Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
AFETOS/AFECÇÕES.
Janete Magalhães Carvalho(*)
RESUMO
Aborda a temática do currículo como comunidade de afetos e afecções e a constituição de redes de
conversações e ações que criam novas formas de comunidade e que, nesse sentido, podem potencializar o
cotidiano escolar. Assume a ideia de "potência de ação coletiva" e toma como hipótese principal que essa
"potência" depende fundamentalmente da capacidade de indivíduos e grupos colocarem-se em relação para
produzirem e trocarem conhecimentos, resultando, então, no agenciamento de formas/forças comunitárias,
com vistas a melhorar os processos de aprendizagem e criação nas coletividades locais, bem como no interior
de redes cooperativas de todo tipo.
Palavras-chave: Currículo; Comunidade de afetos; Cotidiano escolar.
(*)
Doutora em Educação, professora do Departamento de Educação, Política e Sociedade do Programa de Pós-
graduação em Educação da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Faz parte do Grupo de Pesquisa:
Currículos, cotidianos, culturas e redes de conhecimentos (PPGE/CE/UFES).
1
A comunicação apresentada neste texto reporta-se a livro de mesma autoria, a saber: CARVALHO, Janete Magalhães.
O cotidiano escolar como comunidade de afetos. Petrópolis: DP et Alii, 2009.
O comum, para uma comunidade singular (DELEUZE; GUATTARI, 1995), seria, como
para a noção de comunidade cooperativa (NEGRI; HARDT, 2006, NEGRI, 2005, 2003), as
relações tecidas em redes de saberes, fazeres e poderes, nas quais se manifestaria pela capacidade
de a “multidão” (HARDT; NEGRI, 2006) assumir as condições biopolíticas da própria existência,
do próprio modo de trabalhar. Um comum fundamentalmente articulado com o movimento e a
comunicação das singularidades. O comum seria, nessa perspectiva, construído pelo
reconhecimento do outro, por uma relação com o outro, porque as redes de subjetividades e/ou a
“multidão” são constituídas por uma série de elementos que objetivamente estão em circulação e
que constituem o comum. Entretanto, a questão fundamental não é ser comum ou ser “multidão”,
mas construir “multidão”, construir comumente, como comunidade, no comum. Comunidade,
portanto, descentrada, sem núcleo central articulador, na qual os homens são singularidades e a
comunidade uma multidão de singularidades. As singularidades mantêm certamente sua força
própria, mas dentro de uma dinâmica relacional que permite construir, ao mesmo tempo, a si
mesmas e ao todo.
Nessa perspectiva, o sujeito é definido por sua relação com o conjunto, o que significa dizer
que o sujeito só tem subsistência na relação, e que as qualificações políticas podem chegar-lhe
somente do jogo da interação. Dessa forma, o comum vem a ser o reconhecimento de que, por trás
de identidades e diferenças, pode existir “algo comum”, isto é, “um comum” sempre que ele seja
entendido como proliferação de atividades criativas, relações ou formas associativas diferentes.
Em tais abordagens o comum não vem a ser o consenso, ou seja, adesão e alienação e/ou
identificação com um representante “porta-voz” de uma posição comum ou de uma posição
metafísica universal.
Como dito, o estudo buscou analisar, com alunos, professores e pedagogos de uma escola
pública de ensino fundamental, no currículo escolar, a produção das práticas curriculares no
cotidiano escolar, tomando como campo de possibilidades a produtividade dialógica e, nesse
sentido, a problematização de um espaço/tempo singularizado e tecido com os fios da experiência
coletiva.
Dessa perspectiva, o currículo não pode ser visto como um espaço neutro ou não
problemático de desenvolvimento ou de mediação; como um mero espaço de possibilidades para o
desenvolvimento ou a melhoria do “autoconhecimento”, da “autoestima”, da “autonomia”, da
“autoconfiança”, do “autocontrole”, da “autorregulação”, etc., mas como produzindo formas de
experiência nas quais os indivíduos podem se tornar agentes coletivos.
Para Espinosa (2007), a afecção de um corpo (envolvendo tanto a dimensão física como o
mundo das ideias) pode produzir aumento ou diminuição da potência de agir e, dessa forma, do
ponto de vista dos afetos (bons e maus encontros), a distinção entre paixões tristes e paixões alegres
remete a uma distinção entre paixões e ações; mas as ações são baseadas não na servidão, mas na
compreensão obtida pelas noções comuns e pela intuição intelectual, ou seja, pelo uso da razão.
