Você está na página 1de 13

O CURRÍCULO COMO COMUNIDADE DE

AFETOS/AFECÇÕES.
Janete Magalhães Carvalho(*)

RESUMO
Aborda a temática do currículo como comunidade de afetos e afecções e a constituição de redes de
conversações e ações que criam novas formas de comunidade e que, nesse sentido, podem potencializar o
cotidiano escolar. Assume a ideia de "potência de ação coletiva" e toma como hipótese principal que essa
"potência" depende fundamentalmente da capacidade de indivíduos e grupos colocarem-se em relação para
produzirem e trocarem conhecimentos, resultando, então, no agenciamento de formas/forças comunitárias,
com vistas a melhorar os processos de aprendizagem e criação nas coletividades locais, bem como no interior
de redes cooperativas de todo tipo.
Palavras-chave: Currículo; Comunidade de afetos; Cotidiano escolar.

Objetivou este estudo1 abordar a temática do currículo como comunidade de afetos e


afecções e a constituição de redes de conversações e ações que criam novas formas de comunidade
e que, nesse sentido, podem potencializar o cotidiano escolar. Assumindo a ideia de "potência de
ação coletiva", tomamos como hipótese principal que essa "potência" depende fundamentalmente
da capacidade de indivíduos e grupos colocarem-se em relação para produzirem e trocarem
conhecimentos, produzindo, então, o agenciamento de formas/forças comunitárias, com vistas a
melhorar os processos de aprendizagem e criação nas coletividades locais, bem como no interior de
redes cooperativas de todo tipo, ou seja, debater os “possíveis” do currículo vivido a partir dos
conhecimentos, linguagens, afetos e afecções que estão em circulação nas práticas discursivas, em
redes de conversações e ações complexas no cotidiano escolar.

Desse modo, ao focarmos as práticas discursivas no cotidiano escolar, as entendemos


inseridas em todo um esforço coletivo, envolvendo a participação de múltiplos agentes sociais que,
direta ou indiretamente, contribuem para a melhoria das condições de vida de indivíduos e
populações. Entendemos assim, que a dimensão política se efetiva pelos fluxos de conhecimentos,
linguagens e afetos, enfim, em redes de trabalho informativo, linguístico e afetivo que ocorrem
buscando a emergência de outra concepção de público, de coletivo e de currículo.

(*)
Doutora em Educação, professora do Departamento de Educação, Política e Sociedade do Programa de Pós-
graduação em Educação da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Faz parte do Grupo de Pesquisa:
Currículos, cotidianos, culturas e redes de conhecimentos (PPGE/CE/UFES).
1
A comunicação apresentada neste texto reporta-se a livro de mesma autoria, a saber: CARVALHO, Janete Magalhães.
O cotidiano escolar como comunidade de afetos. Petrópolis: DP et Alii, 2009.

Revista Teias v. 13 • n. 27 • 75-87 • jan./abr. 2011 – CURRÍCULOS: Problematização em práticas e políticas 75


Desse modo, mesmo focando nosso trabalho no cotidiano escolar e no currículo vivido,
ressaltamos que ele deve ser visualizado como um elemento integrado a todas as redes mais amplas
de trabalho social que direta e indiretamente se enredam com os processos de produção de
subjetividades na sociedade capitalista.

Nesse sentido, buscamos uma aproximação da “materialidade” constitutiva da lógica das


redes de conhecimentos, linguagens, afetos/afecções que se enredam no cotidiano escolar,
reconhecendo e defendendo a natureza eminentemente micropolítica e conversacional do trabalho
em educação na constituição desse cotidiano escolar, em seus efeitos sobre a produção do currículo
escolar como redes de conversações e ações complexas.

Portanto, consideramos que o currículo escolar, como redes de conversações e ações


complexas, busca os possíveis da sua constituição fundado nas dimensões da conversação e da ação
para a recriação de saberes, fazeres e afetos da/na/com a escola, constituindo redes de “inteligência
coletiva”.

A noção de “inteligência coletiva” refere-se à ideia de "potência de ação coletiva" dos


grupos, tomando-se, como hipótese principal, que essa "potência" depende fundamentalmente da
capacidade de indivíduos e grupos interagirem, pondo-se em relação e, dessa forma, produzirem,
trocarem e utilizarem conhecimentos por meio de conversações. Incrementar a inteligência coletiva
significa, assim, melhorar os processos de aprendizagem e criação nas coletividades locais, bem
como no interior de redes cooperativas de todo tipo, organizadas a partir da formação de aparatos
cooperativos de produção e de comunidade (HARDT; NEGRI, 2006).

