprensa ficará contra você – preveni.
Juscelino sabia dos riscos, mas não pareceu preocupado.
– Tenho interesse em ajudá-lo – disse. – De quanto você precisa?
Respondi que precisava de três mil contos, como poderia ter mencionado
outra cifra qualquer: eu não havia feito cálculos precisos para saber
exatamente quanto teria de gastar na primeira etapa do jornal. Ele informou
que determinaria a três bancos ligados ao governo que me dessem, cada um,
mil contos. Os empréstimos sairiam em meu nome, com o aval de Medeiros
Lima. Eram evidentemente transações de caráter político, já que nem eu nem
Medeiros Lima tínhamos condições financeiras de obter tanto dinheiro
daquela forma. O pagamento seria feito em publicidade. Acabei demorando
quase vinte anos para saldar a dívida. Mineiros sabem esperar com paciência.
Rapidamente, consegui na cervejaria Antártica um contrato de publicidade,
acertei outro com o Serviço Social da Indústria, o SESI, onde Euvaldo Lodi
era bastante influente. Descontei os dois contratos no Banco do Brasil,
reunindo mais de oito mil contos. Somados ao que Juscelino me arranjara, era
o suficiente, calculei, para que o jornal sobrevivesse por pelo menos quatro
meses.
Antes de viajar para Belo Horizonte, ainda em março de 1951, tratei de
desligar-me dos Diários Associados. O desligamento se deu numa penosa
conversa com Assis Chateaubriand. Combinamos um almoço no Clube
Internacional, que ficava no 24o andar de um prédio na avenida Rio Branco, e
dividimos a mesa com vários potentados amigos do meu patrão. Terminado o
almoço, pedi-lhe que me acompanhasse até uma janela de onde se avistava
toda a avenida Presidente Vargas, ainda em construção. Perguntei-lhe se
estava vendo um prédio de quatro andares no fim da avenida.
– Sei, aquela caixa de fósforos – comentou Chateaubriand.
Não entendi a comparação.
– É que a rotativa deles só dá doze mil exemplares por hora – explicou
Chateaubriand. – Eles são loucos.
Contei-lhe que acabara de comprar a caixa de fósforos, e que iria fazer um
jornal para Getúlio. Ele me olhou com ar de espanto.
– Na minha idade, o senhor não recusaria essa chance – emendei.
– Desejo-lhe muitas felicidades – disse Chateaubriand. – Mas por que o
senhor não compra os Diários Associados?
O tom de voz e o olhar já traíam o ódio que ele começava a sentir por mim.
– Compraria se o senhor viesse junto – retruquei. – Com o senhor junto,
pago qualquer preço.
– Não tem preço – cortou Chateaubriand.
Subitamente, pareceu apaziguar-se.
– Quero escrever um artigo despedindo-me do senhor – disse-me. – O título
será “O Repórter”. Vou lhe telefonar de madrugada, preciso de alguns dados.
Chateaubriand fez-me então vários elogios, afirmando que via em mim o
repórter que sempre quisera ser. Combinamos que, ao lado do seu artigo, eu
escreveria outro, despedindo-me do jornal. Às quatro horas da madrugada,
conforme prometera, Chateaubriand telefonou, pedindo-me informações
pessoais e dizendo que pretendia escrever seu artigo naquele momento. No
dia seguinte, só saiu publicado o artigo com minha assinatura, repleto de
elogios aos Associados. Quanto ao texto prometido por Chateaubriand, nada.
Ele jamais seria publicado. O primeiro artigo de Chateaubriand a meu
respeito só sairia alguns meses depois, com um título que dá a medida exata
do seu conteúdo: “O Ladrão ”.
Mais tarde, ele alegaria que eu fora um ingrato, já que me custeara a
internação num sanatório para tuberculosos, continuara pagando meus
salários e recebera, em troca, uma traição. São argumentos ridículos. A
verdade é que, ao final de nossa conversa no Clube Internacional, ele vira em
mim uma ameaça a seu império. Eu me havia transformado, portanto, num
inimigo a destruir.
Eu sabia que fundar um jornal fora dos grupos oligárquicos que
controlavam a imprensa significava desafiar um poder desumano, aético,
monopolizador, absolutista. Fui a Getúlio para, mais uma vez, preveni-lo
sobre os perigos que nos aguardavam. Ponderei ao presidente que, como a
reação dos senhores da imprensa seria imediata e brutal, valeria a pena
formar em torno do jornal uma espécie de cinturão social integrado por
nomes da aristocracia brasileira. Todos seriam vice-presidentes da UH S.A.,
denominação comercial da empresa, e poderiam neutralizar parcialmente a
hostilidade das altas rodas sociais. Getúlio concordou, e comecei a convidá-
los. Um dos vice-presidentes seria o jovem engenheiro Luís Fernando
Bocayuva Cunha, o futuro deputado Baby Bocayuva. Menino amado do
Country Club, Baby era genro do ministro Simões Filho e neto de Quintino
Bocayuva, o célebre abolicionista e republicano. O segundo nome convidado
foi Carlos Holanda Moreira, neto de Plácido de Castro, o conquistador do
Acre. O terceiro, Armando Daudt de Oliveira, pertencia a uma
tradicionalíssima família gaúcha. Finalmente, decidi incluir nesse meu
cinturão um padre, Antônio Dutra, ativo militante da política mineira.
Tratei de precaver-me na parte administrativa contratando os serviços de
uma administradora de empresas, uma novidade na época. Isso me
desobrigaria de tarefas com as quais não tinha intimidade. Era um
profissional ousado, tinha audácia, mas me faltava experiência
administrativa. Livre dessas preocupações, concentrei-me no problema do
equipamento e da montagem da equipe de redação. A rotativa, marca Duplex,
não tinha capacidade de ir além de um caderno de doze páginas por vez e dos
vinte mil exemplares de tiragem. Um equipamento off-set comprado por
Macedo Soares nos Estados Unidos estava virtualmente reduzido a sucata.
Mas eu confiava no meu instinto para superar tais dificuldades. E confiava
também no meu talento para formar uma excelente equipe. Não tinha dúvida
alguma de que faria um grande jornal.
Em fins de março, reuni o núcleo da equipe. Meu braço direito,
naturalmente, era Octávio Malta, meu velho companheiro, a quem vinha
fazendo sucessivas consultas desde a conversa com Getúlio em Petrópolis.
Outro combatente de primeira hora era João Etcheverry. Também recrutara
Augusto Rodrigues, que considero o melhor chargista da história da imprensa
brasileira, e mandara buscar em Buenos Aires um diagramador absolutamente
excepcional chamado Andrés Guevara. Guevara, um paraguaio com feições
de índio, era uma figura singularíssima. Usava só camisas de palha de seda,
chapéu, fumava piteira – tinha o jeito típico dos boêmios que frequentavam o
bairro de La Boca, em Buenos Aires. Ele fizera uma revolução na imprensa
argentina, modificando profundamente a fisionomia dos jornais daquele país.
Guevara trouxe outros dois diagramadores argentinos, e começamos a
trabalhar, ainda discretamente, no meu apartamento.
Àquela altura, tínhamos o nome do jornal. Alguns anos antes, eu ouvira o
título “Última Hora” do jornalista Carlos Eiras, secretário de redação do
Diário da Noite. Eiras me contara que, entre 1917 e 1920, circulava no Rio
de Janeiro um jornal com aquele título, editado pelo diplomata Paulo
Hasslocher. Com o fim do jornal, o título passara de mão em mão e acabara
sendo registrado por outro diplomata, o embaixador Abelardo Rojas. Só
soube disso quando decidi utilizar o título. Depois de uma rápida pesquisa,
descobri que já tinha dono. Combinamos um estratagema para adquiri-lo por
um preço baixo: Baby Bocayuva, com seus traços de garoto, iria à procura do
embaixador apresentando-se como estudante e pediria a cessão do título.
Rojas concordou em passá-lo por uma quantia quase simbólica. Mais tarde,
ao saber que o título se tornara meu, o embaixador tentou anular
judicialmente a transação. Não conseguiu.
Na primeira noite em que se sentou conosco, Guevara desenhou em alguns
minutos o logotipo. Depois, voltou-se para mim e decidiu: “Vou dar-lhe a cor
dos seus olhos.” As letras seriam azuis. Eu nem sabia que a velha
impressora do Diário Carioca podia rodar um jornal em quatro cores. Àquela
época, só usavam cores dois jornais brasileiros: A Vanguarda, no Rio, e A
Gazeta, em São Paulo, ambos utilizando o vermelho. A criatividade era
intensa. João Etcheverry sugeriu um slogan que se tornaria célebre: “Um
jornal vibrante, uma arma do povo”. Ofereci um prêmio em dinheiro a quem
sugerisse o melhor título de seção. O vencedor foi Augusto Rodrigues, que
propôs “Na Hora H”; Guevara acrescentou ao título dois olhos imensos, uma
ideia genial.
Sucederam-se noitadas inesquecíveis, ao longo das quais o jornal ia
tomando forma.
Guevara desenhou um jornal com dezesseis páginas. Estava evidente que
Última Hora seria um jornal marcadamente político e favorável a Getúlio,
embora sempre pronto a criticar membros do governo. Decidi que teríamos
muitos colunistas e abordaríamos assuntos habitualmente desprezados pela
imprensa – esporte e polícia, por exemplo. Mas não havia uma receita
definida com clareza. Teríamos de descobrir com o tempo – pouco tempo –
qual era o caminho do sucesso.
Em meados de junho, a equipe estava completa. Recrutei em São Paulo um
respeitado secretário de redação, Nabor Caíres de Brito, outro comunista
histórico. Paulo Silveira, irmão de Joel Silveira, seria uma espécie de chefe
de reportagem. Contratei toda a família de Mário Rodrigues, pai de Nelson
Rodrigues. Paralelamente à montagem da equipe, procurei deixar claros os
vínculos entre o jornal e Getúlio. Na relação dos acionistas da empresa, por
exemplo, figuravam vários parentes de Vargas. E o presidente da Érica era o
embaixador em Washington, Carlos Martins Pereira de Souza.
Composta a redação, começamos a tratar do lançamento. A Última Hora
ainda não circulava, mas eu já colhera inúmeros sinais de que a luta seria
duríssima. Os outros jornais acompanhavam nossa movimentação com olhos
hostis, prontos para o cerco. Eu era um estranho naquele mundo aristocrático,
e eles fariam rigorosamente tudo para expelir-me.
No Brasil dos anos 40 – e assim seria também na década seguinte –, o clube
da imprensa era extremamente restrito, franqueado a umas poucas famílias
eleitas. No Rio Grande do Sul, reinava o Correio do Povo, comandado pelo
jovem Breno Caldas. No Paraná e em Santa Catarina, como em quase todos
os outros Estados, não havia jornais importantes. Em São Paulo, o “Estadão”,
da família Mesquita, já era hegemônico, embora também tivessem influência
A Gazeta, do velho Cásper Líbero, e o tradicional Correio Paulistano, que
fora o porta-voz do Partido Democrático, controlado pelo grupo de Francisco
Morato. No Nordeste e no Norte, só tinham algum peso A Tarde, da Bahia,
pertencente à família Simões, o Jornal do Commercio, de Pernambuco,
controlado pelos Pessoa de Queiroz, e O Liberal, do Pará. Mas os grandes
jornais brasileiros, os que realmente contavam, eram editados no Rio de
Janeiro.
O maior deles era o Correio da Manhã, o poderoso feudo de Paulo
Bittencourt, seguido pelo Diário de Notícias, da família Dantas. O Globo
ainda alcançava repercussão reduzida, e o Jornal do Brasil não passava de
um catálogo de classificados. Havia vários outros jornais, e alguns deles
tinham boa penetração, mas não se podia compará-los de modo algum com o
que representavam os grandes, sobretudo o Correio da Manhã. Nos anos
seguintes, o Brasil assistiria à escalada dos Diários Associados, liderados por
Assis Chateaubriand, que conseguiu ingressar no fechado clube dos donos da
imprensa e tornar-se um de seus mentores. Havia veementes indicadores de
que meu ingresso nesse grupo de privilegiados seria muito mais difícil.
Minha chegada ao clube, afinal, representava a queda de vários tabus – a
começar pela minha origem de menino pobre do Bom Retiro. Outro tabu era
que, no Brasil, ao contrário do que ocorre em países civilizados, o jornal era a
voz do seu dono. Sempre foi assim, é assim ainda. O “Estadão”, por exemplo,
reflete os humores, idiossincrasias, valores e preconceitos dos Mesquita. A
Folha de São Paulo é a família Frias, O Globo é Roberto Marinho, o Jornal
do Brasil é a família Nascimento Brito. No começo dos anos 50, essa
distorção era ainda mais acentuada. Trata-se de uma distorção que ocorre
com mais frequência e nitidez nos países sem tradição de partidos fortes. Nos
Estados Unidos, por exemplo, um leitor do New York Times sabe que o
jornal em geral se alinha com as teses do Partido Democrata, da mesma
forma que um leitor inglês tem consciência de que determinadas publicações
refletem os pontos de vista do Partido Trabalhista ou do Partido Conservador.
Nesses países, os leitores não são ludibriados. No Brasil é diferente. Por trás
da aparente independência que ostentam, já que não são ligados a partidos, os
jornais são o que seus donos desejam que sejam. A Última Hora representaria
uma exceção a essa regra, na medida em que pretendia transformar-se na
expressão do getulismo. Evidentemente, eu influiria na linha do jornal, mas
ele não obedeceria exclusivamente a meus interesses, impulsos, ódios e
amores, como acontecia, por exemplo, com o Correio da Manhã.
Paulo Bittencourt tinha um poder equivalente ao dos barões feudais da
Idade Média, até porque o Brasil daqueles tempos abrigava uma sociedade
colonial, desprotegida, indefesa. Para a massa popular, repleta de analfabetos,
a imprensa era algo inacessível, misterioso, poderosíssimo. “Saiu no jornal”,
dizia-se, num tom de quem afirma uma verdade incontestável, irremovível.
Era natural que, na sociedade dirigente, o dono do jornal tivesse status de
marajá. A imprensa era tratada como uma parcela do Olimpo, fenômeno que
aliás se manifesta ainda hoje e abrange também repórteres. Quando um
jornalista leva uma surra, o mundo vem abaixo. Mas a indignação é
infinitamente menor se quem apanha é, por exemplo, um líder operário. Nos
anos 50, essa postura imperial da imprensa era muito mais aguda, e não há
ninguém melhor que Paulo Bittencourt para ilustrá-la.
Ele era um aristocrata, educado em Oxford, refinadíssimo, extremamente
cosmopolita. Tinha uma cultura culinária de fazer inveja a qualquer gourmet,
era um homem que lia muito. Herdara o jornal de seu pai, Edmundo
Bittencourt, que lhe legara também uma corte formada por velhos políticos e
jornalistas, liderada pelo senador Costa Rego, redator-chefe do Correio da
Manhã por quase quarenta anos. A certa altura da vida, Paulo apaixonou-se
por Niomar Muniz Sodré, que abandonou o marido, pertencente a uma velha
família baiana, para viver com o dono do Correio da Manhã. Como não havia
divórcio, eles não podiam se casar. Mas Niomar, mulher caprichosa, não
queria que os dois se hospedassem nos grandes hotéis internacionais
apresentando passaportes com sobrenomes diferentes. Pois Paulo Bittencourt
conseguiu que o Itamaraty dispensasse sua mulher da apresentação da
indispensável certidão de casamento e lhe desse um passaporte novo em
nome de Niomar Muniz Sodré Bittencourt. Não parou aí. Em seguida, Paulo
Bittencourt resolveu que o filho do primeiro casamento de Niomar deveria
ser entregue à mãe, embora ela tivesse abandonado o lar e perdido, portanto,
esse direito. Estávamos em plena ditadura do Estado Novo e Paulo divergia
de Getúlio, mas se entendia bem com Benjamim Vargas. O dono do Correio
da Manhã pediu ajuda ao irmão do ditador, e Benjamim resolveu a questão à
sua moda: mandou a polícia sequestrar o ex-marido de Niomar e aplicar-lhe
uma surra inesquecível. O pai achou prudente entregar rapidamente a criança.
Quando ainda era repórter dos Diários Associados, eu frequentava a casa de
Paulo Bittencourt. Em março de 1951, estávamos em sua casa quando ele
soube que eu pretendia fundar o jornal. Lembro-me de que, nessa conversa,
Paulo foi sarcástico, irônico, mas ainda assim tive a impressão de que ele não
me hostilizava. Enganei-me. Quando se fechou o cerco à Última Hora, Paulo
Bittencourt estava entre os que exigiam a exclusão do intruso.
Alguns anos depois, quando lancei a Última Hora no Rio Grande do Sul,
tive um incidente bastante revelador. Meus adversários sustentavam a tese de
que eu só conseguira fundar um jornal por ter recebido ajuda do Banco do
Brasil. Na cerimônia de lançamento da Última Hora gaúcha, embrião da atual
Zero Hora, o jornalista encarregado de me saudar encampou indiretamente
essa tese. No discurso, ele afirmou que eu tinha revolucionado a imprensa
brasileira, mas fez uma ressalva pouco elegante: “... é verdade que com a
ajuda do governo federal”. Fiquei aborrecido e resolvi retrucar em meu
discurso de agradecimento. Nunca fui orador, ficava trêmulo quando forçado
a falar em público. Mas eu precisava devolver aquela farpa. Expliquei que o
auxílio a que aludira o jornalista gaúcho fora muito menor do que se
imaginava, lembrei que tivera de utilizar máquinas velhas, historiei as
dificuldades que cercaram o lançamento de Última Hora. Mas observei, em
tom irônico, que não dizia aquilo para me explicar – nada disso. O que eu
queria era aconselhar a todos que me ouviam que se tornassem donos de
jornal.
“Não há nada melhor no Brasil”, afirmei, e passei a oferecer exemplos
ferinos, sem mencionar nomes. Não era necessário: todos sabiam de quem eu
falava. “Um dono de jornal pode ser alcoólatra e será tratado pela sociedade
como homem sóbrio”, exemplifiquei. Era Paulo Bittencourt. Pode ser um
assassino, e será recebido como cidadão respeitável. Era Tenório Cavalcanti,
dono da Luta Democrática. Pode ser um gângster, e será encarado como
exemplo de austeridade. Era Assis Chateaubriand. Enfim, pintei o dono de
jornal como uma pessoa acima do bem ou do mal, fora do alcance da lei. Era
nesse clube que eu tentaria entrar em 1951, sem saber com precisão o que me
aguardava.
Desse clube já fazia parte Carlos Lacerda. Ele fundara a Tribuna da
Imprensa em dezembro de 1949 e se juntara ao círculo dos donos de jornais
sem grandes problemas, basicamente por duas razões. Primeiro, porque
estava evidente desde o início que a Tribuna da Imprensa jamais seria uma
grande publicação. Depois, porque Lacerda há muitos anos defendia, e
continuaria a defender, os interesses e pontos de vista dos barões da
imprensa. Estava longe, portanto, de ser um estranho naquele meio.
Lacerda sabia polemizar, tinha uma riqueza verbal avassaladora, mas não
era um grande jornalista, na medida em que desconhecia setores vitais da
atividade profissional. Gostava de passar horas sentado diante da máquina de
escrever, datilografando furiosamente, mas nunca se interessou, por exemplo,
em conhecer por dentro uma oficina. Tampouco sabia cuidar de uma primeira
página, escolher a melhor foto, retocar uma diagramação. De qualquer forma,
ele conseguiu forjar uma imagem de grande jornalista. Tanto assim que, nos
anos 40, foi convidado por Assis Chateaubriand para dirigir a Meridional, a
agência de notícias dos Diários Associados. Chateaubriand pretendia, numa
etapa seguinte, passar-lhe a tarefa de reformar os jornais da cadeia. Mas
Lacerda não se deu bem na Meridional e o plano foi esquecido por
Chateaubriand.
Ele fixou essa imagem de grande jornalista sobretudo quando passou a
integrar a equipe de articulistas do Correio da Manhã. Era uma equipe
famosa, em que brilhavam com especial fulgor os articulistas que escreviam
na segunda página e os responsáveis pelos editoriais da quarta página.
Lembro-me de que, certa vez, Getúlio me disse que não conseguia ficar sem a
leitura da quarta página do Correio da Manhã – a geração de políticos a que
ele pertencia fora estreitamente influenciada pelos artigos do jornal de Paulo
Bittencourt. Lacerda escrevia uma coluna na segunda página cujo título era
“Tribuna da Imprensa”. Em 1949, em consequência de um desentendimento
com Paulo Bittencourt, deixou o Correio da Manhã, mas levou o título da
seção. Imediatamente, seus amigos da direita brasileira se mobilizaram para
que Carlos Lacerda tivesse o seu próprio jornal.
Tristão de Athayde, por exemplo, publicou no Correio da Manhã um artigo
com o título “Um jornal para Carlos”. O tom era de quem pedia um exército
para Napoleão. Carlos já se tornara a menina dos olhos da direita brasileira,
era adorado por dom Hélder Câmara, venerado por Tristão de Athayde.
Ambos haviam tido passagens pelo integralismo, mas seu entendimento com
Plínio Salgado nunca fora completo. Plínio Salgado era a extrema direita, o
chefe da sucursal do nazifascismo, algo já superado. Lacerda era diferente.
Ele encarnava a direita consciente, ideológica, mais civilizada, de colarinho
branco e inclinações religiosas.
Nesse artigo, Tristão de Athayde sustentou a tese de que o Brasil não
poderia dar-se o luxo de permitir que Lacerda ficasse sem um jornal, e
anunciou o lançamento de uma campanha de arrecadação de fundos. As
subscrições foram feitas nas portas das igrejas, e o dinheiro começou a surgir.
Naturalmente, havia acionistas mais poderosos, políticos ligados à UDN,
empresários vinculados aos interesses americanos. Mas o fato é que a
Tribuna da Imprensa nasceu pelas mãos da direita católica. Do conselho
diretor faziam parte, por exemplo, nomes como os de Tristão de Athayde,
Sobral Pinto e Dario de Almeida Magalhães.
Antes de fundar seu jornal, quando escrevia no Correio da Manhã, Carlos
não perdia chances para me atacar. Já era notório que não gostava de mim –
aliás, parecia não gostar da humanidade em geral –, e estava evidente que os
laços da amizade que mantivemos na adolescência jamais seriam reatados.
Com a Tribuna da Imprensa, a intensidade e a frequência dos ataques
aumentaram. Eu procurava ignorá-los, por considerar seu autor um policial,
um delator, a expressão mais nefanda da direita brasileira. Quando a Última
Hora nasceu, o ódio de Lacerda por mim exacerbou-se dramaticamente.
Vejo aí algumas razões de claro fundo psicológico. Em seu livro de
memórias, Carlos, embora reconhecendo que eu era um homem muito
inteligente, muito charmoso, insiste na tese de que eu possuía uma ignorância
monumental. Para ele, não saber de cor trechos de Leon Tolstoi era ser um
ignorante irremediável. Eu era autodidata, e Carlos não podia aceitar que
alguém com a minha biografia fizesse sucesso. Essa frustração foi agravada
pela medíocre trajetória da Tribuna da Imprensa, cuja tiragem sempre
oscilaria em torno de quatro, cinco mil exemplares. O jornal de Lacerda foi
sempre um desastre. Sua circulação só subia um pouco nos momentos de
crise, ou quando o dono era preso. A Tribuna é conhecida, na imprensa
brasileira, como um jornal que jamais chegou a existir efetivamente. Desde o
começo, mostrou um desprezo invencível por tudo quanto fosse popular –
futebol, por exemplo. Teve, enfim, um mau começo e um mau destino.
Quando a Última Hora nasceu, Carlos Lacerda foi assaltado por um ódio
ferocíssimo, permanente. Era preciso destruir meu jornal, sob o pretexto de
que a Última Hora representava uma ameaça à imprensa brasileira. Na linha
de raciocínio de Lacerda, era preciso provar que a Última Hora recebera
irregularmente dinheiro do governo, para liquidar o jornal e, em seguida,
destruir Getúlio Vargas. Ele não me faria mal algum, entretanto, se contasse
exclusivamente com seu próprio jornal – a Tribuna da Imprensa não
encontrava ressonância, era uma ficção jornalística. O problema é que
Lacerda logo seria auxiliado por Assis Chateaubriand, que lhe franquearia o
acesso à TV Tupi, e por Roberto Marinho, que pôs a Rádio Globo à sua
disposição. No seu livro de memórias, por sinal, Lacerda afirma que, ao
receber esse tipo de ajuda, sentiu-se invencível.
Eu devo a minha projeção histórica, basicamente, a três fatos. O primeiro
foi ter resgatado na fronteira gaúcha um homem que chegaria à Presidência
da República nos braços do povo. O segundo foi ter encontrado um inimigo
como Carlos Lacerda. O terceiro, que só mais tarde eu compreenderia em
suas reais e enormes dimensões, foi ter criado um jornal tão revolucionário
que sobreviveria a campanhas de extermínio e crises de todos os tipos. Eu
não vislumbrei a brilhante trajetória que a Última Hora teria no dia do
lançamento do jornal. O lançamento foi planejado para fazer de Última Hora
uma esplêndida novidade. Mas o dia em que o jornal saiu às ruas pela
primeira vez – 12 de junho de 1951 – marcaria um dos mais retumbantes
fracassos de minha vida.
CAPÍTULO 20
A campanha de divulgação que precedeu o lançamento do jornal foi
organizada por João Etcheverry, superintendente da Última Hora. Uma
esplêndida figura. Em 1935, ainda como bancário, ele participara da rebelião
comunista. Depois, trabalhou como jornalista em algumas publicações
radicais. Etcheverry foi um dos responsáveis diretos pela explosão da Última
Hora no mundo da imprensa brasileira, graças sobretudo à sua vibração
permanente. Era, essencialmente, um homem vibrante. E, apesar do seu
refinamento, tinha uma notável percepção da alma popular. Meio francês,
meio basco, era dono de um temperamento extremamente romântico. Essas
virtudes contribuiriam para que nos tornássemos muito amigos. Minha
ligação com Etcheverry seria de completa intimidade. Ele às vezes me
passava pitos incríveis, censurava-me certas atitudes como só os grandes
amigos podem fazer.
Embora fosse um pouco prolixo, Etcheverry escrevia maravilhosamente.
Mas era muito mais que um jornalista – na verdade, ele foi uma das almas do
jornal, e a mais vibrante entre todas, conforme demonstrou na campanha de
lançamento. Fez coisas inesquecíveis. No topo de um dos mais altos prédios
na praia do Flamengo, por exemplo, Etcheverry colocou uma enorme faixa
com duas palavras: Última Hora. Depois, conseguiu que cada teatro do Rio
de Janeiro reservasse um minuto do espetáculo para anunciar o iminente
surgimento da Última Hora, “o jornal do povo que iria nascer”. Ele tinha um
inacreditável poder de mobilização. Organizou desfiles de misses, fez um
barulho terrível. Assim, à medida que se aproximava o dia do lançamento,
crescia a ansiedade nacional pela aparição da Última Hora.
Decidimos que os exemplares do jornal seriam entregues diretamente às
bancas dos jornaleiros, uma novidade revolucionária para a época, e
compramos oito caminhonetes. Para dar a impressão de que a frota era muito
maior, pintamos números altos na lataria – 36, 42 e assim por diante. A 12 de
junho de 1951, quando a primeira edição da Última Hora finalmente chegaria
às ruas, Etcheverry teve outra ideia: fez as caminhonetes desfilarem pela
avenida Rio Branco e pela avenida Atlântica, num cortejo que deixou ainda
mais inquietos nossos concorrentes.
A edição deveria estar impressa às onze e meia da manhã. A redação
fervilhava desde cedo, todos envoltos numa tensa expectativa. Então,
constatamos que a rotativa claudicava. A certa altura, ainda pela manhã, a
máquina funcionou e rodou o primeiro exemplar da Última Hora. Muito
emocionado, tive um acesso de choro. A rotativa pifou novamente, para
funcionar aos arrancos algum tempo depois. Foi assim durante praticamente o
dia inteiro, e só às oito da noite a edição ficou pronta. Um completo desastre.
Àquela hora, o que fazer com a tiragem de oitenta mil exemplares? Era uma
cifra impressionante para a época, já que os grandes jornais oscilavam em
torno dos sessenta ou setenta mil. Como havia um jogo noturno no Maracanã,
decidimos distribuir a edição à saída do estádio, e mergulhar na edição do dia
seguinte.
O jornal tivera um parto sobressaltado, mas tive a intuição de que ocorrera
um lançamento histórico. Em vez do previsível editorial de apresentação, a
primeira página trazia uma carta de Getúlio Vargas para Samuel Wainer. Eu
pedira a Getúlio que escrevesse a carta, decidido a vincular o jornal desde o
berço ao presidente eleito pelo povo. “Meu caro amigo Samuel Wainer”,
começava a carta, que depois se estendia em considerações sobre o conceito e
a importância de uma imprensa popular. Jamais, em qualquer país do mundo,
um jornal fora apresentado aos leitores por um presidente da República.
Descobri mais tarde que, lamentavelmente, parte da carta fora escrita por
Lourival Fontes, então chefe da Casa Civil. De qualquer forma, Vargas a
assinara como se a tivesse escrito por inteiro, e o texto resumia o que deveria
ser um jornal moderno.
No outro dia, tiramos quarenta mil exemplares e vendemos pouco mais de
oito mil. Seria assim também nas edições seguintes. Fiquei assustado, até
porque senti que o jornal não estava bem, embora tivesse coisas boas, que
logo alcançariam enorme sucesso. Uma delas era a grande foto na primeira
página, que se tornaria uma das marcas registradas da Última Hora. Outra era
a seção “O Dia do Presidente”. Eu resolvera colocar ao lado de Getúlio,
durante o dia inteiro, o jornalista Luís Costa, um dos meus mais importantes
redatores. Os leitores imediatamente compreenderam que aquela era a única
janela disponível para a contemplação do cotidiano de Getúlio, já que todos
os outros jornais haviam aderido à conspiração do silêncio. Graças a “O Dia
do Presidente”, aliás, o cerco foi rompido: fustigada pelos sucessivos furos
obtidos pela Última Hora no Palácio do Catete, a grande imprensa teve de
render-se à evidência de que não lhe seria possível seguir ignorando a figura
de Getúlio Vargas. Havia, portanto, coisas boas em meu jornal, mas eu ainda
não encontrara a receita do sucesso.
Foram dias de enorme aflição. Eu passava dias e noites na redação, dormia
lá, almoçava lá, jantava lá. Tinha medo de perder o apoio de Getúlio – afinal,
o instrumento que eu lhe prometera não estava funcionando com a desejada
eficácia. Ele continuava a tratar-me com muito carinho, mas eu sabia que já
começavam a tentar intrigar-me com o presidente. Sabia que alguns de seus
auxiliares apressavam-se em transmitir-lhe informações sobre a situação
difícil da Última Hora. Mais tarde, eu aprenderia que os grandes jornais
sempre têm uma infância difícil, complicada. Naquele momento, porém, eu
suspeitava de que caminhávamos para o fracasso irremediável.
A Última Hora foi salva pela conjugação de vários fatores – muito
trabalho, enorme dedicação, bastante talento –, mas nenhum deles pesou tão
decisivamente quanto a criatividade. Começamos a lançar seções novas,
colocamos notícias esportivas e policiais na primeira página, ousamos
permanentemente. Dessa forma, lentamente, fomos descobrindo os caminhos
que levam aos leitores, e iniciamos uma lenta ascensão, cujo potencial nossos
concorrentes não souberam avaliar a tempo. Nesse período, os outros jornais
não me atacavam. Preferiam zombar do judeuzinho que tivera a pretensão de
ocupar seu próprio espaço na imprensa brasileira.
Hoje, ao fazer um balanço daqueles primeiros tempos, constato que escapei
a uma notável sucessão de perigos. Apesar das debilidades da natureza
humana, consegui inventar um jornal que resistiu a tudo quanto o poder incita
e estimula – a corrupção pessoal, a corrupção intelectual, a corrupção social.
Mas esta é outra história, de que trataremos adiante. Em meados de 1951, eu
tinha de descobrir que espécie de jornal, afinal, o Brasil desejava.
Os ingredientes da receita do sucesso se foram juntando aos poucos, e
quase todos resultaram do instinto jornalístico que a equipe da Última Hora
indiscutivelmente possuía. A criação da seção “O Dia do Presidente” por
exemplo, foi considerada genial mesmo por meus adversários. Essa seção
mudou para sempre os critérios que orientavam a cobertura do que ocorria na
sede do governo. Desde os tempos do Departamento de Imprensa e
Propaganda, o DIP, que remetia aos jornais as notícias que interessavam ao
governo e proibia a divulgação de tudo quanto considerasse inconveniente,
desaparecera o hábito da busca de informações no próprio palácio. Além do
mais, como já frisei nestas memórias, os jornais pretendiam manter-se de
costas para Getúlio, ignorando-o e a seu governo. Pressenti que havia no
Catete um grande filão a explorar – e acertei.
“O Dia do Presidente”, que criei inspirado em colunas que vira na imprensa
americana, era publicado na página 3. A seção invariavelmente trazia
informações precisas, historietas humanas, acontecimentos engraçados,
eventualmente furos. O responsável por ela, Luís Costa, um talentoso
jornalista piauiense que morreria muito moço, entrava no Palácio do Catete às
oito da manhã e só voltava à redação quando o jornal estava no limite do
horário para fechamento da edição. A seção foi publicada diariamente até o
dia do suicídio de Getúlio Vargas – naquele momento, decidimos extingui-la.
Ao desaparecer, ela já se transformara numa “instituição nacional”, conforme
a chamara o Correio da Manhã num editorial publicado meses depois de
criado “O Dia do Presidente”.
Esse editorial oficializou a consagração de uma seção que àquela altura já
alcançava enorme sucesso. Os leitores compravam o jornal e corriam à
terceira página. Políticos ofereciam fortunas a Luís Costa para ter seu nome
ali citado, ministros e parlamentares se confessavam admiradores da seção,
ninguém duvidava de que ali estava um termômetro preciso do que se
passava no palácio. Em pouco tempo, os jornais se renderam às evidências e
passaram a cobrir o Catete. Alguns chegaram a criar versões de “O Dia do
Presidente”, e o cerco do silêncio afinal se rompeu. Encerrava-se aí a
primeira parte da minha tarefa: provocar a imprensa até obrigá-la a enxergar a
existência do governo Getúlio Vargas.
Havia outras seções já adotadas sem restrições pelos leitores. Uma das mais
bem-sucedidas era “Na Hora H”, com notas curtas e sempre quentes, assinada
por Jacinto de Thormes. Repórteres como Edmar Morel começaram a tornar-
se figuras nacionais. Os editoriais, redigidos por Octávio Malta – eu ainda
não me sentia suficientemente seguro para escrevê-los –, tinham peso
crescente. A cobertura internacional ganhou consistência, introduzimos uma
coluna sindical que logo se tornou importante. Três meses depois do
lançamento, podíamos respirar sem tantas dificuldades. A tiragem começou a
crescer e, em poucas semanas, chegamos aos dezoito mil exemplares.
Lembro-me perfeitamente do dia em que alcançamos essa marca. O chefe
da oficina da Última Hora era o célebre Raimundo Português, uma figura
lendária da imprensa. Tuberculoso crônico, anarco-sindicalista, Raimundo
Português assistira ao nascimento e, muitas vezes, à morte de dezenas de
jornais. Era, decididamente, um homem do ramo e conhecia seu ofício como
poucos. Nesse dia, ele acercou-se de mim para uma observação que jamais
esqueci:
– Seu Samuel, o jornal está começando a ficar vitorioso. No Brasil, jornal
que passa dos quinze mil exemplares virou macho.
Senti-me extremamente aliviado ao constatar que saíra dos tempos de
sufoco. Mas não me bastava: eu queria um jornal de massa, prometera a
Getúlio e a mim mesmo um jornal de massa. Isso, até aquele momento, a
Última Hora não era.
O sonho do jornal de massa começou a materializar-se graças a uma ideia
magnífica de João Etcheverry. Num dia qualquer, Etcheverry sugeriu-me que,
em vez de um único caderno com doze páginas, como fazíamos até então,
publicássemos dois cadernos com oito páginas cada um. O primeiro caderno,
que seria rodado por volta das sete horas da manhã, conteria as seções
convencionais – política, economia, internacional, assuntos nacionais etc. O
segundo caderno, que rodaria antes, por volta das três da madrugada, seria
reservado a assuntos mais amenos, como esportes e divertimentos. Poderia
também abrigar, como sugeriu Etcheverry, reivindicações populares.
Reivindicações populares seriam as palavras-chave do estrondoso sucesso
do segundo caderno, graças a mais uma das providenciais coincidências que
marcaram a vida da Última Hora. Quando estávamos tratando de dar forma à
feliz sugestão de Etcheverry, apareceu na redação um tipo pitoresco,
chamado Renato Correia de Castro, halterofilista e funcionário do Ministério
da Agricultura. Como tinha algum tempo de sobra, queria um emprego no
jornal – trabalhar na imprensa, naquela época, era considerado um bico.
Etcheverry decidiu providenciar uma mesinha para Renato e designá-lo para
atender a populares interessados em fazer alguma reivindicação ou alguma
queixa. Nosso novo funcionário adotou o pseudônimo de “Marijô”, em
homenagem a duas namoradas, Maria e Josefa. E começou a fazer suas
anotações numa linguagem extravagante, utilizando de modo pouco ortodoxo
a letra K. “Ke Koisa!”, escrevia Marijô ao registrar um fato qualquer.
Etcheverry achou que deveríamos criar uma seção com o nome de “Fala o
Povo” e usar no texto a peculiar linguagem de Marijô. Foi uma explosão. Iam
para o céu, na seção, os benfeitores do povo, e para o inferno, seus inimigos.
“Hoje vai pro inferno o diretor de tal repartição porque mandou cortar a luz
de fulano”, decidia, por exemplo, Marijô. A comunicação com os leitores foi
imediata e total.
As inovações não paravam. Um dia, meu chefe de gravura, Carlos
Nicolaievsky, que fazia milagres com minha primeira rotativa, fez-me a
sugestão:
– Vamos publicar a foto do time do Fluminense em cores?
O Fluminense acabara de conquistar o título de campeão carioca. Fiquei
perplexo com a sugestão.
– É impossível – retruquei.
Eu não sabia que nosso equipamento poderia imprimir uma foto em quatro
cores.
– É possível, sim – insistiu Carlinhos Nicolaievsky.
Dei-lhe o sinal verde e, pela primeira vez na história da imprensa brasileira,
a foto colorida de um time de futebol saiu na primeira página de um jornal. A
edição esgotou-se rapidamente e eu descobri a cor, que seria um dos
ingredientes mais picantes da receita de sucesso da Última Hora.
A ousadia era uma característica da Última Hora tanto no plano da redação
quanto na parte técnica. Comecei a preocupar-me com a rotativa. Ela fora
idealizada para rodar três mil exemplares por hora, mas estava rodando doze
mil. Era um milagre, uma ajuda dos céus que a qualquer momento poderia
faltar-nos. Como a rotativa tinha duas bocas, tirávamos de uma o primeiro
caderno e, da outra, o segundo. Era muita coisa para uma máquina só. Achei
conveniente arranjar-lhe companhia. Fui ao Banco do Brasil e consegui 22
mil cruzeiros. Com o dinheiro, consegui uma nova rotativa, equipei a oficina
com mais linotipos e montei um requintado laboratório fotográfico. O
laboratório ficou sob o comando de Roberto Maia, um dos únicos
profissionais que eu trouxera dos Diários Associados – o outro fora Augusto
Rodrigues. Maia pode ser considerado o pai da moderna fotografia brasileira.
Tinha um talento excepcional, e ajudou-me a valorizar o uso de fotos
jornalísticas como nenhuma outra publicação fizera antes.
O empréstimo que levantei no Banco do Brasil fora perfeitamente legal,
embora deixasse margem a que me acusassem de favorecimento. Ainda
estávamos em 1951, e os ataques à Última Hora, apesar de frequentes, não
haviam adquirido o tom hidrófobo que assumiriam mais tarde. O dinheiro
que eu obtivera no Banco do Brasil adensou as nuvens da tempestade. Meus
concorrentes começaram a suspeitar de que os cofres federais, sempre
generosos para com eles, poderiam restringir-se a beneficiar exclusivamente a
Última Hora. Mais grave ainda, os donos dos outros jornais já haviam notado
que a Última Hora ganhava solidez e ameaçava o império. O tempo das
ironias passara; agora, eles me temiam.
Apesar das farpas que os concorrentes frequentemente soltavam contra
mim, dos ataques infundados, das insinuações perversas, continuei a circular
entre os donos de jornais ao longo de 1951. Eu me considerava, naquele
clube, um hóspede tolerado. Fazia parte do sindicato dos patrões, mas evitava
frequentá-lo; quando havia alguma reunião importante, a Última Hora
enviava como representante o Baby Bocayuva. A distância que me separava
de meus supostos parceiros, uma distância notável desde o começo, foi-se
ampliando à medida que ficava evidente a diferença entre nossos caminhos.
Meu comportamento sempre irritou os sócios do clube. Resolvi, por exemplo,
investir na redação, um pecado mortal para homens habituados a aplicar em
outras frentes e atividades os lucros que extraíam dos seus jornais.
Quando a Última Hora foi lançada, meus concorrentes não gostaram de
saber que havia nas paredes três painéis de Di Cavalcanti, especialmente
encomendados por mim. Também não gostaram de saber que eu mandara
fazer mesas especiais para os redatores, móveis de muito bom gosto. Para
aumentar a aflição dos concorrentes, eu decidira inflacionar os salários dos
jornalistas da Última Hora, pagando salários muito acima dos padrões da
época. Mas nada foi mais irritante para os donos dos outros jornais que a
solução que encontrei para resolver o problema do suprimento de papel.
Durante algum tempo, tive de comprar papel no mercado negro. Naquela
época, a produção brasileira de papel era insignificante, e o país tinha no
Canadá seu único fornecedor. Durante a Segunda Guerra, o Brasil deixara de
receber papel de suas fontes habituais, todas baseadas na Escandinávia, e
passara a recorrer ao Canadá. Alguns anos depois, os donos dos jornais
brasileiros descobriram que a Escandinávia poderia voltar a supri-los a preços
mais baratos, e resolveram romper os contratos assinados com os canadenses,
a menos que estes concordassem em reduzir o que cobravam. O Canadá
limitou-se a repassar para os Estados Unidos os excedentes gerados pela
atitude brasileira e a colocar o nosso país na lista negra dos maus devedores.
Pouco depois que o Canadá deixou o mercado, os escandinavos elevaram o
preço do papel. Como os brasileiros figuravam na lista negra dos canadenses,
ficamos em má situação.
Eu ainda comprava o produto no mercado negro, porque a quota a que teria
direito não fora oficializada, quando recebi um recado de meu amigo João
Alberto, que então cuidava dos interesses comerciais do Brasil junto ao
Canadá. João Alberto contou-me que havia sido procurado por representantes
de um grupo de judeus americanos que trazia uma proposta interessante. Esse
grupo acabara de comprar uma fábrica de papel no Canadá e, como se julgava
sem compromissos com os demais produtores, estava disposto a vender a
brasileiros. Aquela notícia caíra do céu. Comuniquei a João Alberto que a
proposta me interessava bastante. Dias depois, fui procurado por um grego
cuja figura se encaixava à perfeição no perfil do especulador internacional.
Ele informou que poderia fornecer-me papel a preços bastante inferiores aos
dos escandinavos, mas o contrato deveria ter a duração de cinco anos. Seriam
cinco milhões de dólares, um milhão por ano. Concordei.
Havia outra exigência: seria necessário conseguir a garantia cambial do
Banco do Brasil. Ou seja, eu depositaria a quantia correspondente em
cruzeiros no banco, que faria a conversão em dólares e consumaria o
pagamento aos meus fornecedores. Fui a Getúlio explicar-lhe os detalhes do
negócio, mostrando-lhe que aquela compra de papel canadense poderia forçar
a baixa geral de preços no mercado. Ele não entendeu bem do que se tratava,
mas me autorizou a procurar o presidente do Banco do Brasil, Ricardo Jafet.
Jafet concordou com o negócio e comprei o papel canadense. Essa transação
com o banco me traria enormes problemas no futuro. Não houvera nenhuma
irregularidade na obtenção da garantia cambial, mas Carlos Lacerda
imediatamente começou a difundir a tese de que eu fora financiado pelo
Banco do Brasil.
A tempestade em formação, de qualquer maneira, só desabaria sobre mim
no início de 1952. Tive problemas em 1951, mas cheguei ao final de
dezembro com a sensação de que vivera um ano extraordinariamente
positivo.

(carta de Getúlio Vargas publicada no primeiro número de Última Hora:

Rio de Janeiro, 1º de Junho de 1951.

