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anais do capitalismo brasileiro

AMERICANAS, A FRAUDE TITÂNICA


Escândalo da gigante do varejo pôs em xeque a cultura de negócios de Lemann, Telles e Sicupira, três dos mais ricos
e incensados empresários do Brasil

Consuelo Dieguez | Edição 201, Junho 2023

S
ergio Rial ajustou a câmera do computador e encarou, do outro lado da tela, um grupo de
presidentes e diretores dos maiores bancos do país. Durante anos, ele fez parte daquele clube.
Construíra boa fama no mercado ao transformar o paquidérmico Santander, que presidiu de 2016 a
2022, em uma das instituições financeiras mais eficientes do Brasil. Talvez por isso, quando iniciou
às 12 horas do dia 13 de janeiro passado a conversa virtual com o seleto grupo de credores da Americanas
S.A., ele achou – como um banqueiro diria mais tarde – que ganharia apoio de seus antigos pares na busca
de uma saída para a empresa.

Dois dias antes, às 18h30, Rial havia divulgado um fato relevante que explodiu no mercado feito dinamite
em tanque de combustível – e pediu demissão da empresa que assumira em 2 de janeiro. Ficara apenas
nove dias no cargo. O fato relevante (nome que se dá ao comunicado que uma empresa de capital aberto
faz aos seus investidores e ao mercado em geral sobre algum assunto de suma importância) informava
que a Americanas, a gigante varejista controlada desde 1982 pelos três empresários mais ricos e
admirados do país, Jorge Paulo Lemann, Marcel Telles e Carlos Alberto Sicupira, tinha “inconsistências
contábeis” em seu balanço – da ordem de 20 bilhões de reais.

Afora o rombo colossal, a companhia acumulava uma dívida de cerca de 22 bilhões de reais com os
bancos e devia 6,67 bilhões de reais em debêntures. Tudo somado, o débito passava de 48 bilhões de reais,
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quase cinco vezes o patrimônio líquido da Americanas. Em resumo: a tradicional varejista, fundada em
1929, estava quebrada. O rombo descoberto por Rial ao assumir o comando da empresa já seria, por si só,
escandaloso em qualquer parte do mundo. Mas, nesse caso, escondia algo ainda mais grave. A expressão
“inconsistências contábeis” era, na verdade, um eufemismo para se referir a uma fraude titânica. A maior
fraude da história das corporações brasileiras.

Para a perplexidade geral, o golpe impetrado na varejista vinha ocorrendo há pelo menos dez anos. Pior.
As primeiras investigações indicaram que tudo aconteceu com o conhecimento e a participação do seu
então presidente, Miguel Sarmiento Gutierrez, homem de confiança dos controladores, que havia deixado
o posto em 31 de dezembro.

Sergio Rial iniciou a conferência virtual com os banqueiros pedindo calma. Não falava mais como
presidente da Americanas, e sim como representante dos controladores Lemann, Telles e Sicupira, que
haviam pedido a ele para ajudar a amenizar a crise. Seu desafio era explicar como tinha sido possível esse
rombo colossal de 20 bilhões de reais não aparecer no balanço. A operação – como ele contou – era
intrincada e se dera por meio do mau uso de um instrumento legal, conhecido no mercado como risco
sacado.

Trata-se de uma transação bastante comum entre os bancos e as empresas de varejo. Funciona assim: a
varejista compra um produto do seu fornecedor, mas, para não se descapitalizar, transfere a dívida para
um banco. O banco, então, paga o fornecedor à vista, mas com um pequeno desconto. A varejista passa a
dever para o banco, com o qual, apesar da incidência de juros, consegue dilatar os prazos de pagamento –
prazos largos que não conseguiria obter com seu fornecedor. Ao fazer essa transação, a varejista precisa
lançar a operação de risco sacado no seu balanço como dívida bancária. Afinal, o débito que tinha com o
fornecedor foi assumido pelo banco.

Foi aí que começou a fraude na Americanas: os gestores não contabilizavam tal dívida bancária no
balanço. Para todos os efeitos, era como se não existisse. Eles recorriam a essa maquiagem por dois
motivos. Primeiro porque, ao esconder as operações de risco sacado, a varejista conseguia apresentar um
balanço com lucro (falso) e não com prejuízo (verdadeiro). Durante dez anos, o balanço brilhou como se a
empresa fosse saudável e as ações da companhia se valorizaram, ano após ano, levando mais e mais
investidores a comprar seus papéis – o que acabava garantindo mais dinheiro no caixa. Os bons
resultados – fictícios – ajudavam a Americanas a se capitalizar e obter empréstimos junto aos bancos.

O segundo motivo era a ganância dos gestores. Como eram remunerados com base no desempenho da
companhia, os executivos embolsavam bônus estratosféricos quanto melhor fosse o resultado. Parte
desses bônus era pago em ações da varejista. Portanto, eles ganhavam duas vezes: com os bônus
recebidos pelo bom desempenho da empresa e com a valorização das suas ações, turbinadas pelos
números maquiados.

No último balanço da Americanas, publicado em setembro do ano passado, a dívida total de longo prazo
com os bancos, referente aos empréstimos normais que a companhia tomava, era de 19,3 bilhões de reais.
Para o mercado, não se tratava de um valor preocupante, dado que a companhia tinha um faturamento de
14 bilhões de reais por ano, e podia, portanto, arcar com seus compromissos sem dificuldade. Só que,
quando os 20 bilhões que estavam escondidos vieram à tona, em janeiro, a dívida real da Americanas com
os bancos passou da casa dos 40 bilhões. Era o dobro do que havia sido declarado oficialmente. E era
impagável.

Os banqueiros, evidentemente, farejaram o calote. Depois de ouvir as explicações de Rial naquela


conversa virtual, tiveram a certeza de que havia uma única solução possível para fugir do prejuízo: os
controladores teriam que colocar a mão no bolso e cobrir o buraco, coisa que ainda não estava sendo nem
cogitada pelo trio Lemann-Telles-Sicupira. Por isso, quando Rial encerrou sua explanação, propondo um
entendimento para encontrar uma saída, recebeu de volta uma sucessão de ataques, conforme
reconstituição feita pela piauí depois de ouvir dois dos presentes na videoconferência.

O primeiro cruzado veio, justamente, da instituição da qual Rial esperava mais solidariedade, o
Santander.
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– Rial – começou um diretor do banco –, para mim o que aconteceu aí é uma vergonha. É um negócio
inacreditável. A gente não consegue fechar matematicamente esse rombo.

– Eu concordo com o que foi dito – disse o presidente de outro banco de varejo. – Essa história da
Americanas é uma vergonha. Eu só estenderia um pouco mais: o que aconteceu aí foi uma fraude.

Era a primeira vez que a palavra “fraude” aparecia para definir o que se passara na varejista. Até então, o
caso estava sendo diplomaticamente tratado como uma crise contábil. Outro presidente de banco pegou o
mote e foi mais duro, resumindo, quase aos gritos, o pensamento do grupo de executivos:

– Porra, Rial, é um absurdo você estar aqui, não é? Porque não é com você que a gente quer conversar.
Nem na empresa você está mais. A gente quer falar com quem é responsável por isso e tem capital para
resolver.

Ele se referia, obviamente, aos controladores da Americanas. Lemann, Telles e Sicupira têm um
patrimônio conjunto estimado em 180 bilhões de reais. E, desde que o escândalo viera a público, se
mantinham mudos. Quando a palavra voltou para Rial, ele tentou contemporizar:

– Na próxima reunião, os controladores irão comparecer para negociar uma saída para o pagamento das
dívidas.

Foi a última vez que Rial se reuniu com os credores. Depois disso, ele foi dispensado das negociações.
Uma das razões é que Rial mantinha o seu posto de presidente do Conselho de Administração do
Santander e, por isso, temia-se que o banco pudesse receber informações privilegiadas. Já o anúncio de
Rial de que os controladores sentariam à mesa para conversar não se concretizou. Quem assumiu a
dianteira das negociações em nome da Americanas foram os advogados.

Desde o início do escândalo, o trio de controladores, até então considerado a máxima personificação da
eficiência do capitalismo brasileiro, passou a ser enxovalhado. Além da revolta com o prejuízo causado
pela Americanas e a forma atabalhoada como a crise foi anunciada, o mercado, que idolatrava Lemann,
Telles e Sicupira, sofreu um choque e começou a dar vazão a uma poderosa decepção.

A maior parte dos credores e gestores já havia trabalhado ou sonhara trabalhar em uma das empresas
controladas pelo trio de bilionários. A começar pelo Banco Garantia, fundado por Lemann em 1972, que
adquiriu uma aura mítica no mercado por ter mudado a forma como os bancos de investimento
operavam, embora tenha sido vendido às pressas para o Banco de Investimentos Credit Suisse (Brasil), em
1998, abatido pela crise asiática. Gerações de gestores tentaram emular o talento de Lemann, Telles e
Sicupira para os negócios, que ganharam visibilidade mundial com seu empreendimento mais radiante: a
criação da AB InBev, uma das maiores produtoras de cerveja do mundo, proprietária, entre outras
marcas, da Brahma e da Antarctica, da belga Stella Artois e da norte-americana Budweiser (esta última
em parceria com o megainvestidor Warren Buffett).