Partimos, desse modo, do pressuposto de que a constituição de currículos compartilhados


pode estar na origem de uma nova racionalidade, assim como do desejo de que essa constituição
possa avançar à medida que pela linguagem, pelo conhecimento, pelos afetos e afecções se
introduzam experimentações e exercícios de solidariedade cada vez mais vastos.

A pesquisa utilizou como aporte metodológico, a perspectiva de estudo de caso associada à


pesquisa cartográfica, acompanhando fluxos de conversações tecidas em redes de subjetividades
compartilhadas ao longo do ano de 2009, em encontros quinzenais de compartilhamento das
vivências dos professores e equipe técnico-administrativa de uma escola pública de ensino
fundamental. Tomou como questões que atravessam essa problemática: como se constitui o
currículo escolar fundado na dimensão da conversação para a recriação de saberes e fazeres da
escola como uma comunidade? Por onde deslizam as redes de conversações e ações no cotidiano

Revista Teias v. 13 • n. 27 • 75-87 • jan./abr. 2011 – CURRÍCULOS: Problematização em práticas e políticas 76


escolar? Como dar visibilidade às forças e fluxos de afetos e afecções que, ao produzirem bons
encontros constituem o “comum”- comunidade?

AS NOÇÕES DE COMUM E COMUNIDADE

Neste estudo, buscamos as possíveis aproximações entre a noção do comum na constituição


de comunidades singulares e cooperativas com as artes de fazer dos praticantes ordinários
(CERTEAU, 2001) do currículo em redes de conversações e ações complexas no cotidiano escolar.
Desse modo, destacamos as noções de comum e comunidade nas diferentes abordagens teóricas
enfocadas, buscando produzir, assim, um novo efeito de sentido.

O comum, para uma comunidade singular (DELEUZE; GUATTARI, 1995), seria, como
para a noção de comunidade cooperativa (NEGRI; HARDT, 2006, NEGRI, 2005, 2003), as
relações tecidas em redes de saberes, fazeres e poderes, nas quais se manifestaria pela capacidade
de a “multidão” (HARDT; NEGRI, 2006) assumir as condições biopolíticas da própria existência,
do próprio modo de trabalhar. Um comum fundamentalmente articulado com o movimento e a
comunicação das singularidades. O comum seria, nessa perspectiva, construído pelo
reconhecimento do outro, por uma relação com o outro, porque as redes de subjetividades e/ou a
“multidão” são constituídas por uma série de elementos que objetivamente estão em circulação e
que constituem o comum. Entretanto, a questão fundamental não é ser comum ou ser “multidão”,
mas construir “multidão”, construir comumente, como comunidade, no comum. Comunidade,
portanto, descentrada, sem núcleo central articulador, na qual os homens são singularidades e a
comunidade uma multidão de singularidades. As singularidades mantêm certamente sua força
própria, mas dentro de uma dinâmica relacional que permite construir, ao mesmo tempo, a si
mesmas e ao todo.

Nessa perspectiva, o sujeito é definido por sua relação com o conjunto, o que significa dizer
que o sujeito só tem subsistência na relação, e que as qualificações políticas podem chegar-lhe
somente do jogo da interação. Dessa forma, o comum vem a ser o reconhecimento de que, por trás
de identidades e diferenças, pode existir “algo comum”, isto é, “um comum” sempre que ele seja
entendido como proliferação de atividades criativas, relações ou formas associativas diferentes.

Em tais abordagens o comum não vem a ser o consenso, ou seja, adesão e alienação e/ou
identificação com um representante “porta-voz” de uma posição comum ou de uma posição
metafísica universal.

Revista Teias v. 13 • n. 27 • 75-87 • jan./abr. 2011 – CURRÍCULOS: Problematização em práticas e políticas 77


Constatamos assim, que, nas abordagens de comunidade aqui apresentadas e debatidas, a
linguagem, o trabalho vivo, a solidariedade e/ou a cooperação aparecem como elementos da
constituição do “comum” como algo que acontece na e em relação. As relações, por sua vez, ao
envolverem poderes, saberes, fazeres e afetos o fazem articulando conversações e ações produzidas
pelos praticantes ordinários do cotidiano em suas estratégias e táticas.

O CURRÍCULO COMO COMUNIDADE DE AFETOS/AFECÇÕES

Como dito, o estudo buscou analisar, com alunos, professores e pedagogos de uma escola
pública de ensino fundamental, no currículo escolar, a produção das práticas curriculares no
cotidiano escolar, tomando como campo de possibilidades a produtividade dialógica e, nesse
sentido, a problematização de um espaço/tempo singularizado e tecido com os fios da experiência
coletiva.

Dessa perspectiva, o currículo não pode ser visto como um espaço neutro ou não
problemático de desenvolvimento ou de mediação; como um mero espaço de possibilidades para o
desenvolvimento ou a melhoria do “autoconhecimento”, da “autoestima”, da “autonomia”, da
“autoconfiança”, do “autocontrole”, da “autorregulação”, etc., mas como produzindo formas de
experiência nas quais os indivíduos podem se tornar agentes coletivos.