Prezado amigo Samuel Wainer

Venho agradecer-lhe a carta que me enviou e na qual me comunica o


próximo lançamento do seu jornal “A ÚLTIMA HORA”. Fazendo votos pelo
completo êxito desse empreendimento, que há de constituir, por certo, um
novo marco de progresso na imprensa brasileira, apraz-me dizer-lhe que
muito espero de um jornalista do seu valor, sereno, inteligente, objetivo,
sempre capaz de bem escolher os assuntos, expô-los com clareza,
simplicidade e elegância, sentindo o que diz e sabendo dizer o que sente. Na
realidade, gosto de ser interpretado, combatido, discutido ou louvado por
espíritos isentos e desinteressados – que sabem enaltecer, nos homens
públicos, os atos merecedores de elogio, criticar, quando precisam ser
esclarecidos ou corrigidos, ou censurar quando são reprováveis ou errôneos.
Quem quer que exerça uma parcela de atividade pública aprecia sempre a
crítica de imprensa, quando esta se faz com lealdade e com o propósito
sincero de esclarecer ou corrigir. O que nos fere é a desleal e mal-
intencionada deturpação dos fatos, é o premeditado silêncio quando algo
existe que merece incitamento e louvor. Há os que confinam o exercício da
profissão à prática dum sacerdócio. Mas existem também, como exceções
deprimentes e irreconciliáveis com o nosso ambiente político, os que fazem
da imprensa um instrumento suspeito de mercantilismo e de venalidade, os
que se especializam na invectiva desabrida, os que se abastardam na
linguagem da intriga e da calúnia, os que deturpam os fatos ao sabor da sua
imaginação pervertida e os que procuram confundir o bem geral com o
facciosismo dos seus pendores e a estreiteza dos seus interesses
personalistas. Mas entre esses e o público já se levantou uma espécie de
incompatibilidade irremediável e de quarentena moral. Não têm ascendência
de opinião, e falhos de ética profissional, constituem elementos nocivos e
influências perniciosas que o próprio organismo social expele do seu seio
por um instinto natural de defesa profilática. Doutro lado, os governantes
ignoram fatos prejudiciais ao interesse público, que só a crítica justa e
honesta da imprensa pode denunciar numa verdadeira, útil e patriótica
colaboração.
Nenhuma contradição existe – já o afirmei uma vez – entre o exercício da
crítica honesta e as atribuições do poder público. Ao contrário, muito pode
esperar o Governo da atuação dos jornais que lhe analisam os atos – com
isenção de ânimo e justeza de conceitos. A imprensa, respeitada pelo
equilíbrio dos seus comentários, com autoridade de opinião, pode influir
proveitosamente no encaminhamento dos assuntos político-administrativos.
Houve época em que a política absorveu por tal forma o jornalismo, que
este se tornou ora oficioso, defensor intransigente do Governo, ora
insultuoso e ao arbítrio da paixão.
Não havia alternativa além do apoio incondicional ou da oposição
sistemática. O jornal não era uma tribuna de ensinamento, mas um
pelourinho de reputações. Imprensa governista e imprensa de oposição se
dividiam em dois campos adversários de feição intolerante e apaixonada,
onde eram impossíveis a crítica serena e a visão superior dos problemas de
Estado. Já vai bem longe esse tempo, e a distância que dele nos separa deve
encher-nos de conforto e segurança.
A maioria da imprensa, em suas linhas gerais e através dos seus órgãos
mais representativos, sabe manter-se num nível superior de crítica objetiva,
onde ressaltam a experiência, o equilíbrio e a penetração daqueles em cuja
formação intelectual o amor à verdade e a dedicação à causa pública
superam as paixões partidárias e as divergências pessoais. Assim
compreendido e assim exercido, o jornalismo desempenha uma grande
missão social, que é a de esclarecer e orientar a opinião pública, auxiliando
eficientemente o Governo na sua tarefa cotidiana de bem servir às
necessidades e aspirações populares. Criadora, estimuladora, esclarecedora,
deve ser sempre a função primacial da imprensa livre. E dessa imprensa
necessita o Governo, hoje mais do que nunca. Os problemas sociais e
políticos são de tal modo complexos, que só um contato vivo, perene e
fecundo com a opinião pública de todo o país pode dar luzes e forças ao
Governo, para enfrentá-los e resolvê-los. Nesse sentido, é na imprensa que
se cristaliza o espírito do povo, e é pelos seus órgãos mais representativos
que se traduzem as exigências e os anseios coletivos.
Como homem público, sempre busquei o contato com essa imprensa
imparcial e construtiva, e encontrei na crítica serena e honesta a
colaboração desinteressada e amiga, que esclarece, revela, corrige,
completa e sugere soluções e diretivas. É por isso que recebo com satisfação
a notícia do aparecimento de um novo jornal, para cuja orientação elevada e
patriótica o espírito do seu fundador constitui garantia eficiente e motivo
bastante de confiança e de contentamento. Que ele saiba exprimir com
fidelidade e elevação as tendências da opinião pública e colaborar, através
de uma crítica bem intencionada e construtiva, na solução dos nossos
problemas, são os meus votos mais sinceros.
Cordialmente,
Getúlio Vargas
CAPÍTULO 21

Em agosto de 1951, o senador Epitácio Pessoa Cavalcanti de Albuquerque,


neto do presidente do mesmo nome e filho de João Pessoa – o ex-governador
da Paraíba cujo assassinato precipitara a Revolução de 1930 –, apareceu
morto em sua casa no Rio de Janeiro. Epitacinho era bastante amigo de
Getúlio Vargas, e o hospedara por alguns dias antes de assumir a Presidência.
Começaram a circular pela cidade rumores de que Epitacinho fora
envenenado por sua mulher, por questões de herança. Eu tinha repugnância
por fatos policiais e, até então, negava-me a dar-lhes destaque na Última
Hora. Mas aquela história caíra na boca do povo e começava a tomar
proporções incontroláveis. O velho Malta procurou-me:
– Precisamos dar alguma coisa sobre isso.
Achei a ideia maluca.
– Epitacinho era meu amigo, amigo de Getúlio Vargas – ponderei.
– A cidade inteira só fala nesse caso, isso venderia muito – retrucou Malta.
Resolvi conversar sobre o assunto com Getúlio Vargas e fui procurá-lo no
Catete. Contei-lhe que estava surgindo uma fofoca nacional a respeito da
morte de Epitacinho. Getúlio adorava fofocas, ficou curioso. Ele pareceu
surpreso com o que ouviu. Informei, então, que os rumores incluíam a versão
de que a Última Hora permanecia calada porque Epitacinho era amigo do
presidente da República. Perguntei a Vargas de que modo deveria agir.
– Cumpra o seu dever de jornalista – disse-me.
No dia seguinte, publiquei a primeira manchete policial da história da
Última Hora: “Epitacinho teria morrido envenenado”. Foi uma bomba.
Aumentamos a tiragem para 25 mil exemplares, que se esgotaram em poucas
horas. Seguimos explorando o caso por alguns dias e incorporamos outros
milhares de leitores.
Eu costumava consultar Getúlio sempre que surgiam fatos e assuntos
diretamente ligados aos interesses do presidente. Ele também me fazia
sugestões e transmitia opiniões, regularmente, de viva voz ou através de
intermediários. Às vezes, mandava bilhetes. Dezenas deles foram
interceptados por Lourival Fontes, que mais tarde os entregou a David Nasser
para que fossem publicados na revista O Cruzeiro. “Diga ao Wainer que a
posição do jornal em relação ao problema da carne está errada”,
recomendava, por exemplo, um dos bilhetes. “Peça ao Wainer que dê mais
destaque aos júris populares de economia”, dizia outro.
Em pouco tempo, eu me tornara mais importante junto a Getúlio do que
qualquer ministro de Estado. Minha sintonia com Vargas era tão completa
que nem precisávamos ser explícitos para nos entendermos a respeito de
certos assuntos. Foi assim no episódio da queda do ministro do Trabalho,
Danton Coelho. Era uma excelente figura, um homem de bem, mas ineficaz.
Passava dias inteiros no Jockey Club, alheio ao que ocorria num ministério
que era seguramente o mais importante de todo o governo. Decidi derrubá-lo,
interessado em preservar a imagem do governo e também convencido de que
seria muito melhor para Vargas substituir Danton. Procurei o presidente para
dizer-lhe que o governo estava perdendo popularidade em consequência do
mau desempenho do ministro do Trabalho. Getúlio apenas ouvia. Disse-lhe
também que meu jornal tinha compromissos com a figura do presidente, mas
não com todos os seus ministros. Comuniquei, enfim, que pretendia atacar
duramente Danton Coelho.
– Faça o que achar melhor – resumiu Getúlio.
No fundo, ele desejava livrar-se de Danton. No dia seguinte, publiquei um
editorial com o título “O Grande Irresponsável”, dizendo horrores do ministro
do Trabalho. Poucas horas depois, Danton Coelho demitiu-se do cargo.
O jornal ia tomando forma, definindo progressivamente os contornos do
seu rosto, ganhando traços mais nítidos. A primeira página do segundo
caderno tratava exclusivamente de reivindicações populares. O jornal não
parava de ampliar suas linhas diretas com o povo. Inventei o chamado “Muro
de Lamentações”: a cada fim de semana, uma viatura da Última Hora,
levando um fotógrafo e um repórter com sua máquina de escrever, instalava-
se numa das praças do Rio de Janeiro e recolhia as queixas da população.
“Minha torneira não funciona”, “falta luz na minha rua”, coisas do gênero.
Publicávamos aquilo com destaque, os leitores adoravam. Euvaldo Lodi me
fez uma observação curiosa:
– Você é mesmo um grande filho da puta – disse-me rindo. – É o único
jornalista capaz de fazer um jornal que é capitalista no primeiro caderno e
comunista no segundo.
Para Lodi, típico industrial paulista daqueles tempos, reivindicações
populares e comunismo eram praticamente a mesma coisa.
A Última Hora era ecumênica por vocação. Estava vinculada à
intelectualidade do Rio de Janeiro – escreviam no jornal nomes já respeitados
da literatura – e à alta sociedade, que lia com avidez nossos colunistas. Mas
também estreitava seus laços com o povo, recorrendo a fórmulas cujo
pioneirismo desconcertava os concorrentes. Àquela época, por exemplo, a
palavra “promoção” era desconhecida da imprensa brasileira, embora fosse a
explicação para o sucesso de várias publicações americanas. Por sugestão de
Adolfo Aizen, um dos responsáveis pela introdução das histórias em
quadrinhos no Brasil, lancei uma promoção chamada “Prêmio para Toda a
Família”. Os leitores recortavam um cupom impresso numa página,
preenchiam-no e o enviavam à redação, concorrendo a cinco prêmios –
bicicletas, bolas de futebol, brinquedos. Foi um êxito fantástico, e havia dias
em que filas imensas se estendiam à frente das bancas de jornais.
Adolfo Aizen fez-me outra sugestão extremamente feliz: publicar no
segundo caderno um encarte com historietas em quadrinhos. As novidades se
multiplicavam sem parar. A última página do segundo caderno passou a
publicar exclusivamente notícias esportivas, com fotos coloridas. Na última
página do primeiro caderno saíam notícias policiais ou grandes reportagens.
Tanto Jacinto de Thormes, responsável pela seção “Na Hora H”, quanto
Carlos de Laet, nosso colunista social, publicavam notícias sobre o jet set.
Alguns mitos da alta sociedade carioca surgiram ali: foi Jacinto, por exemplo,
quem apelidou Didu e Teresa de Souza Campos de “Casal 20”. Mas um dos
grandes achados da Última Hora foi descobrir que a Zona Norte existia, e
que também ali havia, embora menos brilhante que a da Zona Sul, vida
social.
Durante uma conversa com o vice-presidente da Light, Monteiro, ele me
fez uma pergunta:
– Você costuma ir aos subúrbios?
Estranhei a pergunta: afinal, o que eu teria a fazer nos subúrbios? Disse-lhe
isso, e Monteiro, que nascera no Méier, sorriu e comentou:
– Engraçado, vocês não conhecem o Brasil.
Recomendou-me, então, que fosse a alguns bairros da Zona Norte.
– Dê um pulo até Madureira – sugeriu. – Você vai ver uma cidade repleta de
lojas.
Resolvi atender ao conselho e visitar os subúrbios, algo que não fazia há
muitos anos. Fiquei impressionadíssimo com o que vi. Decidi de imediato
que a Última Hora teria de entrar na Zona Norte – e entrar com urgência.
Naquele ano, por coincidência, uma jovem de Vila Isabel, Leda Rahl, fora
eleita Miss Rio de Janeiro. Era a primeira vez que alguém da Zona Norte
ganhava o concurso. Leda e sua mãe foram visitar-me na redação da Última
Hora para agradecer o apoio que o jornal lhe dera. Ainda impressionado com
o que vira em Madureira, tive na hora a ideia de convidá-la para trabalhar
comigo: se não fosse eleita Miss Brasil, propus, teria um lugar assegurado na
redação. Ela aceitou, e procurou-me algum tempo depois. Decidi formar uma
dupla de colunistas e designei Carlos Renato para trabalhar ao lado de Leda
Rahl. Assim nasceu a coluna “Luzes da Cidade”, que logo se transformou
numa das coqueluches da Última Hora. Leda e Carlos Renato frequentavam
clubes de Ramos, do Méier, de Bonsucesso, apresentando festas e colhendo
notas para a coluna. Em pouco tempo, os dois eram celebridades em todos os
bairros da região.

Num domingo, recebi a notícia de que um casal que viajava em lua de mel
morrera na queda de um avião. Achei que aquela história poderia render uma
excelente reportagem. Chamei Nelson Rodrigues, meu redator de esportes, e
perguntei-lhe se aceitava escrever uma coluna diária baseada em fatos
policiais. Nelson recusou. Resolvi enganá-lo, e contei que André Gide já
fizera isso na imprensa francesa. Defendi também a tese de que, no fundo,
Crime e Castigo, de Dostoievski, era uma grande reportagem policial. Eu
apenas queria que ele desse um tratamento mais colorido, menos burocrático,
a um certo tipo de notícia. Nelson afinal cedeu. Sentou-se à máquina e, pouco
depois, entregou-me o texto sobre o casal que morrera no desastre de avião.
Era uma obra-prima, mas notei que alguns detalhes – nomes, situações –
haviam sido modificados. Chamei Nelson e pedi-lhe que fizesse as correções.
– Não, a realidade não é essa – respondeu-me. – A vida como ela é é outra
coisa.
Eu me rendi ao argumento e imediatamente mudei o título da seção.
Deveria chamar-se “Atire a Primeira Pedra”, mas ficou com o título de “A
Vida Como Ela É”, que considero um dos melhores momentos do jornalismo
brasileiro.
Da mesma forma que Nelson Rodrigues renovou a linguagem da
reportagem policial, outros colunistas da Última Hora deram outro curso à
história da reportagem esportiva. Eu tinha uma vantagem sobre outros donos
de jornal: passara minha infância brincando com bolas de meia, e eles jamais
haviam entrado num campo de futebol.
Minha intimidade com o assunto era total. Muitos anos depois, em 1962, eu
estava numa recepção oferecida pelo Itamaraty quando começou uma
conversa sobre o jogo que o Brasil teria no dia seguinte contra a Espanha, na
Copa do Chile. A mesa esquentou, e passei alguns minutos dando opiniões
profundas sobre o jogo. Só um dos presentes permanecia sempre calado,
aparentemente alheio à conversa. Era o general Humberto de Alencar
Castello Branco. Na hora do café, Castello Branco fez um comentário
sibilino:
– Doutor Wainer, admira-me muito que um homem como o senhor conheça
tanto de futebol.
A mesa silenciou. Então, em tom amável, observei ao general que, se não
gostasse de futebol, jamais poderia ter fundado um jornal como a Última
Hora. Todos compreenderam o que eu queria dizer com aquilo.
Passados os meses de aflição, senti que encontrava o caminho. Àquela
altura, a redação demonstrava uma imensa confiança em minha capacidade
profissional. Vencida a timidez inicial, passei a escrever editoriais de
primeira página e a interferir com mais desenvoltura nos textos que o jornal
publicava. Ficava boa parte do tempo em minha sala – ali eu recebia quase
diariamente ministros, embaixadores, políticos, empresários. Mas sempre
encontrava meios de escapar para a redação, onde mantinha minha mesa, ao
lado de Octávio Malta. Também visitava diariamente a oficina, empenhado
em estimular meus gráficos a aumentarem a velocidade do trabalho e
tentando compensar com meu entusiasmo a precariedade do equipamento.
Frequentemente, ordenava modificações numa página ou a substituição de
um título. Os operários da oficina não demoraram a entender que eu era do
ramo.
Sempre acreditei que um dono de jornal deve manter vínculos estreitos
tanto com a redação quanto com a oficina. Na Última Hora, tais relações
eram bastante humanas. Ordenei, por exemplo, que se cumprisse a disposição
legal que mandava fornecer leite aos gráficos, exigência tradicionalmente
ignorada pelos patrões. Inflacionei os salários dos jornalistas, para profunda
irritação de Assis Chateaubriand, que me acusou de elevar os salários acima
dos limites suportáveis pela imprensa brasileira. E procurei permanentemente
quebrar o isolamento entre chefe e subordinados. Em 1954, quando a Última
Hora se transferiu para outro prédio, instalei minha sala dentro da própria
redação, numa inovação que ficaria famosa. Era uma sala envidraçada, cujo
apelido – “aquário” – se tornaria famoso. Quando não queria ser visto,
baixava as cortinas. Mas geralmente o pessoal da redação podia acompanhar
com os olhos meus gestos, minhas reações, as conversas com repórteres.
Aquele era o meu santuário.
Eu vivia à noite. Em meio a uma roda-viva de jantares, festas, recepções ou
simplesmente conversas, recolhia informações, boatos, rumores. É à noite
que se sabe das coisas. Dormia pouco: além da energia da mocidade, sempre
que necessário eu recorria a comprimidos de Pervitin, à base de anfetamina.
Às onze horas, acordava e ia para o jornal dar o visto na primeira página,
examinar a edição que estava a caminho das bancas. Fazia questão de
respeitar os horários fixados em nosso cronograma, outra novidade para a
época – naqueles tempos, os jornais costumavam sair quando podiam. O
jornal era minha vida. Em 1951, eu estava casado com Isa Sá Reis, de quem
me separaria em 1953. Mas a aventura da Última Hora me absorvia quase
integralmente e, mesmo quando ficava em casa, minha mente viajava para
aquele mundo que eu começava a construir.
Tive suficiente lucidez para evitar certos exageros, mesmo quando já me
sobravam motivos para acreditar que eu caminhava para o sucesso. No dia 19
de dezembro, data oficial de meu nascimento, fui procurado por uma
comissão de funcionários, liderada por um tipo sabidamente bajulador, que
desejava minha permissão para homenagear-me. Eles me trouxeram um
relógio enorme, caríssimo, como presente pela vitória da Última Hora. Minha
reação foi brutal. Disse-lhes que preferia recusar o presente, por dois
motivos. Primeiro, porque achava aquele presente caro demais para o que
eles ganhavam. Segundo, porque um jornal não deve festejar vitórias na
redação; deve festejá-las nas ruas, vendendo mais. Despachei-os em seguida,
recomendando-lhes que voltassem quando o jornal se tornasse efetivamente
vitorioso. Na primeira oportunidade, demiti o responsável por aquele exagero
bajulatório. Alguns meses mais tarde, descobri que outro grupo de
funcionários encarregara um escultor argentino de fazer meu busto em
bronze. Achei ridículo, e interferi a tempo de impedir a homenagem. O
argentino só tivera tempo de esculpir o busto em gesso. Esse busto, que
descobri no arquivo da Última Hora, rolou pelo Rio de Janeiro até acabar
num antiquário. Os traços lembravam muito mais Coelho Neto que a mim.
Nunca mais soube dele.
Se evitei esses exageros, também é verdade que cometi alguns excessos
sociais, inebriado pela condição de amigo íntimo do presidente e jornalista
vitorioso. Eu saboreava meu triunfo: entrava sem bater nos gabinetes dos
poderosos, era solicitado pela alta sociedade, cortejado por mulheres lindas.
Fazia provocações que incomodavam os concorrentes – por exemplo,
anunciar as tiragens do meu jornal numa época em que todos os outros
ocultavam cuidadosamente seus números. Mas nenhum desses excessos dos
primeiros tempos se comparou ao coquetel que ofereci pelo primeiro
aniversário de Última Hora, em junho de 1952.
Eu poderia ter convidado algumas pessoas para um jantar em meu
apartamento, ou organizado uma festa menos aparatosa num clube qualquer.
Em vez disso, decidi fazer um coquetel na própria redação. Escolhi um
horário que não prejudicasse o trabalho de edição, desloquei as mesas e abri
espaço para quase mil convidados. Uma guarda de honra formada por
integrantes da Polícia Especial postou-se à porta. Não deixava de ser um
acinte. Getúlio Vargas não compareceu, mas foi representado por dona
Darcy, Alzirinha e vários outros membros da família real. Mais tarde, o
jornalista Justino Martins contou-me que a animosidade de Adolfo Bloch em
relação a mim nasceu de um incidente ocorrido naquele dia, do qual nem
sequer me dei conta. Adolfo Bloch teria pedido que eu o apresentasse à
primeira-dama. Não me lembro de ter ouvido a solicitação. O fato é que não o
apresentei. Segundo Justino, Adolfo Bloch jamais me perdoou por tal
desfeita. Outros barões da imprensa tampouco engoliram a festa que reuniu o
que havia de mais influente na corte. Fora uma audácia do judeu aventureiro.
Àquela altura, a campanha contra a Última Hora já se intensificara, mas o
jornal se tornava cada vez mais consistente em todos os sentidos. A situação
financeira, por exemplo, mostrava-se crescentemente promissora graças ao
bom fluxo de anúncios. Eu tratava de atrair novos anunciantes utilizando
barganhas que não me incomodavam por não ferirem os critérios editoriais da
Última Hora. Por exemplo: se duas empresas envolviam-se em determinada
disputa, eu escolhia a que fosse brasileira, ou a que melhor atendesse aos
interesses de Getúlio, e passava a defendê-la. Em seguida, reivindicava dessa
empresa que ajudasse o jornal em forma de anúncios. Tal postura não me
parecia antiética. Um caso típico foi a guerra entre a Varig e a Panair pela
compra dos primeiros aviões Caravelle. Como a Panair era subsidiária da
Panam, uma empresa norte-americana, minhas simpatias apontavam
naturalmente na direção da Varig, uma companhia brasileira. O criador da
Varig, Rubem Berta, procurou-me para pedir que eu o auxiliasse com o
jornal. Concordei, mas em troca lhe pedi contratos de publicidade. Esse
acerto seria inviável se quem me procurasse fosse alguém da Panam; eu não
aceitaria. Meu jornal precisava de publicidade, e era natural que eu cobrasse
do meu cliente nacionalista meios de assegurar a sobrevivência da Última
Hora.
Todo dinheiro que entrava era aplicado no próprio jornal. Nunca alimentei
a pretensão de conquistar uma fortuna para legá-la a alguém. Eu não tinha
filhos na época, e imaginava que jamais viria a tê-los. Portanto, habituei-me à
ideia de que a Última Hora morreria comigo, porque tampouco achava viável
passá-la a outros parentes ou companheiros da redação. Mesmo quando meus
filhos nasceram, por sinal, não cogitei de transformá-los em herdeiros da
Última Hora – jamais aprovei o costume tão brasileiro de passar jornais de
pais para filhos. O jornalismo, afinal, não é uma coisa hereditária. Mas,
embora descartasse planos de enriquecimento pessoal, era importante
consolidar o jornal financeiramente e fortalecer a empresa, preparando-me
para a luta que se aproximava. Nesse esforço de consolidação, decidi ainda
em 1951 levar a empresa para fora das fronteiras do Rio de Janeiro.
Foi então que nasceu a Última Hora de São Paulo.
CAPÍTULO 22
No começo de 1952, eu conversava com Getúlio perto de uma das janelas
do Palácio do Catete quando ele me perguntou se eu não achava que São
Paulo era a “boca do leão”. Aquela expressão me era familiar. O presidente
costumava empregá-la para simbolizar o que o grande Estado representava
para o seu governo. Ainda presos aos ódios gerados pela Revolução de 1932,
muitos políticos paulistas seguiam conspirando, dispostos a patrocinar a
qualquer custo o fim do getulismo. Vargas era popularíssimo em São Paulo,
ali obtivera uma votação grandiosa nas eleições de 1950. Mas a elite paulista
recusava-se à reconciliação com o presidente. E toda a imprensa local,
liderada pelo “Estadão”, mantinha-se em oposição ferrenha a Getúlio.
Concordei: São Paulo era a boca do leão. Quis saber por que tal expressão
lhe ocorrera naquele momento.
– É que hoje esteve comigo o Ricardo Jafet, que está tendo muitos prejuízos
com o jornal dele em São Paulo – respondeu Getúlio.
Percebi aonde ele pretendia chegar e fiquei à escuta.
O presidente ponderou que Jafet, dono do Jornal de Notícias, não entendia
de jornais e que, por ser um homem muito rico, ninguém lhe pagava o que
devia. Revelou-me, afinal, que o próprio Jafet lhe fizera a sugestão: por que
Samuel Wainer não lançava um jornal em São Paulo? O comportamento de
Getúlio durante a conversa à janela do Catete deixava claro que ele gostara da
ideia. Mas jamais admiti, ao longo dos muitos interrogatórios que sofreria em
minha vida, que também a Última Hora paulista fora uma ideia de Getúlio
Vargas.
Animei-me imediatamente com a proposta de criar um jornal na cidade
onde havia nascido. Seria a volta gloriosa ao meu Bom Retiro, a prova de que
eu vencera. Pensei no que diria minha família – era o triunfo. Já com algumas
ideias tomando forma em minha cabeça, disse a Getúlio que achava
perfeitamente possível concretizar tal projeto. Poderíamos montar a primeira
publicação com fisionomia federal num estado cuja imprensa era
historicamente marcada pelo provincianismo. As vantagens políticas
pareciam igualmente evidentes. Num pedaço do país onde o PTB getulista
era anêmico, teríamos um instrumento do presidente da República com
capacidade para fazer com que seu pensamento chegasse às massas
populares. No fim da conversa, combinei com Vargas que procuraria Ricardo
Jafet.
Jafet ficou radiante ao saber que eu estava interessado em seu jornal, que
para ele se transformara numa fonte permanente de más notícias financeiras.
Como se tratava de um empresário forte, não lhe convinha simplesmente
fechar uma de suas empresas – isso poderia dar origem a rumores atribuindo-
lhe dificuldades financeiras. Tampouco valia a pena manter o jornal em
funcionamento; os prejuízos se acumulavam a cada mês. A solução era passá-
lo adiante, e um comprador finalmente lhe caíra do céu. Não foi difícil,
assim, fechar o negócio por um preço meramente simbólico. Do jornal, que
ocupava um terreno no vale do Anhangabaú pertencente ao conde Francisco
Matarazzo, pouco se poderia aproveitar: o equipamento estava virtualmente
reduzido a uma rotativa velhíssima, que fizera parte do parque gráfico da
Folha da Manhã. De qualquer forma, ali eu poderia improvisar uma pista
para a decolagem da Última Hora paulista.
Voltei a Getúlio com a confirmação de que a ideia era viável. Havia,
contudo, o problema de sempre: faltava dinheiro para os gastos iniciais. A
Última Hora do Rio ia bem, mas não gerava recursos suficientes para a
implantação de um projeto semelhante em São Paulo. Com um sorriso
moleque, Getúlio apontou-me a saída usando sua peculiar linguagem em
código:
– Passou por aqui agora há pouco um “tubarão” que parece gostar muito de
jornal. Se tu quiseres, procures o Benjamim. Ele te dirá onde encontrá-lo.
“Tubarão” era a palavra usada na época para identificar os magnatas. Saí à
procura de Benjamim Vargas e logo o encontrei na boate Vogue. Relatei-lhe
a conversa que tivera com seu irmão, e o caçula dos Vargas recomendou-me
que fosse ao Hotel Excelsior, na avenida Atlântica, que acabara de ser
inaugurado. Ali estava hospedado o tubarão de que Getúlio falara: o lendário
conde Francisco Matarazzo.
O velho conde vira seu império crescer na era getulista, beneficiado por
favores fiscais e aduaneiros. Ele gostava muito do presidente da República,
tratava-o com inteira intimidade. Era uma figura bastante simpática, mas
extremamente conservadora e dada a excentricidades. Ele não permitia, por
exemplo, que alguém lhe virasse as costas ao deixar sua sala. As pessoas,
mesmo as da própria família, tinham de sair em marcha à ré. O conde tinha
inimizades invencíveis, e fora justamente uma delas que o levara a interessar-
se por jornais: ele devotava um ódio mortal a Assis Chateaubriand, cujo
nome, repito, jamais mencionava: só se referia ao dono dos Associados como
“o lazarento”.
Os dois haviam brigado por questões de dinheiro, e Chateaubriand fazia
provocações terríveis ao velho Matarazzo. Numa ocasião em que saiu
publicado o balanço das empresas do conde, por exemplo, Chateaubriand
mandou anunciar que os lucros seriam distribuídos entre os pobres da cidade.
Noutra ocasião, quando se casou uma filha de Matarazzo, os jornais de
Chateaubriand descreveram o requinte da festa com tal exagero que
ocorreram manifestações de revolta entre os paulistanos. Graças a essas
declarações de guerra promovidas por Chateaubriand, Matarazzo resolvera
encontrar um jornal que combatesse os Associados. Ele se ligara ao grupo
Folha, mas não se deu bem. Assim, quando o encontrei, ele continuava
receptivo a um negócio que o vinculasse a algum órgão de imprensa.
No Hotel Excelsior, onde me recebeu perto das onze da noite, o conde
tratou-me com extrema simpatia. Disse que já sabia dos meus planos para
montar um jornal em São Paulo e que me considerava um grande jornalista.
– Sei também que o senhor fez um jornal que vende muito – emendou.
Onde colhera a informação?
– Todos os dias vou até a banca que fica aqui perto do hotel e pergunto ao
dono que jornal está sendo mais vendido – explicou-me.
Ele também achava que São Paulo precisava de um jornal moderno, e se
dispunha a colaborar no empreendimento.
– Eu vou lhe ajudar – disse o velho Matarazzo. – De quanto o senhor
precisa?
Novamente, eu não sabia com exatidão o montante dos recursos de que
necessitava. Mencionei uma quantia qualquer que me veio à mente, e o conde
considerou-a razoável. Eu acabara de conseguir o dinheiro necessário para a
aventura da Última Hora paulista.
Antes de selarmos o acordo, o conde perguntou-me qual seria a postura do
jornal em relação a greves. Ponderei que um jornal popular não poderia opor-
se a movimentos do gênero, mas ressalvei que a Última Hora só apoiaria
greves até a porta da fábrica, condenando qualquer violação dessa fronteira.
Ele ficou muito feliz com a resposta – o que o afligia era a eventualidade de
greves que ameaçassem seu patrimônio com quebra-quebras no interior das
fábricas. Depois, avisou-me que não poderíamos ser favoráveis à implantação
do divórcio no Brasil. O conde informou que costumava visitar o papa, e que
não gostaria de ouvir uma frase que formulou com seu sotaque pitoresco:
“Chiquinho, como é que você dá dinheiro para um jornal divorcista?” A
questão do divórcio não tinha, a meu ver, qualquer importância. Aceitei
prontamente a pré-condição estabelecida por Matarazzo.
O conde Francisco Matarazzo cometeu um grave equívoco – se foi uma
jogada intencional, jamais se saberá – ao me transferir, alguns dias depois,
parte do financiamento que havíamos acertado. Ele fez com que o dinheiro,
antes de chegar a mim, passasse pelas mãos de Lutero Vargas, filho de
Getúlio – e esse trajeto dos recursos, que evidentemente deixou rastros, seria
espertamente explorado no futuro por meus inimigos. É possível que o
próprio Lutero, visivelmente enciumado com a influência de Alzirinha sobre
a Última Hora carioca, tenha pedido ao conde para participar da operação.
Também é possível que Matarazzo tenha procurado envolver a família do
presidente no negócio. Só ele poderia esclarecer o que realmente o levou a
agir assim.
Poucos anos depois, quando foi chamado a depor numa comissão
parlamentar de inquérito, o Conde agiu com muita elegância em relação a
mim. Ele chegou ao Congresso em grande estilo, acompanhado de Júlio de
Mesquita Filho e do advogado Oscar Pedroso Horta. Interpelado pelos
membros da comissão, o velho milionário exibiu seu humor singular. Os
parlamentares quiseram saber por que me dera dinheiro.
– O dinheiro é meu e eu dou para quem eu quero – retrucou Matarazzo.
Mas por que especificamente a Samuel Wainer?, insistiram os inquisidores.
Porque vira meu jornal e entendera que faria um bom investimento,
respondeu o Conde. Um integrante da comissão observou que eu era um
homem de origem humilde e poucos recursos, e que já tivera um título
protestado em cartório quando conhecera Matarazzo. Ele sustentou que tais
detalhes não tinham importância: conhecia vários industriais com títulos
protestados. Matarazzo acrescentou que me dera dinheiro por ter acreditado
no homem, e tanto agira com acerto que o jornal se mostrara um
empreendimento bem-sucedido. No fim do depoimento, quando os
parlamentares já haviam desistido de enredá-lo na trama, Francisco
Matarazzo fulminou-os com uma pergunta que exibia sua lógica peninsular:
– Os senhores por acaso conhecem algum dono de jornal que seja pobre?
Antes desse depoimento, eu me recusara sistematicamente a admitir que os
recursos para a fundação da Última Hora paulista haviam saído dos cofres do
império Matarazzo.
A origem do dinheiro já era conhecida, mas ainda assim eu me recusava a
endossar a versão veiculada com insistência pelo restante da imprensa. O
próprio Conde liberou-me desse voto de silêncio ao comparecer ao
Congresso. Ele fez questão de anunciar de viva voz que patrocinara a
aventura iniciada a 18 de março de 1952: nesse dia, o logotipo azul da Última
Hora de São Paulo apareceu pela primeira vez nas bancas da cidade.
Nos dois meses anteriores, eu tratara de colocar o precário equipamento
existente na oficina do jornal de Jafet, rudimentar e envelhecido, em
condições de rodar a Última Hora paulista. Consegui. Um de meus trunfos
como jornalista, por sinal, foi saber criar na pobreza. Jamais dispus de
máquinas novas, modernas. Sempre lidei com equipamentos que lembravam
a pré-história da imprensa, e era compelido a operar milagres para rodar meus
jornais. Certa vez, Danuza Leão, que então estava casada comigo, foi
convidada a responder a uma enquete organizada por uma revista interessada
em saber que tipo de presente um grupo de mulheres da alta sociedade
gostaria de oferecer ao marido. Danuza deu uma resposta bastante original:
“Uma rotativa nova com quatro cores.” Seria um presente magnífico.
Eu também transformara aquele pardieiro que abrigara o jornal de Jafet
num prédio esplêndido, com salões enormes, uma redação moderníssima, as
paredes decoradas com painéis de Di Cavalcanti. No dia do lançamento,
fretei um avião para trazer convidados do Rio de Janeiro, entre os quais
figuravam muitos representantes da alta sociedade carioca e, naturalmente,
vários integrantes da família Vargas. Fiz questão da presença da família real.
A Última Hora de São Paulo alcançou sucesso imediato, basicamente por
duas razões. Primeiro, tratava-se de um jornal federal num estado marcado,
como já disse, por uma imprensa irremediavelmente provinciana. Segundo,
porque meu jornal, embora federal, soube desde sempre ser paulista.
Nos anos 50, a imprensa já não era tão dependente dos favores federais
quanto em outras épocas. Nos anos 30, um jornalista português, João Lage,
dono de O País, editado no Rio de Janeiro, cunhara uma frase cujo cinismo
refletia com absoluta clareza as relações entre imprensa e poder no Brasil.
“Só preciso de 22 leitores: os 21 governadores e o presidente da República”,
dizia João Lage. Quando fundei a Última Hora em São Paulo, já se tornara
possível montar empresas jornalísticas sólidas sem a mão generosa do
governo. O Estado de São Paulo, por exemplo, era uma potência, da mesma
forma que A Gazeta, e nenhum deles fazia barganhas com os donos de poder.
De qualquer forma, São Paulo se ressentia da falta de notícias federais com
sua imprensa – os industriais paulistas, os homens do comércio, os donos da
terra precisavam saber o que se passava no Palácio do Catete. E eles todos
sabiam que nenhum outro jornal tinha tão franco acesso ao centro do poder
quanto a Última Hora. Este era um dos meus trunfos.
Outro trunfo consistia na evidência de que meu jornal tinha estreitas
vinculações com o povo. Do ponto de vista da elite paulista, eu invadira sua
fortaleza para combater sua sigla sagrada – a UDN – e defender um homem –
Getúlio Vargas –, a quem devotavam ódio mortal. Mas o povo não pensava
assim: centenas de milhares de paulistas veneravam Vargas, e me receberam
com a simpatia reservada aos aliados. Além disso, imediatamente comecei a
mostrar nas páginas da Última Hora a cidade esquecida, abandonada, a
cidade desprotegida. Simultaneamente, descobri o interior – havia
reportagens mostrando Santos, Ribeirão Preto, Campinas. Em pouco tempo, a
Última Hora era o mais paulista dentre todos os jornais editados no estado.
Creio ter conseguido inspirar, também em São Paulo, a mesma síntese
anárquica e criativa que fizera o sucesso da Última Hora carioca. Além de
importar colunistas que aparentemente pouco ou nada tinham a ver com São
Paulo, mas que deram certo, como Nelson Rodrigues ou a atriz Odete Lara,
lancei nomes tipicamente paulistas, como o humorista Arapuã, que se
tornaria uma celebridade local, ou Ricardo Amaral, que foi um ótimo repórter
e mais tarde se transformaria num dos reis da noite brasileira. O noticiário
político era da melhor qualidade: informávamos com competência o que
ocorria nos bastidores da guerra entre dois populistas, Jânio Quadros e
Ademar de Barros, cobríamos de perto a Assembleia e a Câmara de
Vereadores. As promoções se repetiam também em São Paulo, e sabíamos
capitalizar em favor do jornal fatos que emocionavam o povo. Quando
morreu Francisco Alves, por exemplo, imediatamente intuímos as reais
dimensões da tragédia: Chico Alves era o grande ídolo popular naquela
época, e tivera seu corpo carbonizado num acidente automobilístico. Os
brasileiros sempre se impressionaram com a morte pelo fogo, e esse tipo de
emoção se multiplica terrivelmente quando a vítima é alguém amado pelo
povo. Tivemos então e ideia de realizar no viaduto do Chá um evento que
batizamos de “Noite dos Violões”. Durante horas seguidas, madrugada
adentro, centenas de violões homenagearam Chico Alves, diante de uma
multidão que reunia dezenas de milhares de pessoas.
Como ocorria no Rio, grandes reportagens tornaram-se uma das marcas do
jornal. Houve uma reportagem que se tornou famosa: a rebelião do Presídio
Anchieta, um célebre e temido depósito de presos então instalado numa das
ilhas do litoral norte de São Paulo. Essa rebelião aconteceu em 1952 e
resultou na fuga de cerca de 120 condenados, que fizeram a nado a travessia
até as praias de Ubatuba. Informado do episódio, viajei imediatamente do Rio
para São Paulo e mobilizei a redação para uma cobertura intensiva. Entre
repórteres e fotógrafos, desloquei para a região quase trinta profissionais.
Demos uma inesquecível lição de jornalismo.
A receita da Última Hora, que misturava ingredientes aparentemente
inconciliáveis, incluía ousadias que os outros jornais locais jamais se
permitiriam. Instituí, por exemplo, a escolha do Homem do Ano, uma ideia
que depois seria retomada pela revista Visão. Só que o primeiro Homem do
Ano da Última Hora foi um dirigente sindical, Salvador Losacco, que
ostentava uma sólida fama de pelego. Não deixava de ser uma afronta às
elites paulistas. Mas também cobríamos a alta sociedade local com
reportagens ou notas nas colunas sociais. Graças a esses malabarismos,
conseguimos a proeza de transformar um jornal financiado por um conde
milionário e conservador numa publicação indiscutivelmente popular, com
posições nacionalistas de esquerda.
Não tenho dúvida alguma de que a Última Hora exerceu desde o começo
uma forte influência sobre a mentalidade dos paulistas, sobretudo dos
paulistanos que, nos anos 50, ainda habitavam uma cidade ilhada, distante do
resto do Brasil. A Última Hora em São Paulo foi um polo de irradiação do
pensamento nacionalista, de difusão das ideias que àquela altura eu já havia
incorporado definitivamente. Era o caso da nacionalização do petróleo, por
exemplo, materializada com a criação da Petrobrás, em 1953, por inspiração
de Getúlio Vargas. Muitos anos depois, quando a Petrobrás resolveu publicar
um folheto comemorativo de seu vigésimo aniversário, os dirigentes da
empresa concluíram que nada simbolizava melhor a importância desse evento
que a primeira página da edição em que meu jornal anunciou o fato histórico:
FUNDADA A PETROBRÁS, informava a manchete em letras enormes.
Abaixo da manchete, uma grande foto mostrava Getúlio com as mãos
banhadas de petróleo. A briga com Carlos Lacerda, que em 1952 ia ganhando
intensidade, também me ajudou a consolidar a Última Hora em São Paulo.
Lacerda era o ídolo da UDN paulista e mantinha fortes vínculos com a
família Mesquita, dona do “Estadão”. Era natural que o lançamento do meu
jornal em São Paulo abrisse uma nova frente de combate. Os antilacerdistas
compravam a Última Hora por razões óbvias – eu me transformara em seu
porta-voz. E os lacerdistas também compravam para saber que espécie de
acusações eu fazia a seu mentor.
Revolucionei os métodos de distribuição em vigor na cidade ao criar as
edições com uma, duas ou três estrelas, que identificavam a primeira,
segunda e terceira edições num único dia. Mudávamos algumas páginas
incluindo notícias frescas, e o jornal estava sempre quente. O público gostou,
e a Última Hora chegaria em pouco tempo à tiragem diária de 150 mil
exemplares, notável para uma cidade com cerca de dois milhões de
habitantes. Funcionários da redação contavam que ao entrarem num ônibus
viam tudo azul – era o logotipo inconfundível do meu jornal. Para acentuar o
azul, eu importava uma tinta mais forte. Tão logo constatou a imensa
penetração da Última Hora, Assis Chateaubriand começou a recorrer a seu
estoque de truques. O primeiro deles foi importar a mesma tinta que eu
utilizava e aplicá-la ao Diário da Noite, para confundir os leitores distraídos.
Eu próprio, mais de uma vez, comprei o Diário da Noite pensando tratar-se
da Última Hora. Outro truque foi ameaçar com represálias quem anunciasse
em meu jornal.
A situação financeira de minha empresa não era ruim, embora eu tivesse de
tomar mais algum dinheiro emprestado ao conde Matarazzo. Como o jornal
do Rio de Janeiro já parecia inteiramente consolidado, passei a deslocar-me
até São Paulo com mais frequência, vigiando o comportamento e a saúde do
caçula da família. Os diretores da Última Hora paulista sempre puderam agir
com independência no plano regional, consultando-me apenas em ocasiões
mais delicadas. Já as questões ligadas de alguma forma à área federal eram
exclusivamente decididas por mim. Compreendi em pouco tempo que eu
deveria circular em São Paulo, ser visto em São Paulo, para deixar ainda mais
transparentes os vínculos do jornal com a cidade. Além disso, certos contatos
– com banqueiros, empresários e políticos muito importantes, por exemplo –
eu fazia questão de estabelecer pessoalmente. Por tudo isso, achei
conveniente ter um endereço fixo também em São Paulo, e aluguei uma casa
luxuosíssima no bairro do Pacaembu.
Nem sempre eu me servia dessa casa. Eventualmente, as viagens a São
Paulo eram uma espécie de fuga. Em noites de muito cansaço, ou em
momentos de depressão, eu saía com meu carro pela via Dutra e dirigia ao
longo da madrugada até chegar à capital paulista. Dormia na própria redação,
estirado num sofá, e ao acordar entregava-me imediatamente ao trabalho. A
casa no Pacaembu ficava reservada às ocasiões mais solenes, festas,
recepções. Essas celebrações nunca chegaram ao requinte das festas que eu
promovia no Rio de Janeiro, mas exibiam minha força e meu prestígio junto à
alta sociedade paulista. A seus olhos, afinal, ali estava um grande amigo do
presidente da República.
Getúlio sabia que eu introduzira uma cunha do governo em território hostil,
e acompanhava com atenção os desdobramentos da aventura. Raríssimas
vezes divergimos. Uma dessas divergências teve como pivô a figura de Jânio
Quadros, um jovem vereador que se lançara candidato à prefeitura, e não foi
difícil contorná-la. Vargas, a quem desagradava a emergência do populismo
janista, pediu-me que combatesse sua candidatura. Preferi não contrariar o
presidente, mas marquei um encontro secreto com Jânio Quadros no Hotel
Comodoro. Ele chegou acompanhado pelo general Porfírio da Paz, que seria
vice-governador por oito anos. Nessa reunião, combinamos que a Última
Hora não daria apoio ostensivo a Jânio. Em contrapartida, cedi-lhe uma
coluna no jornal, batizada de “Canto do JQ”, e nesse espaço ele pôde expor
livremente suas opiniões. A coluna foi-lhe extremamente útil durante a
campanha.
A boa situação de meu jornal permitia que eu saboreasse as doçuras do
poder. Mulheres tiravam-me para dançar e sussurravam-me pedidos para que
apresentasse seus maridos ao presidente. Às vezes, eu atendia. Jovem,
esbelto, elegante, viajava constantemente, alternando aventuras e contatos
profissionais. Continuava decidido a brilhar socialmente e não resistia aos
encantos da aristocracia e a seus convites para festas e jantares. Cortejado e
temido no Rio, temido e cortejado em São Paulo, nunca estive, porém, cego à
realidade – e pude perceber que um cinturão de inveja ia se formando em
torno de mim. Só não pressenti, naquele momento, quais eram suas reais
dimensões.
CAPÍTULO 23

