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Construindo

gramáticas na escola


Período
Roberta Pires de Oliveira
Renato Miguel Basso
Sandra Quarezemin

Florianópolis - 2013
Governo Federal
Presidência da República
Ministério de Educação
Secretaria de Ensino a Distância
Coordenação Nacional da Universidade Aberta do Brasil

Universidade Federal de Santa Catarina


Reitora: Roselane Neckel
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Curso de Licenciatura Letras-Português na Modalidade a Distância


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Ficha Catalográfica

O48c Oliveira, Roberta Pires de


Construindo gramáticas na escola : 8. período / Roberta Pires de
Oliveira, Renato Miguel Basso, Sandra Quarezemin. – Florianópolis :
UFSC/CCE/DLLE, 2013.
184 p. : il., gráfs, tabs.

ISBN: 978-85-61482-61-9

1. Língua portuguesa – Estudo e ensino. I. Basso, Renato Miguel. II.


Quarezemin, Sandra. III. Título.

CDU: 806.90-5

Catalogação na fonte pela Biblioteca Universitária da


Universidade Federal de Santa Catarina
Serious inquiry begins when we are willing to be surprised by simple phe-
nomena of nature, such as the fact that an apple falls from a tree, or a phrase
means what it does.

Chomsky, 1993, pg. 25

A pesquisa séria começa quando estamos dispostos a sermos surpreen-


didos pelos fenômenos simples da natureza, como o fato de que a maçã cai da
árvore ou que uma sentença significa o que ela significa.
Sumário
Unidade A ..........................................................................................13
1 Preâmbulos para um ponto de vista .....................................................15
2 A Linguística, os cursos de Letras e os Parâmetros Nacionais......25
3 As línguas nas aulas de português ........................................................41

Unidade B ...........................................................................................45
4 Línguas e gramáticas ..................................................................................49
5 A faculdade da linguagem........................................................................59
6 O que as crianças nos dizem? ..................................................................71

Unidade C...........................................................................................79
7 O dado negativo e o erro ..........................................................................85
8 O procedimento científico ........................................................................91
9 O procedimento linguístico .....................................................................97

Unidade D ....................................................................................... 113


10 O PB, que bicho é esse? ........................................................................ 117
11 “Perda” de morfologia de número no nome e no verbo .......... 121
12 O objeto nulo e os pronomes no acusativo .................................. 129
13 O lugar como sujeito ............................................................................. 133
14 Adjuntos adnominais como sujeitos ............................................... 135
15 Construções de alternância incoativa ou passivas com verbos
na forma ativa.................................................................................................. 139
16 Sujeito nulo ............................................................................................... 141
17 O singular nu ............................................................................................ 145
18 Mudanças sintático-semânticas recentes no PB ......................... 149
19 Fechando algumas pontas .................................................................. 157

Conclusão........................................................................................ 158

Referências bibliográficas ......................................................... 176


Apresentação
viver é super difícil
o mais fundo
está sempre na super fície

Paulo Leminski

A
s línguas humanas são fascinantes. Esperamos que este
livro seja um convite para você parar e prestar atenção
nelas, em especial, na língua que você fala em casa, na
língua da poesia de rua, do encontro amoroso, da fofoca, da se-
dução e da propaganda – a língua que é você, que te faz sentir
em casa. Ela é tão normal, tão natural, que parece ser sem impor-
tância, superficial. É talvez porque somos tão a nossa língua que
perdemos a dimensão da sua complexidade. Mas, preste atenção
nas suas conversas e se pergunte sobre como elas ocorrem: como é
possível que possamos entender o que o outro está nos dizendo e
até mais, como conseguimos “ler a mente” do outro para além do
que é dito, adivinhar intenções, sacar piadas, ler as entrelinhas das
falas. Se você parar mesmo e refletir vai se impressionar, não há
dúvidas. Repare, por exemplo, nas crianças, como elas rapidamen-
te aprendem a falar. Coloque-se questões sobre a sua língua, sobre
as línguas em geral: quantas línguas são faladas no mundo?; como
são essas línguas?; elas são muito diferentes da sua, da minha?;
como surgiram as línguas?; de onde elas vieram?; por que algumas
pessoas perdem a sua língua?; são tantas as perguntas que pode-
mos nos fazer quando começamos a pensar sobre as línguas... Ou
será que você, quando pensou na sua língua, lembrou que você não
sabe falar direito, que você fala errado e que tem vergonha dela?
Por que temos vergonha da língua que falamos? De onde vem esse
mito de que há línguas erradas, línguas sem gramática? Qual é a
língua correta? Por que ela é correta? Essas são perguntas que ra-
ramente nos colocamos: aceitamos que há uma língua correta – na
grande maioria das vezes aquela que não falamos – e esquecemos
de perguntar por que ela é correta. De onde vem essa ideia de que
há línguas mais bonitas ou melhores? O professor de línguas deve
se colocar essas questões para estar menos vulnerável a distorções
e preconceitos, para entender melhor esse objeto tão interessante
que é a linguagem humana.

Há muitas diferenças entre Este manual pretende dar uma visão diferente de língua e ensino
a língua escrita e as línguas nas aulas de português. É muito comum ouvirmos que o profes-
faladas que não se resumem
a questões gramaticais. A gra- sor de português ensina língua materna – mas esse é um grande
mática do português escrito equívoco, simplesmente porque ninguém ensina língua materna.
padrão certamente não é a
mesma gramática do portu- Os alunos, quando chegam na primeira série (e mesmo antes no
guês vernacular, mas, além pré-primário), são falantes fluentes, dominam a sua língua ma-
disso, a língua escrita é muito
mais monitorada, um proces- terna. Mas, então, por que temos aulas de português? A resposta
so consciente de produção, tradicional é: para ensinar a ler e a escrever. Ler e escrever são os
que é distinto da oralidade
porque permite revisão, por- processos de recepção e produção de uma língua escrita e as lín-
que o autor decide em que guas escritas não são línguas maternas. Ninguém escreve e lê no
ponto o seu texto está pronto.
A atenção também não é a berço, mas todos nós começamos a falar no berço. Ensinar a ler e a
mesma. Atualmente, há mo- escrever é, então, ensinar uma outra língua, uma língua que tem a
dalidades de escrita que estão
mais próximas da oralidade, sua gramática, que não é a gramática da língua materna do aluno.
como o chamado “texting”
que os celulares permitem. Essa constatação, somada ao ato de assumir suas consequências,
Nosso objetivo neste livro não é já um avanço na reflexão sobre as aulas de português. Mas por
é discutir a língua escrita. Veja
o vídeo http://www.youtube. que as aulas de português têm que ser apenas aulas de leitura e
com/watch?v=yoF2vdLxsVQ escrita? Acreditamos que não só elas não têm que ser apenas leitu-
para uma discussão sobre tex-
ting e escrita. ra e escrita, mas elas não devem ser apenas isso, porque sem uma
reflexão sobre a gramática o caminho para adquirir essa outra lín-
gua é mais espinhoso, e por vezes desnecessariamente complexo e
oneroso para todos os envolvidos. Um caminho mais interessante
é mantermos o fascínio pela língua, a curiosidade dos alunos, sua
vontade de saber e aprender. Esse caminho parte da língua do alu-
no, da oralidade, da compreensão da gramática do português bra-
sileiro falado para ir, juntamente com os alunos, construindo ou-
tras gramáticas de outras línguas, incluindo a gramática da língua
escrita. Não se trata de estudar a gramática – proposição que só faz
sentido para aqueles que entendem que há uma única gramática já
pronta, e esse não é o nosso caso –, mas de construir gramáticas.
É essa a proposta que apresentamos neste livro: os alunos podem e
devem construir gramáticas e explorar essa forma de saber.
Na primeira unidade, mostramos que essa perspectiva não aparece
nos Parâmetros Curriculares Nacionais para o ensino de portu-
guês. Trata-se, portanto, de uma rota alternativa, mas que tem su-
porte em pesquisas já realizadas com falantes de diversas línguas,
que indicam que há uma relação positiva entre o aluno construir
hipóteses sobre a sua língua e ter um desempenho melhor na lín-
gua escrita, além de ter um efeito positivo no ensino de ciências e
de matemática. O professor de português pode, com o auxílio da
linguística, ser o promotor de interações entre várias matérias não
apenas de uma maneira superficial, apenas identificando temas de
pesquisa/estudo comuns, mas de um modo mais incisivo, ensinan-
do o raciocínio científico, estabelecendo pontes com a história e
a biologia, por exemplo. Construir gramáticas é construir uma te-
oria de explicação para aquela língua e é esse o princípio da for-
mulação de hipóteses e sua verificação nas outras ciências. Mas é
também refletir sobre a história de uma língua, a história da língua
nos homens e em cada um de nós individualmente. Claro, a língua
é também poesia, que digam os poetas na luta pela palavra, na
exploração, muitas vezes arqueológicas, como mostram os escritos
“Que isso foi o que sempre
de Guimarães Rosa, das línguas. Não se faz poesia sem gramática. me invocou, o senhor sabe:
A segunda unidade é composta por uma série de informações que eu careço de que o bom seja
bom e o ruim ruim, que dum
permitem sabermos (note: não é acharmos, nem pensarmos, mas lado esteja o preto e do ou-
sabermos) que há uma faculdade da linguagem. Os apressados em tro o branco, que o feio fique
bem apartado do bonito e
nos classificar de gerativistas devem tomar cuidado (aliás, sempre a alegria longe da tristeza!
deve haver cuidado na aplicação imediata de rótulos por vezes mal Quero os todos pastos de-
marcados... Como é que pos-
compreendidos): é certo que os gerativistas entendem que há uma so com este mundo? Este
faculdade da linguagem, mas muitos que têm também tal compre- mundo é muito misturado.”
Guimarães Rosa, Grande
ensão, não são adeptos do gerativismo. As coisas são mais mistura- Sertão: Veredas.
das do que as caixinhas com as quais gostamos de rotular o mundo.
Sabemos que somente os humanos têm línguas, sabemos que não
há certo nem errado nas línguas, sabemos que as línguas variam,
mas sabemos também que essa variação não é aleatória, sabemos
que há um componente cerebral por trás da linguagem... Essa revi-
são é importante para entendermos as línguas. A terceira unidade
introduz o método científico para a análise das línguas. Ensinar
ciência através da construção de gramáticas pode ser não apenas
muito divertido, mas principalmente uma maneira de re-significar
a língua falada, em especial na nossa cultura bacharelesca que vê
a língua das gentes com tanto preconceito, afinal mostrar a sua
gramática é desfazer preconceitos que usurpam o nosso direito à
nossa língua. O português brasileiro é o tópico da quarta e última
unidade. Professores de português no Brasil precisam saber como
é essa língua, que língua é essa que nós falamos.

Não há educação sem pesquisa, sem reflexão, sem curiosidade,


sem perplexidade.

Que esse livro possa deslocar seus leitores, mudar sua orientação
ao propor rotas alternativas!

Roberta, Renato e Sandra.


Unidade A
Rotas alternativas para o ensino de
língua
Preâmbulos para um ponto de vista CAPÍTULO 01
Objetivo: Apresentar a proposta deste livro. Analisar os Parâmetros Curricula-
res Nacionais para o ensino fundamental e para o ensino médio. Propor novas ma-
neiras de ver a língua e o ensino de português, mais em sintonia com a Linguística.

1 Preâmbulos para um ponto de


vista
Este livro é um ensaio que busca refletir sobre a formação do licen-
ciando em Letras, a escola e o ensino de língua portuguesa, tendo em vista
a contribuição que a Linguística atual pode oferecer. Como entendemos, a
Linguística é uma disciplina científica que busca compreender as línguas
naturais, aquelas que adquirimos em casa, sem instrução formal. O papel
da Linguística no ensino não é tema novo. Há vários projetos que já foram
desenvolvidos e há vários aspectos positivos proporcionados por essa pers-
pectiva. Um aspecto positivo, que foi tema de experiências didáticas des-
critas em Chomsky et al (1985) e Carey et al (1989), é o ensino de ciências
e matemática através da reflexão sobre as línguas naturais. Esses projetos
foram aplicados em comunidades carentes nos Estados Unidos – em comu-
nidades indígenas americanas – e na África, em escolas sem infraestrutura,
sem laboratórios, sem bibliotecas. Refletir sobre a linguagem exige apenas
As línguas de sinais são
um bom professor, quadro negro e a intuição dos alunos. Essa é uma ma- línguas naturais com as
neira de ensinar a raciocinar cientificamente com pouquíssimos recursos, mesmas propriedades
das línguas faladas. Elas
o que permite a inserção social dessas comunidades. Essas são experiências não são pantomimas.
com resultados altamente positivos para o ensino da língua escrita e para Se você se interes-
sou pelo tema veja o
a matemática. Uma outra razão para utilizarmos a Linguística na escola é livro Talking Hands de
o fato de que ela permite a inclusão de todos os falantes, não apenas de Magalit Fox (2007). Em
português, há vários
variedades diferentes do português, variedades que são estigmatizadas so- livros de Ronice Qua-
cialmente – e esse é também um aspecto que a Linguística ajuda a esclarecer dros. Veja por exemplo
http://portal.mec.gov.
-, mas principalmente de falantes de outras línguas, como por exemplo a br/seesp/arquivos/pdf/
língua de sinais brasileira. As aulas de português não precisam ser sobre o port_surdos.pdf .

português, podem ser sobre línguas e aquisição de segunda e terceira lín-


guas. Sempre vale a pena lembrar: a língua escrita não é uma transposição
da língua falada, é uma outra língua, com uma outra gramática e outras
caracterísitacas. Aulas de português podem ser aulas de ensino dessa outra

15
Construindo gramáticas na escola

língua, mas não de língua materna. Os alunos já têm a sua língua materna.
Ana Teberosky, pesquisado-
ra argentina reconhecida no Essa confusão entre língua escrita e língua materna é nefasta. Ninguém tem
Brasil por seus estudos sobre a língua escrita como sua língua materna!
a língua escrita se debruça
sobre o tema em três gran-
des obras: Psicogênese da Nesse sentido, vamos imaginar diferentemente as aulas de portu-
Língua Escrita, em parceria
com outra pesquisadora, guês, como momentos em que a língua falada ou as línguas e sua gra-
Emília Ferreiro, e em Psico- mática ou suas gramáticas ganham proeminência, o que permite tornar
pedagogia da Linguagem
Escrita e Aprendendo a Es- essas aulas espaços de interação com outras disciplinas, com as quais em
crever. geral não há conversa, como, por exemplo, a matemática, e de interven-
ção na sociedade, não apenas para desmistificar muitos dos preconcei-
tos que a sociedade brasileira ainda tem quanto à língua, mas principal-
mente para formar cidadãos críticos.

As aulas de português podem (ou, talvez, devam) ser momentos pri-


vilegiados em que o aluno se reconheça, valorize sua fala, entenda o
lugar da sua fala na sociedade, ao mesmo tempo em que ele apren-
de a construir modelos científicos, a raciocinar através da formula-
ção e refutação de hipóteses, afinal gramáticas são modelos cientí-
ficos para explicar a sua língua. Gramáticas nada mais são do que
modos de explicação para um fenômeno da natureza – as línguas
naturais, que são uma característica exclusiva dos seres humanos.

Um dos objetivos deste livro é pavimentar um caminho que nos


leve, através das aulas de português, a encarar as línguas sob esse outro
prisma, que não é nem literário, nem o da sua utilidade para aprender a
ler e a escrever – ambos, obviamente, legítimos e necessários –, mas sim
aquele do olhar curioso para um fenômeno natural, que em boa parte
caracteriza a atividade científica.

Como já mencionamos, essa perspectiva científica/naturalista tem


efeitos positivos na aprendizagem não apenas da ciência, porque apren-
demos a construir modelos científicos com um material que é facilmente
acessível – as nossas interações linguísticas cotidianas e o conhecimento
implícito que todos temos das regras da nossa língua (regras internaliza-
das) –, mas também no desenvolvimento da escrita e da leitura, porque

16
Preâmbulos para um ponto de vista CAPÍTULO 01
permite que o aluno saiba manipular diferentes gramáticas, e aprenda que
há diferentes línguas intermediárias, estágios na aprendizagem de uma
outra língua. Além disso, permite o florescimento da cidadania, porque A discussão sobre
leva o aluno a perceber a língua de maneira diferente, como a sua maneira estágios intermediá-
rios na aquisição de
de ser. A sua língua é a sua maneira de ser e a exclusão dessa maneira de uma língua aparece na
ser tem efeitos negativos, também na aprendizagem da leitura e da escrita. reflexão teórica sobre
o ensino de línguas
Somos as línguas que falamos. Nossa língua materna é um componente estrangeiras. Nossa
fundamental da nossa identidade, não apenas como pessoa, mas também intenção aqui é apenas
chamar atenção para o
como povo. Não somos cidadãos plenos se temos vergonha da nossa fala, fato de que há está-
se negamos até hoje que há um português do Brasil, que tem característi- gios na aquisição de
uma qualquer, incluin-
cas próprias reconhecidas há séculos, e se vemos no português da gente, do a língua escrita.)
na feliz expressão de Ilari & Basso (2006), um motivo de chacota porque
não sabemos falar. Esses são indícios de uma subjetividade em desacor-
do consigo, porque não aceita o que é. E é só quando aceitarmos quem Note que é a colônia
somos que seremos mais plenos. Acreditamos que legitimar a língua que que não sabe falar; é a
fala da colônia que é
falamos, nossa identidade linguística é uma das funções do professor de errada. Falamos “feito
português, uma função que ele realiza olhando para as línguas faladas, índio” (que bom, né?).
ensinando aos alunos a construir modelos de gramáticas para explicá-las.
Nesse percurso, ele mostra que há outras línguas, outras gramáticas, e que,
contrariamente ao senso comum que acredita haver uma única língua no
Brasil, somos multilíngues e podemos aprender novas línguas, entre elas
a língua escrita com a sua gramática.

Mais de 200 línguas diferentes são faladas em comunidades que


compõem o território nacional. São brasileiros que falam idiomas
autóctones, como os Xavante, Bororo, Guarani e centenas de outros
grupos étnicos, ou alóctones, línguas de imigração, como o alemão,
árabe, japonês, italiano, falares afro-brasileiros e outras similares;
além, ainda, da Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS).

Embora grande parte da população as desconheça, elas são cons-


titutivas da história e da cultura nacional, pois o Brasil é um país
pluricultural e plurilíngue. O desconhecimento se deve, em grande
parte, a que o estudo, a descrição e a valorização dessa pluralidade
linguística continuam praticamente restritos aos meios acadêmicos
e instituições especializadas.

17
Construindo gramáticas na escola

A visão científica sobre as línguas está em confronto com a gra-


mática escolar e com as noções prescritivas sobre as línguas. Está
em choque com a visão de que há línguas melhores, mais lógicas ou
mais bonitas. Mas também está em franca oposição com a convicção
de que o objeto de estudo da gramática é a escrita, visão que iguala
o conhecimento linguístico com as habilidades de leitura e escrita.
Assim, a perspectiva científica propõe uma direção que não aparece
nos Parâmetros Curriculares Nacionais. Nos Parâmetros, a gramáti-
ca é um instrumento para a escrita, ela está a serviço da aprendiza-
gem da escrita. A nossa proposta é uma rota alternativa a essa visão
instrumental da gramática.

O ponto de vista naturalista que, mais uma vez, olha para a língua
conforme ela se manifesta, primeiramente como uma língua falada,
permite também entendermos e superarmos certas dicotomias, como
a que há entre social e indivíduo. A língua é ao mesmo tempo o que
permite que nós organizemos o nosso pensamento e a nossa subjetivi-
dade e o que nos permite interagir com o outro. Quando começamos a
pensar na língua como interna, como nos constituindo biologicamen-
te, porque, afinal, só os humanos falam, percebemos que ela é um meio
de interação social e é também um sistema cognitivo extremamente
complexo e sofisticado. Elaboramos raciocínios complexos porque te-
mos linguagem, sem ela não teríamos essa possibilidade. Há muitas
discussões sobre a origem das línguas e passamos rapidamente pelo
Veja aqui uma bela tópico no próximo capítulo, mas há correntes que defendem que a lín-
ponte a ser feita entre
o professor de portu- gua se originou como uma maneira de organizar o pensamento e só
guês o professor de então se tornou um meio de interação social; assim como há aqueles
biologia! Não há muito
sobre essa questão que acreditam que sua origem é social e então ela se internalizou. Para
em português, mas todos os efeitos aqui, a reposta correta por ora não importa. Não se
há muito em inglês, a
língua atual da ciên- trata de defender se é esse ou aquele o caso – não sabemos isso ainda
cia. Uma discussão –, mas de chamar a atenção para esse aspecto fundamental das línguas
atual sobre o que nos
diferencia dos outros que tem sido negligenciado nas escolas e nos Parâmetros Curriculares
animais está em Penn, Nacionais (doravante PCNs), o seu aspecto de gramática interna, do
Holyoak & Povinelli
(2008), disponível, em indivíduo, a sua relação com o pensamento e o fato de que é a lingua-
inglês, na webteca. gem talvez o que nos individualiza como espécie.

18
Preâmbulos para um ponto de vista CAPÍTULO 01
Incapacidades linguísticas – não apenas as afasias mas as falhas lin- Afasias
guísticas que os autistas apresentam – são indícios de dificuldades de As afasias são problemas com
interação que têm correlatos físicos, cerebrais ou genéticos. a função da linguagem que
ocorrem devido a acidentes
que danificam o cérebro. Há
Certamente, seremos leitores mais atentos e escritores menos ingê- vários tipos de afasia.
nuos se entendermos os processos não apenas sociais, mas também
biológicos, cognitivos, envolvidos na produção e interpretação da
linguagem, porque, por mais que haja fatores sócio-contextuais na
produção, por exemplo, de textos, os textos são produzidos por indi-
víduos da espécie humana que empregam certas funções cerebrais
específicas e sem elas – assim como sem o entorno social – não é
possível a produção linguística.

É importante frisar esse ponto porque, como veremos adiante, os


PCNs para o ensino de língua portuguesa nas séries fundamentais en-
tende que a função das aulas de português é ensinar a ler e a escrever, e
assim, talvez sem querer e/ou saber, deixa de lado todo um aspecto es-
sencial do que constitui falar uma língua e realizar produções linguísti-
cas. É triste que seja esse o único viés ou mesmo o principal objetivo das
aulas de português, ainda que o motivo seja nobre: ultrapassar os pés-
simos índices de desempenho que apresentamos com relação a práticas
linguísticas escritas. É verdade que uma certa parcela dos alunos chega
à universidade, após 11 anos de aulas de português, sem saber ler e es-
crever. Sem dúvida, há algo de errado aí. Mas não está claro que reduzir
as aulas a produção e leitura de textos – com quase nada de gramática,
apenas se ela for necessária para o texto e sem uma reflexão sobre o fe-
nômeno da linguagem –, seja a melhor solução. Muito menos legar essa
tarefa à universidade, fazendo com que tratemos do problema (a dificul-
dade com a linguagem escrita) sem atacar diretamente as causas (afinal,
por que é que mesmo que depois de 11 anos os alunos ainda apresentam
essa dificuldade?). Seja como for, não podemos jamais perder de vista
que as línguas são muito mais interessantes, fascinantes, sedutoras do
que aquilo que costumamos imaginar e há atualmente, como já citamos,
pesquisas que mostram que a reflexão científica sobre as línguas faladas
interfere positivamente na aquisição da escrita.

19
Construindo gramáticas na escola

Nosso objetivo não é fazer um balanço do que são as aulas de por-


tuguês hoje em dia e muito menos propor como elas devem ser, mas
refletir sobre possíveis maneiras de como tratar a língua e seu estudo,
modos não convencionais de pensar o lugar da construção de gramáti-
cas na escola, rotas alternativas.

Veja que falamos em construção de gramáticas e não em apren-


der gramática, muito menos em usar a gramática (o que significa
aceitar que há uma única gramática, certamente a normativa) para
explicitar questões ou problemas de texto escrito, como sugere os
PCNs. Construir gramáticas exige criatividade, observação, prestar
atenção em algo que é tão nosso que não enxergamos a sua com-
plexidade – tão perto dos olhos que a vista não alcança.

As línguas faladas, mesmo aquelas que não têm uma escrita (que são,
na verdade, a maioria delas), são extremamente complexas e, apesar de
longos anos de estudos sérios e criteriosos, não há hoje em dia um sistema
único para explicá-las completamente. Os linguistas têm trabalhado sis-
tematicamente nesse projeto, mas ele está longe de estar terminado, ainda
que tenha havido muitos progressos significativos. Tudo isso para dizer
que, atualmente, diante do conhecimento que temos, estudar gramática
significa abrir para inúmeras áreas, incluindo a matemática, e estar diante
de um objeto muito intrincado, mas facilmente acessível.

Construir gramáticas justamente para entender como elas funcio-


nam é uma meta diferente, que não é utilitarista, porque visa entender
a natureza das línguas como algo em si, compreender talvez o fenômeno
evolutivo mais interessante que há neste planeta (sem exagero!), o fato
de que somos animais que falam e por isso pensam; construir gramáticas
é talvez um dos melhores caminhos para ensinar a ver o fascínio do que
parece tão normal, tão banal. Afinal qualquer um fala. Mas, novamente,
este não é um livro de receitas; não há receitas para ser um bom profes-
sor, trata-se de um desafio permanente. Como dissemos, nosso objetivo
aqui é chamar a atenção para fatos das línguas que não aparecem nas

20
Preâmbulos para um ponto de vista CAPÍTULO 01
aulas de português; mostrar que é possível ter uma maneira diferente de
abordar as línguas e construir, na interação com vocês, leitores/alunos,
propostas para a escola. Propostas em que as aulas de português não
sejam decorar regras ou decorar nomenclaturas. Mas também sem que
as aulas de português sejam apenas aulas de produção e leitura de textos
que deixam de lado a beleza da oralidade, a criatividade que permeia a
gramática, que não se colocam o desafio de entender esse sistema com-
plexo que são as línguas faladas, que perdem as dimensões biológicas,
físicas, matemáticas, geográficas, históricas, antropológicas etc que es-
tão intrinsicamente associadas a falar uma língua.

É fato, contudo, que o professor de português tem que dar conta


de uma quantidade estonteante de tarefas diversas: ensinar literatura,
ensinar a leitura e a escrita dos alunos, refletir sobre a língua, ensinar
gramática... São tantas as tarefas que não seria possível dizermos o que
um professor deve fazer em sala de aula (seria inclusive um pouco irres-
ponsável pretender ter tal grau de intervenção). Aulas são momentos de
envolvimento subjetivo que só o professor, envolvido com aquela turma,
naquele momento, pode decidir como conduzir. Nossa intenção é outra:
queremos mostrar outras vias de abordagem da língua e da gramática
que podem enriquecer as opções de como agir na sala de aula. Vias que
não estão nos PCNs para o ensino fundamental e estão muito timida-
mente nos PCNs para o ensino médio. Vias alternativas, rotas marginais
que exigem muito mais do professor, porque exigem sua participação
ativa, exigem que ele ou ela escutem o aluno, deem voz e gramática a
esse aluno e permitam uma relação em que talvez não seja ele ou ela a
ter a palavra final, talvez a hipótese ou a proposta do aluno seja melhor,
mais eficiente. Estar aberto ao risco é mais difícil do que chegar na sala
Ver Honda & O’Neil
de aula já sabendo o que ensinar; construir é sempre mais arriscado. Nas
(1993).
experiências envolvendo o ensino da Linguística, fala-se com frequên-
cia no estilo socrático de ensino, aquele que leva o aluno a raciocinar,
a construir suas hipóteses e testá-las – é o que estamos chamando de
construção de gramáticas – que não apresenta as respostas e, acima de
tudo, que está preparado para avaliar respostas que não eram esperadas,
respostas originais dadas pelos alunos.

21
Construindo gramáticas na escola

Como nos PCNs, o pano de fundo desta nossa reflexão tem presen-
te não apenas os baixos índices de desempenho dos nossos alunos, mes-
mo daqueles que estão em escolas particulares, aferidos por diversos
métodos, mas também o fato de que esses índices pouco se alteraram ao
longo desses últimos anos, em particular desde a publicação dos PCNs
para o ensino médio, em 1997, já lá se vão mais de 10 anos. Também
temos em mente que são ainda poucas as pesquisas no país que podem
ser consideradas de ponta, e não apenas na Linguística. Um estudo di-
vulgado pela Royal Society, academia nacional de ciência britânica, em
março de 2011, mostrou que houve um pequeno progresso da produção
científica do Brasil: levando em consideração as pesquisas globais, pas-
samos de 1,3% do total das pesquisas realizadas no mundo para 1,6%.
Esse é ainda um índice muito baixo e são ainda poucos os pesquisadores
no país. Já vimos que a Linguística pode ajudar porque é possível ensi-
nar o método científico com um material facilmente acessível.

As análises sociológicas mais contemporâneas indicam que a so-


ciedade do futuro já se ancora no conhecimento, e esse conhecimento é
científico. Ora, não podemos fingir que não há um conhecimento cien-
tífico sobre as línguas humanas; não podemos ignorar que há pesquisas
que mostram como a Linguística é positiva no ensino da ciência, da
matemática e da língua escrita. Sem sombra de dúvidas há outras for-
A matemática é, como
sabemos, uma lingua- mas de conhecimento que não são científicas e que são extremamente
gem, um sistema re- fundamentais para o desenvolvimento das sociedades e dos seus indiví-
cursivo com significa-
do, e, portanto, serve duos, o conhecimento através das artes é talvez o exemplo mais claro. E
de inspiração para en- certamente a sociedade do futuro é também uma sociedade de conheci-
tender e explicarmos
diversas características mento artístico. Não é esse o viés que iremos explorar neste ensaio por-
das línguas naturais; que acreditamos que a reflexão feita na literatura e seus envolvimentos
assim como sustenta o
conhecimento científi- com o cinema, a pintura, a música, constrói esse homem estético. Neste
co que temos sobre a ensaio, as interações a serem exploradas são com as outras ciências: a
natureza.
biologia, a física, a história, a matemática. Nosso foco é, para usar uma
expressão de Moro (2010), o homem gramático.

Não se trata tampouco de entender que a ciência é a verdade úl-


tima, o fim das incertezas – pode ser nem haja tal coisa. Mesmo em
disciplinas tão “bem comportadas” como a matemática, não se pode

22
Preâmbulos para um ponto de vista CAPÍTULO 01
falar em verdade última; não há completude, como mostrou Gödel. E
quem estuda física e o universo sabe bem que quanto mais entendemos Kurt Friedrich Gö-
sobre o Big Bang, mais questões surgem, surgem novas perguntas que del, lógico, filósofo e
matemático, publicou
só podem ser colocadas a partir dessa perspectiva. Por exemplo, atual- seus teoremas sobre a
mente há um grande consenso entre os físicos de que há “matéria escu- incompletude em 1931.
O teorema mostra que
ra”; podemos dizer inclusive que sabemos que há matéria escura, mas qualquer sistema axio-
não sabemos ainda o que é matéria escura. Ter descoberto isso não ape- mático recursivo com
poder suficiente para
nas desnorteou a comunidade de físicos que demoraram a aceitar que descrever a aritmética
a maior parte do universo é feito com essa matéria, mas colocou uma dos números naturais
(o modelo de Peano,
série de questões que não tínhamos nem mesmo condições de imaginar por exemplo) gera
antes disso ter ocorrido. E pode ser que estejamos vivendo um momen- proposições verdadei-
ras que não podem ser
to de revolução científica e que o nosso conceito mesmo de matéria te- provadas a partir exclu-
nha que ser abandonado. Já vivemos isso em outros períodos da história sivamente dos axiomas.
Convidamos o leitor a
quando, por exemplo, abandonamos a ideia de que a Terra é o centro do pesquisar (através do
universo. Voltando ao domínio da Linguística, abandonamos a ideia de Google, por que não?)
os termos e conceitos
que há uma língua correta ou melhor, porque isso está errado, embora que não conhece nesta
esse fato ainda não seja de domínio público. Demoramos muitos anos passagem.
para aceitar o sistema heliocêntrico e só recentemente, em 1983, a con-
denação de Galileu Galilei como herege foi retirada.
Galileu Galilei foi um
Nossa convicção, que é aquela do cientista, é de que o conhecimen- homem muito inte-
ressante e vale a pena
to científico se constrói racionalmente, avaliando hipóteses, testando te- ler sobre ele. Veja,
orias, e principalmente, falsificando essas teorias. Esse método pode ser por exemplo, Galileu
Galilei, o Primeiro Físico
facilmente ensinado através da reflexão sobre a língua falada. É claro que de James MacLachlan
tal procedimento não é livre de outros fatores, não há uma razão pura. (2008); e certamente
a famosa peça de
Bertold Brecht

Veja, por exemplo, a descrição que Ludwik Fleck (2010) faz da des-
coberta da sífilis em Gênesis e Desenvolvimento de um fato cientí-
Há muitos livros bons de
fico. Ele mostra que o que leva à descoberta não são apenas fatores divulgação científica sobre
lógico-dedutivos, embora sem eles o processo de descoberta não o universo e a física con-
temporânea. Recomenda-
funcione, mas fatores externos como a guerra e também, em grande mos Simon Singh, Big Bang
medida, a imaginação dos cientistas. (2010).

A ciência, como não poderia deixar de ser, é imaginativa, inventiva


e embrenhada nas sociedades humanas. A guerra, por exemplo, foi um

23
Construindo gramáticas na escola

fator decisivo para inúmeras descobertas. A invenção do computador


deve muito aos esforços de Turing para desvendar os códigos utilizados
Alan Turing foi um pelos alemães durante a segunda grande Guerra.
matemático, lógico
que desenvolveu o
conceito de algorit- É dessa perspectiva mais ampla que enxerga o homem contempo-
mo e computação. râneo em sociedades altamente complexas, em que o domínio da tecno-
Ele é considerado um
dos pais da ciência logia, do conhecimento é imprescindível que vamos, na próxima seção,
da computação e da olhar os PCNs e ver como o ensino de português é proposto ali.
inteligência artificial.
Turing se matou por-
que ele era homosse-
xual e na Inglaterra da
época essa opção era
punida com a prisão e
o vexame social.

Sobre o papel da
guerra e da decifração
de códigos para o
desenvolvimento dos
computadores ver de
Simon Singh, O livro
dos Códigos (2008).

24
A Linguística, os cursos de Letras e os Parâmetros Nacionais CAPÍTULO 02
2 A Linguística, os cursos
de Letras e os Parâmetros
Nacionais
A disciplina, “Construindo Gramáticas na Escola”, foi pensada
como uma maneira de viabilizar a reflexão sobre os conteúdos que os
alunos de letras da UFSC aprendem nas disciplinas introdutórias de lin-
guística.

A criação desta disciplina foi impulsionada pelas diretrizes do Mi-


nistério da Educação que impôs as Práticas de Componentes Cur-
riculares (PCCs) como obrigatórias nos cursos de licenciatura. No
currículo de 2007, essas horas faziam parte das disciplinas, mas,
na avaliação dos envolvidos, tal modo de tratar as horas do PCC
não surtiu resultados satisfatórios. Foi então que surgiu a ideia de
uma disciplina cujo objetivo fosse justamente essa reflexão. Ela
não visa, portanto, introduzir novos conteúdos, mas mobilizá-los
para uma prática de ensino construtiva.

Ela foi concebida como um espaço para se discutir as práticas em


salas de aula, ancorando-se na crença de que a educação e a pesquisa são
empreendimentos que envolvem a construção e a criação, e que devem
fazer parte da agenda de qualquer professor. A formação do professor
é a formação de um pesquisador. Não há ciência sem imaginação, sem
participação ativa, sem questionamento do que já se sabe, sem a cora-
gem de mudar o que é considerado correto, de ser crítico sobre o que
está estabelecido. Não há educação sem curiosidade, sem querer enten-
der o mundo, sem pesquisa. Esse não é um ponto que aparece enfatiza-
do nos PCNs. O professor de português, segundo a visão ali presente,
deve ensinar a ler e a escrever. Não há nenhuma menção à construção
de gramáticas, por exemplo, ou sequer a tentativas de explicar as línguas
naturais, sua natureza e seu funcionamento. Não há lugar para o aluno
ser o agente do saber, para ele construir sua teoria e testá-la.