Para Espinosa (2007), a afecção de um corpo (envolvendo tanto a dimensão física como o
mundo das ideias) pode produzir aumento ou diminuição da potência de agir e, dessa forma, do
ponto de vista dos afetos (bons e maus encontros), a distinção entre paixões tristes e paixões alegres
remete a uma distinção entre paixões e ações; mas as ações são baseadas não na servidão, mas na
compreensão obtida pelas noções comuns e pela intuição intelectual, ou seja, pelo uso da razão.
Portanto, razão, afetos e afecções estão intrinsecamente relacionados, pois, pelas afecções, podemos
aumentar nosso grau de compreensão e, escapando das paixões e da alienação, produzirmos ações
reflexivas sociais e comunitárias (constituição do comum).

Sendo assim, é necessário evitar a mutilação da alegria de aprender, do prazer de criar nas
salas de aula das escolas e, nesse sentido, devemos explorar o currículo como um “acontecimento”
vivido nele mesmo. O currículo muda à medida que nos envolvemos com ele, refletimos sobre ele,
consideramos sua complexidade tecida em rede de conversações e agimos em direção à sua
realização, buscando nos afetos e afecções a potência inventiva de um currículo não burocratizado e
normalizado.

Revista Teias v. 13 • n. 27 • 75-87 • jan./abr. 2011 – CURRÍCULOS: Problematização em práticas e políticas 78


Já vimos que a ética deve ser concebida como uma prática, pois ethos é uma maneira de ser.
Assim, a ética se coloca nas e com as relações entre as pessoas e na relação das pessoas consigo
mesmas, e, nesse sentido, a educação do público se faz por uma prática de conversação, e o
currículo é mais que uma conversação, pois é uma esfera de ação.

Assim, falar sobre o cotidiano escolar e currículo como coletivo atravessado por linguagens,
conhecimentos, afetos/afecções implica acompanhar movimentos que vão transformando a cultura
da escola, fortalecendo a criação coletiva e individual, ou seja, para o questionamento dos
“possíveis” do coletivo escolar constituir-se nas dimensões pessoal, profissional e coletiva de forma
processual e relacional.

Desse modo, a conversação, estabelecida no espaço/tempo do cotidiano escolar, potencializa


a inteligência coletiva, o trabalho material e imaterial, a aprendizagem de alunos e a formação
contínua de professores, pois incide sobre os “múltiplos contextos cotidianos” (ALVES, 2001) em
que vivenciamos as práticas discursivas em sua tensão permanente entre saberes, poderes e a ética.

A conversa participa, então, de redes de comunicação onde se produzem, interpretam e


medeiam histórias. Dependerá do processo de ouvir e ler conversas, de conversar, de mesclar
conversas, de contrapor algumas conversas a outras, de participar, em suma, desse gigantesco e
agitado conjunto de conversações que é a cultura e a política. A constituição narrativa da
experiência de si não é algo que se produza num diálogo íntimo do eu consigo mesmo, mas em um
complexo processo de conversações entre textos e contextos, cuja fabricação não se faz sem
conflitos.

Visto que os poderes, saberes e a ética são domínios interpenetrados e atravessados entre si,
considerando esse entrelaçamento, apresentamos a seguir, algumas,2 dentre as inúmeras
problematizações contidas nas conversações dos professores, dos alunos e da equipe técnico-
administrativa, que expressam dimensões da inteligência coletiva, do trabalho material e imaterial
em suas redes de relações de afetos, conhecimentos, informação, ou seja, de trabalho cognitivo,
linguístico e afetivo-emocional.

As conversações abordaram, em especial, as temáticas da necessidade de participação para


que a escola venha a se constituir como um coletivo e/ou uma comunidade cooperativa,
compartilhada e, para tanto, da necessidade de superação do individualismo nos trabalhos e nas
relações interpessoais. Nesse sentido, destacamos, dentre outras, a seguinte conversação:

2
Neste capítulo, apresentamos apenas um breve registro de algumas das conversações, visto que não seria possível a
transcrição dos registros efetivados ao longo dos encontros realizados, considerando os limites desta comunicação.