Eu tinha o pressentimento de que não deveria ir além dos jornais do Rio e de


São Paulo. Eles bastavam para assegurar-me o prestígio político e a glória
profissional. Talvez fosse o caso, também, de criar um jornal dominical,
semelhante em alguns aspectos a uma revista, que fosse a síntese das versões
carioca e paulista da Última Hora. Acabei de fato criando esse semanário
com o título de Flan. Mas não parei aí. Embora tivesse a sensação de que não
resistiria ao próprio peso do meu império, eu acabaria por tornar-me dono de
outros cinco jornais e de uma emissora de rádio. Disso falaremos mais tarde.
Antes, vale a pena rememorar a história de Flan.
Foi o primeiro grande semanário brasileiro depois de Diretrizes. O nome
foi inventado por mim e, por não significar nada, tinha um som cabalístico. A
primeira edição chegou às bancas em abril de 1953, já em formato definitivo:
era um tabloide composto de quatro cadernos com oito páginas cada, todos
com a primeira página em cores. Os colaboradores formavam a agradável
mistura de sempre. Havia ilustradores como os pintores Aldemir Martins e
Darel Valença, grandes fotógrafos, colunistas como Dorival Caymmi ou dom
João de Orleans e Bragança, cronistas como Otto Lara Resende, chargistas
como Lan. Joel Silveira, que se reconciliara comigo depois de alguns anos de
rompimento, tornou-se o principal repórter do semanário. Justino Martins era
o correspondente em Paris. Gente do primeiro time da imprensa. Um dos
cadernos tratava basicamente de esportes, outro de cultura, um terceiro de
política nacional e internacional. O primeiro caderno ficava sempre reservado
a assuntos regionais. Assim, no Rio de Janeiro, por exemplo, editávamos um
caderno regional diferente do que chegava às bancas de São Paulo.
Flan obteve sucesso imediato e logo alcançou a tiragem de 180 mil
exemplares, para espanto e inveja de muitos concorrentes. Um deles era
Adolfo Bloch, que ainda engatinhava com sua Manchete. Adolfo Bloch,
convém esclarecer, é apenas um gráfico. Reconheço tratar-se de um gráfico
excepcional, que até contribuiu para o embelezamento das publicações
brasileiras. Mas é só. Na história da imprensa em nosso país, Bloch é um
acidente, um erro de revisão. Quando resolveu lançar Manchete, convidou a
mim e a Jean Manzon para dirigi-la. Recusei, porque estava empenhado na
criação da Última Hora. Já aborrecido com minha recusa, ele se aborreceu
mais ao constatar o sucesso do meu jornal. Com o êxito de Flan, teria bons
motivos para aborrecer-se mais ainda.
Àquela altura, Assis Chateaubriand começou a desconfiar de que eu
representava uma efetiva ameaça a seu império. Com meus jornais, eu não
configurava um risco à sua cadeia de 22 publicações. Mas sentia-se
decididamente incomodado ao constatar que surgira em seu caminho um
semanário, vendido a preço baratíssimo, feito em papel de jornal, rodado em
equipamento rudimentar, com uma imensa liberdade de ação e,
principalmente, com uma grande tiragem. Chateaubriand assustou-se. Foi
nessa ocasião que o dono dos Associados chamou Carlos Lacerda para uma
conversa e colocou sua TV Tupi à disposição do meu grande inimigo.
Chegara o momento da luta de morte. Os jornais de Chateaubriand dobraram
a intensidade dos ataques à minha pessoa, e Lacerda transformou a televisão
numa tribuna do alto da qual pretendia ver-me prostrado ao solo.
Eu podia sentir o bafo da inveja perto do meu rosto. Certa ocasião, um de
meus colaboradores mais próximos procurou-me para convencer-me de que
eu deveria deixar de sair com uma atriz de teatro, minha namorada naquela
época. Uma mulher lindíssima. Ele ponderou que a classe média brasileira
tem raiva de homens que saem com mulheres bonitas, e que esse meu
romance poderia indispor-me com a opinião pública. Isso me seria
inconveniente, sobretudo num momento em que se fechava o cerco contra
mim. Esse era o clima. Em certos círculos, minha presença incomodava,
mesmo meu sorriso incomodava. Num determinado momento, eu era um
homem só, vivendo em função de minha paixão profissional. Eu me
entregava à tarefa de fazer a Última Hora, de cuidar de Flan, e aquilo estava
custando minha juventude, minha família, meus amores. Mas meus inimigos
queriam mais: queriam meu fim.
A pressão contra Flan começou a tornar-se violentíssima. Lacerda
sustentava que eu investira naquele empreendimento milhões de cruzeiros – e
milhões financiados pelo governo. Era uma evidente mentira; o semanário
fora lançado sem que eu pedisse um único tostão ao governo. Chateaubriand
chantageava meus anunciantes, decidido a retirar-me a sustentação financeira.
Depois de quatro, cinco meses, Flan começou a perder qualidade. Ao
perceber que a intenção de meus adversários era sufocar-me, decidi reduzir o
campo de combate, para ampliar as chances de resistência. Passei a
concentrar tudo de que dispunha – papel, dinheiro – na Última Hora,
virtualmente abandonando o semanário a seu destino. Ainda assim, Flan
durou mais de um ano, sempre perdendo qualidade. Um dia,
melancolicamente, morreu, sem que seu desaparecimento provocasse
qualquer comoção.
Hoje, compreendo que o lançamento de Flan, abstraídas as alegrias
profissionais que proporcionou – foi, afinal, um grande e belo semanário –,
representou um erro político. Açulei os que me invejavam num momento em
que não tinha força suficiente para resistir a seus ataques. Da mesma forma,
errei politicamente ao assumir o controle da Rádio Clube, que pertencia a
Hugo Borghi, um conhecido aventureiro que participara ativamente da
campanha de Getúlio em 1950 – foi ele quem atribuiu ao brigadeiro Eduardo
Gomes o uso da expressão “marmiteiros”, referindo-se aos pobres que
votavam em Getúlio. A emissora nascera com o nome de Rádio Roquete
Pinto, em homenagem ao pioneiro da radiofonia no Brasil. Mais tarde
passaria a chamar-se Rádio Mundial, nome com o qual segue funcionando no
Rio de Janeiro.
Quando me procurou para oferecer-me a emissora, Borghi estava em
dificuldades financeiras. Isso era muito comum naquela época. Donos de
emissoras de rádio, de jornais ou de editoras em má situação econômica
costumavam ver em mim a solução para todos os seus problemas. A seus
olhos, eu era o aventureiro vitorioso, um gângster que dera certo. Borghi
investira uma quantia milionária na importação de alguns equipamentos,
entre os quais uma torre de transmissão bastante moderna, uma das mais
potentes em todo o país. Impossibilitado de pagar a dívida, com os canais de
crédito fechados e às voltas com uma emissora agonizante, Borghi propôs
que eu assumisse o controle da Rádio Clube em troca dos débitos por ele
contraídos. O credor era o Banco do Brasil. Achei que uma emissora de rádio
seria importante como peça de apoio a meus jornais. Procurei Getúlio e
relatei-lhe a proposta que ouvira.
– Para um jornal, uma rádio é como janela para uma casa – disse Getúlio,
que gostava de resumir seus pontos de vista em boas frases curtas.
Esclareci ao presidente que o credor de Borghi era o Banco do Brasil.
Getúlio retrucou que achava a compra da rádio um bom negócio, ressalvando,
porém, que eu procurasse o general Anápio Gomes, encarregado do setor que
cuidava das concessões de rádio. Dependendo do que o general dissesse
sobre a situação da Rádio Clube junto ao Banco do Brasil, o governo poderia
autorizar-me a assumir seu controle. Fui à procura do Anápio Gomes, que me
mostrou um relatório dando conta da posição da emissora. Segundo esse
parecer, a Rádio Clube tinha 2% de chances de sobrevivência. Resolvi
insistir. Voltei a Getúlio e argumentei que era um dever do governo salvar
uma emissora fundada pelo pai do rádio no Brasil, um patrimônio nacional.
Vargas acabou concordando. Fizeram-se algumas manobras, determinadas
negociatas, e as ações passaram às minhas mãos. Para evitar problemas legais
e driblar o cerco dos inimigos, coloquei-as em nome do escritor Marques
Rebello, que trabalhava na Rádio Clube. Essa providência, como logo
veremos, resultaria inútil.
Como nada entendia de rádio, fiquei nas mãos de Marques Rebello e de
Sérgio Vasconcelos, um profissional que trabalharia por muitos anos na
Rádio Nacional. Marques Rebello adorava programas megalomaníacos, como
montar uma radiofonização de Ressurreição, de Leon Tolstoi, com elenco de
duzentas pessoas. Sentia-me orgulhoso e envaidecido por ser dono de uma
emissora de rádio. Na prática, contudo, ajudava pouco. Eu passava por lá
diariamente, ali recebia alguns visitantes, cuidava dos anúncios. Mas era só.
Sempre atentos a meus movimentos, Chateaubriand e Lacerda investiram
furiosamente contra a Rádio Clube, sustentando a tese de que eu a recebera
de graça do governo. Era inútil lembrar, como provava o primeiro balanço da
rádio sob minha gestão, que a situação econômica da empresa, embora
permanecesse no vermelho, melhorara muito. Meus dois adversários
acusavam-me de ter assaltado o Banco do Brasil, e exigiam que as ações
fossem confiscadas. Havia muitos interessados no controle da emissora, e um
dos mais vorazes era Emílio Carlos, um dos líderes do movimento janista,
que depois se elegeria deputado federal e morreria ainda moço.
A certa altura, Lacerda e Chateaubriand descobriram uma norma legal
segundo a qual nenhuma ação de empresa radiofônica poderia ser transferida
a quem quer que fosse sem a prévia autorização do Ministério da Viação, que
naquela época supervisionava esse setor. Como eu transferira minhas ações a
Marques Rebello sem adotar essa cautela burocrática, meus adversários
conseguiram ali o pretexto ansiado. Subitamente, Getúlio cedeu às pressões e
autorizou que a concessão me fosse confiscada. Nunca soube precisamente o
que levou Vargas a recuar; sei, apenas, que ele cedeu. Perdi o controle da
Rádio Clube, mas não me livrei da dívida junto ao Banco do Brasil. Foi um
golpe duríssimo.
Hoje, vejo com clareza que deveria ter recusado a proposta de Hugo
Borghi. Mas a verdade é que sempre fui um aventureiro, e um aventureiro é,
por definição, um otimista. Nenhum pessimista pode transformar-se num
aventureiro. Cristóvão Colombo, por exemplo, é possível imaginá-lo
pessimista? Se o fosse, jamais teria encontrado a América. Assim, passei toda
a minha vida agindo como se tudo que fazia estivesse fadado a dar certo. Agi
dessa forma em relação à Rádio Clube. Em 1953, quando a concessão me foi
subtraída e transferida para Emílio Carlos, compreendi que fizera um mau
negócio.
Meus adversários multiplicaram a intensidade da ofensiva. Em manchetes,
os jornais de Chateaubriand anunciavam que eu estava falido. Financistas que
negociavam comigo retraíram-se, anunciantes amedrontaram-se,
fornecedores passaram a exigir mais garantias. Ficou evidente, naquele
episódio, que eu já não era o delfim de Getúlio, já não trafegava com tanto
desembaraço pelos corredores palacianos; já não tinha, enfim, tanto poder. A
transferência de ações de empresas radiofônicas para terceiros era rotineira,
uma prática generalizada no Brasil. No momento em que uma esquecida
norma legal foi acionada contra o amigo do presidente, tornou-se claro que a
amizade já não era a mesma. Eu fora cassado, afinal, justamente pelo governo
ao qual dava sustentação política. Apesar da surpresa, apesar da decepção,
compreendi o gesto de Getúlio. Na luta política, há o momento do avanço, o
momento do recuo, o momento da negociação. Naquele instante, Vargas
achara conveniente sacrificar a rádio. Compreendi seu gesto, mas continuo
convencido de que ele cometeu um grave erro político. Ficou transparente
que a estrutura política do governo estava gravemente enfraquecida.
Até então, meus interlocutores me recebiam como se eu fosse um emissário
do poder. Entrava na sala do presidente do Banco do Brasil sem pedir
audiência e sem bater à porta. Ele sempre achava que, se fizesse cara feia,
seria atacado no dia seguinte pela Última Hora e perderia o cargo. E quem
entrava sem se fazer anunciar no gabinete do Banco do Brasil, naturalmente
não tinha ido lá para conversar amenidades; sempre saía com os bolsos
cheios de dinheiro. Quando me tiraram a Rádio Clube, meu prestígio foi
fundamente abalado. Compreendi então que, se fosse necessário, Getúlio não
hesitaria em sacrificar-me. Decidi que chegara a hora de fortalecer minha
empresa e prepará-la para a eventualidade de ter de sobreviver sem a mão
amiga de Vargas.
Ali se rompera uma cadeia que explicava minha força. Eu era o amigo do
Homem, que era o amigo do povo. Logo, eu era amigo do povo, que tinha,
portanto, de comprar meus jornais. Da mesma forma, eu era amigo do
Homem, que era o amigo dos industriais progressistas, que tinham, portanto,
de anunciar em meus jornais. Essa cadeia foi desfeita no momento em que
meu amigo, o Homem, cedeu a quem intentava destruir-me. Tratei de ir à luta
pela sobrevivência, e busquei fórmulas que ampliassem o espaço da
publicidade. A Última Hora tinha, por exemplo, bons anunciantes no
comércio. Mas eles não dispunham de condições econômicas para anunciar
diariamente. Ofereci-lhes, então, descontos extremamente atraentes – meus
competidores não eram capazes de igualá-los. Eu precisava
desesperadamente daquele dinheiro, e fazia todas as concessões possíveis
para obtê-lo. Deu certo: em pouco tempo, a Última Hora garantiu um vasto
espaço publicitário, que representava um importante fator de sobrevivência e
lhe permitia reduzir drasticamente seu grau de dependência do governo. Fiz
horrores para conseguir anúncios, vendi minha alma ao diabo, corrompi-me
até a medula. Em certas ocasiões, cheguei a namorar filhas de comerciantes
para fechar negócio. Mas sempre agi assim para que a Última Hora
permanecesse viva, para que resistisse às provações que se aproximavam.
CAPÍTULO 24

Enquanto durou, minha convivência com Getúlio Vargas foi


invariavelmente fraterna, solta, sem subterfúgios, sem malícia. Éramos
amigos e, eventualmente, cúmplices. Ele às vezes me comovia com
preocupações paternais – queria saber se minha saúde andava bem, ou fazia
carinhosos reparos a algum exagero que eu cometera. Sabia que podia confiar
em mim, e confiava-me pequenas intimidades, quase sempre em mensagens
cifradas. Certa vez, por exemplo, interessou-se por um isqueiro Dupont que
eu usava.
– Tu deste um isqueiro como esse para o Jango? – perguntou.
Contei-lhe que fizera uma troca com João Goulart.
– Não tenho nada para trocar, mas gostaria de ter um isqueiro desses –
sugeriu.
Deduzi imediatamente que ele pretendia presentear alguma mulher; afinal,
Vargas só fumava charutos, isqueiros lhe eram de pouca valia. Dei-lhe meu
Dupont. Dias depois, revi-o nas mãos de uma mulher da alta sociedade
carioca.
Entre 1950 e meados de 1954, quando me afastei do Catete, eu e Getúlio
trocamos numerosas demonstrações de real afeto. Sempre que julgava
necessário, eu agia como se pertencesse à família Vargas. Foi assim, por
exemplo, quando tentei impedir que dona Darcy e Alzirinha comparecessem
a uma festa oferecida pelo costureiro Jacques Fath no Castelo de Corbeville,
em Paris. O pretexto para a festa seria a apresentação de uma coleção de
Jacques Fath em tecidos Bangu. Mas eu conhecia os usos e costumes de
Paris, e sabia até onde poderia chegar um evento desse gênero. Eram festas
com alto grau de permissividade, e pressenti que não seria recomendável a
presença de parentes do presidente da República.
Na véspera da festa, no verão de 1952, pedi a Getúlio que me recebesse em
audiência às nove horas da manhã seguinte. Eu estava muito preocupado. Ele
não me respondeu. Conhecia os horários do presidente. Vargas costumava
acordar entre seis e meia e sete horas, fiel aos hábitos madrugadores de
estancieiro gaúcho. Depois do banho e do café da manhã, despachava com
seus oficiais de gabinete entre nove e onze e meia. Nesse horário, ninguém
devia interrompê-lo. Entre um e outro despacho, Getúlio ficava entregue às
suas reflexões, meditando sobre o que faria ao longo do dia. Só à tarde ele
concedia audiências, mesmo a seus ministros. Decidi ir ao Catete e conversar
com o presidente, com ou sem audiência marcada. No Catete, expliquei a
Lourival Fontes que precisava alertar Getúlio sobre a armadilha que contra
ele se preparava em Paris.
Eu acabara de tomar conhecimento dessa armadilha, e ficara alarmado. Na
festa em Corbeville, Jacques Fath apresentaria à alta costura francesa os
tecidos Bangu, utilizando jovens brasileiras para desfilar suas roupas. Uma
dessas jovens seria Danuza Leão, que eu mal conhecia àquela época. Até aí,
nada demais. O problema é que a ideia partira de Assis Chateaubriand, o
velho inimigo de Vargas, que vislumbrava no evento uma ótima oportunidade
para ridicularizar o presidente da República. Jacques Fath chegou ao requinte,
sempre em parceria com Chateaubriand, de articular a ida a Paris de um avião
especialmente fretado para a festa, que decolou do Rio de Janeiro lotado de
colunáveis. Entre os convidados de honra figuravam a mulher e a filha de
Getúlio, que já estavam na França. Fui informado de que Carlos Lacerda
destacara repórteres e fotógrafos para cobrir a noitada e transformá-la em
escândalo. Getúlio precisava saber disso.
No Catete, passei a Lourival Fontes essas informações e exortei-o a alertar
Getúlio.
– Não vou falar com ele sobre isso – retrucou Lourival. – Trata-se de um
assunto privado.
Disse-lhe que, nesse caso, eu falaria pessoalmente com Vargas.
– Ele não vai te receber – advertiu Lourival.
Subi até o segundo andar, onde ficava o gabinete presidencial, bati na porta,
alheio aos apelos desesperados de um oficial da Marinha, e entrei.
– Dá licença, presidente – anunciei-me a Getúlio, que estava em meio a um
despacho com seu assessor econômico, Rômulo de Almeida.
– Que fazes aqui a esta hora, Profeta? – perguntou-me.
– Tenho um assunto da maior importância para tratar com o senhor.
Ele pediu-me que esperasse um pouco, mandaria chamar-me. Minutos
depois, o presidente convocou-me a seu gabinete, e pude revelar-lhe os
detalhes da trama.
– Mas a Darcy vai a essa festa? – espantou-se.
Expliquei-lhe que a primeiradama não só iria a Corbeville como também
presidiria o evento. A mulher e a filha de Vargas estavam em Paris há um
mês, e ele imaginava que se tratava de uma simples viagem de férias. Pediu-
me detalhes do que se preparava em Corbeville. Contei-lhe o que costumava
ocorrer nessas noitadas. Como se tratava de uma festa à fantasia,
exemplifiquei, não era improvável que aparecessem nos jornais fotos da
primeira-dama do Brasil ao lado de Jacques Fath vestido de fauno. Seria um
excelente pretexto para Lacerda afirmar que, enquanto o país vivia às voltas
com dificuldades econômicas graves, a família presidencial se divertia em
bacanais parisienses.
Inquieto, irritado, Getúlio determinou que eu localizasse Alzirinha em Paris
e transmitisse suas ordens: ela e a mãe não deveriam ir à festa. Naquela
época, um telefonema para a França demorava quatro horas. Consegui ligar
para a embaixada brasileira em Paris e chamei Lourdes Lessa, secretária
particular de Getúlio. Lourdes já atendeu com comentários deslumbrados
sobre a noitada em Corbeville. Tive de quebrar-lhe o entusiasmo,
transmitindo-lhe o estado de espírito do chefe. Constrangida, Lourdes passou
o telefone a Alzirinha. Repeti o recado à filha de Getúlio, mas foi inútil. A
princípio, Alzirinha respondeu que, diante das ordens do pai, desistiria de
comparecer à festa em Corbeville, mas avisou que dificilmente alguém
convenceria dona Darcy a fazer o mesmo. Depois, ela decidiu que também
iria, porque não pretendia deixar a mãe sozinha em Corbeville. Voltei a
Getúlio e relatei-lhe a conversa que tivera com Alzirinha. Ele reagiu com um
sonoro palavrão – não sei se endereçado à mulher e à filha, que haviam
resolvido desobedecer, ou a Assis Chateaubriand, que decidira infernizar-lhe
a vida.
Infelizmente, minhas previsões se confirmaram. Dois dias depois, quando
chegaram as fotos de Paris, Lacerda publicou-as com enorme destaque,
dedicou quatro páginas à festa de Jacques Fath e batizou-a de “A Bacanal de
Corbeville”. Getúlio determinou a Dona Darcy e Alzirinha que ficassem mais
algumas semanas na Europa, até que a celeuma provocada por Lacerda
amainasse. Mas a família do presidente fora duramente atingida no plano
moral.
Minha intimidade com Getúlio transformou-me num intermediário
privilegiado e, compreensivelmente, num alvo irresistível para interessados
no tráfico de influências. Mesmo figuras importantes procuravam minha
ajuda, seduzidas pela soma de poderes que eu conquistara. Foi o caso de
Walter Moreira Salles, então um banqueiro já bastante poderoso. No começo
de 1952, Walter convidou-me para um almoço no Clube Internacional, um
dos mais exclusivos do Rio de Janeiro. Durante a conversa, confidenciou-me
que gostaria de voltar à vida pública. Eu quis saber exatamente o que
desejava, e ele me revelou que ambicionava ser nomeado embaixador em
Washington. Naquele momento, a embaixada era chefiada por um adversário
de Getúlio, e sua substituição parecia inevitável. Havia pelo menos dois
candidatos: Euvaldo Lodi, o influente industrial paulista, e Walter Sarmanho,
cunhado de Vargas. Achei que Walter Moreira Salles tinha boas chances de
conseguir o posto, inclusive porque mantinha um ótimo círculo de amizades
nos Estados Unidos.
Dispus-me a trabalhar por sua indicação, e Walter quis saber o que eu
desejava em troca. Conversa muito franca, como se vê. Pedi-lhe que me
conseguisse recursos para comprar uma rotativa, ele concordou prontamente.
Fui a Getúlio, transmiti-lhe o pleito de Walter e esclareci que se a indicação
se consumasse a Última Hora receberia um tipo de apoio muito importante.
Getúlio ponderou que não seria fácil e forneceu-me indícios de que já se
resolvera pela nomeação de Euvaldo Lodi. Insisti. No fim da conversa, ele
me pediu que conversasse com Lodi e averiguasse seu real interesse pelo
posto em Washington. Conversei com Lodi pouco depois, e dele ouvi que
nada o faria trocar a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo pelo
posto de embaixador nos Estados Unidos. Imediatamente, passei a Getúlio os
resultados da sondagem, cada vez mais confiante na indicação de Walter
Moreira Salles.
No sábado de carnaval de 1952, o presidente convocou-me ao Palácio Rio
Negro, em Petrópolis, onde passava as férias de verão. No meio da conversa,
informou-me que gostaria de encontrar-se o quanto antes com Walter Moreira
Salles para submetê-lo a uma sabatina. Compreendi que a indicação de
Walter estava prestes a consumar-se, e que não poderíamos perder tempo.
Alzirinha Vargas não era contra essa nomeação, mas fez algumas
observações. Jango continuava a defender o nome de Sarmanho e outras
figuras do governo antagonizavam meu candidato. Eu precisava agir com
rapidez. Mobilizei inúmeros amigos comuns para que localizassem Walter e
o fizessem aparecer no Palácio Rio Negro o quanto antes. Consegui afinal
encontrá-lo e, na noite daquele mesmo sábado, ele e Getúlio conversaram
depois do jantar.
Eu estava presente ao gabinete de Getúlio quando Walter chegou. Fiz
menção de retirar-me, mas o presidente determinou que ficasse, observando
que eu era amigo do ambos. Assisti à sabatina e pude testemunhar a
habilidade do candidato a embaixador. Vargas fez-lhe perguntas sobre a
política externa brasileira, sobre a possibilidade de captação de novos
empréstimos no exterior e sobre outros detalhes da ação do Itamaraty. Walter
saiu-se muito bem, e Getúlio preveniu-o de que poderia nomeá-lo para uma
embaixada. Pouco depois, ele foi efetivamente indicado para o posto em
Washington, conforme ambicionava.
O banco de Walter fez-me o empréstimo prometido. Assinei uma nota
promissória, convencido de que jamais seria cobrada. Tratava-se, afinal, de
um jogo político. Eu lhe dera um empurrão decisivo para a carreira de
homem público. Em troca, ele ajudara meu jornal. Mas eu teria uma enorme
decepção com Walter Moreira Salles alguns anos depois, quando precisei de
um novo empréstimo para impedir que a Última Hora fosse fechada.
Procurei-o em seu palacete na Gávea para expor-lhe o problema e solicitar-
lhe a quantia necessária. Não era muita coisa. Mas ele ponderou que, àquela
altura, ligar-se a mim era arriscado, e que só poderia atender-me depois de
consultar seu advogado, San Thiago Dantas. Feita a consulta, o homem que
eu ajudara a nomear embaixador em Washington negou-me o empréstimo.
Mais tarde, Walter cobrou-me também a promissória que eu assinara em
garantia do primeiro empréstimo. Perplexo, paguei-a com publicidade. Era
assim o jogo do poder.
Naqueles anos, confundi-me de tal forma com a imagem do poder que, a
certa altura, até mesmo minha vida sentimental pareceu merecer ser
administrada por critérios baseados em razões de Estado. Em junho de 1954,
às vésperas do meu casamento com Danuza Leão, dona Darcy chamou-me
para oferecer um conselho:
– Você não deve casar-se com essa menina – disse a primeira-dama.
Danuzinha enfrentava aquela sociedade com a mesma desenvoltura de uma
Jane Fonda combatendo índios no cinema. Fazia horrores, indiferente aos
comentários em torno. Podia, por exemplo, pintar os cabelos de roxo e as
sobrancelhas de vermelho, caso sua cabeça lhe ditasse tais cores. Danuza agia
segundo bem entendesse, era uma figura desafiadora, e casar-me com ela
configurava mais uma afronta a uma sociedade que me encarava como
intruso. Primeiro, o judeuzinho do Bom Retiro ousara juntar-se ao clube da
imprensa. Agora, casava-se com a musa do Country Club. Era demais. Dona
Darcy não tinha, naturalmente, essa espécie de preconceito. Ela apenas
desconfiava de que a ousadia era excessiva.
Quando me casei com Danuza, em junho de 1954, eu já não era muito bem-
vindo ao Catete. Getúlio continuava a demonstrar-me muita estima, mas
estava claro que minha presença se tornara incômoda. Gestos, olhares,
sussurros – toda a coreografia dos áulicos mostrava que todos ficariam muito
felizes se eu deixasse de aparecer no Catete. Nada disso me preocupava;
interessava-me, como sempre, Getúlio Vargas. Num determinado momento,
constatei que o presidente sairia ganhando com a minha ausência, e só então
decidi procurá-lo para conversar sobre o meu destino. Àquela altura, a
campanha contra a Última Hora atingira níveis decididamente perigosos,
graças também a erros que eu cometera, alguns deles com a plena aprovação
de Getúlio. Um desses erros foi estimular a instalação de uma comissão
parlamentar de inquérito para investigar a trajetória da Última Hora.
A ideia da constituição de uma CPI surgiu durante uma viagem de carro
entre São Paulo e o Rio de Janeiro, em companhia de Maurício Goulart.
Estávamos no começo de 1953 e, embora estivessem em moda nos Estados
Unidos, graças ao macartismo, investigações promovidas pelo Congresso
eram virtualmente inéditas no Brasil. Eu e Maurício conversávamos sobre a
campanha de extermínio comandada por Carlos Lacerda quando me ocorreu a
ideia da CPI. Como o governo tinha maioria no Legislativo, raciocinei,
poderíamos neutralizar as espertezas da oposição udenista. E, concluídas as
investigações, que fatalmente penderiam pela absolvição da Última Hora,
seria difícil a Lacerda insistir nas denúncias. Maurício achou que essa poderia
ser uma boa solução.
Foi meu grande erro. Primeiro: eu deveria ter percebido que a maioria
governista no Congresso era fictícia – muitos deputados não hesitariam em
atraiçoar o presidente. Segundo: mesmo parlamentares francamente getulistas
não tinham maior simpatia por mim; faltavam-lhes, portanto, motivos para
defender-me. Mais grave ainda, só depois constatei que, quando propus a
formação da CPI, Lacerda estava perdendo fôlego. Talvez prosseguisse na
campanha, movido por seu ódio inesgotável, mas o certo é que começava a
faltar-lhe combustível. Lacerda entendeu imediatamente que a CPI lhe
forneceria o palco ideal para o show de falso moralismo que sempre soube
encenar. Essa percepção faltou até mesmo a Getúlio Vargas: quando lhe
apresentei a ideia que tivera, o presidente aprovou-a de imediato. Nenhum de
nós anteviu que estávamos oferecendo ao inimigo justamente a arma de que
necessitava.
A vaidade me induziu a outros erros, um dos quais foi enfrentar a primeira
fase das investigações sem um advogado para orientar minha defesa. Optei
por uma linha demasiado romântica. Para rebater as acusações forjadas contra
mim organizei, com Otto Lara Resende, um documento que batizamos de “O
Livro Branco da Imprensa Amarela”. Esse documento é hoje uma peça
indispensável à compreensão da história do jornalismo brasileiro, mas apenas
excitou, àquela altura, os interesses que se conjugavam para tentar um assalto
final à Última Hora.
A maioria dos integrantes da CPI fora pessoalmente indicada por Getúlio,
mas logo ficou claro que poucos mereciam confiança. Quase todos passaram
a exigir vantagens – nomeações, favores – em troca do apoio a mim. À frente
dos meus adversários, Lacerda recorreu aos serviços do escritório de
advocacia de José Nabuco e montou o cerco. Em vez de articular
cuidadosamente minha defesa, preferi divertir-me redigindo com Otto Lara
Resende o “Livro Branco”. Rimos muito durante duas, três noites, ao longo
das quais rebati todas as acusações que me eram feitas e distribuí bordoadas
nas cabeças de todos os meus acusadores. Mas eu pagaria caro por tamanha
ingenuidade. Os trabalhos da comissão se estenderam por meses a fio,
dezenas de pessoas foram ouvidas, e as pressões contra mim e a Última Hora
se tornaram terrivelmente agudas. Apesar do farisaísmo das acusações, sofri
um cerco tremendo. Se eu tivesse recorrido a tempo à ajuda de advogados,
certamente escaparia a esses dissabores, sempre provocados por escorregões
decorrentes do meu desconhecimento jurídico.
Decididamente, eu enfrentava profissionais, capazes de aparar meus golpes
e, sempre que possível, até mesmo metamorfoseá-los em trunfos a seu favor.
Num de meus depoimentos, por exemplo, comecei a descrever a situação da
imprensa, classificando os jornais pela tiragem, e resolvi ironizar a péssima
circulação da Tribuna da Imprensa. Em primeiro lugar, frisei, aparecia a
Última Hora. Discorri rapidamente sobre os outros jornais e cheguei à
Tribuna: “Como um lanterninha da imprensa, aí está esse jornal que recebia
dinheiro dos católicos”, ironizei, usando o jargão do futebol. Aconselhado
por amigos, Lacerda escreveu prontamente um editorial em que prometia
transformar-se na lanterna de Diógenes, para sair às ruas não à procura de um
homem honesto, mas de ladrões. Em seguida, fundou o Clube da Lanterna,
que reuniria lacerdistas fanáticos, as célebres mal-amadas e oficiais golpistas.
Sem dúvida, Carlos Lacerda era um adversário perigoso.
CAPÍTULO 25

Era uma guerra sem quartel, sem tréguas, sem limites. O objetivo dos meus
inimigos – destruir a Última Hora – não seria alcançado sem que eu fosse
destruído, e precisamente por isso as agressões pessoais não conheciam
fronteiras. Eu revidava também agressivamente, com dureza. Como o jornal
era um sucesso, tinha ali uma fortaleza muito bem guarnecida.
Entrincheirados na redação, eu e meus companheiros alternávamos virulentas
ofensivas contra Lacerda e períodos em que o ignorávamos por completo. Ele
sentia nosso desprezo por sua figura, e isso o feria profundamente. Afinal,
tratava-se de um homem que acuava presidentes, derrubava ministros,
intimidava generais, quebrava bancos. Não podia admitir que alguém
simplesmente o desprezasse.
Creio que uma das razões de minha sobrevivência como homem e como
profissional foi a dignidade que sempre mantive em relação a Lacerda, a
coerência da minha postura durante a luta e depois dela. Jamais admiti a
possibilidade de acordos, jamais cogitei qualquer espécie de acerto. Aceitei o
combate, e soube enfrentá-lo de peito aberto. Hoje, tenho consciência de que
o grande papel da Última Hora, neste aspecto, foi desmistificar a imagem de
Carlos Lacerda. Nós o mostramos ao país como ele realmente era, golpeamos
duramente a imagem que Lacerda pretendia tornar oficial. Se algum jornal
tivesse desempenhado papel semelhante no começo da ascensão de Adolf
Hitler, a história da Alemanha – e do mundo – poderia ter sido outra.
Esse pensamento me ocorreu quando ouvi, no rádio do carro, a notícia da
morte de Carlos Lacerda. Ele foi o responsável direto pela interrupção do
processo de fortalecimento econômico da Última Hora, impedindo que se
consolidasse no Brasil a imprensa genuinamente popular. Em contrapartida,
meu jornal impediu que ele se tornasse um ditador.
Costumo dizer que a Última Hora tinha tudo para transformar-se numa
Volta Redonda da imprensa brasileira. Para fechar o caminho a um jornal
popular, nacionalista, Carlos Lacerda usou métodos de terrorismo psicológico
até então desconhecidos no país. Atento às técnicas macartistas em curso nos
Estados Unidos, ele passou a amedrontar as pessoas que se aproximavam de
mim mesmo em encontros casuais numa rua qualquer. A Tribuna da
Imprensa divulgava informações do tipo “Fulano foi visto conversando com
Samuel Wainer na avenida Rio Branco. Trajava um terno azul e gravata
listrada. O que será que estavam conversando?”. Era um clima de completo
terror, e mesmo velhos amigos meus começaram a mostrar-se assustados.
Mas a Última Hora sabia revidar, sem dúvida. Escrevíamos artigos terríveis
contra Carlos Lacerda, vigiávamos estreitamente seus passos e,
principalmente, não perdíamos chances de ridicularizá-lo. Às vezes alguma
tentativa nessa direção falhava, como ocorreu no episódio em que apontei a
Tribuna da Imprensa como “lanterninha” entre os jornais. Em outras
ocasiões, contudo, atingíamos o alvo em cheio. Foi assim no incidente a
partir do qual Lacerda seria nacionalmente conhecido como “Corvo”.
Trabalhava comigo um repórter policial chamado Nestor Moreira. Era,
como tantos outros, um repórter sem maior brilho, que percorria o submundo
das delegacias e depois telefonava para a redação transmitindo as ocorrência
do dia. Num dia de 1954, Nestor Moreira teve um atrito com um policial,
lotado numa delegacia de Copacabana, cujo apelido era “Coice de Mula”.
Não sei exatamente o que ocorreu, mas o fato é que Nestor foi espancado e
morreu. Jornalista, como sabemos, não pode sequer ser agredido, muito
menos morrer: para os demais jornalistas, trata-se de uma espécie de atentado
ao patrimônio nacional. Nesses momentos, explode o conhecido sentimento
de solidariedade existente na imprensa brasileira, que já fabricou tantos
mártires. Nestor Moreira seria um deles.
Tão logo começou a correr a notícia de sua morte, os inimigos de Getúlio
lançaram-se à tentativa de transformar o fato numa questão política que
complicasse o governo. Nestor Moreira teve um enterro com o qual jamais
sonhara. Seu corpo foi levado para a Câmara Municipal, o povo desfilou ao
lado do esquife. Os organizadores da cerimônia decidiram que o repórter
deveria ser enterrado no Cemitério de São João Batista. Sempre detestei
comparecer a enterros, e decidi que não iria ao de Nestor Moreira. O pessoal
da redação começou a pressionar-me, com aqueles apelos de sempre: “Mas
Samuel, ele gostava tanto de você...” Acabei cedendo. No cemitério,
encontrei-me com Octávio Malta e Moacir Werneck de Castro. Fiquei a um
canto, observando o espetáculo. Passavam por mim políticos com fisionomia
contrita, bandos de jornalistas, todos incorporados à encenação. De repente,
vi Carlos Lacerda.
Lacerda estava vestido de preto dos pés à cabeça, aspecto solene, rosto
compungido, ar sofredor. Era o retrato da revolta humana frente à violência
cometida contra um humilde jornalista, vítima da arbitrariedade política.
Quando vi a cena, senti-me enojado.
– Vou-me embora – disse a Octávio Malta. – Não agüento ver a cara desse
corvo na minha frente.
Sempre que ocorria alguma morte interessante, lá estava Carlos Lacerda.
Era um corvo. Nesse momento, o repórter Edmar Morel aproximou-se de
mim em missão conciliatória.
– Samuel, esta hora é para se esquecer divergências. Venha dar a mão ao
Carlos – sugeriu.
– Dar a mão à puta que pariu! – reagi. – Como é que você, Morel, que é meu
repórter, meu amigo, tem coragem de propor uma coisa dessas? O Carlos não
é jornalista, detesta reportagens de polícia e nunca viu o Nestor Moreira em
sua vida. O que vou fazer é ir embora!
Voltei para a redação cuspindo fogo. A meu lado estava Paulo Silveira.
– Você viu o Carlos? – eu repetia, irritadíssimo. – Ele estava com cara de
corvo!
Na redação, convoquei à minha sala o caricaturista Lan e pedi-lhe que
desenhasse Lacerda como um corvo. Em seguida, propus a Paulo Silveira que
escrevêssemos um editorial cujo título, naturalmente, foi “O Corvo”. O texto,
longo e violento, descrevia a cena que vira no cemitério e desancava Lacerda.
Nunca mais o apelido deixaria de acompanhá-lo. Mesmo os funcionários de
seu jornal passaram a referir-se ao chefe como “A Ave”, um bom eufemismo.
Nos comícios de que Lacerda participava, era comum ouvir-se uma voz
berrando no meio da multidão: “Cala a boca, corvo!” Aquilo marcou Lacerda
para sempre, e naturalmente ampliou o ódio que sentia em relação a mim.
Desde 1952, esse ódio agudo, visceral, vinha-se multiplicando, e podia ser
captado em todo o país. Na Tribuna da Imprensa e nos Diários Associados,
reportagens, artigos e editoriais fustigavam-me diariamente. Graças à TV
Tupi, a figura de Lacerda tornara-se familiar a centenas de milhares de
espectadores, que a cada noite ouviam mais acusações contra mim. E o cerco
se tornou incomparavelmente mais agressivo a partir de 12 de julho de 1953.
Nesse dia, o Diário de São Paulo, um dos jornais da cadeia de Assis
Chateaubriand, publicou uma manchete que agitaria o país:

WAINER NÃO NASCEU NO BRASIL


Na véspera do dia em que essa manchete explodiu, um velho jornalista que
trabalhava no Diário de São Paulo telefonou para Octávio Malta, então
redator-chefe da Última Hora, e passou-lhe a notícia: o jornal de
Chateaubriand estava preparando uma edição destinada a provar que eu
nascera numa aldeia chamada Yedenitz ou Yedintsy, na Bessarábia. Foi parte
da Transilvânia, a terra do Drácula, região que hoje pertence à União
Soviética. Malta, meu amigo há mais de trinta anos, ficou perplexo. Não é
possível, reagiu ele, ninguém é mais brasileiro que o Wainer. O informante
insistiu: “O Samuel é bessarabiano, e acho que vocês devem tomar
providências.”
Malta veio imediatamente à minha procura com a informação. Eu lhe disse
que a versão preparada pelo Diário de São Paulo era falsa, mas compreendi
de imediato que a manobra teria um impacto fortíssimo. Primeiro, porque eu
sempre estivera na vanguarda das campanhas nacionalistas – o nacionalismo
talvez fosse a principal bandeira da Última Hora, e ficaria difícil sustentar tal
postura na condição de estrangeiro. Depois, porque a denúncia a ser
publicada pelo Diário de São Paulo suscitaria uma complicada questão legal,
já que, segundo a Constituição, nem estrangeiros nem brasileiros
naturalizados podiam ser donos de jornal. Pressenti que a denúncia poderia
semear o pânico na redação: e se me tomassem a Última Hora?, certamente
se perguntaria meu pessoal. Preparei-me para a luta, consciente de que, dessa
vez, eu estaria francamente na defensiva. No dia seguinte, li o jornal de
Chateaubriand. Ali se afirmava, em letras garrafais, que eu não era brasileiro.
A suposta prova: um documento datado de 1927, extraído dos arquivos do
Colégio Pedro II, no Rio, onde eu estudara. Nesse documento, meu irmão
mais velho, Artur, dizia que eu havia nascido na Bessarábia.
O documento fora obtido graças à ação de Carlos Lacerda e Assis
Chateaubriand, que, auxiliados por Armando Falcão e David Nasser, haviam
vasculhado os arquivos do Ministério da Educação. Segundo o documento,
eu chegara ao Brasil com dois anos de idade. Desencadeada a controvérsia,
meu irmão Artur sustentou que fora ele o único responsável pela afirmação
de que eu não nascera no Brasil. Argumentou que assim agira porque as
famílias de imigrantes, traumatizadas com os horrores da guerra dos quais
haviam sido testemunhas, temiam que seus filhos fossem convocados pelo
Exército do país onde tentavam refazer a vida. Ao declarar-me estrangeiro,
portanto, Artur procurara exclusivamente poupar a família dos traumas
associados ao serviço militar, que nossos antepassados experimentaram de
forma tão dramática. Meus inimigos, previsivelmente, não deram crédito
algum à versão de Artur. Era a palavra do irmão de um réu, nada mais.
Como essa espécie de delito – falsidade ideológica – é, segundo a
legislação, objeto de ação pública, vivi uma situação bastante estranha: fui
processado pelo governo de Getúlio Vargas, justamente o governo que se
tentava atingir com a denúncia. Getúlio, por sinal, costumava brincar com o
caso. “Então, o Profeta é bessarabiano...”, dizia, entre gargalhadas. Ao longo
do processo, entendi que a palavra bessarabiano podia ser pronunciada com
duas entonações diametralmente opostas. Os amigos, como Getúlio, sempre a
pronunciavam em tom afetuoso. Outros, com ódio.
Lacerda e Chateaubriand pronunciavam-na com ódio. Em seus jornais,
sucediam-se manchetes sempre agressivas. “CONFIRMADO: WAINER
NASCEU NA BESSARÁBIA”; “AFINAL, POR QUE ELE QUER SER
BRASILEIRO?”; “WAINER CHEGOU AO BRASIL COM DOIS ANOS.”
Assis Chateaubriand, nessa campanha, não poupou esforços para destruir-me.
A certa altura, enviou à Bessarábia o repórter David Nasser e o fotógrafo Jean
Manzon, incumbidos de localizar Yedenitz. Foi uma reportagem que não
houve. Castigada por tantas guerras, é possível que Yedenitz nem existisse
mais; se existisse, não haveria nenhum Wainer por lá. Chateaubriand não
sabia disso. Tampouco sabia disso o repórter David Nasser.
Quero aqui abrir um parêntese para falar de David Nasser. Nessa luta que
sustentei contra Lacerda e Chateaubriand, David Nasser foi sempre uma
figura menor, mas igualmente carregado de odiosidade contra mim. O abismo
que me separava de Lacerda, ou de Chateaubriand, era perfeitamente
explicável, houvera razões para tanto. Em relação a David, faltavam motivos
razoáveis. Ele fora meu repórter no início da carreira, e eu sempre o ajudara,
sempre o apoiara, dera-lhe chances. Conheci-o ainda muito pobre,
trabalhando em Diretrizes. Depois ele seria contratado pelos Diários
Associados, para ali iniciar uma carreira que o transformaria em milionário.
Creio que David Nasser teve dois trunfos a seu favor. Primeiro, sua
capacidade sem limites para a exploração de temas sensacionalistas.
Segundo, a parceria com o fotógrafo francês Jean Manzon. Um grande
fotógrafo, moderno, terrivelmente talentoso. Ao chegar ao Brasil nos anos 40,
Manzon trazia na bagagem algumas proezas. Foi ele, por exemplo, o autor da
única foto de Nijinsky louco, no manicômio, dançando para a objetiva. Os
flagrantes de Jean Manzon eram geniais. Ele usava um equipamento
extremamente moderno para conseguir esplêndidos registros. Ao juntar-se a
David Nasser, acabou ajudando de modo decisivo um repórter cuja
competência estava bastante abaixo da do seu parceiro.
Juntos, David Nasser e Jean Manzon fizeram reportagens de grande
repercussão, e logo se tornaram as estrelas da revista O Cruzeiro. Numa
ocasião, os dois utilizaram um truque muito comum no jornalismo para
induzir um deputado chamado Barreto Pinto a posar de cuecas para a sua
revista. Manzon disse a Barreto Pinto que pretendia fotografá-lo de casaca.
Como só apareceria o busto, garantiu o fotógrafo, não seria necessário vestir
calças. Barreto Pinto, um pobre diabo, uma figura grotesca que Getúlio
ajudara a eleger também para ridicularizar o Congresso, caiu na armadilha e
posou de casaca e cuecas. Manzon fotografou-o de corpo inteiro e, tão logo a
cena grotesca surgiu nas páginas de O Cruzeiro, sublinhada por um texto de
David Nasser, o Congresso entendeu que o decoro parlamentar fora
irremediavelmente afetado. Barreto Pinto acabou cassado pelos próprios
deputados, e David Nasser pôde apresentar-se como um campeão da
moralidade.
David atirava-se com voracidade a todos os casos que cheirassem a
sensacionalismo, para abordá-los com seus artigos violentos, verborrágicos,
audaciosos. Foi assim no famoso “Caso Aída Curi”, uma jovem carioca
estuprada e jogada do alto de um prédio em Copacabana. De todos os
episódios desse gênero, David Nasser tirava algum proveito financeiro – ele
jamais se colocava gratuitamente de algum lado. Aos poucos, foi-se
vinculando aos setores mais direitistas, mais reacionários da política
brasileira, até tornar-se seu porta-voz. Ali encontraria o caminho para
enriquecer. Por sempre ter sabido escolher o lado que mais lhe convinha, o
repórter pobretão que eu conhecera chegou ao fim da vida promovido a
empresário e grande pecuarista.
Poucas figuras foram tão nefastas à profissão de jornalista quanto David
Nasser: ele é a prova acabada de que é possível enriquecer utilizando em
proveito próprio os instrumentos oferecidos pela profissão. Eu fui dono de
empresa e poderia perfeitamente ter-me tornado milionário. Pois jamais
cheguei a ficar rico, embora os inimigos me acusassem de ladrão, bandido,
gângster, corrupto. Já David Nasser, um mero repórter, além de autor de
modestos sambinhas de carnaval, conseguiu juntar enormes quantias. Não é
possível tê-lo feito honestamente. Igualmente intrigante, por sinal, é o
processo de enriquecimento de Carlos Lacerda. Ainda no fim dos anos 40, ele
era apenas um colunista de jornal. Depois de assumir o comando de um
jornal permanentemente deficitário e de passar à militância política, deixou
uma fortuna. Acho tudo isso muito estranho, até porque Lacerda sempre foi
um mau empresário, sem qualquer ousadia, que se atemorizava diante da
necessidade de assinar alguma nota promissória.
David Nasser, admito, era mais arrojado. Ele conseguiu destacar-se entre o
grupo de bajuladores que cercava Chateaubriand, o que não era fácil. Só se
referia a Chateaubriand como “meu velho capitão”. Cinicamente, simulava
em público discordar do chefe, apenas para depois sentir-se ainda mais livre
para bajulá-lo. Quando Chateaubriand indicou os 21 integrantes do
condomínio acionário que iria sucedê-lo, David foi um dos escolhidos.
Talvez fosse, dentre todos, o que mais se assemelhasse ao chefe. Ambos se
pareciam na odiosidade, no reacionarismo, na falta de generosidade, no
mercenarismo. Ao ampliar sua influência nos Diários Associados, David
passou a usar as armas da pressão, da corrupção, eventualmente da
chantagem, para fazer fortuna. A partir de 1964, tornou-se o principal
intermediário entre os empreiteiros e o governo. Empreiteiros com alguma
soma a receber procuravam David Nasser para que ele apressasse o
pagamento. Naturalmente, era um trabalho que lhe rendia enormes
comissões.
Eu raramente respondia aos ataques de David Nasser. Essa era uma das
técnicas que eu usava: concentrava-me nos alvos principais, como Lacerda e
Chateaubriand, e evitava perder tempo com figurantes. Ele seguia destilando
seu ódio, que não arrefecia nem mesmo quando eu parecia vencido. Em 1964,
por exemplo, quando tive de exilar-me, David escreveu um artigo raivoso,
detestável, cujo título era “Boa viagem, Samuca”. Movido por tamanha carga
de ódio – uma decorrência, imagino, da frustração que sentia ao constatar
minha superioridade profissional sobre ele, David Nasser participou com
entusiasmo sádico da campanha destinada a destruir-me, e que chegou a seu
auge quando se levantou a questão da minha nacionalidade.
Nessa mesma ofensiva de que David Nasser participou, outros repórteres
foram despachados para o bairro do Bom Retiro, em São Paulo, e
encarregados de encontrar provas que confirmassem minha condição de
estrangeiro. Nada conseguiram. Em seguida, Chateaubriand ordenou que
vasculhassem a documentação relativa aos passageiros dos navios que, entre
1905 e 1920, haviam deixado o porto de Gênova, na Itália, com destino ao
Brasil. Ele sabia que os Wainer haviam embarcado em Gênova, cujo porto
era o ponto de partida obrigatório para os imigrantes que vinham da
Bessarábia. Também aí a busca revelou-se inútil.
É preciso registrar que, em meio a essas manifestações de ódio, fui alvo de
comovedoras demonstrações de afeto e solidariedade. Durante o processo,
vários judeus do Bom Retiro, por exemplo, ofereceram-se para testemunhar
que haviam assistido à minha circuncisão, prova de que eu nascera aqui. Na
imprensa, contudo, o clima era de completa hostilidade – só a redação da
Última Hora combatia a meu lado. Quanto aos outros jornais, não encontrei
sequer quem me ajudasse pela via da omissão. Paulo Bittencourt, dono do
Correio da Manhã, dissera no início da ofensiva que nada faria para
prejudicar-me. Acreditei, sobretudo porque se tratava de um homem de
origens aristocráticas, um cavalheiro. Fui à casa de Paulo Bittencourt, certa
noite, para pedir-lhe que continuasse fora da polêmica. Ele prometeu que não
tomaria partido. Poucos dias depois, o Correio da Manhã publicou um
raivoso editorial contra “o bessarabiano”.
Compreendi, àquela altura, que teria de guerrear sozinho contra todos.
Convoquei meus auxiliares diretos na redação da Última Hora para dizer-lhes
que estávamos numa luta de vida ou morte, e que nossos adversários teriam
de ser enfrentados no campo de combate que haviam escolhido. A partir daí,
nada nos escapava. Publicávamos fotos de Chateaubriand dormindo em
sessões do Senado, apontávamos erros de edição em seus jornais, usávamos
adjetivos duríssimos nas manchetes da Última Hora. O jornal mantinha a
qualidade, mas já começava a sofrer as consequências da retração dos
anunciantes; ao perceberem que o cerco se fechava, eles procuravam afastar-
se do alvo da maldição. A certa altura, os salários passaram a ser pagos com
atraso, ou através de expedientes um tanto extravagantes. No dia do
pagamento, alguns de meus jornalistas recebiam, em vez de dinheiro,
geladeiras, panelas de pressão, coisas desse tipo. Tais dificuldades, num
primeiro momento, envolveram a luta numa atmosfera romântica. Mas todos
sabíamos que não poderia ser sempre assim, e não demorei a constatar que
passara a hora de romantismos.
CAPÍTULO 26