25
Construindo gramáticas na escola

Gostaríamos que este manual fosse fonte de inspirações para termos


coragem de criar as aulas de português sob perspectivas diferentes. Cons-
truir novas maneiras de ver as aulas de português, as línguas e sua relação
com os indivíduos e a sociedade. Assim como na literatura, questiona-se o
cânone e o marginal subverte a ordem, esperamos que a Linguística possa
também contribuir para que o que não é a norma também ganhe o lugar
de língua, que a fala que a sociedade brasileira considera não gramatical
mostre toda a sua gramaticalidade, que ao pensarmos sobre o que está
fora do que é considerado correto e seguro possamos entender melhor o
que é a normatividade e qual é o seu lugar em sociedades mais democrá-
ticas como a que se está desenhando para o Brasil.

A licenciatura em Letras-Português a distância, no seu currículo


novo, disponível na plataforma do curso, faz uma primeira parada para
Se você não se lembra,
dê uma olhada no pensar a escola e sua relação com os conteúdos estudados após cinco
Guia do Aluno (http:// disciplinas de linguística: Introdução aos Estudos Gramaticais, Fonética
ead.ufsc.br/portugues/
files/2011/03/Guia_do_ e Fonologia do Português, Morfologia do Português, Sintaxe do Portu-
Aluno_MENOR.pdf]. guês e Semântica.

A pergunta norteadora é: como a linguística pode contribuir para


que as aulas de português estejam em sintonia com o nosso
momento histórico? Em sintonia com o que sabemos atualmen-
te sobre linguagem? Nossa proposta é introduzir a Linguística na
escola, já nas séries do ensino fundamental, como uma maneira
de integrar as diferentes disciplinas, através do ensino de ciência,
a matemática, através da reflexão sobre os conteúdos semânticos
que são matemáticos (teoria de conjuntos) e de levar o aluno a
adquirir uma nova língua, a língua escrita.

Acreditamos que o licenciando em Letras-Português da UFSC tan-


to a distância quanto presencial tem condições de levar adiante este pro-
jeto, porque seu currículo é uma conquista quando comparamos com
currículos de letras que são repetições de disciplinas de prática de pro-
dução e leitura de textos, como se nada mais houvesse a ser ensinado

26
A Linguística, os cursos de Letras e os Parâmetros Nacionais CAPÍTULO 02
para além de escrever e ler. Mudanças tomam tempo e modificar modos
de pensar é um processo lento, ainda mais quando estamos tratando de
línguas e de relações de poder. A quem interessa excluir a língua da gen-
te – aquela em que dizemos a gente, em que a concordância é marcada
apenas no artigo os menino saiu – em nome de uma suposta língua cor-
reta (ou incorreta – a noção de correção simplesmente não faz sentido
quando falamos de língua)? Mas, há mudanças – para lembrar Galileu,
eppur se muove... Já temos várias gramáticas do português falado e a
presença da linguística na licenciatura em letras é também sintoma de
que estamos avançando porque o conhecimento científico sobre a lin-
guagem está ganhando vez e voz.

Na disciplina de “Estudos Gramaticais”, questiona-se, muito pro-


vavelmente pela primeira vez para muitos dos que ingressaram nessa
licenciatura, o conceito de gramática tradicional, introduzindo, entre
outros, a diferença entre gramática descritiva e gramática normativa;
refaz-se também a história da gramática normativa e sua forte relação
com a escrita e com a imposição de uma variedade como a língua na-
cional, do surgimento do conceito de nação, de identidade nacional (e
que talvez faça muito menos sentido no mundo de hoje, no qual cada
vez mais pensamos globalmente). Ao mesmo tempo, apresenta-se uma
nova disciplina que para muitos não existia até então, a Linguística.

Oficialmente, como você talvez se lembre, consideramos como fi-


gura inaugural da Linguística o suiço Ferdinand de Saussure e seus cur-
sos de linguística geral que aconteceram no início do século passado (os
cursos aconteceram em 1911-1912 em Genebra, Suiça). Os cursos foram
compilados por seus alunos no famoso Curso de Linguística Geral. Mas a
linguística entra mais tardiamente no Brasil. Embora ela tenha entrado
oficialmente nos currículos de letras a partir de 1961, ela ganhou mais
impulso com as primeiras publicações de Mattoso Câmara, no final da
década de 60, no Rio de Janeiro, e há ainda currículos de letras em que a
Linguística entra apenas como uma ou duas disciplinas gerais.

27
Construindo gramáticas na escola

Veja o apanhado sobre a história da linguística no Brasil realizado


por Paulino Vandressen: http://www.comciencia.br/reportagens/
linguagem/ling15.htm.

Mas é apenas mais tarde que a Linguística começa de fato a entrar


nas escolas de ensino médio e fundamental. Salvo engano (até onde sa-
bemos não há uma história desse movimento), esse movimento se ini-
cia no final da década de 70, início dos anos 80 com os escritos de Ilari
Um relato tocante da
experiência de atentar (1989) e Geraldi (1991), em que o papel do conhecimento linguístico
para a fala dos alunos é essencialmente uma crítica à gramática normativa e ao modo como
aparece em Eglê Fran-
chi, E as crianças eram se ensinava gramática nas escolas; uma crítica a como eram as aulas de
difíceis: a redação na português, aulas de decorar regras. Esse movimento deu início a inúme-
escola (1998). A autora
mostra as consequên- ros desdobramentos que foram, no nosso entender, extremamente salu-
cias desastrosas de um tares para o ensino da leitura e da escrita: deslocou-se o foco do ensino
sistema educacional
que estigmatiza as de regras da gramática normativa – por exemplo, o sujeito concorda
origens e a língua das com o verbo em número e pessoa – para a aprendizagem da escrita e da
crianças e os problemas
causados pela imposi- leitura e, em muitos casos, chamou-se atenção para a língua falada e as
ção da norma culta. diferentes variedades faladas pelos alunos.

Mas, talvez como não poderia deixar de ser, esse movimento foi
interpretado ou ressignificado como uma negação do ensino de gramá-
tica na escola. É como se, desse momento em diante, não se devesse
mais ensinar gramática na escola. Certamente, essa é uma leitura equi-
vocada das propostas que criticavam o ensino tradicional de português
(como Rodolfo Ilari, um dos precursores da Linguística na escola, deixa
claro em sua entrevista disponível em http://www.videoconferencia.cce.
ufsc.br/index.php?option=com_flexicontent&view=items&cid=84&
id=1701). Mas, nos círculos dos detentores do saber sobre o ensino de
português, ensinar gramática ficou relegado a muito pouco e esse pouco
é, na verdade, o que já se fazia antes.

Há uma mudança porque deslocamos o eixo do decorar regras


da gramática normativa para a produção e leitura de textos,

28
A Linguística, os cursos de Letras e os Parâmetros Nacionais CAPÍTULO 02
mas mantém-se a mesma imagem de gramática que se tinha e a
mesma prática com relação à gramática – fundamentalmente, a
concepção científica sobre as línguas naturais não tem espaço. A
gramática foi expulsa da sala de aula, como se fosse ela a respon-
sável pelos maus índices dos alunos. Equivocadamente, na nossa
compreensão. Atenção, obviamente não estamos propondo que
se ensine gramática tradicional nos moldes de decorar regras ou
nomenclaturas. Pode-se de fato ensinar gramática tradicional, mas
que isso seja feito dentro de uma perspectiva que entende o que é
uma gramática e para que ela serve.

Para pesquisadores que lidam com questões sobre a linguagem, é


muito chocante, negativamente, lermos os PCNs para o ensino funda-
mental, ainda mais se mantemos em mente que eles foram publicados
oficialmente em 1997 e isso por dois motivos: em primeiro lugar, é como
se não houvesse uma certa maneira de ver as línguas, pois a perspecti-
va científica/naturalista simplesmente não aparece; em segundo lugar,
quando há referências à gramática o que temos é a visão tradicional de
gramática; a crítica à gramática normativa e ao ensino tradicional de
gramática retorna na proposta nova de priorizar a produção e a leitu-
ra de textos; em outros termos, voltamos ao tradicional com uma rou-
pagem nova, ensinar a ler e a escrever. Ressaltamos: essa é uma tarefa
imprescindível, mas entendemos que realizá-la sem uma reflexão lin-
guística não surte os efeitos de compreensão da língua e de suas inúme-
ras possibilidades. Construir modelos de gramática é um caminho que
permite que o aluno se torne um “falante” da língua escrita.

Nesse momento, sugerimos fortemente a leitura dos PCNs, dis-


poníveis em http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/livro02.
pdf , prestando atenção nas passagens em que aparece alguma
menção à gramática.

Nem é preciso ser um analista de discurso para vermos nos PCNs


para o ensino fundamental as marcas de imposição de uma certa ma-

29
Construindo gramáticas na escola

neira de ver as línguas e a linguagem humana. Não se trata de negar que


as línguas permitem a interação social, o que é óbvio, e muito menos
que através do não dito há o mascaramento de relações de poder, que o
apagamento de certas vozes é um ato de poder, ao contrário, trata-se de
ver como isso ocorre também, e quiçá principalmente, nos documentos
oficiais, na receita oficial de como se ensinar a língua portuguesa. A voz
apagada nos PCNs é a dos naturalistas, que têm em Noam Chomsky um
grande representante.

Em A Estrutura das Revolu-


ções Científicas, Kuhn (2007) Noam Chomksy e a Gramática Universal
entende que a ciência se
desenvolve a partir de revo- A importância de Noam Chomsky para a linguística é de tal sorte
luções que alteram radical-
mente a maneira de vermos que ela já foi caracterizada como uma revolução científica no sen-
um feixe de fenômenos. Ele tido de Thomas Kuhn: houve uma mudança de paradigma. Não é
descreve a mudança na físi-
ca do paradigma aristotélico muito simples resumir a sua contribuição, porque ele redirecionou
para o newtoniano. Uma de as pesquisas sobre as línguas agregando conhecimentos de várias
suas teses – e esse foi um
livro muito controverso – é áreas e introduzindo também novos componentes, em particular
que os paradigmas somente uma metodologia inovadora, o dado negativo, elaborado através
morrem quando morrem to-
dos os seus representantes. de hipóteses dedutivas. Chomsky mostrou, contra a visão behavo-
rista de aprendizagem, que somos criativos, que as línguas não são
aprendidas por estímulo e resposta. Mostrou também, desafiando o
estruturalismo, que as línguas não são conjuntos de sentenças, mas
são infinitas, por isso uma língua só pode ser um sistema de regras
que permitem a geração de um número infinito de sentenças, res-
saltando a propriedade da criatividade presente na gramática. Apro-
ximou o estudo das línguas do estudo dos sistemas formais, mos-
trando que há diferenças que não podem ser apagadas – ou seja,
não vamos, para ele, jamais construir máquinas inteligentes –, por-
que não somos autômatos, somos livres. Ele colocou na agenda de
estudos da linguística explicar como é possível que qualquer crian-
ça, mesmo em situações extremamente precárias, aprenda algo tão
complexo quanto uma língua natural em tão pouco tempo e sem
instrução explícita. Esse é o problema da aquisição da linguagem. A
resposta de Chomsky é que a criança tem uma gramática genetica-
mente programada, daí a ideia do inatismo. Sua tese de doutorado,

30
A Linguística, os cursos de Letras e os Parâmetros Nacionais CAPÍTULO 02
Syntactic Structures, é de 1955 e desde então ele vem produzindo
diferentes modelos de compreensão da sintaxe das línguas naturais.
(Há muita bibliografia sobre Chomsky, também porque ele é um ati-
vista político de esquerda, engajado. Sobre o método negativo veja
Pires de Oliveira (2010), disponível na webteca).

Não é possível que os autores dos PCNs desconhecessem a exis-


tência de um programa de investigação científica como a Gramática
Gerativa e o que se estava produzindo na época, ou que não entendes-
sem a importância da vertente cognitivista (naturalista) introduzida por
Chomsky para o estudo das línguas (mesmo que se não concorde com
esses estudos em relação a várias questões, sua importância é inegável.).
E já havia descrições do português nessa linha teórica à época da reda-
ção dos PCNs. Por exemplo, a publicação da Gramática Descritiva do
Português, de Mário Perini, é de 1995, e nessa obra o autor propõe que
o ensino de gramática seja uma maneira de ensinarmos a raciocinar
cientificamente, a construir modelos científicos, visão que compartilha-
mos inteiramente e que entendemos pode ser uma maneira de auxiliar
no ensino de português. Essa visão da gramática, do que é uma língua,
simplesmente não aparece nos PCNs. E não se trata de excluir somente
o formalismo, representado pela Gramática Gerativa, porque, em 1997,
Maria Helena Moura Neves tinha já publicado várias reflexões sobre
o ensino de gramática e também novas maneiras de fazer gramática,
todas elas alinhadas com os estudos funcionalistas. Além disso, Ataliba
Castilho já havia iniciado seu Projeto para uma gramática do portu-
guês falado, que tampouco aparece nos PCNs. O volume I da Gramática
do Português Falado foi publicado em 1990. Em resumo, não só forma-
listas, mas tampouco funcionalistas estão representados nos PCNs, ou
seja, não há espaço para a visão científica sobre as línguas.

Formalismo e Funcionalismo

Ainda que qualquer classificação seja em si empobrecedora dos di-


ferentes matizes de se abordar um tema, é possível distinguir dois

31
Construindo gramáticas na escola

grandes paradigmas na linguística atual: o científico-naturalista e o


humanista. Humanistas veem as línguas a partir do prisma do his-
tórico, do fato único, da ocorrência que não se repete. É o caso, por
exemplo, da Análise de Discurso. Os naturalistas entendem a língua
como um fenômeno natural e procuram utilizar os métodos das
ciências – sejam eles dedutivos ou quantitativos – para entender
esse fenômeno. Há duas grandes maneiras de ser um naturalista na
linguística contemporânea: os formalistas que dão mais atenção à
forma e os funcionalistas que entendem que a prioridade é a fun-
ção. Obviamente essa distinção não é tão clara e há muitas posições
“miscigenadas” (sobre os paradigmas da linguística ver Pires de Oli-
veira & Basso (2011), sobre as disputas entre funcionalistas e forma-
listas ver Borges Neto (2004) entre outros).

Os aspectos gramaticais são discutidos em, literalmente!, uma úni-


ca página, a página 60, e o que lemos é, na nossa maneira de ver, uma
abordagem utilitarista da gramática normativa, com o único propósito
de atuar no ensino da escrita. E claro, não vai funcionar (como não tem
funcionado) porque é simplesmente repetir a gramática normativa (e
não ensinar o aluno a raciocinar). A imagem de gramática que aparece
retoma precisamente a gramática normativa e a visão mais tradicional
sobre o que é gramática. “É no interior da situação de produção de texto
(...) que ganham utilidade os conhecimentos sobre aspectos gramati-
cais”; se ensina da gramática “apenas os termos que tenham utilidade
para os conteúdos e facilitar a comunicação nas atividades de reflexão
sobre a língua”. Note que se fala em termos da gramática que são usados
para facilitar a comunicação. Não precisamos entender a gramática ou
saber construir gramáticas, mas pegamos o que já temos – a gramática
normativa – e usamos os termos. Ora, parte essencial da reflexão sobre
uma língua é construir os termos para entendê-la, é montar a gramática.

A falácia é acreditar que podemos utilizar os termos da gramática


normativa para fazer algo que seja radicalmente diferente do que faz a
gramática. Isso não ocorre, os termos são carregados de teoria e o que

32
A Linguística, os cursos de Letras e os Parâmetros Nacionais CAPÍTULO 02
se faz é, então, o mesmo que a gramática faz só que agora no texto do
aluno: olha aqui, você errou porque o verbo concorda com o sujeito; ou,
olha aqui, você separou o sujeito do verbo por uma vírgula e não pode
fazer isso (pelas regras da gramática). Estamos agora olhando para o
texto do aluno com a miopia da gramática tradicional e estamos vendo
os erros, sem explicar que são outras gramáticas, sem entender o que
está acontecendo no texto., sem saber qual é a gramática do texto Para
isso, precisamos entender o que é uma gramática, que há várias gramáti-
cas e só fazemos isso se construirmos essas gramáticas. A gramática não
serve para melhorar a produção escrita do aluno, ela serve para que o
aluno entenda a sua língua e entenda a língua do outro e com isso enten-
da que pode se movimentar nas diferentes línguas e assim, ao entender a
sua língua, ser falante de outras línguas, inclusive a língua escrita.

Nos PCNs, a gramática não deve ser considerada quando ela é “um
palavreado sem função”. Ora, quando a gramática é um palavreado sem
função? Só quando adotamos a posição de que há uma gramática já feita
e precisamos repeti-la, só quando não estamos construindo uma gramá-
tica. Quem constrói gramáticas sabe da importância dos termos e da sua
função. É claro que oração subordinada adverbial temporal é palavrea-
do sem função, sem sentido, mas apenas quando não entendemos o que
essa etiqueta significa, quando não temos noção do projeto de construir
gramática e apenas usamos os rótulos sem saber sua história e o que eles
têm por função explicar. Mais uma vez, nega-se a tradição para retomá-
-la com uma roupagem “modernosa”, o texto, mas mantém-se a prática
de tomar a gramática como etiquetagem já pronta. Repetimos: não há
espaço para a concepção científica de língua e de gramática.

Nomenclatura gramatical e conceitos científicos

O domínio da nomenclatura gramatical, como acontece para qual-


quer disciplina científica, é imprescindível para entender as descri-
ções, as explicações e os argumentos produzidos por essa disciplina.
Para podermos entender física, temos que ter alguma noção do que
significam termos como ‘matéria’, ‘massa’, ‘gravidade’, etc., para en-

33
Construindo gramáticas na escola

tendermos química, precisamos dominar conceitos como ‘molécu-


la’, ‘átomo’, ‘valência’ e inúmeros outros. Obviamente, essas mesmas
observações valem para as ciências humanas (sociologia, antropo-
logia, etc.); mas o que acontece quando pensamos em gramática
e no estudo das línguas? Ora, temos a mesma coisa. Os conceitos
gramaticais e boa parte da nomenclatura gramatical são, na verda-
de, conceitos em pé de igualdade com conceitos como os das outras
ciências, mas o fato é que nunca paramos para pensar nisso e esses
conceitos nunca nos são apresentados como tal – via de regra, a no-
menclatura gramatical é algo que precisamos decorar e que tem al-
gum sentido vago e quase inefável. Essa imagem não poderia estar
mais distante do que é a empreitada científica, muito mais ainda da
empreitada científica de conhecermos as línguas.

Para vermos isso, não precisamos ir tão longe a ponto de termos que
analisar termos monstruosos como “oração subordinada adverbial
temporal”, mas sim considere a noção de “palavra”. Note, em primei-
ro lugar, que esse conceito não “caiu do céu” – “palavra” é um con-
ceito elaborado, fruto de séculos de reflexões sobre as línguas, não
é algo dado, que encontramos na natureza, mas é antes uma ferra-
menta de investigação científica. Pense agora numa língua que não
tem escrita, que não tem descrição gramatical e nem tradição de
pensamento gramatical. Será que essa língua terá o conceito de “pa-
lavra”? É muito provável que não. E se não encontramos “palavra”, o
que dizer então de termos como “sentença”, “oração”, “subordinação”,
etc. – todos termos empregados no interior de teorias que têm por
objetivo explicar a linguagem.

Por fim, quanto à terminologia, note ainda duas coisas. Mesmo de-
pois de séculos de estudo, ainda não temos uma definição muito
clara do que é uma “palavra”. Tome, por exemplo, ‘amá-la-ei’; mes-
mo considerando não seja algo muito usual no português do Brasil,
tente responder à seguinte pergunta: quantas palavras temos em
‘amá-la-ei’? Uma? Duas? Três? Quais? ‘la’ é uma palavra?

34
A Linguística, os cursos de Letras e os Parâmetros Nacionais CAPÍTULO 02
Finalmente, é muito comum dar realidade a coisas que são criadas para
explicar certos fenômenos. Não é incomum dizermos que as pedras
caem por causa da gravidade. Note, porém, que “gravidade” é um con-
ceito criado pelos seres humanos (se nossa espécie nunca tivesse exis-
tido, tal conceito também não existiria), e um conceito não pode ser a
causa de uma pedra cair – confundimos o conceito com algo real, e isso
é chamado de hipostasiação. Pense agora na linguagem, na descrição
linguística e nos termos que empregamos para tanto. Quando dizemos
que “existem palavras”, estamos fazendo uma hipostasiação ou não?

Em momento algum dos PCNs se propõe que o aluno construa


gramáticas, que o aluno faça uma reflexão sobre o que é uma gramática,
sobre o que é língua. Construir gramáticas é um exercício intelectual
intenso, difícil e extremamente importante para entendermos como ela-
boramos uma teoria sobre um fenômeno no mundo, porque construir
uma gramática é exatamente isso: construir um modelo sobre como a
língua funciona. É bem verdade que se traça, nos PCNs, uma diferen-
ça entre conhecimento epilinguístico e metalinguístico, mas sem levar
adiante as consequências nem da distinção, nem desses conhecimen-
tos, sem que eles de fato tenham um papel na sala de aula. Além disso,
há confusões entre metalinguagem e terminologia da gramática tradi-
cional. A metalinguagem só tem sentido quando ela é uma maneira de
construirmos uma compreensão do objeto que estamos estudando, a
língua falada ou a língua escrita. E quando ela é isso, ela tem todo senti-
do. Construir gramáticas é construir uma metalinguagem que tem por
objetivo explicar o fenômeno em questão.

Paralelamente a esse movimento de negar superficialmente para


reafirmar nas entrelinhas a gramática tradicional e a prática tradicional
de ensino de gramática, há claramente uma prioridade do ensino da lín-
gua escrita, quer para a produção de textos, quer para a sua leitura. Essa
é mais uma vez uma marca do modo tradicional de vermos a língua
e a maneira tradicional das aulas de português, agora sem as aulas de
análise gramatical. A língua oral é mencionada e há atividades descritas,

35
Construindo gramáticas na escola

mas ela é claramente secundária. Em momento algum se coloca a ques-


tão do português brasileiro, esse português que é falado, embora, como
já dissemos, estivesse em movimento a construção de sua gramática, a
Gramática do Português Falado. É como se a reflexão sobre a língua oral
não pudesse interferir positivamente na produção escrita, na formação
da nossa identidade; o que é, no mínimo, uma tese a ser verificada. Há,
ao menos hoje em dia, artigos que mostram que a oralidade influencia
na aquisição escrita e influencia positivamente. Sem contar que no caso
do Brasil a língua oral é muito diferente da escrita, são de fato duas
gramáticas. Nenhuma dessas questões é nem ao menos levantada. No
fundo, repete-se o preconceito de que a língua que importa é a língua
escrita, como se a única gramática que valesse a pena fosse aquela da
língua escrita, como se só a língua escrita tivesse gramática! As gramáti-
cas construídas por linguistas não são sobre a escrita; a língua falada ou
sinalizada, qualquer língua, tem uma gramática tão sofisticada que até
hoje só conseguimos entender pedaços, fragmentos dela.

A voz que se apaga nos PCNs é aquela que vê na língua um obje-


to natural, ao mesmo tempo biológico e social, porque somos animais
sociais, como as formigas, as abelhas, os golfinhos, e a língua é uma das
formas de interação social (não a única). Apagar o biológico é deixar de
ensinar o que sabemos hoje em dia sobre as línguas (e o que já se sabia
na época em que os PCNs foram escritos). É como se em física não fos-
semos ensinar que o universo se formou pelo Big Bang, que ele é (muito
provavelmente) finito e que há matéria escura, ou que não ensinássemos
que a teoria da relatividade explica melhor os movimentos no universo
do que a teoria gravitacional newtoniana. É como se não fossemos ensi-
nar sobre teoria da evolução e a origem da vida em biologia.

Uma das principais funções da escola é, sem sombra de dúvidas,


formar cidadãos. E cidadãos devem ter acesso ao que é o conhecimento
científico, ao que sabemos sobre o mundo natural e social. Não há a
menor dúvida de que as línguas são objetos fundados em nossa cons-
tituição biológica: uma lesão cerebral pode causar afasias; autistas não
têm a mesma capacidade de lidar com raciocínios pragmáticos do que
aqueles que não são autistas. Somos programados para falar. Essa não é

36
A Linguística, os cursos de Letras e os Parâmetros Nacionais CAPÍTULO 02
uma opinião de Chomsky, ou um modelo científico, é um fato que já sa- Uma introdução de divul-
gação científica aparece
bemos, comprovado por inúmeros experimentos, realizados por vários
em Stephen Pinker, Do que
cientistas que tiveram como objeto de estudo as mais diversas línguas. é feito o pensamento: a
língua como janela para
Obviamente, isso não quer dizer que a gramática universal como mode-
a natureza humana, 2008.
lada pelo gerativismo está correta, mas quer dizer que ter uma língua foi Sua posição não é a mesma
de Chomsky em vários as-
uma aquisição da espécie que favoreceu a nossa evolução e que, como os
pectos, mas sua perspectiva
pássaros e os golfinhos, temos aptidão para falar. é certamente naturalista).

Documentos oficiais refletem o pensamento daqueles que estão no


poder em determinado momento no tempo, mas não impedem que haja
outras vozes, que haja dissidências. O nosso ponto de vista sobre as au-
las de português é não ortodoxo, é dissidente.

Vamos agora dar uma rápida olhada nos PCNs para o ensino médio
que datam de 2000. Os PCNs para o ensino médio são muito mais dire-
O documento está
trizes do que procedimentos de atuação e nesse ponto eles se diferem dos disponível em http://
PCNs para o ensino fundamental. A parte II se chama “Linguagens, Códi- portal.mec.gov.br/
seb/arquivos/pdf/
gos e suas Tecnologias” e reflete uma concepção diferente de ensino e que, blegais.pdf e esse é o
no nosso modo de entender, não só vale a pena, mas pode ter nas aulas momento para você
dar uma lida nele.
de português o lugar privilegiado para o seu florescimento: a integração
de conteúdos ou a interdisciplinaridade. Associar linguagens, códigos e
tecnologias é um primeiro passo, ainda muito tímido, na direção das pes-
quisas mais atuais. É um passo tímido, porque no texto lemos, de novo,
a posição tradicional sobre a língua portuguesa. (É bem difícil inovar!).

Veja a citação abaixo:

“Envolve ainda o reconhecimento de que as linguagens verbais, icôni-


cas, corporais, sonoras e formais, dentre outras, se estruturam de for-
ma semelhante sobre um conjunto de elementos (léxico) e de relações
(regras) que são significativas: a prioridade para a Língua Portuguesa,
como língua materna geradora de significação e integradora da organi-
zação do mundo e da própria interioridade”

<Fonte: http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/linguagens02.pdf, pá-


gina 72. >

37
Construindo gramáticas na escola

Chegamos, embora sem ênfase, na noção de língua como um siste-


ma de regras que geram relações significativas, “um conjunto de elemen-
tos (léxico) e de relações (regras) que são significativas”, mas ainda não
há menção ao fato de que esse sistema é recursivo – ele gera infinitas sen-
tenças, e embora sejam elencadas as linguagens formais, as semelhanças
com os cálculos lógicos, a matemática, e também as linguagens computa-
cionais ficam apenas sugeridas. É interessante também notar que o termo
“gramática” simplesmente não aparece nos PCNs para o ensino médio.

Cibernética O que aparece sugerido é uma integração que teve início na déca-
A cibernética é uma abor- da de 50, com os primeiros encontros em Cibernética, que acontece-
dagem interdisciplinar – ram no MIT (Massachussetts Institute of Techonology), nos EUA, e que
física, biologia, cognição,
deram início às chamadas ciências cognitivas. Abaixo está a figura do
computação –, que explora
sistemas reguladores, suas
hexágono que representa as disciplinas envolvidas nas ciências cogniti-
estruturas, restrições e pos- vas. Atenção para a representação imagética da linguística – uma árvore
sibilidades. Evidentemente, sintática –, precisamente o que não está contemplado nos Parâmetros
as línguas naturais são para o ensino fundamental e talvez sugerido nos Parâmetros do ensi-
sistemas desse tipo, quer
no médio quando se coloca as línguas naturais em comparação com as
como sistema biológico,
quer como sistema social.
linguagens formais. Note também a presença da antropologia, da psi-
cologia, da inteligência artificial e das neurociências. Estamos dizendo
que o conhecimento atual integra os conhecimentos da linguística, da
matemática, da computação, da biologia, da sociologia. É preciso traba-
lhar juntos se queremos entender esses sistemas.

Figura 2: Hexágono das


disciplinas nas Ciências Cognitivas

38
A Linguística, os cursos de Letras e os Parâmetros Nacionais CAPÍTULO 02
É essa a perspectiva que queremos somar às aulas de português: ver
a língua como um sistema que é característico da espécie humana – vere-
mos no próximo capítulo que várias espécies têm sistemas de comunica-
ção, mas nenhuma, a não ser o Homo sapiens, tem língua – que está entre
as funções cerebrais/mentais, que nos constitui enquanto subjetividade,
que permite construirmos sistemas de inteligência artificial e que tem es-
treitas relações com a filosofia, a lógica e a matemática (e também com a
literatura e as artes, mas, como dissemos, entendemos que essas pontes
são construídas na reflexão sobre literatura e crítica literária). Claro, esse
sistema tem uma história e ele é um veículo não apenas de interação so-
cial, mas de exclusão, de estabelecimento de relações de poder.

39
As línguas nas aulas de português CAPÍTULO 03
3 As línguas nas aulas de
português

Como podemos ver a língua quando estamos nas aulas de portu-


guês? Que outras perspectivas sobre a língua podemos apresentar aos
alunos nas salas de aula que não seja a da gramática tradicional? A
primeira observação é que, a rigor, simplesmente não faz sentido falar
em ensinar língua materna, porque não ensinamos língua materna, os
alunos já sabem falar, já têm a sua língua. Veja que falar em ensino de
língua materna não é apenas equivocado, é uma forma de exclusão, por-
que, segundo essa visão, o aluno não sabe a sua língua materna; ele não
é dono da sua voz. O aluno que entra na escola, com 6 anos, é um falante
maduro, ele sabe a sua língua materna. Neste livro não podemos nos
ater ao problema da aquisição da língua materna ou da aquisição de se-
gunda língua ou de língua estrangeira, mas em diversos momentos ire-
mos notar como as crianças aprendem sua língua materna ou suas lín-
guas maternas (afinal, há crianças expostas a mais de uma língua). Esse
é um processo muito rápido – crianças na faixa de 5 anos já dominam
sua língua –, que ocorre sem instrução formal – nenhuma mãe ou pai
fica ensinando regras de como falar a sua língua para as crianças – e com
estágios – as crianças iniciam com proferimentos que aparentemente se
constituem de uma palavra e caminham para construções cada vez mais
complexas. Esses estágios são independentes da língua que a criança
está aprendendo ou, para ser gerativista, que está amadurecendo nela.

Quando as crianças entram no ensino fundamental – na atual pri-


meira série – elas já são falantes proficientes de sua língua, elas já têm
sua gramática pronta e muito provavelmente já iniciaram seu processo
de alfabetização, que é o início da aquisição de uma outra língua, a es-
crita. O que nós podemos ensinar é uma segunda ou terceira línguas,
são outras gramáticas. Ou, como é a nossa sugestão, podemos ensinar
a pensar sobre as línguas, a construir gramáticas e assim, ao ensiná-los
a construir gramáticas, ajudá-los na compreensão de outras gramá-
ticas, o que pode auxiliar na aquisição de uma outra língua. Quem
têm na sua língua materna apenas você e suas formas – por exemplo,

41
Construindo gramáticas na escola

cê – pode aprender uma outra língua (ou dialeto) que tem a forma tu
e também a forma vós Mas essas são outras gramáticas e aí está o pulo
do gato: levar a criança a perceber que há várias gramáticas e qualquer
um de nós sabe mais de uma gramática e mais de uma língua – somos
multilíngues em português! Assim como podemos aprender inglês ou
outra língua qualquer. As aulas de português não são aulas de língua
materna, mas aulas de ensino de segunda ou terceira língua, aulas de
ensino de construção de gramáticas e reflexão sobre as línguas. Ob-
viamente, a língua escrita é uma outra língua e tem as suas próprias
regras, sua própria gramática e parte do problema é achar que a língua
escrita é apenas uma transcrição da língua falada; não é, nem mesmo
quando se trata da variedade culta. E é bom já dizer, a língua das gra-
máticas normativas não é nem mesmo a variedade culta, é uma varie-
dade estandardizada com base em padrões europeus por vezes muito
distantes do que se fala no Brasil.

As línguas maternas são ótimas para podermos aprender a refletir


sobre as línguas, como elas são, como elas funcionam, como é esse siste-
ma. E aqui entra um lugar interessante para ser explorado e já proposto
por vários autores, entre eles Mario Perini, de quem já falamos: podemos
ensinar o raciocínio científico quando refletimos sobre a língua materna
e podemos também levar o aluno a entender qual é a sua língua materna,
qual é o seu significado social, por que a sua língua não entrou na escola
até agora e, por comparação, como é a língua escrita, em que ela difere ou
se aproxima da gramática que o aluno tem. Em que a gramática de quem
diz os menino saiu é diferente da gramática do português escrito e do por-
tuguês que as pessoas acreditam que é o correto, aquele em que a sentença
gramatical é os meninos saíram? Em que a gramática de os menino saiu é
semelhante à gramática do inglês the boys left? Nas duas, o plural só é mar-
cado em um dos itens da sentença, mas onde ele é marcado difere: logo
temos duas gramáticas aqui. Na verdade, considerando também o portu-
guês escrito, já temos três gramáticas diferentes, porque a gramática do
português escrito lança mão da regra que gera os meninos saíram – mas
note que essa gramática não é a da norma culta falada, porque sabemos,
pelos estudos em sociolinguística, que o português brasileiro falado está
perdendo morfologia de número e também de pessoa.

42
As línguas nas aulas de português CAPÍTULO 03
Nesse caminho, vamos contar com os conteúdos que foram estuda-
dos nas disciplinas de linguística – fonética/fonologia, morfologia, sintaxe
e semântica – e que constituem os componentes do que podemos chamar
de “faculdade da linguagem” de maneira ampla, isto é, sem com isso es-
tarmos adotando a visão gerativa de que há uma centralidade da sintaxe.
Há, no momento na linguística, diferentes arquiteturas da mente/cérebro
e da faculdade da linguagem; embora haja consenso que deve haver uma
faculdade da linguagem, não há consenso sobre se se trata de um compo-
nente autônomo da mente/cérebro ou da junção de componentes. Essas
são questões empíricas e ainda não temos uma resposta final para elas.
Além disso, certamente a pragmática deveria estar aí contemplada, por-
que é um dos componentes da faculdade da linguagem.

Uma língua é um sistema de combinações (sintaxe) de sons ou ges-


tos (fonética/fonologia), geradas a partir de unidades básicas (morfolo-
gia), que são interpretáveis (semântica/pragmática). Assim, a distinção
entre essas áreas ou níveis de análise não é apenas uma decisão arbi-
trária, pois elas dizem respeito a componentes efetivos da língua; mais
uma vez vamos nos manter neutros sobre a centralidade de qualquer
um desses componentes. Não iremos rever esses domínios, mas sim
pressupor que eles façam parte do nosso fundo compartilhado. Vamos,
então, seguir essa trilha.

43
Unidade B
Gramáticas, línguas e a faculdade
da linguagem

Uma visão geral


Objetivo: Neste capítulo revisamos os conceitos de língua e gramática ten-
do como panorama uma visão mais geral da perspectiva sócio-biológica da lin-
guagem. Apresentamos alguns argumentos a favor da hipótese da Faculdade da
Linguagem.