Portanto, razão, afetos e afecções estão intrinsecamente relacionados, pois, pelas afecções, podemos
aumentar nosso grau de compreensão e, escapando das paixões e da alienação, produzirmos ações
reflexivas sociais e comunitárias (constituição do comum).
Sendo assim, é necessário evitar a mutilação da alegria de aprender, do prazer de criar nas
salas de aula das escolas e, nesse sentido, devemos explorar o currículo como um “acontecimento”
vivido nele mesmo. O currículo muda à medida que nos envolvemos com ele, refletimos sobre ele,
consideramos sua complexidade tecida em rede de conversações e agimos em direção à sua
realização, buscando nos afetos e afecções a potência inventiva de um currículo não burocratizado e
normalizado.
Assim, falar sobre o cotidiano escolar e currículo como coletivo atravessado por linguagens,
conhecimentos, afetos/afecções implica acompanhar movimentos que vão transformando a cultura
da escola, fortalecendo a criação coletiva e individual, ou seja, para o questionamento dos
“possíveis” do coletivo escolar constituir-se nas dimensões pessoal, profissional e coletiva de forma
processual e relacional.
Visto que os poderes, saberes e a ética são domínios interpenetrados e atravessados entre si,
considerando esse entrelaçamento, apresentamos a seguir, algumas,2 dentre as inúmeras
problematizações contidas nas conversações dos professores, dos alunos e da equipe técnico-
administrativa, que expressam dimensões da inteligência coletiva, do trabalho material e imaterial
em suas redes de relações de afetos, conhecimentos, informação, ou seja, de trabalho cognitivo,
linguístico e afetivo-emocional.
2
Neste capítulo, apresentamos apenas um breve registro de algumas das conversações, visto que não seria possível a
transcrição dos registros efetivados ao longo dos encontros realizados, considerando os limites desta comunicação.
V. Eu vejo que é possível fazer por turno, cavando um espaço nos 200 dias letivos. Tipo assim, se
estamos fazendo agora reuniões quinzenais, deveríamos estar fazendo semanais, depois do
recreio até o meio-dia para se produzir uma coisa substancial, uma vez que esse horário das
11h30min às 12h é improdutivo. Como reunir todas as pessoas e esperar que se concentrem
depois de um dia letivo? É muito difícil!
A. Acho que temos duas possibilidades: de um trabalho voluntário extra, nos sábados, ou, como corpo
coletivo, bancarmos, dentro do horário dos alunos, esse espaço dentro dos 200 dias letivos. Com
relação ao planejamento individual, eu acho que a soma das partes não dá o todo. Talvez um
planejamento individual se torne muito mais frutífero na medida em que aconteça com o
pedagogo ou sem o pedagogo, mas a partir de uma proposta coletiva. Eu acho que, no conjunto,
com uma troca de ideias e de sugestões, com o compartilhamento de ideias, talvez seja mais
frutífero o planejamento coletivo que o individual, que na minha visão, adianta muito pouco,
sendo quase um atendimento psicoterapêutico, que cansa demais o pedagogo e que acrescenta
pouco ao corpo coletivo. Uma hipótese seria que esse trabalho individual acontecesse quando o
professor solicitasse, a partir de uma necessidade criada no âmbito de necessidades coletivas e
não de supostas deficiências individuais.
B. Com relação ao trabalho coletivo e à gestão participativa, uma das coisas necessárias é garantir a
representação dos vários segmentos da escola e da comunidade no planejamento e execução do
Planejamento Político Pedagógico (PPP), visto que, geralmente, nas escolas, é raro você ver
representantes de pais e alunos, do próprio pessoal de apoio da escola, dos vários segmentos que
estão presentes no cotidiano da escola na elaboração do PPP. Eles não têm voz na elaboração do
documento da escola. Uma maior participação dos representantes de turma no Conselho de
Classe foi feita este ano, com o aluno representante coletando informação dos demais e trazendo
para a discussão no Conselho. É necessário tomar decisões coletivamente, assim como cumprir
3
Optamos por caracterizar as falas por letras que correspondem aos sujeitos que participaram do processo de pesquisa,
visando a não identificação do cargo ou função. Nesse sentido, algumas letras se repetem, pois se referem ao mesmo
protagonista.
C. Eu acho que, mesmo quando acontece esse desejo da gestão compartilhada, desse poder socializado,
nós encontramos dificuldades, porque compartilhar poderes e socializar poderes significa,
também, que você está dando ao outro responsabilidade. Percebemos que o indivíduo se
amedronta diante do poder de compartilhar responsabilidades que estão sendo dadas a ele.
