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gramáticas na escola
8º
Período
Roberta Pires de Oliveira
Renato Miguel Basso
Sandra Quarezemin
Florianópolis - 2013
Governo Federal
Presidência da República
Ministério de Educação
Secretaria de Ensino a Distância
Coordenação Nacional da Universidade Aberta do Brasil
Comissão Editorial
Tânia Regina Oliveira Ramos
Silvia Inês Coneglian Carrilho de Vasconcelos
Cristiane Lazzarotto Volcão
Equipe de Desenvolvimento de Materiais
ISBN: 978-85-61482-61-9
CDU: 806.90-5
Unidade B ...........................................................................................45
4 Línguas e gramáticas ..................................................................................49
5 A faculdade da linguagem........................................................................59
6 O que as crianças nos dizem? ..................................................................71
Unidade C...........................................................................................79
7 O dado negativo e o erro ..........................................................................85
8 O procedimento científico ........................................................................91
9 O procedimento linguístico .....................................................................97
Conclusão........................................................................................ 158
Paulo Leminski
A
s línguas humanas são fascinantes. Esperamos que este
livro seja um convite para você parar e prestar atenção
nelas, em especial, na língua que você fala em casa, na
língua da poesia de rua, do encontro amoroso, da fofoca, da se-
dução e da propaganda – a língua que é você, que te faz sentir
em casa. Ela é tão normal, tão natural, que parece ser sem impor-
tância, superficial. É talvez porque somos tão a nossa língua que
perdemos a dimensão da sua complexidade. Mas, preste atenção
nas suas conversas e se pergunte sobre como elas ocorrem: como é
possível que possamos entender o que o outro está nos dizendo e
até mais, como conseguimos “ler a mente” do outro para além do
que é dito, adivinhar intenções, sacar piadas, ler as entrelinhas das
falas. Se você parar mesmo e refletir vai se impressionar, não há
dúvidas. Repare, por exemplo, nas crianças, como elas rapidamen-
te aprendem a falar. Coloque-se questões sobre a sua língua, sobre
as línguas em geral: quantas línguas são faladas no mundo?; como
são essas línguas?; elas são muito diferentes da sua, da minha?;
como surgiram as línguas?; de onde elas vieram?; por que algumas
pessoas perdem a sua língua?; são tantas as perguntas que pode-
mos nos fazer quando começamos a pensar sobre as línguas... Ou
será que você, quando pensou na sua língua, lembrou que você não
sabe falar direito, que você fala errado e que tem vergonha dela?
Por que temos vergonha da língua que falamos? De onde vem esse
mito de que há línguas erradas, línguas sem gramática? Qual é a
língua correta? Por que ela é correta? Essas são perguntas que ra-
ramente nos colocamos: aceitamos que há uma língua correta – na
grande maioria das vezes aquela que não falamos – e esquecemos
de perguntar por que ela é correta. De onde vem essa ideia de que
há línguas mais bonitas ou melhores? O professor de línguas deve
se colocar essas questões para estar menos vulnerável a distorções
e preconceitos, para entender melhor esse objeto tão interessante
que é a linguagem humana.
Há muitas diferenças entre Este manual pretende dar uma visão diferente de língua e ensino
a língua escrita e as línguas nas aulas de português. É muito comum ouvirmos que o profes-
faladas que não se resumem
a questões gramaticais. A gra- sor de português ensina língua materna – mas esse é um grande
mática do português escrito equívoco, simplesmente porque ninguém ensina língua materna.
padrão certamente não é a
mesma gramática do portu- Os alunos, quando chegam na primeira série (e mesmo antes no
guês vernacular, mas, além pré-primário), são falantes fluentes, dominam a sua língua ma-
disso, a língua escrita é muito
mais monitorada, um proces- terna. Mas, então, por que temos aulas de português? A resposta
so consciente de produção, tradicional é: para ensinar a ler e a escrever. Ler e escrever são os
que é distinto da oralidade
porque permite revisão, por- processos de recepção e produção de uma língua escrita e as lín-
que o autor decide em que guas escritas não são línguas maternas. Ninguém escreve e lê no
ponto o seu texto está pronto.
A atenção também não é a berço, mas todos nós começamos a falar no berço. Ensinar a ler e a
mesma. Atualmente, há mo- escrever é, então, ensinar uma outra língua, uma língua que tem a
dalidades de escrita que estão
mais próximas da oralidade, sua gramática, que não é a gramática da língua materna do aluno.