No capítulo anterior, apontamos que a nossa perspectiva é natura-


lista/científica ou sócio-biológica, porque sabemos que somos animais
sociais e a linguagem nos caracteriza enquanto espécie; mais adiante
vamos levantar ainda outros argumentos nessa direção. Mostramos que
essa perspectiva, apesar de extremamente importante e influente na lin-
guística contemporânea, independente de se adotar uma metodologia
formalista ou funcionalista, não está presente nos Parâmetros Curri-
O presidente Bara-
culares Nacionais (PCNs). Consideramos isso um fato lamentável, pois ck Obama anunciou no
deixamos de lado um enorme corpo de conhecimento elaborado sobre início de abril de 2013 um
i nv e s t i m e n t o i n i c i a l d e 1 0 0
a linguagem e perdemos várias de suas dimensões que nos permitem mil dólares em pesquisas
n a á re a d a s N e u ro c i ê n c i a s,
perceber quão fascinantes as línguas são, bem como as inúmeras rela- q u e i nv e s t i g a m a e s t r u t u -
ra e o funcionamento do
ções que seu estudo tem com outras áreas do saber, como a biologia, a c é re b ro h u m a n o. Co m p a -
rou a impor tância destes
neurociência, a história e a matemática para citar apenas algumas. estudos aos que levaram ao
mapeamento completo do
c ó d i g o g e n é t i c o h u m a n o,
Neste capítulo, vamos aprofundar um pouco mais essa perspecti- c h a m a d o Pr o j e t o G e n o m a .
O p r o n u n c i a m e n t o fo i n o -
va ao mesmo tempo em que apontamos temáticas que podem entrar t í c i a n o s p r i n c i p a i s j o r n a i s,
você pode encontrar uma
na sala de aula de português. Evidentemente, cabe ao professor cons- repor tagem na íntegra
a q u i h t t p : / / w w w. ny t i m e s.
truir sua interação com a sala de aula e para isso é preciso que ele leve com/2013/02/18/science/
em consideração quem são os seus alunos. As sugestões que faremos project-seeks-to-build-
-map-of-human-brain.
ao longo deste livro podem ser adaptadas a diferentes faixas etárias e html?pagewanted=all&_r=0

sempre dão ensejo a projetos interdisciplinares, incluindo projetos com


a matemática, a história, a biologia e mesmo a física, no sentido de que
as aulas de português podem se tornar laboratórios de construção de
teorias científicas, de formulação e refutação de hipóteses que podem
então ser usadas para melhor entender a física, a biologia ou qualquer
outra disciplina, como veremos no próximo capítulo. Não custa lembrar
que a nossa intenção não é dar receitas, nem mesmo apresentar modelos
engessados para o professor seguir, mas sugerir rotas alternativas, ins-
pirar procedimentos diferentes e abordagens novas das línguas. Nosso
primeiro passo para tanto será revisar alguns conceitos, olhando sempre
para o fenômeno das línguas naturais.
Línguas e Gramáticas CAPÍTULO 04
4 Línguas e gramáticas
Há muita confusão sobre o termo gramática e certamente parte da
controvérsia sobre o ensino ou não de gramática na escola e também da
confusão que a opinião pública tem sobre a Linguística vem de estarmos
entendendo gramática de modo muito diferente. Podemos facilmente
identificar pelo menos três conceitos de gramática: a gramática de uma
língua, a gramática que um linguista constrói para explicar uma língua
e a gramática enquanto normatividade, um compêndio do bem dizer.
Qualquer língua, escrita ou não, tem uma gramática que é tão comple-
xa quanto qualquer outra gramática. Essa ideia de que há gramáticas
melhores – que, por exemplo, dizer Os meninos saíram é melhor do que
dizer Os menino saiu – é uma maneira equivocada de entender a gra-
mática, um modo não científico. Do ponto de vista da ciência, estamos
diante de duas gramáticas distintas, uma em que a pluralidade é mar-
cada em todos os termos, outra em que o plural aparece apenas no de-
terminante. Basta pensar que o inglês é mais parecido com essa última
gramática para ver que não há nada errado com ela: The boys left. Em in-
glês, o plural aparece marcado no nome e só no nome: The tall boys left.

Para deixar as coisas mais claras, imagine um biólogo que esteja


diante de dois sapos, mas decida que só um é animal de verdade, que
merece ser estudado porque o outro é muito feio, é errado... perceba que
isso não faz sentido e você pode até ter achado a situação engraçada,
mas o fato é que com as diferentes gramáticas (que possuem diferentes
regras de concordância), temos exatamente a mesma situação: o linguis-
ta olha para dois objetos, duas gramáticas, e elas são ambas igualmen-
te legítimas, merecedoras de estudo e não são/estão certas ou erradas.
Quando alguém diz que certa fala (i.e., gramática) é errada, é um claro, e
triste, sintoma de que ainda não temos uma imagem científica da língua,
além de ser uma visão preconceituosa.

Mas por que afinal achamos que dizer Os menino saiu está er-
rado? Porque historicamente o dialeto que se tornou a língua escrita
oficial de Portugal, a língua da nação, a língua nacional, é o que marca
a pluralidade em todos os termos da sentença. Há um aspecto muito

49
Construindo gramáticas na escola

importante nas discussões sobre o ensino de gramática, em especial


com leigos, que surge quase imediatamente quando falamos sobre o
fato de que a gramática normativa é uma manifestação histórica da
imposição de um dialeto com o intuitito de formar uma nação e que
não há nada de errado em quem fala Os menino saiu, que essa língua
tem uma gramática – trata-se do medo de que se não houver uma nor-
ma linguística cravada a ferro e fogo numa gramática das boas vamos
nos perder, vamos deixar de nos entender e no final vamos grunhir
e não mais falar. Esse medo, como a maior parte dos medos, é um
É uma norma na lite- fantasma que tem uma estória, um mito que transparece também na
ratura em linguística
antropológica utilizar língua, é nada mais nada menos que a Torre de Babel, que veremos em
letras maiúsculas para seguida, depois de refletirmos sobre o conceito de língua.
os nomes de línguas
indígenas. Neste livro
vamos adotar a norma À confusão sobre o que é gramática se opõe uma suposta clareza
do português escrito
que deixa em minús- sobre o que é uma língua. Todos parecem saber o que é uma língua.
culo os nomes das Sabemos que o português é uma língua, assim como o inglês, o fran-
línguas.
cês, o xokleng ou o crioulo de Guiné Bissau. Mas poucas vezes nos
perguntamos sobre as línguas que são faladas no Brasil e as línguas
que são faladas no mundo, o que irá imediatamente nos levar a ques-
tionar o conceito de língua. Você já pensou sobre quantas línguas são
faladas no Brasil, não importa se oficialmente aceitas, reconhecidas ou
não? Há pouco mais de 190 línguas faladas no Brasil além do portu-
guês brasileiro e seus dialetos, várias delas em perigo de extinção. E,
um dado muito interessante, o Brasil é um dos países de maior diver-
sidade linguística do mundo; não é certamente o país que tem maior
número de línguas faladas, mas sim um dos que tem o maior número
de famílias linguísticas diferentes.

Quando pensamos em diversidade linguística, logo lembramos


que as várias línguas do mundo podem ser agrupadas em famílias pelo
fato de que descenderam de uma língua antiga ou ancestral comum.
As chamadas línguas românicas, por exemplo, relacionam-se “fami-
liarmente”: o português, o francês, o romeno, o italiano e o espanhol
são filhos do latim, ou seja, todas elas derivam do latim (mais precisa-
mente, do chamado latim vulgar, que era a língua efetivamente falada
pelo povo). Eis uma ilustração da família do Indo-Europeu:

50
Línguas e Gramáticas CAPÍTULO 04

As línguas faladas no Brasil descendem de famílias diferentes,


por isso temos se não a maior, entre as maiores diversidades linguís-
ticas do mundo.

Exercício: 1. Busque informações sobre quais são as línguas faladas


no seu estado; 2. Faça um mapa dessas línguas e identifique as famí-
lias a que pertencem essas línguas; 3. Busque um mapa de línguas
faladas no Brasil.

Por que na escola achamos que todos falam a mesma língua e o


mesmo dialeto? Por que os professores de português não levam
os seus alunos a pesquisar sobre as línguas que são faladas no
seu estado, sobre os dialetos locais ou não? Pense, por exemplo,
numa classe que tenha um carioca, um paulista e um gaúcho;
ou então numa classe em que haja pessoas economicamente
abastadas e outras mais pobres; certamente, nos dois casos, as
línguas (dialetos ou variedades) serão diferentes. Esse tema pode-
ria ser trabalhado com o professor de geografia, sociologia ou de
história. Os alunos poderiam fazer mapas de línguas e dialetos, e
pensar na relação entre poder econômico e variedade de língua.

Ampliando um pouco o espectro, coloque-se agora a questão sobre


quantas línguas são faladas no mundo. Quantas línguas existem? Os

51
Construindo gramáticas na escola

estudiosos afirmam que há entre 6.000 a 7.000 línguas sendo faladas no


mundo hoje em dia. Atenção, línguas faladas! Nem todas essas línguas
têm um sistema de escrita – na verdade, a imensa maioria delas não
conta com uma escrita – e há um forte movimento de criar sistemas
de escritas para todas as línguas, por várias razões, inclusive porque se
acredita – erroneamente – que uma língua sem escrita é menos impor-
tante, e é fato que a escrita, em nossos tempos atuais, traz prestígio para
uma dada língua e seus falantes. Além disso, é muito importante que a
alfabetização seja feita em língua materna.

Essa variação no número de línguas faladas se deve ao conceito de


língua que o autor está utilizando. Parece claro o que é uma língua, mas
quando olhamos mais de perto, na verdade não é nada claro determinar
se estamos diante de uma língua ou de um dialeto. Você pode imaginar
que a capacidade de nos entendermos mutuamente é suficiente para de-
terminarmos que estamos diante de uma língua, mas será mesmo? Por
exemplo, vamos considerar que o “portunhol”, falado na fronteira entre
o Brasil e os países de língua espanhola, é uma língua ou um dialeto? Se
for um dialeto, é um dialeto do português ou do espanhol? Se conside-
rarmos que se trata de um dialeto, não vamos colocar o portunhol na
lista de línguas; mas se considerar que se trata de uma língua – afinal,
satisfaz boa parte dos critérios que julgamos necessários para termos
uma língua – temos aí mais uma língua. Percebe a dificuldade?!

Parece simples dizer que o português é uma língua, mas e o portu-


guês brasileiro (de agora em diante vamos usar a sigla PB para português
brasileiro), é uma língua, uma variedade ou um dialeto do português
europeu (doravante, PE)? Afinal, temos a impressão de que há compre-
ensão mútua entre falantes do PE e falantes do PB. Mas há mesmo? Essa
compreensão é plena? Ou há graus diferentes de compreensão mútua?
Quanto é o suficiente? Basta uma rápida imersão entre falantes do PE
para percebermos que essa compreensão é gradual e há muitos pon-
tos de incompreensão, principalmente no que se refere às construções
sintáticas e a ordem dos constituintes. Os portugueses dizem, normal-
mente, O bolo comeu o João, que para nós é insensato. Certa vez, em Lis-
boa, o garçom, português, pergunta se pode retirar os pratos da mesa. O

52
Línguas e Gramáticas CAPÍTULO 04
freguês brasileiro responde, atencioso, pois não. O garçom vai embora.
Retorna um tempo depois e faz a mesma pergunta e o brasileiro repete
pois não. E o garçom se vai mais uma vez. E mais uma vez retorna e eles
repetem a estória, até que alguém percebe que pois não é não no PE!

Na versão oficial, o PB é uma variante do PE, mas há muitos lin-


guistas que defendem que o PB é uma língua diferente do PE. Definir se
o PB é ou não uma língua não é, no entanto, uma questão meramente
linguística, ela envolve também questões políticas. Como veremos no
capítulo 4, há muitas evidências gramaticais de que o PB tem de fato
propriedades sintáticas e semânticas, para além das morfo-fonológicas,
muito distintas do PE, o que permitiria defender que ele é uma língua
distinta; porém, do ponto de vista político, talvez seja melhor entender-
mos que estamos diante de variantes de uma mesma língua, ou não.

É certamente o caso que acreditamos que o português é uma língua


diferente do espanhol embora possamos entender os espanhóis (em al-
guma medida) e vice-versa. Mas, novamente, como sabemos que temos
uma língua e não um dialeto? O critério da compreensão mútua não é
suficiente, porque entendemos os espanhóis e eles nos entendem, mas
não acreditamos que falamos a mesma língua (lembre-se também do
portunhol e do caso do PE). Tomando um outro extremo, sabemos que
alguns dialetos da Itália não são mutuamente compreensíveis e ainda
assim são considerados dialetos do italiano. Há, como já apontamos,
e talvez não possa ser mesmo de outra maneira, muito de político na
decisão sobre se estamos diante de uma língua ou de um dialeto. E não
foram poucos os que afirmaram que uma língua é um dialeto com uma
marinha e um exército, quando se depararam com a necessidade de dis-
tinguir uma língua de um dialeto.

Parece, pois, que a noção de língua também não é muito clara.

Dê uma olhada na figura 5, que destaca parte da tabela publicada neste


site http://www.ethnologue.com/ethno_docs/distribution.asp?by=country.

53
Construindo gramáticas na escola

Figura 5 - Distribuição das


línguas do mundo por países

Veja, na figura 5, que em Papua Nova Guiné há 836 línguas fala-


das. Se você não sabe onde fica Papua Nova Guiné, dê uma olhada num
mapa-múndi. Fica perto da Austrália e é um país bem pequeno.

Autores como Chomsky e Davidson, por caminhos bem diferentes,


defendem que de um ponto de vista naturalista não há língua enquanto
Papua Nova Guiné,
um fenômeno social, mas línguas individuais. Assim, eles abandonaram
localização geográfica. a noção de língua como uma entidade nacional, entendendo que essa
entidade é uma entidade política. Antes que seja tarde, deixemos escla-
recer que essa posição é totalmente compatível com o estudo da língua
como um fenômeno sócio-ideológico. O que esses autores defendem é
que para adotarmos uma perspectiva científica, precisamos olhar para
as línguas individuais. Sem sombra de dúvidas, as línguas são sociais e
veículos poderosos de poder. A constituição do Brasil como um país, as
suas fronteiras podem ser explicadas política e historicamente apenas;
não há nada de natural na delimitação do Brasil como um país, seu re-
corte é sócio-historicamente construído. O mesmo ocorre com a língua
nacional; ela é um constructo social; por isso, ela é objeto de estudos das
perspectivas histórico-ideológicas. Por conta disso, do ponto de vista da
abordagem naturalista, que preza pelas coisas que de fato existem natu-
ralmente, não há língua, mas línguas individuais e processos de compre-
ensão do outro na língua que falamos. Estamos aqui em águas um tanto
turbulentas, que contam com argumentações densas e complexas, mas
nosso ponto aqui é simplesmente notar que o conceito de língua não é
tão simples quanto pode parecer à primeira vista.
54
Línguas e Gramáticas CAPÍTULO 04
Sabemos, no entanto, que qualquer língua natural, não importa
como seja definida, tem uma gramática, e estudar uma língua é entender/
aprender ou apreender a sua gramática. Mas, para o senso comum, há
certas maneiras de dizer, taxadas invariavelmente de “erros”, que não têm
gramática, apenas porque fogem das regras do que é considerado como
a língua correta. Note que essa questão não pode ser analisada do ponto
de vista naturalista, precisa do olhar da ideologia, das estruturas de poder.
Porém, dizer que uma língua não tem gramática é uma contradição em
termos – ser uma língua é ter uma gramática. O problema, que já no-
tamos acima, é que gramática, em geral, é entendida de um jeito muito
estreito e remete quase que exclusivamente a um compêndio de regras do
bem dizer que, supostamente, impedem que a língua se deteriore, que ela
vá se corrompendo até... – bem não sabemos bem onde isso vai dar, mas
deve ser algo terrível, deve ser a incompreensão total, o grunhido. Mas
a gramática como compêndio do bem dizer, como bastião que segura a
língua contra as cruéis investidas deteriorantes dos falantes “sem cultura”
(como se fosse possível não ter cultura) é, na melhor das hipóteses, uma
visão míope do que vem a ser uma gramática e do que é uma língua.

Outra crença extremamente equivocada que acompanha tal ideia de


gramática, é que, sem ela, deixaremos de ser civilizados, é a barbárie. Uma
vez que não temos o compêndio gramatical, a língua ficará à mercê do
tempo, da história, dos jovens, das modas, das gírias, etc. e provavelmente
não resistiria; em suma, daqui a algumas gerações não haveria mais língua
alguma. Na verdade, essa visão equipara a gramática ao código civil que
exibe o conjunto de leis que estabelecem a boa convivência dos indivíduos
em sociedade. Aquele que desrespeita uma regra gramatical deve ser pu-
nido de alguma forma, assim como aquele que infringi uma lei do código
civil. Só que o código civil é de certa forma para todos, enquanto que a
gramática considerada correta é de alguns. Alguns têm essa língua como
a sua língua materna. Obviamente, eles têm certas vantagens.

Não é necessário pensar muito para ver o quanto de absurdo há nessa


concepção de que a língua precisa de uma normativa para não se deteriorar.
Vamos a alguns fatos. Não há muito consenso na área, mas as estimativas
mais conservadoras diriam que a língua humana tal como a conhecemos

55
Construindo gramáticas na escola

existe há 150 mil anos; sabemos também que os sistemas de escrita existem
há não mais que 6 mil anos. Ou seja, falamos sem escrever há, mais ou
menos, 143 mil e chegamos até aqui! Sem leis obrigando os falantes a dizer
desse ou desse modo! Sem um compêndio de regras de “etiqueta” verbal e
colocação sintática. Obviamente não sem a gramática, porque é a gramática
que possibilita a confecção de proferimentos, a enunciação; sem ela, como
já dissemos, não há língua. Essas regras da gramática de qualquer língua
existem sem a escrita e sem compêndios gramaticais e muitas, na verdade,
existem à revelia disso tudo, como atesta a perpétua mudança linguística.

Não é de hoje que o português é alvo de profecias de que estamos


em processo de declínio, estamos em franca decadência. Ele foi alvo
desse tipo de profecia nefasta ao longo de sua história. José Agosti-
nho de Macedo (1761-1831), um intelectual português, afirmou que,
“se não existissem livros compostos por frades, em que o tesouro
está conservado, dentro em pouco podíamos dizer: ora morreu a lín-
gua portuguesa, e não descansa em paz”. O escritor Almeida Garrett
(1799-1854), ao reclamar do uso de palavras francesas em seu tempo,
não ficou atrás; para ele, o português de então era composto por “fra-
ses bárbaras repugnantes à índole do idioma; termos híbridos, locu-
ções arrastadas, sem elegância, [que] formaram a algaravia da moda,
e prestes invadiram todas as províncias das letras”. Ramalho Ortigão
(1836-1915), por sua vez, não tinha dúvidas de que “temos a prosa
histérica, abastardada, exangue e desfalecida de uma raça moribun-
da. A nossa pobre geração de anêmicos dá à história das letras um
ciclo de tatibitates”. O escritor português Afonso Lopes Vieira (1878-
1946) lamentava: “pensando bem, não há já linguagem portuguesa.
Quando uma linguagem se acha, como a nossa, atacada nas mais
fundas raízes da sintaxe, desce à categoria dos dialetos”. Bem mais
recentemente, o jornalista Marcos de Castro, em 1998, foi taxativo:
“Não fique nenhuma dúvida, o português do Brasil caminha para a
degradação total”, bem como Arnaldo Niskier, ao dizer, também em
1998, “Nunca se falou e escreveu tão mal o idioma de Ruy Barbosa”.
Finalmente, o renomado poeta Ferreira Gullar, em um texto de 2012,
depois de muito lamentar sobre a atual situação do português,

56
Línguas e Gramáticas CAPÍTULO 04
conclui ironicamente que “o que importa é que as pessoas se enten-
dam, ainda que apenas grunhindo”. Faz só uns 400 anos que eles Este parágrafo foi ba-
dizem que o português vai se acabar! seado em um texto de
Bagno, M. “Cassandra,
fênix e outros mitos”,
in: Faraco, C. et al.
(org.) Estrangeirismos:
guerras em torno da
O medo em questão parece ter um fundo mitológico na famosa ale- língua. São Paulo: Pa-
goria da Torre de Babel, que nos fala sobre o desejo humano de alcançar rábola Editorial, 2001,
pp. 49-84; e em um
Deus, concretizado na construção de uma torre que deveria ser tão alta que texto de Ferreira Gullar,
alcançaria os céus – naquele momento, certamente se acreditava que o céu chamado “Da fala ao
grunhido”, publicado
era alcançável. Esse empreendimento humano foi punido por Deus através no jornal Folha de São
da criação de línguas diferentes. Deus nos impediu de alcançá-lo impedin- Paulo, em 25/03/2012.
do que nos comunicássemos, dando a cada um de nós uma língua diferente.
Talvez seja esse o medo que está por trás da ideia de que precisamos de um
compêndio do bem dizer para controlar os usos; como se sem isso, fosse-
mos caminhando em direção aos caos, à total incompreensão e, de certa
forma, ao isolamento absoluto, já que ninguém entenderia ninguém.

Torre de Babel, Jan


Brueghel

Há muitos pontos curiosos nesse mito. Talvez o mais claro seja a hi-
pótese de que houve um momento em que todos nós falamos uma mesma
língua. Mas será que houve de fato essa língua primitiva ou Ursprache, a
língua original, esse momento na história da humanidade que os huma-
nos falaram uma única língua? Será que se formos traçando as famílias
linguísticas chegamos numa única língua mãe? Ainda não sabemos uma
resposta para essa pergunta e há várias reconstruções dessa suposta língua
primitiva. Há teorias que suportam que houve uma única língua – ver,

57
Construindo gramáticas na escola

por exemplo, o livro Genes, povos e línguas, de Luigi Luca Cavalli-Sforza;


nesse livro o autor faz uma análise das evidências genéticas e culturais
para mostrar que há uma origem comum tanto ao homem quanto à lín-
guas e que as diferenças genéticas, culturais e linguísticas entre os povos
são superficiais e, portanto, que não apenas que o racismo é uma falácia,
mas, o que nos interessa mais de perto, acreditar que há línguas melhores
ou piores também é. Enquanto há teorias que entendem que as línguas
iniciaram como diferentes protolínguas, em paralelo com as teorias que
acreditam que o humano surgiu em várias versões, por assim dizer. Note
a relação clara com a biologia, a evolução e a paleontologia.

Sabemos ainda muito pouco sobre como surgiram as línguas nos


humanos, mas parece haver consenso de que elas surgiram na África
com os Homo sapiens há poucos 200.000 anos atrás. A Paleontolinguís-
tica é uma ciência recente que utiliza métodos indiretos para recons-
truir a(s) origem(ns) das línguas.

Recentemente, surgiu, com a suposta identificação de um gene liga-


do à linguagem – o gene FOXP2 –, a hipótese de que podemos recorrer à
investigação genética para determinar quando os nossos ancestrais come-
çaram a falar. Se de fato esse gene está ligado à linguagem, então podemos
verificar se ele está ou não presente nos diferentes ancestrais e determinar
quando ele surgiu. Há ainda muita controvérsia nesse tipo de abordagem,
a começar pela afirmação de que o gene FOXP2 está efetivamente ligado
à linguagem. Mas vale a pena mencionar esses dados aqui para que se te-
nha uma ideia de como a linguística atual está em estreita conversa com a
biologia, a genética, a evolução da espécie humana, tópicos que raramente
são mencionados durante toda a vida escolar.

Por que nas aulas de língua portuguesa não nos perguntamos como
surgiram as línguas nos homens? Com toda certeza, esse é um tema
apaixonante e que permite explorarmos relações entre a biologia, a
história e a linguística, sem contar nos inúmeros mitos de criação das
línguas, incluindo a Torre de Babel e Adão nomeando os animais.

58
A faculdade da linguagem CAPÍTULO 05
5 A faculdade da linguagem
A punição das línguas parece ter sido eficiente no mito: a construção
da Torre não foi adiante porque a construção virou uma Babel. Essa estó-
ria e muitas outras semelhantes sobrevivem na nossa língua, por exemplo,
quando dizemos que algo está ou é uma babel, uma confusão. Mas sabemos
hoje em dia que não há efetivamente uma babel e não há como termos uma
babel e lembre-se de que estamos assumindo que as línguas são individuais
(cada um com a sua língua!) e mesmo assim não há qualquer perigo de
não nos entendermos. As línguas variam, é verdade, mas não variam ar-
bitrariamente e se não houver um compêndio do bem dizer, como não há
nas inúmeras línguas ágrafas – a maioria das línguas no mundo é ágrafa –,
não vamos deixar de nos entender, não vamos grunhir. Houve uma época
que as pessoas tinham medo de navegar para o horizonte porque a Terra
era uma plana e ao final havia uma queda d’água monumental, repleta de
monstros marinhos, todos a nos esperar e acabar dolorosamente com a vida
dos desventurados que por ali resolviam se arriscar. Talvez a mensagem fos-
se fique em casa, não se arrisque... ou talvez fosse conforme-se com o que
lhe dizem e não sai por aí descobrindo coisas e desafiando o conhecimento
estabelecido. Hoje sabemos que não há cachoeira alguma, que a Terra não
é plana e que somos apenas um planeta na imensidão do universo que tem
fim e irá se acabar. Da mesma maneira, sabemos, hoje em dia, através de
várias evidências, que não é possível chegarmos a essa situação traumática
de não conseguirmos nos entender. Em ambos os casos, há os corajosos que
Language Universals:
se arriscam no desconhecido e, num grande número de vezes, nos levam a with special reference
repensar o que antes era dado com certo. to feature hierarchies.
Publicado pela primei-
ra vez em 1966 e ainda
É de fato muito provável, como já dissemos, que cada um de nós tenha não traduzido para o
português. Uma apre-
a sua língua, assim como cada um de nós tem o seu código genético, mas sentação desse traba-
nem por isso há qualquer problema, ao contrário, a variação é bom. Sabe- lho pode ser encon-
trado no Manual de
mos, hoje em dia, que uma língua se deteriorar, virar grunhido, simples- Linguística: subsídios
mente não é uma possibilidade empírica porque por mais diferentes que para a formação de
professores indígenas
sejam as línguas, há universais. Todas as línguas têm substantivos e verbos, na área de linguagem.
por exemplo. Todas as línguas tem negação e por aí vamos. O linguista Jo- http://pt.scribd.com/
doc/59396578/57/
seph Greenberg foi um pioneiro na empreitada de detectar e classificar esses Os-universais-de-Gre-
universais; em seu trabalho mais famoso, ele apresenta 45 universais. enberg).

59
Construindo gramáticas na escola

Assim, mesmo que cada um fale uma língua que não tem nada a ver
com a outra, por exemplo, inglês e malaio – você sabe onde se fala malaio?
Escute um pouco da – e mesmo sem o auxílio de um tradutor ou de uma língua em comum,
língua malaia conseguimos nos entender. Sabemos isso porque já vivemos essa história.
http://www.youtube.
com/watch?v=HTx É só lembrar os vários exemplos de contato entre culturas que não tinham
VUbrOnEM antes entrado em contato, por exemplo, os portugueses que desembarca-
ram no Brasil em 1500 e encontraram os índios. Independente da língua
que esses índios falavam, não só houve comunicação entre eles –adiante
faremos uma diferença entre comunicar e falar uma língua –, mas cer-
tamente houve aqueles que aprenderam português e houve portugue-
ses que aprenderam a língua local e houve também a construção de uma
língua de contato – a chamada língua geral, que foi falada no Brasil pelo
menos até o século XVII.

Há, é claro, muitas questões levantadas por essa situação de conta-


O filme do diretor Wayne
Wang Mil anos de orações to, entre elas, podemos perguntar como é possível nos entendermos e,
(título original: Mr. Shi) traz dado um certo tempo, aprender a língua do outro? Há várias respostas
uma reflexão sobre falar e
ser compreendido. Na figu- para esse cenário e elas se baseiam na ideia de que independentemen-
ra 11, conversam Mr Shi, em te da nossa cultura há traços que compartilhamos. Além disso, as lín-
mandarim, e sua nova amiga
iraniana, em farsi. Como este guas variam, mas não aleatoriamente; como adiantamos, há universais
diálogo é possível? Fica aí linguísticos. Assim como há restrições biológicas ao que podemos ser,
uma boa dica.
podemos ter 5 ou 6 dedos, mas não seremos mais humanos se tivermos
cascos ao invés de mãos. Do mesmo modo, nem todas as combinações
e/ou variações são possíveis através das línguas. Há, pelo menos duas
maneiras de entendermos esses universais, que são independentes das
línguas: (i) eles são o resultado do modo como nós somos, como orga-
nizamos nossa vida, como é o nosso corpo; ou (ii), há uma gramática
universal, um sistema autônomo, independente de outros mecanismos
biológicos, como um órgão especializado para a linguagem. Na primei-
ra vertente, temos uma visão mais funcionalista das restrições univer-
sais, na segunda, uma visão gerativista, que entende que há um órgão
especializado para a linguagem (retornamos ao “gene linguístico”).

Nessa direção de um órgão para a linguagem, e também com o


intuito de esclarecer como essa noção deve ser entendida, vale a pena
relatar a pesquisa sobre o caso de Christopher , não apenas a título de

60
A faculdade da linguagem CAPÍTULO 05
curiosidade, mas porque ele mostra que há certas restrições biológicas
que impedem que uma língua seja uma língua natural.

O caso de Christopher

Christopher nasceu na Inglaterra em janeiro de 1962. 6 semanas


após seu nascimento ele foi diagnosticado com uma lesão cere-
bral que teria consequências para o resto da sua vida. Embora
ele tenha demorado para aprender a falar, ele tinha uma paixão,
desde os 3 anos, por dicionários, catálogos de telefone e coisas
do gênero. Aos 3 anos, ele lia anúncios de jornais e fazia isso in-
dependente da posição do jornal; ele lia o jornal de ponta cabe-
ça. Quando ele encontrou textos em outras línguas, ele começou
a aprender outras línguas. Ele tinha uma facilidade enorme para
aprender língua e não foi preciso mais do que algumas conversas
com seu cunhado para que ele aprendesse polonês. Esse talento
especial para aprender línguas contrastava com os seus índices em
testes de inteligência, que eram bem abaixo do normal. Ele apren-
deu: dinamarquês, holandês, finlandês, alemão, grego moderno,
hindu, italiano, norueguês, polonês, português, russo, espanhol,
sueco, turco e galês. Diante desses fatos impressionantes, dois
linguistas resolveram avaliar essa capacidade de Christopher. Lan-
çando mão do que eles sabiam sobre gramática universal, isto é,
as propriedades linguísticas que caracterizam qualquer língua hu-
mana, eles inventaram uma língua que violava essas propriedades
universais – como resultado, chegaram à língua chamada de Epun
cujo objetivo era de fato ser uma língua que explicitamente incluía
regras impossíveis para as línguas naturais. O grupo controle (pes-
soas que não tinham os problemas que Christopher apresentava)
e Christopher foram expostos à língua Epun. Christopher fez inú-
meras tentativas para aprender essa língua, sem sucesso algum,
apesar da sua capacidade para aprender diversas línguas naturais.
As pessoas do grupo controle, por sua vez, conseguiram aprender
essa língua. A única maneira de explicar essa diferença é entender
que essas pessoas aprenderam essa língua porque elas não esta-

61
Construindo gramáticas na escola

Se você se interessou leia


o caso inteiro em Smith, vam utilizando a faculdade da línguas, mas - e esse é o fato im-
N e Tsimpli, I-M. 1995. The portante – mecanismos gerais de inteligência, como, por exemplo,
Mind of a Savant. Blackwell,
Oxford. Infelizmente não há utilizando regras de indução. Mas Christopher só podia contar com
tradução para o português. a sua faculdade da linguagem e não com mecanismos gerais dada
a sua deficiência, e por isso, ele não aprendeu essa língua.

Há várias conclusões que podemos tirar a partir desse expe-


rimento, a que nos importa aqui é que as variações entre as línguas
não são aleatórias e que há uma faculdade (dedicada) para aprender
a linguagem, um componente especializado para as línguas naturais.
Novamente, podemos entender que esse componente especializado
para as línguas é um “órgão mental” ou que ele é resultado de uma
combinação de vários mecanismos cognitivos gerais, pendendo assim
ou para o gerativismo ou para o funcionalismo que caracterizam as
vertentes da linguística contemporânea. De qualquer perspectiva, ape-
sar de toda a diversidade, as línguas têm uma mesma estrutura, uma
estrutura que permite variação, sem que a variação seja aleatória. Uma
boa analogia é com o DNA, que é formado por quatro bases cuja com-
binação, bastante numerosa, é regrada – a combinação não é aleatória.
Sem sombra de dúvidas, a versão mais radical dessa tese é a gramática
universal cujo fundador é Noam Chomsky.

Não seria equivocado dizer que há ainda muita controvérsia sobre


como seria essa faculdade da linguagem, mas há também muitas evidên-
cias de que a capacidade para a linguagem é única nos seres humanos.
Assim, pode ser que não haja um componente que seja exclusivamente
responsável pela linguagem humana, o tal do órgão da linguagem – os
sintaticistas gerativos acreditam, e há evidências para isso, que há uma
faculdade para a linguagem que é o sistema sintático –, mas pode ser
que essa capacidade seja decorrência do cruzamento de outras faculda-
des e o que haja de único seja esse cruzamento em particular; mais uma
vez, independente de como entendemos, não há dúvidas de que há uma
capacidade para linguagem e que só os humanos têm essa capacidade.

62
A faculdade da linguagem CAPÍTULO 05
Vejamos um rápido exemplo de variação para mostrar como nem
todas as possibilidades estão disponíveis. Retiramos esse exemplo do Essa é uma leitura in-
dicada para acompa-
primeiro capítulo, chamado “Um castelo no ar”, do livro The Unfolding nhar este capítulo e se
of Language de Deutscher. O autor está empenhado em mostrar que encontra na webteca.
uma língua não é um conjunto de palavras, pois, se fosse assim, a sequ-
ência a seguir faria sentido:

(1) Tropas vizir seu o trouxe líder o para sultão das o.

Nem todas as combinações de palavras geram uma sentença numa


língua. (1) não é uma sentença do português e ninguém precisa explicitar
isso numa gramática – embora talvez a ordem do português tenha que ser
explicada se estivermos numa situação de ensinar português como língua
estrangeira. Qualquer falante do português sabe que (1) não é gramati-
cal. Como sabemos isso? Porque sabemos quais as regras de construção
do português – atenção, aqui estamos falando de um conhecimento que
qualquer falante tem, mesmo que não tenha frequentado a escola, mesmo
que ele não saiba ler nem escrever, mesmo que ele não saiba o que é uma
gramática e mesmo que ele não consiga explicitar quais são essas regras.

Certamente, você sabe que (1) não é gramatical. Mas por que (1)
não é uma sentença do português? Que regras estão sendo violadas? Você
consegue construir sentenças gramaticais a partir de (1)? Eis algumas
possibilidades:

(2) a. O sultão trouxe o seu vizir para o líder das tropas.

Escute um pouco de
b. O líder das tropas trouxe o sultão para o seu vizir. turco http://www.you-
tube.com/watch?v=
VRugWpcR6iw.
Compare, agora, com o que ocorre em turco. Preste atenção na glos-
sa, a tradução palavra a palavra:

(3) Padişah vezir-ini ordu-lar-i-nin baş-i-na getirdi

Sultão vizir-seu tropa-s-suas-das líder-dele-para trouxe

63
Construindo gramáticas na escola

O que você nota sobre a sintaxe dessa língua? Como ela é? Certa-
mente, você deve ter notado que o verbo principal aparece no final da
sentença, uma posição que raramente utilizamos, ainda mais quando se
trata de verbos transitivos conjugados como trazer. Há muitas línguas que
colocam o verbo principal na última posição e os auxiliares ficam na se-
gunda posição da sentença, como, por exemplo, o alemão e o holandês
(entre várias outras):

(4) Ich will nach Haus gehen

Eu quero na casa ir.

Essas são as chamadas línguas V2 .

Veja que o turco parece um espelho do português, no sentido de que


o possessivo, por exemplo, ocorre depois do substantivo em turco, en-
quanto que ele ocorre antes do nome no português; é quase como se o
turco fosse o português lido “de trás para a frente” (e vice-versa) Note que
essa regra vai ter que ser explicitada para um turco para que ele aprenda
português e a regra do turco vai ter que ser explicada para nós, se formos
aprender turco. E certamente vamos sofrer, no início, para conseguir falar
turco como um falante nativo. Mas nenhuma criança turca ou não tem
qualquer problema em falar turco.