Revista Teias v. 13 • n. 27 • 75-87 • jan./abr. 2011 – CURRÍCULOS: Problematização em práticas e políticas 79


X3. A questão do tempo é meio complicada mesmo, porque são muitas atividades e, como a escola é
muito grande, são 14 turmas, se não tiver uma pessoa para desenvolver essa atividade, com o
perfil adequado, com essa tarefa exclusiva, nós não conseguiremos unir as pessoas. É necessário
alguém que articule o trabalho coletivo. As pedagogas não conseguem fazer isso, pois estão
envolvidas no pedagógico e não dá tempo.
Y. Acho que temos que ter um profissional responsável para conduzir o trabalho coletivo. Nós, que
estamos dentro da sala, saímos iguais loucos para ir embora. Então, é necessário ter alguém que
procure o professor e que faça esse encaminhamento, senão não acontece, pois já estamos
separados em salinhas, com cada um dentro do seu universo, não dá para sair, pois o tempo todo
é praticamente ocupado com atividades-aula. Tem que ter uma pessoa para cobrar e organizar os
projetos coletivos.

V. Eu vejo que é possível fazer por turno, cavando um espaço nos 200 dias letivos. Tipo assim, se
estamos fazendo agora reuniões quinzenais, deveríamos estar fazendo semanais, depois do
recreio até o meio-dia para se produzir uma coisa substancial, uma vez que esse horário das
11h30min às 12h é improdutivo. Como reunir todas as pessoas e esperar que se concentrem
depois de um dia letivo? É muito difícil!
A. Acho que temos duas possibilidades: de um trabalho voluntário extra, nos sábados, ou, como corpo
coletivo, bancarmos, dentro do horário dos alunos, esse espaço dentro dos 200 dias letivos. Com
relação ao planejamento individual, eu acho que a soma das partes não dá o todo. Talvez um
planejamento individual se torne muito mais frutífero na medida em que aconteça com o
pedagogo ou sem o pedagogo, mas a partir de uma proposta coletiva. Eu acho que, no conjunto,
com uma troca de ideias e de sugestões, com o compartilhamento de ideias, talvez seja mais
frutífero o planejamento coletivo que o individual, que na minha visão, adianta muito pouco,
sendo quase um atendimento psicoterapêutico, que cansa demais o pedagogo e que acrescenta
pouco ao corpo coletivo. Uma hipótese seria que esse trabalho individual acontecesse quando o
professor solicitasse, a partir de uma necessidade criada no âmbito de necessidades coletivas e
não de supostas deficiências individuais.

Outra problemática bastante acentuada nas conversações foi a da necessidade para


implantação do trabalho coletivo da gestão participativa na escola. Como ilustração, selecionamos,
dentre outras, a seguinte conversação:

B. Com relação ao trabalho coletivo e à gestão participativa, uma das coisas necessárias é garantir a
representação dos vários segmentos da escola e da comunidade no planejamento e execução do
Planejamento Político Pedagógico (PPP), visto que, geralmente, nas escolas, é raro você ver
representantes de pais e alunos, do próprio pessoal de apoio da escola, dos vários segmentos que
estão presentes no cotidiano da escola na elaboração do PPP. Eles não têm voz na elaboração do
documento da escola. Uma maior participação dos representantes de turma no Conselho de
Classe foi feita este ano, com o aluno representante coletando informação dos demais e trazendo
para a discussão no Conselho. É necessário tomar decisões coletivamente, assim como cumprir

3
Optamos por caracterizar as falas por letras que correspondem aos sujeitos que participaram do processo de pesquisa,
visando a não identificação do cargo ou função. Nesse sentido, algumas letras se repetem, pois se referem ao mesmo
protagonista.

Revista Teias v. 13 • n. 27 • 75-87 • jan./abr. 2011 – CURRÍCULOS: Problematização em práticas e políticas 80


as normas definidas pelo coletivo da escola. Humanizar o ambiente escolar com o envolvimento
de todos os atores da comunidade escolar. Em suma, a gente acha que o ingrediente básico é
político-afetivo e, em termos de gestão, é garantir uma participação coletiva.

C. Eu acho que, mesmo quando acontece esse desejo da gestão compartilhada, desse poder socializado,
nós encontramos dificuldades, porque compartilhar poderes e socializar poderes significa,
também, que você está dando ao outro responsabilidade. Percebemos que o indivíduo se
amedronta diante do poder de compartilhar responsabilidades que estão sendo dadas a ele.
Sentimos, também, que as pessoas preferem que não haja isso, pois preferem que tudo já esteja
estabelecido e têm medo desse desejo, dessa responsabilidade. Na questão do ensino e
aprendizagem, nós ainda temos a concepção de que esse poder é delegado pelo professor ao
aluno pelo conhecimento que ele detém, mas que os professores não dão importância ao poder e
ao saber que o aluno tem e traz da sua realidade. Percebemos que isso ainda acontece, embora
estejamos tentando fazer de uma maneira diferente, visto, também, que, na sociedade em geral,
ainda se valoriza muito mais o conhecimento do professor em sala de aula, dentro dos currículos.
E o poder que o aluno tem onde está? Esse saber que o aluno traz, nas relações cotidianas? Foi
discutido no grupo que muitas vezes o que acontece é que um grupo fica decidindo questões
relativas à direção, CTA, corpo discente e docente. Porém, o corpo discente, no caso os pais e
alunos, fica à margem das decisões da escola, mesmo tendo na escola o Conselho Escolar com
representação dos vários segmentos, mas ainda fica difícil de estar trazendo pessoas para
discussão e para compartilharmos este poder. Quando foi falada a questão de compartilharmos e
socializarmos o poder, as pessoas ainda têm medo desta socialização, pois isso acarreta
responsabilidades.
L. A escola vem de uma cultura vertical, em que as pessoas não estão muito acostumadas a isso. Já
escutei comparações como: antigamente não era assim, essa gestão era assim; então temos essa
dificuldade, podendo ser pelo costume de como a direção era vista, a ideia do poder que o diretor
e a diretora têm. Na verdade, esse poder é de todo mundo; o diretor não está sozinho, ele não
pode ser gestor sozinho.