como o chamado “texting”
que os celulares permitem. Essa constatação, somada ao ato de assumir suas consequências,
Nosso objetivo neste livro não é já um avanço na reflexão sobre as aulas de português. Mas por
é discutir a língua escrita. Veja
o vídeo http://www.youtube. que as aulas de português têm que ser apenas aulas de leitura e
com/watch?v=yoF2vdLxsVQ escrita? Acreditamos que não só elas não têm que ser apenas leitu-
para uma discussão sobre tex-
ting e escrita. ra e escrita, mas elas não devem ser apenas isso, porque sem uma
reflexão sobre a gramática o caminho para adquirir essa outra lín-
gua é mais espinhoso, e por vezes desnecessariamente complexo e
oneroso para todos os envolvidos. Um caminho mais interessante
é mantermos o fascínio pela língua, a curiosidade dos alunos, sua
vontade de saber e aprender. Esse caminho parte da língua do alu-
no, da oralidade, da compreensão da gramática do português bra-
sileiro falado para ir, juntamente com os alunos, construindo ou-
tras gramáticas de outras línguas, incluindo a gramática da língua
escrita. Não se trata de estudar a gramática – proposição que só faz
sentido para aqueles que entendem que há uma única gramática já
pronta, e esse não é o nosso caso –, mas de construir gramáticas.
É essa a proposta que apresentamos neste livro: os alunos podem e
devem construir gramáticas e explorar essa forma de saber.
Na primeira unidade, mostramos que essa perspectiva não aparece
nos Parâmetros Curriculares Nacionais para o ensino de portu-
guês. Trata-se, portanto, de uma rota alternativa, mas que tem su-
porte em pesquisas já realizadas com falantes de diversas línguas,
que indicam que há uma relação positiva entre o aluno construir
hipóteses sobre a sua língua e ter um desempenho melhor na lín-
gua escrita, além de ter um efeito positivo no ensino de ciências e
de matemática. O professor de português pode, com o auxílio da
linguística, ser o promotor de interações entre várias matérias não
apenas de uma maneira superficial, apenas identificando temas de
pesquisa/estudo comuns, mas de um modo mais incisivo, ensinan-
do o raciocínio científico, estabelecendo pontes com a história e
a biologia, por exemplo. Construir gramáticas é construir uma te-
oria de explicação para aquela língua e é esse o princípio da for-
mulação de hipóteses e sua verificação nas outras ciências. Mas é
também refletir sobre a história de uma língua, a história da língua
nos homens e em cada um de nós individualmente. Claro, a língua
é também poesia, que digam os poetas na luta pela palavra, na
exploração, muitas vezes arqueológicas, como mostram os escritos
“Que isso foi o que sempre
de Guimarães Rosa, das línguas. Não se faz poesia sem gramática. me invocou, o senhor sabe:
A segunda unidade é composta por uma série de informações que eu careço de que o bom seja
bom e o ruim ruim, que dum
permitem sabermos (note: não é acharmos, nem pensarmos, mas lado esteja o preto e do ou-
sabermos) que há uma faculdade da linguagem. Os apressados em tro o branco, que o feio fique
bem apartado do bonito e
nos classificar de gerativistas devem tomar cuidado (aliás, sempre a alegria longe da tristeza!
deve haver cuidado na aplicação imediata de rótulos por vezes mal Quero os todos pastos de-
marcados... Como é que pos-
compreendidos): é certo que os gerativistas entendem que há uma so com este mundo? Este
faculdade da linguagem, mas muitos que têm também tal compre- mundo é muito misturado.”
Guimarães Rosa, Grande
ensão, não são adeptos do gerativismo. As coisas são mais mistura- Sertão: Veredas.
das do que as caixinhas com as quais gostamos de rotular o mundo.
Sabemos que somente os humanos têm línguas, sabemos que não
há certo nem errado nas línguas, sabemos que as línguas variam,
mas sabemos também que essa variação não é aleatória, sabemos
que há um componente cerebral por trás da linguagem... Essa revi-
são é importante para entendermos as línguas. A terceira unidade
introduz o método científico para a análise das línguas. Ensinar
ciência através da construção de gramáticas pode ser não apenas
muito divertido, mas principalmente uma maneira de re-significar
a língua falada, em especial na nossa cultura bacharelesca que vê
a língua das gentes com tanto preconceito, afinal mostrar a sua
gramática é desfazer preconceitos que usurpam o nosso direito à
nossa língua. O português brasileiro é o tópico da quarta e última
unidade. Professores de português no Brasil precisam saber como
é essa língua, que língua é essa que nós falamos.
Que esse livro possa deslocar seus leitores, mudar sua orientação
ao propor rotas alternativas!
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Construindo gramáticas na escola
língua, mas não de língua materna. Os alunos já têm a sua língua materna.
Ana Teberosky, pesquisado-
ra argentina reconhecida no Essa confusão entre língua escrita e língua materna é nefasta. Ninguém tem
Brasil por seus estudos sobre a língua escrita como sua língua materna!
a língua escrita se debruça
sobre o tema em três gran-
des obras: Psicogênese da Nesse sentido, vamos imaginar diferentemente as aulas de portu-
Língua Escrita, em parceria
com outra pesquisadora, guês, como momentos em que a língua falada ou as línguas e sua gra-
Emília Ferreiro, e em Psico- mática ou suas gramáticas ganham proeminência, o que permite tornar
pedagogia da Linguagem
Escrita e Aprendendo a Es- essas aulas espaços de interação com outras disciplinas, com as quais em
crever. geral não há conversa, como, por exemplo, a matemática, e de interven-
ção na sociedade, não apenas para desmistificar muitos dos preconcei-
tos que a sociedade brasileira ainda tem quanto à língua, mas principal-
mente para formar cidadãos críticos.