Há, pois, variação entre as línguas, mas – e esse é o ponto – essa va-
riação é regrada. Em The boundaries of Babel. The brain and the enigma of
impossible languages, Andrea Moro descreve três experimentos com ma-
peamento de ondas cerebrais e fluxo sanguíneo no cérebro que atestam
uma interação entre a linguística e as pesquisas sobre cérebro e mente.
Seu objetivo último é mostrar que os limites para a variação das línguas
naturais são detectáveis pelas ondas cerebrais, ou seja, há uma contraparte
cerebral, física, para a variabilidade sintática. Ao discutir um exemplo, ele
mostra claramente que embora as línguas variem, elas não variam alea-
toriamente. Um de seus exemplos é exatamente sobre ordem, um caso
parecido com o que vimos na comparação entre o turco e o português.
Vamos adaptar seu exemplo para o português abaixo; podemos supor as
seguintes variações na ordem do português:
64
A faculdade da linguagem CAPÍTULO 05
(5) a. Maria disse que João tinha visto uma foto.

b. Maria João uma foto visto tinha que disse.

c. Maria essa João foto visto que disse tinha.

d. João Maria que disse tinha visto foto essa.

Não é difícil, para qualquer falante do português, tendo ou não ido


à escola, determinar qual das sentenças acima é gramatical. Certamente,
você respondeu que é a primeira, (5a), a única sentença gramatical no
português. De fato, as demais parecem saladas de palavras. Mas, como
mostra Moro, a sentença em (5b) é uma tradução palavra a palavra para
o japonês da sentença em (5a). O autor mostra que essas duas ordens na
verdade diferem minimamente, mas para enxergar isso é preciso que você
tenha em mente as duas árvores sintáticas com as ramificações binárias.

Veja um esboço dessas duas árvores.

Para (5a) temos:

65
Construindo gramáticas na escola

Para (5b) temos:

De qualquer modo, uma diferença sintática mínima leva a uma di-


ferença superficial enorme. No entanto, o ponto mais importante é que
(5c) e (5d) simplesmente não são estruturas possíveis nas línguas natu-
rais. Não há nenhuma língua que tenha uma sintaxe como a que aparece
nessas sentenças; em outras palavras, essas combinações violam as regras
da linguagem, os princípios, por isso não ocorrem em nenhuma língua
do mundo. Veja que esse tipo de estratégia, por assim dizer, reduz muito
a tarefa da criança em fase de aquisição. Essas restrições não são apren-
didas através do contato com a língua falada em torno da criança; essas
restrições vêm conosco, fazem parte da nossa história enquanto espécie.

O objetivo do linguista é entender o funcionamento das línguas ma-


ternas ou línguas naturais, que são aquelas que aprendemos em casa sem
instrução formal. O fato de que qualquer humano, a menos que tenha sé-

66
A faculdade da linguagem CAPÍTULO 05
rios danos cerebrais ou genéticos, fala a sua língua e a aprende sem esforço
merece uma explicação e um momento de reflexão. Esse é o chamado pro-
blema da aquisição da linguagem que foi colocado por Chomsky quando,
com sua famosa resenha do livro Verbal Behavior de Skinner, em 1957, ele
fundou a abordagem cognitiva da linguagem. Somos os únicos animais
Uma excelente discussão so-
que temos uma língua materna. Podemos, como faz Pinker (2008), entre bre esse assunto, com uma
perspectiva multiteórica,
outros autores, entender que a evolução das línguas foi gradual e que não
no sentido de que o autor
há uma ruptura entre nós e outras espécies ou, como Chomsky, que há busca entreter diferentes te-
orias, é Fitch (2010), infeliz-
uma ruptura evolutiva. Essa é uma disputa que está em vários lugares da
mente ainda sem tradução
biologia e não há como decidirmos sobre ela ainda. De qualquer modo, o para o português.
ponto crucial é que nenhuma outra espécie tem uma língua. Há sistemas
de comunicação usados por outras espécies: as abelhas se comunicam,
assim como os golfinhos, mas eles não têm língua e não se trata de uma
postura antropocentrista, mas de um dado científico que, mais uma vez,
precisa ser explicado. Por mais que tenhamos tentado ensinar outros ani-
mais a falar, nunca somos bem sucedidos.

O caso do chimpanzé Nim Chimpsky

Uma equipe de linguistas acompanhou a evolução linguística de


um bebê chimpanzé, batizado Nim Chimpsky, dos 2 meses aos 4 As línguas de sinais
anos. Nim foi adotado por uma família de humanos quando tinha são línguas naturais.
Elas têm exatamente o
menos de dois meses de idade. Eles se comunicavam através da mesmo funcionamen-
língua de sinais americanos – ASL (American Sign Language). to das línguas verbais.

Essa estratégia foi utilizada porque sabemos que o aparato vocal


dos chimpanzés não permite que eles tenham uma língua falada.
A pesquisa sobre a capacidade linguística dos chimpanzés é relati-
vamente extensa, principalmente porque eles são os primatas ge-
neticamente mais próximos dos seres humanos e foram, portanto,
alvo de várias experiências.

Sem sombra de dúvidas os chimpanzés têm capacidade para mani-


pular símbolos, com alguma complexidade, a pergunta é se eles têm
capacidade para falar uma língua natural. (Note que estamos dife-
renciando a faculdade da linguagem de outras funções cognitivas e

67
Construindo gramáticas na escola

note que fazer isso não é equivalente a entender que há um órgão


para a linguagem.) Por isso, Nim foi criado numa família de huma-
nos como um bebê, tendo contato com a ASL desde que nasceu,
como ocorre com as crianças. Os pesquisadores gravaram o pro-
gresso linguístico de Nim e viram que ele rapidamente aprendeu
125 palavras diferentes em ASL. Além disso, foram transcritas 25.000
sentenças produzidas por Nim, que foram extensivamente analisa-
das linguista e estatisticamente. Mais da metade dessas sentenças,
após os 4 anos, eram com duas palavras e a ordem não era previsí-
vel. Nim sinalizava Banana comer e comer banana aleatoriamente.
Na maior parte das sentenças com mais de duas palavras, havia uma
repetição: banana comer banana. Não havia, contudo, nenhuma
sentença com mais de duas palavras em que uma delas tivesse fun-
ção estrutural. Na descrição de Petito – a coordenadora do projeto
– a maior parte das vezes que uma criança diz algo como senta ca-
deira papai, há uma relação de posse entre a cadeira e o pai: senta
na cadeira do papai. Sabemos isso porque a criança muda a ordem
dos elementos quando ela quer veicular outro conteúdo, como em
papai senta cadeira. Assim, para a criança não se trata apenas de
uma justaposição de palavras, mas de uma justaposição significati-
va. Nim, após 4 anos, só era capaz de produzir cadeias de palavras
desconectadas. Aos 26 meses, o tamanho das sentenças de Nim era
o mesmo das sentenças produzidas por qualquer criança. Com 52
meses, o tamanho das sentenças de Nim continuava o mesmo, en-
quanto que as crianças produziam sentenças 8 vezes maiores. Várias
outra evidências levaram o grupo a concluir que aos 4 anos Nim ti-
nha um sistema de comunicação que não tinha nenhuma das carac-
terísticas da sintaxe das línguas humanas.

Se você quiser saber mais sobre essa experiência pode consultar Ter-
race, H. (1979) Nim: A Chimpanzee Who Learned Sign Language
Knopf, mais uma vez sem tradução para o português.

Você pode também ver o filme “Project Nim” http://en.wikipedia.org/


wiki/Project_Nim_(film) ou, com legenda em espanhol em http://
www.youtube.com/watch?v=FllozfOUscs.

68
A faculdade da linguagem CAPÍTULO 05
Há muitos pontos importantes nessa experiência com Nim. Um
ponto fundamental é que uma língua NÃO é um sistema de comuni-
cação. Desfazer esse modo de ver as línguas vai certamente levar muito
tempo. Encontramos essa definição de língua em documentos oficiais
– nos Parâmetros Curriculares Nacionais tanto de ensino médio quanto
de ensino fundamental -, em livros didáticos, nas conversas, na nossa
vida cotidiana, etc. As abelhas têm um sistema de comunicação extre-
mamente sofisticado, elas conseguem indicar a posição do pólen, a sua
quantidade e qualidade, a distância em que se encontra. Mas, uma abe-
lha não cria algo novo, ela comunica apenas aquilo para o que ela está
geneticamente programada – abelhas nunca poderão, por exemplo, fa-
zer fofoca ou contar uma piada. Como a experiência com Nim mostrou,
não há sintaxe, não há um sistema que permite combinações infinitas
e consequentemente criar sentenças novas. É justamente a propriedade
da recursividade que torna as línguas naturais especiais e distintas de
quaisquer outros sistemas de comunicação.

Por que nas aulas de português nunca falamos sobre nós e os outros ani-
mais? Por que não perguntamos aos alunos se eles acham que os bichos
falam e em que sentido eles falam? Essas são questões interessantes e o
professor pode, com a sua turma, fazer uma pesquisa sobre o tema. De
novo, esse é um tema que pode ser desenvolvido com a biologia e, a
depender da série, com o professor de computação, refletindo sobre as
linguagens computacionais, que, afinal, também não são faladas.

Além de não compartilharmos essa característica com nenhuma


outra espécie, também foram frustradas as tentativas de transformar-
mos línguas artificiais ou inventadas em línguas naturais, com exceção
daquelas línguas que se baseavam de saída em línguas naturais como
o esperanto e o hebraico moderno. Como vimos no caso de Christo-
pher, as pessoas conseguem aprender e mesmo falar línguas inventadas,
porque elas utilizam recursos de sua cognição central, mas as crianças,
assim como Christopher, que dependem exclusivamente da faculdade
da linguagem, não conseguem aprender línguas que violam as regras da
faculdade da linguagem.

69
Construindo gramáticas na escola

Há um grupo que se encontra regularmente para falar Klingon, a


Você pode aprender língua dos Warriors no Star Trek e a primeira língua com direito autoral.
Klingon. Veja http:// Mas o Klingon só vai se tornar uma língua materna, se suas regras não
www.kli.org/
violarem as regras da faculdade da linguagem e se seus membros pas-
sarem a falar essa língua com seus bebês, como ocorreu com o esperan-
to. Como adiantamos, as línguas inventadas que tiveram sucesso em se
Um livro muito interes- tornar línguas maternas foram aquelas que se basearam fortemente em
sante sobre as línguas línguas naturais e, fundamentalmente, não violaram nenhuma regra da
inventadas e como as
razões para inventar- gramática universal. Aliás, é interessante notar que não é fácil violar essas
mos uma língua são regras, em primeiro lugar porque é preciso saber quais são essas regras e
historicamente motiva-
das é a tese de douto- geralmente são poucos os linguistas que sabem isso. Essas regras são tão
rado de Arika Okrent, partes de nós que ao inventarmos uma língua nova respeitamos essas re-
In the land of invented
languages, infelizmen- gras, mesmo sem sabermos sobre elas.
te também não dispo-
nível em português.

Exercício 1. Mostre por que uma língua não é uma etiquetagem de objetos
como parece ser a compreensão de língua no mito de Adão.

Exercício 2. Comente, a partir da leitura deste capítulo e de seu conheci-


mento em linguística, a passagem abaixo, que foi retirada de um site sobre
vestibular, em que se explica o que é a linguística

http://vestibular.brasilescola.com/guia-de-profissoes/linguistica.htm

“A língua é a forma de se comunicar dos povos de todo o mundo. Duvide


ou não do mito da Torre de Babel, é certo que dificilmente duas pessoas de
idiomas diferentes conseguirão se entender sem que as duas saibam pelo
menos um pouco de uma língua em comum.”

70
O que as crianças nos dizem? CAPÍTULO 06
6 O que as crianças nos dizem?
Nosso objetivo com essa pequena incursão pela questão de como
as crianças “aprendem” sua língua é mostrar mais uma evidência para a
faculdade da linguagem. Chomsky, já vimos, foi quem colocou o proble-
ma da aquisição da linguagem de modo mais explícito e o trouxe para o
centro das atenções em linguística: a linguística precisa explicar como as
crianças aprendem, com dados tão truncados, sem instrução formal e em
tão pouco tempo, um sistema tão complexo como uma língua natural, um
sistema que, apesar das intensas pesquisas nos últimos anos, ainda não
teve seu funcionamento e estrutura plenamente entendido, nem mesmo
para o inglês, a língua mais estudada por razões certamente políticas.

Na resenha de Verbal Behavior, de Skinner – uma peça acadêmi-


ca que deveria ser lida por todos os interessados nas línguas naturais,
Chomsky se opõe ao que então era considerada a maneira de abordarmos
cientificamente a mente humana, o behavorismo. É preciso um pouco
de cuidado aqui porque, como veremos no próximo capítulo, enquanto
linguistas os dados de que dispomos vêm do comportamento do falante,
entre eles sua reação a certas sequências, o seu julgamento de gramatica-
lidade. Mas não é essa posição que está sendo criticada. Chomsky está se
colocando contra explicações sobre a aquisição com base na psicologia
behavorista ou comportamental, que preconiza que a aprendizagem se dá
por estímulo e resposta.
Veja http://www.
Sem dúvida aprendemos por estímulo e resposta: o famoso cachor- youtube.com/
watch?v=C40cXKi4c3Y
ro de Pavlov salivava a cada vez que a sineta tocava. O ponto é que não
conseguimos explicar as línguas humanas através dessa máxima. Talvez
o argumento mais contundente seja que temos livre arbítrio, podemos
decidir o que fazer. A ideia é a seguinte: o cachorro de Pavlov sempre
que ouvia a sineta, salivava porque ele foi condicionado: ao ouvir a sine-
ta ele recebia comida. Assim, quando ele ouve o estímulo, ele reage con-
forme o que ele aprendeu. O problema, diz Chomsky, é que a rigor não
reagimos da mesma maneira a um mesmo estímulo, temos um espaço
para criatividade, para termos reações diferentes.

71
Construindo gramáticas na escola

A criatividade de que fala Chomsky é aquela que já vimos que os


chimpanzés não têm: a criatividade de construir estruturas sintáticas
em que a ordem importa de uma maneira recursiva e funcional. Em
outros termos, se aprendemos a colocar uma oração relativa para predi-
car algo de um certo indivíduo, podemos reaplicar essa regra o quanto
desejarmos até um ponto em que a nossa memória não consegue mais
acompanhar. Veja um exemplo:

(6) João pediu ao seu vizinho, que tinha uma vaca, que acabara de
dar cria, que ainda não estava vendida para o seu concorrente, que esta-
va querendo comprar a cria, que João estava interessado...

Certamente você nunca ouviu a sentença em (6). Nesse sentido


muito banal, ela é uma sentença nova. No entanto, você não tem nenhu-
ma dificuldade para entendê-la – talvez você tenha que ler mais lenta-
mente porque há muitas relativas encaixadas. As crianças mostram essa
criatividade de modo mais contundente: produzem sentenças que elas
nunca ouviram, mas que são possíveis de serem geradas na sua língua.
Uma menina de 4 anos, diz, se comparando a um menino menor:

(7) Eu sou granda.

Ela está colocando gênero num adjetivo que não apresenta no por-
tuguês marca de gênero. Ela está aplicando a regra de concordância de
gênero: ela é menina, então os adjetivos que se referem a ela são femi-
ninos. Só que ela nunca ouviu granda, porque não falamos assim, em
nenhum dialeto; ela inventou essa forma.

Parece uma boa explicação imaginarmos que as crianças fazem ge-


neralizações a partir dos proferimentos que ela ouve e que assim elas de-
preendem quais são as regras da sua gramática. Podemos explicar o uso
de granda dessa maneira. Ela teria realizado uma super generalização.
Embora esse procedimento deva estar também envolvido na aquisição e
deva estar na base para a produção de super generalizações que frequen-
temente escutamos nas crianças – um outro exemplo aparece quando
elas dizem eu fazi em que podemos imaginar que elas estão regularizan-

72
O que as crianças nos dizem? CAPÍTULO 06
do por comparação com formas como escrevi, comi... –, ele não permite
explicar por que a criança simplesmente não faz certas generalizações.

Um pouco mais sobre a criatividade das crianças

A partir de uma certa idade, as crianças brasileiras produzem sen-


tenças que contam com palavras como as sublinhas nos exemplos
abaixo:

(i) Mãe desacende a luz.

(ii) Mãe desesquenta/diquenta o leite.

Há várias coisas interessantes a serem notadas aqui. Comecemos


pelo fato de que não temos dúvida do que significam esses verbos
– é óbvio que não falamos corriqueiramente desacender e nem
desesquentar, mas entendemos sem precisar parar para pensar. O
que isso significa? Bom, que tanto nós quanto as crianças sabemos
muito sobre morfologia, sobre como compor e criar palavras novas,
e, utilizando essas mesmas regras, interpretamos as criações feitas.

Contudo, justamente o fato de que não falamos normalmente es-


ses verbos, como podemos explicar que as crianças produzam essas
palavras? Você poderia responder que a criança compõe des- mais
um verbo (acender, esquentar); note, contudo, que a criança nunca
ouve des- sozinho e ninguém diz para ela o que des- significa (você
saberia dizer?). Para complicar as coisas, há muitas palavras em que
o des- aparece, mas não com a mesma função; pense, por exemplo,
em desenvolver (versus envolver), desaparecer (versus aparecer),
desmontar (versus montar) e descabelar (versus ???)... pois é, o
des- é complicado, mas de alguma maneira a criança entende seu
significado básico e super generaliza seu uso criando formas nas
quais ele não aparece. E, claro, é extremamente complicado, senão
impossível, explicar como isso ocorre de um ponto de vista compor-
tamental, baseado apenas em cadeias de estímulo-e-resposta.

73
Construindo gramáticas na escola

Eis um exemplo do que Chomsky tinha em mente e que vai nos


servir para mostrar uma propriedade muito importante das gramáticas
das línguas naturais: a hierarquia. Mantemos o exemplo em inglês por-
que ele nos parece mais fácil de visualizar, e em seguida apresentamos
um exemplo em português. As crianças ouvem os adultos perguntando
com estruturas como as exemplificadas em (8):

(8) a. Is John late?

b. Is lunch ready?

c. Is Mary home?

d. Is Paul sad?

E depois de ouvir muitas outras sentenças como essas, a criança


pode então chegar a seguinte generalização:

(9) Para fazer a pergunta eu devo mover o verbo auxiliar (is) para a
primeira posição da sentença.

Atenção, ninguém imagina que uma criança formule regras como


(9). É algo mais natural e não consciente. O que temos em (9) é uma
maneira de nós explicitarmos essa regra. O que nos interessa é que ela
nunca vai ter dúvidas sobre como construir a pergunta da sentença em
(10) abaixo:

(10) John who is sad is tired.

Veja que se a criança aplicar a regra em (9), ela acabaria por produ-
zir algo como:

(1) * Is John who sad is tired?,

Mas essa sentença é agramatical em inglês. No próximo capítu-


lo exploramos melhor essa ideia de agramaticalidade. O importante

74
O que as crianças nos dizem? CAPÍTULO 06
é que: nenhuma criança produz tal sentença e uma estrutura como a
exemplificada em (1) é agramatical em qualquer língua que conhece-
mos: ela é uma impossibilidade, ela é um dos limites para Babel. Por
isso, nenhum manual de ensino de inglês precisa explicar como fazer
essa pergunta. Agora a questão é: por que não produzimos sentenças
desse tipo? O que acontece em (1)?

Vejamos um exemplo em português. A sentença em (2) tem duas


interpretações, uma em que o pronome é interpretado como ligado ao
sujeito gramatical e outra em que ele não está ligado ao sujeito, ele está
livre. Usamos os índices para representar essas diferentes interpretações
– índices iguais indicam que estamos falando do mesmo indivíduo; ín-
dices diferentes indicam indivíduos diferentes:

(2) a. João disse que ele está cansado.

b. João j disse que ele j está cansado.

c. João j disse que ele j está cansado.

O que ocorre em (3) abaixo?

(3) Ele disse que João está cansado.

A sentença em (3) só admite uma interpretação: ele e João não são


co-referentes, não denotam o mesmo indivíduo no mundo. Você pode
imaginar que isso ocorre porque o ele está numa posição antes de João,
mas essa não pode ser a explicação, porque temos (4):

(4) Apesar de ele estar cansado, João ainda vai fazer compra.

Em (4), ele e João indicam o mesmo indivíduo e ele aparece numa


posição anterior a João. O que esses exemplos mostram é que nós in-
terpretamos as sequências linguísticas não linearmente, apesar de elas
parecerem sequências lineares. Prestamos atenção na estrutura sintática
e você vai ver que essa estrutura é hierárquica (i.e., não linear). Voltando

75
Construindo gramáticas na escola

ao exemplo em inglês, podemos dizer que a criança não imagina que (1)
possa ser a forma de perguntar, porque ela sabe que a primeira ocor-
rência de is está dentro de uma sentença relativa (who is sad), que está
encaixada em John. Não é possível tirar um elemento de dentro de uma
relativa porque ela é uma barreira que não permite extração. Na sintaxe,
ela é tratada como uma ilha forte. Os exemplos nos mostram que por
trás da aparente linearidade dos constituintes há uma hierarquia que é
respeitada para que as sentenças sejam bem interpretadas. E essa hie-
rarquia não aparece explicitamente nos dados. De fato, foram precisos
vários anos para que Chomsky enxergasse as hierarquias. Assim, não
importa a ordem linear, o que prestamos atenção são as estruturas sin-
táticas que se constroem hierarquicamente; é por isso que na sentença
em (4) no português não importa que ele ocorra antes de João, porque
estamos interpretando a estrutura sintática que está por baixo da ordem
linear e nessa estrutura João c-comanda o pronome ele. Assim, em (4)
ele só pode ser interpretado como coindexado à João, embora linear-
mente ele ocorra antes de João.

A noção sintática de c-comando é fundamental para entendermos


as línguas humanas e não muito simples de ser explicada em pou-
cas linhas. Confira em Mioto et al (2011). Bem resumidamente, as
possibilidades de combinação dos elementos em uma sentença são
restritas por meio da operação de c-comando. Um constituinte pode
c-comandar um outro constituinte se estiver em uma certa confi-
guração sintática. Simplificando muito as coisas, um constituinte A
c-comanda um constituinte B, se A não domina B e o primeiro ramo
que domina A também domina B. Na configuração

A c-comanda B.

Em suma, nossa mente/cérebro enxerga estruturas hierárquicas.


Note que nenhuma gramática normativa precisa explicar uma sentença

76
O que as crianças nos dizem? CAPÍTULO 06
como (1) para o inglês ou que (3) só tem uma interpretação em portu-
guês. Nenhum manual de ensino de inglês como língua estrangeira vai
explicar que (1) não é gramatical, porque ninguém vai realizar (1) – ela
viola uma regra universal. Só os linguistas produzem sentenças como
(1) porque estão criando experimentos com as línguas para tentar en-
tender a sua estrutura. E o fato de que nossa faculdade da linguagem
interpreta não linearmente as estruturas é algo muito surpreendente.
Veja que uma regra como essa não é possível de ser apreendida induti-
vamente, apenas observando as produções dos adultos. O que nos leva
de volta a hipótese da faculdade da linguagem.

77
Unidade C
Construindo gramáticas: o
método científico na escola
Objetivo: Nesta unidade, vamos rever os diferentes níveis que constituem
uma gramática. Aprender técnicas de construção de uma gramática. Formular
hipóteses indutivas e dedutivas, e verificar a adequação de hipóteses, através da
análise de exemplos de várias línguas

Procuramos mostrar, nos capítulos anteriores, que há muitas con- Essa metodologia foi
aplicada em comuni-
tribuições que a linguística pode oferecer às aulas de português. As lín- dades indígenas da
guas são excelentes para ensinarmos o raciocínio científico – algo que é Austrália, comuni-
dades indígenas nos
necessário independentemente da área para a qual o aluno irá se dirigir Estados Unidos e na
–, porque não precisamos de equipamentos sofisticados para construir- América Central em
comunidades caren-
mos uma gramática – uma explicação para uma língua – e por isso a lin- tes. apud Honda &
guística já foi utilizada para o ensino de ciência. Isso é possível porque O’Neil (1993)

todos têm acesso direto a sua língua e conseguem, com certa facilidade,
levantar hipóteses sobre o seu funcionamento, avaliá-las, reformulá-las
e, se for o caso, fazer novas hipóteses.

Aproveitando esse caráter excepcional da linguagem como labora-


tório para a formação científica, linguística e também para a aquisição
da escrita, Maya Honda e Wayne O’Neil, relatam, em um texto de 1993,
intitulado Triggering Science-Forming Capacity through Linguistic Inqui-
ry, uma série interessantíssima de atividades que envolveram a inves-
tigação linguística para, como o título de seu artigo sugere, auxiliar na
formação da capacidade científica, incluindo aí o ensino de matemática.

Nesse texto, os autores narram uma experiência que durou três


anos, envolvendo alunos da sétima a décima segunda série americana,
ou seja, alunos de 12 a 18 anos, que corresponde, grosso modo, ao final
do nosso ensino fundamental e todo o ensino médio. A ideia dos autores
foi usar as habilidades linguísticas dos alunos como meio de apresentar,
sofisticar e ensinar capacidades relativas ao fazer e à argumentação cien-
tíficos. O problema que os autores tinham por objetivo sanar é bastante
familiar para nós, e é assim por eles descrito (p. 232; tradução nossa):

[...] depois de passar anos nas aulas de ciência e matemática, ou evitan-


do tais experiências o máximo possível, os estudantes têm pouca ou ne-
nhuma compreensão sobre ou nenhuma apreciação pela empreitada
da ciência e da matemática.
Os autores oferecem vários argumentos a favor de usar o conheci-
mento linguístico e as técnicas da linguística como um meio para atingir
um maior domínio da ciência, por exemplo, (i) não há custo evolvido,
pois basta termos falantes e suas intuições, salvo algum problema gra-
ve, (ii) todos falam e têm intuições sobre sua língua; (iii) as técnicas de
investigação linguísticas baseadas na intuição (i.e., má formação de sen-
tenças e suas interpretações possíveis) são qualitativamente as mesmas
usadas nas outras ciências; (iv) o acesso aos dados pertinentes para a
formulação, teste e reformulação de hipóteses (i.e., dados linguísticos e a
intuição sobre eles) está garantido. Além disso, é interessante notar que
os autores não trabalharam com os professores de inglês e/ou de litera-
tura, mas sim com os professores de ciência, justamente com o intuito
de também mostrar que há uma visão científica sobre a linguagem. Eis
aqui um gancho para projetos interdisciplinares.

Partindo desses pressupostos, Honda e O’Neil relatam como se


deu o trabalho em equipe, os testes e dados que usaram, e os resulta-
dos positivos alcançados: o desempenho em ciência e matemática dos
alunos que “fizeram o papel de linguistas” foi sensivelmente maior que
o de alunos que não participaram da experiência, além de os alunos
terem contato com uma empreitada científica real. Mas, além disso, os
autores notaram fatos extremamente interessantes que revelam – para
a realidade norte-americana, é claro – como um certo ensino de língua
pode afetar a formação mais ampla dos alunos. Havia uma diferença
extremamente significativa com relação ao comportamento dos alunos
que participavam das atividades quando eles deviam dar seu julgamento
de (a)gramaticalidade das sentenças em avaliação: os alunos da sétima
série eram confiantes e rápidos nos seus julgamentos, ao passo que os
alunos mais velhos, que estavam na escola há mais tempo, hesitavam na
hora de dizer se uma dada sentença era aceitável ou não.
Esses conceitos são
distintos, mas para os
nossos propósitos esse Como veremos mais adiante neste capítulo, os julgamentos de
ponto não interessa.
agramaticalidade (ou aceitabilidade) não se confundem com a noção
de erro. É importante fazer essa distinção. O erro é uma avaliação social
de que o que foi realizado não está dentro dos padrões considerados
certos. O erro exige uma norma social, uma normativa; no nosso mun-
do, é errado copiarmos o texto de alguém sem citarmos. Por sua vez, o
julgamento de gramaticalidade é parte da nossa capacidade linguística,
reconhecemos imediatamente quando uma sequência não faz parte da
nossa língua. É assim que identificamos um falante estrangeiro ou al-
guém cuja gramática difere da nossa. Por exemplo, a sequência menino
saiu Maria não é uma sentença do PB. É uma sentença que não pertence
à nossa gramática. Como mostra também o trabalho de Honda e O’Neil
(1993), é essa capacidade que foi reprimida pela escola.

Tal situação se dava, segundo os autores, porque

seus julgamentos [dos alunos, sobre a (a)gramaticalidade e interpreta-


ção de sentenças] era raramente solicitado ou valorizado, e certamente
nunca foram o mote para investigações. E por isso eles tinham receio e
incertezas diante de nossas questões, como se estivessem sendo leva-
dos a alguma armadilha ou constrangimento. (p. 245).

Essa constatação dos autores é chocante: depois de anos de estu-


dos de língua na escola, um dos resultados é os alunos terem receio de
dar sua opinião sobre sentenças de sua própria língua, provavelmente
porque sua língua já foi julgada errada muitas vezes. A escola bem que
poderia não ser um lugar de repressão!

Neste capítulo, vamos apresentar o método científico na linguística,


com a perspectiva de que ele seja usado na escola para construir gramá-
ticas e assim, ao mesmo tempo, ensinar os alunos a raciocinarem cien-
tificamente e levá-los a entender a sua língua, como parte do processo
de aprendizagem de outras línguas. Vamos iniciar pelo dado negativo.
O dado negativo e o erro CAPÍTULO 07
7 O dado negativo e o erro
Uma língua é uma gramática e uma gramática é um sistema de re-
gras internalizadas que permite gerar infinitas sentenças que são inter-
pretáveis. Cada falante tem a sua gramática sobre a qual ele tem maior
ou menor consciência, embora ele possa fornecer julgamentos sobre
estruturas que ele sabe que fazem parte da sua gramática e outras que
ele não considera como parte da sua língua (i.e., que não podem ser
geradas por sua gramática), sem que ele saiba explicitar esse conheci-
mento. Tal conhecimento é muitas vezes chamado de “conhecimento
epilinguístico”; faz parte desse conhecimento, por exemplo, reconhe-
cer imediatamente diferentes tipos de dialetos e de línguas. Na cons-
trução de gramáticas que procuram reproduzir o conhecimento inter-
nalizado que um falante tem sobre as regras de sua língua, que é seu
conhecimento linguístico, os linguistas utilizam esse conhecimento
dos falantes mesmo que o falante não saiba que ele o tem. Mas, aten-
ção, não se trata obviamente de saber as normas e regras do bem dizer
que aparecem na gramática normativa, nem mesmo de saber analisar
sentenças; trata-se, antes, de um conhecimento implícito como o co-
nhecimento que mobilizamos quando andamos ou quando dirigimos.
Não temos consciência das inúmeras regras que dirigem o nosso ca-
minhar ou a direção de um carro; ou seja, não sabemos como o motor
funciona, por exemplo, e teremos muita dificuldade em descrever com
precisão todos os movimentos que fazemos ao dirigir, experimente
descrever passo a passo como se dá o caminhar ou a direção de um
carro e você verá o quão difícil é fazer isso. Com processos mentais a
questão é ainda mais delicada porque não temos acesso direto ao que
ocorre na nossa mente/cérebro – não dá para ver diretamente nossos
pensamentos nem sua estrutura. Mesmo com as técnicas de que dispo-
mos hoje em dia, o acesso aos processos mentais não é direto, porque
o máximo que vemos são os “movimentos cerebrais”, as ondas elétricas
ou os fluxos de sangue, mas não sabemos como esses fenômenos físi-
cos se relacionam com os pensamentos nem com a linguagem.

Sem qualquer sombra de dúvidas, uma contribuição importante


de Chomsky para a linguística naturalista – tanto para os chamados

85
Construindo gramáticas na escola

formalistas quanto para os funcionalistas – foi a metodologia do dado


Ver Pires de Oliveira negativo. Chomsky notou que as metodologias indutivas, aquelas que
(2010) disponibilizado fazem generalizações a partir dos dados efetivamente produzidos pelos
na webteca.
falantes, não conseguiam explicar porque os falantes nunca produziam
certas combinações nem por que certas combinações não eram geradas
nem por hipótese, como vimos no capítulo anterior com o exemplo da
interrogativa em inglês e a sua aquisição pelas crianças.

Contextos de Acarretamento

Vejamos mais um exemplo de como não é possível explicarmos a


aprendizagem (ou a aquisição) da linguagem somente através de
mecanismos de indução, só que dessa vez em semântica. Esse exem-
plo serve também para mostrar como o conhecimento internaliza-
do é complexo, sofisticado e inconsciente. Se você lembra da noção
de acarretamento, sabe que a sentença em (i) acarreta a sentença
em (ii), porque se (i) é verdadeira, (ii) é necessariamente verdadeira:

(i) Todo cachorro na vizinhança é gordo.

(ii) Todo poodle na vizinhança é gordo.

E sabe também que, obviamente, a sentença (ii) não acarreta (i). Veja
que podemos encaixar essa sentença em várias outras e o acarreta-
mento irá se manter:

(iii) Eu acabei de descobrir quem sabia que [todo cachorro na vizi-


nhança é gordo].

(iv) Eu acabei de descobrir quem sabia que [todo poodle na vizi-


nhança é gordo].

Se as crianças generalizassem indutivamente, elas poderiam ima-


ginar que a expressão todo sempre leva a um acarretamento para
baixo – isto é, do conjunto para o subconjunto; nos exemplos acima
o conjunto dos cachorros, representado pela sentença (i), relaciona-
-se com o subconjunto dos poodles, representado pela sentença (ii);

86
O dado negativo e o erro CAPÍTULO 07
ora, como os poodles são um subconjunto do conjunto dos cachor-
ros, dizemos que há aqui um acarretamento para baixo, do conjunto
para o subconjunto.

Mas nem sempre o acarretamento para baixo se mantém (e não só


com o todo; a regra é mais geral). Considere, por exemplo, o par
abaixo:

(iv) Duvido que [todo cachorro na vizinhança seja gordo].

(v) Duvido que [todo poodle na vizinhança seja gordo].

(iv) não acarreta (v): o falante pode duvidar que todo cachorro seja
gordo e acreditar que todo poodle é gordo (mas nenhum cachorro
de outra raça é gordo, por exemplo). Além disso – e esse é um fato
extremamente interessante! –, veja que agora (v) acarreta (iv): se eu
duvido que todo poodle na vizinhança seja gordo, então duvido que
todo cachorro seja gordo. Se você prestar atenção, verá que o acar-
retamento agora é do subconjunto para o conjunto, ou seja, trata-se
de um acarretamento para cima. A relação se inverteu!

Você pode achar que isso é só uma coincidência, mas não é – longe
disso. Inúmeros fenômenos são explicados por essa propriedade do
acarretamento para baixo e pelo fato de que na negação as relações
de acarretamento se invertem. Você pode achar que as sentenças
em (iv) e (v) não são negativas, mas elas são: duvido é não acre-
dito’. Esse é um conhecimento sofisticado, e em geral os adultos
têm dificuldade de acompanhar sua explicação e entender como
ele funciona, mas nenhuma criança erra, elas aplicam esses raciocí-
nios de modo impecável. Se as crianças estivessem raciocinando via
indução, elas deveriam supor que (iv) acarreta (v) por comparação
com os exemplos anteriores. Mas as crianças simplesmente nunca
fazem isso, elas mostram que entendem perfeitamente essas rela-
ções. Note ainda que não há como depreender a regra indutivamen-
te, porque essa regra envolve manipular conceitos como conjunto
e relação de acarretamento. Se você quer ver alguns experimentos
com crianças que mostram que elas sabem esse tipo de relação, veja

87
Construindo gramáticas na escola

Crain, Meroni & Minai (2010), entre outros. Esses autores concluem
que as evidências de que as crianças manipulam esse conhecimento
“são difíceis de reconciliar com muitas abordagens da aquisição da
linguagem, especialmente aquelas que invocam mecanismos cog-
nitivos gerais para explicar essa aprendizagem”.