Entre muitos daqueles banqueiros da reunião com Rial, o sentimento de desencanto era perceptível, como
se a “divina trindade do mercado” os houvesse traído. “Se esses caras ficarem desmoralizados, quem
serão os nossos modelos de empresários bem-sucedidos? O velho da Havan?”, me perguntou um ex-sócio
do trio, que confessou ter passado a noite em claro conversando com um amigo para tentar entender o
que havia acontecido para que se produzisse uma fraude dessa magnitude. O economista André Lara
Resende, que trabalhou no Garantia no início da instituição, antes de assumir cargos de relevância no
governo Fernando Henrique Cardoso, se disse inconformado. “Eles são meus amigos. Acho tudo isso
muito triste. Não acredito que tenham a ver com essa fraude. Mas é lógico que é muito ruim ter a
reputação abalada nessa altura da vida. É claro que é um baque para eles.” O dono de um grande fundo
de investimento ouvido pela piauí traduziu assim a sua decepção: “Se na véspera do fato relevante alguém
me falasse que uma fraude como aquela aconteceria na Americanas eu encararia como piada. Ninguém
jamais poderia supor que uma coisa dessas pudesse se dar numa empresa cujos donos tinham um
histórico de triunfo e de credibilidade.”

Para outros, a quebra de confiança não significou apenas o fim de uma ilusão: foi um ato imperdoável.
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Após o anúncio do fato relevante, muitos credores passaram a acreditar que haviafazer
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plano prévio dos
executivos da Americanas para fortalecer o caixa da empresa antes de a bomba estourar, empurrando o
prejuízo para cima dos fornecedores, dos investidores, dos credores e até dos funcionários – os chamados
stakeholders, no jargão do mercado. O primeiro a chegar a essa conclusão foi o BTG Pactual, o banco de
André Esteves.

Esteves fez carreira no Banco Pactual – fundado por Luiz Cezar Fernandes –, uma das instituições mais
bem-sucedidas nas décadas de 1980 e 1990. Junto com um grupo de jovens sócios, liderou a tomada do
controle do banco, que, sob o seu comando, passou a se chamar btg Pactual (BTG é a sigla de Banking and
Trading Group). Com um histórico agressivo, similar ao dos controladores da Americanas, Esteves tratou
de instruir os seus executivos a agir rapidamente para reduzir os danos causados pela varejista.

O
alarme de que algo errado poderia estar acontecendo com a Americanas disparou no BTG Pactual
cerca de uma hora e meia antes de Rial anunciar o fato relevante, no dia 11 de janeiro. Por volta
das 16 horas, um executivo financeiro da Americanas ligou para um funcionário júnior do banco
pedindo o resgate de todas as aplicações financeiras da varejista na instituição. O jovem estranhou
e consultou seus superiores. Por causa do horário, do valor superlativo e da ligação para um funcionário
de menor escalão, o comando do banco brecou a transferência até tomar pé da situação. Quando o fato
relevante foi anunciado, às 18h30, o pessoal do BTG ligou as pontas. Com o pedido de resgate, o
executivo queria garantir que o dinheiro fundamental para o caixa da empresa não fosse retido.

Com 3,5 bilhões de reais a receber da Americanas, o BTG decidiu agir com rapidez. Da moderna sede da
instituição na Avenida Faria Lima, em São Paulo, com pé-direito duplo e imensas áreas vazadas,
recobertas por vidro e madeira, os diretores fizeram, naquele mesmo 11 de janeiro, uma reunião virtual
com André Esteves. O dono estava na Suíça para participar do Fórum Econômico Mundial de Davos e
cinco horas à frente, por causa do fuso horário. Na reunião, analisaram os fatos e tomaram uma decisão
arrojada. Na madrugada do dia 12, antes que o mercado abrisse, o banco fez o vencimento antecipado de
todos os seus contratos com a Americanas. Na prática, bloqueou todo o dinheiro que a varejista tinha
aplicado no banco. A ação só foi possível porque o BTG tinha um acordo de compensação com a
Americanas, definindo que, caso houvesse alguma anormalidade ou desrespeito ao contrato, toda a
dívida da varejista com o banco que tivesse vencimento futuro seria antecipada para o presente – e os
recursos da companhia investidos no banco seriam utilizados para pagá-la.

Naquela data, a Americanas tinha 1,2 bilhão de reais aplicados no BTG Pactual. Ao bloquear essa quantia,
o banco assegurou o recebimento de, pelo menos, uma parte da dívida. Feita a operação, um dos diretores
jurídicos do BTG ligou para o escritório de Galdino & Coelho, Pimenta, Takemi, Ayoub Advogados,
pedindo uma reunião de emergência. Na conversa, os gestores do banco perguntaram se tinham
cobertura jurídica para a operação que acabara de ser realizada. Os advogados garantiram que sim,
embora tenham alertado de que se tratava de um movimento ousado.

Ao tomarem conhecimento da ação do BTG, os controladores da Americanas resolveram correr para


impedir que outros bancos bloqueassem o dinheiro da varejista. Naquele mesmo dia 12, por volta das 22
horas, o Escritório de Advocacia Ana Basílio, representando a Americanas, entrou, em surdina, com uma
ação cautelar na Justiça pedindo a proibição do bloqueio e a antecipação de dívidas. Na reunião matinal
do dia 13, enquanto Rial “fazia um teatro com os credores”, na definição que um dos presentes fez à piauí,
os bancos já haviam perdido o direito de bloquear os recursos, como fizera o BTG. Mas só ficaram
sabendo da medida no final da tarde, depois de passarem a manhã ouvindo Rial dizer que os
controladores estavam dispostos a negociar. O sentimento de traição então subiu à estratosfera.

O pessoal do BTG achou que seu banco não seria atingido, dado que segurara o dinheiro antes de a ação
cautelar entrar em vigor. Pouco depois, no entanto, seus executivos souberam que a medida seria
retroativa, o que obrigava o banco a devolver os recursos retidos. “Aquilo era um absurdo sem tamanho.
Totalmente ilegal. Não existe cautelar com efeito retroativo”, me disse um advogado especializado em
questões financeiras.

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Indignados, os executivos do banco e cerca de trinta advogados se reuniram novamente com André
Esteves, via internet, no fim da noite do dia 13, uma sexta-­feira. O clima agora era de guerra aberta. Na
reunião com Rial, pela manhã, o BTG tinha avisado que, se os controladores não tentassem desbloquear o
dinheiro retido no dia 12, eles apoiariam a reestruturação da Americanas, “dentro de uma razoabilidade”.
Da Suíça, Esteves determinou, furioso: “Eles agrediram primeiro. Então vamos agredir também. E vamos
dar o nome aos bois publicamente.” E prosseguiu: “Vamos escancarar que o que aconteceu não foi um
inconveniente no balanço. Não. O que aconteceu foi uma fraude gigante, que tem nome, endereço e CPF.”
Disse ainda: “Não dá para ficar incensando os que controlam a companhia há quarenta anos como se não
soubessem de nada e fossem uns néscios na gestão. Vamos entrar no plantão judicial, porque é um
negócio tão ilegal que talvez o plantonista se sensibilize.” E orientou os advogados a prepararem uma
ação vigorosa contra a Americanas. “É pra bater! É pra ir pro pau!”, ordenou.

A ordem foi cumprida pelos advogados. No dia 14 de janeiro, em pleno sábado, o escritório que
representava o BTG Pactual entrou com agravo de instrumento contra a ação cautelar. Nas dezenove
páginas da petição, os advogados despejaram a responsabilidade pela fraude em Lemann, Telles e
Sicupira. “O caso em questão é a triste epítome de um país”, escreveram. “Os três homens mais ricos do
Brasil, ungidos como uma espécie de semideuses do capitalismo mundial ‘do bem’, são pegos com a mão
no caixa daquela que, desde 1982, é uma das principais companhias do trio.” Prosseguiram: “Dois dias
depois [do fato relevante], têm a pachorra de vir em juízo pedir uma tutela cautelar, preparatória de uma
recuperação judicial, para impedir os credores de legitimamente protegerem seu patrimônio à luz da
maior fraude corporativa de que se tem notícia na história do país. É o fraudador pedindo às barras da
Justiça proteção ‘contra’ a sua própria fraude. É o fraudador cumprindo a sua própria profecia.”

Os advogados se referiam a uma “profecia” reproduzida no livro Sonho Grande: Como Jorge Paulo Lemann,
Marcel Telles e Beto Sicupira Revolucionaram o Capitalismo Brasileiro e Conquistaram o Mundo, da jornalista
Cristiane Correa, publicado em 2013. O livro retraça a trajetória de sucesso da trinca. Em um dos trechos,
eles explicam algumas de suas táticas de negócios. “Nós temos que fazer pirotecnia. De vez em quando
vamos ter que dar uma de maluco para esses caras saberem que é para valer”, dizem.