Sentimos, também, que as pessoas preferem que não haja isso, pois preferem que tudo já esteja
estabelecido e têm medo desse desejo, dessa responsabilidade. Na questão do ensino e
aprendizagem, nós ainda temos a concepção de que esse poder é delegado pelo professor ao
aluno pelo conhecimento que ele detém, mas que os professores não dão importância ao poder e
ao saber que o aluno tem e traz da sua realidade. Percebemos que isso ainda acontece, embora
estejamos tentando fazer de uma maneira diferente, visto, também, que, na sociedade em geral,
ainda se valoriza muito mais o conhecimento do professor em sala de aula, dentro dos currículos.
E o poder que o aluno tem onde está? Esse saber que o aluno traz, nas relações cotidianas? Foi
discutido no grupo que muitas vezes o que acontece é que um grupo fica decidindo questões
relativas à direção, CTA, corpo discente e docente. Porém, o corpo discente, no caso os pais e
alunos, fica à margem das decisões da escola, mesmo tendo na escola o Conselho Escolar com
representação dos vários segmentos, mas ainda fica difícil de estar trazendo pessoas para
discussão e para compartilharmos este poder. Quando foi falada a questão de compartilharmos e
socializarmos o poder, as pessoas ainda têm medo desta socialização, pois isso acarreta
responsabilidades.
L. A escola vem de uma cultura vertical, em que as pessoas não estão muito acostumadas a isso. Já
escutei comparações como: antigamente não era assim, essa gestão era assim; então temos essa
dificuldade, podendo ser pelo costume de como a direção era vista, a ideia do poder que o diretor
e a diretora têm. Na verdade, esse poder é de todo mundo; o diretor não está sozinho, ele não
pode ser gestor sozinho.
A problemática das relações interpessoais e afetivas foi bastante abordada nas conversações,
assim como o reconhecimento da necessidade de descentramento do eu de modo a permitir o outro,
aquele outro que também habita em mim como portador de conhecimentos, valores, afetos. Assim,
com relação ao cuidado de si e do outro, destacamos a seguinte conversação:
J. Vocês diriam que as relações professor-aluno aqui na escola, no dia a dia, são horizontais, verticais?
C. Para mim, essa relação ainda é vertical, embora tentemos fazer de forma horizontal. Ainda acho que
nós usamos muito do poder que o conhecimento nos dá, ainda não valorizamos o conhecimento
do aluno, impomos ao aluno que ele tenha um amadurecimento, responsabilidade, quando ele
ainda não está pronto para ter essa responsabilidade. Queremos que o aluno aprenda sob o nosso
ponto de vista, e não do dele, que ele tenha o nosso tempo de aprender e não o tempo dele. Essas
coisas não são muito consideradas, mesmo que estejamos falando muito sobre isso, nós
consideramos ainda muito o lado da relação professor-aluno e o processo de ensino-
aprendizagem do ponto de vista do professor, do tempo do professor, do que o professor
pretende. Não só na nossa escola, mas nas escolas em geral, e nós estamos procurando mudar.
Cumpre considerar que, num currículo como processo de conversação e ação complexa, o
conhecimento acadêmico, a subjetividade e a sociedade estão inextricavelmente unidos. É essa
ligação, essa promessa de educação para as nossas vidas privadas e públicas que a teoria do
currículo deve elaborar, persistindo na causa da educação pública, para que um dia as escolas
possam trabalhar a diferença e afastar a exclusão e a desconexão. Quando assim fizermos, as
escolas não serão mais fábricas de competência e de conhecimento, nem negócios acadêmicos, mas
escolas: locais de educação para a criatividade, a erudição, a intelectualidade interdisciplinar, os
saberes transversais, a comunicação, a afetividade cooperativa, a forma de afetar e ser afetado na
produção de cooperação para o trabalho coletivo.
É nesse desejo social da coletividade definida como um corpo político, que se inscreve a
perspectiva do currículo como conversação e ação complexa conectada com uma produção de
subjetividade inventiva/criativa.
Esse corpo político se manifestaria em uma ação problematizada pela conversação, meio
potencial agenciador de outras práticas. As conversações, nesse sentido, remetem a novos
questionamentos das situações vividas e, dentro das situações, potencializam, pela criação e
experimentação, a possibilidade do singular. A ação de grupos e indivíduos visaria a uma
construção coletiva na e pela qual procuraria, coletivamente, ser um vetor de produção de
resistência e/ou do campo dos possíveis de libertação das misérias do contexto social derivadas da
sociedade de controle do “sistema maquínico capitalista” (DELEUZE; GUATTARI, 1995).