É muito importante não perder de vista que há sequências que


indutivamente deveríamos esperar que as crianças produzissem e elas
não produzem, porque essa é uma pista importante para percebermos
qual é a regra da gramática dessas crianças. Veja que, para percebermos
a regra que de fato é mobilizada pelo nosso conhecimento linguístico,
utilizamos a metodologia do dado negativo: aquilo que a criança nunca
produz, a sequência que nunca vai ser detectada em banco de dados, o
que o falante considera como agramatical na sua língua, são as pistas
para chegarmos às regras; afinal, não temos acesso a elas diretamente.

O conceito de dado negativo ou de expressões agramaticais é


fundamental na investigação linguística e não deve ser confundido
com o conceito de erro – é muito comum, mesmo entre professores
universitários que têm formação em linguística, haver essa confusão,
por isso vamos explicá-la.

O primeiro ponto a ser notado é que o dado negativo não é errado,


ele simplesmente não é gerado pela gramática. Aliás, como já estamos
insistindo, o conceito de erro não faz parte de uma investigação natura-
lista; um objeto cair não é um erro, assim como se ele flutuasse também
não seria um erro; o fato de que temos dois braços e não três não é er-
rado, é resultado do processo evolutivo. A noção de erro pressupõe que
há uma normativa que estabelece o que é o correto e tem a sua função
em várias atividades humanas, mas não na descrição dos fenômenos
da natureza (afinal, não tem sentido algum dizer que a natureza está
certa ou errada, ela é o que é). Por exemplo, dadas as regras de trânsito
no Brasil, é errado, quando estamos de carro, cruzar a rua com o sinal
vermelho; levando em consideração as leis brasileiras, é errado ou é um

88
O dado negativo e o erro CAPÍTULO 07
crime não votar nas eleições. Obviamente, normativas são cultural e his-
toricamente estabelecidas e, sendo assim, podem mudar com o tempo e
ser diferente nas diversas culturas. O que nos parece um erro, pode ser
correto em outra cultura ou em outro momento da história. Na nossa
cultura, é errado casar com mais de um parceiro, mas há culturas em
que é permitido ao homem (mas não a mulher) ter mais de uma mulher.

É um erro imaginar que a Terra é o centro do universo. Assim, a


noção de erro faz sentido também na investigação científica, mas não
para caracterizar os fenômenos que queremos explicar; ela faz senti-
do para avaliarmos teorias que visam explicar esses fenômenos. Sa-
bemos, hoje em dia, que a teoria geocêntrica está errada porque não
condiz com o que ocorre efetivamente na natureza.

Uma das dificuldades que o professor de português enfrenta é a


confusão, sobre a qual já falamos nos capítulos anteriores, mas que
sempre vale a pena relembrar, entre gramática e compêndios de bem
falar, normatividades do que é o modo certo de falar que muitas vezes
têm pouca ou nenhuma relação com as regras gramaticais que consti-
tuem a língua como um fenômeno natural. Os compêndios reforçam
e representam a visão de que as línguas são regulamentadas por uma
legislação, por um aparato jurídico; como se valessem para a língua
o que o código civil vale para a sociedade. Embora a literatura tenha
designado essa última abordagem de gramática normativa, essa de-
nominação é um tanto enganadora. É preciso separar a gramática,
incluindo as gramáticas clássicas – estamos aqui pensando em gra-
máticas como a de Celso Cunha, Evanildo Bechara, Luis F. Lindley
Cintra... – de normativas sobre o que é o bem dizer. Muitas vezes esses
dois empreendimentos estão juntos, mas eles são empreendimentos
distintos. Gramáticas como a de Celso Cunha e Evanildo Bechara são
construções que um pesquisador faz para descrever uma língua e essas
gramáticas podem ser avaliadas como boas ou más, como realizando
boas predições sobre o funcionamento da linguagem, como uma boa
descrição de uma certa língua ou como uma descrição de baixa quali-
dade, utilizando uma metalinguagem frouxa, por exemplo.

89
Construindo gramáticas na escola

Os compêndios do bem dizer por sua vez ditam o que é o bem di-
zer. Eis alguns exemplos da abordagem normativa (preste atenção para
o uso do modal de necessidade, dever):

Na língua culta, não se deve misturar os tratamentos tu e você,


como ocorre com frequência, no Brasil, na língua oral cotidiana. De-
vem-se evitar frases como:

Se você precisar, vou te ajudar.


Em seu lugar, devemos usar frases com tratamento uniforme:
Se você precisar, vou ajudá-lo. (ou ajudar você)

Pasquale Cipro Neto

O trecho a seguir é uma adaptação retirada de http://profjorge.


com.br/arquivos/oracoesadjetivas.pdf

No português falado no Brasil, esse pronome [cujo, cuja] tem uso


restrito às situações formais. Mesmo as pessoas de maior grau de escola-
ridade têm dificuldades para empregá-lo, optando por construções como:

A mulher que a casa foi invadida quer ir embora do bairro.


Ou
A mulher que a casa dela foi invadida quer ir embora do bairro.

Essas construções são normais na língua falada informal, mas de-


vem ser evitadas no padrão culto da língua. Em seu lugar, deve-se usar:

A mulher cuja casa foi invadida quer ir embora do bairro.

Exercício: Tome diferentes gramáticas do português e veja se elas


são ou não normativas. Separe trechos em que elas ditam normas
de bem dizer.

90
O procedimento científico CAPÍTULO 08
8 O procedimento científico
Já deve estar mais que claro que a abordagem da linguística não é a
do compêndio do bem dizer, porque para a linguística a língua é um ob-
jeto natural e enquanto tal não há como dizer que está certa ou errada.
O conceito de certo e errado simplesmente não se aplica às línguas na-
turais, porque elas não são normativas. Atenção, esse é um ponto muito
importante: não estamos dizendo que não haja regularidades na língua,
que não haja convenções, – obviamente há –, mas regularidades não são
normatividades. É um comportamento regular agradecermos as pesso-
as que nos prestam algum tipo de serviço – o motorista do ônibus, por
exemplo –, mas não há uma lei que estabelece que isso deve ocorrer.
Não há razão para relógio ser relógio em português e watch em inglês,
a não ser a regularidade do uso, a convenção. Mas não se trata de uma
lei. Confiamos que o outro fala a mesma língua que nós falamos e nos
baseamos na convenção, nas regularidades, para conversarmos. A con-
venção tem seu lugar na língua enquanto regularidades comunicativas,
da mesma forma que sorrir é uma convenção entre os humanos e é uma
maneira de nos aproximarmos; regularidades ocorrem e se tornam con-
venções. O que é preciso deixar claro é que não há nada melhor numa
ou em outra convenção. A normatividade seleciona uma convenção
como a correta e, como consequência, coloca as outras como erradas.

Além disso, como já insistimos inúmeras vezes, embora as lín-


guas não sejam sistemas de comunicação como a dança das abelhas
ou o canto dos pássaros ou dos golfinhos, elas são naturais ao homem
como esses sistemas são para as outras espécies – somos animais falan-
tes. Sem sombra de dúvidas, o sistema linguístico só vai amadurecer
na interação social com o outro; mais uma vez, é importante romper
o dualismo biológico/social. Mas ser social, ser um comportamento
regular, não é ser um comportamento sujeito às leis como aqueles que
vemos em constituições ou instituições sociais.

O linguista quer entender esse fenômeno biossocial, assim como o


físico quer entender o universo e o biólogo, a evolução. Para isso, há um
certo modo de proceder, uma metodologia a ser observada e seguida. O

91
Construindo gramáticas na escola

primeiro passo é olhar as línguas como elas são, sem julgamentos de va-
lores que, como dissemos, não fazem sentido na investigação científica.
Como nas demais atividades científicas, o linguista tem que trabalhar
com fragmentos, com pedaços e muitas vezes com evidências indiretas.
Não temos acesso direto ao Big Bang, por exemplo, que aconteceu há
mais de 13 bilhões de anos, mas temos várias evidências indiretas, que
dependem crucialmente de aparelhos para medir certos fenômenos e de
outras teorias que já estão bem estabelecidas e aceitas.
O eletroencefalograma
foi reconhecido em
1937 e é utilizado hoje De modo semelhante, não temos acesso direto à faculdade da lin-
em dia em pesquisas guagem, e só muito recentemente temos uma compreensão um pouco
psicolinguísticas. Duas
técnicas bem recentes melhor do cérebro humano – compare o que sabemos sobre o estôma-
são o PET (Positron go, por exemplo, com o que sabemos sobre o cérebro. Há várias razões
Emission Tomogra-
phy - tomografia por para esse atraso, por assim dizer, com relação ao cérebro. Não podemos
Emissão de Pósitrons) avaliar o funcionamento do cérebro humano em outros animais, e isso
e o fMRI (functional
magnetic resonance se dá porque, para além das importantes e complicados questões éticas
imaging – imagem por com pesquisas com animais, a faculdade da linguagem é única nos hu-
Ressonância Magnética
Funcional) que per- manos. Só nos últimos anos surgiram tecnologias que nos deram acesso
mitem estudar o fluxo a uma investigação sobre os processos mentais, observando o que ocor-
sanguíneo no cérebro.
re no cérebro. Mas, de qualquer maneira, essas técnicas não permitem
construirmos modelos da gramática de um falante porque só vemos o
que está ocorrendo no cérebro, o fluxo sanguíneo ou as ondas cerebrais,
contudo, elas são recursos para testarmos certas hipóteses sobre a gra-
mática. Por exemplo, Moro (2010) descreve dois experimentos em que
ele testa se a sintaxe é um componente autônomo do cérebro, indepen-
dente de mecanismos cognitivos mais gerais, utilizando o PET e o fMRI.

Para construirmos modelos da faculdade da linguagem precisa-


mos, antes de mais nada, focar a nossa análise em algum aspecto espe-
cífico da gramática; não é possível querermos descrever toda a gramáti-
ca de uma única vez. Como nas demais ciências, precisamos examinar
parcialidades do fenômeno, mas, e esse é um ponto que nem sempre
aparece, examinar o fragmento é entender essa parcialidade no todo e,
portanto, em certo sentido, apreciar o todo. Não se trata apenas de ob-
servar a fonologia ou a sintaxe ou a semântica, mas de observar fenô-
menos ainda menores, o que não quer dizer que não se esteja ao mesmo

92
O procedimento científico CAPÍTULO 08
tempo lidando com esses vários níveis que constituem uma língua. É
muito comum ouvirmos a crítica de que os formalistas estão descreven-
do o papel da azeitona na empadinha de frango. Em certo sentido, de
fato olhamos para um fenômeno pequeno, uma palavra, um morfema,
uma construção, porque queremos entender esse fenômeno, mas só é
possível entendê-lo no sistema em que ele está; não é possível entender
um fenômeno específico sem ter alguma teoria, alguma suposição sobre
como é o todo. Logo, buscamos entender a empadinha de frango olhan-
do para a importância da azeitona, mas sem esquecer como a empadi-
nha deve ficar no final, seu sabor, sua textura, sua coloração, etc. Esse
olhar focado é característico do empreendimento científico. As grandes
unificações, as generalizações mais amplas, são feitas por vários grupos
de pesquisas ao longo de vários anos.

O linguista procede então como um cientista, ele examina peque-


nas amostras e procura entender como elas se relacionam na estrutura-
ção da faculdade da linguagem. Como vimos, não podemos examinar
diretamente essa faculdade, mas podemos reconstruí-la teoricamente a
partir do “comportamento linguístico” do falante (sua interpretação e
aceitação das estruturas a serem analisadas). Depois podemos testar as
nossas teorias de um modo mais acurado utilizando métodos da psico-
linguística, por exemplo. Como já apontamos, uma ferramenta podero-
sa para construirmos os modelos da gramática de um falante é o dado
negativo, aquilo que não vamos encontrar rastreando banco de dados,
mas que o falante prontamente nos fornece, afinal ele reconhece se uma
certa combinação é ou não parte da sua língua. Por exemplo, o chamado
singular nu – uma característica marcante do PB –, não é gramatical
no inglês e em nenhuma outra língua românica do mesmo modo que
vemos no PB. Qualquer falante do inglês concorda que (1) não faz parte
da gramática do inglês e é, nesse sentido, agramatical:

(1) * Boy cries a lot.

É costume colocar um asterisco antes de uma sequência considera-


da agramatical, como fizemos em (1). Uma tradução palavra a palavra
de (1) para o PB mostra que as gramáticas dessas línguas são diferentes,
porque (2) é uma sequência absolutamente banal e possível no PB:
93
Construindo gramáticas na escola

(2) Menino chora muito.

Mas a sequência em (2) não é gramatical no PE! Note que não faz
sentido afirmar que (2) é errada ou certa. Ela é ou não é produzida por
uma certa gramática, um conjunto de regras. Ela não é produzida nem
pelas regras do inglês nem pelas regras do PE, mas é produzida pelas do
PB. Há muitas questões aqui, entre elas, qual é a história dessa constru-
ção no PB?; será que ela existia no português mais antigo e sobreviveu
no Brasil, mas desapareceu em Portugal?; será que ela é uma inovação
brasileira? O que não é possível é afirmar que essa construção é errada.

Comportamento linguístico

É muito comum a associação entre comportamento linguístico e


propostas de aprendizagem comportamentais ou behavoristas. Já
vimos exemplos que nos mostram que não é através da imitação
de comportamentos, ou de condicionamentos via estímulos e res-
postas, que aprendemos as línguas – entre outros motivos porque
não há lugar para a criatividade nesse modelo de aprendizagem.
Mas é importante notar que o comportamento linguístico de que
estamos falando diz respeito ao modo como os falantes reagem a
certos proferimentos na sua língua. Aceitar ou não uma sequên-
cia é um tipo de comportamento e os linguistas baseiam-se nesse
comportamento para construir gramáticas. É claro que, atualmen-
te, essa é a evidência mais básica a que temos acesso, pois os testes
psicolinguísticos disponíveis hoje em dia são bastante sofisticados
e contamos com vários aparelhos para medir as reações dos falan-
tes, mas – e isso é importante! – eles ocorrem quando já temos
uma hipótese pronta sobre um dado fenômeno ou conjunto de fe-
nômenos linguísticos. Por exemplo, o chamado “rastreador ocular”
(eyetracker), que monitora, por exemplo, o movimento ocular dos
falantes quando eles leem sentenças, podem ser usados de diver-
sas maneiras aliado a teorias linguísticas. Sabemos que, ao se de-
parar com sequências que não são gramaticais, nosso movimento
ocular (inconscientemente) irá se alterar, indo e retornando ao lu-

94
O procedimento científico CAPÍTULO 08
gar problemático. Sabemos também que demoramos mais tempo
para interpretar sequências problemáticas e que há correlatos ce-
rebrais de estruturas gramaticais consideradas malformadas que
também podem ser medidos, como o famoso N400.

Os falantes sabem muito bem quais estruturas são geradas por sua
língua e quais não são, e a escola poderia explorar esse conhecimen-
to epilinguístico colocando os alunos para construírem gramáticas.
Quando construímos gramáticas, nosso ponto de partida são as intui-
ções do falante, que se manifestam através do seu comportamento lin-
guístico: um falante do inglês não aceita (1) e um falante do PB aceita
(2). As gramáticas não são as mesmas e é por isso que quando vamos
aprender inglês ou português já mais velhos, como língua estrangeira,
transpomos as regras da nossa língua materna para a outra língua que
estamos aprendendo. Brasileiros não raramente proferem sentenças
como (1) e falantes de inglês aprendendo PB raramente proferem sen-
tenças como (2), eles vão optar por uma sentença com a estrutura do
inglês; vão dizer Meninos choram muito, que é uma sentença certa- Veja o estudo de Ionin,
Montrul & Santos
mente aceitável em português, mas muito menos comum, com algo de (2011) comparando
“formal”, “requintado”. Ou seja, houve uma mudança de registro, pas- falantes de inglês que
estão aprendendo por-
samos para uma variedade mais próxima da escrita, mais distante da tuguês e falantes do PB
oralidade, quando usamos o plural nu (meninos). Evidentemente esse que estão aprendendo
inglês e seu comporta-
não é o caso do inglês: o plural nu em inglês é uma estrutura informal, mento com relação aos
altamente recorrente na língua falada. nominais nus.

95
O procedimento linguístico CAPÍTULO 09
9 O procedimento linguístico
Imagine que você foi transportado para uma ilha habitada por um
povo que fala uma língua muito diferente da sua. Esse povo acolheu
você super bem, como eles sempre fazem com estrangeiros, e conver-
sam muito com você, embora você não entenda nada, nem mesmo
consiga detectar se eles estão falando uma palavra ou várias, se estão
perguntando ou afirmando.

Para você ter a sensação do que é escutar uma língua estrangeira,


feche os olhos enquanto escuta Steven Pinker neste vídeo http://
www.ted.com/talks/steven_pinker_on_language_and_thought.
html. Note que a fala é um continuum sem marcação de palavras
ou morfemas ou mesmo sentenças.

Se você não é um linguista, você vai, sem nem se dar conta, come-
çar a “analisar” essa língua; vai detectar recorrências ou regularidades e
vai começar a associar recorrências com estados de coisas; vai também,
sem perceber, reparar na sintaxe dessa língua. Claro, esse processo é
feito sem que você tenha consciência e com a ajuda da faculdade da
linguagem. Certas combinações como já vimos não serão nem mesmo
aventadas, porque não estão disponíveis.

Sem dúvida alguma, em especial no início, a sua língua materna


vai ser o suporte e a porta de entrada para essa língua estrangeira, o
que significa dizer que você irá transportar sua visão de mundo para
aquela visão de mundo e esse é sempre um perigo para o investigador,
temos a tendência de considerar a nossa língua como base. Você certa-
mente vai produzir muitas hipóteses erradas e proferir inúmeras sen-
tenças agramaticais naquela língua, mas vai construir línguas interme-
diárias que permitirão que você acesse esse novo mundo e se aproxime
cada vez mais dele, e, talvez, até mesmo deixar de ser um estrangeiro,
mesmo que a sua fala possa ainda continuar com sotaque. Suponha
que você conseguiu recortar do fluxo da cadeia sonora a sequência

97
Construindo gramáticas na escola

gavagai, e viu, mais de uma vez, os falantes usando gavagai para falar
Essa é uma estória sobre coelhos, de tal forma que você levantou a seguinte hipótese: ga-
muito conhecida na vagai significa coelho. Você vai testar essa hipótese e aponta para um
filosofia e na linguística
e foi introduzida pelo coelho dizendo gavagai e esperando um sinal de aprovação, alguma
filósofo americano reação do seu informante. Suponha que o seu informante ficou muito
Willard Quine (1908-
2000) para discutir a feliz e mostrou essa felicidade quando viu que você usou gavagai para
questão do relativismo falar sobre um coelho. E você também ficou feliz porque achou que
ontológico. Trocando
em miúdos, como ter tinha aprendido a unir um fragmento dessa língua e algo no mundo,
certeza do que está deu o primeiro passo para conhecer a semântica dessa língua.
sendo apontado no
mundo? Se coloque
numa posição de Mas depois você percebeu que eles usavam gavagai também para se
quem não sabe nada e
imagine alguém apon- referir a galinhas brancas e à mandioca descascada e percebeu que a sua
tando um objeto e pro- hipótese inicial estava errada, embora você tenha tido uma confirmação,
ferindo uma sequência
linguística; o que ele gavagai não é coelho ou não é só coelho. Você formula então uma nova
está apontando? a cor? hipótese e vai assim galgando os passos na direção daquela língua. É óbvio
a forma? o tipo de ob-
jeto? o material de que que estamos racionalizando um procedimento que é natural nos huma-
é feito? tudo isso?... nos e estamos também simplificando absurdamente esse procedimento
porque estamos falando como se aprendêssemos sequências de modo iso-
lado para então construirmos uma gramática. Não é bem assim. Fazemos
tudo junto, mas o que nos interessa exemplificar é o método: observar
os dados, formular uma hipótese e verificar se ela está correta – veja que
apenas o fato de nossa hipótese se aplicar a uma situação não quer dizer
que ela esteja correta, porque podemos não estar enxergando a regra, mas
apenas um caso particular de sua aplicação, como ocorreu com o nosso
amigo perdido na ilha. É preciso verificar várias vezes e formular uma
hipótese sobre o que não é o caso, inventar um dado negativo.

Suponha que nosso amigo agora acredita que gavagai é utilizado


sempre que algo é comestível e é branco. Nessa tribo, como em inúmeras
no mundo e no Brasil, os seres vivos não são classificados em animais e
vegetais, mas em coisas que podemos e coisas que não podemos comer
(e nem sempre as coisas que não podemos comer não são comestíveis,
muitas vezes são coisas sagradas). Agora ele tem uma nova hipótese e
ele vai fazer o seguinte teste: ele vai dizer gavagai quando estiver diante
de um coelho marrom. Sua expectativa é que o seu informante diga que
não, que um coelho marrom não é um gavagai.

98
O procedimento linguístico CAPÍTULO 09
Essa é uma metodologia muito corrente na linguística. Formula-
mos uma hipótese e esperamos a partir dessa hipótese que tal ou qual
sequência não seja gramatical, não seja aceitável, porque essa sequência Escute um pouco
dessa língua http://
não faz parte da gramática do nosso informante. Vamos ilustrar esse www.youtube.com/
procedimento com dados da língua inuite, uma língua dos esquimós, watch?v=_HZ_Dvkxi-8
que é falada no Canadá e tem cerca de 30 mil falantes.

Os dados desse exemplo e dos demais exercícios que aparecem nes-


te capítulo foram retirados de O’Grady, Dobrovolsky e Aronoff (1997):

a) iglumut ‘para uma cada’ h) pinna ‘aquela uma lá em cima’

b) ukiaq ‘cair’ i) ani ‘irmão de mulher’

c) aiviq ‘morsa’ j) iglu ‘casa (de neve)’

d) aniguvit ‘se você for embora’ k) panna ‘aquele lugar lá em cima’

e) aglu ‘buraco para foca respirar’ l) aivuq ‘ela vai pra casa’

f) iglumit ‘de casa’ m) ini ‘lugar’

g) anigavit ‘porque você foi embora’ n) ukiuq ‘inverno’

Antes de mais nada, olhe os dados. Que hipóteses você pode


formular sobre essa língua? Como você vai proceder? Comparando
os dados e vendo quais generalizações podemos fazer. Podemos, por
exemplo, afirmar que nessa língua /a/ e /i/ são fonemas. Você conse-
gue dizer por que? Compare os dados i) e m) e também e) e j); essas
palavras diferem apenas nesses dois sons e têm significados diferentes.
Logo, trocar um som pelo outro produz uma outra palavra, e estamos
diante da noção de fonema, lançando mão da técnica de procurar pa-
res mínimos. Quantos fonemas podemos identificar olhando para os
dados acima? Faça um inventário desses fonemas.

99
Construindo gramáticas na escola

Língua aglutinante Podemos também, apenas olhando para esses poucos dados, supor
Numa língua aglutinante, que essa é uma língua aglutinante porque o que nós dizemos usando
uma palavra contém vários
várias palavras – veja os dados em d), g) e k) – eles realizam com uma
morfemas e cada afixo é
claramente identificável e única palavra, através de vários morfemas, mas o significado e a forma
normalmente representa desses morfemas são estáveis. Podemos, assim, imaginar que ‘mit’ é um
uma única categoria gra- morfema que indica a procedência, a partir dos dados em f) e em j).
matical ou significado. Veja Não é muito fácil produzir dados negativos quando temos tão poucas
o exemplo em turco: köy
ocorrências, mas parece que nessa língua o que para nós é uma preposi-
‘vila’ (singular), köy-ler ‘vilas’
(plural), köy-ler-in ‘das vilas’ ção aparece como um sufixo; examine f), por exemplo. Podemos então
(genitivo plural). esperar que a sequência mitiglu não seja gramatical nessa língua. Se esse
for o caso, esperamos que nessas línguas as preposições sejam ou sufi-
xos ou prefixos, mas não ambos, como ocorre em várias outras línguas,
como, por exemplo, o coreano. Em coreano, hakkyo-eyse é literalmen-
te escola-na, a preposição é um sufixo (trata-se, mais tecnicamente, de
uma posposição.), mas *eyse-hakkyo é agramatical.

Exercício. Veja a seguir alguns exemplos de persa, uma língua ira-


niana, falada no Irã, no Afeganistão, no Paquistão e em vários países
para onde houve imigração iraniana.

a) xaridam eu comprei

b) xaridi você comprou

c) xarid ele/ela comprou

d) naxaridam eu não comprei

e) namixaridand eles/elas não estavam comprando

f) naxaridim nós não compramos

g) mixarid ele/ela estava comprando.

h) mixaridid vocês estavam comprando

100
O procedimento linguístico CAPÍTULO 09
Sabemos que xar significa comprar e que –id designa tempo passa-
do. Procure identificar as pessoas nessa língua, ou seja, como é eu,
você, ele, ela, eles, elas, nós, vocês. Como são as pessoas gramati-
cais nessa língua? Elas são morfemas livres? Como é feita a forma
progressiva nessa língua, que corresponde ao nosso estar V+ndo?
Como é a negação nessa língua?

Vimos, no capítulo anterior, que as línguas variam, mas não aleato-


riamente. As análises das diferentes línguas do mundo mostraram, até o
momento (ainda não conseguimos examinar todas as línguas do mundo,
mas nossa expectativa é que o padrão que iremos apresentar esteja corre-
to), o que ficou conhecido como o parâmetro do núcleo – Head Parameter.

Princípios e Parâmetros

Princípios e Parâmetros é a versão mais atual para explicar a uni-


versalidade e a variabilidade das línguas naturais. Há princípios
que se manifestam em diferentes parâmetros. Por exemplo, um
princípio afirma que sempre há um sujeito gramatical, mas esse
sujeito pode ou não – esses são parâmetros – ser obrigatório. Uma
analogia possível é com uma tomada de luz: mover a tomada do
sujeito gramatical para um lado gera uma língua em que ele não
é obrigatório e mexer para o outro lado corresponde a uma língua
em que o sujeito é obrigatório. Em inglês e em francês, o sujeito é
obrigatório. As sentenças em (i) são agramaticais nessas línguas,
exatamente porque violam esse parâmetro:

(i) a. * is tired.

b. * est sorti.

O português parece estar deixando de ser uma língua de sujeito não


obrigatório e se tornando uma língua de sujeito obrigatório, ao me-
nos esse parece ser o caso do português brasileiro vernacular. Se

101
Construindo gramáticas na escola

imaginarmos que nosso sistema pronominal atual é eu, você ou tu


(e o tu é, em geral, conjugado como você), ele, a gente e eles, tere-
mos o seguinte sistema de conjugação:

(ii) eu sai.

você saiu/tu saiu

ele/ela saiu.

a gente saiu.

vocês saiu.

eles saiu.

Nesse paradigma, não é possível retirarmos o sujeito porque não


iremos mais saber de quem estamos falando. Mas podemos não re-
alizar o eu, e, nesse caso, (iii) seria gramatical:

(iii) sai

Por isso, dizemos que o português é uma língua de sujeito nulo par-
cial, permitindo a omissão do mesmo em contextos restritos. Veremos
outras propriedades do português brasileiro no próximo capítulo.

O parâmetro do núcleo nos diz que as línguas podem variar segun-


do três formatos de sintagma nominal: ou o núcleo dos sintagmas está
numa posição inicial, ou média ou final.

Comparamos muito rapidamente, no capítulo anterior, o inglês e


o japonês para mostrar que há combinações que não são possíveis em
nenhuma língua natural. O inglês, como o português, é uma língua de
núcleo medial, porque o núcleo do sintagma, a cabeça do sintagma,
pode ser precedido por determinantes e ser seguido por complemen-
tos, como em the boy who is tall, no inglês, ou o menino que é alto, em
português. O japonês, no entanto, é uma língua de núcleo final, como
aparece exemplificado abaixo:

102
O procedimento linguístico CAPÍTULO 09
(3) sono gakuesi-ga gakko kara modot ta

o aluno-Nom escola de retornar passado.

Você consegue dar a tradução da sentença em (3) a partir da glosa?


O que essa sentença diz? Veja que o nome gakuesi (aluno) aparece no
final do sintagma; ga é o sufixo que indica caso nominativo.

O tailandês é uma língua que é de núcleo inicial como mostram os


exemplos abaixo:

(4) a. ru:p ni: khɔng Phim

foto essa de Phim.

b. ?a:n nanagsi: ni:

ler livro esse

Em (4.a), o núcleo ru:p (foto) está na primeira posição; em (4.b)


nanagsi: (livro) também está na posição inicial do sintagma nominal.

Veja que podemos propor que a regra de combinação no sintagma


nominal para o japonês é (o nome é o núcleo):

(5) Especificador Complemento Nome

Enquanto que a regra para o tailandês é:

(6) Nome Especificador Complemento

E a regra para o inglês e o português é:

(7) Especificador Complemento Nome Complemento

E não há mais nenhuma possibilidade de termos uma combinação

103
Construindo gramáticas na escola

no sintagma nominal. Pode parecer pouco, mas dessa forma reduzimos


imensamente o número de sistemas possíveis. Por exemplo, não há um
sistema em que o complemento e o nome ocorram separadamente; ou
seja, não há uma língua como Menino feliz o saiu. Essa sequência não é
possível, porque não há língua em que o especificador fica na última po-
sição do sintagma. A ideia é que a criança só precisa de um único dado
para entender que tipo de sintagma é aquele empregado pela língua que
está amadurecendo nela ou que ela está adquirindo.

Se você prestou atenção, vimos exemplos de fonologia, morfologia


e sintaxe. Apenas para revisar brevemente, a fonologia estabelece quais
são os fonemas de uma língua, como é o sistema de combinação de sons
de uma dada língua. Faz parte do seu conhecimento do português saber
que a sequência a seguir é da sua língua (mesmo que você não saiba
o que ela significa): afarbou, porque essa é uma combinação possível
de ser gerada. Por sua vez, a sequência schjartch não é do português,
porque as regras fonológicas da língua não permitem gerar essa sequên-
cia. No português, a nasalização faz fonemas; mas você tem que prestar
atenção nos sons e não na escrita. Veja que temos um par mínimo em
não e nau, e a diferença entre eles é a nasalização.

A morfologia estuda a combinação de partes de palavra na cons-


trução de palavras. Essa combinação é obviamente regrada, mas, nova-
mente, não é possível chegarmos a essas regras apenas indutivamente.

O caso do prefixo in-

As palavras a seguir são derivadas a partir da incorporação do prefi-


xo in-, que parece indicar algum tipo de negação:

(i) infeliz, intransigente, incivilizado, inviável, incapaz...

Esse prefixo aparece com variações fonéticas que são previsíveis,


isto é, regradas: impossibilidade e inativo, por exemplo. Mas, e esse
é o ponto, não é qualquer combinação que vale. Obviamente, não
podemos combinar esse prefixo com nomes:

104
O procedimento linguístico CAPÍTULO 09
(ii) *inadvogado, *incadeira,...

O que poderia ser explicado através de um mecanismo indutivo,


que poderia nos levar a seguinte regra:

(iii) O prefixo in- se combina com adjetivos.

Essa parece uma regra bem sensata e certamente captura em parte


a restrição de uso desse prefixo, o problema é que ela é facilmente
falsificada. Veja os seguintes exemplos:

(iv) *imbom, *inbárbaro, *inalto, *ingordo, *inótimo, *ininteligente,


*inazul...

Se a regra fosse apenas combinar com adjetivos, esperaríamos que


todas as sequências acima fossem gramaticais, mas não são.

O curioso é que ninguém nem inventa esse tipo de construção. As


crianças simplesmente não produzem essas sequências, porque elas
sabem, sem saber que sabem, qual é a regra em jogo, e a regra não é Veja o artigo Figuei-
o que está em (iii), porque se (iii) fosse a regra, esperaríamos que as redo Silva et al. (2010)
sobre essa questão,
expressões em (iv) fossem possíveis e não são. Qual é essa regra que disponibilizado na
todos sabemos sem saber que sabemos? webteca.

Todos nós já estudamos os afixos na escola, em geral como uma lis-


ta a ser decorada. Por que não podemos levar os alunos a pensar
sobre como eles usam esses morfemas? Para além da regra de com-
binação, há questões semânticas interessantes. Por exemplo, João é
infeliz não diz o mesmo que João não é feliz. Como é, semantica-
mente, a negação com o prefixo in-?

Finalmente, vimos um exemplo de regra sintática com o princípio do


núcleo e seus parâmetros. A sintaxe diz respeito às possibilidades de com-
binação das palavras para formar uma sentença. Vimos não apenas que há
regras internas a uma língua, mas que a variação entre as línguas não é ar-
bitrária. Mas as línguas variam também quanto à semântica, cujo objeto de
estudos é explicar como os falantes relacionam língua e mundo. Por exemplo,

105
Construindo gramáticas na escola

em português temos apenas a distinção entre aqui e lá, que se ancora na figura
do falante (eles são dêiticos, portanto); um objeto está aqui se está próximo ao
falante e um objeto está lá se está longe do falante. Mas há línguas que o uso
dos dêiticos não depende da proximidade do objeto com relação ao falante,
mas do objeto estar ou não visível para o falante. Por exemplo, em malgaxe,
uma das línguas oficiais de Madagascar, ety é usado quando o objeto está visí-
vel para o falante, enquanto que aty é usado se o falante não vê o objeto:

(8) Ey ny tranony

A casa dele visível para o falante

Aty ny tranony

A casa dele não visível para o falante.

Não importa se a casa está perto ou longe. Ela pode estar longe e
estar visível. Se a semântica relaciona mundo e linguagem, será que o
mundo em malgaxe é diferente do mundo em português?

Um outro lugar de grande variação são os pronomes. Por exemplo,


em japonês o pronome a ser usado depende do título honorífico da pessoa
Procure informações com quem se está falando. É o que ocorre quando escolhemos usar você
sobre essa língua. Onde
ela é falada? Quantos ou senhor em português, só que no caso do japonês temos um sistema
são os falantes? muito mais elaborado. Em fijiano temos o seguinte sistema pronominal:

(9) au primeira pessoa do singular

iko segunda pessoa do singular

koya terceira pessoa do singular

kedaru primeira pessoa do dual ‘você e eu’

keirau primeira pessoa dual ‘outro que não você e eu’

106
O procedimento linguístico CAPÍTULO 09
kemudrau segunda pessoa do dual ‘vocês dois’

rau terceira pessoa do dual ‘eles dois’

kedatou primeira pessoa tripla ‘dois incluindo você e eu’

keitou primeira pessoa do tripla ‘dois excluindo você e eu’

kemudou segundo pessoa tripla ‘vocês três’

iratou terceira pessoa do tripla ‘eles três’

keda primeira pessoa do plural ‘nós mais de três,


incluindo você’

keimami primeira pessoa do plural ‘nós mais de três,


excluindo você’

kemuni segunda pessoa do plural ‘vocês mais de três’

ira terceira pessoa do plural ‘eles mais de três’

Há inúmeras questões interessantes que podemos levantar aqui. Relativismo linguístico


Por exemplo, o famoso caso do esquimó que diferencia vários matizes O relativismo linguístico
de branco, enquanto que em japonês não há a diferença entre verde e é a hipótese levantada
azul. Essas diferenças levam imediatamente a nos perguntarmos sobre por Sapir e Whorf de que
nossos pensamentos e nos-
se o mundo em japonês ou em esquimó é o mesmo que o nosso... Um
sas ações são, de alguma
mundo em que não há animais e vegetais, mas há coisas que comemos forma, modelados pelas
e coisas que não comemos certamente não é o mesmo mundo que o línguas que falamos.
nosso. A semântica organiza os objetos em categorias e relações. Mas,
haveria aí relativismo linguístico?