Nada teve de romântico o interrogatório a que fui submetido, no início de


1953, num distrito policial do Mangue, a zona do meretrício do Rio de
Janeiro. A escolha desse local obedecia a uma estratégia cujo objetivo era
humilhar-me. Eu poderia ter sido levado a uma delegacia de Copacabana, ou
do Centro – em qualquer delas poderia ter sido instaurado o inquérito. Não:
quiseram que eu fosse ao Mangue, e para ser colocado diante do único
delegado negro do Rio de Janeiro. Ele se chamava dr. Lírio Branco do Brasil,
e era titular do 14° Distrito. Foi ali que ouvi uma pergunta inesquecível:
– Senhor Wainer, qual é a primeira imagem física que o senhor guarda da
sua pátria?
Ele certamente esperava que eu me referisse às estepes da Bessarábia.
Respondi-lhe que a mais remota imagem guardada em minha memória era a
da várzea do Bom Retiro, e descrevi em pinceladas ligeiras os jogos de
futebol com os amigos, os passeios de barco no Tietê inundado.
– Ah, que belas imagens! – exclamou o delegado. – Mas o senhor não tem
outras? – insistiu.
Ele continuava sonhando com as estepes bessarabianas. Disse-lhe que
poderia descrever outras imagens; bastaria repetir o que me contara minha
avó Raquel, nascida na Bessarábia, mulher com quem tive sempre enorme
afinidade. O dr. Lírio Branco do Brasil pareceu novamente bem
impressionado.
– Esse é um sinal de bom caráter – decidiu. – Eu também tinha uma ligação
muito forte com minha avó.
O diálogo ia tomando rumos surrealistas. Aproveitei o clima e segui
falando de minha avó Raquel. Contei que, no carnaval, eu costumava
comprar-lhe frascos de lança-perfume, que ela adorava. A velha Raquel
ficava encantada com aquele perfumezinho, e retribuía o presente com
histórias ocorridas na aldeia onde meus antepassados haviam vivido por
quase dois mil anos.
A certa altura, o delegado resolveu cortar aquelas reminiscências.
– Então, por que o senhor fez esse pedido de inscrição no Colégio Pedro II
afirmando ter nascido na Bessarábia? – perguntou.
Expliquei-lhe que fora uma decisão de meu irmão mais velho, eu era uma
criança naquela ocasião.
– Na minha família também era assim, o irmão mais velho comandava tudo
– emendou o dr. Lírio Branco.
O estranho diálogo foi testemunhado por jornalistas do Brasil inteiro e
vários correspondentes estrangeiros. É provável que a maioria deles tenha
ficado simplesmente perplexa.
Hoje, quando lembro o episódio do interrogatório, não resisto à vontade de
rir – tudo aquilo foi demasiado grotesco. Outros capítulos do drama que vivi,
contudo, nada tiveram de divertido. Foram terríveis. Um deles, especialmente
amargo, envolveu um de meus irmãos, José. Em julho de 1953, decidido a
socorrer-me, José entendeu que poderia encontrar no Ministério do Trabalho
algum documento capaz de comprovar que nossa família chegara ao Brasil
em 1905. Nesse caso, eu teria indiscutivelmente nascido neste país. José
circulou alguns dias pelos corredores do Ministério. Encerrada essa incursão
burocrática, ele trazia uma declaração, subscrita por um funcionário do
Ministério, segundo a qual uma família Wainer teria aportado no Brasil em
1905. Depois de examinar o certificado, telefonei para meu advogado e
comuniquei-lhe o que tinha em mãos. O advogado ponderou que não
convinha divulgá-lo naquele instante: melhor guardá-lo para algum momento
decisivo, durante o julgamento.
Ao saber da existência do documento, porém, o pessoal da redação
ameaçou rebelar-se. Todos ali estavam convencidos de que era indispensável
torná-lo público o quanto antes. Octávio Malta veio à minha procura com a
informação de que seria impossível controlar a redação se não publicássemos
o documento.
– A cidade está tomada pelo boato de que o jornal será fechado amanhã
porque Samuel Wainer é estrangeiro – advertiu Malta. – Se não
apresentarmos qualquer contraprova mostrando que você é brasileiro, todo
mundo vai desertar do jornal, porque não haverá como resistir.
Então, concordei com a divulgação do documento. No dia 18 de julho de
1953, a primeira página da Última Hora soltava a manchete: "CHEGA AO
FIM A GRANDE CHANTAGEM".
A prova era o certificado do Ministério do Trabalho. A princípio, Lacerda e
Chateaubriand ficaram desconcertados, mas souberam reagir com rapidez. No
dia seguinte, Lacerda, acompanhado por David Nasser e Armando Falcão,
praticamente invadiu o Ministério do Trabalho, à caça do documento que
havia fundamentado a solicitação do certificado pelo meu irmão. Tratava-se
de um rol de roupas pertencentes a uma família Wainer, descoberto por José
no meio daquele mundo de papéis. Segundo a versão que seria depois
martelada por meus inimigos, meu irmão teria alterado a data: onde estava
1920 ele escrevera 1905, para depois apresentar o documento a um
funcionário do Ministério e pedir o certificado. Um grafólogo contratado por
Lacerda examinou o papel e afirmou que ocorrera uma falsificação, por sinal
executada com tinta fresca. Foi um escândalo. José acabou envolvido no
processo, acusado de responsável pela fraude, e a intensidade da ofensiva
contra mim tornou-se ainda mais aguda.
Vistas à distância, essas coisas todas parecem inverossímeis. Admitamos
que eu de fato tivesse chegado ao Brasil com dois anos de idade. Ainda
assim, toda a minha história posterior era uma prova de que, além de ser um
brasileiro, sempre amei este país. Pois Lacerda e Chateaubriand enviavam
repórteres ao Bom Retiro à procura de velhos judeus dispostos a testemunhar
que só me tinham visto andando por aquelas ruas já com três anos de idade. É
ridículo, mas foi exatamente assim. Eu conseguira obter uma certidão de
nascimento aos dezesseis anos, num cartório do Rio de Janeiro, atestando que
eu era brasileiro nato, e do Bom Retiro. Claro que não agira dessa forma
guiado pela premonição de que um dia seria dono de um jornal. É que as
velhas famílias de imigrantes chegavam ao Brasil quase sempre sem
documentos, despreocupadas com papéis – mais tarde, raciocinavam,
tratariam de providenciá-los. Pois meus adversários tentaram apresentar
minha certidão de nascimento obtida só aos dezesseis anos como prova de
que eu tudo fizera premeditadamente.
Ao longo do processo, passei por momentos bastante penosos. Meu pai, por
exemplo, foi intimado a prestar depoimento, fato que levaria a um ponto
terrivelmente baixo minhas relações com Getúlio. Depois, num de seus
artigos hidrófobos, Lacerda insinuou que eu teria me casado com Danuza
Leão apenas para tornar-me pai de um filho brasileiro e, com isso, eliminar o
risco de ser expulso do país. Tal perversidade me magoou profundamente –
foi essa uma das razões pelas quais jamais pude perdoar Carlos Lacerda. A
insinuação poderia ter plantado na cabeça de meus filhos uma dúvida cruel, e
a própria Danuza poderia ter tido o direito de sentir-se vítima de um embuste.
Felizmente, ela sempre soube que eu não via necessidade alguma de que nos
casássemos num cartório.
Vi Carlos Lacerda pela última vez no dia 13 de outubro de 1955, na fase
final do processo sobre a questão da nacionalidade, durante uma audiência
em que ele foi ouvido como testemunha de acusação. O juiz me encarava
com ostensiva antipatia, e pressenti que as coisas não acabariam bem.
Lacerda ia tirando documentos de uma pasta. Ele estava lívido, em momento
algum olhou-me nos olhos. Eu, ao contrário, fiquei a observá-lo o tempo
todo, contemplando o perfil do homem que na mocidade fora meu amigo e
agora tentava destruir-me. Poucos dias depois, num júri singular, o juiz
Valporé Caiado de Castro emitiu a sentença. Fui condenado a um ano de
prisão e meu irmão José a quatro. Com a ajuda de amigos, consegui que José
saísse do país, para viver na Argentina até a prescrição da pena. Quanto a
mim, ocorreu-me apenas que seria muito difícil permanecer um ano na cadeia
sem que a Última Hora sofresse danos irreparáveis, até porque a questão da
minha nacionalidade não era a única ameaça brandida por meus adversários.
No Congresso, seguiam as sessões da CPI encarregada de investigar a origem
dos financiamentos que tornaram viável o surgimento da Última Hora. Os
anunciantes do jornal sofriam pressões, e valia toda sorte de intimidações no
esforço para liquidar o único espécime da imprensa popular brasileira.
Durante a longa luta contei, como tenho frisado nestas memórias, com a
ajuda de bravos companheiros de redação, mas frequentemente tive de
enfrentar, como também tenho aqui lembrado, o ceticismo dos meus
parceiros de viagem. No começo de 1954, por exemplo, vários de meus
amigos, assustados com as dimensões do escândalo assumidas pela questão
da nacionalidade, aconselharam-me a transferir as ações que eu possuía para
alguém da minha confiança, um artifício para evitar que fossem confiscadas.
Acabei acatando tais conselhos, e passei as ações para Baby Bocayuva
Cunha, que integrava a direção do jornal. Parecia uma boa solução. Além de
pertencer à aristocracia do Rio, Baby Bocayuva era genro do velho Simões
Filho, um multimilionário expoente das oligarquias baianas que havia
fundado em Salvador o jornal A Tarde, uma espécie de “Estadão” local. Seria
natural que ambos se interessassem pelos destinos da Última Hora.
Simões Filho, que foi ministro da Educação de Getúlio Vargas, era uma
figura interessantíssima. Muito culto e muito reacionário, impressionava
sobretudo pela bravura. Ali estava, sem dúvida alguma, um homem com
incrível capacidade de luta, traço de personalidade acentuado por sua
formação coronelesca. Baby Bocayuva me disse que gostaria de consultar o
sogro sobre o problema das ações. Sugeri que, nesse caso, o convidasse para
aparecer como dono de parte das ações e assumir nominalmente a direção do
jornal. Isso daria credibilidade ainda maior à transação que estávamos
arquitetando. Político tarimbado, o velho Simões topou imediatamente.
Essa manobra se revelaria desastrada. Concluído o acerto, Simões Filho
entrou na redação já perguntando onde ficava a sua sala. Era a minha,
naturalmente. Indiquei-lhe a direção. Ele entrou, sentou-se na cadeira que até
então era a minha, colocou o chapéu e a bengala sobre a mesa e perguntou
qual era o meu contínuo preferido. Era o famoso Dudu. Simões Filho chamou
o contínuo e começou a passar-lhe instruções:
– Olha, seu Dudu, costumo tomar chá às cinco da tarde todos os dias.
Depois, desceu aos detalhes: os biscoitos deveriam ser ingleses e
comprados em determinado estabelecimento, coisas do gênero. Em seguida,
perguntou pelos editorialistas. Dei-lhe os nomes, Simões Filho mandou
chamá-los e passou a dar ordens. Especificou o conteúdo dos editoriais que
desejava para aquele dia e despachou-os em seguida.
Quinze dias mais tarde, a situação já se tornara insustentável. Eu me sentia
despojado do meu próprio jornal, minhas funções estavam inteiramente
esvaziadas. Baby Bocayuva parecia muito constrangido com o que ocorria.
Um dia, chamei-o para comunicar que decidira procurar seu sogro e resolver
a questão. Não poderia continuar dividindo minha autoridade sobre a
redação. Ou a Última Hora era comandada por Samuel Wainer ou por
Simões Filho. Ali não havia espaço suficiente para os dois. Fui à casa do
sogro de Baby Bocayuva e lhe disse, com toda a franqueza, que um de nós
estava sobrando na redação. Sustentei que o jornal, que até então vinha
seguindo uma linha editorial ditada pelas minhas convicções, começara a
renegar suas tradições, enveredando por outros caminhos doutrinários. Era
natural que isso acontecesse, já que agora prevalecia a linha que ele
considerava correta. Feita a exposição, reconheci que ele tinha todo o direito
de tomar-me o jornal, pois as ações já não eram minhas. Mas alertei-o para os
riscos dessa operação, argumentando que a Última Hora se transformara num
patrimônio popular. E o povo talvez não desejasse vê-la modificada.
Simões Filho afirmou que não tencionava apossar-se do jornal –parecia
realmente impressionado com o que ouvira.
– O senhor pode retomar a Última Hora, porque eu nunca mais voltarei a
botar os pés naquela redação – disse-me.
Sugeri, então, que as ações me fossem devolvidas, ele concordou
prontamente, e assim se encerrou a desastrada tentativa de camuflar a real
propriedade das ações de minha empresa. Na raiz do desencontro estava um
problema insuperável: eu poderia transferir teoricamente o comando da
redação, mas a liderança era intransferível. Essa, definitivamente, era minha.
O incidente com Simões Filho ilustra até que ponto eu admiti recorrer a
artifícios para que a Última Hora sobrevivesse. E tive de costurar essas
ligações perigosas porque me negavam a condição de brasileiro. Hoje, depois
de tudo terminado, constato que meus inimigos não conseguiram o que
desejavam. Entre meus amigos, o termo bessarabiano acabou ganhando uma
conotação carinhosa, e mesmo meus filhos passaram a brincar comigo. “Oi,
papai, você é bessarabiano”, diziam entre sorrisos. A gente do povo que lia a
Última Hora tinha consciência de que ninguém era mais brasileiro do que eu.
E decidi que, enquanto fosse vivo, jamais diria onde realmente havia nascido.
Preferi que essa questão, pela pouca importância que tem, ficasse para
sempre na obscuridade. Eu não poderia comprometer pessoas que me viram
nascer, nem devia satisfação alguma aos que julgavam importante um detalhe
tão secundário. Ao longo de minha vida, jamais duvidei de que eu, Samuel
Wainer, era um brasileiro.
O problema é que meus inquisidores não pensavam assim.
No começo de 1954, diante do incessante fogo cruzado disparado pela CPI
e pelo processo em torno de minha nacionalidade, entendi que me tornara um
fardo excessivamente pesado para Getúlio. Sabíamos que o alvo principal da
ofensiva era o próprio Getúlio, mas a verdade é que minha presença entre os
íntimos do Catete aguçava a intensidade dos ataques. Fui à procura do meu
amigo, e tivemos um encontro patético. Ele sofrera uma fratura num dos
braços, que estava enfaixado e numa tipoia. Recebeu-me sentado numa
poltrona em seu quarto ao lado do genro, Ernani do Amaral Peixoto. Também
estavam presentes dona Darcy e Alzirinha. Pareciam emocionadas, talvez por
pressentirem que ouviriam uma conversa decisiva. Amaral Peixoto, que não
gostava de mim, mostrava-se ansioso.
Eu disse a Getúlio que a batalha estava perdida. Valera a pena lutar,
ressalvei, e parecia evidente que a Última Hora cumprira seu objetivo. O
jornal rompera o cerco de silêncio imposto ao presidente pela grande
imprensa, ajudara a difundir o pensamento de Vargas, defendera-o com
bravura e lançara as bases de uma imprensa popular. Eu me considerava um
vitorioso. Chegara, porém, a hora de ensarilhar as armas.
O fim da Última Hora, contudo, deveria ser negociado politicamente – e a
bom preço. Sugeri a Getúlio que chamasse para uma conversa reservada os
donos dos jornais que nos atacavam e fizesse uma proposta: se passassem a
apoiar o governo, meu jornal deixaria de existir. Getúlio ponderou que aquilo
não iria dar certo. Eu disse que valia a pena tentar, já que a Última Hora
estava sem condições econômicas para sobreviver. O jornal vendia muito, a
tiragem continuava excelente, mas faltavam anunciantes, faltava papel e
sobravam pressões. Já que eu fizera um quadro de Picasso, que ele fosse para
o museu com dignidade.
No fundo, eu talvez esperasse que Getúlio me exortasse a continuar a
guerra, oferecendo-me condições para sustentá-la. Se ele reagisse dessa
forma, a história poderia ter sido muito diferente. Mas Getúlio preferiu
subtrair-se ao combate. Ao longo da conversa, pude notar que o presidente
hesitava quanto à decisão a tomar. Sugeri-lhe, a certa altura, que ele poderia
estudar uma forma de executar a dívida da Última Hora junto ao Banco do
Brasil. Feita a execução, o jornal não teria como saldar a dívida e seu
fechamento seria inevitável. Antes disso, porém, deveria haver a negociação
com nossos inimigos encastelados nos grandes jornais.
– Vou pensar – respondeu Getúlio.
– Então, o senhor resolva e mande me comunicar – encerrei. Os olhos de
Amaral Peixoto brilhavam.
Saí do palácio convencido de que viriam dias difíceis e pressentindo que
não voltaria a pisar no Catete até o final do governo de Getúlio. Eu estava
certo. Aquela foi a nossa última conversa, a última vez que o vi com vida.
Nem haveria clima para que eu voltasse ao Catete nos meses seguintes: horas
depois do nosso encontro, Getúlio Vargas determinou que a dívida do meu
jornal fosse executada pelo Banco do Brasil.
CAPÍTULO 27

Tratava-se de mais um fato inédito na história da imprensa brasileira –


aliás, eu já me tornara um contumaz protagonista de situações inéditas. Não
havia um único dono de jornal que não devesse ao Banco do Brasil; Assis
Chateaubriand, por exemplo, sempre deveu milhões. Pois o primeiro a ter a
dívida executada, e em 24 horas, era precisamente um amigo do presidente da
República. Ao receber a notícia, tentei localizar Alzirinha. Não consegui. Saí
à procura de Benjamim Vargas e o encontrei no Hotel Plaza. Pedi-lhe que
transmitisse a Getúlio o meu apelo: já que a execução da dívida da Última
Hora parecia irreversível, o governo poderia ao menos ampliar para oito dias
o prazo fixado para o pagamento e, também, exigir que todos os donos de
jornais em débito com o banco acertassem suas contas.
Getúlio de fato determinou que o Banco do Brasil executasse em oito dias
todos os seus devedores, mas a realidade seria diferente. Só a Última Hora
foi efetivamente executada, o aperto sobre meus concorrentes jamais saiu do
papel. Forçado a arranjar às pressas o dinheiro, decidi montar uma armadilha
para meus inimigos, induzindo-os a acreditar que eu não conseguira saldar o
débito. Juntei o dinheiro, cédula por cédula, e logo que se encerrou o
expediente bancário do último dia do prazo, entrei no gabinete do presidente
do Banco do Brasil, Marcos de Sousa Dantas, acompanhado pelo ministro
Simões Filho. Se as normas fossem cumpridas à risca, o prazo já se expirara.
Mas o presidente do banco não ousou fechar a porta a um ministro de Estado.
Passavam alguns minutos de seis da tarde quando entramos. O presidente
do Banco do Brasil saudou Simões Filho efusivamente, mas recusou-se a
apertar a mão que eu lhe estendera. Simões Filho tentou encontrar alguma
fórmula que permitisse a negociação da dívida. Por duas vezes, nosso
anfitrião foi ao telefone fazer consultas ao ministro da Fazenda, Osvaldo
Aranha. Aranha reiterou que recebera do governo ordens terminantes para
encerrar o caso naquele dia. Compreendi, então, que houvera uma
conspiração palaciana para afastar-me do convívio de Getúlio Vargas.
Definitivamente, eu me tornara demasiado incômodo.
Frustrada a derradeira tentativa de evitar aquele desfecho, chegou a hora de
pagar. A situação tinha uma grande carga de dramaticidade, mas não deixava
de ser ridícula: dois ou três funcionários foram convocados para contar, uma
a uma, as cédulas que eu levara. Era um monte de dinheiro. Recebi
comprovantes da quitação e voltei à redação. Resolvi que não faríamos
barulho em torno do que ocorrera. Eu sabia que Carlos Lacerda, informado
por Lourival Fontes de que a Última Hora não liquidara sua dívida e seria,
portanto, imediatamente fechada, instruíra a Tribuna da Imprensa a anunciar
estrondosamente o enterro do grande inimigo. Para desmoralizá-lo, antecipei
o horário de chegada às bancas do meu jornal. Pouco depois chegaram os
exemplares da Tribuna, trombeteando em manchete que a Última Hora não
existia mais. Para Carlos Lacerda, foi um completo desastre.
Informado de que eu comparecera ao Banco do Brasil quando o prazo para
o pagamento estava virtualmente esgotado, Lacerda decidiu eleger Osvaldo
Aranha como bode expiatório. No dia seguinte, publicou um artigo
violentíssimo contra o ministro da Fazenda, acusando-o de ter-me favorecido
e cobrindo-o de adjetivos terríveis. A resposta a esse artigo, testemunhada por
mim, viria poucas horas depois. Eu estava no bar do Copacabana Palace, e
notei que Lacerda dividia com o ministro da Agricultura, João Cleofas, uma
mesa do restaurante Bife de Ouro. De repente, entrou no restaurante Euclides
Aranha, o “Quica”, filho de Osvaldo, um rapaz de rara beleza e
extremamente forte. Quica avançou sobre a mesa de Lacerda e deu-lhe uma
bofetada. Gritava que nunca mais admitiria ler insultos ao pai. Lacerda tentou
puxar o revólver, alguém segurou sua mão, amigos de Quica levaram-no para
outro canto, instalou-se uma imensa confusão. Em poucos minutos chegaram
amigos de Lacerda e do jovem Aranha, que não parava de despejar palavrões
sobre o desafeto.
Eu observava o espetáculo à distância, um tanto divertido, confesso, com a
enrascada em que Lacerda se metera. Então, aproximou-se de mim João
Cleofas, com uma fisionomia hipocritamente compungida, jesuítica.
– Veja o que você fez ao país – disse Cleofas, um legítimo representante das
oligarquias pernambucanas.
– Lamento muito, mas não me sinto culpado por isso – respondi.
Valia praticamente tudo naquele combate sem tréguas e sem limites. Uma
de minhas armas preferidas, como já mencionei nestas memórias, consistia
em expor meus adversários ao ridículo. Meus fotógrafos frequentemente
pilhavam Assis Chateaubriand comendo com modos animalescos, ou
flagravam Lacerda em ângulos que acentuavam seus traços de corvo. Eles
tentavam fazer o mesmo comigo, com maior dificuldade; aprendi
rapidamente a defender-me dos fotógrafos de jornais inimigos. Descobri, por
exemplo, que ficava muito melhor de perfil. De frente, eu tinha uma
expressão tristonha, chorona, mas meu perfil era ótimo. Sempre que um
fotógrafo me focalizava, eu encontrava um jeito de ficar de lado.
Tentei evitar que aquele interminável tiroteio ricocheteasse nas nossas
famílias, mas não foi possível. Às vezes, eles atacavam diretamente alguém
ligado a mim – como quando chamaram de “concubina” uma mulher com
quem me casara, ou quando insinuaram que eu tivera um filho com Danuza
Leão apenas para livrar-me do risco de ser expulso do país. Mas também
parentes meus que não foram alvejados por ataques frontais sofreram muito.
Foi esse o caso de minha mãe, a velha e generosa dona Dora. Num dia
qualquer, ela estava com o televisor ligado quando apareceu no vídeo a figura
de Carlos Lacerda, então empenhado em provar que eu não nascera no Brasil.
Ele começou a desenhar a árvore genealógica dos Wainer e a despejar
ameaças com voz soturna. Dona Dora apavorou-se: emergiu-lhe do fundo da
memória a lembrança terrível dos pogroms que testemunhara na Bessarábia.
Com a sua inteligência camponesa, sua generosidade simples, minha mãe
assustou-se com a ideia de que, a qualquer momento, patrulhas antissemitas
estariam invadindo o Bom Retiro para massacrar crianças.
Alguns dias depois, ao encontrá-la, ouvi a pergunta:
– Meu filho, por que ele te odeia tanto? Ele vivia na nossa casa, era tão
bonzinho.
Ainda muito amedrontada, minha mãe chorava. Disse à velha Dora que os
ataques de Carlos não me causavam sofrimento. O Samuel que ele atacava,
expliquei, era um Samuel fictício, construído pela sua própria imaginação.
Disse à minha mãe que, no fundo, Carlos sabia que eu era um homem de
bem, que não merecia aqueles insultos.
– O homem que ele está atacando não é o seu filho – expliquei. Não sei se
ela entendeu.
Creio que um dos erros de Lacerda foi ter concentrado na guerra contra um
jornal uma parte considerável da sua energia, do seu talento, do seu sarcasmo,
do seu humor negro. Era uma causa menor para um homem com ambições
tão grandes. A resistência que lhe foi oferecida pela Última Hora, igualmente
feroz, acabou contribuindo decisivamente para barrar sua caminhada rumo à
Presidência da República.
Faço questão de reafirmar que a Última Hora teve de travar uma luta
solitária. Durante todo o tempo, o restante da imprensa apoiou meus
adversários, fustigou o governo e colaborou na ofensiva contra mim. Não
houve um único jornal que tenha publicado oito, dez linhas demonstrando
compaixão pela Última Hora ou pelo homem Samuel Wainer. Jornalistas
adoram assinar manifestos, mas nenhum deles se arriscou a redigir algum
documento que me apoiasse. Só os donos de jornais divulgaram um
manifesto, afirmando que, por representar uma ameaça à liberdade de
imprensa, meu jornal deveria ser fechado.
Sofri algumas decepções dolorosas, uma das quais envolvendo o jornalista
e escritor Antônio Callado. Sempre considerei Callado uma figura
maravilhosa, um homem extremamente decente. Um dia, abro o Correio da
Manhã e encontro um artigo, assinado por ele, cujo título era “Opção”. Nesse
artigo, Callado contava que se sentira obrigado a fazer uma opção entre
Carlos Lacerda e Samuel Wainer. Ao refletir sobre as duas figuras, concluíra
que, enquanto Carlos se sacrificava pelo Brasil, Wainer nada dera à sua
pátria. Sobretudo por isso, optara por Lacerda.
Enfim, não me lembro de ter lido uma única linha de solidariedade a mim.
Certa feita, quando o processo sobre a questão da minha nacionalidade
ameaçava resultar na minha expulsão do país, Clodomir Leite, um excelente
profissional de relações públicas que na época cuidava do setor de
publicidade da Última Hora, resolveu fazer um abaixo-assinado pedindo
clemência ao Supremo Tribunal Federal. Clemência é uma palavra forte, até
pressupõe culpa, mas era exatamente assim. Pois o ingênuo Clodomir
encontrou enormes dificuldades para convencer até mesmo amigos meus a
subscreverem o texto. Paulo Mendes Campos, por exemplo, que naquela
época trabalhava na Última Hora, queixou-se a mim de que seu nome fora
incluído sem consulta entre os signatários. Nelson Rodrigues, que também
integrava a redação, fez a mesma queixa.
Pouco depois de ter tido minha dívida executada pelo Banco do Brasil,
recebi a notícia de que meu pai fora incomodado pela polícia de São Paulo. A
pretexto de ouvi-lo sobre o caso da minha nacionalidade, haviam levado o
velho a uma delegacia e repórteres da TV Tupi aproveitaram a chance para
entrevistá-lo. Fiquei transtornado. Meu primeiro impulso foi correr ao Catete
e interpelar Getúlio, mas lembrei-me de que prometera a mim mesmo nunca
mais pisar naquele lugar. Telefonei para Alzirinha e marcamos um encontro
na casa dela. Ali, entreguei-lhe uma carta que Getúlio me mandara alguns
anos antes e um livro que ele me dera com uma dedicatória que se referia ao
“Profeta Samuel”. Pedi que Alzirinha devolvesse a carta e o livro ao
presidente, com um recado: se meu pai voltasse a ser incomodado, eu
passaria a lutar contra Getúlio. Poucos dias depois, Alzirinha procurou-me
para contar que conversara com o pai sobre o problema. Então, ela mostrou-
me um bilhete que Getúlio lhe mandara horas depois da conversa. “Alzira,
diga ao Profeta que no Brasil não há divórcio”, dizia o bilhete, que chegara às
mãos da minha amiga junto com o livro que eu havia tentado devolver.
Depois que me afastei do Catete, passei a manter contatos com Getúlio
através de intermediários, entre os quais o mais constante e eficaz era
Alzirinha. Eu sentia muita saudade do meu velho amigo. Sentia saudade
principalmente das conversas noturnas no palácio, quando lhe contava as
fofocas do momento – quem fizera negociatas, que tipo de trama política
estava em curso, quem estava comendo quem. Mas eu não podia voltar ao
Catete. Os auxiliares mais próximos de Vargas perceberam que algo de grave
ocorrera, mas os leitores da Última Hora jamais souberam disso. O jornal
continuou fiel à linha editorial que sempre o orientou. Quando necessário,
criticávamos alguma área do governo. Mas a figura de Getúlio deveria ser
poupada a qualquer preço.
Também Getúlio passava-me recados através de Alzirinha ou de Benjamim,
enviando críticas, sugestões ou pedidos. Assim atravessamos o primeiro
semestre de 1954, a caminho do dramático epílogo que viria em agosto.
Pressentíamos que o cerco se fechava progressivamente, mas não podíamos
prever a extensão da tragédia. Embora o Congresso fosse hostil e o
isolamento político do presidente da República ficasse mais e mais evidente,
julgávamos que, com a antecipação do debate em torno da sucessão
presidencial, as atenções seriam desviadas para outros alvos e Getúlio
chegaria sem muitos sobressaltos ao fim do seu governo. Essa esperança
começou a morrer quando, na noite de 5 de agosto, um tiro ecoou numa rua
de Copacabana.
CAPÍTULO 28

A notícia de que tivera início o primeiro ato da grande tragédia de agosto de


1954 alcançou-me em casa, pelo telefone, na noite do dia 5. Do outro lado da
linha, a voz de um dos repórteres do meu jornal passou a informação.
– Samuel, mataram um oficial da Aeronáutica, o major Vaz, e feriram
Lacerda.
Levei um choque:
– Não mataram o Lacerda? – insisti.
Meu informante reiterou que não.
– Que bomba! – exclamei, já me preparando para correr de volta à redação,
sob o pressentimento de que começara uma das maiores tempestades políticas
da história do Brasil.
De certa forma, a tormenta apanhou os getulistas desprevenidos. Embora
afastado há meses do Palácio do Catete, eu me considerava mais getulista do
que nunca. Permanecia absolutamente fiel ao presidente, encampando suas
ideias e posições nas páginas da Última Hora. Depois de ver derrotada no
Congresso a proposta de impeachment de Vargas, a UDN dava a impressão
de cansaço. O antigetulismo parecia exaurido, sem argumentos, abatido pela
resistência de um homem que, apesar do assédio, continuava no poder.
Governadores estaduais até então arredios já se reaproximavam de Getúlio,
que parecia prestes a retomar o controle da situação política. Assim, eram
consideráveis as chances de se chegar ao final do mandato sem encontrar pela
frente obstáculos invencíveis, já que faltava apenas um ano e meio para a
transmissão do cargo. Então, desabou sobre nossas cabeças o pesadelo
configurado pelo atentado da rua Toneleros, em Copacabana.
Ao chegar à redação, soube que Lacerda expulsara meu repórter do quarto
do hospital para onde fora levado.
– Eu não quero repórteres da Última Hora por aqui – dissera Lacerda. – Mas
desde já declaro que Samuel Wainer nada deve ter a ver com este caso. Ele
não é homem disso.
Era uma frase de efeito e, mais do que isso, um truque: não lhe interessava
meu envolvimento no crime. Como éramos inimigos de morte, a opinião
pública concluiria que eu me exasperava a tal ponto com os ataques de Carlos
que chegara àquela atitude extrema. Essa hipótese não lhe interessava: porque
Lacerda desejava dar ao caso características de atentado político e,
principalmente, envolver no crime a figura de Getúlio Vargas.
Os detalhes da história sempre me intrigaram. O homem supostamente
contratado para eliminar Lacerda, Alcino João do Nascimento, errou o tiro
apesar da curta distância em que se encontrava o alvo, falha muito estranha
em se tratando de um pistoleiro profissional. Soube mais tarde que esse
Alcino cometera o mesmo erro em três ocasiões anteriores – era um
especialista em não atingir o alvo. Fiquei igualmente intrigado com a história
do ferimento no pé de Carlos Lacerda. Uma das muitas versões surgidas à
época sustentava que Carlos não levara tiro algum, limitando-se a simular o
ferimento. Outra dizia que se ferira quando seu próprio revólver lhe caíra
sobre o pé. Havia uma terceira versão segundo a qual uma bala de fato o
acertara, mas apenas de raspão. De qualquer modo, Lacerda soube utilizar-se
teatralmente do episódio. Ressurgiu imediatamente com o pé engessado,
transformou seu quarto no hospital em centro de conspirações e comandou o
desdobramento da crise que levaria ao suicídio de Getúlio Vargas.
Naquela mesma madrugada de 5 de agosto, telefonei para o Catete em
busca de informações. Luís Costa, o repórter que fazia “O Dia do
Presidente”, estivera, como sempre, todo o tempo ao lado de Vargas,
testemunhando suas reações. Ele ouvira o comentário feito por Getúlio ao
saber do atentado: “Esse tiro me atingiu pelas costas.” Foi uma madrugada
incrivelmente tensa. Todo o governo permaneceu acordado, atento à
movimentação dos políticos ligados a Lacerda e dos militares antigetulistas,
especialmente os oficiais da Aeronáutica, arma a que pertencia o major Vaz.
No dia seguinte, o caso da rua Toneleros ocupou toda a primeira página da
Última Hora. Procurei apresentar o episódio sob um enfoque policial, embora
soubesse que suas componentes políticas não tardariam a monopolizar as
atenções do país.
Nos dias seguintes, o drama ampliou-se com enorme velocidade. Montou-
se a “República do Galeão”, formada por oficiais da Força Aérea que
investigavam o caso à margem da polícia e da Justiça, interrogando pessoas e
promovendo ações policiais. No hospital e depois no Congresso, Lacerda
agitava, insultava, conspirava ostensivamente. Aos poucos, tornou-se
evidente o envolvimento de integrantes da guarda pessoal de Getúlio nos
incidentes da Toneleros. Durante todo o tempo, fiz o que pude para eximir de
qualquer culpa a figura do presidente, sustentando a tese de que, ainda que
houvesse gente do Catete envolvida no episódio, Getúlio de nada sabia.
Tratava-se de um brasileiro honrado, muito acima de torpezas desse gênero.
Lastimavelmente, o esforço da Última Hora em defesa de Vargas resultaria
inútil.
A honradez pessoal de Getúlio sempre fora um de seus grandes trunfos
diante da opinião pública. Ele era um homem decente, com uma postura
moral irretocável. Seria impossível, por exemplo, imaginá-lo nomeando
algum filho para um cargo público, ou favorecendo amantes, práticas comuns
naquela época. Nos tempos do Estado Novo, quando seus poderes eram
praticamente ilimitados, ele mandava os filhos de ônibus para a escola. Suas
incursões pelo mundo dos negócios limitavam-se à compra de mais alguns
alqueires no Rio Grande do Sul, algumas cabeças de gado, algumas ovelhas.
A vida noturna jamais o fascinou, embora gostasse de frequentar teatros de
revista, sobretudo quando os espetáculos incluíam canções ou anedotas a seu
respeito. Se em matéria política o espertíssimo Getúlio não costumava
respeitar limites, era um homem cheio de escrúpulos no plano pessoal.
Cioso do respeito à autoridade, fazia valer esse critério mesmo em relação a
autoridades que não gozavam da sua estima. Ele sempre soube, por exemplo,
que o vice-presidente Café Filho era um homem sem qualquer vestígio de
dignidade. Mesmo assim, aborreceu-se profundamente numa Quarta-Feira de
Cinzas em que a Última Hora publicou uma foto de Café Filho, com um
lança-perfume na mão, acompanhado por duas vedetes do teatro rebolado. “O
vice-presidente da República não pode ser denegrido por um jornal vinculado
a mim, já que representa a minha autoridade”, censurou-me Getúlio num
bilhete enviado pouco depois de a edição ter chegado às bancas.
Preso a pudores dessa ordem, Vargas mostrou-se compreensivelmente
chocado quando, naquele agosto de 1954, respingos do “mar de lama” que,
segundo a oposição, corria sob o Catete, começaram a alcançar sua família.
Ficou terrivelmente decepcionado ao saber, por exemplo, que um de seus
filhos, Maneco, vendera uma fazenda a Gregório Fortunato, que consumara a
compra depois de obter um empréstimo junto a Ricardo Jafet. Além do
problema ético – tratava-se de um negócio francamente suspeito –, havia a
questão do abismo social. O negro Gregório o acompanhava desde menino,
era-lhe de uma fidelidade canina. Aos olhos de Getúlio, porém, ali estava um
ex-escravo, um mero guarda-costas sem altitude para fechar negócios com
senhores feudais como os Vargas. Informado do episódio, Getúlio chamou
Maneco, que então viajava pela Europa, e repreendeu-o asperamente por ter-
se envolvido naquela transação comercial.
É provável que só então Getúlio tenha começado a desconfiar de Gregório,
e a notar o imenso poder de que desfrutava o chefe de sua guarda pessoal.
Instalado num chalé na entrada do Catete, Gregório vivia recebendo
homenagens de figurões interessados em ver facilitado o acesso ao
presidente. Homem primitivo, ele não soube compreender os reais motivos
daqueles afagos, e deixou-se seduzir pela maciez do poder. A certa altura,
considerou-se inatingível e passou a circular com inteiro desembaraço,
agindo à revelia do presidente. Esse equívoco irremediável contribui para
explicar a tragédia da rua Toneleros. Certamente influenciado por pessoas
que não eram amigas do presidente, Gregório concluiu que a melhor maneira
de ajudar Getúlio era eliminar Carlos Lacerda. A mente primária do guarda-
costas não poderia avaliar as consequências do plano arquitetado nas sombras
do Catete.
Evidenciado o envolvimento de Gregório, a situação de Getúlio tornou-se
insustentável. A Aeronáutica, já virtualmente rebelada, colocou-se em frontal
oposição ao presidente, exigindo sua renúncia. A tese foi prontamente
encampada por oficiais da Marinha, arma tradicionalmente hostil a Vargas, e
também por generais do Exército, alguns dos quais formalizaram tal
exigência num manifesto. Na Última Hora, cujas edições retrataram o drama
em seus detalhes, pressentíamos a iminência do naufrágio, mas
prosseguíamos a luta, publicando sucessivas manchetes contra Lacerda, a
quem acusávamos de agente provocador e golpista. A tiragem do jornal
crescia incessantemente, até porque só a Última Hora publicava declarações
e argumentos vindos do lado getulista. Eu não tinha dúvida alguma de que
também submergiria naquele naufrágio, mas estava decidido a afundar
atirando.
Na noite de 22 de agosto, recebi em minha casa a visita de Maneco Vargas,
com um recado do pai. Cabisbaixo, abúlico, Maneco era a imagem do regime
agonizante. Getúlio queria saber se eu estava disposto a lançar o jornal à
frente de uma contraofensiva destinada a conter o golpe em marcha.
Respondi a Maneco que resolvera ficar com o presidente até o fim, até
porque não me restava outra saída. Maneco então contou-me que naquela
manhã, durante uma reunião do Ministério, Getúlio fizera uma declaração
patética: “Só morto sairei do Catete.” O presidente queria saber se eu topava
publicar a frase em manchete na edição do dia 23. Seria a senha para a
resistência a ser desencadeada no dia 24. Concordei de imediato, embora
ponderasse que uma frase tão forte poderia detonar reações violentas tanto
entre os militares golpistas quanto entre a massa fiel a Getúlio. Maneco
esclareceu que o objetivo era precisamente esse: forçar o confronto.
Fui para o jornal, mandei buscar no arquivo uma velha foto de Getúlio com
as mãos sujas de petróleo – uma foto célebre – e redigi a manchete que
explodiria nas bancas no dia seguinte:

GETÚLIO AO POVO: SÓ MORTO SAIREI DO CATETE

A edição esgotou-se em poucos minutos. Rodamos outra, que também não


demorou a esgotar-se, rodamos mais uma, e assim seria ao longo de todo
aquele dramático 23 de agosto. À noite, Maneco Vargas procurou-me
novamente, para transmitir os agradecimentos de Getúlio – ele gostara muito
da edição – e avisar que eu logo receberia elementos para outra manchete
igualmente forte. Fiquei entrincheirado na redação, à espera de instruções. Às
duas da manhã, comecei a preocupar-me: Maneco não dera qualquer sinal de
vida. Tratei de redigir manchetes que servissem como opções. Uma delas:
GOLPE. Outra: RENÚNCIA. Outra: DEPOSIÇÃO. Eu precisava pensar em
todas as hipóteses.
No meio da madrugada tentei entrar em contato com o Catete, não
consegui. As luzes do palácio estavam acesas, mas ninguém podia entrar e
nem sair. Chegaram-me rumores de que o presidente se reunira com o
Ministério às quatro da madrugada. Não pude saber o que fora debatido nesse
encontro. Informaram-me depois que Alzirinha voltara às pressas de Niterói,
onde estava morando, para juntar-se ao pai. Vislumbrei nessa informação um
indício de que a resistência estava prestes a começar, e continuei à espera de
dados mais esclarecedores. Tomei um comprimido de Pervitin, convencido
de que tão cedo não poderia dormir. Por volta de oito da manhã, o repórter
Luís Costa afinal conseguiu um contato telefônico com a redação da Última
Hora e me informou que o presidente se preparava para uma nova reunião
ministerial, durante a qual formalizaria sua licença do cargo.
Tratava-se, evidentemente, da aceitação de um golpe branco. O país inteiro
sabia que o vice Café Filho se acumpliciara a Carlos Lacerda e seus amigos
para transformar a licença temporária numa destituição definitiva. Getúlio
compreendia perfeitamente o que se tramava às suas costas. Ainda assim,
talvez acabasse aceitando a fórmula, se naquela madrugada não tivessem
ocorrido acidentes, só mais tarde revelados, que mostraram que o ódio a
Getúlio não se esgotaria com a virtual renúncia – ao contrário, teria
desdobramentos que alcançariam o presidente e sua família. Só mais tarde se
soube, por exemplo, que, encerrada a reunião ministerial aberta às quatro da
madrugada, Getúlio foi procurado em seu quarto por Benjamim Vargas, o
irmão caçula, que lhe trazia uma informação agourenta: ele, Benjamim, fora
intimado a depor na República do Galeão. O próximo intimado poderia ser o
próprio Getúlio.
Para um homem de 71 anos, tratava-se de uma humilhação insuportável.
Depois de despedir-se de Benjamim, Getúlio, vestindo um pijama, caminhou
pelo corredor do palácio até seu escritório. Alzirinha, sentada numa sala, viu-
o passar com a mão no bolso – certamente acariciava o revólver. Às 8:25
ouviu-se um estampido no Catete. Dois minutos depois, Luís Costa chamou-
me ao telefone. Aos prantos, entre soluços, meu bravo repórter me informou:
– O presidente acaba de dar um tiro no coração.
CAPÍTULO 29