A problemática das relações interpessoais e afetivas foi bastante abordada nas conversações,
assim como o reconhecimento da necessidade de descentramento do eu de modo a permitir o outro,
aquele outro que também habita em mim como portador de conhecimentos, valores, afetos. Assim,
com relação ao cuidado de si e do outro, destacamos a seguinte conversação:

J. Vocês diriam que as relações professor-aluno aqui na escola, no dia a dia, são horizontais, verticais?
C. Para mim, essa relação ainda é vertical, embora tentemos fazer de forma horizontal. Ainda acho que
nós usamos muito do poder que o conhecimento nos dá, ainda não valorizamos o conhecimento
do aluno, impomos ao aluno que ele tenha um amadurecimento, responsabilidade, quando ele
ainda não está pronto para ter essa responsabilidade. Queremos que o aluno aprenda sob o nosso
ponto de vista, e não do dele, que ele tenha o nosso tempo de aprender e não o tempo dele. Essas
coisas não são muito consideradas, mesmo que estejamos falando muito sobre isso, nós
consideramos ainda muito o lado da relação professor-aluno e o processo de ensino-
aprendizagem do ponto de vista do professor, do tempo do professor, do que o professor
pretende. Não só na nossa escola, mas nas escolas em geral, e nós estamos procurando mudar.

Revista Teias v. 13 • n. 27 • 75-87 • jan./abr. 2011 – CURRÍCULOS: Problematização em práticas e políticas 81


M. Até porque, na sociedade, eles são tratados desta forma vertical, e, quando procuramos tratá-los da
forma horizontal, até os alunos ficam confusos.
H. No ano passado, estava muito aborrecida com a escola, queria até sair, mas não houve a possibilidade
de saída. Com isso, decidi que não iria mais sofrer. Então, estou mudando a minha forma de
atitude com os alunos: eu não chego mais na sala tensa, eu espero, eu não grito mais, eu estou
cansada disso. Converso muito com eles, da questão do que a gente provoca no outro, eu falo que
eu não quero ser culpada em provocar dor no outro. Que dor é essa? É a dor da implicância, do
aborrecimento do outro, a dor física. Percebo que as minhas aulas estão mais calmas, os meninos
estão mais calmos, eu estou compartilhando a minha dor com eles sobre isso; eu observo,
também, que eles estão sentindo o desejo de mudar, até eles não estão aguentando mais a questão
do barulho. Como eles ficam agitados com isso e como eles ficam calmos quando todo mundo
está calmo. Não é essa questão, que tem que ficar sentado e calado, mas de esperar o outro, de
ouvir e ser ouvido. E como eles têm dificuldade de serem ouvidos, ao mesmo tempo em que eles
são 40, e só temos 50 minutos. Estou tentando mudar a minha prática individual e
compartilhando com meus colegas, buscar uma mudança coletiva.

Assim, buscamos, no cotidiano escolar, pela conversação, a perspectiva de cartografar as


linhas de um dispositivo, entrando nelas (nas linhas) e nos deixando atravessar por elas.

Os resultados indicaram que as redes de subjetividades compartilhadas, colocadas nas


conversações, como dores e esperanças, expressaram a pulsação do humano, ou seja, dos
“possíveis” pela troca, pela escuta, pelo enfrentamento, como formas de agenciamento de um corpo
político de outra ordem ou natureza. Apontam que, para avançar, esse corpo político deverá se
manifestar buscando viver as situações e, dentro delas, procurando produzir pela criação e
experimentação.