Números

Os números são um caso muito interessante, porque nem todas as


línguas dispõem de palavras para os numerais como ocorre no por-

107
Construindo gramáticas na escola

tuguês. Há línguas que têm palavras apenas para contar até três ou
cinco e não temos certeza de que o que denominamos um, dois,
três... tem o mesmo significado que essas palavras nessas línguas.
Esse tópico, por exemplo, pode ser trabalhado juntamente com o
professor de matemática e com o professor de história e geografia.
O mundurukú, uma língua da família Tupi falada no Pará por apro-
ximadamente 7000 pessoas, tem nome apenas para os números
de 1 a 5. Essa língua não tem também uma rotina de contar que
ensinamos às crianças já bem cedo: um, dois, três, quatro, cinco...
São várias as questões que se colocam e há relatos de antropólo-
gos que afirmam que viver em culturas que não prestam atenção
para os números – não tem relógio, não marcam os dias do mês, as
horas que duram uma viagem – é muito diferente de morar numa
cultura como a nossa, na qual medimos tudo. Há também vários es-
tudos que mostram que os mundurukús, por exemplo, têm noção
de quantidade e sabem operar com quantidades – somar e subtrair
–, mas não têm representação exata dos números, eles não diferen-
ciam entre, por exemplo, 58 e 59.

Aparentemente, a representação numérica aproximada é uma com-


petência básica, independente da língua e que está disponível para
outras espécies animais, mas não a aritmética exata que parece es-
tar diretamente vinculada à existência de palavras para os números.

Veja Feigenson, Dehaene & Spelke (2004) para uma revisão sobre os
sistemas de numerais e as línguas naturais. Esse é um artigo em inglês.

Exercício

1. Os seguintes dados são do coreano. Analise as sentenças e res-


ponda as perguntas a seguir:

(a) Terry-ka ku yeca-lul coahanta.

Terry-Nom that girl-Acus gosta.

108
O procedimento linguístico CAPÍTULO 09
‘Terry gosta daquela menina.’

(b) I noin-I hakkyo ey kassta

This man-Nom school to went.

‘Esse homem foi para escola.’

(c) Sue-ka chinkwu eykey chayk-ul ilkessta.

Sue-Nom friend to book-Acus ler

‘Sue leu o livro para um amigo.’

(i) Como é a estrutura sintática dessa língua?

(ii) Desenhe a árvore sintática para pelo menos uma dessas sentenças.

(iii) Que diferenças há com relação ao português brasileiro?

Tradicionalmente essas são as quatro áreas basilares da linguís- O leitor interessado pode
tica: a fonética/fonologia, a morfologia, a sintaxe e a semântica. Mais consultar Pires de Oliveira
& Basso (2013) e Levinson
recentemente, é costume incluirmos a área da pragmática, que junta- (1983; 2000)
mente com a semântica, daria conta dos significados. Em especial os
fenômenos conhecidos como implicaturas generalizadas têm se mos-
trado muito regulares e parte da gramática da língua. Não podemos
nessa revisão introduzir esse assunto.

O mais importante é notar que essas áreas têm uma certa autono-
mia, embora quando estamos conversando todos esses processos ocor-
ram simultaneamente e quase instantaneamente, ou seja, a divisão em
áreas é um recurso científico, o objeto é um todo que funciona como
tal, mas a divisão em áreas não é uma convenção. Reflita um pouco so-
bre esse processo que se dá em duas vias, a recepção e a produção. Na
recepção, as palavras chegam ao seu ouvido como um continuum que é
então analisado em fonemas, morfemas, palavras, uma certa combina-
ção sintática é atribuída a essa fala e também uma interpretação semân-

109
Construindo gramáticas na escola

tica; finalmente (mas não se leia nesse finalmente como se se trata-se


um procedimento serial), processamos as implicaturas pragmáticas. O
processo de produção é bem diferente! Neste último, o sistema compu-
tacional faz a combinação dos elementos até o momento do chamado
“spell-out”; nesse ponto as informações são enviadas para o componen-
te fonológico que irá transformar aqueles símbolos em cadeias sonoras
(esse é a chamada forma fonológica; em inglês, “phonological form”) e
encaminhado para o componente semântico que irá nos fornecer a for-
ma lógica (em inglês, “logical form”).

Quando paramos para pensar e deixamos nos maravilhar pelas


línguas, vemos sua complexidade e ao mesmo tempo sua absoluta
naturalidade. Não temos a menor dificuldade em realizar esses pro-
cessos. Essas diferentes disciplinas são maneiras de ver o que nós ve-
mos como um fenômeno unitário: a língua em funcionamento. Não
estamos distante do que ocorre em outras ciências naturais: podemos
olhar o cérebro do ponto de vista do organismo, da biologia, da física,
da química... Mas isso não quer dizer que essas divisões sejam arbitrá-
rias. A garantia para podermos separar a termodinâmica da química,
por exemplo, é a possibilidade de identificarmos classes de fenômenos
que são coerentes com um ou outro domínio. Esse mesmo princípio
rege a divisão entre as disciplinas da linguística.

Vamos considerar a sintaxe e a semântica. Para mostrarmos que es-


sas disciplinas lidam com aspectos distintos do sistema linguístico, pode-
mos lembrar que há construções que são bem formadas sintaticamente,
mas cuja interpretação é anômala. Compare as sentenças em (10) e (11):

(10) Eu desenhei o círculo vermelho.

(11) # Eu desenhei o círculo quadrado.

As duas sentenças são bem formadas sintaticamente, elas não violam


nenhuma regra de combinação do português, mas a sentença em (11) é,
para dizer o mínimo, estranha. Conseguimos, sem qualquer problema,
imaginar a situação descrita em (10), mas não conseguimos (ou teremos

110
O procedimento linguístico CAPÍTULO 09
grandes dificuldades) imaginar a situação descrita em (11), porque não há
círculos quadrados; de fato, é uma contradição falar em círculos quadra-
dos. Um outro caso é quando temos sequências que não são gramaticais,
mas que têm uma interpretação. A sequência em (12) não é gramatical
(suponha que a sequência é o início de uma conversa, logo, não há um
sujeito não dito, mas presente na interpretação dessa sequência):

(12) * beijou Maria

Mas essa sequência tem uma interpretação semântica. Ela deno-


ta o conjunto de todos os que beijaram Maria ou de todos os eventos
de beijar que tiveram a Maria como tema. A semântica e a sintaxe
têm assim funcionamentos diferentes. Logo, as divisões dentro das
disciplinas da linguística não são arbitrárias; elas refletem diferentes
modos de funcionamento.

Esperamos ter mostrado, com este capítulo, como os linguistas pro-


cedem, como eles formulam suas hipóteses a partir de dados empíricos
que compreendem tanto aquilo que é efetivamente produzido pelos fa-
lantes – muitas vezes chamado, equivocadamente, de dado real – quanto
o que podemos apreender indiretamente através dos seus julgamentos
de gramaticalidade/aceitabilidade, de testes empíricos, das reações ocu-
lares ou das manifestações cerebrais. Essas hipóteses são testadas e veri-
ficadas. Para isso é preciso que essas hipóteses sejam passíveis de serem
falsificadas. Esse é o método das ciências. A grande vantagem da lin-
guística é que podemos ensinar esse método facilmente, sem precisar-
mos de laboratórios. A segunda vantagem, como já mostraram alguns
experimentos, é que os alunos aprendem mais facilmente a língua escri-
ta se eles entendem como é a sua gramática, se eles compreendem que
a escrita é uma outra língua e tem portanto uma outra gramática. E não
há nada melhor para entendermos um certo objeto do que construir
uma teoria sobre ele. Por isso, a proposta didática que apresentamos é:
levar os alunos a construir gramáticas.

111
Unidade D
O PB

Operários, de Tarsila do Amaral, 1933.


Objetivo: Apresentar algumas características do PB contemporâneo
que o tornam diferente do PE. Propor reflexões para o PB nas diferentes
áreas da gramática.

Já faz algum tempo que sabemos que há várias propriedades gra-


maticais que caracterizam o PB quando comparado ao PE, e tal fato
levou vários linguistas a afirmarem que o PB é uma língua diferente do
PE – não apenas uma variedade ou dialeto de português, mas sim um
outro português, uma outra língua.

Um exemplo desse tipo de diferença é a maneira como fazemos uma


Ver Mioto (2011).
sentença interrogativa. Só no PB podemos perguntar O que que ele faz?
Essa duplicação, expressão-Wh mais complementizador, é impossível no
PE. Outra distinção entre os dois portugueses aparece quando observa-
mos a ordem dos constituintes na sentença. No PE encontramos forma-
ções do tipo O bolo comeu o João ou Comeu o João o bolo, enquanto no PB
estas construções sintáticas não ocorrem; mesmo que o sujeito esteja fo-
calizado a ordem Objeto-Verbo-Sujeito e a ordem Verbo-Sujeito-Objeto
não são naturais no PB. Como é de se esperar, dada a complexidade das
questões aqui envolvidas, não é possível discutirmos todas as diferenças Veja o documentário sobre
o português no mundo “Lín-
entre os portugueses dos dois lados do Atlântico neste capítulo e nem guas Vidas em Português”
mesmo levar mais a sério a questão de se de fato estamos lidando com http://www.youtube.com/
watch?v=XUz-zGBd_QU
duas línguas distintas. Como já discutimos, o conceito de língua não é cla-
ro e a decisão sobre se estamos diante de um dialeto/variedade ou de uma
língua diferente é muito mais política do que propriamente linguística.

Talvez do ponto de vista político seja mais interessante entender-


mos que haja um único português falado no mundo, ao passo que do
ponto de vista linguístico, parece claro que o PB e o PE são duas línguas.

“Não há uma língua portuguesa. Há línguas em português.”

José Saramago.
O PB, que bicho é esse? CAPÍTULO 10
10 O PB, que bicho é esse?
Seja como for, as diferenças entre o PB e o PE não são apenas de
pronúncia e de léxico; elas são mais profundas, dizem respeito ao sis-
tema gramatical como um todo. Por isso, parece-nos importante que
tenhamos uma compreensão menos impressionista de como é a gra-
mática do PB, entre outras razões, porque é essa a língua que os alunos
falam, que nós falamos. Essas diferenças são tão fortes que há diferentes
opiniões sobre como foi a formação do PB, como foi possível que o PB
se tornasse uma língua tão diferente do PE.

A formação do PB

Mais uma vez, não podemos entrar nos detalhes, mas há um de-
bate bastante acalorado sobre como se deu a formação do PB.
Embora haja posições intermediárias no debate, ele tem se pola-
rizado em duas vertentes: os que defendem a hipótese da deriva
linguística e os que entendem que houve influência de outras lín-
guas, em particular as africanas. Assim, há os que consideram que
a singularidade do PB frente ao PE se deve a uma “deriva natural”;
essa hipótese, defendida entre outros autores por Naro & Scher-
re (2007), entende que não houve influência de nenhuma outra
língua, nem africana, nem indígena, na formação do PB, mas que
todas as diferenças podem ser encontradas em estratos mais anti-
gos do PE e em grande medida no PE atual – nessa teoria o papel
de falantes de línguas africanas e indígenas é “acelerar” a deriva no
Brasil, o que levaria então às diferenças frente a Portugal. Do outro
lado, há os que entendem que houve influência do contato com
outras línguas; em especial, há uma forte tendência para destacar
o papel das línguas africanas na formação do PB – nesse caso, o PB
teria incorporado traços ou características das línguas africanas.
Guy (1989), por exemplo, defende que o PB surgiu de um processo Ver Ilari & Basso (2006)
de crioulização. Esse tema é sem dúvida fascinante e pode mobili- para uma história do
PB.
zar pesquisas com o professor de história.

117
Construindo gramáticas na escola

Sociolinguística Vamos, então, rever algumas das propriedades que tornam o PB


A sociolinguística, como o uma língua diferente do PE. Antes de mais nada, é importante deixar
próprio nome diz, estuda claro que não vamos esgotar o inventário de diferenças, mas apenas
a língua na sociedade, em apresentar aquelas que nos parecem mais interessantes. É preciso tam-
particular as diferentes
bém lembrar que o PB, como qualquer outra língua, está em constan-
variedades de falares e suas
variantes. te processo de mudança e falamos aqui sobre tendências, logo falamos
em variação. Pesquisas que lidam com fenômenos em mudança devem
prestar atenção tanto no que chamamos de condicionamentos externos,
as influências que vêm de fora da língua e a afetam, quanto nos condi-
cionamentos internos, uma mudança num ponto da língua desencadeia
outras mudanças. Esse é o campo da Sociolinguística e por isso não
podemos nos estender nele.

Variantes e variáveis

As variedades linguísticas, os dialetos e os modos de falar, por exem-


plo, mais ou menos formais, são caracterizados pelas variantes, que
são por sua vez atualizações de uma variável; em outros termos as va-
riantes se caracterizam pelas diferentes formas de expressarmos uma
mesma função. Por exemplo, no dialeto caipira do interior de São Pau-
lo, falamos /tia/ e /dia/ ao passo que no dialeto da metrópole fala-se
/tchia/ e /dzia/ (aliás, está aí mais uma diferença com relação ao PE).
Estamos diante de variantes porque /tia/ e /tchia/ não são palavras
diferentes, não têm sentidos distintos, elas têm a mesma função no
sistema, indicando uma variação no modo de falar, uma variação fo-
nética e não fonológica. As mesmas considerações valem para /dia/ e
/dzia/. Mas, essas variantes têm uma função social, porque são marcas
de uma fala. Por exemplo, elas caracterizam a fala caipira e carregam,
portanto, uma identificação (e muitas vezes uma discriminação) so-
cial. A sociolinguística estuda tanto os condicionantes externos – por
exemplo, a faixa etária ou o grau de escolaridade dos informantes que
falam essa variedade já que esses fatores podem interferir na escolha
de uma variante (quanto mais escolarizado maior a tendência de rea-
lizar a forma da metrópole, por exemplo) –, quanto os condicionantes
internos. A variação não é aleatória no sistema, mas ela é condiciona-

118
O PB, que bicho é esse? CAPÍTULO 10
da por ele. Por exemplo, só ocorre a palatização do /t/ e do /d/ antes
da vogal /i/. Não é gramatical em nenhum dialeto do português di-
zermos /dzado/ (dado) (em alguns dialetos há também a palatização
antes do /u/). Mais uma vez, não podemos nos deter na apresentação
desses condicionantes internos, mas vamos mencioná-los ao longo
desta exposição sobre o PB.

Nas próximas seções vamos apresentar algumas dessas diferenças.


Como veremos as diferenças formam “aglomerados”.

119
“Perda” de morfologia de número no nome e no verbo CAPÍTULO 11
11 “Perda” de morfologia de
número no nome e no verbo

Não há muita dúvida de que o PB, diferentemente do que ocorre


no PE, está se tornando uma língua que não marca o plural em todos os
elementos da sentença, seja no sintagma nominal seja no sintagma verbal,
quando se dá a concordância do sujeito com o verbo. Em outros termos,
e apresentando a diferença de modo gritante: o PE diz Os meninos brasi-
leiros são morenos, enquanto no PB temos variações: deixamos de marcar
em um dos termos Os meninos brasileiro são moreno até, no registro mais
popular, marcamos o plural apenas no determinante Os menino brasileiro
é moreno. Podemos também usar o item tudo (mas não todos!) para mar-
car o plural quando não há concordância em todos os itens; compare:

Os menino tudo é moreno. # Os meninos todos é moreno.


Os meninos tudo é moreno. # Os menino todos é moreno.
# Os meninos tudo são moreno. Os meninos todos são morenos.
# Os meninos tudo são morenos. Os meninos todos são moreno.

Note também que a situação do PB não é a mesma do inglês – no


inglês, a marca de plural no sintagma nominal aparece necessariamente
apenas no núcleo, somente the tall boys é gramatical; *thes tall boys, *the
talls boys, *thes talls boys, ou qualquer outra combinação são agramati-
cais. No PB, a marca de plural pode aparecer em todos os elementos do
sintagma ou em alguns desses elementos ou em apenas um elemento, o
determinante. Estamos, portanto, diante de uma situação de variação.
Mas – e esse é um ponto interessante – não é qualquer opção de marca-
ção de pluralidade que é gramatical. A variação não é aleatória.

Esse tipo de evidência foi descrito por Scherre & Naro (1997), Naro O artigo está disponível
para leitura em http://
& Scherre (2003) e Scherre et al. (2007), entre outros, com base em aná-
www.ai.mit.edu/pro-
lises quantitativas de amostras faladas.Vejamos alguns exemplos reti- jects/dm/bp/scherre-
-naro98.pdf
rados de Scherre & Naro (1998). Nesse primeiro bloco, apresentamos
casos que envolvem a concordância do verbo com o sujeito:

121
Construindo gramáticas na escola

(1) ... eles GANHAM demais da conta (CAB02MP16/0012);

(2) ... eles GANHAø demais po que eles fayz ( CAB02MP16/ 0026).

(3) Eles também não dizø (LAU28FC43/2601)

(4) Eles dizEM: “chutei tudo” (HEL34FG62/1887)

Afine o seu ouvido e comece a ouvir a música do PB; preste atenção


em como em muitos casos não é apenas não ter a concordância na terceira
pessoa, é todo o paradigma verbal do português que está se alterando; as
formas do verbo são morfologicamente iguais e o sujeito passa a ser obri-
gatório, como é em inglês e como é no francês falado (mas não no francês
escrito). Assim, uma mudança no sistema pronominal do PB corresponde
à mudança no sistema de concordância. Uma mudança em um lugar do
sistema leva a mudanças em outros lugares e alteramos a gramática.

O sistema pronominal no PB vernacular

O sistema pronominal no PB falado é bastante diferente do que en-


contramos em Portugal e não apenas com relação ao uso no acu-
sativo. Um diferencial bem marcante é a gente ser hoje em dia um
pronome no PB. Em Portugal, a gente funciona como o nosso se de
indeterminação. Assim, a sentença em (i) tem sentidos muito dife-
rentes nessas duas línguas:

(i) A gente gosta de ouvir música.

No PE, o falante está falando genericamente e não está necessaria-


mente se incluindo entre as pessoas que gostam de ouvir música,
a paráfrase para (i) nesse caso é Gosta-se de ouvir música ou mais
coloquialmente As pessoas gostam de ouvir música; por sua vez,
no PB, o falante está se incluindo e afirmando uma disposição que
ele e outros têm, e assim a paráfrase para (i) passa a ser, no PB, Nós
gostamos de ouvir música.

122
“Perda” de morfologia de número no nome e no verbo CAPÍTULO 11
Além disso, a forma tu no PB aparece em alguns dialetos e mesmo
neles ela está em variação com você, ou seja, ela concorda com uma
suposta forma de terceira pessoa. Disso decorre que no PB falado
o paradigma de conjugação é bastante diferente daquele normal-
mente encontrado na escola e no PE. Temos:

Eu viajei
Você/tu (em alguns dialetos do Brasil) viajou
Ele/ela viajou
A gente viajou
Vocês/Eles viajou

Mais uma vez, compare com o paradigma no inglês.

I traveled
You traveled
He/she/it traveled
We traveled
They traveled

O interessante é que a variação entre as gramáticas apresentadas nos


exemplos de (1) a (4) não é aleatória, há condicionamentos tanto sociais
quanto internos que privilegiam uma ou outra forma. Entre os condicio-
namentos sociais podemos citar: (i) a proporção de concordância aumen-
ta com a formalidade – quanto mais formal a situação discursiva, mais o
falante vai utilizar a gramática de (1) e (4) –; (ii) o grau de escolaridade
– quanto maior a formação escolar, mais o falante vai utilizar a gramática
em (1) e (4). E há condicionantes internos: (i) quanto mais o sujeito gra-
matical estiver à esquerda, maior a probabilidade da concordância apa-
recer; (ii) quanto mais o sujeito estiver distante do verbo, com elementos
intermediários, maior a chance da gramática ser como (2) e (3).

Há algumas lições a serem tiradas dessa pequena análise, principal-


mente se juntarmos e ela o fato de que transpomos a nossa língua – a que
aprendemos sem nenhum tipo de instrução formal, quando adquirimos
linguagem – para outras línguas. Se na sua gramática falada a concordân-

123
Construindo gramáticas na escola

cia for como na gramática de (2) e (3) acima, é essa a estrutura que vai
aparecer na língua “intermediária” – a língua de transição entre a língua
que o aluno já sabe e a língua que ele está aprendendo -, porque ele vai
transpor a sua gramática, como vimos no caso do singular nu para os
falantes de inglês. Na escrita culta, a concordância aparece marcada em
todos os termos. Assim quando estamos aprendendo uma língua que tem
a concordância marcada em todos os termos, e na nossa língua materna a
concordância aparece em apenas um dos termos, tenderemos a não mar-
car a concordância em todos os termos, até o momento em que dominar-
mos essa nova gramática, em que ela seja uma outra língua na qual nos
movemos naturalmente.

Essa maneira de descrever os fenômenos é bastante informal e até


certo ponto inadequada, porque pode deixar transparecer que o
certo seria ter concordância e temos então a “falta” de concordância,
que seria errado. Mas não se trata disso. Temos, na verdade, duas
gramáticas diferentes, ambas têm concordância, só que em uma há
morfologia aparente e na outra não.

Repare como soa na- E é por isso que nas redações dos alunos certamente vai aparecer
tural essa sentença. casos em que não há morfologia.

Na escola

E essa é uma ótima oportunidade para o professor discutir as di-


ferenças entre a língua escrita e a língua falada e entre as diferen-
tes variedades de português falado e as diferentes variedades de
escrita – afinal a escrita no blog não é a mesma escrita do artigo
Veja os bancos de
dados do NURC http:// acadêmico -, talvez, propor projetos em sociolinguística. Os alu-
www.letras.ufrj.br/ nos poderiam gravar falas informais, transcrever e analisar. Ou o
nurc-rj/e do VARSUL
- http://www.varsul. professor poderia mostrar bancos de dados de fala – há vários de-
org.br/ les disponíveis on-line, - trabalhar com eles algumas entrevistas e
investigar como o falante realiza a concordância. Comparar dife-
rentes tipos de escrita, como é a escrita no blog e como é a escri-

124
“Perda” de morfologia de número no nome e no verbo CAPÍTULO 11
ta nos jornais. Esse é um tema rico que permite explorar relações
gramaticais, a noção de sujeito, as diferentes variedades no Bra-
sil, o português brasileiro e o PE, que não tem a variedade sem a
marcação morfológica. Outra pesquisa interessante é verificar nas
gramáticas tradicionais como o tema é tratado e comparar com as
gramáticas do português falado.
É muito importante
É fundamental que essa discussão permita que o aluno entenda o estudar as gramáticas
que ele está fazendo, entenda porque ele não está colocando a con- do português falado, ver
entre outras Castilho,
cordância como a gramática normativa exige e essa lição vale para 2010) e ver como elas
todos os supostos “problemas” de redação: trata-se de entender o diferem no tratamento
dado a essa e a outras
erro como um estágio na aquisição de uma nova língua, como uma questões gramaticais).
transposição de gramáticas, e levar o aluno a entender o que está
acontecendo, o que ele está vivendo. Uma outra lição, talvez não tão
clara, mas muito importante, é que somos fundamentalmente mul-
tilíngues, manipulamos diferentes gramáticas o tempo todo e essa é
uma capacidade importante que a escola precisa explorar. Aprender
a escrever é aprender uma outra língua, uma outra gramática e isso
é algo muito natural, se soubermos explorar, se não bloquearmos o
aluno, estigmatizando a sua fala.

Como já apontamos, o PB está também deixando de marcar a plu-


ralidade em todos os elementos do sintagma nominal, e não apenas
na concordância sujeito e verbo, passando a marcar a pluralidade em
apenas um dos termos, como mostram os exemplos abaixo, também
retirados de Scherre & Naro (1998). Mais uma vez encontramos a varia-
ção, desde variedades que marcam em todos os elementos do sintagma
nominal até aquelas que marcam apenas no determinante (no artigo
definido ou no demonstrativo, por exemplo):

(5) oS freguesES; aS boaS açÕES; essaS coisaS todaS (variantes ex-


plícitas);

(6) essaS estradaS novaø; doø meuS paiS (variantes explícitas e va-
riantes zero);

125
Construindo gramáticas na escola

(7) aS codornaø; aS portaø abertaø (variantes explícitas e varian-


tes zero).

Mas note, mais uma vez, que a variação não é aleatória. Diferente-
mente do inglês, não podemos apagar a marca do determinante (o artigo
definido ou o pronome demonstrativo), ou seja, apesar da variação, as
sequências em (8) são agramaticais em qualquer variedade do português:

(8) * A codornas; * o fregueses; * essa estradas

Em sua tese de doutorado, Scherre (1994) realiza uma análise mi-


nuciosa da presença versus ausência da marca morfológica de número
e conclui que “o fenômeno da variação na concordância de número no
português falado do Brasil, longe de ser restrito a uma região ou classe
social específica, é característico de toda a comunidade de fala brasilei-
ra” (Scherre, 1994). Como não poderia deixar de ser, a presença ou au-
sência da morfologia de pluralidade é também condicionada tanto por
fatores sociais quanto por fatores linguísticos. Aparentemente quanto
mais à direita no sintagma, maior a probabilidade da marcação de plural
não aparecer. É claro que escolaridade e formalidade são fatores exter-
nos que interferem na escolha por uma ou outra gramática; algo que
fazemos intuitivamente e que o professor de português pode mostrar
para os alunos e assim incentivá-los a mudar de registros.

Na escola

Também aqui vamos esperar que os alunos transponham para o


texto escrito as marcas da sua gramática e não realizem explicita-
mente a marca de plural em todos os elementos do sintagma. Para
além das propostas já sugeridas de uma pequena pesquisa socio-
linguística, que poderia também ser aplicada para esse caso, uma
outra atividade seria a construção de personagens literários que
marcassem na sua fala o seu lugar de procedência social ou regional
através de seu dialeto. Dessa forma, os alunos teriam que recons-
truir os dialetos e essa seria a maneira de dar informação sobre o seu

126
“Perda” de morfologia de número no nome e no verbo CAPÍTULO 11
personagem, quando, por exemplo, eles estão construindo textos
narrativos. Essa é uma estratégia que foi explorada por Maurício de
Souza no personagem do Chico Bento e que aparece em diversos
romances contemporâneos, por exemplo, o romance Cidade de
Deus de Paulo Lins. Essa estratégia apa-
rece também em
filmes como O auto da
compadecida, Cidade
de Deus, Tropa de Elite,
Finalmente, Scherre & Naro (1998) mostram que a concordân- entre inúmeros outros.
cia também está em variação nos predicativos e particípios passados.
Vamos apenas exemplificar esse caso, mais uma vez com exemplos de
Scherre & Naro:

(9) a. ... as coisas tão muito CARAS, né? ... (variante explícita);

b. ... que as coisaø táø CARAø, num dá mesmo ... (variante zero);

(10) a. ... os meus filhos foram AMAMENTADOS ... (variante explícita);

b. ... os meus filhos foram ALFABETIZADOø ... (variante zero).

Os autores concluem: “Por tudo que apresentamos [...], verifica-se


que a variação na concordância no português falado do Brasil está de-
finitivamente internalizada na mente de seus falantes. Neste momento
da língua, trata-se de uma variação inerente, altamente estruturada em
função de aspectos linguísticos e sociais.”

Nas próximas seções vamos apresentar outras propriedades que


também estão enraizadas na mente dos falantes.

127
O objeto nulo e os pronomes no acusativo CAPÍTULO 12
12 O objeto nulo e os pronomes
no acusativo
Como vimos, o sistema pronominal no PB está mudando, mas não
apenas no caso nominativo; estamos mudando também no acusativo e,
em grande parte, deixando essa posição nula. Embora a posição de ob-
jeto possa também ocorrer vazia no PE, como no exemplo apresentado
pela primeira vez por Raposo (1986, apud Cyrino 2001) e repetido aqui
em (11), essas línguas diferem muito com relação a essa posição, não
apenas porque no PB há muito mais casos em que o objeto está nulo,
casos que não são possíveis no PE, mas, como veremos, porque a forma
usada no preenchimento não é a mesma. A sentença em (11) é possível
nas duas línguas, mas as sentenças em (12) são agramaticais no PE –
exemplos retirados de Raposo (apud Cyrino 2001) e gramaticais no PB:

(11) Joana viu ___ na TV ontem. (PB; PE)


Note que essa sen-
tença é em PE, logo
(12) a. *Eu informei à polícia da possibilidade de o Manuel ter o clítico me aparece
guardado ___ no cofre da sala de jantar. após o verbo. No PB,
diríamos: Que a IBM
venda a particulares
b. * Que a IBM venda ___ a particulares surpreeende-me. me surpreende.

A tabela a seguir, apresentada em Cyrino (2001), mostra como é


diferente o preenchimento da posição de objeto no PB e no PE; os resul-
tados estão expostos na tabela 1:

Objeto nulo Preenchimento TOTAL


N. % N. % N. %
PB 19 76 6 24 25 100
PE 1 3 33 97 34 100
Tabela 1 - Diferenças de preenchimento da posição de objeto no PB e no PE.

No PB, o objeto está vazio em 76% das ocorrências versus 3% no


PE. Os números se invertem com relação aos casos de preenchimento,
mostrando claramente que estamos diante de duas gramáticas. Mas essa
tabela não nos diz sobre como é esse preenchimento na posição de objeto.
129
Construindo gramáticas na escola

Há pelo menos três maneiras de preenchermos o objeto: (i) repe-


tindo o sintagma nominal já dito ou parte dele (13a), (ii) utilizando o
pronome clítico de acusativo o e a para a terceira pessoa, me para a pri-
Essa construção é na- meira pessoa (13b), ou (iii) utilizando o pronome pleno (13c). Utilizar o
tural no PE, mas pouco
empregada no PB, pelo
pronome pleno é agramatical no PE:
menos na fala informal
e por isso acrescenta-
mos o sinal de interro-
(13) a. Você viu o João? Eu vi o João. (PB, PE)
gação. Ela não existe
no meu dialeto.
b. Você viu o João? Eu o vi. (PE; ?PB)

Esse trabalho pode ser c. Você viu o João? Eu vi ele. (*PE; PB)
recuperado em http://
www.revel.inf.br/files/
artigos/revel_9_obje- Uma pesquisa muito interessante para os nossos propósitos foi
to_direto_nulo.pdf realizada por Oliveira (2007). Nessa pesquisa, a autora fez um levan-
tamento das ocorrências de preenchimento ou de objeto nulo em re-
dações da 1 a 4 séries. Como é de se esperar, mais uma vez as caracte-
rísticas da língua do aluno serão projetadas para a língua que ele está
aprendendo. O que esperamos, então, é que quanto mais avançada a
série, quanto mais alfabetizado, isto é, quando mais o aluno dominar
a escrita, maior será a utilização do clítico (a, o), que é uma marca da
língua escrita padrão. Foi exatamente isso o que Oliveira encontrou
na sua análise das redações. A autora avaliou os seguintes casos (os
exemplos foram retirados de Oliveira, 2007):

(i) uso do objeto direto nulo:

(14) Ele ficou bravo e furou a bola e jogou [Ø] no lixo. (3ª série)

(ii) uso do pronome pleno ele/ela:

(15) Então ele falou: eu vou la ajudar ela a si levantar. (1ª série)

(iii) uso de SN anafórico pleno:

(16) Ele entrou e pegou a pipa derrepente caiu a pipa .(3ª série)

130
O objeto nulo e os pronomes no acusativo CAPÍTULO 12
(iv) uso do clítico acusativo de 3ª pessoa:

(17) Acho que o Cascão está em perigo vou ajudalo. (4ª série)

Foram coletadas 174 ocorrências, envolvendo objetos nulos,


pronomes plenos (a autora refere-se a eles como pronomes tônicos),
SNs anafóricos e clíticos acusativos. Veja na tabela abaixo os resulta-
dos dessa pesquisa:

Variantes Número de Ocorrências %


Objeto nulo 91 52,0
Pronome pleno 39 23
SN anafórico 14 8,0
Clítico acusativo 30 17,0
Total 174 100,00

Como esperado, a maior porcentagem de uso do clítico está nas


redações dos alunos da 4ª. série, 34% das ocorrências nessa série
versus 8% na 1ª. série; estamos vendo o processo de aquisição de
uma nova língua e os seus estágios. Note que o clítico no exemplo
em (17) está junto ao verbo, indicando claramente que o aluno está
transpondo a oralidade – na fala, não há separação entre o verbo e o
clítico; aliás, no português mais antigo a escrita correta para a forma
ajudá-lo era justamente ajudalo, o que mostra o quão arbitrário po-
dem ser os sistemas de escrita.

O sistema pronominal no caso acusativo é também um lugar de


discriminação social e esse é um dos traços mais característicos do
PB: usamos ele/ela na posição de objeto, para o caso acusativo. Mas
não só; utilizamos as formas plenas também para as outras pessoas,
como mostram os exemplos em (18) e, em geral, o uso da primeira
pessoa plena é um lugar de grande discriminação:

(18) a. O João viu eu.

131
Construindo gramáticas na escola

b. O João viu você.

c. O João viu a gente/nós.

Mas, o mais interessante, é que estamos de fato diante de uma


gramática diferente. Só podemos utilizar a forma plena se ela vier
Cuidado, em todas es- posposta ao verbo. As sentenças em (19) são agramaticais no PB:
sas sentenças há uma
leitura em que o pro-
nome pleno, eu, você (19) a. * O João eu viu.
e a gente é o sujeito e
o João é o objeto que
está em posição de b. * O João você viu.
tópico. Não estamos
falando dessa leitura;
considere sempre que c. * O João a gente viu.
o agente é o João.
O clítico, por sua vez, deve ocorrer anteposto ao verbo, como
mostram as sentenças em (20):

(20) a. O João me viu vs * O João viu me.

b. O João te viu vs * O João viu te.

c. O João nos viu vs * O João viu nos.

Em conclusão, no PB atual a posição de objeto é preferencial-


mente nula, enquanto no PE ela é preenchida. Quando preenchida
com pronome, no PE esse pronome só pode ser um clítico; no PB
temos preferencialmente, na variedade falada, o pronome pleno, mas
nesse caso ele obrigatoriamente ocorre após o verbo. Os clíticos são
aprendidos mais tarde, quando vamos para a escola.

132
O lugar como sujeito CAPÍTULO 13
13 O lugar como sujeito
Diferentemente do que ocorre no PE e em outras línguas români-
cas, no PB, sintagmas que são em geral adjuntos adverbiais de lugar Ver, por exemplo, o arti-
podem ocorrer na posição pré-verbal, como sujeito gramatical, de- go de Costa (2010) em
que ele afirma que essa
sencadeando inclusive concordância, sem, no entanto, serem o sujeito construção é de fato
lógico (ou semântico) do verbo. Essa descrição pode parecer compli- característica do PB.
cada, com tantos termos técnicos como os que aparecem sublinhados,
mas vamos desembrulhá-la olhando os exemplos abaixo, analisados em
Avelar et al. (2011) que, por sua vez, retiraram de blogs que, como sabe-
mos, são interações escritas bem próximas da oralidade. Vamos analisar
o exemplo em (21) mais detalhadamente:

(21) a. Algumas concessionárias tão caindo o preço [do carro].


Estas sentenças foram
b. O preço do carro tá caindo em algumas concessionárias. extraídas deste site
http://
forum.carrosde-
Note que o constituinte algumas concessionárias, um adjunto ad- rua.com.br/index.
php?show
verbial de lugar, em (21a) está disparando a concordância no verbo, que topic=122656.
está no plural tão, mas note também que certamente não são as conces-
sionárias que estão caindo o preço, portanto esse não é o sujeito semân-
tico do verbo, apesar de aparecer na posição pré-verbal e desencadear
concordância. Na verdade, o que está caindo é o preço do carro e algu-
mas concessionárias é o lugar onde esses preços estão caindo, conforme
deixa claro a paráfrase em (21b).
Estas sentenças foram
extraídas deste site
Eis a seguir alguns outros exemplos, retirados de Avelar et al (2011): http://www.foto-
log.com.br/jees_
siica/39442608f.
(22) a. Minhas amígdalas tavam saindo sangue.

b. Estava saindo sangue das minhas amígdalas.

(23) a. Apenas 3 desses cinco monitores aparecem imagem, enquan- Estas sentenças foram
to os outros dois ficam aparecendo a mensagem. extraídas deste site
http://linuxeducacio-
nal.com/mod/forum/
b. Apenas aparece imagem em 3 desses cinco monitores, en- discuss.php?d=1587.
quanto a mensagem fica aparecendo nos outros dois.
133
Construindo gramáticas na escola

(24) a. No interior de SP e do Rio, algumas cidades nevam.