Um tiro no coração, informou Luís Costa em prantos. Desliguei o telefone e


corri para a oficina do jornal. As emissoras de rádio transmitiam
incessantemente a notícia, e um clima de absoluta comoção se espraiava pelo
país. Na oficina, encontrei operários chorando, outros desmaiados. Lembrei-
me, então, de que a página com a manchete publicada na véspera – "SÓ
MORTO SAIREI DO CATETE" – continuava composta em chumbo.
Naquela época, tínhamos o hábito de guardar a composição de algumas
páginas numa estante, para a eventualidade de republicar certos textos,
anúncios principalmente. Nos dias seguintes íamos utilizar os tipos de
chumbo ali armazenados e a página era desfeita aos poucos. Aquela histórica
primeira página, contudo, permanecia intacta, e tive a ideia de republicá-la
exatamente como saíra na véspera, mudando apenas alguns detalhes. Numa
linha no alto da página escrevi:“Ele cumpriu a promessa.” Abaixo da frase
em que Getúlio prevenia que não o tirariam vivo do palácio, descrevi o
suicídio do presidente da República.
Ainda na oficina, redigi a mão cerca de dez linhas conclamando o povo a
manter a ordem, evitando ceder ao desespero e cometer atos que só serviriam
à reação – eu suspeitava que os militares antigetulistas estavam à espera de
algum pretexto para esmagar o povo. Mas foi impossível impedir que a massa
fiel a Vargas extravasasse seu ódio aos que haviam provocado a morte do
líder. Naquele 24 de agosto, multidões exasperadas atacaram praticamente
todos os grandes jornais, bloqueando sua saída às ruas. O único a circular foi
a Última Hora, que vendeu quase oitocentos mil exemplares. A oficina não
parou de trabalhar, foram vinte horas rodando edições sucessivas. O povo
sequer esperava que os exemplares chegassem às bancas – arrancava-os dos
caminhões distribuidores, ávido por notícias sobre a tragédia.
A certa altura, percebi que chegara a minha vez de soltar-me. Subi até a
redação, fui para um canto da minha sala e, então, chorei, chorei bastante. A
redação não podia me ver, mas alguns amigos mais próximos espalhavam o
que ocorria e pediram que todos me deixassem em paz. Nesse momento,
comecei a ouvir um rugido, feito de milhares de vozes, que vinham das
bandas da Candelária. Olhei pela janela e vi uma multidão de manifestantes
descalços, subnutridos, feios. Gritavam Getúlio!, e reconheci o mesmo urro
medonho, assustador, com o qual me familiarizara durante a campanha
eleitoral de 1950. A massa estacou diante do prédio da Última Hora e exigiu
que eu lhe falasse. Nunca fui um orador, mas tive de vencer minha inibição e,
de uma sacada do prédio, ainda chorando, pedi à multidão que mantivesse a
tranquilidade. Afirmei que o urro que ali ouvia me recordava a campanha que
levara Getúlio de volta ao poder, e que aquele mesmo rugido deveria
continuar ecoando, agora para sustentar as bandeiras nacionalistas e
populares pelas quais Vargas sacrificara a própria vida. Naquele momento,
compreendi que a Última Hora sobreviveria ao homem que havia inspirado
sua criação.
A massa continuou sua caminhada, quebrando os símbolos antigetulistas
que encontrava pela frente, procurando Lacerda, que teve de esconder-se e
mais tarde refugiar-se por algum tempo no exterior. Voltei à minha sala
convencido de que teria por missão, a partir dali, defender a memória de
Getúlio. Pouco depois, recebi a visita do coronel Ardovino Barbosa, um
oficial do Exército ostensivamente ligado a Lacerda. Ele entrou em minha
sala e informou que gostaria de conversar com o diretor do jornal.
Identifiquei-me e estendi-lhe a mão. Ardovino recusou-me o cumprimento –
isso no meu jornal, na minha própria casa.
– Imagino que o senhor não queira falar comigo – disse-lhe.
– Quero falar com alguém que represente o Exército brasileiro aqui dentro –
retrucou Ardovino. Observei-lhe que um de meus diretores, Baby Bocayuva,
era tenente da reserva – na verdade, Baby apenas fizera o CPOR. O coronel
pareceu gostar da solução. Minutos mais tarde, Baby entrou na sala, os dois
homens bateram continência e começaram a dialogar.
Ardovino comunicou-nos que o Estado-Maior do Exército estava
preocupado com o estado de exaltação popular e chegara à conclusão de que
a Última Hora tanto poderia excitar os ânimos quanto ajudar a contê-los.
Assim, os militares pediam que publicássemos um editorial exortando à
pacificação dos espíritos. Entrei na conversa e sugeri a Baby que mostrasse
ao coronel a edição daquele dia, com o editorial cujos termos atendiam
precisamente aos desejos do Exército. Ardovino apanhou um exemplar e
levou-o ao Estado-Maior. Não cheguei a conhecer os desdobramentos desse
episódio, mas é provável que tenha contribuído para a sobrevivência da
Última Hora. Os militares lacerdistas estavam prontos para dar o bote e
fechar meu jornal tão logo surgisse alguma chance. Naqueles trágicos idos de
agosto, porém, eles compreenderam que precisavam da minha ajuda para
evitar o pior. A Última Hora poderia ter precipitado o imponderável, caso
utilizasse suas páginas para clamar por vingança, estimular saques e
depredações, açular a revanche. Em vez disso, agimos com muita prudência.
Enquanto o corpo de Getúlio era velado no Catete, centenas de pessoas
abraçavam-se e pediam para posar a meu lado para fotos, muitas delas
exibindo nas mãos exemplares da Última Hora. Cumprimentei os parentes do
presidente e procurei deixar o local, para não dar a impressão de que também
procurava tirar proveito político do drama. No dia seguinte, Alzirinha fez
questão de que eu fosse a São Borja para o enterro. Viajei no avião que
levava o corpo de Vargas, ao lado de alguns parentes e de Danton Coelho. À
beira da sepultura, em discursos extremamente emocionados, Osvaldo
Aranha e João Goulart pediram vingança. Mas o país já começava a recobrar
a calma e a ordem seria mantida.
Hoje não tenho qualquer dúvida de que, se não tivesse se suicidado, Getúlio
seria de alguma forma eliminado; para seus inimigos, era indispensável
destruí-lo fisicamente. Vivo, ainda que não conseguisse eleger seu sucessor,
representaria uma força oposicionista demasiado poderosa, capaz de
desestabilizar qualquer governo. Se o vitorioso nas eleições presidenciais
seguintes fosse Carlos Lacerda, ele não conseguiria governar contra Getúlio.
Ao contrário, se Juscelino Kubitschek tivesse sido eleito com o apoio de
Vargas, a UDN estaria politicamente liquidada. A história do Brasil
certamente teria tido rumos inteiramente diversos se Vargas vivesse para
fazer seu sucessor. Nessa hipótese, seria igualmente diferente a história da
Última Hora, que então reuniria todas as condições para transformar-se numa
potência da imprensa brasileira, financeiramente sólida e politicamente
indestrutível.
Já afirmei nestas memórias que Getúlio nunca foi, nem pretendeu ser, um
líder revolucionário. Prova disso foi o ato derradeiro do seu drama pessoal.
Com o suicídio, conforme têm sustentado vários historiadores, Vargas adiou
por dez anos o gesto afinal consumado em 1964, pelos mesmos militares que
contra ele haviam conspirado em agosto de 1954. Mas também impediu, com
o mesmo gesto, que o povo reagisse revolucionariamente. Milhões de
getulistas certamente iriam à luta se o chefe assim o desejasse. Mas Getúlio
não quis: preferiu o tiro no coração.
Aos olhos de Carlos Lacerda, a morte de Getúlio significava a morte da
Última Hora – afinal, o jornal nascera para defender as ideias e o governo de
Vargas. Ao constatar que a Última Hora decidira prosseguir na caminhada,
agora desfraldando o legado de Getúlio, Lacerda entendeu que chegara a hora
de completar sua tarefa de destruição. Amainada a tempestade emocional
provocada pelo suicídio do presidente, os lacerdistas se haviam instalado no
poder, com a cumplicidade de Café Filho. Ali estava uma ótima oportunidade
para liquidar de vez o teimoso bessarabiano, e Lacerda não iria desperdiçá-la.
Mas não teve êxito em nenhuma de suas várias tentativas de um golpe de
misericórdia.
Uma delas seria mais tarde relatada em entrevista ao jornalista Joel Silveira
pelo jurista Miguel Seabra Fagundes, e ocorreu numa das primeiras reuniões
do ministério de Café Filho, inteiramente controlado pela UDN. Seabra
Fagundes, nomeado para ocupar o Ministério da Justiça, deixou o governo,
por sinal, precisamente por não ter se curvado a Lacerda. Os dois entraram
em rota de colisão quando, nessa reunião ministerial, Lacerda abriu a porta da
sala em que se realizava o encontro e, apoiado num agente de segurança e
numa bengala, ainda com o pé engessado, invocou seu direito de participar
das discussões. Era um evidente absurdo, já que Lacerda não ocupava
ministério algum. Mas ninguém ousou ordenar-lhe que se retirasse do local.
Subserviente, Café Filho perguntou-lhe que motivo o trouxera ali. Lacerda
retrucou que cumpria uma missão importantíssima: vinha exigir o
fechamento da Última Hora. Argumentou que o jornal representava tudo
quanto haviam combatido, e que sua eliminação configurava o corolário
inevitável da queda de Getúlio. Por gestos e palavras ou pela omissão,
praticamente todos os ministros aquiesceram. Então, ouviu-se a voz tranquila
do ministro Seabra Fagundes, com seu forte sotaque nordestino. Seabra
ponderou que só poderia fechar a Última Hora caso o jornal tivesse violado
alguma norma legal, e não lhe constava que isso tivesse ocorrido. Mesmo que
se suspeitasse de algum delito do gênero, seria indispensável cumprir os
procedimentos judiciais antes de qualquer providência prática. Em resumo, o
fechamento sumário da Última Hora representaria uma espécie de
arbitrariedade que o ministro da Justiça não estava disposto a endossar.
Irritadíssimo com tais observações, Lacerda chamou Seabra Fagundes de
provinciano. O ministro, sempre tranquilo, disse que era um provinciano
obediente às leis do país, que aparentemente não haviam sido feridas pela
Última Hora. Tratava-se de um atentado à liberdade de imprensa. Criado o
impasse, o general Juarez Távora, chefe do Gabinete Militar, um homem de
inteligência limitada que adorava dar murros na mesa quando argumentava –
os murros de Juarez ficaram famosos –, interveio em favor de Lacerda.
– Não podemos contrariar nosso Carlos, que deu seu sangue pelo país –
disse Juarez.
Alguém lembrou que talvez fosse possível fechar a gráfica que imprimia
meu jornal, alegando atrasos no pagamento de algumas dívidas. Lacerda
animou-se com a ideia, e novamente Seabra Fagundes jogou-lhe um balde de
água fria. Seabra esclareceu que, fosse qual fosse a acusação a ser endereçada
à Última Hora, a liturgia da Justiça teria de ser respeitada – o acusado, por
exemplo, teria de expor sua defesa. No final da reunião, diante das evidências
de que alguma coisa seria feita contra a Última Hora, custasse o que custasse,
Seabra Fagundes demitiu-se do Ministério da Justiça.
A campanha de extermínio prosseguiria nos meses seguintes, agora
dividindo as atenções do país com os lances da sucessão presidencial. Eu
logo me vincularia mais estreitamente a Juscelino Kubitschek, candidato dos
órfãos de Getúlio, mas esta é outra história, que contarei adiante.
Paralelamente à minha movimentação política, tratava de defender-me dos
ataques contra mim, baseados sobretudo na questão da nacionalidade. Eu
sofreria um rude golpe em outubro de 1955: o Tribunal de Justiça do Rio de
Janeiro decidiu condenar-me pelo crime de falsidade ideológica e aplicar-me
a pena de um ano de prisão.
Eu estava em São Paulo, e entendi que deveria regressar imediatamente ao
Rio de Janeiro, para não dar a impressão de que planejava viver como
foragido. Viajei de carro, acompanhado de quatro jornalistas da Última Hora.
Cheguei ao Rio por volta de meia-noite, encontrei-me com meu advogado e
seguimos para a casa do juiz encarregado do processo, que deveria indicar-
me onde permaneceria detido, já que tinha direito a prisão especial. Havia
dezenas de repórteres à minha espera. O juiz, incomodado com a confusão e
o barulho – eram quase três horas da madrugada –, determinou que eu me
recolhesse ao Regimento Caetano de Farias, na avenida Salvador de Sá.
Neguei-me a conceder entrevistas, e não abri exceções nem mesmo para
repórteres do meu jornal. Só concordei em ser fotografado entre meu
advogado e o capitão que chefiava a guarda do presídio.
Os chamados presos especiais ficavam numa espécie de estrebaria equipada
com vários leitos. Eram cinco os meus companheiros de cela no Caetano de
Farias: dois advogados condenados como chantagistas, um químico industrial
que assassinara a mulher adúltera, um médico mineiro de origem árabe que
também matara a mulher por suspeitar de que ela pretendia prostituir a filha,
e um tenente do Exército punido por estelionato. Eles sabiam quem eu era, e
logo tentariam pôr-me à prova. O químico industrial quis saber se poderia
fazer-me uma pergunta. Disse-lhe que sim, por que não?
– O que o senhor acha de Carlos Lacerda? – perguntou-me.
Eu já pudera perceber que todos ali eram admiradores de Lacerda, e ofereci
uma resposta sob medida para desarmá-los.
– Carlos é um gênio – comecei. – Trata-se de um homem de uma
inteligência extraordinária, muito capaz, extremamente combativo, tem uma
cultura excepcional.
Meus interlocutores pareceram perplexos. Acrescentei que considerava
Lacerda um reacionário, um fascista, mas entendia que valia a pena tê-lo
como adversário – sempre vale a pena combater figuras com tantas
qualificações intelectuais. Informei, enfim, que me sentia incapaz de odiar
Lacerda, até porque ele fora meu amigo de adolescência. Meus companheiros
de cela acharam absurda essa ausência de ódio. Ponderei que não via lugar
para o ódio na luta política. Graças a essa conversa ocorrida em minha
primeira madrugada na cadeia, pude conviver sem qualquer problema,
enquanto estive preso, na companhia de lacerdistas que o destino colocara na
minha vizinhança compulsória.
Minha mulher, Danuza Leão, visitava-me diariamente. Ela soube enfrentar
com muita coragem e dignidade alguns momentos muito difíceis
incorporados à nossa convivência, um dos quais foi a prisão em outubro de
1955. Grávida de Samuca, ela me visitava todos os dias com sua barriga
imensa, linda, e me oferecia evidências sucessivas de que, apesar de tudo, a
vida valia a pena. Nós nos casáramos em junho de 1954, quando ela já estava
grávida de Pinky. Fiquei extremamente comovido, até porque eu me
convencera de que jamais teria filhos. Mas me preocupei com as
especulações que certamente viriam. Preocupavam-me sobretudo as
represálias, já que aquilo representava, aos olhos do Rio elegante, mais uma
afronta vinda do judeuzinho do Bom Retiro. Danuza era a musa do Country
Club, uma jovem cobiçada pelo jet-set, e aquele romance seria certamente
explorado: era a princesa casando-se com um gângster. Por isso, e talvez
também por exibicionismo, optamos por um casamento secreto num cartório
em Petrópolis, cerimônia à qual só compareceriam parentes da noiva e meu
amigo Baby Bocayuva.
Na cadeia, eu recebia delegações de sindicatos, gente que vinha
homenagear-me e prestar-me solidariedade. Também recebia amigos e
companheiros da Última Hora, através dos quais passava instruções à
redação, orientava editoriais, até mesmo contratava jornalistas. Nessa época,
a revista Time publicou uma reportagem descrevendo as condições em que eu
vivia. Nessa reportagem, a cadeia onde eu estava era apelidada de “gaiola de
ouro”, e Lacerda imediatamente escreveu um artigo denunciando os
privilégios que me favoreciam. Como eu preferia a liberdade, apesar dos
privilégios, meu advogado recorreu ao Tribunal Federal de Recursos. Houve
um empate entre os quatro juízes – dois votaram pela minha permanência na
prisão, dois foram contrários – e o presidente do tribunal, valendo-se do voto
de Minerva, decidiu que eu deveria continuar na cadeia.
O “caso Wainer” se confundia com o quadro político do país. Tão logo se
precipitara o processo sucessório, eu passara a apoiar abertamente Juscelino
Kubitschek, colocando a Última Hora a serviço de sua candidatura.
Consequentemente, ampliou-se o abismo que me separava dos udenistas no
poder, cujo candidato era Juarez Távora. Em outubro, JK foi eleito presidente
da República, e logo começaram a desenhar-se as manobras golpistas
cronicamente articuladas por militares ligados a Carlos Lacerda. Eu estava na
cadeia, à espera de que o Supremo Tribunal Federal julgasse um recurso que
meus advogados haviam impetrado, quando se intensificaram os rumores do
golpe. Entendi que chegara a hora de transferir-me para um lugar mais
seguro, precavendo-me contra um eventual sucesso dos golpistas.
Consegui que autorizassem a ida à prisão, a pretexto de examinar minhas
condições de saúde, do dr. Noel Nutels, um médico amigo que já era famoso
por seu trabalho junto a tribos indígenas. Transmiti-lhe minhas inquietações e
pedi-lhe ajuda para que me transferissem para algum hospital militar, onde as
chances de fuga são sempre maiores. Isso seria possível se, por exemplo, um
médico atestasse que eu estava com tuberculose, ou que pelo menos corria o
risco de, permanecendo ali, voltar a contrair a doença que me surpreendera
alguns anos antes. Noel concordou com o plano, mas ponderou que ele só
teria êxito se o atestado fosse avalizado por um médico respeitado e
insuspeito. Só a palavra do médico do presídio, julgava Noel, não bastaria
para concretizar minha transferência.
Decidimos pedir a ajuda do dr. Aloísio de Paula, um médico
respeitadíssimo, além de figura conhecida da elite carioca. Aloísio foi até a
prisão, ouviu meu apelo, e prontamente se dispôs a entrar na operação. O
médico do presídio foi chamado, e, ao ouvir as palavras do colega famoso,
não titubeou: assinou de imediato um atestado segundo o qual eu corria sérios
riscos de ficar tuberculoso. Os dois sugeriram formalmente minha
transferência para o hospital da Polícia Militar, que ocupava uma velha casa
em estilo colonial na rua Frei Caneca. Já no dia seguinte, eu estava instalado
no único quarto para presos especiais do hospital.
Danuza logo provocou uma radical transformação naquela paisagem fria:
decorou as paredes com quadros, improvisou uma biblioteca, fez, enfim, com
que aquilo deixasse de parecer uma prisão. Ela vinha todos os dias e passava
todo o tempo a meu lado. Sempre trazia Pinky, que já tinha um ano de idade,
além da sua barriga esplêndida. Eu aproveitava as horas disponíveis para
escrever editoriais, que fazia chegar sem problemas à redação do jornal. Não
sentia propriamente medo, mas estava claro que a situação política ia
tomando rumos perigosos. Num dia, já no começo de novembro de 1955,
meu velho amigo João Etcheverry levou-me um revólver. Quis recusá-lo,
Etcheverry insistiu: eu poderia precisar daquilo. Escondi o revólver sobre um
guarda-roupa. Felizmente, nunca foi necessário tirá-lo dali.
No dia 11 de novembro de 1955, ouvi o som de sirenes e notei a
movimentação de tanques nas imediações da rua Frei Caneca. Liguei um
aparelho de rádio para saber o que ocorria, mas nenhuma emissora dava
qualquer notícia; todas haviam substituído a programação normal por música
suave. Então, João Etcheverry chegou com a notícia: o presidente interino
Carlos Luz fora deposto pelo general Henrique Teixeira Lott. Era o golpe,
mas a nosso favor. O deputado Carlos Luz, presidente da Câmara, assumira
alguns dias antes a Presidência da República em virtude de uma enfermidade
que acometera Café Filho. Tão logo se viu na Presidência da República,
Carlos Luz tratou de consolidar e ampliar a hegemonia dos lacerdistas,
substituindo todos os auxiliares que se mostravam arredios ao ideário da
UDN. O objetivo era criar condições para precipitar o golpe e impedir a posse
do presidente eleito, Juscelino Kubitschek. Preso a esse projeto, Carlos Luz,
no dia 10 de novembro, exonerou o general Henrique Lott do Ministério da
Guerra. Foi um erro fatal. No dia seguinte, Lott liderou o contragolpe que
derrubou Carlos Luz, transformou a licença de Café Filho em afastamento
definitivo e colocou na presidência o catarinense Nereu Ramos, presidente do
Senado. Os golpistas fugiram a bordo do cruzador Tamandaré, que zarpou
rumo a Santos. Entre eles estava Carlos Lacerda, que depois iria para o exílio
em Cuba. Naquela noite, pude dormir bem mais tranquilo.
A 23 de novembro de 1955, o Supremo Tribunal Federal julgou o recurso
impetrado em meu favor. Seria um dos dias mais emocionantes da minha
vida. No hospital militar, ao lado de Danuza, grudei-me ao telefone, para
receber informações sobre o desenrolar do julgamento. O relator do processo,
ministro Nelson Hungria, deu um parecer magnífico, denunciando a injustiça
que se tentava forjar contra mim. Os votos foram se sucedendo, todos a favor.
Quando chegou a vez do quinto ministro, e constatei que fora absolvido, caí
em prantos. Danuza também chorava muito. Sem esperar pelo resultado final,
que proclamaria por unanimidade minha absolvição, saí correndo para fazer a
mala. Soube, depois, que o STF não julgara o mérito da questão. Os ministros
não se interessaram por descobrir onde eu nascera; apenas entenderam que
não houvera dolo, que eu não tivera qualquer intenção de praticar algum
crime. Aos olhos do país, de qualquer forma, a decisão do STF tinha um
significado claro: Samuel Wainer era brasileiro.
Meia hora depois de terminado o julgamento, alguns amigos chegaram à
prisão com o alvará de soltura. Informaram-me que haveria uma
manifestação pública em minha homenagem defronte ao prédio da Última
Hora. Fiquei apavorado – sempre senti um terror genuíno diante desse tipo de
celebração. Pedi aos amigos que seguissem na frente, eu iria logo depois. Não
fui. Em vez disso, entrei no carro com Danuza e Pinky e contornamos o
Campo de Santana, em direção ao prédio do Ministério da Guerra. Ali, fiz
questão de cumprimentar os soldados que estavam nos tanques – embora não
parecesse haver risco de outra tentativa de golpe udenista, o Exército
continuava em regime de prontidão. Fomos em seguida para o nosso
apartamento na avenida Rui Barbosa. Ali encontrei à minha espera o
presidente da Associação Brasileira de Imprensa, Herbert Moses, e vários
diretores da entidade. Queriam saudar-me e comemorar minha liberdade. Na
manhã seguinte, reassumi meu lugar na redação da Última Hora. A situação
mudara bastante: Lacerda estava no exílio e um de meus amigos, Juscelino,
estava prestes a assumir a Presidência da República. Eu não tinha dúvida
alguma de que a campanha contra mim não cessaria, mas também ficara
evidente que a Última Hora reunira fôlego e trunfos para seguir resistindo ao
assédio.
CAPÍTULO 30

Juscelino Kubitschek e eu começamos a aproximar-nos quando ele ainda


governava Minas Gerais e, como outros políticos, ambicionava disputar a
sucessão de Getúlio. Eram muitos os pretendentes, entre os quais figurava,
por exemplo, Euvaldo Lodi. Já no final dos anos 40, Lodi costumava
solicitar-me artigos ou reportagens favoráveis aos interesses dos industriais
paulistas, que o tinham como um de seus líderes mais legítimos. Eu
geralmente o atendia, até porque as entidades em que Lodi militava
defendiam posições nacionalistas muito semelhantes às da Última Hora.
Nessas ocasiões, ele retribuía com algum presente, ou quantias em dinheiro.
Quando Getúlio voltou ao poder, Euvaldo Lodi compreendeu que eu podia
facilitar-lhe o acesso ao presidente, e tornou-se ainda mais solícito, ainda
mais generoso. Não era o único a cortejar-me: todos os candidatos com
pretensão ao apoio de Getúlio agiam assim.
No começo dos anos 50, Juscelino e Euvaldo Lodi ensaiaram algum tipo de
aproximação, e numa certa manhã eu os acompanhei ao Palácio do Catete,
para uma audiência com Vargas. O espertíssimo presidente sabia que os dois
cobiçavam o seu lugar, e aproveitou a chance para enviar uma das suas
mensagens em código. No fim da audiência, Getúlio deixou o gabinete, foi a
outra sala e pouco depois voltou com dois livros. Ofereceu-os, com
dedicatória, a Juscelino e a mim – Euvaldo Lodi não ganhou presente algum.
Getúlio gostava de manifestar suas preferências através de gestos
aparentemente casuais, e valeu-se da oportunidade para insinuar que, se
tivesse de fazer uma opção entre ambos, escolheria Juscelino.
Não posso dizer que tenha sido amigo de JK – amigo é uma palavra que
sempre valorizei muito, jamais a empreguei levianamente. Eu apreciava
Juscelino, e sei que ele tinha muita simpatia por mim. Fomos bons
companheiros, nossas biografias frequentemente se confundiram, nosso
destino foi muitas vezes comum. Mas não chegaram a existir, entre nós, os
laços que me uniram a Getúlio Vargas. De qualquer forma, tivemos uma
convivência bastante estreita, e pude testemunhar de perto a aventura dos
anos JK. Mais uma vez, nesse período eu teria a chance de ser, além de
testemunha, protagonista da História.
Numa noite de junho de 1955, quando a campanha para as eleições
presidenciais já começara a mobilizar o país, Juscelino pediu-me que fosse
até seu apartamento em Copacabana. Combinamos um encontro na porta do
prédio e tivemos uma conversa a dois na calçada. Ele me confirmou que seria
candidato pelo PSD, apesar da aberta hostilidade que lhe tributavam generais
udenistas. Observou que seria indispensável ter o meu apoio, já que eu me
tornara um símbolo do getulismo e, além disso, havia a penetração da Última
Hora, trunfo que candidato algum poderia desprezar. Meu jornal entrou na
campanha com enorme veemência; era preciso eleger JK, custasse o que
custasse. Paralelamente à luta eleitoral, empenhei-me nos combates
provocados pela interminável campanha movida contra mim, e consegui
ganhar as duas guerras. Meus inimigos não haviam conseguido destruir-me e,
com a vitória de Juscelino, eu voltara ao centro do poder.
Minha aliança com JK manteve-se ao longo do seu governo. A Última
Hora foi, por exemplo, o único jornal a apoiar sem restrições a criação de
Brasília. Instalamos a sucursal em Brasília quando a cidade nem sequer fora
inaugurada, e o jornal sempre defendeu a tese de que JK pensava no futuro.
Recebi um curioso prêmio por essa lealdade ao presidente. No dia em que a
nova capital foi inaugurada, passaram-me a incumbência de fazer a primeira
ligação telefônica entre Brasília e o mundo exterior. Não era uma ligação
qualquer: eu deveria chamar, do outro lado da linha, o irascível pensador
católico Gustavo Corção, feroz inimigo da ideia de construir Brasília. Liguei
para a casa de Corção no Rio de Janeiro. Uma voz atendeu, perguntei pelo
professor Gustavo Corção.
– Sou eu mesmo – informou a voz, que quis saber com quem falava.
Disse-lhe meu nome, e percebi que a receptividade era nenhuma.
– O que o senhor deseja? – perguntou, em tom seco.
– Desejo mandar-lhe saudações de Brasília – provoquei.
– Isso é uma mentira – enfureceu-se Corção.
Convidei-o a fazer um teste: bastava chamar do Rio o número do aparelho
que eu estava usando e verificar se de fato eu me encontrava em Brasília.
– Isso é um desrespeito, vocês têm que me respeitar – explodiu Corção, que
se recusou a fazer o teste que eu lhe propusera.
Episódios desse tipo, e não foram poucos, mostram que minha convivência
com JK foi muito rica, muito sólida, muito cordial. Mas reafirmo que jamais
chegamos a ser íntimos. Juscelino tinha outro grupo, outros amigos – não era
a mesma entourage de Vargas; JK e Getúlio encarnavam estilos e ideários
diferentes. Juscelino não tinha, por exemplo, afinidade alguma com o PTB.
Tratava-se de um burguês do PSD, um brasileiro originário da classe média
que gostava da vida com certo fausto, que sabia usufruir os prazeres do
mundo. Mas JK era sobretudo um homem dotado de uma simpatia irradiante,
um calor humano excepcional, extremamente bom, generoso, tolerante e
liberal.
Foi muito comovente conviver com Juscelino na saga da construção de
Brasília. Lembro-me de uma noite, às vésperas da inauguração da capital, em
que jantei no Palácio da Alvorada com JK e um escritor francês, Germain
Bazin, que pousara no Cerrado para ver de perto aquela singular aventura
brasileira. Terminado o jantar, saí com Bazin para caminhar pelos arredores
do Alvorada, e notei que ele estava deslumbrado. Deslumbrado, perplexo e
cético: de vez em quando o francês parava, encostava um dedo numa das
colunas inventadas por Oscar Niemeyer e sussurrava: “Isso é belo demais,
mas não vai durar”. Nessa época, por sinal, Lacerda escrevia imensos artigos
afirmando que Brasília estaria reduzida a ruínas no século XXI. Hoje está
claro que a nova capital veio para ficar.
Fiz questão de coordenar pessoalmente o trabalho dos jornalistas que
cobriram a inauguração de Brasília para, depois, escrever o texto da
reportagem. Contemplei cenas inesquecíveis, uma das quais o desfile dos
caminhões que levavam nas carroçarias os candangos que haviam construído
aquele monumento urbano. Do palanque, Juscelino e as autoridades da
República viram passar brasileiros com rostos tristes, introspectivos, e
nordestinos. Sob um sol fortíssimo, eles exibiam chapéus improvisados com
jornais, protegendo fisionomias com os traços inconfundíveis dos paus de
arara que só de vez em quando sorriem. Fora aquele o exército que construíra
Brasília.
Meu acesso à família de Juscelino era fácil, mas tais relações estavam
distantes das que mantivera com Vargas, sobretudo com Alzirinha. Sempre
que necessário, eu era recebido pelo presidente, mas o clima dessas
conversas, apesar de cordial, jamais reproduziria a calorosa cumplicidade que
me ligara a Getúlio. De qualquer forma, JK e seus amigos me ajudariam a
liquidar os débitos da Érica, a empresa que eu constituíra na gênese da
Última Hora. No campo dos negócios, aliás, JK foi bem mais generoso
comigo que o próprio Vargas. Hoje, entendo que Getúlio eventualmente
deixou de me fazer certos acenos até por saber que minha lealdade a ele era
incondicional. Juscelino, um ótimo político, estava convencido de que era
indispensável fazer-me agrados para conservar o aliado.
Aliado muito útil, por sinal. No começo do governo JK, o ministro da
Justiça, Nereu Ramos, que ocupara a presidência interina depois da crise de
11 de novembro, cometeu em relação ao general Henrique Lott, ministro da
Guerra, uma indelicadeza imperdoável. O Centro Onze de Novembro,
entidade formada por oficiais e civis favoráveis ao contragolpe que derrubara
Carlos Luz, resolvera entregar a Lott uma espada de ouro. Nereu Ramos, para
demonstrar que sua postura ministerial era efetivamente equidistante dos
partidos políticos, decidiu proibir a manifestação e dissolveu às pressas o
Centro Onze de Novembro. Para JK, que tinha em Lott um dos suportes de
sua permanência na chefia do Estado, nada poderia haver de mais inoportuno,
mas ele só soube da situação provocada por Nereu Ramos quando já não
havia o que fazer. Percebi que as coisas estavam difíceis e fui à casa do
general Lott sondar seu estado de espírito.
Não era bom. Lott recebeu-me às sete e meia da noite, enquanto jantava.
(Generais brasileiros jantam às sete e meia.) Depois da sobremesa, saímos
para um passeio numa praça perto da casa do ministro.
– Senhor Wainer, foi bom ter-me visitado – disse Lott. – Meditei muito e
vou fazer-lhe uma confidência, que não pode ser publicada até amanhã às
onze horas.
O general então me contou que, nessa hora, teria uma audiência com o
presidente da República na qual solicitaria, em caráter irrevogável, seu
afastamento do Ministério da Guerra. Ele se convencera de que a dissolução
do Centro era um insulto à sua figura, um agravo à honra de militar. Assim,
não lhe restava alternativa além da renúncia ao cargo.
Ponderei-lhe que aquela atitude poderia abalar de modo irremediável o
governo de Juscelino.
– Estou decidido, senhor Wainer – insistiu o general. – Fui insultado e nada
me fará voltar ao ministério.
Diante da iminência da crise, declarei a Lott que ele vestia o figurino de
guardião da democracia e era, desde já, nosso candidato à sucessão de JK.
Ele pareceu surpreso e compreensivelmente lisonjeado, mas reiterou que
deixaria o ministério. Encerrada a conversa, caminhei um pouco pelas ruas do
bairro, pensando na melhor maneira de administrar aquele segredo. Para o
jornalista, o caminho a seguir era tirar uma edição extra anunciando a
demissão do general Lott. Para o brasileiro interessado no quadro político,
restavam duas opções. Uma delas era transmitir a má notícia ao próprio JK. A
outra era discutir o problema com o general Odílio Denys, que então ocupava
um cargo equivalente ao do atual comandante do I Exército. Denys era um
velho companheiro de Lott, que tivera participação decisiva no contragolpe
de novembro de 1955 e continuava a exercer forte influência nos quartéis.
Cheguei à sua residência às nove da noite, hora em que os generais
brasileiros já jantaram e se preparam para dormir. Um sentinela barrou meus
passos. Consegui que ao menos chamasse o ajudante de ordens. Convenci o
oficial a passar a Denys a informação de que eu estava no portão. O general
mandou que eu entrasse, encontrei-o vestindo um pijama.
– Que é que há, patriota? – perguntou Denys. (Ele gostava de chamar
qualquer interlocutor de “patriota”.)
Expliquei-lhe que dispunha de uma informação que me fazia balançar entre
minha consciência profissional e meus deveres de cidadão. Denys afirmou
que, nesse caso, deveria prevalecer minha consciência cívica. Contei-lhe o
que acabara de ouvir do ministro da Guerra.
– Esse filho da puta quer fazer de novo o que sempre fez desde o Colégio
Militar! – explicou Denys. – O Lott sempre tomou decisões sem avisar à
gente. Precisamos impedir que ele faça essa besteira.
Denys resolveu sair à procura de Lott, acompanhado de seu filho Rubem, e
me incumbiu de localizar o advogado Sobral Pinto e informar-lhe sobre a
crise que se desencadeava. Sobral tinha muita influência sobre o ministro da
Guerra e poderia dissuadi-lo de deixar o cargo. Ponderei que estava rompido
com Sobral Pinto, mas Denys não se comoveu:
– Problema seu: trate de localizá-lo – comandou.
Preferi dirigir-me ao Palácio do Catete e tentar um encontro com o
presidente Juscelino. A caminho do Catete, entrei em contato com a Última
Hora e ordenei que todos ficassem de plantão, à espera de notícias quentes e
importantíssimas, sem contudo revelar o que estava ocorrendo.
Cheguei ao palácio perto das onze da noite. Informaram-me que JK estava
dormindo, pedi que o acordassem com o aviso de que trazia um recado
urgentíssimo do general Denys. O presidente recebeu-me minutos depois,
vestindo um terno muito elegante e calçando sapatos de verniz – certamente s
preparava para ir a algum baile, não para dormir. Quando lhe contei que Lott
decidira pedir demissão, ele ficou lívido.
– Ele não pode fazer isso! – exclamou.
Também JK pediu-me que localizasse Sobral Pinto. Mais uma vez,
expliquei que não era amigo do velho advogado. O presidente convocou dois
de seus assessores diretos, os juristas Victor Nunes Leal e Evandro Lins e
Silva, e despachou-os para a casa de Lott. Voltei para a redação e encontrei
um recado do ministro da Guerra: ele me pedia que não publicasse nenhuma
notícia sobre a conversa que tivéramos antes que me passasse novas
instruções.
Liguei para Lott e comuniquei-lhe que ficaria ao lado do telefone.
– Não vou dormir, nem comer, nem beber antes que o senhor me ligue –
disse-lhe.
Às duas da madrugada, recebi o chamado de Denys.
– Senhor Wainer, não dê nenhuma notícia até segunda ordem – apelou o
general. – Estamos tentando abrir a cabeça desse filho da puta.
Às três, Lott me ligou, pedindo-me um pouco mais de paciência. Continuei
de plantão. Às seis da manhã, enfim, Lott telefonou informando que desistira
de demitir-se do cargo. Perguntei-lhe se poderia informar o que acontecera e
noticiar sua permanência no posto. Ele negou-me tal autorização. Liguei para
Denys, que àquela altura estava no quartel-general do I Exército.
Conversamos sobre o que se passara e, no final do diálogo, o general fez-me
uma homenagem:
– Você é um patriota a quem o Brasil passa a dever um grande serviço
cívico – disse-me Denys.
Episódios desse gênero, e repito que não foram poucos, faziam com que eu
tivesse um excelente trânsito junto ao poder, mesmo não figurando no círculo
dos amigos íntimos de JK.
Juscelino era um homem de mente aberta, um político moderno, uma
espécie de contrapartida brasileira para John Kennedy. Mas, legítimo filho da
classe média, não sentia fascínio algum pelo contato direto com a massa
trabalhadora. Também por isso, desde o começo de seu governo entregou a
seu vice João Goulart todas as peças da máquina burocrática do governo que
tinham ligações com a área sindical. JK preferia dedicar-se aos grandes
projetos, à materialização dos sonhos como Brasília, à consolidação da
indústria, ou então desfrutar do lado especialmente doce do poder – festas,
mulheres bonitas, celebrações. Naturalmente, nunca foi insensível aos
problemas e reivindicações dos trabalhadores; apenas, preferia dialogar com
eles através de intermediários.
Numa noite, Juscelino chamou-me para uma conversa reservada no Rio de
Janeiro. Encontrei-o extremamente inquieto com a informação de que líderes
sindicais de São Paulo estavam preparando uma “marcha da fome” sobre a
capital federal, reivindicando melhores condições salariais. Ao saber desses
preparativos, o general Odílio Denys avisou que a marcha não passaria da
cidade de Resende: se preciso, a multidão de manifestantes seria rechaçada a
bala.
– Já imaginou o que acontecerá se algum operário morrer? – perguntou-me
o presidente.
Aflito com a antevisão do enorme desgaste que um incidente desse tipo
causaria ao seu governo, apelou-me para que viajasse a São Paulo e tentasse
impedir a “marcha da fome”. Naquele momento, minhas relações com os
líderes sindicais paulistas eram muito boas. Além disso, a Última Hora
esbanjava saúde, solidamente enraizada em São Paulo. O jornal participava
ativamente da política paulista e, de vez em quando, dava notáveis
demonstrações de força. Em 1958, por exemplo, depois da vitória da Seleção
Brasileira na Copa da Suécia, a Última Hora elegeu Paulo Machado de
Carvalho o “Homem do Ano”, e lhe ofereceu uma homenagem no Pacaembu
que juntou cerca de cem mil pessoas. No plano político, o jornal se firmara
como um símbolo do getulismo, o que assegurava sua influência na área
sindical. Não me pareceu complicado, portanto, atender ao pedido de
Juscelino.
Decidi debater a questão na sede da Última Hora paulista, e reuni num
enorme salão todos os líderes sindicais de peso, entre os quais se destacavam
pelegos históricos como Salvador Losacco e Dante Pellacani, principais
organizadores da marcha que inquietava JK. Expliquei-lhes que o presidente
estava preocupado com os riscos embutidos na manifestação, eles retrucaram
que se tratava de uma decisão irrevogável. Eu os adverti de que poderiam
estar estimulando uma crise que talvez resultasse na queda de Juscelino.
Meus interlocutores bateram o pé: fariam a marcha custasse o que custasse.
Passei à ofensiva e informei que a Última Hora denunciaria os sindicalistas
paulistas como agentes provocadores. Eles ficaram claramente perplexos –
sempre viram no jornal um aliado. Num tom de voz ainda mais agressivo,
preveni-os de que, se morresse alguém, eles seriam responsabilizados.
Caracterizado o confronto, os sindicalistas se retiraram para discutir a
questão. Voltaram depois de algum tempo para comunicar-me que a “marcha
da fome” seria suspensa, e que eles buscariam outras formas de externar seu
descontentamento com a política salarial do governo.
Quando os sindicalistas se foram, Sérgio Lima e Silva, com quem eu
convivia desde os tempos de Diretrizes e me ajudara a implantar a Última
Hora em São Paulo, no cargo de superintendente, mostrou-se espantado.
Sérgio, que apesar da ascendência aristocrática tivera uma formação
esquerdista, assistira à reunião e se surpreendera com meu desempenho.
– Puxa, como você ficou reacionário – censurou Sérgio.
Perguntei-lhe por quê, e ele disse que eu usara na conversa com os
sindicalistas um tom demasiado áspero, muito agressivo. Expliquei a Sérgio
que, aos ouvidos daqueles trabalhadores, minha voz soara familiar. Nela eles
haviam reconhecido a voz de seus avós, de seus pais, deles próprios. Era a
voz do menino pobre do Bom Retiro, a voz de alguém igual a eles.
Mais de uma vez me vali desses vínculos com JK para percorrer caminhos
que, sem o seu aval, poderiam estar obstruídos. Numa dessas ocasiões, acabei
provocando uma séria crise política na Argentina e alguns abalos nas relações
entre os dois países. A confusão começou quando, em 1959, soube que o
presidente argentino Arturo Frondizi estava sucumbindo a pressões
favoráveis à quebra do monopólio estatal do petróleo. Se Frondizi cedesse,
seu recuo poderia excitar pressões semelhantes no Brasil e eventualmente
revogar a vitória obtida pelos que haviam lutado sob o lema “o petróleo é
nosso”. Resolvi entrevistar Frondizi, mas logo constatei que ele não tinha o
menor interesse em conversar com jornalistas brasileiros.
Pedi a Juscelino que me enviasse a Buenos Aires como emissário do
governo, designado para conhecer as reais intenções de Frondizi sobre a
questão do petróleo. Juscelino relutou, eu insisti até dobrar sua resistência.
Alguns dias depois, desembarquei em Buenos Aires com um documento no
qual o Itamaraty pedia ao presidente argentino que me recebesse. Apresentei-
me a Frondizi como emissário de JK e comuniquei-lhe que o colega
brasileiro se solidarizava com sua determinação em resistir às pressões
contrárias ao monopólio. Frondizi não sabia que estava sendo entrevistado, e
foi bastante enfático na defesa de teses que eram música para meus ouvidos.
De volta ao Brasil, publiquei uma reportagem de página inteira com uma
manchete fortíssima para o momento: “Frondizi: Não vou quebrar o
monopólio do Estado.” Ilustrei a reportagem com uma grande foto em que eu
aparecia conversando com o presidente argentino.
Foi uma confusão terrível. Frondizi teve de fazer inúmeras acrobacias para
manter-se no poder, e chegou a ameaçar romper relações diplomáticas com o
Brasil, sob a alegação de que fora enganado por JK. Juscelino não gostou do
barulho, mas não brigou comigo. Aliás, nunca tivemos brigas sérias. Tivemos
alguns desentendimentos, sobretudo no final de seu governo, quando ele já
caíra nas boas graças de parte da grande imprensa e a Última Hora deixara de
ser indispensável a seu esquema de poder. Mas nunca se consumou, entre nós
dois, uma real ruptura.
Creio que Juscelino cometeu alguns graves erros políticos no final de seu
governo. Um deles foi ter-se lançado ostensivamente como candidato às
eleições presidenciais de 1965, quando nem sequer encerrara seu mandato.
Isso fez com que tanto no PSD, o partido de JK, como fora dele, todos os
interessados em concorrer tratassem de colocá-lo na alça de mira. Juscelino
era um candidato natural, não precisava anunciar formalmente, e com tanta
antecipação, seus planos de regresso ao poder. Outro erro foi ter contribuído
para que Carlos Lacerda se elegesse em 1960 governador do recém-criado
Estado da Guanabara, extinto anos depois.
Ao longo do mandato, JK soubera neutralizar habilmente a agressividade
de Lacerda. Aos poucos, o presidente capturara a simpatia de homens como
Roberto Marinho, Assis Chateaubriand e Paulo Bittencourt, príncipes da
grande imprensa que haviam combatido Getúlio com ferocidade e assegurado
espaços para Lacerda atacá-lo. Manobrando espertamente redes de influência,
Juscelino virtualmente expulsara Lacerda da televisão – a Assis
Chateaubriand, dono da poderosa TV Tupi, por exemplo, já não interessava
patrocinar insultos ao presidente da República. Assim, em 1960, já
convencido de que a UDN não teria forças suficientes para bloquear sua volta
ao poder cinco anos depois, JK deixou de preocupar-se com o possível
fortalecimento de Lacerda. Pareceu-lhe mais proveitoso evitar que
emergissem nos partidos que lhe davam sustentação parlamentar, o PSD e o
PTB, novas lideranças com penetração popular.
Foi movido por essa determinação que Juscelino ajudou a fulminar a
candidatura do deputado petebista Sérgio Magalhães ao governo da
Guanabara. Pouco simpático, nada comunicativo, Sérgio Magalhães jamais
representaria uma ameaça a JK, embora despontasse como franco favorito ao
governo da Guanabara. Mas Juscelino não queria correr risco algum. Por
isso, estimulou o lançamento da candidatura do general Mendes de Morais
pelo PSD carioca e garantiu combustível para a entrada em cena de outro
candidato, o deputado Tenório Cavalcanti, cujo estilo populista certamente
subtrairia mais eleitores a Sérgio Magalhães. Lacerda pôde correr sozinho
pela direita, galvanizando todo o eleitorado conservador, e ainda assim
venceu por ínfima diferença de votos. JK não compreendeu que, ao facilitar a
vitória de Carlos Lacerda, estava franqueando o acesso de um adversário
muito perigoso ao comando de um dos estados mais importantes da
Federação. Naquele momento, começava a tomar forma o golpe afinal
consumado em 1964.
Aparentemente, Juscelino jamais duvidou de que teria o apoio da grande
imprensa para voltar ao poder, até porque sempre soube produzir afagos e
favores a donos de jornais. Eu próprio fui contemplado por algumas dessas
providenciais gentilezas. Um desses acertos evitou, por exemplo, que eu
acabasse condenado num dos inumeráveis processos movidos contra mim.
Por conhecer os juízes encarregados do caso, eu sabia que a situação estava
indefinida. Então, um dos juízes fez com que me chegasse a informação de
que ficaria muito mais sensível a meus argumentos se fosse promovido a
catedrático da faculdade de Direito onde era professor. Passei o recado a JK,
que atendeu prontamente à reivindicação do juiz. Fui absolvido, graças ao
voto do novo catedrático.
Em outra ocasião, quando eu estava novamente às voltas com dívidas junto
ao Banco do Brasil, um alto funcionário da instituição passou-me uma
informação preciosa: havia um empresário estreitamente ligado ao presidente,
empreiteiro de obras públicas, que costumava socorrer amigos comuns em
apuros. Seu nome: Marcos Paulo Rabello, dono de uma empresa que se
responsabilizara por boa parte da construção de Brasília. Fui ao encontro de
Juscelino, relatei-lhe os problemas financeiros que enfrentava e tirei minha
carta da manga: Rabello poderia resolver a questão. O presidente emudeceu,
ensaiando a expressão de quem jamais ouvira aquele nome. Impassível,
reiterei que seria uma boa ideia apresentar-me a Rabello como alguém
recomendado pelo presidente. JK ainda tentou negar qualquer ligação entre
ambos, mas afinal baixou a guarda:
– Procure-o e diga que pergunto se ele pode te ajudar – concedeu JK.
Fui ao encontro de Rabello, que a princípio tentou negar qualquer ligação
com Juscelino. Ao constatar a inutilidade da negativa, tornou-se bastante
receptivo e sugeriu que eu lhe vendesse 45% das ações da Érica, minha
empresa. As ações foram efetivamente transferidas para seu nome. Retribuí
com material publicitário a ajuda que Rabello me prestou. Naquele episódio,
pude conhecer uma figura essencial aos interessados em decifrar os segredos
do jogo do poder no Brasil: o empreiteiro. Marco Paulo Rabello era apenas
um deles. Muitos outros haveriam de surgir no meu caminho.
CAPÍTULO 31