A ação do BTG foi bem-sucedida e o banco manteve o direito de reter os recursos da Americanas. As
outras instituições credoras, que não bloquearam o dinheiro antes da cautelar confiando numa
negociação, não tiveram a mesma sorte. O Bradesco e o Santander, então, entraram com uma ação para
terem acesso a todos os e-mails e mensagens trocados pelos controladores da Americanas, pelos
conselheiros e pelos gestores nos últimos anos. A ideia era conhecer a gênese da fraude. Na avaliação dos
credores, não era possível que tudo aquilo tivesse ocorrido sem o conhecimento do trio tão celebrado por
sua capacidade de gestão. “Das duas, uma”, me disse um irado diretor de banco. “Ou eles são
fraudadores ou são uma fraude. Porque deixar que um golpe desses se desse embaixo do nariz deles por,
no mínimo, dez anos é um atestado de incompetência absoluta. Ou foram desonestos ou foram
incompetentes. Não sei com qual fama eles vão preferir ficar.”

No dia 19 de janeiro, a Americanas – representada por seus gestores, conselheiros e diretores, mas não por
seus controladores – protocolou na 4ª Vara Empresarial do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro um plano
de recuperação judicial, aceito pelo juiz Paulo Assed Estefan. Foi um novo baque para os credores e
fornecedores, já que, conforme o plano, as dívidas serão abatidas em até 70% e em parcelas que podem
levar mais de dois anos para começarem a ser pagas. Houve uma grita geral e, novamente, o alvo dos
ataques foi o trio de controladores – que continuava recolhido em silêncio.

Embora o presidente da Americanas na época da fraude fosse Miguel Gutierrez, a confiança que os
bancos e investidores depositavam na saúde financeira da companhia não se devia a ele, considerado um
executivo inexpressivo que vivia à sombra de Beto Sicupira, ex-presidente da varejista (entre 1983 e 1991)
e atual conselheiro da empresa. Na visão do mercado, Sicupira era o verdadeiro rosto da empresa.
Gutierrez nunca participava das conferências do mercado, apesar de a varejista ser uma companhia de
capital aberto, com ações cotadas na Bolsa de Valores. Mas o mercado pouco se importava com isso,
julgando que a empresa era bem gerida porque, afinal, pertencia a Lemann, Telles e Sicupira.

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O trio de empresários só se manifestou em 22 de janeiro, onze dias depois da divulgação do fato relevante
e dois dias após o anúncio da recuperação judicial. Os três divulgaram uma nota sucinta, na qual
disseram: “Jamais tivemos conhecimento e nunca admitiríamos quaisquer manobras ou dissimulações
contábeis.” Em outro trecho, empurraram parte da culpa para os bancos e auditores externos, afirmando
que nem a empresa de auditoria, a PwC Brasil[1] , nem as instituições financeiras “denunciaram qualquer
irregularidade”. E asseguraram que um comitê avaliaria “eventual quebra de simetria no diálogo entre os
consultores e as instituições financeiras”.

Em março, dois meses depois do estouro da crise, os controladores, o ex-presidente Miguel Gutierrez e os
diretores da Americanas continuavam agindo co­mo se o problema não fosse com eles. Tanto que Sergio
Rial foi o único ex-­executivo da empresa a atender à convocação da Comissão de Constituição, Justiça e
Cidadania do Senado para explicar em 28 de março o rombo da varejista. Sentado ao seu lado, na bancada
da presidência da Comissão, estava o no­vo presidente da Americanas, Leonardo Coelho Pereira,
nomeado às pressas para fazer a reestruturação. Nenhum dos dois deu qualquer informação relevante.
Disseram que as apurações do caso eram responsabilidade do Ministério Público Federal, da Comissão de
Valores Mobiliários (CVM), da Polícia Federal e até do comitê de investigação que os controladores
criaram para desvendar a fraude. O assunto mobilizou os parlamentares de tal forma que, em 17 de maio,
instalaram uma Comissão Parlamentar de Inquérito na Câmara dos Deputados, para averiguar a crise.

S
ergio Rial foi convidado para comandar a Americanas em maio do ano passado por Beto Sicupira
(a quem conhecia de longa data), com aval do Conselho de Administração. Ficou acertado que sua
remuneração seria baseada no desempenho da varejista, prática que o trio de controladores
adotava em todas as suas empresas. Com esse método, o trio entendia que os executivos de suas
empresas se empenhariam até o limite para que o negócio desse lucro. Olhando em perspectiva, gente
graúda do mercado hoje avalia que essa política – que o trio chama de “meritocracia” – foi a razão que
levou para o brejo muitos dos negócios em que se meteram.

Normalmente, executivos e funcionários ganham bônus pelo bom desempenho. A diferença, na cultura
da Americanas, é que o salário fixo é muito baixo – e os bônus ficam muito acima do praticado no
mercado. Para auferir rendimentos espetaculares, os diretores se ocupam com o cumprimento de metas
quase desumanas, trabalhando em excesso, cortando custos até o limite, ainda que isso prejudique a
operação, e estrangulando os fornecedores.

Alexandre Di Miceli da Silveira, especialista em cultura corporativa – ele estuda, principalmente, como
funcionam as organizações com incentivos tortos e tóxicos – disse, numa entrevista ao investidor Fabio
Alperowitch, da Fama Investimentos, que “quando se tem uma cultura de obsessão por resultados
financeiros, é possível que se passe por cima de qualquer coisa, inclusive da ética”. Para Miceli da Silveira,
não havia na Americanas uma boa estrutura de governança, a substituição de executivos era alta e o
Conselho de Administração pouco independente, já que a maioria dos assentos pertencia aos
controladores. “Eram poucas vozes lá dentro. O balanço da Americanas não era transparente e parece que
ninguém se preocupava com isso”, avaliou.

A perseguição de lucro é tal que um dos valores da varejista, que consta do seu site, é “ser obcecado por
resultados”. Uma pesquisa de 2021 feita pelo especialista em governança corporativa Renato Chaves, em
parceria com a Fundação Getulio Vargas, constatou que, entre todas as empresas listadas no índice
Ibovespa, a Americanas tinha a segunda maior discrepância salarial entre o presidente e a média de
salários dos funcionários e demais executivos: um ganho 431 vezes maior do que a média da companhia.
Além disso, os dividendos pagos pela empresa aos acionistas eram totalmente discrepantes do restante
das varejistas, embora estas, nos últimos anos, estivessem registrando lucros maiores que os da
Americanas. Até setembro do ano passado, quando seus executivos já sabiam que os lucros da empresa
eram forjados, a Americanas distribuiu 333,2 milhões de reais em dividendos, o maior da sua história,
inclusive para os controladores, contra 99,9 milhões do Magazine Luiza e zero pagos pela Via, dona das
Casas Bahia e do Ponto. Em 2013, quando se supõe que a fraude começou, foram pagos 119,7 milhões de
reais em dividendos sobre o lucro fictício.
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E
m 19 de agosto de 2022, saiu o comunicado oficial informando o mercado que Rial tomaria posse
em 2 de janeiro deste ano. A reação dos investidores foi a melhor possível. Eles imaginavam que,
sob o novo comandante, as vendas online da Americanas poderiam explodir, repetindo o que Rial
fizera no Santander, ao modernizar o banco tecnologicamente. O anúncio provocou uma forte
subida nas ações da varejista. O então presidente, Miguel Gutierrez, não ficou muito satisfeito com a
indicação de Rial, de acordo com advogados que acompanharam o movimento. Ele esperava que os
controladores fizessem uma transição interna, como era praxe na empresa, indicando para o seu lugar um
dos três diretores de sua confiança – Anna Christina Ramos Saicali, José Timotheo de Barros ou Márcio
Cruz Meirelles – ou mesmo o diretor financeiro, Marcelo da Silva Nunes. A indicação de um executivo de
fora da casa era um sinal de que sua gestão não estava sendo satisfatória.

Entusiasmado com o novo desafio, Rial passou a frequentar a Americanas, cuja sede fica num prédio
acanhado de cinco andares na Rua Sacadura Cabral, no Centro do Rio. Fazia postagens quase diárias no
LinkedIn, contando seus planos para quando assumisse a varejista. Visitava as lojas – algumas bastante
depauperadas e com poucas mercadorias – e comentava sobre os produtos. Em um primeiro momento,
ele não pretendia fazer grandes mudanças no comando da empresa. Tanto que o único nome que
convidou para integrar sua equipe, como diretor financeiro, foi o economista André Covre. A relação de
Rial com o antecessor Miguel Gutierrez não era das melhores, e não só por causa da diferença de
temperamento. O antigo presidente da Americanas sempre foi um homem de poucas palavras, sisudo até.
Era tão cioso de sua privacidade que apenas uma rara foto sua circulou nas redes sociais. Na empresa,
mal cumprimentava os funcionários e se limitava a conversar com Sicupira, os diretores da sua confiança
e alguns conselheiros. Não era pessoa dada a aceitar opiniões. Por isso, trabalhava fechado com seu
pequeno grupo de fiéis escudeiros.