UM SOBREVOO SOBRE ALGUMAS POSSÍVEIS IMPLICAÇÕES PARA O


CURRÍCULO

Cumpre considerar que, num currículo como processo de conversação e ação complexa, o
conhecimento acadêmico, a subjetividade e a sociedade estão inextricavelmente unidos. É essa
ligação, essa promessa de educação para as nossas vidas privadas e públicas que a teoria do
currículo deve elaborar, persistindo na causa da educação pública, para que um dia as escolas
possam trabalhar a diferença e afastar a exclusão e a desconexão. Quando assim fizermos, as
escolas não serão mais fábricas de competência e de conhecimento, nem negócios acadêmicos, mas
escolas: locais de educação para a criatividade, a erudição, a intelectualidade interdisciplinar, os
saberes transversais, a comunicação, a afetividade cooperativa, a forma de afetar e ser afetado na
produção de cooperação para o trabalho coletivo.

Básicas, nesse sentido, e para o engendramento de movimentos singulares no cotidiano


escolar, são as criações coletivas, esse movimento indica o fluxo dos “possíveis” de um cotidiano

Revista Teias v. 13 • n. 27 • 75-87 • jan./abr. 2011 – CURRÍCULOS: Problematização em práticas e políticas 82


inventivo e, assim, do agenciamento de uma inteligência coletiva que problematize e crie outros
singulares modos de trabalho imaterial (cognitivo, linguístico e afetivo).

É nesse desejo social da coletividade definida como um corpo político, que se inscreve a
perspectiva do currículo como conversação e ação complexa conectada com uma produção de
subjetividade inventiva/criativa.

Esse corpo político se manifestaria em uma ação problematizada pela conversação, meio
potencial agenciador de outras práticas. As conversações, nesse sentido, remetem a novos
questionamentos das situações vividas e, dentro das situações, potencializam, pela criação e
experimentação, a possibilidade do singular. A ação de grupos e indivíduos visaria a uma
construção coletiva na e pela qual procuraria, coletivamente, ser um vetor de produção de
resistência e/ou do campo dos possíveis de libertação das misérias do contexto social derivadas da
sociedade de controle do “sistema maquínico capitalista” (DELEUZE; GUATTARI, 1995).

Como já bastante frisado, perspectivar o currículo como redes de conversações e ações


complexas remete à compreensão de que conhecimentos, informações, signos, significações, afetos
e afecções são produtos das relações estabelecidas com os outros e dos outros entre eles, evitando,
desse modo, a burocratização e normalização de indivíduos ou grupos de indivíduos tomados de
forma abstrata e fictícia.

Sendo assim, a perspectiva é processual, visto não ser possível o estabelecimento de nenhum
consenso sobre o que venha a ser o “currículo ideal”. Será na relação que a dimensão política do
pedagógico será estabelecida. Relação esta que se processará não apenas entre conhecimentos,
linguagens, afetos e afecções e os entes educativos inseridos no cotidiano escolar, pois atravessará
outros entes e instâncias com as quais o currículo vivido estabelecerá conexões e ações.

No âmbito do currículo escolar, propomos uma formação orientada a fazer com que
professores(as) possam conversar-conversar, alunos e professores possam conversar-conversar,
escolas e outras instâncias possam conversar-conversar, considerando a alteridade, de modo que
possibilite a conversação dos outros com eles mesmos. Assim, para além de conhecer
“textualmente” o outro, independentemente do saber científico acerca do outro, é preciso poder
vincular/compartilhar experiências de uns com as experiências dos outros, visando a superar o
discurso somente racional para que sejam estabelecidos encontros que potencializem os saberes,
fazeres e afetos constituindo um movimento da comunidade educativa que outorgue alternativas
possíveis e sensíveis.

Revista Teias v. 13 • n. 27 • 75-87 • jan./abr. 2011 – CURRÍCULOS: Problematização em práticas e políticas 83


O que caracterizaria essa “técnica de conversa” seria o “acolhimento-diálogo” no sentido
mais amplo possível, correspondendo àquele componente das conversas que se dá nos trabalhos em
que identificamos, elaboramos e negociamos as necessidades possíveis de virem a ser satisfeitas.
Deve-se, desse modo, considerar o trabalho com o currículo no cotidiano escolar, como uma rede
em que o acolhimento perfaz o funcionamento da rede, definindo “[...] a dimensão pragmática do
encontro, os domínios de ação (emoções, afetos) e de significação (linguagem, conhecimento) e as
utilizações possíveis do próprio encontro”. (TEIXEIRA, 2008, p. 4).

Cabe destacar que a “técnica da conversa” é, antes de tudo, a arte da conversa, e sua
finalidade não é homogeneizar os sentidos fazendo desaparecer as divergências, mas procurar
emergir a convergência das/nas/com as diferenças.

Compreender que nós, seres humanos, existimos como tal no entrelaçamento de muitas
conversações, em muitos domínios operacionais distintos, que configuram muitos domínios de
realidades diferentes, é particularmente significativo, porque nos permite recuperar o emocional
como um âmbito fundamental dos humanos, no fluir do coemocionar dos membros de um grupo
particular.