Sendo assim, a perspectiva é processual, visto não ser possível o estabelecimento de nenhum
consenso sobre o que venha a ser o “currículo ideal”. Será na relação que a dimensão política do
pedagógico será estabelecida. Relação esta que se processará não apenas entre conhecimentos,
linguagens, afetos e afecções e os entes educativos inseridos no cotidiano escolar, pois atravessará
outros entes e instâncias com as quais o currículo vivido estabelecerá conexões e ações.
No âmbito do currículo escolar, propomos uma formação orientada a fazer com que
professores(as) possam conversar-conversar, alunos e professores possam conversar-conversar,
escolas e outras instâncias possam conversar-conversar, considerando a alteridade, de modo que
possibilite a conversação dos outros com eles mesmos. Assim, para além de conhecer
“textualmente” o outro, independentemente do saber científico acerca do outro, é preciso poder
vincular/compartilhar experiências de uns com as experiências dos outros, visando a superar o
discurso somente racional para que sejam estabelecidos encontros que potencializem os saberes,
fazeres e afetos constituindo um movimento da comunidade educativa que outorgue alternativas
possíveis e sensíveis.
Cabe destacar que a “técnica da conversa” é, antes de tudo, a arte da conversa, e sua
finalidade não é homogeneizar os sentidos fazendo desaparecer as divergências, mas procurar
emergir a convergência das/nas/com as diferenças.
Compreender que nós, seres humanos, existimos como tal no entrelaçamento de muitas
conversações, em muitos domínios operacionais distintos, que configuram muitos domínios de
realidades diferentes, é particularmente significativo, porque nos permite recuperar o emocional
como um âmbito fundamental dos humanos, no fluir do coemocionar dos membros de um grupo
particular.
Nesse sentido, para Teixeira (2008), uma técnica de conversa parece se caracterizar
primordialmente por um conjunto de disposições ético-cognitivas, pela aceitação de um conjunto de
pressupostos e predisposições no diálogo com o outro, o que define, a rigor, seus domínios de ação
e de significação, correspondendo a determinados “estados do corpo”, que Maturana (1997)
denomina de emoções e afetos.
E o que são redes de trabalho afetivo? Segundo Hardt (2003), são redes de produção de
afetos que se constituem como a própria produção de redes sociais, de comunidades, de formas de
vida (biopoder), de produção de subjetividades (individuais e coletivas) e de sociabilidade.
São, portanto, os afetos que dão consistência aos vínculos e/ou instituem os laços sociais
pela confiança recíproca estabelecida.
Ora, sabemos que, no trabalho em educação, não se pode sequer falar numa relação de
aprendizagem-ensino sem que haja uma relação de confiança. Mas tampouco as relações amorosas
ou sociais que possam ser ditas “saudáveis” prescindem de relações de confiança. E dizer isso não é
pouco numa época em que quase tudo se volta para maximizar as relações de desconfiança, visto
que, pela mídia, pelo saber economicista, pela tirania totalitária, pelos índices de todo tipo,
ignorando os canais de circulação de solidariedade, de confiança no outro e na vida.
Sendo assim, na prática, o que tende a ocorrer e o que necessitamos buscar? Ir além, ou seja,
não mais buscar o que no outro se assemelha a nós, mas o que no outro é irredutível; sua diferença
absoluta, sua singularidade radical.
Para Maturana (1997), assim como para Teixeira (2008), determinadas “técnicas de
conversa” contribuem para o estabelecimento da emergência do público, concebido como uma
democracia viva, fundada no respeito mútuo e, portanto, como produção afetiva em ato.
Desse modo, se, por coletividade, não entendemos a coexistência física de pessoas num
território determinado, nem a coexistência sancionada pelos mesmos valores, mesma raça, mesmo
sexo, etc., mas o aparecimento da pluralidade e da diferença que interrompem a mesmidade, o uno,
então a coletividade deverá ser orientada pelo “plural simultâneo” (Espinosa, 1988). Como dito,
basicamente política, mas em outra lógica, ou seja, a que não diz o que é de modo universal ou o
que deve ser, mas força a comunidade a se transformar e que faz seu devir sempre aberto e
permeável, logo, sempre outro “possível”.