Rial era o oposto. Nos seus tempos de Santander, quando se projetou no mercado, chegou até a se
fantasiar de Homem-­Aranha para motivar os funcionários (sabe-se lá que tipo de motivação sobre os
subordinados pode produzir um chefe vestido de super-herói). Ele também tivera um bom desempenho
administrando a Cargill Agrícola no Brasil, o que poderia ajudar na gestão da rede de alimentos
comprada pela Americanas, a Hortifruti, que não ia bem das pernas. O principal objetivo de Rial era
modernizar a plataforma financeira da varejista, a Ame. Ele admitia não ter grande experiência no varejo.
Por isso, ficou acertado que faria várias reuniões com Gutierrez e os diretores entre setembro e dezembro
para se familiarizar com os números da companhia.

Gutierrez não foi hostil, nem cooperativo com Rial. Depois da crise, Rial passou a desconfiar que os ex-
gestores da Americanas haviam tentado contornar a fraude no último momento, fazendo com que os
números do balanço do terceiro trimestre de 2022 espelhassem um cenário mais realista da empresa. No
segundo trimestre do mesmo ano, o lucro atingiu 240 milhões de reais. No terceiro trimestre, houve um
prejuízo de 211,6 milhões. Também no terceiro trimestre, as vendas e a receita líquida caíram, cada uma,
quase 1 bilhão de reais.

Ao ver esses números, Rial tentou animar os diretores. Em conversa pelo WhatsApp, ele trocou ideias
com Márcio Cruz Meirelles, diretor das plataformas digitais, sobre como as vendas dos concorrentes
tinham sido bem melhores que as da Americanas. E então mandou uma mensagem otimista:

– Bora mudar a nossa história – disse Rial.

– Bora! – replicou Cruz, como é conhecido. – Temos um negócio muito precioso na mão.

Rial, porém, não percebeu qualquer movimento nem de Cruz Meirelles, nem dos outros para melhorar a
situação. No dia 2 de dezembro, ele marcou uma reunião com os três diretores de confiança do presidente
em exercício – Saicali, Barros e Meirelles – no escritório da Americanas, na Vila Olímpia, em São Paulo.
Queria lhes apresentar o novo diretor financeiro, André Covre. Rial havia pedido que levassem várias
informações financeiras para subsidiar um plano de trabalho para 2023. Os três chegaram à reunião sem
nada para informar. Rial lhes disse que, como já estavam em dezembro, era preciso ter um esboço de
orçamento e de projeções para 2023. Como o balanço do quarto trimestre ainda não havia sido publicado,
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pediu que adiantassem algumas informações importantes. Os três se entreolharam e disseram que ele
falasse com Gutierrez. Rial entendeu que talvez estivessem constrangidos de passar por cima do então
presidente.

A convivência de Rial e Gutierrez foi esfriando mais e mais, à medida que se aproximava a data da troca
de comando. Gutierrez pediu uma reunião com o presidente do conselho, Eduardo Saggioro Garcia, e
com Sicupira para “esboçar” alguns números. Por escrito, solicitou que Rial não participasse da reunião,
no dia 26 de dezembro. Um novo encontro foi marcado para o dia 27, a fim de que Gutierrez fizesse um
balanço de seu período na empresa. Novamente, ele pediu que o futuro presidente da varejista fosse
excluído. Dessa vez, porém, Sicupira fez questão que Rial participasse.

Gutierrez fez uma apresentação que Rial considerou confusa, com oitenta slides, focando na questão
tributária. Também falou de mecanismos de financiamento, como o risco sacado, e ressaltou que cinco
bancos haviam tido papel muito importante nessas operações. Na ocasião, Rial acreditou que as
operações estivessem embutidas na dívida bancária de 19,3 bilhões de reais. Encerraram ali a conversa.

Em 2 de janeiro, segunda-feira, Rial tomou posse. No dia seguinte fez uma reunião com os funcionários
para falar de seus planos. Também falou algumas vezes com Covre sobre números da empresa e pediu
que fosse preparada uma projeção para 2023, embora ainda não tivessem tido acesso ao balanço do quarto
trimestre. Na manhã do dia 4, quarta-feira, os dois voltaram a se reunir e a animação continuava a
mesma. Então, ao meio-dia, Covre recebeu uma ligação de Rial, com a voz grave, pedindo que fosse com
urgência à sala dele. Quando o diretor financeiro entrou na sala de Rial, estavam lá os diretores Saicali e
Barros. A tensão era quase palpável. “André, sente-se aí. Se prepara porque temos um problema”, disse
Rial.

Os dois diretores haviam pedido para falar com o novo presidente sobre alguns problemas relacionados
aos números da Americanas. A conversa começara com uma pergunta: Rial havia entendido
perfeitamente o que Gutierrez dissera na reunião do dia 27? O executivo respondeu que deduzira que
havia algumas questões fiscais para resolver. Os dois diretores disseram que havia mais coisas. Travou-se
então um diálogo dramático.

– Sergio, acho que seria importante fazermos um tutorial daquela reunião – sugeriu Barros.

Então, Barros e Saicali falaram sobre algumas dívidas que não tinham sido corretamente computadas. Rial
sugeriu que poderiam resolver o problema, lançando as dívidas no próximo balanço e perguntou:

– Essas dívidas, de qualquer forma, estão incluídas na dívida bancária, certo?

– Não – responderam os dois diretores, em uníssono.

– E onde estão lançadas?

– Não estão lançadas.

– E qual é o valor?

– É 20 bilhões de reais.

Rial contou depois para pessoas próximas que, naquele momento, se sentiu como “um piloto, voando
num Boeing, em cima do oceano, com trezentos passageiros a bordo e as quatro turbinas em pane”. Os
diretores não estavam falando de uma dívida de 1 ou 2 bilhões, e sim de um rombo não contabilizado que
era o dobro do valor da empresa. Rial e Covre passaram a pressionar Saicali e Barros: “Não é possível!
Onde está este número? O que aconteceu?” Os dois diretores não diziam. Repetiam apenas que havia algo
errado com o balanço. “O que está errado? Me mostrem no balanço do terceiro trimestre. Não é possível.
Essa dívida tem que ter nome, CPF, tem que estar registrada no Banco Central”, disse Rial. Quanto mais
ele pressionava os diretores sobre a origem do rombo, mais eles se fechavam em si mesmos. “O que vocês
estão dizendo é que tínhamos uma empresa com uma dívida de 19,3 bilhões de reais e patrimônio de 11
bilhões e que agora a dívida é de 48 bilhões?”, indagou Rial. “Ou seja: acabou o patrimônio? É isso?”
minha conta a revista fazer logout
Uma reunião foi marcada por Rial para o dia seguinte, 5 de janeiro, para a qual chamou Sicupira e
Saggioro, o presidente do conselho, entre outros. Segundo a versão de testemunhas da conversa, Sicupira
e Saggioro ficaram em choque quando Rial relatou o rombo no balanço. André Covre chegou a comentar
com amigos mais tarde que “ou os dois eram excelentes atores ou realmente não sabiam de nada”. A certa
altura, Rial pediu a Sicupira que não se descontrolasse, já que, caso isso ocorresse, ficaria ainda mais
difícil arrancar a informação dos diretores de como a fraude havia sido montada.

Mas essa versão não colou no mercado, me contou o executivo de um banco. Para pessoas que conhecem
o temperamento explosivo de Sicupira, é difícil entender por que ele não teria chamado Gutierrez e os
diretores para se explicarem. Por essa razão, quando, semanas depois, Sicupira tentou convencer um
banqueiro de que não tinha conhecimento da fraude, a conversa azedou. “Para!”, disse o banqueiro.
“Quero só deixar claro que, para a gente ter uma conversa produtiva daqui para a frente, preciso dizer
que acho essa tua história completamente inverossímil. Então, agora que você sabe o que eu penso, pode
continuar o que você quer falar.” Procurados pela piauí, Sicupira, Lemann e Telles não quiseram se
manifestar.

Claudia Eliza Medeiros de Miranda, diretora da PwC Brasil, que fazia a auditoria da Americanas,
também foi chamada para uma reunião com Rial. Ela repetiu várias vezes que era difícil acreditar no que
estava acontecendo. Para a PwC, aquilo representava uma desmoralização, já que seus auditores foram
incapazes de detectar um rombo bilionário.

Com parte dos dados apurados na mão, Rial avisou ao conselho que teria que publicar um fato relevante
informando a catástrofe da empresa. Os investidores não podiam continuar a ser enganados. Os prejuízos
a terceiros só aumentariam, piorando a imagem da Americanas. O conselho, do qual Sicupira faz parte,
concordou. No dia 11 de janeiro, Rial anunciou o fato relevante e se demitiu em seguida da presidência da
Americanas.

Muita gente no mercado atribuiu ao temperamento flamejante de Rial a forma como resolveu anunciar o
rombo. Para muitos executivos, ele deveria ter primeiro tentado apresentar uma solução para o problema
antes de jogar os podres na rua, o que destruiu o valor da empresa. Seu advogado, David Rechulski, me
disse, no entanto, que Rial não tinha outra saída senão denunciar o que estava havendo, sob pena de
descumprir a lei segundo a qual problemas no balanço devem ser informados imediatamente.