Ainda nos anos 50, a imprensa brasileira tinha como anunciantes,


basicamente, pequenos comerciantes – a indústria nacional não alcançara sua
maioridade, e tampouco havia grupos financeiros de grande porte. Como os
recursos obtidos com as vendas em bancas e assinaturas eram insuficientes,
os meios de comunicação precisavam valer-se de outras fontes de renda,
utilizando como moeda de troca seu peso junto à opinião pública. Graças a
esse trunfo, os barões da imprensa sempre mantiveram relações especiais
com o governo, que tanto lhes prestava favores diretos como beneficiava seus
amigos – amigos que sabiam retribuir a ajuda recebida.
Para assegurar o apoio dos meios de comunicação, ou ao menos evitar que
lhe fizessem oposição frontal, o governo contemplava jornais e revistas com
isenções fiscais, dólar subsidiado, facilidades para a importação de papel,
eventualmente anúncios. Poucos ministros ousavam rechaçar reivindicações
formuladas por homens como Assis Chateaubriand ou Paulo Bittencourt e
destinadas a favorecer terceiros. Na Primeira República, muitos donos de
jornais prosperaram como agentes dos interesses dos exportadores de café.
Nos anos 50, os barões do café foram substituídos pelos grandes
empreiteiros. Especialmente nos anos JK, quando começou a era das obras
portentosas, os empresários do ramo compreenderam que valia a pena contar
com jornais amigos. Com a cumplicidade da imprensa, seria sempre mais
fácil, também, receber do governo – um mau pagador crônico – o dinheiro a
que tinham direito pelas obras executadas. Feitas tais constatações, logo se
forjaram sociedades semiclandestinas bastante rentáveis.
Assis Chateaubriand, por exemplo, costumava procurar pessoalmente
ministros de Estado, ou mesmo o presidente da República, para solicitar que
um trecho de determinada obra – uma rodovia, uma hidrelétrica – fosse
entregue a esta ou àquela construtora. Ficava claro que, se o pleito não fosse
atendido, a ira do jornal desabaria sobre o autor da recusa. Era melhor,
portanto, atender ao pedido. Feito o acerto, as empreiteiras premiadas
presenteavam o emissário com dez por cento do total da quantia orçada para a
obra. Geralmente, essa porcentagem resultava em cifras milionárias. Gorjetas
adicionais pagavam outros favores prestados pelos donos de jornais e
revistas, um dos quais era impedir atrasos no pagamento. Ministros mais
prestativos, dispostos a liberar com agilidade as verbas devidas, mereciam
rasgados elogios em editoriais e reportagens. Já os que protelavam
pagamentos caíam em desgraça e recebiam ataques duríssimos. De quebra, os
meios de comunicação faziam vista grossa para a irresponsabilidade das
empreiteiras, que utilizavam material de segunda ordem, fraudavam cálculos
e montavam orçamentos fictícios.
Esse tráfico de influência tornou-se particularmente intenso no governo de
Juscelino Kubitschek, durante o qual se consolidaram fortunas imensas. Um
dos principais beneficiários desse período foi Marco Paulo Rabello, de quem
se dizia, sem provas concretas, que era sócio de JK. O presidente entregou a
tarefa de construir Brasília a Rabello, que pôde distribuir entre outras
empresas as obras de cuja execução não poderia encarregar-se – era muita
coisa para um único empreiteiro. Só a construção de Brasília já bastaria para
assegurar a alegria de dezenas de homens do ramo, mas houve mais. A
rodovia Belém-Brasília, por exemplo. Também os governos estaduais
incharam os cofres de algumas empreiteiras, às quais devotavam franca e
suspeita simpatia, com a encomenda de projetos de âmbito regional mas
também milionários.
A presença dos empreiteiros na cena política brasileira é ainda fortíssima.
Eles seguem interferindo na nomeação de ministros que agirão nas áreas
incluídas em seu universo de interesses, financiando partidos e candidatos,
elegendo deputados e senadores, influenciando a linha editorial de jornais e
revistas. Negócios desse tipo não costumam deixar rastros, mas é fácil
deduzir que nestes últimos anos foram captados dessa forma alguns bilhões,
repartidos entre empreiteiras e seus sócios na imprensa. Sempre que algum
negócio me beneficiava, o dinheiro era integralmente aplicado na Última
Hora – nunca quis nada para mim. Meus colegas pensavam de modo
diferente: colocavam nos próprios bolsos as verbas recebidas, jamais
cogitaram de aplicá-las nas empresas que dirigiam. Assim enriqueceram
muitos barões da imprensa brasileira.
Eu estava consciente de que seria desaconselhável sair do país nos
movimentados anos JK, já que a Última Hora, então transformada numa
grande empresa jornalística, absorvia todo o meu tempo. Mas meu fascínio
por viagens, que me acompanharia pela vida afora, falaria mais alto em 1959,
quando fui convidado a integrar uma delegação de brasileiros escolhidos para
assistir aos festejos do décimo aniversário da Revolução Chinesa. Eram cerca
de quarenta pessoas. Aceitei o convite sob duas condições: levar Danuza
comigo e viajar em outro avião, separado do restante da delegação. Meus
anfitriões concordaram, e acabei fazendo uma viagem rigorosamente
inesquecível.
A primeira escala levou-nos à Tchecoslováquia, onde ficamos dois dias.
Dali seguimos para Moscou. Essa cidade decididamente não me atraía, mas
acabou valendo a pena conhecê-la: vivi na capital soviética alguns momentos
muito interessantes, graças sobretudo ao temperamento e às preferências
estéticas de Danuza. Numa noite, por exemplo, fomos a um cabaré para
dançar. Danuza usava um vestido preto com um ousado decote nas costas, e
logo ao entrar percebi que a jovem brasileira causara uma impressão muito
forte. A certa altura, um coronel do Exército Vermelho ergueu-se em sua
mesa, atravessou o salão, bateu continência diante de nós e pediu permissão
para dançar com Danuza. A orquestra tocava uma valsa. Cinco minutos
depois, minha mulher voltou à nossa mesa, mas mal teve tempo de sentar-se
– outro russo queria dançar com ela. Depois veio outro, outro e outro. Então,
tirei Danuza para dançar, determinado a socorrê-la da ofensiva do Exército
Vermelho. O que os soviéticos queriam, naturalmente, era tocar aquela suave
e perfumada pele capitalista.
Voamos num bimotor para a China, onde recebi o tratamento dispensado a
personalidades importantes e suspeitas. Escalaram, por exemplo, dois
intérpretes para acompanhar-me; evidentemente, sua missão era vigiar meus
movimentos. Esses intérpretes escolhiam o que eu deveria ver, decidiam
todos os detalhes do meu programa de visitas. Cabia-lhes convencer-me de
que a revolução chefiada por Mao Tsé-Tung fora um completo sucesso. Um
dia, eles me levaram a uma exibição de acrobatas que faziam evoluções
desconcertantes, piruetas incríveis. Um dos intérpretes começou a discorrer
sobre as ligações entre o desempenho dos acrobatas e o sistema político
vigente na China.
– Eles estão possuídos pelo espírito da revolução – repetia um dos
intérpretes.
Então, um dos acrobatas desabou das alturas, bateu na rede e despencou no
solo – nunca soube o que ocorreu, mas é provável que tenha morrido. Uma
pequena multidão de chineses rapidamente acercou-se do acidentado e
retirou-o do local. Olhei para o intérprete, e percebi que ele contemplava a
cena com uma expressão de ódio. Certamente estava convencido de que o
infeliz acrobata era um traidor da revolução maoísta.
Para alívio dos meus acompanhantes, tudo correu muito bem nos dois
principais eventos da programação oficial. Um foi o formidável banquete que
reuniu todos os líderes comunistas do mundo, ao qual Danuza, por sinal,
compareceu com um fantástico vestido vermelho. Outro, o desfile que
comemorou o décimo aniversário da revolução, um longo e belíssimo
espetáculo que durou praticamente um dia inteiro. No palanque oficial, fui
apresentado a Mao Tsé-Tung. Informado de que eu era brasileiro, o líder
chinês quis saber que imagem guardavam dele em meu país. Disse-lhe que os
brasileiros o consideravam um grande general, mas que as poucas pessoas
que haviam tido acesso a seus livros de poesia achavam que, mais do que um
chefe militar extremamente talentoso, ele era um esplêndido poeta. Notei que
o rosto de Mao se iluminou com o que ouvira.
Assisti ao desfile em companhia de Luís Carlos Prestes, com quem estava
rompido desde o incidente ocorrido em 1945, quando o visitei na prisão, e
que já relatei nestas memórias. Também presente ao palanque, Rodolfo
Ghioldi, um líder comunista argentino fortemente vinculado ao Brasil, onde
viveu durante alguns anos, decidiu reaproximar-nos. Ghioldi, escritor
admirável e homem bastante simpático, ficou sinceramente espantado ao
saber que eu não mantinha relações de amizade com Prestes. Então, simulou
que de nada sabia e apresentou-me ao Cavaleiro da Esperança.
Cumprimentamo-nos civilizadamente e ficamos lado a lado, contemplando o
espetáculo. Diante dos nossos olhos desfilavam militares, artistas, estudantes
– e cada bloco oferecia alguma surpresa agradável. Eu estava visivelmente
deslumbrado, mas Prestes a tudo assistia impassível e silencioso.
– Que espetáculo maravilhoso – exclamei a certa altura. – É emocionante
saber que dificilmente voltaremos a ver alguma coisa parecida.
Sempre com a fisionomia impassível, Prestes jogou-me um balde de água
fria:
– Não exagere, Wainer – comentou. – Nossas paradas de Sete de Setembro
não ficam muito atrás.
Os chineses permitiram que minha viagem de volta incluísse uma escala em
Hong Kong. Ao cruzar a fronteira, tive um incontrolável acesso de choro:
assaltava-me a nítida sensação de que jamais voltaria àquele mundo, tratava-
se de um adeus irrecorrível. Meu estado de ânimo melhorou muito na
fervilhante Hong Kong, então um dos grandes centros da espionagem
internacional. Pouco depois de minha chegada, procurou-me o cônsul dos
Estados Unidos, interessadíssimo em notícias sobre a China. Desconversei e
tratei de despachá-lo. No dia seguinte, fui homenageado com um jantar
oferecido pelos correspondentes estrangeiros baseados em Hong Kong,
durante o qual falei com desembaraço sobre o que vira em Pequim. O jantar
teve como cenário o prédio que abrigou o hospital no filme Love is a Many-
Splendored Thing, cujo título em português foi Suplício de Uma Saudade.
Todas as informações que forneci foram prontamente retransmitidas pelos
correspondentes às publicações para as quais trabalhavam e logo divulgadas.
O mundo estava sedento de notícias sobre a revolução maoísta.
Fiz uma última escala no Japão e voltei ao Brasil definitivamente
convencido de que, seja qual for sua experiência profissional, seja qual for o
posto que ocupe na redação, um jornalista não pode deixar de viajar.
É preciso viajar incessantemente ao encontro do que está para acontecer, e
insisto em que é possível viajar pelo nosso bairro, até mesmo pela nossa rua.
Sempre circulei atento à aparição do imprevisto, e passei a minha vida à
espera de que algo acontecesse – alguma coisa, qualquer coisa –,
pressentindo que a notícia de que algo acontecera viria por carta. Tornaram-
se folclóricos os telefonemas que eu dava para a redação, repetindo a mesma
pergunta: chegou alguma carta? Sempre aguardei com ansiedade a chegada
da correspondência, sempre que o telefone tocava eu corria a atender. Ainda
hoje, quando recebo algum envelope, não consigo esperar para abri-lo.
Geralmente, são esses extratos banais enviados pelos bancos, mas não
desisto: algum dia chegará a notícia de que algo aconteceu.
Depois de atravessar sem grandes sobressaltos os anos JK, a Última Hora
incorporou-se à frente política entregue ao projeto de tentar impedir a
chegada de Jânio Quadros à Presidência da República. Movi contra Jânio
uma campanha extremamente agressiva, o tom dos ataques era feroz.
Carregar a candidatura do marechal Henrique Lott, entretanto, configurava
um desafio dificílimo. Lott era um candidato desastrado, acumulava gafes
sobre gafes. Naturalmente, não se pode contestar a competência eleitoral de
Jânio, mas a verdade é que seu triunfo foi enormemente facilitado pela
incompetência do nosso candidato.
Terminada a apuração das eleições de 1960, preparei-me para enfrentar o
poder federal. Jânio se ligara estreitamente a Carlos Lacerda, que acabara de
eleger-se governador do estado da Guanabara, e para mim estava claro que
agora viriam, depois de alguns anos de bonança, períodos de turbulência.
Lacerda não perderia aquela esplêndida chance de acuar-me. Minhas
previsões, felizmente, estavam equivocadas: os agitados sete meses do
governo de Jânio Quadros não me foram tão adversos. Hoje, estou
convencido de que Jânio sempre teve certo fascínio por mim, um sentimento
consolidado nos tempos em que ele fora prefeito de São Paulo. Isso
contribuiu para que convivêssemos sem maiores traumas.
Certo dia, recebi um telefonema de José Aparecido de Oliveira, então
secretário particular de Jânio, e fui informado de que o presidente gostaria de
encontrar-me sigilosamente em Brasília.
Segundo José Aparecido, o presidente desejava conversar comigo sobre
medidas relacionadas com a questão cambial – ele decidira restringir a
importação de certos produtos, entre os quais papel de imprensa, e queria
conhecer meu ponto de vista. No dia seguinte ao nosso encontro, de fato,
Jânio fez seu famoso pronunciamento pela TV durante o qual, para justificar
sua tese de que o país estava desperdiçando montanhas de dólares com
importações, exibiu uma gorda edição dominical do jornal O Estado de São
Paulo. Mas tive a impressão de que, no fundo, Jânio não estava interessado
em discutir especificamente assunto nenhum; queria, apenas, conversar
comigo.
Uma negra limusine Lincoln, com um motorista do palácio, estava à minha
espera no aeroporto, para levar-me diretamente ao Planalto. Ali, um
funcionário da presidência conduziu-me até a biblioteca, onde vi sobre a
mesa uma garrafa de vinho do Porto. Entendi que se tratava de mais um
truque de Jânio: como eu conhecia sua predileção por uísque, queria
convencer-me de que estava agora bebendo coisas mais leves. Minutos
depois, acompanhado por José Aparecido, Jânio entrou na biblioteca,
trajando um de seus slacks. Beijou-me em ambas as faces e, risonho, saudou-
me:
– Que bom que tu vieste, Wainer. Estás fadado a apoiar-me.
Depois de alguns comentários bem-humorados sobre meu apoio a Lott,
Jânio transformou-me em plateia de mais um de seus shows de retórica e
histrionismo.
– Vamos combater essa plutocracia! – repetia Jânio, em meio a goles de
vinho, que, por sinal, não me ofereceu, e acusações aos donos dos jornais
que, a seu ver, esbanjavam dólares em papel importado.
Ele achava que meu apoio ao governo era essencial, tanto pela influência da
Última Hora quanto pelo fato de que eu sempre lhe fizera oposição. Ponderei
que, se aderisse incondicionalmente ao governo, meu jornal perderia peso
político. Parecia-me mais sensato permanecer na oposição e apoiar o governo
sempre que adotasse medidas corretas. Jânio gostou da ideia. De repente,
bateu na testa e, com um olhar enlouquecido, disse que contava com três
forças.
– É a Santa Trindade! – bradou. – Conto com a Santa Trindade para me
apoiar nesta luta pela salvação da Pátria!
Não entendi rigorosamente nada, aquilo cheirava a coisa de doido. Tentei
trazer a conversa para o plano do real.
– E com quantos generais o senhor conta? – perguntei.
– Não conheço sequer o nome do chefe da Casa Militar – exagerou Jânio,
tentando provar-me que seu prestígio popular o dispensava de fazer rapapés a
militares e, sobretudo, a políticos. – Se um prelado com mandato parlamentar
entra aqui como prelado, ajoelho-me e beijo-lhe o anel. Mas se me vem como
político, eu o expulso porta afora.
Foi um show inesquecível. Terminada a encenação, o presidente reafirmou
que o apoio da Última Hora lhe era indispensável e prometeu convidar-me
para novos encontros. Mas eu não tornaria a vê-lo antes de agosto de 1961,
quando o gesto da renúncia pôs fim a seu curto governo.
Vendo a distância esse período da História, entendo que a Última Hora
caminhou alguns meses sobre o fio da navalha, espreitada por inimigos
poderosos. O presidente da República, se não me hostilizava, tampouco teria
motivos para vir em meu socorro se o cerco se fechasse. O governador da
Guanabara era meu principal desafeto, a cúpula do Exército considerava a
Última Hora adversária dos militares. Meus amigos estavam longe do poder,
sem meios de amparar-me caso necessário. Tratava-se, enfim, de um quadro
inquietante. Mas nada de grave aconteceu. E não aconteceu também porque a
Última Hora se transformara numa instituição bastante forte, muito influente.
Não seria tão fácil tentar liquidar-me.
Eu criara a Última Hora carioca, como já revelei nestas memórias, com a
intenção de parar por ali – decididamente, não me atraía a ideia de montar
jornais em outros estados. Para ajudar o governo de Getúlio, concordei em
lançar a UH paulista. Depois, a própria influência política dos meus jornais
acabou tornando inevitável o aumento da família, sempre estimulado por
candidatos interessados na existência de um meio de comunicação que os
auxiliasse nas disputas regionais. Assim, transformei-me no primeiro
brasileiro a montar uma cadeia jornalística nacional efetivamente homogênea.
Ao contrário dos Diários Associados, por exemplo, meus jornais tinham
todos o mesmo título. Além disso, creio ter imposto uma linha editorial
idêntica às várias redações da Última Hora, embora não fosse fácil comandar
simultaneamente jornais que, no começo dos anos 60, estavam implantados
em sete cidades: Rio, São Paulo, Curitiba, Porto Alegre, Niterói, Belo
Horizonte e Recife.
A Última Hora do Recife nasceu para sustentar a candidatura ao Senado,
pelo PTB pernambucano, do empresário José Ermírio de Moraes, dono do
grupo Votorantim. O velho Ermírio deu-me o dinheiro necessário para o
lançamento e depois, como nos faltassem anúncios – a direita pernambucana
fez o possível para esmagar-me –, garantia a sobrevivência do jornal com
novos empréstimos. O lançamento da Última Hora no Recife constituiu,
aliás, um modelo de ostentação provinciana – e, também, de desinformação
sobre minha vida pessoal. Ao chegar a um enorme banquete em minha
homenagem, por exemplo, notei que havia ao lado do meu prato duas letras
garrafais, formadas com arranjos florais: um D e um S. Passei boa parte do
jantar tentando decifrar o que significaria aquilo, até que me informaram: era
o D de Danuza e o S de Samuel. Ela e eu já estávamos separados, mas
ninguém ali sabia disso.
A Última Hora pernambucana pôde prestar boa ajuda à campanha de
Miguel Arraes, candidato ao governo do estado, cuja administração
defenderia até que o Golpe de 1964 decretasse tanto o fim do mandato do
governador quanto o fim do jornal. Em quase todos os estados, a Última
Hora sempre manteve fortes vínculos com certos políticos. No estado do Rio,
por exemplo, meu jornal teve participação decisiva na ascensão de Roberto
Silveira, um extraordinário líder popular que um desastre aéreo mataria
prematuramente. Muito jovem, franzino, ar de funcionário público, Roberto
Silveira era um homem terrivelmente determinado. Ao procurar-me para
pedir apoio, deixou claro que pretendia voar alto.
– Quero ser governador do estado do Rio, depois governador da Guanabara
e, em seguida, presidente da República – avisou.
Ele convidou-me para ser candidato a senador em sua chapa, lançada pelo
PTB. Recusei a candidatura, mas concordei em apoiá-lo. A família Vargas
não gostou da minha atitude, que favorecia uma estrela com luz própria.
Roberto Silveira ganhou a eleição e estava fazendo um grande governo
quando morreu. Não tenho dúvida alguma de que, se vivesse mais alguns
anos, teria chegado à Presidência da República.
Eu permitia que os diretores regionais da empresa se movimentassem com
desembaraço, costurando livremente alianças políticas – naturalmente, tais
acordos não poderiam ferir os princípios da Última Hora –, ou fazendo os
acertos que julgassem convenientes. No plano federal cabia a mim decidir o
que nos convinha. Montei um sistema segundo o qual o coração e o cérebro
dos meus jornais deveriam sempre funcionar no Rio de Janeiro. As redações
regionais tinham repórteres, fotógrafos, colunistas, diretores, mas todo o
material era remetido para o Rio de Janeiro, onde montávamos as diferentes
edições que seriam distribuídas pelo Brasil.
Para isso, criamos um sistema arrojado, extremamente moderno – talvez
moderno demais para o Brasil daqueles tempos. Usávamos aviões
intensivamente, num país com linhas domésticas ainda incipientes e
aeroportos precários. O material para a edição paulista, por exemplo, vinha
em dois aviões; um transportava as fotos, os textos voavam no outro. Era uma
loucura. Quando um aeroporto fechava em horas estratégicas, recorríamos ao
telefone, que também estava longe de funcionar com precisão britânica.
Ainda assim, a Última Hora não só sobreviveu como se transformou
efetivamente numa cadeia nacional de jornais.
Com técnicas de paginação bastante inovadoras, consegui reservar três ou
quatro páginas para o noticiário estritamente regional. Assim, bastava
substituir páginas que continham reivindicações cariocas, ou reportagens que
só interessavam aos leitores do Rio de Janeiro, por assuntos exclusivamente
pernambucanos, ou mineiros, ou gaúchos. Também trocávamos os anúncios,
e fazíamos alguns retoques na primeira página, destacando na edição
destinada a Pernambuco, por exemplo, algum tema relevante para o Nordeste.
Graças a esses truques, os leitores de cada Estado tinham a nítida sensação de
que toda a edição fora feita visando ao seu universo de interesses – afinal, nas
páginas da sua Última Hora apareciam até mesmo colunistas relatando festas
e fofocas da sociedade local. A edição paulista, naturalmente, implicava
problemas adicionais – São Paulo, um estado grande, exigia mais espaços
para assuntos regionais. Montar as outras edições era mais fácil. De qualquer
forma, constituía uma autêntica epopeia cuidar diariamente de sete jornais
diferentes e, sobretudo, distribuí-los pelo país. Usávamos aviões,
caminhonetes, kombis, trens, o que estivesse disponível. Faltavam campos de
pouso, as estradas eram precárias, o sistema de transportes ainda engatinhava.
Mas a Última Hora sempre acabava chegando às mãos de milhares de
leitores.
CAPÍTULO 32

Consumada a renúncia de Jânio, preferi aguardar a evolução dos


acontecimentos em São Paulo, onde me sentia bem mais seguro – no Rio de
Janeiro, os desdobramentos da crise poderiam transformar-me em presa fácil
do governador Carlos Lacerda. Entrincheirado na minha redação paulista,
pus-me a defender com veemência a posse de João Goulart e a condenar as
articulações golpistas. Jango fazia sucessivas escalas em sua interminável
viagem de regresso, ao longo da qual tentava tomar pé da situação. Em plena
crise, recebi um telefonema noturno de Paris. Era Jango.
– Tu achas que devo voltar? – perguntou.
Uma de suas marcas registradas, por sinal, estava em fazer perguntas aos
interlocutores; em vez de debater, ele perguntava.
– Não estou em condições de responder – disse. – Aliás, não sei sequer o
que vai acontecer comigo.
Jango pareceu surpreso.
– Mas como? – retrucou. – Então, tu não achas que devo voltar?
Insisti que me faltavam elementos para deliberar até sobre meu próprio
destino.
– Então, tu és contra a minha volta? – teimou Jango.
– Não é nada disso – protestei. – Acho que devemos interromper esta
conversa por aqui. Só que, antes, gostaria de lembrar que um líder decide por
si, às vezes contra seus próprios impulsos, muitas vezes contra seus aliados.
Você é o líder. Portanto, decida. Se puder voltar, volte. E conte conosco, em
qualquer circunstância, para viver ou para morrer. Mas não vou dizer a você
se deve ou não voltar.
Sem lhe dar chance de dizer algo, disse adeus e desliguei.
Nesses dias de incerteza, vivi um terrível drama pessoal. Temeroso de que
nossos adversários acabassem vencendo o confronto desencadeado pela
renúncia de Jânio Quadros, pedi a Danuza, de quem estava separado desde
junho daquele ano – havia pouco mais de dois meses, portanto –, que fosse
para Portugal com nossos filhos. Praticamente forcei minha ex-mulher a
viajar, e não sabia se agira corretamente. Danuza voltou alguns dias depois de
Jango assumir a presidência e, felizmente, nenhum problema mais grave
afetou-a, nem a meus filhos. Mas eu não tinha ideia de como eles estavam
naqueles idos de agosto-setembro de 1961, o que ampliava minhas
preocupações. No começo de setembro, enfim, com a aprovação do remendo
constitucional configurado pela aprovação do parlamentarismo, Jango
assumiu o cargo que lhe pertencia de direito. Nós havíamos vencido.
Logo depois de instalar-se em Brasília, Jango localizou-me em São Paulo e
pediu que fosse imediatamente a seu encontro. Decidi viajar de carro,
sozinho, e demorei quase vinte horas até estacionar na Granja do Torto, onde
ele já morava como vice-presidente. Encontrei-o cercado de guarda-costas,
perto de uma churrasqueira fumegante, no melhor figurino dos caudilhos
gaúchos, e ficamos trocando ideias durante algumas horas. Sugeri-lhe, entre
outras coisas, que inclusive na assessoria direta da presidência admitisse
algumas figuras respeitáveis fora dos quadros do PTB, evitando cercar-se
apenas de militantes do seu partido. Meu temor era que Jango recrutasse
muitos elementos do seu grupo, repleto de políticos primários e aventureiros.
Algumas de minhas sugestões foram prontamente aceitas. Ele me incumbiu,
por exemplo, de convidar pessoalmente o professor Hermes Lima para
figurar na equipe de auxiliares diretos da Presidência, e cedeu-me um avião
para que eu fosse ao Rio de Janeiro conversar com o grande jurista.
Quanto a outras sugestões, Jango apenas simulou concordância. Assim,
quando ponderei que não seria recomendável efetivar o jornalista Raul Ryff
como secretário de Imprensa, já que as ligações desse profissional com os
comunistas certamente excitariam os setores reacionários, o presidente pediu-
me que expusesse o problema a Ryff. Foi o que fiz. Com expressão
decepcionada, Ryff disse que aceitava meus argumentos, mas ponderou que
gostaria, de qualquer forma, de conversar com Jango. Para meu espanto, saiu
dessa conversa como secretário de Imprensa, cargo que manteve até a queda
do chefe. Apesar desses contratempos, deixei Brasília com a convicção de
que mais uma vez eu havia escapado ao cerco – o presidente da República era
meu velho amigo, as portas do poder seguiam abertas para mim. Por isso, ao
ouvir no rádio do carro a cerimônia de posse de João Goulart, chorei. Nós
triunfáramos, pois a presença de Jango no Palácio do Planalto representava,
de alguma forma, a permanência de Getúlio Vargas.
Havia evidentes e enormes afinidades entre Jango e Getúlio, mas também
estava claro que faltava ao novo presidente o brilho do homem que inspirara
sua carreira política. João Goulart era um típico moço da fronteira, que
adorava cabarés e bailarinas, divertia-se com boêmios e prostitutas, passava
noites inteiras conversando em mesas de bar. Não tinha prazer algum em
conviver com grã-finos, detestava enfiar-se numa casaca para comparecer a
alguma solenidade. Gostava do povo – mostrava-se perfeitamente à vontade
quando se reunia, por exemplo, com estivadores; então, podia desabotoar o
colarinho, afrouxar o nó da gravata e conversar sem cautelas protocolares.
Assim, se reunia todas as condições para consolidar-se como líder populista,
Jango exibia uma evidente inapetência para certas exigências do poder.
Getúlio Vargas sempre demonstrou enorme prazer com o fato de ser o
número um da República. Jango, não.
Na manhã de 6 janeiro de 1964, testemunhei um episódio que ilustra à
perfeição o temperamento de João Belchior Marques Goulart. Procurei-o em
seu apartamento no Edifício Chopin, bem ao lado do Copacabana Palace, no
Rio de Janeiro. Encontrei-o, como sempre, rodeado de capangas e velhos
amigos, todos bebendo uísque, com os pés confortavelmente apoiados sobre
as mesas. Abracei-o e revelei a razão da visita.
– Quero cumprimentá-lo pela data de hoje – disse.
– Que dia é hoje? – perguntou, intrigado.
Ao saber que estávamos no dia 6 de janeiro, sorriu:
–Ah, é o aniversário do João Vicente.
Confessei que não sabia do aniversário do seu filho. Ele refletiu por alguns
segundos e murmurou:
– Hoje é Dia de Reis...
Recordei-lhe minha condição de judeu, pouco familiarizado com o
calendário católico. Ele me contemplou com olhos curiosos: então, que
motivos havia para que eu fosse cumprimentá-lo? Fiquei perplexo:
– Jango, 6 de janeiro é uma data muito importante na História do Brasil e,
principalmente, na tua vida – observei.
Tratava-se do primeiro aniversário do plebiscito que restabelecera o sistema
presidencialista, extinguindo o parlamentarismo e devolvendo a Jango
poderes e atribuições que lhe haviam sido confiscados.
– Não é possível que você tenha esquecido essa esplêndida vitória em
apenas um ano – espantei-me.
– Pois é, esqueci – confessou-me, candidamente.
Por tudo isso, não cheguei a sentir qualquer compaixão por Goulart quando
a queda se consumou em 1964. Tinha por ele enorme carinho, nós nos
tratávamos como irmãos, nossas brigas nunca duravam muito. Mas eu sabia
que a perspectiva de ser deposto nunca afligira Goulart da mesma forma que
inquietara, por exemplo, Getúlio Vargas. Não seria preciso, portanto, chorar
por ele.
A presença de Jango no Palácio do Planalto assegurou-me a retaguarda
necessária para sustentar a luta contra Carlos Lacerda, e o caso logo me
ofereceria uma esplêndida oportunidade de fustigar meu velho adversário.
Destacado para investigar a morte de um grupo de mendigos, atirados às
águas do rio da Guarda, Amado Ribeiro, repórter policial da Última Hora,
voltou com informações preciosas: os suspeitos do crime eram policiais, e
uma das mulheres condenadas à morte por afogamento sobrevivera.
Determinei a Amado Ribeiro que esclarecesse o caso a qualquer custo. Ele
tentou desesperadamente obter declarações da mendiga, que estava apavorada
e murmurava frases desconexas. Poucos dias depois, trabalhando em tempo
integral e ligando os fios do caso, meu repórter havia constatado que o chefe
de polícia de Lacerda, Gustavo Borges, determinara a matança de dezenas de
miseráveis depois de receber do governador a tarefa de limpar o Rio de
Janeiro de mendigos.
Naquela época, os policiais de um determinado Estado costumavam
prender mendigos e levá-los até a divisa com outra unidade da Federação,
abandonando-os ali com a recomendação de que não voltassem. O problema
é que eles voltavam. Então, com o beneplácito de Lacerda, Borges articulou
sua solução final, que consistia em prender mendigos, levá-los às margens do
rio da Guarda, dar-lhes uma pancada na cabeça e jogá-los às águas. A
mendiga localizada por Amado Ribeiro não fora golpeada com suficiente
violência, e sobrevivera para contar a história.
A ofensiva desencadeada pela Última Hora foi terrível, e o caso alcançou
tamanha repercussão que a Organização das Nações Unidas cogitou enviar ao
Rio de Janeiro uma comissão encarregada de examinar tão grave ofensa aos
direitos humanos. Um artigo escrito por Paulo Francis, com o título de “O
Mata-mendigos”, custou a Lacerda um apelido do qual nunca mais se livraria.
Antes, ele fora transformado no Corvo. Agora, surgia o “Mata-mendigos”.
Não era pouca coisa. Pela primeira vez, Lacerda parecia realmente acuado,
sem meios de sair da defensiva. Mas ele escaparia ao cerco, novamente
recorrendo a seu inegável talento para confundir o povo com sofismas
veiculados pela televisão. Nesse episódio, Lacerda teve cinismo suficiente
para aparecer na TV e, depois de exibir fotos de supostos integrantes do
esquadrão da morte – que prometeu punir com severidade, naturalmente –,
afirmar que dois ou três policiais haviam sido nomeados com a aprovação de
Juscelino Kubitschek. Logo, Juscelino era o culpado. A argumentação era
absurda, mas houve quem a aceitasse. Depois, Lacerda atribuiria as denúncias
à minha imaginação, e também houve quem nele acreditasse. Graças a tais
sofismas, Lacerda acabou escapando a uma merecida punição, mas os danos
à sua carreira causados pelo episódio foram irreparáveis. Ao provar o
envolvimento do governador da Guanabara com o esquadrão da morte
montado por Cecil Borer, a Última Hora decididamente contribuiu para
assassinar seu sonho de chegar ao poder supremo.
Entre 6 de janeiro de 1962, quando Jango assumiu afetivamente o poder, e
31 de março de 1964, a Última Hora não só esbanjou força política como,
também, desfrutou de ótima situação econômica. É que nesse período, mais
do que nunca, tive pleno acesso aos empreiteiros do país inteiro e às verbas
imensas que eles controlavam. Como já disse nestas memórias, não é possível
escrever a história da imprensa brasileira sem dedicar um vasto capítulo aos
empreiteiros. Não se trata, insisto, de uma exclusividade nacional – desde os
tempos do Império Romano os responsáveis pela execução de obras públicas
mantêm relações especiais com os donos do poder. No governo Goulart,
aproximei-me desses homens mais que em qualquer outra época. Isso me
permitiu conhecê-los melhor e, também, assegurar à minha empresa dois
anos de prosperidade.
Alguns meses depois de assumir o cargo, Jango convocou-me para dizer
que não tinha confiança no homem que encarregara de fazer a ligação entre o
PTB, principal partido governista, o Ministério da Viação, responsável pelas
obras públicas, e os empreiteiros que financiavam o partido. Chamava-se
Caio Dias Batista o encarregado de fazer o esquema funcionar. O esquema só
devia envolver gente absolutamente confiável, porque nenhuma quantia era
contabilizada, nada era oficial. Como Jango deixara de confiar em Caio Dias
Batista, resolvera substituí-lo.
Nessa conversa, o presidente se declarou preocupado com o caixa do
partido. Creio que ele já pensava também no caixa do governo e no dinheiro
que financiaria um possível contragolpe destinado a antecipar-se a alguma
tentativa de golpe de Estado. Jango me convidou para a missão. Aceitei. O
esquema era simples. Quando se anunciava alguma obra pública, o que valia
não era a concorrência. Todas as concorrências vinham com cartas marcadas,
funcionavam como mera fachada. Valiam, isto sim, os entendimentos prévios
entre o governo e os empreiteiros, dos quais saía o nome da empresa que
deveria ser contemplada na concorrência. Feito o acerto, os próprios
empreiteiros forjavam a proposta que deveria ser apresentada pelo escolhido.
Era sempre uma boa proposta. Os demais apresentavam propostas cujas cifras
estavam muito acima do desejável, e tudo chegava a bom termo.
Naturalmente, as empresas beneficiadas retribuíam a boa vontade do governo
com generosas doações, sempre clandestinas.
Nunca participei desses entendimentos preliminares. Minha tarefa consistia
em, tão logo se encerrasse a concorrência, recolher junto ao empreiteiro
premiado a contribuição de praxe. Não se aceitavam cheques, o pagamento
vinha em dinheiro vivo. Uma vez por mês, ou a cada dois meses, eu recolhia
as doações dos empreiteiros em visitas ao advogado que os representava.
Eu poderia ter ficado multimilionário entre 1962 e 1964. Recolhia montes
de cédulas que acomodava em malas. Os poagamentos sempre vinham em
dinheiro vivo. E eram malas no sentido estrito, algumas do tamanho de um
baú. Intocadas, aquelas fortunas seguiam para o sítio de João Goulart. Se eu
não tivesse escrúpulo nenhum, bastaria ter subtraído parte de cada coleta.
Nunca agi assim. Hoje, sinceramente, me arrependo de tais pudores. Em
determinados negócios, é verdade, recebi quantias consideráveis, que
correspondiam à minha participação nas etapas anteriores ao acerto final.
Mas sempre apliquei essas verbas na Última Hora, jamais as utilizei em
proveito próprio. Eu poderia ter ficado multimilionário, repito. Não fiquei.
Nesse período, os empreiteiros procuraram, com sucesso, consolidar e
ampliar seus vínculos com o governo. Passaram, por exemplo, a patrocinar
comícios – o famoso Comício das Reformas realizado em 13 de março de 64,
por exemplo, teve suas despesas pagas por um grupo de empreiteiros. Os
gastos com o evento atingiram proporções extraordinárias. Às vésperas da
votação de alguma lei cuja rejeição ou aprovação interessava aos
empreiteiros, pequenas fortunas influenciavam o comportamento de
deputados e senadores ligados ao governo. Como o ministro da Viação, Hélio
de Almeida, homem irretocavelmente honesto, jamais admitiu participar de
falcatruas, o mapa da mina deslocou-se para os escalões intermediários, e
então cresceram a importância e o peso de instrumentos como a Última Hora,
um jornal cujo franco acesso ao poder poderia favorecer a promoção, ou
precipitar a demissão, de certos burocratas. Era compreensível que os
empreiteiros me tratassem com muita consideração.
O que me salvou, e me permite agora escrever estas memórias sem
constrangimentos, foi ter sempre compreendido que, se eu enriquecesse,
acabaria transformado no judeu que se corrompeu para ganhar dinheiro –
nessa hipótese, eu não teria salvação. Sempre soube disso. Às vésperas do
golpe de 1964, o advogado de um grupo de empreiteiros procurou-me para
informar que seus patrões não poderiam honrar um contrato de publicidade
celebrado com a Última Hora. Como o governo, que devia um bom dinheiro
às empresas representadas pelo advogado, alegava não possuir recursos para
cumprir os compromissos assumidos em contrato, as empresas se diziam sem
meios de pagar-me. Haveria, contudo, uma compensação. Esse advogado
levou-me a um prédio na avenida Atlântica, que acabara de ser inaugurado, e
subiu comigo até o sexto andar. Ali, entregou-me uma chave e informou que
eu me tornara proprietário de um luxuoso apartamento de frente para o mar.
Estava claro que o preço a pagar por tanta generosidade seria apressar a
liberação da verba retida no Ministério da Viação. Devolvi-lhe a chave: eu
nada queria para mim.
O governo Goulart nos trouxe vantagens políticas e econômicas, mas esteve
longe de configurar um mar de rosas para os aliados do presidente – o Brasil
vivia um período de radicalização, e os adversários de Jango mantinham a
Última Hora sob permanente vigilância, atentos a eventuais cochilos que
pudessem explorar. Um desses cochilos ocorreu ainda em 1962, quando
Jango ainda esquentava a cadeira tão penosamente conquistada. Pelo
telefone, Jorge Miranda Jordão, um dos meus auxiliares diretos na redação
carioca, informou-me que uma caminhonete da empresa fora incendiada no
vale do Paraíba. Quis saber por quê, e Miranda Jordão explicou que uma
charge publicada naquele dia pela Última Hora paulista havia sido
considerada uma agressão a Nossa Senhora Aparecida. Empalideci, prevendo
a tormenta que se aproximava. Minhas relações com a Igreja eram frias,
distantes. Estava claro que haveria uma reação violenta.
Mandei buscar um exemplar daquela edição, que ainda não vira, e examinei
a charge, feita pelo Octávio. Era de extremo mau gosto. Naquela época, às
vésperas dos grandes clássicos, os times de futebol de São Paulo costumavam
ir a Aparecida do Norte pedir a proteção da santa. Pois bem. Um ou dois dias
antes de um jogo entre o Corinthians e o Palmeiras, Octávio fez essa charge,
que mostrava uma Nossa Senhora com as feições do Pelé, um beiço enorme e
braços musculosos, abençoando ambas as equipes ao mesmo tempo e com
pontos de interrogação sobre a cabeça. Um desastre, rapidamente capitalizado
por dois padres que dirigiam a emissora de rádio de Aparecida do Norte,
controlada pela Igreja, e que eram frequentemente alvejados pelo Arapuã, um
dos humoristas da Última Hora. Tão logo viram a charge, esses dois padres
anunciaram pelo rádio que meu jornal cometera um sacrilégio contra a santa e
pediram que a população católica tomasse providências. Uma das principais
providências tomadas por militantes católicos mais exaltados foi incendiar a
caminhonete da Última Hora no vale do Paraíba.
Desloquei-me imediatamente para São Paulo, acompanhado de um padre,
Antônio Dutra, que trabalhava na Última Hora do Rio, numa tentativa
desesperada de conter a onda que ia se avolumando. Escrevi um editorial
patético, reconhecendo o erro e oferecendo a outra face a Cristo. Inútil. Meus
inimigos já estavam em campo, procurando acuar-me. Em São Paulo,
Ademar de Barros assumiu o comando da ofensiva, convocando atos de
protesto contra mim. No Rio de Janeiro, Carlos Lacerda e Amaral Neto
improvisavam comícios em plena missa. Parlamentares udenistas faziam
furiosos discursos no Congresso. As viaturas da Última Hora já não podiam
circular com segurança, sobretudo na via Dutra, que corta o vale do Paraíba.
Para complicar definitivamente a situação, Ademar resolveu organizar uma
passeata cujo itinerário previa a passagem dos manifestantes pela rua onde
funcionava a redação paulista. Se isso ocorresse, o empastelamento seria
inevitável.
Decidi pedir uma audiência a dom Carlos Carmelo de Vasconcellos Motta,
cardeal-arcebispo de Aparecida. Dom Carlos Carmelo era uma magnífica
figura, um homem com ideias generosas, avançadas, e eu o admirava muito.
Mas havia entre nós dois uma barreira representada pelo padre Baleeira, uma
espécie de secretário do cardeal. Baleeira, secretário da Educação do Estado
de São Paulo no governo Ademar de Barros, era uma personagem de péssimo
caráter, envolvido em numerosos casos de corrupção. Como a Última Hora o
atacava constantemente, ele viu no episódio provocado pela charge do
Octávio uma boa chance de ir à forra, e passou a bloquear meu acesso ao
cardeal. Por isso, pedi ao próprio presidente da República que interferisse no
caso, solicitando a dom Carlos Carmelo que me recebesse. Naturalmente, o
cardeal não pôde recusar o pedido.
Marcado o encontro, levei Octávio a tiracolo, tendo o cuidado de proibi-lo
de fumar diante do cardeal. Era preciso muita cautela. Por isso, apesar da
minha condição de judeu, beijei humildemente o anel de dom Carlos
Carmelo. Em seguida, expus francamente minhas preocupações, pedindo sua
interferência no sentido de impedir a realização da passeata, ou, ao menos,
modificar seu trajeto, evitando que a multidão passasse defronte ao prédio da
Última Hora. O cardeal mostrou-se muito receptivo, admitindo que alguns
grupos estavam procurando explorar politicamente um incidente que não
tinha tanta importância. Mas ponderou que não tinha meios de cancelar a
manifestação, apresentada como uma procissão em desagravo a Nossa
Senhora Aparecida. Ele poderia, contudo, fazer com que eu fosse recebido
pelo presidente da entidade que estava promovendo a manifestação, uma
associação de famílias católicas. O verdadeiro organizador do ato era Ademar
de Barros, mas ele achara conveniente utilizar como biombo essa entidade.
No dia seguinte, fui à casa desse homem a quem o cardeal me recomendara.
Ao chegar, fui recebido pelas crianças da família como uma espécie de
versão judaica de Satanás – elas se escondiam por trás das cortinas e me
olhavam de soslaio, com expressão de terror. Meu anfitrião, um médico
bastante simpático, comportou-se educadamente.
– Olha, Wainer, eu já não posso impedir a manifestação – disse-me ele
quando externei minha inquietação.
– Se o senhor puder modificar o itinerário, evitará um massacre – observei.
– Isso eu posso fazer – concordou.
Senti uma profunda sensação de alívio, quase fiquei de joelhos diante do
homem. Ficou combinado que a procissão passaria pelo Viaduto do Chá –
longe, portanto, do prédio do jornal – e se encerraria com um comício na
Praça da Sé. Despedi-me desse médico convencido de que salvara a Última
Hora do empastelamento.
Acompanhei a manifestação pelo rádio, fechado em minha casa e tremendo
da cabeça aos pés. Foi apavorante. A multidão de quase trezentas mil pessoas
uivava, ecoando palavras de ordem formuladas por oradores que diziam
coisas terríveis contra mim e contra a Última Hora. O jornal, de qualquer
forma, escapou à depredação. Não escapou, e quanto a isso nada pude fazer,
ao desgaste provocado por aquele incidente com a Igreja. Sobretudo a Última
Hora de São Paulo sairia muito ferida do episódio, que indispôs o jornal com
boa parte da comunidade católica brasileira.
Nossas relações com a Igreja, repito, foram sempre muito difíceis – é
preciso lembrar que, naqueles tempos, a ala reacionária do clero era
extremamente influente, fortíssima. Isso explica o malogro de algumas
tentativas de aproximação com a Igreja que empreendi enquanto comandei a
Última Hora. Numa delas, promovi no Rio de Janeiro um concurso destinado
a premiar o mais belo presépio feito por leitores do jornal. Terminado o
concurso, que reuniu mais de oitenta mil participantes, escolhemos um
presépio e o levamos a dom Jaime Câmara, cardeal-arcebispo do Rio de
Janeiro. O cardeal abençoou o presépio e posou para nossos fotógrafos
sorrindo muito, bastante feliz. Estampamos as fotos na primeira página, com
enorme destaque, certos de que começava a ocorrer um degelo em nossas
relações com a Igreja. No dia seguinte, Carlos Lacerda publicou na Tribuna
da Imprensa um longo editorial acusando dom Jaime de ter sido ilaqueado
em sua boa fé por comunistas inescrupulosos, e passou a assediar o cardeal
com solicitações para que revisse seu gesto. Então, deu-se algo inacreditável:
dom Jaime Câmara divulgou uma nota oficial afirmando que fora de fato
iludido e, por isso, resolvera revogar a bênção que concedera. Incrível, mas
verdadeiro – o presépio acabou desabençoado, se é que existe esse termo.
Vinguei-me publicando durante um mês inteiro a foto do cardeal sorrindo ao
lado do presépio no momento em que terminara de abençoá-lo.
Também para reduzir a distância que nos separava da Igreja, convidei para
dirigir a Última Hora paulista um jovem poeta e jornalista chamado Jorge
Cunha Lima, muito ligado ao governador Carvalho Pinto, em cujo gabinete
havia trabalhado. Vinculado à Juventude Universitária Católica, Cunha Lima
poderia contribuir para quebrar certas resistências que me incomodavam. Isso
infelizmente não ocorreu. Mas ele ao menos me ajudou a penetrar em alguns
círculos conservadores, entre os quais o do próprio Carvalho Pinto, que
costumavam hostilizar a Última Hora. Cunha Lima estava no comando da
redação no dia 31 de março de 1964, quando a Última Hora paulista sofreu
um golpe de morte que ele talvez pudesse ter evitado. Mas esta é outra
história, de que falaremos mais adiante.
Nenhuma outra cidade brasileira refletiu tanto quanto São Paulo a
radicalização registrada no governo João Goulart. Dependendo das
circunstâncias e do ambiente no qual me encontrava, eu podia ser tratado
como herói ou como vilão. No dia 11 de agosto de 1963, por exemplo, estava
jantando com um amigo num restaurante da rua Barão de Itapetininga quando
notei a entrada de um grande grupo de estudantes. Essa data, que assinala a
criação dos primeiros cursos jurídicos no país, foi transformada pelos
acadêmicos de Direito no “Dia do Pendura” – eles vão aos restaurantes,
comem muito, bebem bastante e saem sem pagar. Naquele 11 de agosto,
percebi que os jovens que acabavam de entrar eram estudantes da Faculdade
de Direito do Largo de São Francisco, e temi que me hostilizassem, já que a
corrente lacerdista nas Arcadas era bastante forte.
Ao me levantar para sair, um dos estudantes reconheceu-me. Apressei o
passo e notei que os jovens começaram a levantar-se para seguir-me. Fiquei
inquieto. Quando cheguei à porta, ouvi um tropel às minhas costas e virei-me
nervoso. Eles me cercaram, e um dos estudantes perguntou se eu era Samuel
Wainer. Confirmei, e os jovens paulistas explodiram num grito de guerra em
minha homenagem.
– É preciso acabar com o fascista do Lacerda! – berrou um deles.
Eufóricos, levaram-me ao bar do Hotel Jaraguá, onde prosseguiram com
louvações à minha pessoa e cantos de guerra contra Carlos Lacerda, a quem
só se referiam como Corvo. Nesse episódio eu fui o herói.
Houve outros em que fui o vilão. No início de 1964, por exemplo, saí para
jantar no restaurante Baiuca, na Praça Roosevelt, com um grupo de amigos.
Mal acabara de sentar-me quando um homem carrancudo acercou-se da mesa
e, dirigindo-se a um dos meus amigos, advertiu:
– Vou dizer a seu pai que você anda jantando com comunistas que querem
incendiar nosso país.
O ambiente tornou-se terrivelmente tenso, sugeri que fôssemos a outro
lugar. Fomos a uma boate chamada Ton-Ton Macoute. Minutos depois da
nossa chegada, ouvi um grito vindo de uma mesa próxima:
– Vai dançar na Rússia!
Um de meus amigos propôs que nos retirássemos. Concordei e nos
levantamos. Seguimos para outra boate na mesma rua, mas não conseguimos
livrar-nos das provocações. Escoltado por seus parceiros de mesa, o homem
que me provocara na Ton-Ton Macoute entrou nessa boate e começou a fazer
um violento discurso contra mim.
Ele afirmava que São Paulo não poderia tolerar que comunistas
continuassem circulando em suas ruas, era preciso expulsá-los. O clima ficou
pesadíssimo. Um rapaz magro, muito simpático, aproximou-se de mim e,
depois de identificar-se como piloto de Ademar de Barros, recomendou-me
amavelmente que deixasse o local. Ele lembrou que a tática dos grupos
anticomunistas consistia precisamente em fazer provocações e precipitar
conflitos de rua que exigissem a mobilização da polícia. Ocorre que a polícia,
controlada por Ademar de Barros, agia como aliada dessas patrulhas
direitistas. “Saia antes que a polícia chegue”, sugeriu. Meus amigos, porém,
recusaram a proposta. Os provocadores, então, mandaram flores às mulheres
presentes à minha mesa e intensificaram as agressões verbais. O corpo a
corpo tornou-se inevitável. Assustei-me – a coragem física, afinal, nunca foi
um de meus atributos. Meus amigos obrigaram-me a ficar na boate e saíram à
rua, onde a briga explodiu. Socos e pontapés multiplicaram-se até a chegada
da polícia, quando os contendores se dispersaram.
Essas cenas de barbárie permaneceriam para sempre em minha memória.
Algum tempo depois, ao voltar do exílio, demorei dois anos até viajar a São
Paulo. Eu tinha a impressão de que tudo aquilo poderia repetir-se.
CAPÍTULO 33