Estas sentenças foram
extraídas deste site b. No interior de SP e do Rio, neva em algumas cidades.
http://www.you-
tube.com/all_
comments?v=IlOPh- Claro que o que apresentamos acima são exemplos de um fenô-
-mITyc.
meno que precisa ser explicado detalhadamente, e vários linguistas
propuseram explicações para ele, entre elas a hipótese de que o PB
Por que será? Note que é uma língua de tópico como o chinês. Veremos na próxima seção o
é muito mais fácil ser que é ser uma língua de tópico, sem, no entanto, entrarmos nos deta-
preconceituoso com
relação a uma concor- lhes dessa explicação, mas o leitor interessado pode consultar Negrão
dância morfológica, (2000), entre outros.
porque ela é claramen-
te identificável, do que
com relação a uma Você provavelmente nunca se deu conta desse tipo de exemplo,
dada construção sin-
tática, devido ao grau nunca nem notou que nós falamos dessa maneira e que esse é também
de elaboração envol- um “erro” muito recorrente na escrita, só que, diferentemente do que
vido em sua descrição.
Mas ambos os casos ocorre com a concordância de número e com os pronomes plenos,
são exemplos da fala ninguém fala sobre isso. Dado que essa construção faz parte da sua
corrente do brasileiro
e diferem do que se gramática e não foi socialmente estigmatizada é quase certo que você
considera o padrão. não vai notar a sua presença, ela não vai chamar a sua atenção. Mas
os falantes também realizem as formas estigmatizadas, mesmo sem
querer, mesmo sem se dar conta; é uma reação comum acreditar que
é o outro que fala errado, e nós falamos certo. E para excluir o outro
basta chamarmos a atenção para um traço de sua fala.
Outro lugar muito
estigmatizado é o
uso do reflexivo se
para todas as pessoas,
como em Eu se mato
de trabalhar.

134
Adjuntos adnominais como sujeitos CAPÍTULO 14
14 Adjuntos adnominais como
sujeitos
Vejamos, antes de mais nada, um exemplo desta construção que é
também característica do PB:

(25) A bicicleta furou o pneu. Esta sentença foi ex-


traída deste site http://
br.answers.yahoo.
Reflita um pouco sobre a estrutura sintático-semântica dessa sen- com/question/index?
qid=20081119080133
tença. Como você analisa essa sentença? Qual é a função sintática de a AAFPQLS.
bicicleta? E qual é a sua função semântica? Veja alguns outros exemplos,
novamente retirados de Avelar et al. (2011), e procure entender o que Esta sentença foi
extraída deste site
está acontecendo:
www.4x4brasil.com.
br › ... › SUV’s (Sport
Utility Vehicles)
(26) conheço pessoas que fizeram isso e caíram o cabelo.

Esta sentença foi


(27) Tem vários turbos 2.5 da Forester, pelo menos uns 15, que pi- extraída deste site
faram o motor. http://sonhos.clickgra-
tis.com.br/sonhos-c/
casa-33.html
(28) Sonhei que estava em minha casa e ela estava incendiando o
telhado. Esta sentença foi ex-
traída deste site http://
www.flogao.com.br/
(29) até hoje eu tou doendo o pescoço de dançar aquela dança mi- osgoroboys/33044167
serável.

(30) eu inflamei o músculo do dedo, na articulação.


Esta sentença foi
Você conseguiu entender o que está acontecendo? Essa é outra extraída deste site
http://www.fotolog.
propriedade que também é associada ao fato de que o português é com.br/franciene_
uma língua de proeminência de tópico, o chamado alçamento de ter- s2/45574000
mos adnominais – ou seja, esses termos ocupam a posição de sujeito,
desencadeiam a concordância com o verbo, mas não são semantica-
mente interpretados como sujeitos, sua função sintática é de adjunto
adnominal. Aparentemente, várias propriedades do PB estão ligadas
ao fato de que essa é uma língua de tópico.

135
Construindo gramáticas na escola

Português uma língua de tópico

A hipótese de que o PB é uma língua de tópico foi colocada inicial-


mente por Eunice Pontes, em 1987, e tem recebido a atenção de
vários estudiosos desde então. O tópico carrega uma série de pro-
priedades. Do ponto de vista semântico, o tópico é a informação
que já está presente no contexto discursivo, é a informação velha
ou já compartilhada pelos participantes do discurso. Sintaticamen-
te, o tópico ocorre quando um sintagma está deslocado para uma
posição mais alta, mais à esquerda, no começo da sentença, e fono-
logicamente ele vem marcado com uma curva entoacional caracte-
rizada por um movimento de subida e rebaixamento no sintagma
nominal. Se o tópico é a informação compartilhada, o foco é a infor-
mação não compartilhada, desconhecida. Note que estamos falan-
do sobre discurso e processamento de informação, por isso o PB tem
sido descrito também como uma língua voltada para o discurso (ver
Negrão (2000)). Vamos a um exemplo:

(i) O que o João fez?

O JoãoT quebrou o vaso.

Normalmente, há uma pequena pausa separando o tópico, que é o


João, a informação compartilhada, como mostra a pergunta, e a in-
formação desconhecida ou nova, que é o fato de que ele quebrou o
vaso. Prosodicamente, há uma subida e depois uma descida quando
proferimos o João. Há muitas questões que esse pequeno exemplo
já levanta e não podemos nos deter nelas. Note, porém, que tan-
to no caso dos locativos quanto no caso dos adjuntos adnominais,
esses termos foram deslocados para uma posição mais à esquerda,
que é normalmente a posição de sujeito, mas é também a posição
do tópico. Então, deslocamos esses elementos porque eles já foram
introduzidos no discurso e estão sendo retomados, são informações
compartilhadas. Um ponto muito importante é novamente a ques-
tão da transposição e dos estágios de aquisição de uma língua.

136
Adjuntos adnominais como sujeitos CAPÍTULO 14

É muito comum nas redações vermos os alunos separando o su-


jeito do predicado por vírgula, o que é imediatamente corrigido
através de um dito não explicado: “Não se separa o sujeito de seu
predicado!”. Mas o aluno, quando coloca a vírgula, está utilizando
a sua gramática e seria melhor se o professor explicasse porque ele
usou essa vírgula, o que ela nos diz. Muito provavelmente ela está ali
para marcar o tópico que, na fala, é de fato separado por uma curva
prosódica característica seguida por uma pequena pausa; na escrita
esta pausa é indicada pela vírgula. Se essa análise estiver correta, o
aluno não está separando sujeito e predicado com vírgula, e sim tó-
pico (informação compartilhada, marcada por uma curva prosódica
específica) e foco (informação não compartilhada, em geral discur-
sivamente mais relevante), transpondo para a outra língua a sua
gramática internalizada.

Se você tiver mais interesse em estudar foco e tópico, um bom co-


meço é Quarezemin (2012).

Você já deve ter entendido porque há essa relação entre o tópico


e essa construção chamada de alçamento do adjunto adnominal, não?
Considere (25) novamente. Ela parece ser a resposta para uma pergunta
do tipo: o que aconteceu com a bicicleta? Dizendo muito informalmen-
te, a bicicleta é o tópico, a informação compartilhada, que é movida para
uma posição mais alta, mais à esquerda, que é a posição de tópico, e de
alguma forma desencadeia a concordância. Sem sombra de dúvidas, a
bicicleta não é o sujeito semântico de furou, já que ela não é o agente
do evento de furar. Ela foi movida ou alçada da posição de adjunto
adnominal de pneu para a posição de sujeito (sintático) da sentença.
Sabemos isso porque a sentença em (31) é a paráfrase de (25):

(31) Furou o pneu da bicicleta.

Repare que os demais exemplos podem receber a mesma análise. O


movimento do adjunto pode ser explicado como o resultado do fato de

137
Construindo gramáticas na escola

que o PB – mas não o PE – é uma língua de tópico, e assim movemos


para cima, para posição mais à esquerda, os elementos que constituem a
informação já dada. Note, mais uma vez, que nem reparamos nesse tipo
de construção. Mas comece a prestar atenção e verá como ela é produtiva.

O professor de português pode explorar esse tipo de fenômeno de


várias maneiras, inclusive para ensinar análise sintática por um caminho
que faça sentido para os alunos. Podemos, com ela, entender o que está
sendo dito, qual é a estrutura subjacente a um proferimento como (25) e
porque ele ocorre. Evidentemente, essa tarefa poderia começar com um
levantamento de ocorrências como essas, poderia também ser acompa-
nhada por um estudo sobre prosódia, sobre teoria da informação, sobre
como os diálogos se estruturam. Há muitos caminhos interessantes.

138
Construções de alternância incoativa ou passivas com verbos na
forma ativa CAPÍTULO 15
15 Construções de alternância
incoativa ou passivas com
verbos na forma ativa
Uma outra característica do PB é a possibilidade de o objeto
direto ocorrer na posição de sujeito, como exemplificado no par de
sentenças abaixo:

(32) a. João encheu o balde.

b. O balde encheu.

Você pode imaginar que esse tipo de alternância possa ocorrer em


todas as línguas e com qualquer verbo transitivo, mas não é esse o caso.
Há línguas que não permitem esse tipo de construção, como o PE, e há
verbos que não permitem essa alternância, como, por exemplo, em (33):

(33) a. João viu o balde.

b. * O balde viu.

Esse é um outro padrão oracional do PB que tem chamado a aten-


ção dos pesquisadores. Apresentamos a seguir uma série de exemplos.
Repare como eles são naturais para os nossos ouvidos, tão naturais que
às vezes não notamos que estamos utilizando esse tipo de construção;
mais uma vez, é preciso afinar os ouvidos para ouvir a música do PB
porque estamos imersos nele, e prestarmos mais atenção no quão fasci- Esta sentença foi
extraída deste site
nante ele pode ser. Os exemplos foram retirados de Avelar et al. (2011):
http://www.fotolog.
com.br/loveninado-
brev/84367200.
(34) Quando minha casa reformou, eu tinha vontade de sumir.

O que há de característico em (34)? Veja que reformou é um verbo


transitivo e que, mais uma vez, minha casa não pode ser o sujeito se-
mântico desse verbo porque ela não é agente desse evento, antes é o seu
tema: o que foi reformado foi a minha casa. Vejamos outros exemplos:

139
Construindo gramáticas na escola

(35) Sonho que a minha casa tá construindo, e não é a primeira vez.

Esta sentença foi extra-


ída deste site sonhos. (36) Um diretor de arte de Seattle envia um arquivo para imprimir
clickgratis.com.br › So-
em uma loja e eles ligam dizendo que o trabalho não imprime.
nhos de A a Z › Letra C

Esta sentença foi ex- (37) O dinheiro liberou através do prazo de quatorze dias.
traída deste site http://
abduzeedo.com.br/
livros-de-cabeceira- (38) Enquanto meu carro consertava em uma oficina eu lia a revista
-para-designers-3
Veja [...]. Quando meu carro consertou saí correndo de banca em banca
Esta sentença foi ex- atrás desta revista.”
traída deste site
http://www.mercado
livre.com.br/jm/ Você deve ter notado que em todas elas temos pelo menos um ver-
profile?id=9808
8497&oper=S bo transitivo que não ocorre com o seu argumento externo ou sujeito
gramatical e o seu complemento ou objeto direto é que aparece realiza-
Estas sentenças foram
extraídas deste site do na posição de sujeito. Veja o exemplo em (37), certamente não foi
http://revistacrescer. o dinheiro que liberou, no sentido de que ele é o agente do evento, o
globo.com/
Revista/Crescer/0,,E dinheiro é o tema da liberação, é o objeto direto do verbo liberou, mas
DI0-10441-2-10399,00. ele aparece na posição de sujeito. Além disso, do ponto de vista semân-
html
tico, essas construções expressam um sentido passivo, já que o sujeito
não aparece e o objeto é levado a uma posição de maior proeminência
discursiva. Veja que podemos parafrasear todas as sentenças acima uti-
lizando a passiva:

(39) a. A casa foi reformada.

b. a casa está sendo construída.

c. o trabalho não foi impresso.

d. o dinheiro foi liberado.

e. meu carro estava sendo consertado... meu carro foi consertado.

As construções de (35) a (38) simplesmente não ocorrem no PE e


são tão normais no PB que nem as enxergamos.

140
Sujeito nulo CAPÍTULO 16
16 Sujeito nulo
A questão do sujeito nulo foi muito debatida na literatura sobre
a sintaxe do PB porque marca um contraste paramétrico com o PE
(vejam-se, dentre outros, Duarte, 1995; Galves, 1998, 2001; Figueiredo
Silva, 1996; Kato 2000; entre outros) e é por demais complexa e extensa
para ser discutida aqui com o grau de detalhe que a questão merece.
Nosso objetivo aqui é apenas notar o que há de particular no PB.

O contraste entre o PE e o PB tem sido descrito nos termos da


Teoria de Princípios e Parâmetros, que vimos rapidamente no capítulo
anterior, como um resultado de marcações diferenciadas para o chama-
do parâmetro pro-drop: enquanto o PE se apresenta como uma língua
canonicamente pro-drop, o PB mostra propriedades características do
que tem sido chamado de língua parcialmente pro-drop e está, aparen-
temente, caminhando em direção a línguas que não permitem sujeito
nulo, como vimos no quadro do sistema pronominal do PB atual. Essa é
uma diferença importante para mostrar que estamos, do ponto de vista
linguístico, diante de duas línguas (afinal não esperamos que as varia-
ções dialetais tenham diferentes parâmetros sintáticos).

De modo bastante informal, as línguas canonicamente pro-drop se


diferenciam das parcialmente pro-drop no que diz respeito ao licencia-
mento de sujeitos nulos definidos (referenciais) e indefinidos. Nas línguas
canonicamente pro-drop (como o PE, o espanhol e o italiano), sujeitos A definitude é uma
pronominais definidos em orações finitas (isto é, com flexão de tempo) importante proprie-
dade semântica das
são preferencialmente nulos, enquanto que os pronomes indefinidos pre- línguas. Grosseiramen-
cisam ser fonologicamente realizados. Nas línguas parcialmente pro-drop te, sintagmas definidos
denotam um indivíduo
(como o PB, o islandês e o marathi), temos o quadro oposto: os sujeitos em particular que já
pronominais definidos em orações finitas são preferencialmente realiza- está saliente no discur-
so (é informação velha,
dos explicitamente, enquanto os sintagmas indefinidos não só podem ser já compartilhada), en-
fonologicamente nulos, como essa é a opção preferencial. quanto que sintagmas
indefinidos introduzem
referentes discursivos,
Para perceber essa diferença, considere o exemplo abaixo, retirado indicam, portanto,
informação nova, não
de Duarte (1995). Preste atenção nos pronomes em negrito, eles são de- compartilhada.
finidos porque estão retomando o sintagma essa minha tia:

141
Construindo gramáticas na escola

(40) Essa minha tia que mora aqui, ela é solteirona e eu acho que ela
Trecho de fala apre- é super-feliz, sabe? Eu não acho que ela seria feliz assim... Ela é uma pessoa
sentado em Duarte que ajuda os outros pra caramba. Ela – isso é até um pouco de defeito –
1995: 46.
ela pensa muito mais nos outros do que nela, né. Mais eu acho que ela é
uma pessoa feliz e tal, que não tem nada... É que a vida não ficou a dever,
entendeu, nada. Foi uma opção dela ficar solteira. Ela não ficou solteira
porque não apareceu pretendente. Ela ficou solteira porque ela quis.

Note que nesse trecho, o pronome pessoal feminino de terceira pessoa


do singular, ela, é explicitamente realizado em todas as posições nas quais
o sujeito do verbo corresponde ao tópico do discurso (essa minha tia). Veja
que estamos sempre diante de um contexto definido, porque o pronome ple-
no está recuperando um referente, a tia, que já foi introduzido antes. No PE,
todos esses casos tenderiam a ser fonologicamente nulos, sem qualquer pre-
juízo à percepção de correferência com o tópico. Leia o trecho acima sem os
pronomes e você estará lendo um trecho muito próximo ao PE. Retorne ao
trecho em (40) e note como, para os nossos ouvidos, é estranho deixar vazia
a posição de sujeito na sentença a seguir, que aparece em itálico no trecho
em (40): “Eu não acho que (vazio) seria feliz assim”, mesmo quando lemos
dentro do contexto. Experimente. Nossa primeira reação é colocar o ela.

No trecho em (41), vemos ocorrências de orações com sujeitos


de referência genérica ou indefinida e agora temos o espelho de (40),
porque todos os sujeitos, com exceção da forma pronominal você (com
interpretação genérica), em negrito no trecho em questão, são fonologi-
camente nulos, conforme indica o símbolo “Ø”:

(41) FALANTE A: Me diz passo a passo como é que Ø faz um feijão.


Amostra CENSO/2000
Falante 17, Feminino, FALANTE B: É... Ø escolhe ele, Ø lava, Ø deixa de molho, Ø deixa
27 anos, Fundamental
1, Natural do Rio de uma hora de molho, aí depois – de um dia pra outro, né? – aí de manhã você
Janeiro. PEUL – Progra- pega uma panela de pressão, um pouquinho d’água, um dente de <alh...>,
ma de Estudos do Uso
da Língua http://www. [uma]...um louro, cebola e o feijão e água, carne seca... e Ø deixa cozinhá.
letras.ufrj.br/peul.
Veja que em como é que faz um feijão / escolhe ele / lava / deixa uma hora
de molho, o sujeito está sempre vazio, não é explicitamente dito. No PE, esses

142
Sujeito nulo CAPÍTULO 16
sujeitos de referência genérica/indefinida seriam necessariamente realiza-
dos pelo pronome se que aparece junto ao verbo, como mostramos em (42):

(42) FALANTE A: Me diz passo a passo como é que se faz um feijão.

FALANTE B: É... escolhe-se ele, lava-se, deixa-se de molho,


deixa-se uma hora de molho, aí depois – de um dia pra outro, né? – aí
de manhã você pega uma panela de pressão, um pouquinho d’água,
um dente de <alh...>, [uma]...um louro, cebola e o feijão e água, carne
seca... e deixa-se cozinhá.

Receita de bolo no PE e no PB deve ser bem diferente, não? Vale a


pena conferir e mostrar isso para os alunos.

Há, obviamente, outras diferenças com relação ao PE que não vamos


alterar no fragmento em questão porque queremos apenas chamar
atenção especificamente para esse aspecto. Uma dessas diferenças
é a possibilidade de iniciar uma sentença com o pronome pesso-
al me, que constitui uma das marcas do PB e não ocorre esponta-
neamente no PE. Outra diferença é que no PE o pronome pessoal
de terceira pessoa não ocorre no nominativo na posição de objeto,
como em escolhe ele. Não vamos modificar esses aspectos, porque
queremos chamar atenção apenas para a questão do sujeito.

Mais uma vez, essa é uma propriedade da qual não temos consciên-
cia: simplesmente usamos ou deixamos de usar os pronomes na posição
de sujeito de forma natural, sem percebermos que estamos seguindo
uma regra e que essa regra, além de tudo, não é a mesma que rege a gra-
mática do PE. De novo, o professor de português pode explorar muitos
caminhos. Pode propor comparar o PE e o PB, comparando, por exem-
plo, as narrativas nas duas línguas, ou pode solicitar que um português
conte uma estória e que a mesma estória seja contada por um brasileiro
e comparar, pode ler receitas nas duas línguas, pode explicar definitude
e mostrar como intuitivamente lidamos com esse conceito, mesmo sem
ter consciência disso, etc.
143
O singular nu CAPÍTULO 17
17 O singular nu
Vamos agora apresentar uma diferença na interface entre a sintaxe
e a semântica e que só recentemente está sendo discutida na literatura
em linguística. Trata-se do uso bastante produtivo do que se convencio-
nou denominar singular nu no PB. Essa construção não ocorre no PE e
em nenhuma outra língua românica. Kabatek (2007) defende que essa
construção é um resquício do português antigo que não só se manteve
apenas no PB, mas se expandiu, dado que nas variedades mais antigas
do português não há tantos dados em tantos contextos de uso como
registramos no PB de hoje. Em sua pesquisa, Kabatek encontrou, em
bancos de dados do PB, os seguintes exemplos, nos quais o singular nu
vem sublinhado (repare especialmente no exemplo (47):

(43) Baleia está em extinção.

(44) Bebê chora muito.

(45) Maria comprou livro ontem.

(46) Pedro viu filme ontem a tarde.

(47) Bicicleta se arrebentou (Kabatek 2007).

Nenhuma dessas sentenças é gramatical no PE e em nenhuma ou-


tra língua românica. Elas são tão normais para os nossos ouvidos que,
mais uma vez, demorou um tanto de tempo para que os pesquisadores
percebessem a sua presença e sua importância na definição do PB atual.

Essa construção coloca muitas questões, em particular para a se-


mântica. Sem entrar nos detalhes, perceba que em (43) e em (44) temos
sentenças genéricas: não estamos falando de uma baleia em particular
ou de um bebê em particular, mas da espécie baleia e de bebês em geral.
Por sua vez, nas sentenças de (45) a (47) temos sentenças episódicas,
que dizem respeito a um evento em particular. Em (45) e (46), parece
claro que não estamos falando de um objeto específico, definido, mas

145
Construindo gramáticas na escola

também parece claro que não é o caso que se trata de um objeto não es-
pecífico, como em um livro e um filme respectivamente. Com um livro e
um filme interpretamos que foi apenas um livro e um filme e com o sin-
gular nu podemos ter vários livros e vários filmes ou apenas um pedaço
Ver Pires de Oliveira de filme. Finalmente, (47) é um problema, porque agora temos um caso
(2012) para uma aná-
lise semântica dessa de um evento específico e um indivíduo definido. Não é fácil conseguir
construção. uma teoria que dê conta de todos esses usos.

Mas esse é um lugar muito interessante para o professor explorar


as diferentes interpretações que temos dos sintagmas nominais. Seman-
ticamente, sintagmas nominais denotam indivíduos, mas, como pode-
mos ver pelos exemplos acima, há diferentes tipos de indivíduos e isso
transparece na gramática. Por exemplo, se de fato com (43) e (44) esta-
mos falando sobre a espécie, então temos no mínimo dois tipos de in-
divíduos na nossa ontologia: a espécie é um indivíduo diferente de você
Em semântica, traba- e eu porque ela tem a propriedade de estar em vários lugares no mes-
lhamos com modelos mo momento do tempo (pense na espécie baleia, por exemplo). Mas
de mundo. Nesses
modelos, temos os ob- há outros seres interessantes na ontologia, os indivíduos que não têm
jetos, que constituem contornos nítidos, como as massas, os indivíduos que são plurais, os
a nossa ontologia.
indivíduos como amor e lealdade. Essas questões nunca são exploradas
nas aulas de português, mas elas constituem um lugar interessante não
apenas para refletirmos sobre gramáticas e línguas – será que há espécie
em todas as línguas do mundo? -, mas também para questões mais filo-
sóficas sobre como é a relação entre linguagem e construção de mundo.

É possível também explorar as diferenças entre o PE e o PB: como se


faz uma generalização no PE? Como se expressa no PE o significado de
uma sentença como (45)? As línguas veem o mundo da mesma forma?

Outro fato curioso é que, como ocorre com os parâmetros sintáti-


cos, as estruturas semânticas não ocorrem isoladamente, elas vêm em
feixes. O fato de haver o singular nu no PB parece estar associado a ou-
tros fenômenos característicos dessa língua, em especial quando temos
comparação, intensificação e medidas. Vejamos alguns exemplos.

(48) João tem mais pedra que Maria.

146
O singular nu CAPÍTULO 17
Essa construção não existe no PE. Além disso, essa sentença pode
ser interpretada tanto como expressando que o João tem um maior nú-
mero de pedras do que a Maria, quanto que o João tem um volume
maior de pedras – imagine que o João tem apenas uma pedra muito
grande, enquanto que Maria tem 5 pedras bem pequenas. Essa possi-
bilidade levanta inúmeras questões semânticas que, infelizmente, não
podemos discutir. O mesmo acontece com as sentenças abaixo que de
novo não são possíveis no PE, mas ocorrem no PB: Comparação é outro
tema interessante
quando se estuda essas
(49) Tem um pouco de aluno no auditório. duas línguas. A expres-
são que nem tem senti-
dos diferentes no PB e
(50) Tem muito menino no elevador. no PE. Assim, a senten-
ça João come que nem
o pai tem diferentes
(51) Temos q decidir pra poder reservar um pouco de mesa neh interpretações.
alias...Vila sexta a noite eh uoh...
Esta sentença foi ex-
traída deste site www.
Uma construção também típica do PB e que, dessa vez sabemos, é orkut.com/Main#Com
um resquício do português antigo está exemplificada abaixo: mMsgs?tid=25041447
84598947774&cmm=
24933144&hl=en
(52) Todo menino chora.

Essa construção é agramatical no PE que utiliza (53) para expressar


o que (52) expressa. Mas note que (53) não é gramatical no PB (ou se é
gramatical tem uma interpretação bem estranha, todas as partes do me-
nino choram):

(53) Todo o menino chora. (PE; *PB)

É muito provável que essa construção com todo no PB esteja


ligada à existência do singular nu, embora essa seja ainda uma hipó-
tese a ser verificada.

É bom dizer que os quantificadores – e a comparação é um tipo


de quantificação – são um dos tópicos mais interessantes para serem
explorados nas aulas de português, juntamente com o professor de ma-
temática. Na semântica contemporânea, a quantificação relaciona con-

147
Construindo gramáticas na escola

juntos e é possível mostrar que lidamos intuitivamente com conjuntos,


no sentido matemático do termo, quando interpretamos as línguas na-
turais. É possível mostrar que vários raciocínios logicamente válidos são
melhor compreendidos através de sua tradução para conjuntos. Essas
pontes entre as aulas de português e as aulas de matemática podem ter
um efeito positivo nas duas áreas, porque se pode trabalhar os mesmos
conteúdos nas duas vias.

148
Mudanças sintático-semânticas recentes no PB CAPÍTULO 18
18 Mudanças sintático-
semânticas recentes no PB
Podemos também pensar em fenômenos sintático-semânticos que
aconteceram exclusivamente no PB nas últimas décadas. Justamente por-
que os exemplos são recentes, os dados que apresentamos na sequência
devem ser lidos com cautela – mudanças linguísticas levam um certo
tempo para se solidificarem (ou então desaparecem). Não obstante, é in-
teressante observarmos construções que usamos todo dia e constatar sua
estrutura, sempre lembrando que se trata de algo único do PB.

Nosso primeiro exemplo são os diversos usos do verbo dar, que


listamos abaixo:

(54) a. Será que dá?

b. De São Paulo a Brasília dá quase 1000 km.

c. De São Paulo a Brasília dá mais ou menos 1 hora de avião.

d. Garçom, quanto deu?

e. Deu! Não quero mais!

f. ...se ao te conhecer dei pra sonhar...

g. Dei uma pensada no assunto.

h. Dei uma cabeçada na porta.

i. Dá de ver a ilha do Campeche aqui de casa.

Provavelmente esses não são os únicos usos do verbo dar, e o


exercício interessante é justamente pensar em quantos significados di-
ferentes esse verbo tem e quais são os seus argumentos sintáticos. Se

149
Construindo gramáticas na escola

partirmos do uso canônico de dar, veremos que ele tem três argumen-
tos, o primeiro dos quais, o agente, é, em geral, animado, o segundo,
o objeto é, em geral, não animado, e o terceiro, o beneficiário (aquele
que recebe algo), pode ser animado ou não; e assim, bem simplifica-
damente, a estrutura do verbo dar relaciona dois argumentos com um
terceiro, devido a uma troca de posse:

(55) João deu a bola para o Pedro.

Mas nos usos que vimos acima, a estrutura sintático-semântica


do verbo é bem diferente; não apenas a quantidade de participantes
é diferente, mas também o seu tipo. Tomemos, por exemplo, será que
dá?; quais são os argumentos de dar nesse caso? Repare que aqui há
um complemento do verbo dar que está implícito e é introduzido pela
preposição para– ou pela preposição de (estamos novamente diante
de um caso de variação): será que dá para/de fazer? / para/de chegar
cedo?. Mas a preposição para ou de que segue o verbo dar nesse caso
não parece ter a mesma função que a preposição para que aparece em
(55), tanto que em (55) ela não está em variação com de – neste último
caso, ela relaciona um beneficiário ao restante da sentença. Que aná-
lise podemos dar para o verbo dar que aparece em será que dá?? Com
que outros usos de dar que listamos em (54) esse uso se assemelha?
Podemos imaginar que se trata, na verdade, de um outro verbo, dar
para/de, que tem um significado de possibilidade? Ou será que é o
mesmo verbo dar e é a preposição para/de que faz a diferença? Bom,
como sempre, não interessa a resposta correta, mas sim a reflexão que
leva às questões que acabamos de colocar.

Ainda pensando nessa construção dar para, repare que ela tem
um significado bem diferente em ...se ao te conhecer dei pra sonhar...;
neste caso, novamente, há variação com a preposição de, mas não pa-
rece que estamos falando de possibilidade e, e sim de começo; veja que
podemos parafrasear o trecho em questão do seguinte modo ...se ao te
conhecer comecei a sonhar.... Qual é a relação entre os vários exemplos
de dar (para/de)? Por que num caso interpretamos possibilidade e no
outro começo e ainda há um outro que se trata de um verbo com três

150
Mudanças sintático-semânticas recentes no PB CAPÍTULO 18
argumentos e o para indica o beneficiário? Qual é o significado básico
de dar que permite que ele seja usado nesses tipos de construção e
receba as interpretações sugeridas?

Um outro conjunto de exemplos associa ao verbo dar um signi-


ficado distinto, que tem a ver com resultado; considere: de São Paulo
a Brasília dá quase 1000 km, de São Paulo a Brasília dá mais ou menos
1 hora de avião e garçom, quanto deu?. Em todos esses casos, relata-
mos o resultado de um certo processo (um caminho por terra, por ar
e um consumo) através do verbo dar. Como você já deve esperar, as
perguntas a serem feitas aqui são as mesmas: se trata de um mesmo
verbo dar? Quantos argumentos tem o verbo dar nesses usos? Quais
são eles? Será que o dar na construção Deu! Não quero mais! também
pode ser analisado como expressando algum tipo de resultado?

Finalmente, nos últimos anos, os linguistas brasileiros oferecem in-


teressantes análises para o que é conhecido como a construção dar uma
X-ada, na qual o dar aparece como um “verbo leve”.

Verbos leves

Não há muito consenso a respeito dos verbos leves na literatura: para al-
guns autores, os verbos leves apresentam uma semântica relativamen-
te vazia, são simples portadores das marcas de tempo e concordância;
enquanto para outros autores, os verbos leves formam um predicado
complexo com o nome deverbal. Vejamos os exemplos abaixo:

(i) a. João deu uma martelada na mesa.

b. O cachorro deu uma mordida na criança.

Nos dois casos, o verbo dar não reage ao tipo de agente da sentença
[±humano], ou seja, não faz restrição de seleção; parece que o que se-
leciona o argumento externo é o nome deverbal martelada e mordi-
da, respectivamente. Tanto que uma sentença como O cachorro deu
uma martelada na mesa não é semanticamente possível.

Para saber mais sobre o assunto, ver Duarte (2003) .

151
Construindo gramáticas na escola

Veja os exemplos dei uma pensada no assunto e dei uma cabeçada


na porta; nesses casos, o termo que se junta ao dar na construção pode
ser derivada de um verbo (pensar > pensada) ou de um substantivo (ca-
beça> cabeçada), e as sutilezas de sentido se fazem claramente sentir
– dar uma pensada é bem diferente de pensar, e a pergunta interessante
é: qual é essa diferença? Como capturá-la sintática e semanticamente?

Como você pode ver, apenas analisar o verbo dar nos fornece ma-
terial para uma vida de estudos (sem exagero!), e estamos considerando
apenas uma das mudanças recentes que podemos detectar no PB.

As piadas

Como já mostrou Possenti (1988, entre outros), as piadas são uma


fonte interessante para vermos como é sofisticado o conhecimento
linguístico dos falantes e como ele é mobilizado na sua interpreta-
ção. Eis uma piada com dar bastante conhecida:

(i) - Deu para passar na prova?

- Não precisei, a prova tava fácil.

Fica como exercício você propor uma descrição linguística da piada.


Ela mobiliza diferentes usos do verbo dar. A pergunta tem um senti-
do para o falante e outro para o ouvinte.

Um outro caso que vale a pena mencionar tem a ver com o seguinte
tipo de construção, também muito comum na fala cotidiana:

(56) Vê dois pão (pães).

(57) Me vê 50 reais de gasolina.

(58) Vê meio quilo de patinho moído pra mim.

152
Mudanças sintático-semânticas recentes no PB CAPÍTULO 18
(59) Me vê uma porção de batatinha frita e 1 chope pra mim.

Todas as formas acima são bastante comuns no português fala-


do, inclusive a forma (59), com reduplicação do beneficiário (me e pra
mim), que certamente é considerada mais “incorreta” que as outras.

Mas o que há de interessante nesse tipo de construção? Bom, para


começo de conversa os itens de (56) a (59) são pedidos – são atos de fala
indiretos, portanto – e não constatações; mais do que isso, não são pedi-
dos para que alguém veja no sentido de enxergar, mas sim de fornecer,
dar, passar, vender, etc. Como é que o verbo ver pode significar um pe-
dido e não mais enxergar? Há pelo menos duas explicações: (i) segundo
uma delas, o verbo ver tem, na verdade, dois sentidos: o de enxergar e
o de “fornecer” (como exemplos de (56) a (59)), ou ainda o verbo ver
sofreu uma “ampliação” de seu significado, o que obviamente precisa
ser explicado; (ii) segundo a outra explicação, estamos diante de duas
estruturas diferentes, mas com um único verbo ver que tem, então, um
sentido mais abstrato, e estamos, portanto, diante de um caso de polis-
semia: há o verbo ver com o significado de enxergar e há o verbo ver que
resulta em pedidos, que tem, por sua vez, uma estrutura mais complexa,
que envolveria algo como um ‘se for possível’. Isso pode parecer muito
abstrato (e é!), mas tente pensar nos seguintes exemplos:

(56) Vê dois pães.

(56a) Veja se é possível eu ter dois pães.

(56b) Cheque/Verifique se é possível eu ter dois pães.

Uma sugestão de análise – mais ainda extremamente incipiente –


é que o sentido de pedido do verbo ver nasce numa construção mais
complexa, próxima ao que temos em (56b) – note ainda que o verbo ver
pode de fato significar cheque ou verifique (como em veja se é possível...).
A ideia é que a estrutura do meio, se é possível, se apagou, mas não o sen-
tido de pedido, que ficou atrelado à construção. Uma vez que se apaga o
se é possível... o resultado seria algo como (56c):

153
Construindo gramáticas na escola

(56a) Veja se é possível eu ter dois pães.

(56c) Veja [...] eu ter dois pães.

A construção eu ter é, na verdade, um indicativo de que o eu é o


beneficiário da ação, algo que pode ser refeito usando a preposição para,
como em pra mim, ou mesmo a forma me. Se isso estiver correto, chega-
mos finalmente às formas:

(60) Me vê dois pães.

(61) Vê dois pães pra mim.

Essa análise é certamente mais complexa, mas ela tem o mérito de


unificar os usos de ver sem precisar dizer que há dois verbos ver di-
ferentes, um para enxergar e outro para fornecer. Mais uma vez, cha-
mamos a atenção para o fato de que se trata apenas de mostrar quanta
coisa interessante há para ser vista nas mudanças recentes do PB, e não
de apresentar análises finais ou totalmente corretas – para nós importa
aqui muito mais a provocação do que qualquer outra coisa.

Como último exemplo, vamos analisar dois casos em que o apa-


gamento de um dos argumentos de um verbo pode resultar num verbo
com outro significado. Considere então os exemplos abaixo:

(62) A Maria se acha vaidosa.

(63) A Maria se acha (muito)!

(64) O João causou a maior confusão na aula.

(65) O João causou ao aparecer com sua namorada nova.