O Ministério Público Federal, a CVM e a Polícia Federal passaram a investigar o caso. Era preciso
entender o rombo e os envolvidos. Um advogado me contou que uma fraude desse tamanho só persiste
por tantos anos se muitas pessoas estiverem envolvidas e lucrando com a situação. Segundo ele, que
atende várias companhias e acumula trinta anos de experiência em fraude corporativa, é óbvio que muito
mais gente dentro da empresa sabia o que estava acontecendo e que, provavelmente, até os bancos
credores tinham alguma noção de que os números estavam errados – mas, como estavam ganhando
dinheiro, podem ter feito vista grossa.

Q
uase centenárias, as Lojas Americanas foram fundadas por três norte-americanos que
desembarcaram por acaso no Brasil. Eles queriam abrir um negócio em Buenos Aires, mas,
quando o navio parou no Rio de Janeiro, perceberam o potencial do país e mudaram de planos. A
primeira loja foi aberta em 1929, em Niterói. Em 1940, quando já não estava mais nas mãos dos
fundadores, a empresa abriu seu capital. Então, em 1982, numa jogada na Bolsa de Valores, Lemann,
Telles e Sicupira, que controlavam o Banco Garantia, tomaram o leme da empresa por 24 milhões de
dólares. Sicupira tornou-se seu presidente, contrariando Luiz Cezar Fernandes, sócio no Garantia, para
quem o melhor era vender logo a varejista embolsando um bom lucro. Depois de várias brigas, Fernandes
deixou o Garantia e fundou o Pactual. “O Beto não abria mão da Americanas”, contou Fernandes à piauí,
em seu apartamento de frente para a Baía de Guanabara, no Rio de Janeiro. “É um negócio que, se você
olhar os números, sempre foi medíocre. Mas ele, com sua arrogância, não aceitava discutir o problema.”

“Delicadeza no ambiente de trabalho nunca foi o forte de Beto Sicupira”, descreve a jornalista Cristiane
Correa no livro Sonho Grande. “No Garantia se tornaram lendárias as cenas de destempero protagonizadas
minha conta a revista fazer logout
por ele. No dia a dia, ele nunca economizou gritos, palavrões e murros na mesa para fazer valer sua
opinião.” Foi justamente pelo seu temperamento mercurial que Sicupira foi escolhido pelos controladores
como a pessoa ideal para reestruturar a combalida Americanas. De cara, ele adotou as técnicas de gestão
praticadas no Garantia. Redução máxima de custo, incentivo por resultado e mudança na remuneração
dos executivos. Cortou 40% dos funcionários e dispensou 32 dos 50 executivos por não ter boa impressão
deles em relação aos seus pleitos. Um grupo de executivos foi demitido depois de apresentar a Sicupira,
durante uma reunião, algumas reivindicações trabalhistas. Após a conversa, os executivos saíram para o
almoço achando que suas demandas seriam atendidas. Quando voltaram, ficaram sabendo da demissão –
e ainda foram impedidos de entrar no prédio da empresa.

Desde o início, o Conselho de Administração da Americanas esteve sob o comando dos controladores.
Dos seus 7 membros, 4 eram indicações do trio Lemann, Telles e Sicupira. Nos últimos anos, entre os
conselheiros estavam Eduardo Saggioro Garcia, presidente do conselho e homem de confiança dos
controladores, o próprio Sicupira, que passou o comando da empresa para Gutierrez em 1991, e Paulo
Alberto Lemann, filho de Jorge Paulo Lemann. Durante anos, a filha de Sicupira, Cecília, também ocupou
uma cadeira ali. Embora seja uma companhia de capital aberto, a empresa faz o que o conselho,
controlado pelo trio, aprova. Mesmo porque, como me disse um ex-executivo da varejista, quem ousaria
questionar as decisões de três ases do capitalismo brasileiro?

Para alguns colaboradores de menor escalão, o modelo de gestão da Americanas, pela agressividade e
falta de empatia dos gestores, nunca foi dos melhores. Outros ex-executivos me contaram que os
problemas eram sistematicamente ignorados. “Qualquer proposta que fizéssemos era rejeitada. O Miguel
Gutierrez só trabalhava com o pessoal dele. E, na verdade, tudo o que acontecia ali eram ordens do Beto.
Havia até uma brincadeira na empresa entre os funcionários. Toda vez que chegava uma ordem de cima,
a turma perguntava: ‘O Beto autorizou?’” De acordo com esses ex-executivos, havia “uma cultura do
medo”.

A ideia de “meritocracia” vendida pelo trio também era questionada. “Não havia nem mérito, nem
autonomia. Era uma cultura do beija-mão”, disse um ex-­funcionário que trabalhou dez anos na casa.
Outro acrescentou: “Não havia nenhuma avaliação dos funcionários. Eles gostavam de promover os mais
jovens a gerentes simplesmente para não pagar hora extra.” Um desses gerentes, que já deixou a empresa,
me disse que o vale-refeição era de 4 reais. Mas se a empresa tivesse lucro, embora o salário fosse baixo,
todo mundo recebia um dividendo. Só que, em troca, “você tinha que se sujeitar a uma carga de trabalho
doentia e a muita humilhação”. Em 2019, a empresa foi processada e condenada a pagar 11,3 milhões de
reais por assédio moral aos funcionários com deficiência nas lojas de Barueri, na Região Metropolitana de
São Paulo.

Também não existia controle racional de custos. Apenas cortes sem análises mais aprofundadas. Coisas
básicas, como contratar lojas com aluguel mais barato, eram ignoradas. “Eles não tinham essa
preocupação. Em vez disso, preferiam estrangular os fornecedores e os funcionários.” Parte da
remuneração dos funcionários era em ações da companhia. Quem não se dispusesse a comprá-las era
malvisto. Além disso, não podiam dispor das ações e, quando deixavam a companhia, muitos tomavam
prejuízo, perdendo parte dos investimentos que haviam sido obrigados a fazer, porque não tinham
cumprido o tempo de serviço necessário para sacar o dinheiro.

Um momento marcante na Americanas, de acordo com os ex-executivos que preferiram não se identificar
por estarem empregados em outras companhias, aconteceu no final de 2019, quando as vendas online do
Mercado Livre e do Magazine Luiza ultrapassaram as da Americanas. “Estávamos próximos da Black
Friday e muitos colaboradores se mobilizaram para dar sugestões a fim de aumentar as vendas. Os
gestores ignoraram as sugestões.” As vendas caíram. “Todo mundo vinha alertando que o Magazine
Luiza ia nos ultrapassar e os gestores diziam que não. Por fim, o Magazine Luiza se tornou quase o dobro
da Americanas.”

Outra crítica era com relação ao tratamento dispensado aos clientes. Quando havia erros no preço ou
reclamações, os gestores, em vez de tentar resolver, preferiam colocar o Departamento Jurídico para
trabalhar. “Eles gastavam fortunas com ações na Justiça, quando tinham uma solução na mesa”, me disse
minha conta um funcionário da área jurídica. Um aex-coordenador
revista financeiro da varejista, ao ser perguntado
fazer logout como era
trabalhar na empresa do trio, confessou: “Aquilo era bizarro. O lema que eu ouvi várias vezes lá, me
desculpe a expressão, era ‘olho por olho, dente por dente, pau no cu do cliente’.”

Já as operações financeiras eram muito fechadas, restritas ao presidente, ao grupo de diretores e a uma
“panelinha de bajuladores”. Era um comportamento incomum no mercado, segundo um dos ex-gerentes
financeiros ouvidos pela piauí. “Tudo ali era muito centralizado. Sempre foi”, disse. “A diretoria ficava
reunida na sala discutindo operações financeiras das quais só tomávamos conhecimento através de fato
relevante ou no balanço. A empresa não era transparente.”

Um exemplo dessa falta de transparência se dava nas aquisições que a varejista fazia. “As empresas
comunicam ao mercado o que estão fazendo. A Americanas não fazia isso. Houve umas quinze aquisições
nos últimos anos e ninguém informou os valores, porque diziam que eram irrelevantes.” Depois
colocavam no balanço e ninguém sabia direito do que se tratava, embora tudo tivesse sido aprovado pelo
conselho. Na avaliação de ex-executivos, o objetivo era embolar o balanço e confundir os analistas.
“Ficava todo mundo fazendo conta para entender qual foi o ganho da operação. Eles nunca explicavam.”
Esse comportamento exasperou a nova diretora de Relações com os Investidores, Fabiana Freire Oliver,
que tomou posse em julho do ano passado. Ela chegou a se queixar com Rial que a diretoria não lhe
passava as informações necessárias para que pudesse fazer uma conferência com os investidores. Rial
procurou acalmá-la. Disse que tudo mudaria após a posse dele, em janeiro do ano seguinte.

Outra ação distorcida se dava nas operações de captação de dinheiro no mercado. Normalmente, as
empresas avisam que farão uma captação e, em seguida, apresentam a proposta aos bancos. No caso da
Americanas, essa iniciativa quase nunca acontecia. A varejista captava os recursos e só depois informava a
operação. Isso porque utilizava os nomes de Lemann, Telles e Sicupira em garantia – e a operação era
acertada com cinco ou seis bancos. “O nome deles pesava muito. Tudo que era feito em nome dos três era
imediatamente aceito. Pode não ser ilegal, mas não é transparente”, disse um funcionário que trabalhou
na área financeira da empresa.