Nesse sentido, para Teixeira (2008), uma técnica de conversa parece se caracterizar
primordialmente por um conjunto de disposições ético-cognitivas, pela aceitação de um conjunto de
pressupostos e predisposições no diálogo com o outro, o que define, a rigor, seus domínios de ação
e de significação, correspondendo a determinados “estados do corpo”, que Maturana (1997)
denomina de emoções e afetos.

E o que são redes de trabalho afetivo? Segundo Hardt (2003), são redes de produção de
afetos que se constituem como a própria produção de redes sociais, de comunidades, de formas de
vida (biopoder), de produção de subjetividades (individuais e coletivas) e de sociabilidade.

Importa, nesse sentido, considerar a natureza dos vínculos estabelecidos no processo


curricular, não deixando, entretanto, de vislumbrar a dinâmica global das redes, atentando para os
processos engendrados no cotidiano escolar como acontecimentos mais localizados que permitem
uma melhor compreensão da natureza íntima do vínculo, elemento sem o qual as próprias redes não
existiriam.

Em termos de conversação, há, de fato, muitas outras possibilidades de se alcançar “noções


comuns” nas relações, visto que as conversações se constituem não apenas como veículo para se
chegar a um conjunto de acordos ou consensos, mas tem um fim em si mesmas na medida em que
se trata do primeiro produto material partilhado daquela relação. “Em qualquer caso, entretanto,

Revista Teias v. 13 • n. 27 • 75-87 • jan./abr. 2011 – CURRÍCULOS: Problematização em práticas e políticas 84


reconhece-se o sucesso do encontro em seus resultados afetivos, sempre que os corpos em presença
experimentarem afetos aumentativos de alegria e potência”. (TEIXEIRA, 2008, p. 9-10).

São, portanto, os afetos que dão consistência aos vínculos e/ou instituem os laços sociais
pela confiança recíproca estabelecida.

Fundamental, assim, no currículo vivido no cotidiano escolar, é o estabelecimento de


confiança recíproca como base para a ocorrência da aprendizagem configurada como uma “zona de
comunidade” que necessita ser potencializada.

Ora, sabemos que, no trabalho em educação, não se pode sequer falar numa relação de
aprendizagem-ensino sem que haja uma relação de confiança. Mas tampouco as relações amorosas
ou sociais que possam ser ditas “saudáveis” prescindem de relações de confiança. E dizer isso não é
pouco numa época em que quase tudo se volta para maximizar as relações de desconfiança, visto
que, pela mídia, pelo saber economicista, pela tirania totalitária, pelos índices de todo tipo,
ignorando os canais de circulação de solidariedade, de confiança no outro e na vida.

Nesse sentido, estão em circulação contínua os discursos que estabelecem a desconfiança em


relação ao outro, especialmente, em relação ao estranho, seja o não homogeneizado pelos
mecanismos de captura e produção de subjetividade serializada, seja simplesmente o estrangeiro.
Enfim, um discurso que se alimenta de nossa tristeza, porque não existe terror que não contenha
uma espécie de tristeza coletiva como base (DELEUZE, 1992).

Desse modo, a conquista da confiança é um grande avanço para o estabelecimento de “zonas


de comunidade”, entretanto, no sentido espinosiano, tornar-se-ia necessário avançar para consolidar
e efetivamente constituir essa “zona de comunidade”, ou seja, conhecer o que “[...] é mais difícil:
aquilo que nos outros é diferente e corresponde a sua ‘zona de singularidade’. Porque é preciso uma
potência ainda maior para se conhecer, nos outros corpos, aquilo que não nos convém”.
(TEIXEIRA, 2008, p. 12).

Sendo assim, na prática, o que tende a ocorrer e o que necessitamos buscar? Ir além, ou seja,
não mais buscar o que no outro se assemelha a nós, mas o que no outro é irredutível; sua diferença
absoluta, sua singularidade radical.

Somos, assim, desafiados a aceitar “o outro como um legítimo outro” (MATURANA,


1997). Nessas novas zonas, passamos a experimentar novas intensidades, às quais fomos
conduzidos pelos afetos de confiança, mas que já correspondem a novos afetos aumentativos que
anunciam, por sua vez, outros modos de existência, em que nos tornamos a causa última de nossas
paixões, em que entramos plenamente na posse de nossa potência.

Revista Teias v. 13 • n. 27 • 75-87 • jan./abr. 2011 – CURRÍCULOS: Problematização em práticas e políticas 85


E o que é esse afeto, essa paixão que nos predispõe a aceitar o outro como um legítimo
outro, senão o já mencionado acolhimento?