Os verbos achar-se e causar têm, normalmente, dois argumentos,


como exemplificam, respectivamente, (62) e (64). Contudo, os exem-
plos (63) e (65) trazem dados nos quais não faz muito sentido analisar

154
Mudanças sintático-semânticas recentes no PB CAPÍTULO 18
esses verbos como tendo dois argumentos: a Maria se acha o que exata-
mente em (63)? O que precisamente João causou em (65)? Nesses dois
casos, como adiantamos, a mudança na quantidade de argumentos cau-
sa também uma mudança de significado; um prato cheio para análises
sintáticas, semânticas, sociolinguísticas – afinal, são os jovens de certa
faixa e com certo nível de renda que usam tais construções mais corri-
queiramente – e históricas, pois esses dois exemplos são recentes e sua
história pode ser traçada de modo interessante.

155
Fechando algumas pontas CAPÍTULO 19
19 Fechando algumas pontas
É absolutamente necessário que professores de português no Bra-
sil saibam identificar certas propriedades do PB para não só poderem
entender melhor as transposições que os alunos fazem para a escrita,
mas, principalmente, que, ao invés de corrigir sem explicar, o profes-
sor possa explicar as diferenças e explorar essas diferenças construindo
diferentes gramáticas e mobilizando esse conhecimento na construção
de diferentes tipos de textos. A força de uma narrativa está também na
consistência dos personagens, um pescador de Caraguatatuba em São
Paulo não fala da mesma forma que um pescador em Mafra (Portugal)
e não se trata apenas, como vimos exaustivamente neste capítulo, de
diferenças prosódicas e lexicais, as línguas são diferentes.

Ultimamente muito se tem discutido sobre o ensino de gramática


na escola e, mais recentemente, nos currículos de Letras, um tópico que
retomaremos na conclusão deste pequeno ensaio sobre as aulas de por-
tuguês. Mas veja que se o professor não tiver uma base em gramática, ele
não vai entender as diferenças entre o PB e o PE, ele não vai enxergar no
texto do seu aluno a língua materna desse aluno e sem esse passo, ele vai
repetir a sua escola, ele vai corrigir sem entender e sem explicar o que
está acontecendo. Não explicamos neste capítulo muitos dos conceitos
sintáticos e semânticos, porque eles foram objeto dessas disciplinas es-
pecíficas. Mas sem esses conceitos, não conseguimos explorar nem mes-
mo minimamente as questões que apresentamos acima. E não basta,
como parece sugerir os Parâmetros Curriculares Nacionais, uma com-
preensão superficial, é preciso entender como as línguas funcionam e,
de fato, talvez uma única disciplina não seja suficiente para tanto. Mas, e
esse é um aspecto fundamental do ensino, o professor não encerra a sua
formação ao se formar, assim como o pesquisador não termina nunca a
sua formação. Educação é um processo e não um estado.

157
Conclusão
Geraldi (2006), em sua fala “Pesquisa em Linguagem na Contem-
poraneidade”, endereçada aos formandos de letras e linguística da Uni-
camp, por um caminho bem diferente, de crítica à visão científica que
Este artigo foi re-
aqui propomos, termina sugerindo a radicalização “na defesa de outras -publicado em Franchi,
Fiorin & Ilari (2011).
manifestações verbais como tão importantes ou até mais importantes do
Franchi et al. (2006) é
que aquelas que a tradição elevou à categoria de cânone”. É essa posição leitura obrigatória para
quem quer entender
radical que acreditamos que pode efetivamente fazer a diferença nas au-
melhor como a linguís-
las de português. Mas, diferentemente de Geraldi, não entendemos que tica entende gramá-
tica e também para
a linguagem é mais um modo de constituição da subjetividade do que
exemplos de como a
uma representação do mundo. A linguagem é ao mesmo tempo, como gramática pode e deve
estar na sala de aula.
bem lembra Franchi (2001) em seu famoso artigo Linguagem: Ativida-
de Constitutiva, a maneira de nos constituirmos enquanto sujeito na
medida em que, também por meio da linguagem, construímos o nosso
mundo (ou uma representação dele). Não há dicotomia entre sujeito e
mundo, mas mútua constituição.

Embora de perspectivas distintas, entendemos, como bem lembra


Geraldi, que é uma obrigação política e moral não apenas conversar
com os alunos sobre a língua que nós falamos, mas de levá-los a uma
posição crítica com relação à falsa crença, que tem subsidiado a exclu-
são do PB falado das aulas de português, de que há falas melhores e há
falas erradas. Esperamos que este livro tenha contribuído nessa direção.

Ao longo desse caminho, procuramos mostrar algumas ferramen-


tas que possibilitam não apenas a entrada de outras línguas na escola,
mas principalmente uma maneira construtiva de trabalhar a gramáti-
ca: ensinar os alunos a construírem gramáticas, para assim ensiná-los
a metodologia científica e torná-los conscientes das diferentes línguas,
porque, como já salientamos, essa pode ser uma maneira muito eficien- No Brasil, essa posição
te de aquisição da escrita, por exemplo. Vários autores não apenas já foi defendida por Peri-
ni (1997), Basso e Pires
mostraram que ensinar a construir gramáticas é uma ferramenta im- de Oliveira (2010),
portante para que os alunos aprendam ciência, mas também que esse Basso et al. (2012).
exercício interfere positivamente na maneira como os alunos veem a
sua língua e portanto constroem a sua identidade, além de aumentarem

159
Construindo gramáticas na escola

sensivelmente seu desempenho nas outras matérias. Construir gramá-


ticas, despertando nos alunos a curiosidade, o espírito de descoberta,
Sobre o papel da
tão característicos da empreitada científica, é sem dúvida alguma uma
curiosidade no ensino aventura e o professor deve estar preparado para o novo, para hipóteses
ver Basso & Pires de
Oliveira 2010, 2012.
que ele mesmo não considerou.

Quando pensamos em pôr a linguística na sala de aula – enquanto


ciência – e acionar o nosso conhecimento linguístico para entender o
PB, que é afinal a língua que falamos, julgamos que um dos aspectos
mais importante é restaurar o fascínio pela língua que falamos; afinal
trata-se de um sistema complexo, altamente eficiente, que dominamos
muito rapidamente – antes dos 5 anos já somos donos da nossa lín-
gua – e sem necessidade de ensino sistemático. Mesmo as crianças mais
abandonadas aprendem a sua língua, mesmo aquelas severamente alija-
das da convivência humana têm a sua língua. Quanto mais próximo da
língua do aluno for o mote de investigação, maior será a sua curiosidade
e maior serão os efeitos não apenas na construção da sua subjetividade,
da sua identidade, mas também na sua capacidade de se mover em ou-
tras línguas, inclusive a escrita. Basso & Pires de Oliveira (2012) enten-
dem, seguindo os passos do físico Richard Feynman (1918-1988), que
a mola propulsora do conhecimento é a curiosidade; não há nada mais
eficiente do que atiçar a curiosidade dos alunos para que eles tenham
interesse em aprender algo. E não é nada complicado pensar em algo
próximo aos alunos quando se trata da língua, e que não seja artificial
como a descrição de uma língua que não é sua. Olhar com o aluno a sua
língua e mostrar como ela é fascinante. É esse o nosso convite!

Feynman no Brasil

Richard Feynman ganhou o Prêmio Nobel de Física em 1965 e es-


teve no Brasil na década de 50, ensinando física a convite de César
Lattes. Feynman fez uma crítica aguda e incisiva da educação brasi-
leira. Ao longo de suas aulas, ele reuniu diversas impressões sobre o
sistema educacional brasileiro, mais diretamente ligadas ao ensino
de Física e demais ciências naturais, e concluiu que não se ensinava
ciência no Brasil. Eis o trecho retirado de sua biografia:

160
Daí então eu disse: “O principal propósito da minha apresen-
tação é provar a vocês que ciência alguma está sendo ensi-
nada no Brasil!” (Leighton, 2006, p. 222; grifos nossos)

São vários os aspectos da educação em ciência no Brasil da época


que instigaram o famoso cientista a fazer uma fala tão polêmica,
como o trecho abaixo deixa claro:

Uma outra coisa que eu nunca consegui que eles [i.e., os alunos]
fizessem era colocar questões. Finalmente, um estudante me ex-
plicou: “Se eu fizer uma pergunta durante sua aula, depois todos
ficarão me dizendo: ‘Por que você está desperdiçando o tempo da
aula? Estamos tentando aprender alguma coisa aqui. E você fica in-
terrompendo o professor com perguntas’”.

Era um tipo de competição individualista, na qual ninguém sabe o


que está acontecendo e todos ficam minimizando os outros como
se eles de fato soubessem. Todos fingiam que sabiam, e se um es-
tudante admitisse por um instante que alguma coisa estava confusa
ao fazer uma pergunta, os outros adotavam uma atitude de superio-
ridade, agindo como se nada estivesse confuso e dizendo a ele que
ele estava desperdiçando o tempo dos outros.

Expliquei a utilidade de se trabalhar em grupo, de discutir dúvi-


das, analisá-las, mas eles também não faziam isso porque estariam
deixando cair a máscara se tivessem de perguntar alguma coisa a
outra pessoa. Era uma pena! Todo o trabalho que faziam, pessoas
inteligentes, mas que se colocavam nessa estranha forma de pensar,
nessa forma esquisita de autopropagar a “educação”, que é inútil –
gritantemente inútil! (idem, p. 221)

Em sua autobiografia, ele diz que fez tal provocação com a melhor
das intenções, procurando mostrar que o sistema de educação no
Brasil era baseado em decorar coisas, em saber a resposta correta
sem saber o que ela significa. Essa situação irritava Feynman sobre-
maneira porque para ele, como ele deixou bem claro em diversas

161
Construindo gramáticas na escola

passagens de todos os seus escritos, saber algo não é o mesmo que


apenas dispor de definições, muito menos decorar.

Além disso, para Feynman, a principal motivação para alguém saber


algo – entender algo – é simplesmente porque é “legal” entender
as coisas, é prazeroso entender como as coisas funcionam, suas ra-
zões, suas consequências. Em suas duas autobiografias, o subtítulo
sempre envolvia algo como “as aventuras de um sujeito curioso” e é
justamente a curiosidade a mola propulsora do conhecimento para
Feynman. O conhecimento não deve ter uma finalidade prática – se
ele tiver, assim que a finalidade se exaure, o conhecimento pode ser
deixado de lado; mas isso não quer dizer que o conhecimento não
possa ter finalidade prática – pode sim, mas essa não pode ser a sua
principal motivação. Investigar vale a pena porque podemos enten-
der a natureza (e nós mesmos) e essa é uma aventura fascinante.

Feynman também perguntou aos estudantes no Brasil porque eles


anotavam tudo em suas aulas, impressionado em ver como os alu-
nos decoravam os conteúdos dos conceitos de física sem, no entan-
to, relacioná-los com o mundo à sua volta, sem ver que os conceitos
físicos não eram apenas para serem decorados, mas tratavam de
coisas tangíveis. Eis o relato, em sua autobiografia, de uma conversa
com um aluno sobre esse tópico:

Depois da palestra, conversei com um estudante: “Vocês fizeram um


monte de anotações – o que vão fazer com elas?”

“Ah, nós estudamos essas anotações”, ele disse. “Nós vamos ter uma
prova”.

“Como será essa prova?”

“Muito fácil. Eu posso até te dizer agora uma das questões”. Ele olhou
para seu caderno e disse “Quando dois corpos são equivalentes?” E
a resposta é “Dois corpos são equivalentes se torques iguais produ-
zirem acelerações iguais”. Então, como você pode ver, eles poderiam

162
passar nas provas, e “aprender” todas essas coisas, e não saber abso-
lutamente nada, exceto o que eles memorizaram.

(Leighton, 2006, pp. 219-220 tradução nossa)

Tamanho é o espanto de Feynman que ele vai até o departamento de


engenharia e constata a mesma coisa: para o caso da Engenharia, assim
como para o caso da Física, o único interesse dos alunos nas aulas é reu-
nir material para os exames, e nada mais. Essas e outras impressões re-
sultaram na sua constatação de que não se ensinava ciência no Brasil...

A título de conclusão, vamos exemplificar com algumas possibili-


dades de projetos de estudo e de pesquisa a serem desenvolvidos pelos
professores em sala de aula. É bom salientar que esses são exemplos,
cujo objetivo é mostrar uma certa didática e uma metodologia de ensi-
no, e não um modelo para ser copiado. Como já dissemos, mas é sempre
bom enfatizar, cada um desses casos dá ensejo a projetos de pesquisa
e de estudo. Não são questões para serem resolvidas em uma ou duas Não vamos aqui
apresentar novamente
aulas. Nas várias falas que fizemos sobre educação temos apresentado esse exemplo, que
um estudo de caso sobre o item puta, que tem uma gramática bastante tem despertado tanta
curiosidade, mas você
clara, e já vivemos a situação em que os professores repetem esse exem- encontra os textos na
plo na sala de aula da mesma forma que os alunos repetem os conceitos webteca. Basso & Pires
de Oliveira (2010), Bas-
decorados. Nossa expectativa não é essa. É antes um convite para refletir so & Pires de Oliveira
sobre a sua própria língua e descobrir suas sistematicidades. (2012).

Uma boa maneira de iniciar a conversa com os alunos é imagi-


nando que cada um deles é um cientista que veio de um outro pla-
neta – digamos, uma cientista de Marte. Ela acabou de descer de sua
espaçonave no Brasil e ela quer aprender PB de tal forma que ela passe
por uma falante nativa. Nesse ponto, o professor pode conversar sobre
o que é aprender uma outra língua, explicar que que há estágios em
sua aquisição, e que como a cientista aprendendo português, eles vão
passar por fases de aprendizagem até dominarem uma outra língua
(talvez nesse ponto desenvolver um projeto com o professor de inglês
ou de espanhol). O ideal é que o professor consiga levar os alunos a

163
Construindo gramáticas na escola

perceberem a situação radical de contato com uma língua absoluta-


mente desconhecida. Uma possibilidade é colocá-los para assistir a
trechos de entrevistas, filmes, documentários, que sejam em uma lín-
gua desconhecida, ou explorar as possibilidades na escola – quem sabe
há falantes de outras línguas – ou na localidade – quem sabe há falan-
tes de outras línguas próximos a escola, na comunidade. Claro quanto
mais distante a língua, mais interessante pode ser a aula. Coloque para
os alunos a situação de aprender uma outra língua sem nenhum outro
suporte – sem tradutor, por exemplo.

Suponha, então, que essa cientista já coletou alguns dados do PB e


está tentando fazer sentido dos dados que ela coletou de conversas e de
blogs (ela acha a nossa internet muito pouco sofisticada, muito lenta...,
mas recolheu alguns dados dali).

Ela ouviu atentamente várias conversas de brasileiros e percebeu


que às vezes eles dizem /não/ e às vezes eles dizem /nuN/ em contextos
que eles parecem estar negando. Ela também notou que há um outro
contexto que eles usam o /nuN/ e ela está tentando fazer sentido desse
item lexical. Ela quer saber não apenas o que ele significa, mas também
onde ele ocorre e se há um ou dois itens lexicais. Ela já estudou um pou-
co sobre as línguas humanas e sabe que muitas vezes um mesmo som
tem diferentes sentidos, tão diferentes que são palavras distintas. Por
exemplo, ela detectou as seguintes conversas:

(1) Num é só vê.

(2) Num é verdade que a Maria saiu.

(3) Ele está num lugar diferente.

(4) Num tenho tempo pra explicá.

(5) Não ele ainda num veio.

(6) Ela num veio.

164
(7) Ele tem um restaurante num bairro distante.

Com base nesses dados, a cientista construiu uma primeira hipó-


tese: nessa língua, há dois /nuN/: /nuN/1 indica um lugar; /nuN/2 é
uma negação. Veja o professor deve explorar com os alunos um certo
distanciamento de suas línguas. É claro que todos nós sabemos que há
esses dois /nuN/, mas a ideia é “desautomatizar” a relação do falante
com a sua língua, de forma que ele comece a prestar atenção em como
ele fala, na cadeia sonora e se coloque na posição de um estrangeiro de
sua própria língua. Essa é uma posição poderosa: olhar de fora o que
é de dentro. Esses dados são também muito fáceis de serem consegui-
dos: basta gravar uma conversa informal e eles vão aparecer. O professor
pode iniciar perguntando se os alunos já perceberam que essa forma
fonética tem significados bem diferentes. Pode, em seguida, com a ajuda
dos alunos, construir um corpus com dados que os alunos fornecem.
Um outro caminho é procurar esses dados em corpora, quer os que já
dispomos, quer construir novos corpora – gravar conversas (os alunos
adoram esse tipo de trabalho) e transcrever – ou pesquisar na internet,
em livros literários (contemporâneos, que busquem a oralidade).

O próximo passo depois que temos uma hipótese a partir de um


corpus – a hipótese de que há dois /nuN/ no PB, por exemplo – é testá-la
ou verificá-la; não apenas verificar se outros dados comprovam essa hi-
pótese, mas principalmente tentar construir exemplos que sejam agra-
maticais, ou seja, que refutem a hipótese. Esse é um trabalho bastante
difícil: imaginar aquilo que não é realizado. No caso do /nuN/ indicador
de lugar, uma hipótese facilmente verificada é que ele não irá ocorrer
nunca após o nome (ou substantivo); a sentença em (8) é agramatical,
por causa do tipo de língua que o PB é:

(8) * Ele está lugar diferente num.

Pode parecer bobagem testar uma sentença como (8), afinal é óbvio
que não falamos assim. Mas nós vimos que há línguas em que isso ocorre
e podemos explorar essas outras línguas. Além disso, a ordem é um ele-
mento importante para decidirmos se estamos diante de um /nuN/ de

165
Construindo gramáticas na escola

lugar ou de um /nuN/ negação. Qual é a ordem em que esses elementos


aparecem? Compare (3), repetida abaixo como (9), e (10):

(9) Ele está num lugar diferente.

(10) Ele num está num lugar diferente.

Se você brincar com a ordem desses elementos, verá que ambos


têm uma posição bem fixa; eles não se movem ao longo da sentença.
Mas nem sempre é esse o caso. Não apenas há movimento nas línguas
– por exemplo, podemos mover sintagmas: A vizinha, o João beijou, em
que a vizinha foi movida para uma posição mais à esquerda –, mas há
elementos que se movem sozinhos, por assim dizer. Veja as diferentes
posições em que todos pode ocorrer:

(11) (Todos) os meninos (todos) compraram (todos) um presente.

Forçando a entonação é possível inclusive colocar o todos na posi-


ção mais à direita da sentença. Mas não é isso o que ocorre com o num,
com nenhum deles.

Retornemos ao nosso /nuN/ e a hipótese de que há apenas dois


/nuN/: a negação e a indicação de lugar. Agora, investigue com os alu-
Repare a naturalidade nos se essa hipótese está correta. Tente levá-los a imaginar outros usos
dessa última sentença.
de /nuN/. Certamente, vai aparecer outros usos. Você acha que essa pri-
meira hipótese está correta? Não, essa hipótese não está totalmente cor-
reta, em particular porque temos outros usos de /nuN/ que não indicam
lugar. Reflita sobre sentenças como:

(12) Ela estava num estado deplorável.

(13) O casamento foi num dia chuvoso de abril.

Que hipótese você formularia para descrever esses usos de /nuN/?


Há como já vimos duas soluções clássicas para esse tipo de problema: ou
há vários /nuN/ na língua – e aqui é possível discutir a questão da plau-

166
sibilidade psicológica dessa hipótese – ou há um item /nuN/ no nosso
léxico mental e os diferentes usos podem ser explicados por associações
via analogia (ou metáfora).

Vejamos mais de perto esse problema. Temos que decidir quantos


/nuN/ temos na nossa língua. Imagine que a nossa cientista quer cons-
truir um dicionário e quer decidir as entradas lexicais que irão constar
nesse dicionário. Aqui o professor pode realizar um trabalho com os di-
cionários que temos e verificar se a palavra num aparece nesses dicioná-
rios e como ela aparece. Da rápida pesquisa que realizamos, verificamos
que há dicionários em que essa palavra não consta e há dicionários que
colocam a entrada num e dão, em linhas gerais, a seguinte definição: pre-
posição em mais artigo indefinido um. Não encontramos um dicionário
que elenque o num negação; portanto, há muito a ser explorado aqui: por
que em alguns dicionários essa palavra não consta?; por que naqueles em
que ela consta só aparece a descrição sintático-morfológica da contração
da preposição com o artigo indefinido?; por que o num de negação sim-
plesmente não está dicionarizado, embora a palavra não esteja? Mas há
ocorrências na internet de num como negação – há um blog num credito
http://www.numcredito.net/ e outro num disse? http://numdisse.word-
press.com/– e não há dúvidas de que em corpora oral vamos ter muitos
exemplos de num indicando negação. O que isso indica? Note ainda que a
descrição do dicionário fala em preposição e artigo indefinido... esse pode
ser um ensejo para discutir metalinguagem e sua adequação.

Uma hipótese bem plausível é que o num da negação é um item di-


ferente dos outros usos de num, aqueles que podem ser substituído por
em+um. Afinal, todos os usos, menos a negação, podem ser reescritos
como em + um. Esse é um forte indício de temos efetivamente pelo me-
nos dois itens lexicais, mas é preciso refazer a hipótese da cientista mar-
ciana: /nuN/1 = em+um; /nuN/2 = negação. Com relação ao /nuN/1,
podemos nos perguntar se é possível agrupá-los em uma única entrada
lexical e qual seria essa entrada. Agora a questão passa a ser sobre a
semântica do em e a semântica do artigo indefinido um. Não vamos
explorar esse percurso, mas ele certamente levanta várias conversas.

167
Construindo gramáticas na escola

De posse da ideia de que há um num negação, nossa cientista mar-


ciana formula uma nova hipótese: /nuN/ quando indica uma negação e
A negação é o me- /não/ têm o mesmo significado e têm a mesma distribuição, isto é, eles
canismo que nos ocorrem nos mesmos lugares nas sentenças. A tarefa agora é verificar se
permite rejeitar um
estado de coisas como essa hipótese está correta. O primeiro passo, sempre, é fazer um levanta-
verdadeiro. Se afir- mento de usos de não e num e compará-los. Em seguida, ver se em todos
mamos que João não
veio, afirmamos que é os lugares que o não aparece podemos substituir pelo num. Eis uma lista
falso que ele veio. inicial, criada em laboratório apenas para podermos mostrar o raciocínio:

(14) O João veio? Não.

(15) A Maria não saiu.

(16) A Maria não é bonita, é linda.

(17) Não necessariamente, o João é esperto.

(18) Essa embalagem é não reciclável.

(19) Esse abridor não é prático.

(20) Eu não falei isso não.

(21) Essa medida é não constitucional.

(22) Esse quadro é não representativo da verdadeira situação.

(23) O dia tem apenas 16 horas e não mais 24 horas.

Faça as substituições de para não para num e formule a regra para o


uso de num. Em seguida, faça uma predição negativa, uma sentença que
você acredita que é agramatical com o num. A sua hipótese se verifica?
Você chegou a conclusão de que o num só ocorre antes do verbo conjuga-
do (finito), anteposto ao verbo? Essa hipótese está correta? O que dizer de:

(24) Eu num te falei que ele vinha.

168
A sentença em (24) é um contra-exemplo a sua generalização?
Qual é então a generalização? Veja que você terá que levantar um outro
tipo de dados agora.

O caminho é então explorar outras “palavras” que tenham esse


mesmo comportamento e se perguntar que tipo de “palavra” é essa.
Esse tópico vai nos levar para a morfologia e a diferença entre morfe-
ma livre e morfema preso.

Um exercício parecido pode ser feito analisando duas maneiras dos


falantes se referirem a seus interlocutores, às vezes eles usam a forma você
e às vezes eles usam a forma cê. Mas não é sempre que podemos trocar
uma forma pela outra e sabemos isso muito bem, mesmo que não tenha-
mos nunca prestado atenção nesse fato e não saibamos formular qual é a
regra para seus usos. Veja como o proferimento abaixo é estranho:

(25) * Encontrei cê ontem.

Podemos ter duas formas na posição de objeto – ocê e você – mas


não podemos ter cê. Faça um levantamento, usando a sua intuição, de
quando é possível a redução de você para cê. Há uma regra?

Outro tópico que merece atenção dos professores de português está


relacionado aos verbos, ao reconhecimento das classes verbais e do que vem
a ser identificado como complemento verbal, que é rotulado como objeto
pela gramática tradicional (GT). O aluno se vê perdido quando tem que
decorar as listas de verbos da GT. É muito complicado para um aluno, que
foi instruído nos moldes tradicionais, classificar o verbo comer como tran-
sitivo direto e analisar sintaticamente uma sentença simples como (26):

(26) Pedro comeu muito na festa.

Este aluno acaba classificando o constituinte muito como o com-


plemento do verbo comer, uma vez que decorou que tal verbo faz parte
do grupo dos verbos transitivos diretos que devem aparecer junto com
um objeto. Como ele não acha um objeto aparente (e ninguém disse que

169
Construindo gramáticas na escola

pode haver elementos que estão presentes na interpretação, mas não são
explicitamente falados), ele tem duas alternativas: ou ele considera que
comer é um verbo intransitivo ou que muito é o objeto. Nos dois casos, a
reação convencional do professor é considerar que o aluno errou. Uma
outra postura é entender o raciocínio que o aluno realizou para respon-
der de um ou de outro modo.

Além disso, o que fará este mesmo aluno diante de sentenças como
as de (27)?

(27) a. Pedro comeu dez fichas na primeira rodada.

b. Pedro comeu apressado.

c. Pedro comeu o pastel.

d. O pastel, Pedro comeu no bar.

Seriam todas elas analisadas da mesma maneira? Em todas as sen-


tenças o verbo comer apresenta o mesmo sentido e tem um complemen-
to realizado fonologicamente? O que está por trás dessa situação?

Para que haja uma boa compreensão por parte do aluno, é mui-
to mais fácil que o professor trabalhe a noção de núcleo da sentença e
complementação verbal antes de solicitar que o mesmo memorize uma
classificação de verbos de forma incoerente e inconsistente. A ideia é
que o professor comece discutindo esses dados com os alunos e ava-
liando as hipóteses que eles irão levantar. Pode partir da intuição de
núcleo, perguntando qual é o elemento principal da sentença. O núcleo
é o elemento principal da frase, aquele que desencadeia um evento/uma
cena. Vamos exemplificar com a sentença (27d): qual é o núcleo desta
sentença? Quantos elementos se combinam com este núcleo para que o
evento seja bem descrito e a sentença seja sintaticamente bem formada?

Verificaremos que o núcleo é o verbo comer, porque ele dá o contorno


básico do evento – ele responde a pergunta: que evento está sendo descri-

170
to? Trata-se obviamente de um evento de comer. Se comer é o núcleo, é ele
que requer um elemento que desempenhe o papel de “comedor” e outro
elemento que desempenhe o papel de “comido”; observamos, ainda, que o
“comedor” é o Pedro, que aparece antes do verbo, e o “comido” é o pastel,
que não está posicionado na sua posição natural – que é depois do verbo.
O que aconteceu neste caso é que o complemento do verbo sofreu um mo-
vimento para uma posição à esquerda, uma posição de tópico, como já vi-
mos no capítulo sobre o PB. O importante é saber que, mesmo deslocado,
o constituinte o pastel continua sendo o complemento interno do verbo.

Você já deve ter percebido que, além do “comedor” e do “comido”,


há um outro elemento na sentença (27d). O sintagma preposicional no
bar não é selecionado pelo núcleo verbal, mas contribui para a descrição
da cena. A questão agora é fazer com que o aluno diferencie os elemen-
tos que são imprescindíveis para o evento daqueles que fazem apenas
“figuração”, não são essenciais, embora tenham uma função na descri-
ção do evento; ou, melhor dizendo, não são selecionados pelo núcleo
verbal. Tanto é assim que o constituinte no bar poderia ser retirado da
sentença, sem causar danos à formação da mesma. Como sabemos isso?
Porque mesmo sem no bar temos uma sentença com sentido comple-
to, isto é, conseguimos dizer se a sentença é verdadeira ou falsa: ela é
verdade se Pedro comeu um pastel particular e falsa de outro modo.
Compare com iniciarmos uma conversa dizendo João bateu; sem mais
informações sobre o que ou em quem ele bateu , não temos uma senten-
ça completa; não conseguimos dizer se ela é verdadeira ou falsa.

O professor pode solicitar aos alunos que cada um monte o seu


próprio banco de dados. Primeiro eles devem extrair sentenças de jor-
nais, revistas, blogs, até mesmo de páginas do facebook; em seguida,
os alunos devem analisar as sentenças, separando-as de acordo com o
núcleo verbal e os seus complementos; por fim, cada um apresentará a
sua classificação dos verbos de acordo com o seu próprio corpus. Final-
mente, essas classificações podem ser comparadas e a sala pode cons-
truir um dicionário da valência desses verbos. Como vimos no capítulo
anterior pode acontecer de um “mesmo” verbo ter valências diferentes.

171
Construindo gramáticas na escola

A partir de um exercício como este, o aluno verificará que há uma


lógica por trás do agrupamento dos verbos e que, dependendo do tipo
de sentença analisada, o complemento do verbo pode não aparecer, mas
apenas ficar subentendido, como é o caso de (26) e (27b); em outros ca-
sos, o complemento pode aparecer deslocado, como em (27d); o verbo
também pode adquirir um sentido estendido, como no caso de (27a) e
nesse caso não é mais possível suprimir o complemento. As possibilida-
des são muitas e quando o aluno apenas memoriza uma lista de verbos,
dificilmente conseguirá fazer uma análise sintática satisfatória.

Dentro deste tópico, o professor ainda pode explorar a inadequa-


ção da GT em classificar verbos que têm comportamentos diferentes
dentro de uma mesma categoria, a dos intransitivos. Vamos observar os
dois grupos de sentenças apresentados em (28) e (29):

(28) a. O João telefonou.

b. O Pedro trabalha todos os dias.

c. A Maria viajou para São Paulo.

d. A Ana dormiu cedo.

(29) a. O biscoito acabou.

b. A empresa faliu.

c. O gato caiu da escada.

d. A encomenda chegou.

De acordo com a GT, todos os verbos destacados nas sentenças em


(28) e (29) são classificados como intransitivos porque selecionam ape-
nas um constituinte, sendo este “aquele que pratica a ação”. Será mesmo
que podemos afirmar isto para o grupo de sentenças em (29)? Podemos
dizer que os constituintes que aparecem antes do verbo nas sentenças

172
em (29) praticam uma ação? Ao que tudo indica estes constituintes são,
de alguma forma, afetados por uma ação; não se comportam como os
constituintes que antecedem o verbo nas sentenças em (28), já que nes-
sas sentenças esses constituintes de fato praticam a ação. Os alunos não
são chamados para analisar a diferença que aparece na classe dos verbos
que selecionam um único constituinte para compor um evento.

Inacusativos e Inergativos

Uma das mais importantes descobertas da gramática gerativa foi


mostrar que existe uma distinção na classe dos verbos que sele-
cionam um único constituinte (um único argumento). Permultter
(1976), numa perspectiva semântica, e Burzio (1986), numa pers-
pectiva sintática, mostraram evidências de que há verbos que se
comportam como os que aparecem nas sentenças em (28), cha-
mados de inergativos, e há verbos que se comportam como os que
aparecem nas sentenças em (29), denominados de inacusativos ou
ergativos. Essa diferença aparece em várias línguas na escolha do
auxiliar. Por exemplo, em francês, os verbos que pedem o auxiliar
être para formar o passé composé são todos inacusativos: Je suis
allé. Os inergativos pedem o auxiliar avoir: J’ai téléphoné. A mesma
situação ocorre em italiano: os verbos inacusativos pedem o auxiliar
essere para formar o passado próximo – Gianni è arrivato , enquan-
to os verbos inergativos pedem o auxiliar avere neste mesmo con-
texto – Gianni ha telefonato.

O mesmo tipo de fenômeno acontece nas sentenças que estão na voz


passiva. Neste caso, o constituinte que está na posição de sujeito não pra-
tica nenhuma ação, apenas é afetado por ela. Vejamos a sentença (30):

(30) Um navio foi afundado pelos guerrilheiros.

Você consegue imaginar uma situação na qual o navio é o provoca-


dor do “afundamento”? Está claro que a ação de afundar foi provocada
pelos guerrilheiros, sendo que este constituinte poderia ser suprimido

173
Construindo gramáticas na escola

da sentença sem causar danos à interpretação da mesma. Muitos alu-


nos não conseguem analisar as sentenças passivas porque memoriza-
ram que o sujeito é “o ser que pratica a ação”, mas no caso das passivas
tal definição não funciona. Se o professor de português diferenciasse
com os alunos a função sintática de sujeito da interpretação semântica de
agente, facilitaria muito a análise da sentença. Há muitos casos em que
a posição de sujeito pode ser preenchida por um elemento que não é o
agente da sentença. Vejamos:

(31) a. Maria parece estudar todos os dias.

b. Maria deseja estudar todos os dias.

Nas duas sentenças em (31) o sujeito é o constituinte Maria; será


que este mesmo sujeito tem o papel de agente nas duas sentenças? Va-
mos observar mais alguns exemplos:

(32) a. Pedro parece trabalhar sempre. (33) a. Pedro deseja trabalhar


sempre.

b. O gato parece beber leite. b. ?O gato deseja beber leite.

c. A pedra parece rolar da ladeira. c. *A pedra deseja rolar da ladeira.

d. A tristeza parece ter fim. d. *A tristeza deseja ter fim.

e. Parece nevar na serra. e. *Deseja nevar na serra.

O que nos mostram os dois blocos de sentenças? A primeira obser-


vação é que não é qualquer tipo de constituinte que pode aparecer na
Esta discussão já foi posição de sujeito das sentenças em (33), ou, melhor dizendo, não é qual-
abordada na disciplina
Sintaxe do Português quer elemento que pode se combinar com o verbo desejar. O mesmo não
e aparece em mais se verifica nas sentenças em (32); nestas, o verbo parecer não impõe res-
detalhes em Mioto et
al (2007), Novo Manual trição de seleção sobre aquilo que vem a ser o sujeito da sentença. Outra
de Sintaxe. observação é que para ser sujeito do verbo desejar o elemento deve ser,
pelo menos, mais animado, como é o caso de Pedro (33a) e de gato (33b).

174
O professor pode juntamente com os alunos construir hipóteses para
dar conta da diferença entre os verbos que se comportam como parecer
e os verbos que se comportam como desejar. Eles podem levantar outros
verbos que têm esse mesmo comportamento e procurar generalizações.
Construir uma gramática para esses verbos. Além disso, o professor pode
observar com os alunos, partindo de dados como os apresentados em (28)
e (29), que a classe dos verbos intransitivos não é homogênea. Tal ob-
servação pode ser feita por meio de argumentos sintáticos e semânticos
Mais uma vez pode levantar essas classes e construir gramáticas para elas,
mobilizando ativamente vários conceitos gramaticais.

As aulas de português terão um ganho acentuado quando o profes-


sor não se limitar a apenas rotular as sentenças (dar “nomes aos bois”),
mas analisá-las de fato; refletir sobre elas; fazendo com que os alunos
entendam como os elementos se combinam até formar as sentenças. O
aluno passa a compreender que em toda sentença há um núcleo, que
descreve o evento, e que este núcleo seleciona elementos para compor
esse evento, sendo alguns desses elementos essenciais – isto é, sem eles
não temos a expressão de um pensamento completo, não somos capazes
de dizer se a sentença é verdadeira ou falsa - e outros acessórios; depois
de ter identificado tudo isso é que o aluno terá condição de classificar
a sentença. E mais, se o professor tem noção da pergunta básica: como
é esse conhecimento que só nós temos? Como é uma língua? Ele pode
mostrar aos alunos que o que estamos fazendo é o mesmo trabalho do
físico, do químico, estamos construindo um modelo para um fenômeno
natural. Desta forma, as aulas de português deixarão de ser algo mecâ-
nico e ineficiente e, certamente, passarão a despertar a curiosidade dos
alunos em identificar e reconhecer as propriedades da sua língua.

É esse o nosso convite. Ele não é fácil, mas estamos sempre à dis-
posição para ajudá-los nessa empreitada. Basta enviar uma mensagem
para qualquer um de nós.

175
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