O
comportamento desrespeitoso da Americanas com os fornecedores era um dos maiores
incômodos para os funcionários. Como a varejista compra muito, os fornecedores dependem dela.
“Os compradores eram muito duros, custavam a pagar e prejudicaram muitas empresas com esse
tratamento abusivo”, disse um ex-gerente de compras. A prática era sempre a mesma: a
Americanas se comprometia a pagar o fornecedor em 30 dias, mas mudava unilateralmente o prazo para
60 dias. Quando o fornecedor ligava para reclamar, a ordem era não atender. Depois, o prazo era alterado
para 90 ou 180 dias, até deixar o fornecedor estrangulado. Feito isso, eles entravam em contato, avisando
que iam pagar, mas com desconto e sem juros. “O cara já estava tão desesperado para receber que fazia
qualquer negócio”, contou uma ex-funcionária do setor de compras.

Marina Rosolem trabalha como facilitadora de negócios conscientes e, como ela mesma diz, fica “de olho
se os clientes têm boas práticas com fornecedores e colaboradores”. Em 2017, ela trabalhou para uma
pequena empresa que fornecia para a Americanas. Sua impressão da varejista foi muito negativa. “Eles
exigiam que o fornecedor entregasse tudo em tempo recorde, faziam pedidos enormes e, depois,
custavam a pagar, desestabilizando completamente a empresa. Sob pressão máxima, a empresa fica num
gargalo. Só consegue trabalhar para eles.” Rosolem é crítica desse modelo. “Isso é ultrapassado. Uma
companhia como a Americanas precisa fazer negócios conscientes. Ela prejudicou muitas empresas. Era
uma prática muito predatória, o que não casa com a ideia de ‘capitalistas do bem’”, disse, numa conversa
por telefone, no final de janeiro.

A Forte Minas Logística e Transporte, sediada em Contagem, na Região Metropolitana de Belo Horizonte,
começou a se aprumar em 2013. Nessa época, seu proprietário, Moacir de Almeida Reis, recebeu uma
proposta da Americanas para transportar os produtos da varejista e os da Submarino, uma subsidiária da
companhia, em várias cidades do estado. Reis achou que estava entrando no melhor negócio da sua vida.
Ficou ainda mais empolgado quando a Americanas passou a pedir que ele abrisse filiais em outras
cidades, alugando galpões para estocar as mercadorias.
minha conta a revista fazer logout
Com o tempo, a Forte Minas se transformou em um dos melhores fornecedores da empresa na parte de
logística. Bernardo Reis, filho de Moacir, lembra-­se de que a Americanas começou a demandar cada vez
mais serviço, a ponto de 90% do faturamento da transportadora vir da varejista. A cada ano, a Forte
Minas aumentava a estrutura para atender a Americanas, que passou a encomendar o transporte também
de mercadorias de tamanhos maiores, como geladeiras e fogões, o que exigiu a contratação de galpões
cada vez mais amplos. Foi estimulada ainda a fazer a distribuição no Espírito Santo. A empresa, porém, já
tinha fama, há cerca de três anos, de não ser boa transportadora.

Em 2016, Moacir Reis pediu à Americanas o cumprimento do reajuste previsto no contrato. Três anos
haviam se passado sem que a empresa fizesse a correção. Em 2020, já com as contas apertadas, ele insistiu
junto à varejista para que cumprisse a cláusula de reajuste nunca pago. A empresa não apenas não deu o
reajuste, como ainda cortou 5% do valor da remuneração. Para completar, a varejista começou a atrasar os
pagamentos. Primeiro 30 dias, depois 60, por fim 90 dias. Então apareceu um interessado em comprar a
Forte Minas. Com o caixa no limite, dado que tinha aberto muitas filiais, Moacir Reis achou que seria uma
solução. Como a Americanas tinha prioridade na aquisição, ele procurou a empresa em 15 de janeiro de
2021, para informar que havia recebido uma proposta de compra de um concorrente da varejista. A
Americanas manifestou seu interesse em ficar com a Forte Minas, e Reis cancelou a venda para a outra
companhia. Duas semanas depois, em 29 de janeiro, ele recebeu uma ligação desesperada de seu gerente:
a Americanas mandara um aviso dizendo que encerraria no dia seguinte o contrato com a Forte Minas e
recolheria todos os produtos dos galpões. Os funcionários vazaram a informação, e clientes, com medo de
não receberem seus produtos, saquearam os galpões, segundo relato do filho de Moacir Reis.

Em pouco tempo, a Forte Minas estava falida. Foram devolvidos 29 galpões e demitidos trezentos
funcionários. Moacir Reis teve um enfarte. Sem recursos para pagar as dívidas trabalhistas, a empresa
passou a ter problemas com a Justiça. No dia 15 de dezembro do ano passado, Bernardo Reis recebeu um
telefonema aflito do pai, dizendo que ele e a mulher estavam sentados no acostamento de uma estrada
porque seu carro havia sido recolhido por uma blitz para o pagamento de dívidas trabalhistas. Menos de
um mês depois, saiu o fato relevante com a informação do rombo de 20 bilhões de reais.

N
ão é de agora que a Americanas apresenta problemas. O administrador de empresas Oscar
Malvessi, da Fundação Getulio Vargas, estuda as razões que levam companhias brasileiras a
perder o valor. Em uma conversa em seu escritório na Avenida Paulista, em março passado, ele se
mostrou indignado com o que havia acontecido com a Americanas. “Não dá para imaginar esse
escândalo em uma empresa que tem governança corporativa, o que, em tese, quer dizer que ela segue os
princípios nacionais de gestão, com comitê de risco, de compliance, com auditorias interna e externa.” Fato
é, porém, que a varejista já vinha perdendo valor na Bolsa desde julho de 2021, segundo ele. “A
estrondosa destruição de riqueza dos acionistas, da empresa e dos stakeholders não aconteceu só a partir
do estouro da fraude contábil”, explicou.

Quando ocorreu a fusão das Lojas Americanas com a B2W, criando a Americanas S.A., em 2021, a reação
não foi boa e o valor das duas empresas juntas caiu de 77 bilhões para 55 bilhões. O trio de gestores, nessa
época, diluiu a sua participação na empresa, que era de 60%, para 31%, abriu mão do prêmio de controle e
passou a se chamar de “acionista de referência”, figura que não existe na Lei das Sociedades Anônimas
brasileira. Daí para a frente, o valor da Americanas continuou a cair, até chegar aos 11 bilhões de reais e,
no dia seguinte ao fato relevante, se esfarelar em 1 bilhão de reais, impondo um prejuízo monumental aos
investidores grandes e pequenos, entre eles os funcionários obrigados a comprar ações da empresa.

O BTG Pactual, em sua ação contra a Americanas, acusa o trio de ter diluído sua participação na
companhia já prevendo o rombo que viria à tona em 2023. Malvessi, da FGV, faz outra associação. Ele
considera que “a cultura do lucro a qualquer preço, a pressão abusiva sobre os fornecedores, a forma de
remuneração dos executivos, além da contabilidade criativa, transformou-se rapidamente em autofagia,
com a destruição da empresa, dos acionistas e dos stakeholders”.

O tombo da Americanas não se compara a qualquer outro fracasso nos negócios do trio Lemann-Telles-
minha conta que a política de “meritocracia” ou de remuneração
Sicupira. Mas a visão que se tem hojea érevista fazer logout dos executivos
com base no lucro a qualquer preço, aliada à política irracional de corte de custos, está na origem de todas
as perdas. A começar pelo Garantia. O banco sempre fez operações arriscadas e seus operadores não
mediam esforços para ganhar muito dinheiro, ainda que colocando a instituição em risco. No livro Sonho
Grande, o trio explica que o banco quase quebrou, razão pela qual foi vendido às pressas, pois os “três
teriam se afastado do negócio e deixado o barco correr frouxo”. Culpavam a nova geração de gestores de
só querer “engordar seu patrimônio pessoal, sem pensar na instituição”. Ou seja, como no caso da
Americanas, a troica do capitalismo brasileiro se eximiu da responsabilidade pelo fracasso do negócio.

Quando perderam o Garantia, os três já haviam feito a sua jogada mais bem-­sucedida: a compra da
Brahma, em 1989. Nesse caso, coube a Telles assumir o comando da empresa. Novamente, aumentou os
lucros cortando pessoal – 2,5 mil foram dispensados, de um total de 20 mil –, reduzindo salário e
esfolando fornecedores, aos quais pagavam apenas 120 dias após a compra. Quem não topasse, estava fo­-
ra do negócio. Com poucas cervejarias no mercado, todos engoliam as imposições. A Brahma, no entanto,
virou um caso de sucesso, principalmente com a padronização dos produtos. Em 1999, apesar da grita dos
concorrentes, o trio comprou a Antarctica e formou a Ambev. A operação foi criticada por associações de
defesa do consumidor, políticos e analistas, para os quais o Conselho Administrativo de Defesa
Econômica (Cade), órgão que zela pela concorrência, não deveria ter aprovado uma operação que criou
um monopólio no mercado de cerveja brasileiro.