O Brasil era um país terrivelmente polarizado, mas tanto gente de direita


quanto de esquerda continuava a apresentar-se como ocupantes do centro,
uma peculiaridade tropical que costuma confundir mesmo argutos analistas
estrangeiros. Durante o governo Goulart, por exemplo, esteve em nosso país
o futuro secretário de Estado americano Henry Kissinger. Ele se encontrou
comigo e com Lacerda, e ambos dissemos a ele que éramos centristas.
Kissinger ficou intrigado – afinal, nada em comum parecia haver entre nós
dois. Expliquei-lhe que Carlos e eu estávamos no centro, só que um de costas
para o outro. Kissinger riu muito. Dias depois, mandou-me um bilhete bem-
humorado no qual elogiava minhas “preocupações centristas”.
Naquele Brasil tão dramaticamente radicalizado, meus adversários não
eram os únicos a criar-me problemas. Eu sofria cobranças duras, e
frequentemente injustas, de integrantes da minha própria equipe. Em meio ao
confronto entre a Última Hora e a Igreja, por exemplo, o chefe da redação
paulista, um jornalista português chamado Armindo Blanco, homem de
caráter muito duvidoso, tentou sublevar seus subordinados, alegando que eu
não poderia fazer concessões tão importantes à comunidade católica.
Armindo fora comensal do salazarismo, mas se julgava em condições de
censurar-me. Suas articulações deram em nada. Também tive atritos com
Paulo Francis, que já naquela época se destacava como um dos grandes
polemistas brasileiros. Eu gostava muito de Paulo Francis, que escreveu
artigos inesquecíveis contra Carlos Lacerda e era uma das estrelas da Última
Hora. Mas nossa convivência tornou-se difícil a partir do momento em que
Francis resolveu encampar as ideias de Leonel Brizola.
Brizola resolvera disputar a Presidência da República à revelia de Jango e
dos setores mais lúcidos da esquerda. Por sinal, testemunhei a conversa entre
Jango e Brizola durante a qual este último, então deputado pela Guanabara,
reivindicou sua indicação para o Ministério da Fazenda. Goulart, espantado,
observou que, se o nomeasse para o cargo, açularia os golpistas.
– É preciso forçar a direita a botar a cabeça para fora, porque aí a
esmagaremos – retrucou Brizola.
– E se houver o contrário? – apartei. Brizola não me respondeu.
Nessa época, numa recepção oferecida pelo Itamaraty, o embaixador da
Polônia, um homem muito competente e bem informado, abordou-me para
perguntar se tinha fundamento a versão de que Brizola queria o Ministério da
Fazenda.
– É verdade, mas sou contra – informei.
– Eu também – comentou o embaixador, cometendo uma inconfidência que
agredia todas as regras da diplomacia. É que, mesmo para um país comunista
como a Polônia, a presença de um esquerdista da linhagem de Brizola no
Ministério da Fazenda significava uma provocação que convinha evitar.
Foi precisamente nessa época que Paulo Francis resolveu aderir à pregação
de Leonel Brizola, então empenhado na criação dos “Grupos dos Onze”, cujo
destino seria assumir a vanguarda das forças populares quando chegasse o
momento do confronto entre a esquerda e a direita. Duvidei da sinceridade da
opção de Francis – que afinidade poderia haver entre aquele refinado
intelectual e o populismo brizolista? De repente, vi na Última Hora um artigo
no qual Francis não só defendia Brizola e sua estratégia, como, também, se
confessava integrante de um Grupo dos Onze. Chamei-o para uma conversa e
expliquei que achava absurdo um colunista tão identificado com a Última
Hora defender posições daquele gênero. No dia seguinte, ele escreveu outro
artigo em favor de Brizola e dos Grupos dos Onze. Tive de demiti-lo. Mas
precisei readmiti-lo horas mais tarde, graças a pedidos que me foram
formulados por muitos amigos, entre os quais grã-finos que viam em Paulo
Francis seu guru. No grupo que intercedeu por Francis figuravam, por
exemplo, o banqueiro José Luiz de Magalhães Lins e sua mulher, Nininha
Nabuco – embora inequivocamente direitistas, gostavam de confraternizar
com certos setores da esquerda, e eram amigos de Francis. Como não podia
deixar de atender um pedido de Magalhães Lins, chamei Francis e
comuniquei-lhe: “Paulo, você vai voltar, porque faço tudo que meu banqueiro
mandar.” Assim se revogou a demissão de Paulo Francis, que mais tarde
reconheceu ter ido longe demais naquele episódio. Ele não era,
evidentemente, um brizolista. Apenas se deixara seduzir pela polarização que
assolava o país.
Não era fácil lidar com os colunistas da Última Hora, até porque o sucesso
do jornal rapidamente os transformava em celebridades nacionais. Costumava
dizer-lhes que não teriam liberdade para escrever; liberdade era algo que só o
dono do jornal poderia ter. O que eu lhes assegurava era independência.
Explicava-lhes que jamais seriam obrigados a escrever alguma coisa que
contrariasse seus pontos de vista, mesmo em artigos ou reportagens não
assinados. Em jornalismo, independência é isso. Mas eu não poderia permitir-
lhes que escrevessem algo que afetasse os interesses da empresa; essa espécie
de liberdade eles não teriam. Quase todos os colunistas aprovavam e
assimilavam tais critérios. Sérgio Porto, por exemplo, valeu-se da
independência que eu lhe garantia para imortalizar-se como o nosso
Stanislaw Ponte Preta. Mesmo Paulo Francis costumava observar esses
limites. Quando os ultrapassava, ferindo os interesses da empresa,
brigávamos. Mas a reconciliação nunca demorava muito.
Assinar uma coluna na Última Hora era possuir um espaço nobre na
imprensa, o que me permitia eventualmente recrutar celebridades como
colunistas sem pagar salários. Com Chacrinha, por exemplo, foi assim.
Convidei-o a participar da equipe de colunistas do jornal, ele gostou da ideia.
Discutimos como seria o conteúdo da coluna, seu formato, o título. Quando
chegou o momento de discutir o preço, fui direto ao ponto:
– O jornal é pobre e não pode pagar você.
– Como? – intrigou-se Chacrinha. – Eu preciso receber alguma coisa.
Eu sabia que o programa do Chacrinha estava tendo problemas com o
Ibope, e que a coluna lhe seria muito útil, mas preferi dar-lhe tratamento de
estrela. Expliquei que, se fosse pagar-lhe o que valia, teria de chegar a dez
mil dólares por mês. O problema é que eu não tinha esse dinheiro. Além do
mais, argumentei, se a coluna seria evidentemente vantajosa para a Última
Hora, ele também sairia ganhando, já que teria um espaço para comunicar-se
com seu público e fazer a propaganda dos programas que apresentava.
– Bem, aceito – rendeu-se Chacrinha. – Aceito porque você acreditou em
mim.
Quando ele saiu da sala, Paulo Alberto Monteiro de Barros, o “Artur da
Távola”, que trabalhava comigo, confessou-me seu espanto: como é que eu
ousava tratar um mito daquela forma? Nada havia de espantoso: Chacrinha
sabia tanto quanto eu que valia a pena assinar uma coluna na Última Hora,
mesmo de graça.
Em certos casos, uma coluna na Última Hora significava um trampolim
seguro para a notoriedade. Foi o que ocorreu com Adalgisa Nery, que eu
conhecera ainda casada com Lourival Fontes, e cuja beleza marcou minha
geração. Em meados da década de 50, um amigo de Adalgisa telefonou-me
para informar que ela se encontrava internada num hospital, com a saúde
muito debilitada, e precisava de ajuda. Adalgisa já deixara de ser a linda
mulher de outros tempos. Imediatamente encomendei-lhe um artigo, fixando
uma remuneração bastante satisfatória. O texto chegou dois dias depois e me
agradou pela contundência. Adalgisa era uma mulher dura, quase perversa, e
tinha um estilo extremamente forte. Apesar dos erros de ortografia, escrevia
bem.
Publiquei o artigo no segundo caderno. Logo recebi outro texto e, em
seguida, um telefonema de Adalgisa.
– Eu não fico em caderno de mulher – disse-me ela. – Quero o caderno dos
homens, quero o primeiro caderno.
Achei justo.
– Você vai para a terceira página – decidi. Expliquei-lhe meus conceitos de
liberdade e independência e liberei-a para escrever sobre o que quisesse. No
mesmo dia, criei o título da nova seção: “Retrato sem Retoque”.
A seção transformou-se rapidamente numa das coqueluches da Última
Hora. Adalgisa agredia meio mundo com uma violência incrível, tratava
militares a pontapés, demolia políticos, sempre se valendo do jargão
nacionalista e getulista. Graças à força da coluna, ela se elegeria duas vezes
deputada estadual. Muitos a adoravam, outros tantos a odiavam. Adalgisa
causou-me numerosos problemas, mas era bastante útil à Última Hora; assim,
convinha-me mantê-la entre os colunistas do jornal. Recordo que no começo
do governo Jânio Quadros fui chamado a Brasília pelo general Odílio Denys,
à época ministro da Guerra. Estávamos conversando sobre assuntos politicos
quando Denys mandou chamar o general Orlando Geisel, um de seus
auxiliares diretos.
– Orlando, traga o dossiê daquela marafona – ordenou.
Geisel voltou minutos depois com uma pasta contendo artigos de Adalgisa,
todos recheados de anotações à margem. Os textos tratavam os militares com
extrema agressividade.
– Wainer, você é nosso amigo, sempre teve ligações com o Exército... –
começou Denys.
Confirmei.
– Pois então, continue conosco e você não correrá risco algum – sugeriu.
Ponderei que não tinha a menor intenção de indispor-me com o Exército.
– Então, você precisa mandar essa mulher embora do jornal.
Expliquei-lhe que não podia fazer isso: a coluna de Adalgisa,
popularíssima, era importante para a Última Hora.
– Pense bem, Wainer – aconselhou o general. Seria um gesto fundamental.
Não aceitei a sugestão do ministro da Guerra, embora àquela altura minha
relação com Adalgisa fosse terrivelmente desgastante. Ela reclamava por
qualquer motivo, irritava-se quando cortávamos alguma frase de seus artigos,
vivíamos discutindo por telefone. Ainda assim, preferi preservá-la.
Alguns anos mais tarde, quando vivia em Paris, recebi uma carta de
Adalgisa, que tivera seu mandato cassado. Na carta, ela reconhecia que fora
muito longe em sua agressividade, radicalizara exageradamente suas
posições. Não respondi à carta, e agi bem ao silenciar, pois não demorei a
saber que Adalgisa continuava a mesma. Ao receber a visita de uma amiga
comum e ouvir que eu atravessava dificuldades econômicas em meu exílio na
França, ela retrucou que não acreditava nisso.
– Não é verdade – disse Adalgisa. – Samuel é agente da CIA, e deve estar
muito bem em Paris.
Ela seria assim até morrer, só e abandonada pelos antigos amigos, num
asilo de velhos.
Definitivamente, não foi fácil manter a cabeça fria na era Goulart, e poucos
conseguiram resistir aos ventos da radicalização. Mesmo homens como
Darcy Ribeiro – uma figura extremamente agradável, sensível, inteligente –
acabavam sucumbindo ao clima da época. A certa altura, Darcy passou a
conversar comigo como se fosse o chefete de alguma facção do PTB no
interior de Minas Gerais. Militares como o general Osvino Ferreira Alves
procuravam-me para sugerir que a Última Hora cobrasse do governo a
execução de reformas profundas, drásticas. Fui ficando progressivamente
isolado, por não concordar com a histeria esquerdista. Percebi, num dado
momento, que os círculos mais ligados ao governo tramavam o golpe. Como
me opunha frontalmente à ideia do golpe – ao contrário do que afirmam
historiadores como Thomas Skidmore, que sempre se basearam em fontes
lacerdistas –, meu isolamento se acentuou.
Passei a pregar no deserto. Eu aprovava, por exemplo, a desapropriação de
faixas de terras às margens de rodovias e ferrovias, já que os proprietários
dessas glebas haviam sido diretamente beneficiados por tais obras e poderiam
pagar um preço por isso. Mas discordava da reforma agrária radical proposta
por Miguel Arraes e Leonel Brizola, até por saber que, na América Latina,
um governo que adota essa medida dificilmente sobrevive à reação dos
fazendeiros. Também combati a encampação das refinarias particulares –
desde os tempos de Getúlio Vargas, eu defendia a presença da iniciativa
privada, pequena que fosse, na indústria do petróleo. Numa conversa com
Jango, recordei-lhe que a expropriação da Bond and Share pelo então
governador Leonel Brizola deixara os americanos muito inquietos, além de
convencidos de que havia um perigoso comunista no Palácio Piratini. “Uma
notícia da primeira página do New York Times dizendo que você encampou
refinarias deixará os americanos em pânico”, adverti. Mas Jango preferiu dar
ouvidos a outros conselheiros.
A força dos grupos radicais no interior do governo tornou-se tão aguda que
passou a influenciar a própria linha da Última Hora, levando o jornal a
defender teses que não eram as minhas. Nos bastidores, eu fazia o possível
para evitar que Jango fosse longe demais. Mas não convinha transformar o
jornal em porta-voz das minhas próprias ideias, uma vez que ele se
incorporara ao esquema de sustentação do governo. Assim, houve momentos
em que a Última Hora pareceu favorável à execução de reformas
perigosamente ousadas, ou até mesmo à consumação de um golpe de
esquerda. Eu não podia atacar o comportamento de Goulart e seus aliados, ou
supostos aliados, no meu jornal.
Na madrugada de 12 de março de 1964, recebi em minha casa a visita de
Miguel Arraes, empenhado naquele momento em disputar com Leonel
Brizola a liderança de setores de esquerda que julgavam Jango moderado
demais. Arraes, um homem bom e simples, que nunca soube beber, tinha
tomado algumas doses de uísque além da conta e estava bastante loquaz.
– No dia 13, teu amigo Jango cai, acaba – disse Arraes a certa altura,
estendendo uma das mãos com o polegar para baixo.
Quis saber por quê, e o governador de Pernambuco sustentou que a massa
presente ao “Comício das Reformas”, marcado para o dia 13 de março, uma
sexta-feira, exigiria medidas que João Goulart se recusaria a encampar.
Evidenciado tal distanciamento entre o presidente e seu povo, Jango não teria
condições de permanecer no leme, abrindo o flanco para o golpe
radicalizante. Perguntei-lhe se iria ao comício, Arraes respondeu que sim.
Espantei-me – o próprio Jango me dissera horas antes que o governador
pernambucano não estaria no palanque. Disse isso a Arraes, que se mostrou
irredutível: acontecesse o que acontecesse, iria ao comício.
Ele deixou minha casa perto das seis da manhã. Telefonei para Jango, que
estava em seu apartamento no Edifício Chopin. Acordei-o, resumi o que
ocorrera e fui a seu encontro. Então, relatei-lhe detalhadamente a conversa
que tivera com Miguel Arraes.
– Não permitirei que ele venha ao comício – irritou-se Jango.
– Arraes garante que irá – insisti, acrescentando que também Leonel Brizola
estaria no palanque, decidido a, em aliança com Arraes, radicalizar
sensivelmente o tom da manifestação. Na minha opinião, o presidente não
teria escolha. Se não embarcasse na aventura de Arraes e Brizola, a esquerda
se dividiria e estaria aberto o caminho para um golpe de direita. Se
embarcasse, dificilmente chegaria bem ao porto – também nessa hipótese a
direita reagiria violentamente, certa de que chegara o momento de bloquear a
ascensão esquerdista.
Pedi a Jango que não fosse ao comício, ele rechaçou meu apelo.
Visivelmente aborrecido, chamou à sua presença o general Assis Brasil, chefe
da Casa Militar, e ordenou:
– Impeça Miguel Arraes e Leonel Brizola de viajarem até o Rio para o
comício. Diga-lhes que, se vierem, serão presos.
Goulart também resolveu que naquele mesmo dia 12 viajaria a Brasília para
dali articular o esquema destinado a esvaziar a manobra radical. Duas ou três
horas mais tarde, quando eu já o julgava na capital, Jango ligou-me pedindo-
me que voltasse a seu apartamento. Ao entrar numa sala, notei que por outra
porta saíam Luís Carlos Prestes e seu séquito. Há tempos eu vinha ouvindo
falar que Prestes e Jango haviam estreitado suas ligações, e aquela cena
parecia confirmar tais rumores. Jango cumprimentou-me e foi direto ao
assunto. Disse que recebera tanto de Arraes quanto de Brizola garantias de
que não fariam discursos provocativos. Portanto, faltavam motivos para vetar
a presença de ambos no comício. Além disso, Prestes lhe assegurara que o
Partido Comunista se encarregaria de controlar a massa, evitando palavras de
ordem extremistas. Para o presidente, assim, nada havia a temer.
Fiquei desapontado, mas estava claro que Jango não se dispunha a ouvir
meus argumentos. Saí do apartamento acabrunhado com as idas e vindas do
presidente da República, com suas constantes hesitações. Não fui ao comício,
mas determinei que a Última Hora organizasse uma ampla cobertura.
Conforme eu previa, a manifestação foi desastrosa para o governo. Instigada
por Brizola e Arraes, a multidão de cem mil pessoas fez com que o comício
transcorresse num clima pré-insurrecional. Jango fez um discurso fortíssimo
e, ainda no palanque, assinou decretos que levariam a direita à beira do
pânico. Acompanhei tudo aquilo na redação, ouvindo os discursos pelo rádio
e terrivelmente inquieto.
Já na tarde daquele dia 13 ficara evidente para mim a manifestação
artificial, forjada com métodos degradantes para quem tivesse alguma
consciência política. Vi com meus próprios olhos o presidente da República,
pelo telefone, baixando ordens para que empresas dependentes do governo
contribuíssem de alguma forma para o êxito do evento, ou financiando o
esquema de transporte ou praticamente obrigando seus funcionários a
comparecer à praça diante do Ministério da Guerra, onde se montaria o
palanque. Da mesma forma, o governo mobilizou a máquina administrativa
para que a manifestação atraísse uma multidão impressionante –utilizando,
por exemplo, os trens da Central do Brasil. Percebi que se articulava um
espetáculo fantasioso, mas nada podia fazer.
Ao comício do dia 13 se seguiram outras provocações, como o motim dos
marinheiros, liderado por um certo cabo Anselmo, de quem se suspeitava ser
um agente a serviço da CIA. Então, a direita fez o que Brizola desejava:
botou a cabeça para fora. Ocorre que a esquerda não teria forças para decepá-
la.
É provável que Jango não tenha percebido a proximidade do abismo, tanto
assim que no dia 30 de março compareceu a um almoço organizado pelos
sargentos no Automóvel Clube, no Rio de Janeiro. Esse almoço configurava
uma evidente agressão à hierarquia militar, agressão desaconselhável
sobretudo para um presidente que não tinha força junto à oficialidade do
Exército. Jango tinha a seu lado alguns generais e muitos sargentos, mas lhe
faltava apoio de coronéis, majores, capitães, tenentes – e, sem a simpatia
desses oficiais, não é possível a um presidente imaginar-se forte nos quartéis.
Sem eles, sargentos não têm maior importância.
Ao saber que Jango compareceria a esse almoço – na verdade, um comício
esquerdista –, procurei-o para implorar-lhe, este é o termo, que voltasse atrás.
Tancredo Neves, aliás, foi ainda mais veemente, suplicando ao presidente que
evitasse aquele desafio tão arriscado e tão desnecessário. Inútil. Àquela
altura, Jango certamente já fora envolvido pelos golpistas e perdera o controle
da situação. O naufrágio estava próximo.
O naufrágio não me surpreendeu – um governo com aquele perfil não
poderia ir muito longe. Alguns auxiliares diretos de João Goulart me
inspiravam profunda desconfiança, e aqui incluo certos santos entronizados
no altar da esquerda brasileira. Francisco de San Thiago Dantas, por
exemplo. Ele possuía o que se pode chamar de inteligência clássica. Era um
homem culto, pródigo em citações, e sabia como poucos lidar com leis e
regulamentos. Ex-integralista aparentemente convertido a um ideário de
esquerda, prosperou como advogado de grandes empresas e lobbies
internacionais. Apesar desse currículo nada convincente, era idolatrado por
setores da esquerda.
O franco acesso de San Thiago Dantas ao mundo dos consórcios
internacionais poderia tê-lo transformado em fator de estabilidade do governo
Goulart; para tanto, bastaria aproximar Jango das classes dirigentes, que o
hostilizavam. Em vez disso, San Thiago associou-se a Luís Carlos Prestes e
ao Partido Comunista, sem contudo distanciar-se dos capitalistas que
garantiam seus invejáveis honorários. Irremediavelmente ambicioso, ele
passou a vida procurando aliados que lhe permitissem chegar ao poder
supremo, não importava quais fossem.
Eu conhecera essa faceta de sua personalidade ainda no governo Juscelino,
num dia em que Aloísio Salles e Nelson Batista, dois gentlemen da sociedade
carioca, me convidaram para um drinque no Maxim’s, um bar
semiclandestino na avenida Atlântica. Eles me propuseram um encontro com
San Thiago, advogado de todas as empresas nas quais Aloísio e Nelson
tinham interesses. Aceitei. Encontramo-nos poucos dias depois, e a conversa
foi muito objetiva. Ele sabia, ressalvou, que não éramos amigos, e que eu
discordava de várias teses que lhe eram caras. Ainda assim, pedia que o
ajudasse na tentativa de ser ministro de Estado, pois JK pretendia convidá-lo
para um cargo no primeiro escalão. Se eu não estivesse disposto a apoiá-lo,
ele ficaria feliz caso não o hostilizasse. Prometi que não contestaria sua
indicação para algum ministério, mas a distância que nos separava
permaneceu. Eu não tinha afinidade alguma com San Thiago Dantas.
Como nossos territórios eram comuns, cruzei com San Thiago muitas vezes
durante o governo João Goulart. Mas numa única ocasião – em 1963, poucos
dias depois de eu ter acompanhado o presidente da República em sua visita
aos Estados Unidos – ele tentou vencer o abismo que nos separava. San
Thiago, à época ministro da Fazenda, visitou-me em companhia de Renato
Archer, e quis saber de quanto dinheiro eu precisaria para comprar os Diários
Associados e agregar o claudicante império construído por Assis
Chateaubriand à Última Hora, o que ampliaria enormemente o poder de fogo
da imprensa popular vinculada ao governo. Explicou que Jango, preocupado
com a penúria crônica da minha empresa, resolvera acabar com meus
problemas financeiros. A compra dos Diários, imaginavam Jango e San
Thiago, eliminaria a questão.
Percebi que, no fundo, ele pretendia cooptar-me para apoiar sua candidatura
à Presidência da República. Deduzi, também, que San Thiago agenciara
algum grande negócio envolvendo o governo, o que lhe permitira angariar
uma esplêndida gorjeta, capaz de assegurar aquelas transações milionárias.
Fiz alguns cálculos aleatórios e fixei uma quantia qualquer. Ele ficou de
pensar no assunto e prometeu voltar a procurar-me, mas o governo Goulart
foi derrubado antes que tivéssemos uma segunda conversa. Mais tarde, Jango
me confirmaria que de fato encarregara San Thiago de sugerir-me a compra
dos Diários Associados, mas se recusou a entrar em detalhes. Por isso, eu
nunca soube se a verba efetivamente existiu e se San Thiago resolveu
embolsá-la.
Mantido à distância do poder por homens como San Thiago Dantas, que me
consideravam direitista, assisti impotente à agonia do governo João Goulart.
Para agravar minhas relações com o poder, o presidente, meu amigo há tantos
anos, não conseguia agir lisamente com o dono do único jornal que
sustentava seu governo de forma incondicional. No começo de 1964, por
exemplo, ele me comunicou que decidira mandar prender o general
Humberto de Alencar Castello Branco, então chefe do Estado-Maior do
Exército. Jango explicou que o general transgredira certos regulamentos do
Exército, e que não lhe restava alternativa senão mandá-lo para a cadeia. Ele
achava que essa notícia merecia a primeira página da Última Hora. Observei-
lhe que a prisão do chefe do Estado-Maior do Exército mereceria a primeira
página de qualquer jornal do país, desde que consumada. Se a prisão não se
concretizasse, quem tivesse publicado a notícia ficaria desmoralizado.
– Vou mandar prender o general Castello Branco – declarou Jango depois
de ouvir minhas inquietações. – Quem está dizendo isso é o presidente da
República.
Ali estava uma grande manchete. Publiquei a notícia, que previsivelmente
agitou os quartéis. Meia hora depois da chegada da Última Hora às bancas,
porém, Jango recebeu Castello Branco em audiência e negou ter dito o que
me dissera. Castello continuou em seu posto, articulando as manobras
golpistas que poucos meses depois o levariam à Presidência da República.
Outros incidentes contribuíram para sugerir que estávamos às voltas com
um governo em desagregação. Certa feita, em plena reunião do Ministério,
entrou na sala Maria Teresa Goulart, uma jovem primeira-dama muito
atraente, muito bonita, talvez mais bonita que Jacqueline Kennedy, a musa da
época. Maria Teresa estava na piscina, de biquíni, quando lhe entregaram um
disco de Frank Sinatra com uma dedicatória assinada pelo cantor americano.
É provável que Sinatra tenha enviado seu disco a todas as primeiras-damas
do mundo, mas Maria Teresa ficou eufórica ao recebê-lo e fez questão de
interromper a reunião do Ministério para contar ao marido presidente que
ganhara um presente inesquecível. Os ministros tiveram de esperar alguns
minutos antes de retomar a discussão em torno de assuntos efetivamente
importantes.
Teria sido muito fácil enriquecer naqueles últimos meses de governo
Goulart, quando passaram por minhas mãos quantias milionárias. No começo
de 1964, por exemplo, o doutor Jorge Serpa, advogado e empresário muito
ligado ao governo, pediu-me que entrasse numa operação destinada a fazer
entrar no Brasil 450 mil dólares, a serem aplicados em manobras políticas.
Primeiro, eu deveria abrir uma conta num banco suíço. Em seguida, essa
quantia seria depositada em minha conta. Numa terceira etapa, eu viajaria até
a Suíça, retiraria o dinheiro e, de volta ao Brasil, entregaria os dólares a
determinada pessoa. Aceitei a missão. Com um depósito de cem dólares, abri
uma conta na Union de Banques Suisses. Poucos dias depois, viajei para
buscar os 450 mil dólares.
Quando comuniquei a um funcionário do banco que pretendia retirar tudo o
que fora depositado, ele se alarmou. “Não faça isso”, aconselhou-me. “Se o
senhor andar com tanto dinheiro, correrá risco de vida.” Insisti no meu pleito,
e o funcionário transferiu o problema para a diretoria do banco. Fiquei
algumas horas reunido com os diretores, empenhados em dissuadir-me a sair
dali com 450 mil dólares em espécie. Eles sugeriram que a retirada fosse feita
por etapas, recusei a ideia. Depois, propuseram que o dinheiro fosse enviado
a um banco do Uruguai e depositado numa conta que seria aberta em meu
nome. Fui taxativo: queria os dólares naquele momento. Quase no começo da
noite, depois de muitas horas de conversa, eles afinal cederam, reconhecendo
que eu poderia fazer o que quisesse com uma quantia que legalmente me
pertencia. Decidi deixar vinte mil dólares no banco e pedi que me
entregassem o resto. Eles me entregaram um envelope com cinquenta
cheques visados que somavam 430 mil dólares. Coloquei o envelope no bolso
do paletó, fui para o aeroporto e embarquei num avião para Roma.
Eu poderia, sem problema algum, ter deixado cem mil dólares em minha
conta – tratava-se de um dinheiro clandestino, ninguém poderia fazer algo
contra mim. Da mesma forma, poderia ter dito que fora assaltado e embolsar
aqueles cinquenta cheques visados. Por que não fiz isso? Francamente, não
sei. O fato é que deixei em minha conta apenas vinte mil dólares. Em Roma,
corri a depositar os cheques no cofre do hotel, tendo antes o cuidado de
separar uma parte para fazer algumas compras. Comprei três dúzias de
camisas finíssimas, seis dúzias de pares de meia de fio-escócia, um jogo de
malas Gucci. Gastei dinheiro nessas coisas, que me davam um prazer infantil.
De volta ao Brasil, entreguei o envelope à pessoa que me fora indicada. O
homem mal olhou o envelope, colocando-o displicentemente sobre uma mesa
sem sequer me agradecer. Eu arriscara minha pele em troca dos vinte mil
dólares que haviam ficado em minha conta.
Esse dinheiro, de qualquer modo, seria muito útil quando Jango caiu e tive
de seguir para o exílio. Eu julgava – equivocadamente, como veremos – que
estava preparado para enfrentar um longo período de vacas magras, confiante
numa transação que fizera com Jorge Serpa. Ligado à siderúrgica
Mannesmann, ex-diretor do Correio da Manhã, ele sabia tudo, conseguia
todas as informações. Às vezes, eu chegava ao sítio de Jango em Jacarepaguá
e o via saindo. Serpa sempre mantivera estreitas relações com os donos do
poder. Seu acesso a presidentes, ministros e grandes empresários era tão
franco que ganhou o apelido de “Cardeal”, numa alusão ao cardeal francês
Richelieu. Discretíssimo, detestava ostentações: não dava festas, não
comparecia a recepções, andava de táxi em vez de usar limusines. Gostava de
ter dinheiro e poder, mas não de exibi-los.
Em março de 1964, Jorge Serpa procurou-me para dizer que Jango o
encarregara de averiguar quanto dinheiro seria necessário para que a Última
Hora sobrevivesse a um eventual golpe de direita. Acreditei plenamente em
Serpa: ele frequentemente visitava Jango de madrugada, mergulhando em
conciliábulos, e sabidamente merecia a confiança do presidente. Também
fiquei comovido – ali estava uma prova de que Jango se preocupava com o
destino do meu jornal. Disse a Serpa que precisaria de um milhão de dólares.
– Não se preocupe – tranquilizou-me Serpa. – Temos um negócio em
marcha e dentro de poucos dias esse dinheiro será depositado numa conta
aberta em seu nome num banco suíço. Você logo receberá o número da conta.
Senti-me aliviado, e nem mesmo quis saber que negócio estava em marcha.
No dia 30 de março, encontramo-nos novamente. Serpa mostrou-me uma
relação de nomes, esclarecendo que aquelas pessoas seriam beneficiadas pela
operação financeira da qual sairia a verba prometida à Última Hora. Em
seguida, passou-me um talão de cheques de um banco de Basileia. Serpa
avisou que, em 24 horas, um milhão de dólares seriam depositados naquela
conta, e que dentro de dois dias eu poderia começar a emitir cheques. No dia
seguinte, quando sobreveio o golpe e tive de asilar-me numa embaixada,
guardei uma única folha do talão de cheques e rasguei as restantes – eu não
podia ser pilhado com um talão de um banco suíço no bolso. Uma única folha
bastaria para que eu fizesse a retirada. Algum tempo mais tarde, quando fui a
esse banco em Basileia para buscar aquela fortuna, constatei que havia apenas
cem dólares depositados em minha conta. Fiquei furioso com Serpa. Nunca
mais voltaríamos a encontrar-nos. Ele depois foi preso, teve a falência
decretada. Mas se recuperou, tornou-se amigo e advogado de Roberto
Marinho, tornou a aproximar-se de gente poderosa, e hoje vive com conforto,
muito conforto. Gostaria de descobrir o que ocorreu em 1964. Nunca decifrei
o mistério.
O fato é que não consegui preparar-me adequadamente para enfrentar as
consequências do Golpe de 64, embora estivesse convencido pelo menos
desde o começo daquele ano de que a queda do governo Goulart era questão
de tempo. Eu sabia que Jango não teria condições de resistir, e precisamente
por isso não aceitei juntar-me a ele na manhã de 31 de março de 1964,
quando conversamos por telefone.
– Vem comigo para Brasília – propôs Jango, que se preparava para deixar o
Rio de Janeiro.
Rejeitei a sugestão, ele insistiu:
– Tu vens comigo.
– Não, Jango, não vou – retruquei. – Tu vais defender a tua presidência, eu
vou defender o meu jornal.
Procurei informar-me sobre o que ocorria e concluí que o melhor a fazer era
buscar asilo em alguma embaixada. Escolhi a embaixada do Chile. Fui para lá
consciente de que, se por algum milagre o golpe malograsse, eu não poderia
sair às ruas de cabeça erguida – afinal, nem mesmo esperara a queda do
governo para buscar asilo. Jango ainda era presidente e eu já era um asilado.
Como João Goulart continuava tecnicamente no poder, a embaixada chilena
não quis conceder-me asilo. Bom malandro, eu tive o cuidado de ler toda a
legislação sobre asilo antes de deixar minha casa, e descobrira que, poucos
meses antes, fora instituído numa reunião em Caracas um princípio destinado
a proteger os cidadão da odiosidade pública. Aquilo me serviria, pressenti. Eu
estava numa cidade governada por Carlos Lacerda, meu maior inimigo e
aliado dos golpistas. Estava, portanto, exposto à odiosidade pública. Os
funcionários da embaixada aceitaram minha argumentação e me acolheram.
Lembro-me de que não senti qualquer tristeza ao asilar-me. Eu planejava
viver cerca de dez anos fora do Brasil, em companhia de meus filhos, e
gostava muito dessa ideia. Achava, também, que a Última Hora iria
sobreviver à tormenta.
CAPÍTULO 34

Em 1961, houve uma noite em minha vida em que tive um incidente muito
grave com Danuza, de quem estava me separando. Fiquei desesperado, pois
uma de minhas obsessões era evitar que chegássemos ao ponto de ruptura, o
que certamente incidiria de modo negativo sobre a formação dos nossos
filhos. Eu me excedera ao discutir com Danuza, perdendo o controle dos
nervos, e a ofendera de forma lamentável. Fiquei perambulando pelos
caminhos sombrios do Largo do Machado, ruminando a cena da discussão e
tentando encontrar uma maneira de reparar meu erro. A certa altura, lembrei-
me de que perto dali morava uma psicóloga a quem Danuza levara minha
filha Pinky; resolvi procurá-la.
Bati à sua porta às sete horas da manhã; ela abriu a porta estremunhada.
Não era exatamente uma mulher simpática, mas eu já não tinha como recuar.
– Desculpe-me ter vindo aqui perturbá-la – disse. – Mas estou desesperado e
quero saber o que fazer.
Ela mandou-me entrar, eu lhe abri a alma. Até então, essa psicóloga não me
conhecia pessoalmente. Quando terminei meu desabafo, ouvi algo que nunca
mais esqueceria.
– O senhor me dá a impressão de ser um homem para quem a luta em si é
mais importante que o começo da luta, ou o seu desfecho – disse-me ela. – O
que o senhor não sabe fazer, nem pode, é abandonar o combate. O senhor
entrou numa luta e agora não quer sair dela.
Guardei para sempre essas palavras, que encerravam uma boa dose de
verdade. Era a luta, algum tipo de luta, que me mantinha, me sustentava, me
preservava. Lembro-me de que, numa ocasião em que Carlos Lacerda me
atacava com especial intensidade, recebi a visita de Oscar Pedroso Horta. Ele
me encontrou com o televisor ligado na TV Tupi. O vídeo mostrava o rosto
de Carlos Lacerda, mais uma vez empenhado em reconstituir a árvore
genealógica dos Wainer. Pedroso Horta pareceu chocado com o que ouvia.
– Não é possível que isso continue – exclamou a certa altura. – Isso ainda
vai levar o país à guerra civil, é preciso que acabe já.
Virou-se para mim com expressão de pena.
– Como você deve estar sofrendo, Samuel – condoeu-se.
Senti vontade de rir, uma sincera vontade de rir. Contive-me.
– Horta, não estou sofrendo – expliquei. – Primeiro, acho grotesco ver o
Carlos desenhando a árvore genealógica da minha família. Além disso, essa
luta representa para mim uma razão de viver.
Isolado na embaixada do Chile, em abril de 1964, eu procurava convencer-
me de que a luta não cessara – haveria apenas um intervalo, durante o qual
seria possível esquecer-me de Lacerda, da necessidade de revidar a ataques
diários, da mesquinhez dos supostos amigos de João Goulart. Livre desse
problemas cotidianos, poderia dedicar-me às coisas de que gostava e, mais
importante ainda, a três pessoas que amava particularmente: meus filhos, com
os quais sempre tive relações muito especiais. Pinky, Samuca e Bruno
atravessavam sem esforço algum a couraça que sempre bloqueou minha
afetividade.
Essa compulsão de preservar-me de doações afetivas incondicionais me
manteve a certa distância tanto dos políticos com os quais convivi até
fraternalmente quanto dos amigos que viveram comigo a imensa aventura da
Última Hora. Neste caso, movia-me também a convicção de que o homem
que lidera não pode ter limitações afetivas, não pode esbarrar em vínculos
sentimentais. O homem que lidera é um homem só. Confesso, honestamente,
que jamais alimentei uma grande amizade. Tive amigos que se sacrificaram
por mim, que me contemplaram com gestos de extrema generosidade. Tive,
em resumo, amigos que me amaram, mas eu nunca soube retribuir, nem
mesmo fui ao enterro de alguns deles. Recebi muito mais do que dei. Poderia
ter-lhes oferecido demonstrações de afeto ao longo de trinta, quarenta anos de
convivência. Mas me contive, embora os amasse.
Com meus filhos sempre foi diferente, a nossa proximidade se aguçou com
o tempo. No momento em que dito estas memórias, eles me oferecem
demonstrações de carinho que saboreio com enorme prazer. De repente,
Samuca, por exemplo, telefona para contar como foi uma reportagem que
acabou de fazer para a TV Globo, no tom entusiasmado de quem vai
revolucionar a televisão brasileira. Pinky me liga de Ubatuba para perguntar
como estou e pedir um presentinho – ela já está casada e tem filhos, mas quer
o colo do pai. Saio com Pinky com certa frequência, e então lhe compro um
casaco, ou um doce. Essas pequenas coisas me protegem da nostalgia do
poder e impedem que eu me arrependa por não ter enriquecido.
No meu exílio, que se estenderia até 1968, penso que soube educar meus
filhos de modo a prepará-los para a ideia de que ter dinheiro não era vital. Na
França, por exemplo, quando meu caçula Bruno me pedia dois francos para
comprar um gibi, eu lhe dava quatro e o proibia de devolver o troco. Aliás,
achei ter chegado a hora de voltar ao Brasil num dia em que fiz a mesma
coisa com Samuca e ele espantou-se. “Papai, tu es fou”, comentou. Ele vira
naquele gesto perdulário um sinal de que o pai havia enlouquecido. Na
verdade, Samuca já estava começando a ser contaminado pelo espírito
avarento, pela mesquinhez que marca o caráter do povo francês. Eu fazia
questão de que meus filhos fossem desprendidos em relação ao dinheiro.
Felizmente, nenhum dos três jamais me acusou de não lhes ter deixado
alguma herança. Ao contrário, riem muito quando conto histórias dos tempos
em que fui rico; irônicos, agradecem a “herança cultural” que leguei. Creio
ter conseguido equipá-los psicologicamente para a hipótese de um eventual
empobrecimento, que afinal se consumou.
Contemplando meu percurso, constato ter vivido uma experiência humana
completa ao cumprir uma trajetória que me permitiu conhecer a ascensão, a
glória e a queda. Na época em que eu era um príncipe do governo Vargas, a
revista Time publicou a meu respeito uma reportagem cujo título era “O
Profeta”. Alguns anos depois, outra reportagem sobre mim, na mesma
revista, tinha como título “O Profeta Destronado”. A revista acertou – eu
realmente fora destronado. Mas sobrevivi sem maiores inquietações
interiores. A queda não me afetou como eu temia, até porque um outro traço
de temperamento – meu desapego às pompas, à glória, ao próprio poder –
contribuiu para reduzir sensivelmente seu impacto.
Claro, às vezes sinto saudades dos prazeres que o poder proporciona, dos
afagos que minha vaidade recebia. Mas nada supera a alegria de constatar que
as pompas do mundo não me fazem falta. Isso me permitiria, mais tarde,
voltar a trabalhar como assalariado, sem qualquer constrangimento, na
redação do jornal que eu próprio fundara. Ademais, estou convencido de que
não me deformei, não me corrompi, não perdi a dignidade, não me humilhei.
Sim, não é agradável lembrar que passei cinco, seis horas na sala de espera
do escritório de algum banqueiro, mas fiz isso para que meu jornal
sobrevivesse. Eu lutava por uma causa. Da mesma forma, fiz acordos e
acertos que muita gente condena, mas também aí estava em jogo a
sobrevivência da Última Hora. Nada guardei para mim.
Quando decidi escrever estas memórias, não pretendia escrever algum
discurso de defesa. Queria apenas saber se valeu a pena. Contemplando o que
o destino me ofereceu, só posso concluir que valeu. Claro, claro que valeu.
Mas não me detive nessa espécie de balanço em abril de 1964, asilado na
embaixada do Chile, talvez pelo desejo de acreditar que o mesmo combate
que me absorvera durante anos logo seria retomado. Tratava-se de uma
pausa, nada mais que uma pausa. Só mais tarde entendi que chegara ao fim, e
que os vencidos haveriam de pagar um preço por isso. Naquele momento,
procurei não pensar nessas coisas. Eu queria agarrar-me à crença de que a
Última Hora sobreviveria à tormenta.
A Última Hora efetivamente mostrou-se preparada para suportar a
tormenta. Em outros estados, contudo, meus jornais sofreram já no dia 31 de
março golpes que se revelariam fatais. Em São Paulo, por exemplo,
problemas pessoais impediram que Jorge Cunha Lima, o chefe da redação
paulista, comparecesse ao prédio do jornal na noite do dia 31 de março para
defendê-lo, e a Última Hora ficou acéfala num momento crucial de sua
história. O general Amaury Kruel, então comandante do II Exército,
mantinha relações de amizade comigo e me prometera, dias antes, proteger o
jornal de eventuais ataques direitistas. Desencadeado o golpe ao qual viria a
aderir dois dias depois, Kruel colocou soldados na porta do prédio. Sem
comando, o jornal deixou de circular durante longos 21 dias. Quando voltou
às bancas, perdera definitivamente a força de outros tempos, vergando-se à
anemia que precipitaria sua venda e, mais tarde, sua morte.
A Última Hora de Pernambuco pagou um alto preço por ter configurado,
em seus 22 meses de existência, uma ilha esquerdista cercada por uma
imprensa regional profundamente reacionária. No dia 31, quando eu já me
preparava para asilar-me na embaixada do Chile, o diretor da UH do Recife,
Múcio Borges, telefonou-me para saber que manchete deveria publicar.
Decidimos que a manchete seria “Todo Poder à Legalidade”. No dia seguinte,
nem bem o jornal chegou às bancas, militares do III Exército invadiram a
redação para prender os responsáveis pelo jornal e fechá-lo. O jornalista
Milton Coelho da Graça reagiu àquela arbitrariedade e, além de preso, foi
brutalmente torturado. Milton aborreceu-se comigo porque censurei sua
atitude. Talvez não tenha compreendido que eu apenas queria que, em vez de
defender o jornal, defendesse sua vida. Como não havia condição alguma
para a resistência, o mais sensato era que, naquele momento, cada um
cuidasse da própria sobrevivência.
Acompanhei essas violências refugiado na embaixada chilena, onde
aguardava o momento de sair do país. No dia 3 de abril de 1964, o próprio
embaixador do Chile comunicou-me que uma visita estava à minha espera em
outra sala. Era Ibrahim Sued. Fiquei intrigado: segundo as leis do asilo, eu só
poderia receber familiares na embaixada. O diplomata chileno esclareceu que
abrira uma exceção porque Ibrahim Sued era um homem muito importante.
Fui ao encontro do ilustre visitante, e Ibrahim explicou-me que estava ali em
nome de um grupo de empreiteiros interessados em comprar a Última Hora.
Eram os empreiteiros que mais tarde se ligariam estreitamente ao coronel
Mário Andreazza.
– Não quero vender a Última Hora, Ibrahim – informei.
– Você é maluco? – espantou-se ele. – Não vê que não tem condições de
manter o jornal?
Repeti que não tinha intenção alguma de desfazer-me da Última Hora.
– Eles pagam o preço que você estabelecer – ressalvou Ibrahim.
Insisti na negativa, e a conversa começou a morrer. Alguns anos depois, ao
cabo de penosas negociações que serão aqui relatadas, a Última Hora acabou
sendo comprada pelo mesmo grupo de empreiteiros que haviam incumbido
Ibrahim Sued de ir ao meu encontro. Naquele instante, porém, eu achava
conveniente preservar o jornal até que a situação brasileira se tornasse menos
sombria. Eu ainda não compreendera que o regime militar teria vida longa.
Não alcançara, também, até que ponto os empreiteiros estavam dispostos a
ampliar sua influência direta sobre a nossa imprensa.
Alguns meses depois, exilado em Paris, recebi a visita de um emissário
desse grupo de empreiteiros, liderados pelos irmãos Alencar – Maurício,
Marcelo e Mário. Os Alencar sempre haviam cultivado lucrativas ligações
com multinacionais e militares, e pressentiam que, com o golpe de 64, sua
hora chegara. Já convencido de que não seria fácil sobreviver no exílio, senti-
me inclinado a fechar negócio. Para consumar a transação, eu precisava do
consentimento formal de Haryberto Miranda Jordão, advogado da minha
empresa, e Sérgio Lima e Silva, diretor da Última Hora. Diante das
incertezas provocadas pelos idos de 64, eu passara a cada um deles um terço
das ações do jornal. Tratava-se, naturalmente, de um artifício legal, pois eu
retomaria as ações tão logo o quadro brasileiro se aclarasse.
Haryberto foi ao meu encontro em Paris, e só então percebi que eles
levaram a sério o que para mim fora apenas um artifício: o advogado e o
diretor da minha empresa achavam que as ações efetivamente lhes
pertenciam, e Haryberto conversou como se fosse, de verdade, dono de um
terço da Última Hora. Fiquei perplexo, mas nada podia fazer. Eles
informaram que só venderiam suas partes por uma quantia X, muito superior
ao preço que os empreiteiros poderiam pagar. Graças a Haryberto e Sérgio, as
negociações goraram. Foi então que os empresários voltaram seus olhos para
o Correio da Manhã.
Embora já estivesse muito distante da opulência exibida nos tempos do
mandarinato de Paulo Bittencourt, o Correio da Manhã ainda era a marca
mais valiosa da imprensa brasileira. O jornal tinha tanta influência e tamanha
tradição que, logo depois de ter precipitado a queda de Jango com violentos
editoriais, conseguiu fazer oposição ao poder ascendente dos militares e
manter sua força. Creio que o Correio da Manhã estaria vivo ainda hoje se
não tivesse tido a má sorte de passar, no começo dos anos 60, às mãos de
Niomar Moniz Sodré Bittencourt, a viúva de Paulo. Niomar, uma sinhazinha
baiana inteiramente despreparada para assumir a direção de um dos grandes
jornais do Brasil, resolveu provar que era melhor do que o marido e o sogro,
Edmundo Bittencourt. Pendurada nessa autossuficiência, destruiu o jornal em
pouco mais de três anos.
Ao saber que o Correio da Manhã, sitiado pelo governo militar, enfrentava
graves dificuldades, resolvi propor a Niomar uma aliança conveniente a
nossos jornais. A ideia era que a gráfica do Correio – uma oficina
monstruosa, capaz de imprimir simultaneamente meia dúzia de jornais –
rodasse as edições de Última Hora. Além disso, os exemplares do meu jornal
seriam distribuídos pela frota do Correio, que somava dezenas e dezenas de
veículos. Achei que ali estava um bom negócio para nós dois. Acertada essa
espécie de pool, eu poderia desfazer-me tanto da gráfica quando da frota da
Última Hora. Niomar, em contrapartida, poderia utilizar a capacidade ociosa
de seus equipamentos e veículos. Pedi a Danton Jobim, que me visitava em
Paris e era amigo de Niomar, que lhe expusesse minha proposta.
– Não me misturo com cafajestes – respondeu Niomar.
Poucos meses depois, o Correio da Manhã foi comprado pelos empreiteiros
que haviam tentado obter o controle da Última Hora. Mais alguns meses e o
velho jornal já não existia mais.
Deixei o Brasil com trinta mil dólares que conseguira reservar para
emergências. Algum tempo depois, retirei os vinte mil que deixara guardados
no banco suíço. Mais tarde, obtive de Jorge Serpa outros noventa mil dólares,
ao fim de constrangedoras negociações. Ao constatar que não seria fácil
sobreviver com meus filhos na França, fiz chegar a Jorge Serpa uma ameaça:
se não me fosse entregue um milhão de dólares, conforme ele me havia
prometido, eu revelaria todos os detalhes da transação que ele comandara.
Serpa assustou-se e mandou um emissário a Paris para entender-se comigo.
Lutamos como leões. Eu dizia que meus filhos enfrentavam sérias
dificuldades e que a Última Hora estava condenada à morte. O emissário
sustentava que Serpa não dispunha de tantos recursos. No fim das contas,
contentei-me com noventa mil dólares. Embora tivesse certeza de que Serpa
embolsara o dinheiro, achei sensato não prolongar a discussão. Mas não
fiquei com os noventa mil dólares. Sempre perdulário, entreguei quarenta mil
a Sérgio Lima e Silva, encarregando-o de ressuscitar a Última Hora em São
Paulo. Mais uma vez, joguei dinheiro fora.
A Última Hora me preocupava permanentemente, mas também dei curso a
outros projetos que frequentavam minha imaginação. Como alguns dos
grandes jornalistas franceses eram meus amigos, resolvi convencê-los de que
valeria a pena lançar uma versão europeia de Seleções do Reader’s Digest,
um enorme sucesso naquela época. A ideia era fazer uma revista, cujo título
seria Europe Moderne, ou simplesmente E. M., que traduzisse o pensamento
e a cultura da Europa ocidental. A ideia, em princípio, agradou bastante.
Certo dia, fui à redação do jornal Le Monde falar sobre esse projeto. Como eu
gostava de tocar várias coisas ao mesmo tempo, aproveitei a ocasião para
convencer a direção do Monde a me vender os direitos sobre a reprodução de
suas reportagens no Brasil por cem dólares mensais.
Entusiasmado com esse acerto, fechei contratos semelhantes com
L‘Express, por duzentos dólares mensais, e com Le Nouvel Observateur, pelo
mesmo preço. Ou seja: por quinhentos dólares ao mês, eu conseguira
contratos de exclusividade com o principal diário e as duas revistas mais
importantes da França. Quando a notícia chegou ao Brasil, Assis
Chateaubriand despachou para Paris o fotógrafo Jean Manzon, com a missão
de torpedear ao menos o contrato com o Monde. Manzon procurou Hubert
Beuve-Meury, diretor do jornal, para dizer-lhe que a Última Hora era o jornal
da ralé carioca; não valeria a pena, portanto, formalizar qualquer espécie de
acerto com uma publicação desse tipo.
– A terra pertence ao primeiro ocupante – filosofou Beuve-Meury, decidido
a manter a palavra empenhada.
Durante algum tempo, a Última Hora utilizou com relativo sucesso as
reportagens compradas a Le Monde, mas depois de poucos meses constatei
que aquele dinheiro desembolsado a cada mês estava ficando caro demais
para meus bolsos. Desfiz o acordo com as revistas e transferi os direitos sobre
os textos de Le Monde para a Folha de São Paulo, que até hoje os republica.
Tentei levar adiante a ideia da versão europeia de Seleções, mas é meio
complicado discutir com franceses. O projeto acabou morrendo, mas
continuo com a convicção de que tinha tudo para dar certo.
Ainda em 1965, a Última Hora recuperou sua saúde financeira e passei a
receber quatro mil dólares por mês. Isso me bastava. Com esse dinheiro,
mantinha meu Alfa-Romeo, um apartamento de dois quartos (administrado
por uma empregada importada de Portugal) e pagava a escola das crianças –
Pinky estudava num colégio perto de Paris, Bruno e Samuca numa escola na
Suíça. Paralelamente, seguia com minha intensa vida social, favorecida por
relações que estabelecera em anos anteriores. Quando cheguei a Paris, por
sinal, Le Monde noticiou na primeira página o desembarque do “exilado
brasileiro e grande editor Samuel Wainer”. Essas coisas impressionavam
muito e contribuíram para abrir-me as portas do grand monde parisiense.
Sempre muito provincianos, os brasileiros não conseguem encarar com
naturalidade minha convivência com artistas, intelectuais, playboys
milionários. Em jornais do Rio e de São Paulo, cronistas sociais publicavam
notas anunciando, com franca admiração, que eu fora visto ao lado da
princesa Soraya, a bela mulher repudiada pelo xá do Irã por não poder dar-lhe
filhos. Soraya tinha um rosto realmente lindo, mas era bastante simples, uma
alma quase camponesa, também ela deslumbrada com as luzes de Paris.
Circulando pelos lugares da moda, era inevitável que eu fosse visto em
companhia de gente famosa. Certa noite, fui a uma recepção numa das casas
da família Rothschild. A caminho da festa, encontrei-me com um pequeno
grupo formado por Fred Chandon, o homem da champanha, Claude de
Leusse, uma querida amiga que apesar de genuinamente aristocrata
trabalhava como jornalista, e Anita Ekberg, a estrela de A Doce Vida. Entrei
no salão de braços dados com duas esplêndidas mulheres – Claude era
elegantíssima. Adolfo Bloch, para meu desprazer, estava presente à recepção
e me recebeu com um olhar de profunda inveja. Mais tarde, conversando
comigo, tentou ser amável:
– Você parecia um artista de Hollywood! – admirava-se Bloch. – De
Hollywood!
CAPÍTULO 35