Envolveria cumplicidade, como todo e qualquer movimento de entrega e de diferenciação,


mas, também, o buscar produzir deslizamento do afeto de confiança para o acolhimento e formação
de outro modo de subjetivação, de produção de “zonas de comunidade” e compartilhamento do
espaço público.

Para Maturana (1997), assim como para Teixeira (2008), determinadas “técnicas de
conversa” contribuem para o estabelecimento da emergência do público, concebido como uma
democracia viva, fundada no respeito mútuo e, portanto, como produção afetiva em ato.

O trabalho dos profissionais da educação se articula a outras redes de trabalho e, sendo


assim, precisamos começar a investir, para a produção no âmbito dos currículos vividos no
cotidiano escolar, nessas redes indissociáveis, seja na sua dimensão conversacional, seja na
dimensão de sua produção afetiva, de modo que alunos, professores, pais e outros protagonistas
sociais efetuem suas potências, o que é o mesmo que contribuir para a potência da vida política dos
coletivos de que fazem parte.

As implicações políticas dessa perspectiva para o currículo como redes de conversações e


ações complexas no cotidiano escolar tornam-se evidentes, visto a busca das relações com os outros
agentes e instâncias que perpassam o trabalho educativo escolar.

Desse modo, se, por coletividade, não entendemos a coexistência física de pessoas num
território determinado, nem a coexistência sancionada pelos mesmos valores, mesma raça, mesmo
sexo, etc., mas o aparecimento da pluralidade e da diferença que interrompem a mesmidade, o uno,
então a coletividade deverá ser orientada pelo “plural simultâneo” (Espinosa, 1988). Como dito,
basicamente política, mas em outra lógica, ou seja, a que não diz o que é de modo universal ou o
que deve ser, mas força a comunidade a se transformar e que faz seu devir sempre aberto e
permeável, logo, sempre outro “possível”.

Revista Teias v. 13 • n. 27 • 75-87 • jan./abr. 2011 – CURRÍCULOS: Problematização em práticas e políticas 86


REFERÊNCIAS
ALVES, Nilda. Decifrando o pergaminho: o cotidiano das escolas nas lógicas das redes cotidianas. In: ALVES, N.;
OLIVEIRA, I. B. (Orgs.). Pesquisa no/do cotidiano escolar: sobre redes de saberes. Rio de Janeiro: DP et Alii Editora,
2001. p. 13-38.
CARVALHO, Janete Magalhães. O cotidiano escolar como comunidade de afetos. Petrópolis: DP et Alii, 2009.
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: I. Artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 2001.
DELEUZE, Gilles. Conversações. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Editora 34, 1995.
ESPINOSA, Bento de. Ética. Trad.: Tomaz Tadeu da Silva. Belo Horizonte: Autêntica, 2007.
ESPINOSA, Bento de. Tratado teológico-político. Trad.: Diogo Pires Aurélio. Lisboa: Imprensa Nacional, Casa da
Moeda, 1988.
HARDT, Michael. O trabalho afetivo. In: PELBART, Paul; COSTA, Roberto. (Org.). O reencantamento do concreto.
São Paulo: Hucitec, 2003. p. 143-157.
______; NEGRI, Antonio. Multidão. Rio de Janeiro: Record, 2006.
MATURANA, Humberto. A ontologia da realidade. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1997.
NEGRI, Antonio. Cinco lições sobre Império. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2003.
______. A constituição do comum. II SEMINÁRIO INTERNACIONAL CAPITALISMO COGNITIVO. Conferência
Inaugural. Rio de Janeiro: Rede Universidade Nômade (RITS). 24 e 25 de out. 2005.
TEIXEIRA, Ricardo Rodrigues. As redes de trabalho afetivo e a contribuição da saúde para a emergência de uma
outra concepção de público. Disponível em: <www.corposem.org/rizoma/redeafetiva>. Acesso em: 20 out. 2008.

Recebido em setembro de 2011


Aprovado em setembro de 2011

THE CURRICULUM AS COMMUNITY OF AFFECTS/AFFECTIONS


ABSTRACT
This article approaches the curriculum theme as an affects and affections community, and the nets making of
conversations and actions that create new community ways and which, therefore, may empower school
quotidian. It embraces the idea of “collective action power” and regards this “power” as fundamentally
dependent on individuals’ and groups’ capacity to engage themselves with producing and exchanging
knowledge, producing, then, the communitarian forms-forces dealing, aiming at improving the processes of
learning and creation of local collectives, as well as within any kind of cooperative nets.
Keywords: Curriculum; Community of affects; School quotidian.

Revista Teias v. 13 • n. 27 • 75-87 • jan./abr. 2011 – CURRÍCULOS: Problematização em práticas e políticas 87

Você também pode gostar