Em 2004, a Ambev se fundiu com a belga Interbrew, formando a InBev e tornando-se líder no mercado
mundial. Ao final, o trio assumiu a gestão inteira do negócio. Os funcionários belgas, de acordo com o
depoimento do próprio trio ao livro Sonho Grande, ficaram chocados com as práticas agressivas e
gananciosas dos brasileiros. A estratégia repetiu-se: redução de salário fixo e aumento de remuneração
via bônus. Quem não concordasse que pulasse fora. Mas o passo mais espetacular dos três empresários
brasileiros foi dado em 2008. Em associação com o megainvestidor Warren Buf­fett, eles compraram a
norte-americana Anheuser-Busch (AB), fabricante da Bud­weiser. Assim, criaram a AB InBev.

Os norte-americanos ficaram chocados ao perder uma marca tão tradicional para um grupo estrangeiro.
Até o então presidente Barack Obama foi contra o negócio. Os executivos brasileiros levados para a
empresa receberam um estímulo para reduzir as despesas e integrar a AB à InBev no prazo de cinco anos.
Conforme o livro Sonho Grande, foi oferecido aos 39 executivos do topo da administração da nova
companhia cerca de 1 bilhão de dólares em opções de ações (direito de comprar as ações da companhia
após o negócio deslanchar), caso batessem a meta. E eles bateram. Um dos executivos, Carlos Brito, o
cérebro por trás da fusão da AB com a Interbrew recebeu 500 milhões de reais em bônus.

A operação foi um sucesso, com valorização das ações em 270%, e aplicação da velha fórmula: corte de
custos até o limite, dispensa de funcionários – só nas primeiras semanas foram demitidas 1,4 mil pessoas
em 2008 –, fornecedores espremidos, bônus espetaculares. Em um ano, os executivos cortaram 1 bilhão de
dólares em custos e venderam 9 bilhões de dólares em ativos. Enquanto os brasileiros comemoravam, os
norte-americanos reclamavam. Em 2013, chegaram até a acusar os novos gestores de alterar o sabor da
cerveja para economizar, uma denúncia nunca comprovada.

A peripécia espetacular, porém, não se repetiu nas compras que Lemann, Telles e Sicupira fizeram na
época das privatizações, nos governos de Fernando Henrique Cardoso. Investiram na Telemar, futura Oi
S.A., que acabou afundando, embora eles já tivessem pulado fora do barco. A história mais vexatória se
deu na América Latina Logística (ALL). A empresa foi adquirida em 1997, no início da privatização das
ferrovias e quando o sonho grande do trio era comprar empresas de infraestrutura e logística em
sociedade com os fundos de pensão estatais e o BNDES. Os negócios à época eram feitos por meio do GP,
o fundo de investimentos dos três, que mais tarde foi vendido e substituído pelo 3G Capital.

Depois da compra da ALL, eles escolheram Alexandre Behring, um executivo de 30 anos que não
entendia nada de ferrovias, para dirigir a empresa. Ele adotou a mesma receita cortante. Em 2004, Behring
foi para o 3G e a ALL teve outros presidentes, entre eles Bernardo Hees e Eduardo Pelleissone, mas a
forma de lidar com os funcionários de escalão intermediário continuou criando um ambiente tóxico. Para
atingir as metas de corte de custos com consequente aumento do lucro, conforme contou um executivo da
empresa, os controladores não investiam na empresa. Em 2008, a Cosan, produtora de açúcar e hoje uma
minha conta a revista fazer logout
das maiores distribuidoras de combustível e produtoras de etanol do país, do empresário Rubens Ometto,
assinou um contrato com a ALL para que a empresa transportasse açúcar de suas fazendas no interior de
São Paulo até o Porto de Santos. Para que o negócio funcionasse, Ometto colocou 1,2 bilhão na ALL para
duplicação da via férrea e investimento em novos trens e vagões. Os problemas não demoraram a
aparecer. Os administradores da Cosan começaram a reclamar que seus produtos estavam sendo
entregues com atraso e que as locomotivas novas vinham sendo usadas para transportar soja por ser
mercadoria mais rentável. A ALL transportava o açúcar da Cosan em trens dos anos 1960. O atraso na
entrega do produto gerou multas que a ALL nunca pagou.

Como a ALL não investia na preservação dos trilhos, os acidentes não eram incomuns. Em 2010, um
acidente com um trem na cidade paulista de Brotas despejou 100 mil litros de combustível em torno da
via. O mais grave, porém, se deu em 2013, quando uma locomotiva que transportava milho descarrilou,
matando oito pessoas em São José do Rio Preto, também em São Paulo. Era um alerta de que o corte de
custos estava esbarrando na questão da segurança.

As condições de trabalho eram lastimáveis. Os maquinistas que precisavam dormir nos vagões tinham
que se acomodar no chão. Como as locomotivas velhas não possuíam banheiros para os funcionários, ao
contrário das novas, os gestores da ALL decidiram fechar os toaletes das novas porque os maquinistas só
queriam trabalhar nas que garantissem um mínimo de conforto. “Os caras achavam que administrar
ferrovia é o mesmo que fazer cerveja”, me disse um executivo que trabalhou na Cosan. “Eles não
investiam em nada. Descumpriam os contratos. Nem a agência reguladora de transportes de carga queria
mais conversa com eles e sugeriu que desistíssemos da parceria.”

Em 2014, a multa da ALL com a Cosan chegou a 500 milhões de reais. Como a ALL estava prestes a
quebrar, a produtora só tinha duas saídas: ou denunciar o contrato e exigir o pagamento da multa, que
era improvável que fosse paga, ou ficar com o negócio. A Cosan optou pela segunda alternativa.
Encontrou uma situação caótica: os gestores ligados ao trio deixaram a empresa levando todos os
computadores e tornando impossível conhecer os seus contratos e histórico. Os novos executivos
contratados pela Cosan descobriram que os resultados dos balanços tinham sido fraudados, com uma
série de rombos não registrados pelos administradores. Tanto que a Rumo, a empresa que foi criada pela
Cosan para gerir a ferrovia, teve que ajustar duas vezes o balanço por causa de – o eufemismo de novo –
“inconsistências contábeis”. Para engordar os números, até bolas de futebol e cafezinhos haviam sido
computados como patrimônio. Um dos ex-diretores se apoderara de um terreno ao lado da empresa para
fazer um campo de futebol e custou a entregar o ativo de volta.

Os ajustes feitos no balanço da empresa revelaram uma dívida não computada de 153 milhões de reais.
Os novos gestores identificaram também operações de risco sacado não contabilizadas no valor de 139
milhões de reais. O saldo de caixa continha inconsistências com custos não computados de 147,3 milhões
de reais. Portanto, o caixa parecia mais robusto do que era. Como na Americanas, os resultados
vitaminados ajudavam a aumentar os bônus dos executivos. Quando explodiu o escândalo da
Americanas, em janeiro deste ano, a turma da Rumo logo associou as irregularidades da varejista com as
que eles encontraram na ALL.

O
mais impressionante, na visão de alguns ex-gestores da Rumo com os quais conversei, é que todos
os executivos empregados pelo trio que quase arruinaram a ALL foram levados para as
companhias pertencentes à 3G Capital, nos Estados Unidos, entre elas, a empresa de alimentos e
bebidas Kraft Heinz, comprada também em parceria com Buffett, em 2013, e a rede de fast food
Burger King, em 2010. Alexandre Behring hoje figura entre os homens mais ricos do Brasil. Como foi para
3G  ajudar a tocar a gestora, no mercado ele é considerado “o quarto G”, tamanha a influência que tem lá.

Por causa do desastre na gestão, os funcionários da Rumo brincam até hoje que nunca tomam a cerveja do
trio, não consomem o ketchup da Kraft Heinz nem os hambúrgueres do Burger King, por temor de que os
cortes de custos tenham rebaixado a qualidade dos produtos. “Se eles faziam barbaridades para cortar
custo, como colocar dormentes já velhos e descartados de outras empresas, por serem mais baratos, o que
minha conta
não fariam com os produtos alimentícios deles?”, diz uma ex-executiva da companhia.
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Na Kraft Heinz, ocorreu em 2019 um escândalo em tudo semelhante ao da Americanas, embora com
valores bem menores. A Securities and Exchange Commission (SEC), órgão regulador do mercado norte-
americano de capitais, descobriu que, entre 2015 e 2018, a empresa maquiara os balanços, inflando o valor
de seus ativos. A Kraft foi obrigada a fazer um ajuste em seu balanço de 15,4 bilhões de dólares e pagar
uma multa de 62 milhões de dólares para encerrar o processo. De acordo com a SEC, a empresa se
envolvera em vários tipos de má conduta contábil, entre eles o não reconhecimento de descontos dados
pelos fornecedores e a assinatura de contratos de fornecedores falsos. Outro fato que chamou a atenção
foi Lemman ter reduzido sua participação em 2% na Kraft Heinz e deixado o conselho da empresa em
2019, pouco antes de o escândalo vir à tona.