Em agosto de 1965, Otávio Frias de Oliveira, o dono do grupo Folhas, de


passagem por Paris, convidou-me para tomar um drinque no Hotel Claridge e
mostrou-se interessado em comprar a Última Hora de São Paulo. Àquela
época, eu estava cético quanto às possibilidades de sobrevivência do meu
jornal paulista. No final do ano anterior, em mais uma tentativa de reanimá-
lo, eu passara o comando da redação a dois amigos, Rubem Paiva e Fernando
Gasparian. Foi um erro, antes de mais nada porque eles não eram jornalistas,
não eram do ramo. Além disso, ambos foram rapidamente assaltados pela
sensação de onipotência que geralmente contamina quem assume o controle
de um jornal. Em pouco tempo, já dispensavam meus conselhos e
contrariavam minhas diretrizes. Para mim, o importante naquele momento era
assegurar a sobrevivência econômica do jornal, e para tanto era preciso
cautela na linha editorial. Gasparian e Rubem Paiva, entretanto, radicalizaram
a posição da Última Hora. Vi-me forçado a afastá-los da chefia da redação.
Quando me encontrei com Otávio Frias de Oliveira em Paris, a Folha de
São Paulo já era um grande jornal, e sua empresa se preparava para o
processo de expansão que se desenvolveria nos anos seguintes. Frias
discorreu sobre seus planos, entre os quais figurava a compra da Última Hora
– tratava-se, como ele observou, de uma grande marca jornalística. Pediu-me
que fixasse um preço. Respondi que seria difícil fixar um preço, até porque a
Última Hora paulista tinha pouquíssimos bens materiais, nem mesmo
dispunha de terreno próprio. Seu patrimônio estava praticamente na marca.
Para avaliar o preço dessa marca, seria preciso saber, por exemplo, que
espécie de orientação seria imprimida ao jornal. No fim das contas,
conseguimos chegar a um preço, a ser pago em cinco anos. Incluí nesse
acerto cláusulas que me pareceram importantes. Combinamos que Frias
saldaria as dívidas trabalhistas da empresa, e que absorveria o pessoal da
redação paulista. Havia funcionários com quase quinze anos de casa, e eu não
pretendia abandoná-los à própria sorte. Frias recorreu a um artifício
engenhoso. Em vez de demitir alguns funcionários e indenizá-los,
simplesmente remanejou-os para outros setores de sua empresa e esperou que
se aposentassem. Com isso, economizou alguns bilhões de cruzeiros.
Frias imediatamente convocou a Paris o advogado da empresa, que viajou
em companhia de um dos sócios do grupo. Dois dias depois do nosso drinque
no Claridge, o contrato estava pronto para ser assinado. Quando só faltava
formalizar o acordo, João Saad, dono da TV Bandeirantes, mandou-me um
telegrama oferecendo o dobro do que Frias iria pagar-me, e fazendo um apelo
patético para que eu lhe vendesse o jornal. Sempre gostei muito de João Saad,
um homem encantador a quem devo muitos favores pessoais. Mas recusei a
proposta por dois motivos. Primeiro, o contrato com Frias estava redigido,
apenas à espera das assinaturas. Segundo, eu temia que o jornal, nas mãos do
homem que era genro de Ademar de Barros, adotasse uma linha que
renegasse seu belo passado. Saad ficou extremamente aborrecido comigo.
Consumada a venda, divulguei uma nota explicando que decidira transferir
a tarefa de seguir adiante com a Última Hora a uma empresa que considerava
comercial, sem nitidez político-ideológica, cuja filosofia estava em fazer bons
jornais. Incorporada ao grupo Folhas, a Última Hora esteve bem de saúde até
1968, quando o advento do AI-5 provocou fundas mudanças em seu
conteúdo. Então, o jornal que eu fundara em São Paulo começou a morrer.
Sobretudo entre 1952 e 1964, fora um grande jornal, muito influente entre os
trabalhadores urbanos. Fiz essa observação a Frias ao colocarmos nossas
assinaturas no contrato.
– Você terá nas mãos um excelente instrumento – disse-lhe.
Frias concordou, sorrindo. Depois, em tom de blague, fez-me uma
confidência bastante verdadeira:
– O que eu gostaria de fazer, agora, era ir até a Federação das Indústrias do
Estado de São Paulo e mostrar, numa bandeja de prata, a cabeça de Samuel
Wainer.
– Foi barato – comentei.
Era isso: Frias achava que acabara de decepar minha cabeça, ao menos
minha cabeça paulista. A rigor, a FIESP não queria destruir-me – queria
destruir o jornal, e o jornal continuaria vivo. Mas o novo dono da Última
Hora de São Paulo tinha certa razão: a FIESP não deixaria de alegrar-se ao
saber que eu perdera minha tribuna no principal estado do país.
Em meus primeiros meses de exílio, convivi bastante com Juscelino
Kubitschek. Saíamos juntos com frequência, conversávamos horas seguidas.
JK, que deixara o Brasil depois de submetido a humilhações intoleráveis,
confidenciava-me então seu imenso desejo de voltar ao país. Eu ponderava
que valia a pena esperar até que as coisas se aclarassem, mas Juscelino
parecia sempre pronto a embarcar no próximo avião. Adorava fazer política,
e ansiava por retomar o poder. Ele vivia em campanha. Recebia vereadores
em seu escritório parisiense, correspondia-se com eleitores que lhe escreviam
de remotas paragens brasileiras.
Nessas conversas, fantasiávamos sobre a possibilidade de associar-nos num
jornal, talvez a própria Última Hora. Ele estava convencido de que precisava
de uma cunha na imprensa para voltar à Presidência da República, mas
nossos projetos nunca foram adiante. No começo dos anos 70, quando eu
seguia buscando oxigênio para tornar menos penosa a sobrevida da Última
Hora, tornei a encontrar- me com Juscelino, então um homem riquíssimo. Vi
um JK muito diferente do que eu conhecera – parecia desencantado, triste,
desinteressado por projetos de retomada do poder. Até sua morte, nós nos
abraçávamos com ternura a cada encontro, conversávamos com o carinho de
amigos que sabiam ter cometidos erros recíprocos, mas relevavam esses
erros. Só que já não percorríamos caminhos comuns.
Nosso distanciamento começara ainda em 1966, quando Juscelino sonhava
com sua ressurreição política e achava que qualquer meio era válido para
alcançar tal fim. Eu costumava dizer-lhe que deveria adotar a postura do
velho Winston Churchil, que perdeu o poder depois de ter salvo a Inglaterra
da derrota na guerra. Sugeria-lhe que escrevesse um grande livro, guardasse
suas declarações para momentos efetivamente dramáticos; agisse, enfim,
como estadista.
– Espere que a nostalgia popular venha buscá-lo – repetia.
Inútil: Juscelino não podia esperar. Tanto não podia que aceitou reconciliar-
se com Carlos Lacerda, unindo-se a ele e a João Goulart na chamada “Frente
Ampla”. Durante mais de dez anos, Lacerda chamara JK de crápula, canalha,
ladrão e outras expressões extraídas de seu rico vocabulário. Ao saber que o
velho inimigo gostaria de propor-lhe uma aliança, contudo, Juscelino
imediatamente esqueceu esses adjetivos – mais importante, imaginou, era que
ele e Lacerda lutassem juntos para a convocação de eleições presidenciais. Os
dois se encontraram em Lisboa, num clima de enorme cordialidade. Dona
Sarah Kubitschek recebeu alguns rapapés de Carlos e retribuiu-os com
prazer, entre xícaras de cafezinho. Também Juscelino mostrou-se muito
simpático ao visitante, e os dois antigos adversários não demoraram a
entender-se. Acertaram, então, que Jango seria atraído para a Frente Ampla.
Em meio às conversações de Lisboa, Juscelino telefonou-me para pedir que
não atrapalhasse a tentativa de cooptação de Jango. Respondi-lhe que, pela
primeira vez, iria discordar publicamente de Goulart caso se reconciliasse
com Lacerda – discordara de Jango em outras ocasiões, mas sempre entre
quatro paredes. JK apelou-me em tom dramático para que não influísse sobre
o comportamento de Jango. Reiterei que faria o que estivesse ao meu alcance
para impedir a formalização da aliança. Juscelino irritou-se:
– Você não tem o direito de fazer isso – censurou-me.
– Se tenho direito ou não, presidente, eu é que decido – retruquei, já
suspeitando de que nossa amizade nunca mais seria a mesma.
De Paris, escrevi a Jango uma carta, mais tarde divulgada intensamente pela
imprensa, aconselhando-o a não sucumbir ao canto de sereia lacerdista. A
carta historiava nossas divergências com Lacerda, seu comportamento torpe
em relação a Getúlio, sua deslealdade para com Juscelino, as agressões que
infligira ao próprio Jango. Para Lacerda, afirmei, aliar-se a Goulart era uma
fórmula para retocar a imagem antipopular construída ao longo de sua
carreira. Alcançados seus objetivos, ele não hesitaria em abandonar os aliados
de ocasião. Soube mais tarde que, depois de ler minha carta, Jango fez um
comentário sardônico a meu respeito:
– O Profeta está negociando seu passaporte – ironizou.
A carta deixava claro que eu romperia politicamente com Jango caso ele se
encontrasse com Lacerda. Mas meu velho amigo não me ouviu. Alguns dias
mais tarde, recebeu Lacerda em sua casa no Uruguai. Entre goles de
chimarrão, entenderam-se muito bem, como sugerem as expressões felizes
exibidas nas fotos divulgadas pela imprensa. Penso que, no fundo, tanto
Jango quanto Juscelino alimentavam o desejo, tipicamente pequeno-burguês,
de serem alforriados pelo seu mais implacável acusador; reconciliar-se com
Carlos Lacerda seria uma forma de tornar sem efeito o que se dissera. Assim,
Jango deixava de ser o grande gângster, JK deixava de ser o grande ladrão.
Eis aí algo que nunca me afligiu, tanto assim que repeli com veemência as
sondagens feitas por intermediários de Lacerda, interessado em incluir-me
entre os simpatizantes da Frente Ampla.
Confesso ter experimentado uma clara sensação de alívio ao romper com
Jango. Até então, eu me sentia obrigado a silenciar sobre nossas divergências,
a tolerar e eventualmente apoiar certos erros, a violentar algumas de minhas
convicções. A partir do momento em que ele se reconciliou com Carlos
Lacerda, senti-me livre para cultivar apenas e tão somente a fidelidade à
memória e ao pensamento de Getúlio Vargas.
Senti-me livre, também, para dedicar-me a outros projetos, um dos quais
me levou a compor uma desastrada parceria com um diretor de cinema grego
chamado Nico Papatakis. Eu o conheci na noite de Paris, que o tinha entre
seus mais singulares personagens. À época casado com a atriz Anouk Aimée,
Nico era um maluco muito simpático, amigo de intelectuais como Jean-Paul
Sartre, grande jogador, conhecido gigolô de mulheres e homossexuais
endinheirados, amante de duquesas e baronesas. Ele fizera um filme baseado
num texto de Jean Genet que repercutira muito bem junto à crítica. Agora,
com um script pronto na gaveta, estava à procura de alguém disposto a
financiar sua obra-prima, cujo título seria Os Pastores da Desordem.
Numa noite, Nico deu-me o roteiro para ler. A história se passava na Grécia
e era repleta de alegorias, algumas delas complicadíssimas. Mas gostei do
que li. Nico explicou-me que precisava de noventa mil dólares para realizar o
filme, e que sessenta mil já lhe haviam sido prometidos por uma instituição
estatal francesa semelhante à nossa Embrafilme. Faltavam apenas trinta.
Aventureiro incurável, logo me entusiasmei com a perspectiva de aprender a
fazer cinema e decidi entrar na sociedade. Apesar das sucessivas advertências
que ouvi de vários amigos, abrindo-me os olhos para a cabeça aloprada de
Papatakis, arranjei-lhe a verba que faltava.
Nico, antes de mais nada, renovou seu guarda-roupa. Viajou em seguida
para a Grécia, escolheu o cenário para as locações e, aproveitando a
oportunidade, alugou uma casa espetacular perto do local das filmagens. Era
o começo de uma série interminável de loucuras. Meu sócio grego contratou
dezenas de figurantes, alugou dezenas de mulas para o transporte de
equipamento e mantimentos. Em pouco tempo tínhamos três horas de filme,
embora o roteiro estivesse longe de chegar ao fim. O dinheiro acabou.
Consegui mais uns setenta mil dólares no Rio de Janeiro, sangrando os cofres
já abalados da Última Hora. Recorrendo a seu prestígio junto a homossexuais
do ramo, Nico obteve uma segunda subvenção na “Embrafilme” francesa.
As filmagens pareciam intermináveis. Certa feita, Nico consumiu quatorze
horas ensaiando uma gargalhada da heroína. Com a paciência esgotada,
chamei-o para conversar e lhe disse que ele não era um profissional. O grego
olhou-me com ódio e quis atacar-me com uma faca. Outras pessoas
interferiram e sobrevivi para ouvir, algum tempo depois, que faltavam só dez
dias para o encerramento das filmagens. Fiquei feliz, mas Nico me apareceu
com outro achado algumas horas mais tarde. Ele lembrou que toda a história
se passava num dia de verão. O problema é que o verão terminara muito antes
do fim das filmagens e o sol agora brilhava fracamente. Muito preciosista,
meu diretor informou que se recusava a filmar com luz artificial e decidira
esperar pelo próximo verão.
– Eu vou para Paris – informei, vencido. – Você fica e acaba o filme.
Nico permaneceu na Grécia à espera do sol forte, até que um dia o filme
ficou pronto, só que com quase três horas de projeção. Ele se recusou
terminantemente a reduzi-lo. Recorrendo a amigos providenciais,
conseguimos incluir Os Pastores da Desordem no Festival de Veneza. A
fotografia era belíssima, o roteiro tinha alguma inventividade, mas a maioria
da plateia dormia no meio da exibição. Também organizamos uma avant-
première em Paris. Subornamos alguns críticos e o filme recebeu várias
críticas favoráveis. Uma semana depois, foi lançado numa cadeia de oito
salas, mas só ficou três dias em cartaz. Os espectadores se retiravam ao fim
de uma hora, indignados e berrando que não estavam dispostos a assistir a
“filmes histéricos”.
Com o pretexto de lançar o filme em meu país, decidi viajar para o Brasil,
interrompendo meu exílio. Os Pastores da Desordem ficou oito semanas em
cartaz no Cine Paissandu e até conseguiu algum sucesso entre plateias jovens.
Lançado em São Paulo às vésperas do AI-5, não durou mais que uma semana.
Aí terminou minha curta e turbulenta carreira de homem de cinema. Dessa
experiência, além das cópias do filme e das lembranças que hoje me
divertem, ficaram muitas dívidas em Paris, que jamais seriam saldadas.
Não foi fácil conseguir regularizar meu passaporte para viajar com uma
cópia do filme ao Rio de Janeiro. Mas circulei com desembaraço, sem
qualquer problema, e desconfiei de que estava chegando o momento de
regressar definitivamente ao Brasil.
CAPÍTULO 36

Meu exílio se encerrou em 1968, quando entendi ter chegado a hora de


voltar ao Brasil e reassumir efetivamente o comando do jornal. Em 1967, eu
voltara a meu país pela primeira vez, mas por pouco tempo; ficara no Rio de
Janeiro apenas três semanas, tempo suficiente para providenciar os dólares
exigidos pela desastrada associação com Nico Papatakis. Naquela ocasião,
não pudera ocupar-me dos problemas da Última Hora, que me eram
regularmente relatados em cartas de amigos e colaboradores como Etcheverry
e Moacir Werneck de Castro. Tais cartas, em tom frequentemente patético,
sustentavam que, se eu não voltasse a tempo, a Última Hora caminharia para
o abismo. Faltava dinheiro, faltava papel, o quadro de funcionários fora
drasticamente reduzido, a situação política era francamente adversa. Tudo,
enfim, conspirava contra nós.
Eu estava convencido de que pelo menos a Última Hora carioca não
poderia ter um final assim melancólico. Àquela altura, os jornais que eu
fundara em outros estados haviam sido transferidos para outros proprietários,
ou simplesmente fechados – mas, nesses casos, não me senti tão intimamente
envolvido. A Última Hora do Rio era diferente: ali começara minha grande
aventura, ali estava boa parte da minha vida; não se tratava, portanto, de um
jornal qualquer. Decidi prolongar sua sobrevida até que pudesse vendê-lo em
condições que não fossem demasiado inglórias.
A liderança ostentada pela Última Hora nos bons tempos já se tornara coisa
do passado. As vendas caíam continuamente, enquanto as publicações
concorrentes prosperavam. O Globo, por exemplo, consolidara e ampliara seu
poderio, o Jornal do Brasil aumentara enormemente sua penetração, O Dia já
vendia cerca de 150 mil exemplares. Ainda assim, a opinião da Última Hora
seguia tendo peso considerável, um trunfo, aliás, que a equipe da redação,
então dirigida por Danton Jobim, talvez não tenha sabido avaliar. Algumas
manchetes e certos títulos me pareciam quase irresponsáveis. Em pleno
regime militar, a Última Hora soltava manchetes que soavam provocativas
aos donos do poder. Era comum aparecer numa edição qualquer, no alto da
primeira página, algo como “ELEIÇÕES, SÓ DE MISS”. Os militares,
naturalmente, não sentiam prazer algum nesse tipo de leitura.
De volta ao Brasil, exercitei exaustivamente minha criatividade. Inventei,
por exemplo, a teoria do “jornal padrão brasileiro”, segundo a qual uma
publicação genuinamente nacional, sem vínculos com financiadores
estrangeiros, não poderia ter mais de quatorze páginas – era o limite da
honestidade num país pobre como o nosso. Tratava-se claro, de um artifício
destinado a poupar-me de admitir que a Última Hora não tinha condições de
sair com mais de quatorze páginas, mas a teoria fez sucesso e foi encampada
por alguns milhares de leitores. Defendi-a em dois ou três editoriais, nos
quais sugeria que os concorrentes só eram mais volumosos porque contavam
com o apoio do capital estrangeiro.
A criatividade da redação era diretamente proporcional aos problemas que
surgiam. Em 1970, quando a Seleção Brasileira de Futebol se preparava para
o Mundial do México, criamos o Jornal da Copa, um suplemento em
tamanho tabloide inteiramente dedicado ao campeonato. Ocorre que não
tínhamos verba para enviar uma equipe de jornalistas ao México – o único
com passagens asseguradas era Maneco Muller, o “Jacinto de Thormes”, que
muitos anos antes estabelecera um acordo comigo: acontecesse o que
acontecesse, ele assistiria a todos os mundiais de futebol por conta da Última
Hora. Como o Jornal da Copa não poderia ser feito apenas com o material
remetido por Maneco Muller, resolvi utilizar os serviços das agências de
notícias, apresentando-os, porém, com muito mais charme. Assim, anunciei
que a Última Hora teria no México uma equipe de 120 pessoas. Essa era a
soma das equipes destacadas pelas agências, mas divulguei o número de
correspondentes sem esclarecer quem eram eles. Quando as matérias
chegavam, dávamos um jeito de camuflar sua autoria. Os leitores não
perceberam o estratagema, e o Jornal da Copa foi um sucesso, até porque seu
conteúdo era de ótima qualidade.
O objetivo, como já disse, era ganhar tempo até encontrar algum comprador
para o jornal, mas não foi fácil sobreviver, inclusive porque eu não estava
numa maré de sorte. Transações que tinham tudo para dar certo acabaram
malogrando em momentos nos quais, mais do que nunca, eu precisava de
dinheiro. Foi o caso do prédio que tínhamos na avenida Presidente Vargas, e
que aluguei por cinco anos à IBM. Recebi, adiantados, cerca de 450 mil
dólares, que imediatamente usei para quitar dívidas e comprar papel. Três
meses depois de fechado o negócio, o prédio foi desapropriado pela
Companhia do Metrô. Tive de devolver o dinheiro, sabe Deus de que forma.
Na manhã de 13 de dezembro de 1968, cheguei à redação com o
pressentimento de que algo muito grave estava prestes a acontecer.
– Vem fogo aí – comentei com Danton Jobim.
Danton, um liberal com suficiente flexibilidade ideológica para aderir a
qualquer regime político, como mostrou ao longo de sua vida, reagiu com
incredulidade.
– E vem censura – emendei.
– Censura no Brasil, nunca mais – respondeu Danton. Horas depois, o
governo decretou o AI-5 e uma trinca de oficiais do Exército – dois coronéis
e um major – assumiu o controle da redação da Última Hora. Devo admitir
que nossos censores não foram tão rigorosos em sua atividade, até porque se
tornaram amigos de alguns redatores, com os quais passaram a frequentar
boates e cabarés. Mas nenhum deles procurou aproximar-se de mim – era
desaconselhável, sobretudo naqueles tempos, ter como amigo o jornalista
Samuel Wainer.
Já na noite de 13 de dezembro divulgou-se uma lista de pessoas que
deveriam ser presas e que incluía meu nome. Refugiei-me num apartamento
da rua Barão da Torre que pertencia a Danuza, e telefonei para um delegado
ligado à polícia política, que me devia alguns favores, entre os quais
empregar seu irmão na Última Hora. Disse ao delegado que, já que
desejavam interrogar-me, gostaria de colocar-me à sua disposição. Ele
ponderou que, como as viaturas de sua delegacia estavam ocupadas –
provavelmente prendendo alguns dos meus companheiros de lista –, eu lhe
faria um grande favor se fosse por conta própria a seu encontro. Prometi
atendê-lo.
Fiquei trocando ideias com João Etcheverry, que aparecera no apartamento
logo depois de saber da presença do meu nome na relação de procurados.
Ainda não estava convencido de que a melhor solução seria entregar-me ao
DOPS. Resolvi recorrer a Ibrahim Sued, um grande amigo, que sempre
observou em relação a mim o código de honra dos mafiosos – estivemos
ocasionalmente em posições opostas, às vezes antagônicas, mas Ibrahim
jamais traiu minha confiança. Pedi-lhe que conseguisse informações mais
exatas sobre minha situação. Minutos depois, Ibrahim telefonou para
informar que, pelo menos na área da polícia estadual, nada havia contra mim.
Pouco depois, outro telefonema: descobrira que os problemas estavam
localizados na esfera federal.
Perto das dez da noite, desci com Etcheverry e Danuza e tomei um táxi.
Estávamos no Aterro do Flamengo, a caminho da rua da Assembleia, onde
funcionava o DOPS, quando fui novamente assaltado pela suspeita de que
não deveria apresentar-me.
– Acho um absurdo entregar esse restinho de liberdade – disse. Etcheverry,
sempre honestíssimo, discordou:
– Você prometeu ao delegado – lembrou-me.
Observei que promessas feitas a carcereiros não chegam a ser invioláveis, e
propus uma solução intermediária: retardar minha apresentação por algumas
horas e, nesse espaço de tempo buscar o conselho de algum advogado amigo.
Fomos à procura de Nelson Cândido Motta, pai do Nelsinho Motta – o
velho Nelson mantinha ótimas relações com o governo e os quartéis.
Informado do que se passava, ele começou a movimentar-se, com alguns
telefonemas estratégicos. Terminada a rodada de consultas, concluímos que o
mais seguro seria negociar minha apresentação ao Exército. Nos meus
tempos de poder, eu costumava frequentar o comando do I Exército com o
mesmo desembaraço com que circulava pelos palácios do governo. Ali fizera
bons amigos, que poderiam ajudar-me naqueles agitados idos de 1968.
Liguei para o quartel-general e informei a um coronel que me atendeu que
desejava entregar-me ao Exército, não à polícia. Fui instruído para telefonar
novamente em cinco minutos e falar com o capitão Montagna, filho de um
general, César Montagna, que ficara famoso por ter tomado no grito, em abril
de 1964, o QG da Artilharia de Costa no Forte de Copacabana. Contei-lhe o
que me afligia, e o oficial foi taxativo.
– Esteja onde estiver, volte para casa. São ordens do I Exército – avisou.
Ele esclareceu a seguir que, se por acaso recebesse alguma intimação de
qualquer outra autoridade, deveria recusá-la: a partir daquele instante, estava
sob a proteção do Exército brasileiro. Montagna passou-me os números de
dois telefones, avisando que deveria discá-los caso surgisse algum problema.
Agradeci-lhe a consideração e perguntei até quando ele ficaria de plantão. O
oficial explicou que, numa situação de emergência como aquela, seria
impossível estabelecer horários rígidos, mas recomendou que não me
preocupasse, já que o Exército havia montado esquemas especiais de
proteção a certas pessoas incluídas nas listas de procurados. Bastava ligar
para um dos telefones cujos números me passara. Inquieto, indaguei se ele
tinha telefone em casa, desculpando-me pela insistência. O oficial se
aborreceu.
– Capitães não têm dinheiro para comprar telefones – replicou Montagna,
em tom áspero.
Percebi que meu interlocutor era um típico oficial lacerdista.
No dia seguinte, um sábado, eu descansava em minha casa, à espera da
evolução dos acontecimentos, quando recebi à noite um telefonema do
governador Negrão de Lima, meu amigo de muitos anos.
– Samuel, o Exército está comovido com o seu comportamento – informou
Negrão de Lima.
Contou-me, então, que fizera naquela tarde uma visita ao general Sizeno
Sarmento, comandante do I Exército (além de lacerdista furioso), e ouvira
palavras amáveis a meu respeito. “Veja, governador, que homem de bem é
esse Samuel Wainer”, dissera-lhe Sizeno. “Ele se apresentou
espontaneamente, em deferência ao I Exército. É uma pessoa que merece
nosso respeito.” Percebi que tomara a decisão correta, e tive um tranquilo fim
de semana.
Na manhã de segunda-feira ligou-me o capitão Montagna. Depois de
trocarmos algumas amabilidades, ele me perguntou se poderia comparecer ao
comando do I Exército no começo da tarde. Cruzei no portão com Chico
Buarque, que acabara de ser interrogado. Instalado numa sala, aguardei a
chegada do general que me ouviria, em meio a algumas provocações feitas
por oficiais que entravam e saíam. Um deles, um certo coronel Viana, que
usava pincenê, examinou-me com expressão hostil e quis saber:
– É o senhor, então, que é o Wainer? É o senhor que faz com que a gente
tenha de sair com nossos tanques a cada cinco anos para defender a Nação e
depois devolver o poder aos civis?
Suportei as provocações em silêncio, até que fui encaminhado a outra sala,
em companhia de dois coronéis (um deles era esse Viana). Sentado numa
mesa muito comprida, esperei pelo general Álvaro Henrique Americano, uma
flor da extrema-direita. Quando entrou na sala, vi que se tratava de um
homem muito bonito – no Brasil, aliás, oficiais reacionários costumam ser,
além de brancos, muito bonitos.
O general sentou-se à minha frente. Estendi-lhe a mão, ele me negou o
cumprimento, fiquei com o braço no ar. Perguntou-me que espécie de
funções exercia na Última Hora. Dei-lhe as informações necessárias. Ele
indagou se eu estava disposto a esclarecer a origem dos meus bens. Achei a
pergunta bastante oportuna – ali estava uma questão que não me incomodava,
até porque meu patrimônio era insignificante –, e sugeri que fossem
requisitados os documentos em poder da CPI que havia vasculhado minha
vida. Seguiram-se outras perguntas da mesma família, e acabei dispensado
num clima de cordialidade. Os coronéis me forneceram alguns telefones,
recomendando novamente que recorresse a eles se sobreviessem problemas.
E reafirmaram, mais uma vez, que eu estava sob a proteção do Exército
brasileiro. Fiquei muito feliz por não ter ido para a prisão, mas, à saída do
depoimento, fiz uma previsão a Etcheverry, que me acompanhara ao
comando do I Exército: teríamos dias difíceis pela frente. Era evidente que os
militares me cobrariam um preço pela proteção oferecida naquelas
circunstâncias. Mais do que nunca, estávamos expostos aos humores dos
quartéis.
O começo da cobrança que eu temia não demorou. Alguns dias depois, o
coronel Viana convocou-me para um encontro em seu gabinete. Abriu a
conversa lembrando que eu lhe assegurara que meu jornal não se orientava
por interesses políticos – publicava o que era importante, o que merecia ser
noticiado. Feita a introdução, o coronel informou que o I Exército havia
promovido um concurso para escolher uma poesia que respondesse à canção
Pra não Dizer que não Falei de Flores, de Geraldo Vandré, o grande sucesso
de um festival de música popular brasileira realizado em 1968. Vandré
compusera uma espécie de manifesto antimilitarista, deixando os quartéis
excitadíssimos. O coronel Viana esclareceu que o concurso mobilizara cerca
de oito mil aspirantes, e que lhe parecia muito importante divulgar na
primeira página da Última Hora o texto premiado com o primeiro lugar. O
autor era um certo aspirante Bastos, que produzira um soneto. Tratava-se de
um texto primário, uma coisa ridícula. Lembro-me de um trecho: “Tu,
Vandré, que andas pela noite no chopinho do Castelinho, que sabes da nossa
Pátria?” O coronel leu o poema com lágrimas nos olhos, muito emocionado.
Passou-me uma cópia, perguntando se eu estava disposto a publicá-la. Elogiei
o poema, dizendo que um texto de tal qualidade merecia a primeira página.
Ele pareceu duvidar do que ouvia. Reafirmei que não estava prestando favor
algum às Forças Armadas: eu achava essencial mostrar que o Exército
soubera reagir e neutralizar a musiquinha de Geraldo Vandré.
Voltei à redação e comuniquei a meus auxiliares diretos o que se passara,
relatando-lhes o acordo celebrado com o coronel: o soneto teria de sair na
primeira página. A reação foi previsivelmente negativa, todos eles se
opuseram à publicação da obra do aspirante Bastos. Deixei claro que o
acordo só não seria cumprido se eu fosse demitido, o que estava fora de
cogitação. Se quisessem, eles que se demitissem, mas o soneto seria
publicado de qualquer forma. A crise acabou sendo contornada e, sem
grandes traumas, os versos do aspirante apareceram na primeira página da
Última Hora. Eu sabia, porém, que o I Exército continuaria a fazer cobranças,
o soneto em resposta a Vandré fora apenas o começo. Chegara a hora de
vender meu jornal, antes que as concessões exigidas pela necessidade de
sobreviver alcançassem um preço muito caro. Os pedidos dos militares
certamente prosseguiriam. Se me recusasse a atendê-los, a Última Hora seria
fechada. Se os atendesse, o jornal sofreria um terrível processo de
desfiguração. Assim, a única alternativa era passar adiante a empresa. Para
meu alívio, nesse exato momento surgiram pessoas dispostas a comprar a
Última Hora.
O grupo de empreiteiros que arrendara o Correio da Manhã, liderado por
Maurício Alencar, estava agora interessado em comprar a Última Hora,
manobra que lhe permitiria consumar um plano diabólico. A ideia desses
empreiteiros era esvaziar progressivamente o Correio da Manhã, cuja
tiragem caía dia a dia, transferindo para outro jornal, no caso a Última Hora,
todos os contratos que parecessem lucrativos. Graças ao contrato celebrado
com Niomar Moniz Sodré Bittencourt, esses empreiteiros poderiam utilizar
como bem entendessem a gráfica do Correio. Poderiam, por exemplo, utilizá-
la para imprimir outro jornal. Por que não juntar, e colocar a serviço dos seus
interesses, o equipamento do Correio e a marca da Última Hora?
A proposta de compra da Última Hora, formulada pelo advogado do grupo,
Frederico Gomes, representou a abertura de uma temporada de penosas
negociações. Eu não podia mostrar que tinha pressa em fechar negócio, o que
me colocaria em evidente desvantagem na transação, mas também não tinha
dinheiro para jogar com tranquilidade. Enquanto as conversas se arrastavam,
vi-me compelido a vender quadros, móveis, e a inventar promoções que
prolongassem a agonia do meu jornal. O que me restava era a marca Última
Hora, e era precisamente essa marca o alvo do grupo de empreiteiros que
negociava comigo. Eu precisava ganhar tempo, mas o tempo conspirava
contra mim.
A certa altura, pressionado pelas circunstâncias, decidi estabelecer um
preço e, baseado em cálculos inteiramente aleatórios, fixei em um milhão e
meio de dólares o valor da Última Hora. Não era muito. Com essa quantia eu
pagaria as dívidas trabalhistas da empresa e ainda ficaria com algum dinheiro
– os credores que se virassem, pensei. Os empreiteiros prometeram examinar
a proposta e, hábeis negociadores, permaneceram algum tempo em silêncio.
Tal silêncio me atormentava, já que os problemas financeiros da minha
empresa cresciam. Num determinado momento, percebi que estava prestes a
perder o respeito dos meus funcionários, todos compreensivelmente aflitos
com a iminência do naufrágio.
Não havia como controlar essas manifestações de desrespeito. Na porta do
elevador, por exemplo, um funcionário qualquer se aproximava de mim e
informava: “Minha mulher me disse que, se eu não conseguir dinheiro para
comprar leite, é melhor não voltar para casa.” Em seguida, eu sofria a
companhia de um ascensorista que me contemplava com maus olhos. A
situação era insustentável, até porque, embora não fosse rico, eu consolidara
a imagem do milionário, do homem que enriquecera no convívio com o
poder. Achava razoável que pensassem assim. Afinal, eu morava num
apartamento muito confortável na Zona Sul, frequentava lugares elegantes,
namorava mulheres famosas. Tinha, enfim, o perfil do bon vivant. Mas não
tinha dinheiro.
Em dezembro de 1971, vendi alguns painéis de Di Cavalcanti a Antônio
Gallotti e consegui os recursos necessários para aguentar por mais algumas
semanas o cerco dos empreiteiros, cuja estratégia era vencer-me pelo
cansaço. No começo de 1972, finalmente, Maurício Alencar concordou em
pagar o milhão e meio de dólares pela Última Hora, em 36 prestações.
Acertei com o advogado do grupo que a primeira prestação seria paga no dia
21 de abril daquele ano. Feito o acerto, senti uma indescritível sensação de
alívio. Com aquele dinheiro, eu poderia resolver os problemas financeiros
vividos pelos meus funcionários e tentar escrever com dignidade o epílogo da
história da Última Hora. A transação com o grupo de empreiteiros, porém,
reservava-me um último sobressalto, uma prova a mais de que eu estava
lidando com gângsters. No dia 20 de abril, menos de 24 horas antes da
consumação do negócio, cuja senha seria o pagamento da primeira prestação,
recebi em meu apartamento a visita de Maurício Alencar – era o chefe do
bando que me aparecia em pessoa.
– Aquele acordo já não vale mais – disse Maurício.
Contive minha perplexidade e perguntei-lhe o que acontecera. Ele
respondeu que, refeitas as contas, os integrantes do grupo que liderava
haviam concluído que as prestações eram demasiado elevadas. Por isso, o
negócio só poderia ser fechado se o preço fosse reduzido em um terço da
quantia estabelecida nas conversas anteriores. Maurício foi claro: era aquilo
ou nada.
Nunca fui um bom negociador. Além de faltar-me a frieza dos jogadores de
pôquer, um grande trunfo em transações comerciais, eu não sabia discutir
preços, não sabia dizer não. Naquele momento, porém, tive uma reação
inesperada até mesmo para mim, e disse a Maurício que ou ele pagava o que
ficara acertado ou não haveria negócio.
– Nesse caso, o negócio está desfeito – retrucou Maurício, que se levantou
imediatamente e saiu.
Fiquei gelado, suspeitando de que cometera a maior burrice da minha vida.
Fechado naquele apartamento, olhando para o mar, afundei-me em reflexões
sombrias. Como seria no dia seguinte? Como tocar o jornal se não havia
dinheiro sequer para comprar papel? Certamente ocorreria uma rebelião dos
funcionários, a redação se dispersaria. Era o naufrágio que eu temera.
Mas não foi assim. Perto da meia-noite, o telefone tocou e, ao atender, ouvi
a voz de Maurício Alencar, inteiramente de porre.
– Seu filho da puta! – saudou-me. – Você deve estar aí me gozando, porque
sabe que vou mesmo comprar o jornal.
Fiquei perplexo, e Maurício prosseguiu pedindo-me que o procurasse às
onze horas da manhã seguinte, com toda a papelada necessária para o acerto
final.
– Você ganhou a parada – rendeu-se Maurício, enfim disposto a pagar o que
eu queria.
Às 12 horas do dia 21 de abril de 1972, quando saí do escritório de Maurício
Alencar, a Última Hora já não era minha. A próxima edição seria rodada nas
oficinas do Correio da Manhã, com outra linha editorial, outra equipe, outra
alma. Fui para o prédio da Última Hora e convoquei meu pessoal para
comunicar-lhe o desfecho de um capítulo importantíssimo da história do
jornalismo brasileiro. Depois, sozinho no prédio, vazio, dei-me conta de que
a minha grande aventura terminara.
EPÍLOGO

Samuel Wainer afirma, em suas memórias, que o episódio da venda da


Última Hora assinalou o fim de sua grande aventura. Talvez tenha terminado
ali sua maior aventura; talvez. Mas o jornalista Samuel Wainer seguiria
escrevendo outros capítulos de sua melhor e mais fascinante reportagem: a
vida do homem Samuel Wainer.
Em 1971, esse incansável criador de publicações fundou a revista Domingo
Ilustrado, editada pela Bloch. Entre maio de 1973 e janeiro de 1975, numa
comovente demonstração de humildade, foi redator-chefe da Última Hora
paulista, então sob o controle do grupo Folhas. O pai do grande jornal
popular brasileiro aceitou voltar como assalariado à redação que fizera nascer
e entrar para a História. De novembro de 1975 a outubro de 1977, Samuel
concentrou seus múltiplos talentos na tentativa de consolidar o semanário
Aqui São Paulo. E, entre 1978 e 1980, foi editor assistente da Carta Editorial
e da Editora Três, espalhando seus textos, conselhos e ensinamentos por
diferentes publicações.
Nenhuma dessas atividades, todavia, pareceu orgulhá-lo tanto quanto um
pequeno espaço na página dois da Folha de São Paulo que tornou duas
iniciais – SW – populares em todo o Brasil e especialmente caras a milhares
de leitores. Essa coluna diária, à qual Samuel se dedicava com a paixão
obstinada de um artilheiro em busca do gol, apareceu pela primeira vez em
junho de 1977. E, pelos anos seguintes, revelaria um domador de palavras no
auge da maturidade, sábio e tranquilo, preocupado com o destino de seu país
e de seu povo.
Samuel Wainer morreu em São Paulo, em 2 de setembro de 1980.

Augusto Nunes

Você também pode gostar