O prejuízo para os acionistas da companhia chegou a 12,6 bilhões de dólares. Em maio deste ano, a 3G e a
Kraft Heinz pagaram 450 milhões de dólares (2,2 bilhões de reais) para encerrar a ação movida pelos
investidores norte-­americanos pelo que sofreram em razão da pedalada nos números do balanço. Na
época da fraude na Kraft, o presidente da empresa era Bernardo Hees e seu principal diretor, Eduardo
Pelleissone, os mesmos que dirigiram a ALL até a empresa ser encampada pela Cosan. Pelleissone acabou
se metendo em outro escândalo nos Estados Unidos ao comprar uma casa de 6 milhões de dólares
enquanto a Kraft Heinz amargava pesados prejuízos.

C
om o escândalo da Americanas, todas essas histórias de fracasso foram ressuscitadas, eclipsando
os sucessos de Lemann, Telles e Sicupira. As coisas ficaram mais sombrias depois que se
descobriu, entre agosto e dezembro do ano passado, logo depois de Rial ter sido anunciado como
o novo presidente da empresa, que Gutierrez e os diretores Saicali, Barros e Cruz venderam 240
milhões de suas ações na companhia, se beneficiando da alta. Gutierrez também transferiu vários imóveis
em seu nome para empresas em nome de familiares, como informou uma reportagem do site da piauí, em
20 de abril passado.

Outras duas operações de empréstimo feitas pela Americanas também expuseram, segundo credores, a
má intenção dos gestores, já cientes de que o rombo de 20 bilhões de reais viria à tona. Em novembro, a
empresa fez um empréstimo de 100 milhões de reais junto ao Banco da Amazônia (Basa), o primeiro
realizado pela varejista com essa instituição bancária. Em 21 de dezembro, fez outro, de 450 milhões de
reais, com a Caixa Econômica Federal, o primeiro em cinco anos com o banco estatal. Pouco tempo
depois, o Basa e a Caixa tomaram o calote da recuperação judicial.

A Americanas, entretanto, tem seus defensores. Professor do MBA em gestão, varejo e marketing da
Fundação Getulio Vargas, Roberto Kanter lembrou, em uma conversa por telefone, que a empresa é uma
referência para o varejo brasileiro e inovou em várias áreas, principalmente no comércio digital, no qual
foi uma das pioneiras. Segundo ele, a varejista não tinha outra saída a não ser entrar em recuperação
judicial, embora, obviamente, diz ele, a situação só tenha chegado a esse ponto porque os gestores
fraudaram uma empresa com um histórico de peso. Sem recuperação judicial, os bancos iriam sacar todos
os recursos da companhia e ela não teria como sobreviver.

Kanter diz que é preciso prestar atenção na crise que o varejo vem enfrentando no Brasil, em razão do
mau desempenho da economia nos últimos anos, da inflação e da alta taxa de juros, além da queda do
poder de compra da classe C e da pandemia. Sua maior preocupação é que a crise da Americanas afete
ainda mais o comércio. “É provável que as empresas sofram as consequências desse escândalo. É claro
que os bancos ficarão muito mais reticentes em emprestar e fazer operações de longo prazo com os
varejistas”, diz. “E o varejo é o setor que mais demanda capital financeiro para sobreviver, já que precisa
fazer vendas a prazos longos.”

Amigos de Lemann, Telles e Sicupira não se conformam com o que consideram ser uma campanha de
desmoralização, deflagrada depois do escândalo da Americanas. Muitos atribuem a campanha à inveja. O
trio também não se submeteu mansamente às agressões, principalmente dos credores, e partiu para o
ataque. Seus advogados divulgaram informações de que os bancos fizeram de conta que não sabiam da
fraude – tramada, segundo eles, por Gutierrez e os três diretores – porque ganharam mais de 5 bilhões de
minha conta reais com os juros das operações de risco sacado. “Essas operações eram muito vantajosas
a revista fazer logoutpara eles, que
cobravam juros exorbitantes”, disse um dos advogados, que trabalha para livrar Lemann, Telles e Sicupira
do imbróglio, empurrando a culpa para os gestores. Os advogados alegam que os bancos com operações
de risco sacado com a varejista tinham plenas condições de perceber que elas não estavam no balanço.
Entretanto, segundo eles, nas cartas de circularização – como são chamados os documentos que os bancos
mandam para as auditorias informando sobre os empréstimos que fizeram às empresas –, as operações de
risco sacado, no caso da Americanas, não eram informadas. Além disso, os advogados estranham o fato
de os bancos não terem consultado as dívidas da Americanas no Banco Central, onde estavam, inclusive,
as operações de risco sacado. “Como a auditoria poderia pegar a fraude se os bancos esconderam as
operações?”, afirmou o advogado ouvido pela piauí.

Em um dos documentos da recuperação judicial vazados para a imprensa, o Escritório de Advocacia


Zveiter informa que tanto o Itaú Unibanco[2] quanto o Santander teriam retificado, a pedido da
Americanas, operações de risco sacado, reduzindo o seu valor. O Itaú Unibanco divulgou uma nota em
que nega a informação e diz que a empresa estava agindo de má-fé. O Santander, por sua vez, disse,
segundo os documentos vazados, que tinha retificado as informações sobre o valor das operações que
inicialmente foram com um valor menor. André Covre, o ex-diretor financeiro da Americanas que entrou
e saiu junto com Rial, disse em seu depoimento aos órgãos de investigação que, nas cartas de
circularização de 2021 às quais teve acesso, não havia qualquer referência a operações de risco sacado. Ou
seja, as operações de risco sacado teriam sido camufladas e seria preciso investigar se os bancos operaram
em conluio com a varejista ou se as cartas de circularização foram alteradas pelos gestores da Americanas.
Esta é uma das transações sob investigação da CVM, do Ministério Público e da Polícia Federal.

O
s ataques contra Lemann, Telles e Sicupira começaram a arrefecer depois que os três concordaram
em colocar 10 bilhões de reais para cobrir o rombo da Americanas, o que está sendo negociado
com os bancos credores. Corre no mercado a versão de que Lemann, inclusive, teve uma conversa,
em separado, com os presidentes dos bancos, para se explicar – entre eles, André Esteves. Mas,
para os acionistas minoritários e os fornecedores, não haverá refresco. Luis Stuhlberger, gestor de um dos
maiores fundos de investimento da América Latina, o Verde, em carta aos seus clientes, recorreu a
palavras duras ao falar da Americanas. “Fomos vítimas de uma fraude”, disse.

Stuhlberger também contou que em 2022 a Americanas fez uma emissão de 2 bilhões de reais de papéis
com vencimento em onze anos. O Verde decidiu investir. “Infelizmente, fomos surpreendidos, como todo
o mercado brasileiro, pela notícia de Sergio Rial, que causou colapso no preço das ações”, justificou-se, em
conversa com um interlocutor de sua intimidade. A recuperação judicial, diz ele na carta, “será um
processo longo, ruidoso ao fim do qual os únicos ganhadores serão os inúmeros advogados. Quanto mais
tempo levar, menor a chance de [haver] alguma recuperação relevante para a companhia e seus
funcionários, fornecedores, credores e acionistas”.

O novo presidente da Americanas, Leonardo Coelho Pereira, vem insistindo que a companhia tem
chances de recuperação e comemorou os resultados da Páscoa, com um crescimento de 10% em relação ao
ano passado, um recorde na venda de ovos de chocolate, apesar da recuperação judicial (que poderia ter
levado muitos fornecedores a desistir de vender para a empresa). Pereira disse também que pretende
preservar os funcionários, embora quatrocentas demissões já tenham sido feitas. Até entrar em
recuperação judicial, a Americanas tinha 40 mil funcionários, 16 mil fornecedores, 1 750 lojas, 127 mil
vendedores parceiros, que usam a plataforma digital da varejista para vendas, e 47,6 milhões de clientes,
segundo o documento entregue à Justiça no âmbito do processo de recuperação judicial.

No dia 19 de maio, a Americanas admitiu ao mercado que pode se desfazer da sua plataforma financeira,
a Ame, para levantar recursos e saldar suas dívidas com os credores. Também está em busca de
comprador para a problemática Hortifruti, operação que não deslanchou. Com a reestruturação, a
Americanas, de acordo com Pereira, deve diminuir de tamanho, para ajudar a reduzir o rombo. De
qualquer forma, Pereira avalia que a situação “não é tão caótica como afirma o mercado, embora não seja
também um mar de rosas”, segundo tem dito a alguns colaboradores da empresa. Aos seus interlocutores,
evoca a força e a importância da Americanas no varejo brasileiro. “É uma marca muito querida. É um
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canal relevante para o varejo brasileiro, tanto no físico como no digital. E os nossos fornecedores podem
viver sem a gente?”

Esse conteúdo foi publicado originalmente na piauí_201 com o título “A fraude titânica”.

[1]  A PwC Brasil é a empresa que audita a Editora Alvinegra, que publica a piauí.

[2]  O fundador da piauí, João Moreira Salles, é acionista do Itaú Unibanco.

Consuelo Dieguez
Repórter da piauí, é autora de O Ovo da Serpente – Nova Direita e Bolsonarismo: Seus Bastidores,
Personagens e a Chegada ao Poder (Companhia das Letras)

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