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Preâmbulos para um ponto de vista CAPÍTULO 01
permite que o aluno saiba manipular diferentes gramáticas, e aprenda que
há diferentes línguas intermediárias, estágios na aprendizagem de uma
outra língua. Além disso, permite o florescimento da cidadania, porque A discussão sobre
leva o aluno a perceber a língua de maneira diferente, como a sua maneira estágios intermediá-
rios na aquisição de
de ser. A sua língua é a sua maneira de ser e a exclusão dessa maneira de uma língua aparece na
ser tem efeitos negativos, também na aprendizagem da leitura e da escrita. reflexão teórica sobre
o ensino de línguas
Somos as línguas que falamos. Nossa língua materna é um componente estrangeiras. Nossa
fundamental da nossa identidade, não apenas como pessoa, mas também intenção aqui é apenas
chamar atenção para o
como povo. Não somos cidadãos plenos se temos vergonha da nossa fala, fato de que há está-
se negamos até hoje que há um português do Brasil, que tem característi- gios na aquisição de
uma qualquer, incluin-
cas próprias reconhecidas há séculos, e se vemos no português da gente, do a língua escrita.)
na feliz expressão de Ilari & Basso (2006), um motivo de chacota porque
não sabemos falar. Esses são indícios de uma subjetividade em desacor-
do consigo, porque não aceita o que é. E é só quando aceitarmos quem Note que é a colônia
somos que seremos mais plenos. Acreditamos que legitimar a língua que que não sabe falar; é a
fala da colônia que é
falamos, nossa identidade linguística é uma das funções do professor de errada. Falamos “feito
português, uma função que ele realiza olhando para as línguas faladas, índio” (que bom, né?).
ensinando aos alunos a construir modelos de gramáticas para explicá-las.
Nesse percurso, ele mostra que há outras línguas, outras gramáticas, e que,
contrariamente ao senso comum que acredita haver uma única língua no
Brasil, somos multilíngues e podemos aprender novas línguas, entre elas
a língua escrita com a sua gramática.
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Construindo gramáticas na escola
O ponto de vista naturalista que, mais uma vez, olha para a língua
conforme ela se manifesta, primeiramente como uma língua falada,
permite também entendermos e superarmos certas dicotomias, como
a que há entre social e indivíduo. A língua é ao mesmo tempo o que
permite que nós organizemos o nosso pensamento e a nossa subjetivi-
dade e o que nos permite interagir com o outro. Quando começamos a
pensar na língua como interna, como nos constituindo biologicamen-
te, porque, afinal, só os humanos falam, percebemos que ela é um meio
de interação social e é também um sistema cognitivo extremamente
complexo e sofisticado. Elaboramos raciocínios complexos porque te-
mos linguagem, sem ela não teríamos essa possibilidade. Há muitas
discussões sobre a origem das línguas e passamos rapidamente pelo
Veja aqui uma bela tópico no próximo capítulo, mas há correntes que defendem que a lín-
ponte a ser feita entre
o professor de portu- gua se originou como uma maneira de organizar o pensamento e só
guês o professor de então se tornou um meio de interação social; assim como há aqueles
biologia! Não há muito
sobre essa questão que acreditam que sua origem é social e então ela se internalizou. Para
em português, mas todos os efeitos aqui, a reposta correta por ora não importa. Não se
há muito em inglês, a
língua atual da ciên- trata de defender se é esse ou aquele o caso – não sabemos isso ainda
cia. Uma discussão –, mas de chamar a atenção para esse aspecto fundamental das línguas
atual sobre o que nos
diferencia dos outros que tem sido negligenciado nas escolas e nos Parâmetros Curriculares
animais está em Penn, Nacionais (doravante PCNs), o seu aspecto de gramática interna, do
Holyoak & Povinelli
(2008), disponível, em indivíduo, a sua relação com o pensamento e o fato de que é a lingua-
inglês, na webteca. gem talvez o que nos individualiza como espécie.
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Preâmbulos para um ponto de vista CAPÍTULO 01
Incapacidades linguísticas – não apenas as afasias mas as falhas lin- Afasias
guísticas que os autistas apresentam – são indícios de dificuldades de As afasias são problemas com
interação que têm correlatos físicos, cerebrais ou genéticos. a função da linguagem que
ocorrem devido a acidentes
que danificam o cérebro. Há
Certamente, seremos leitores mais atentos e escritores menos ingê- vários tipos de afasia.
nuos se entendermos os processos não apenas sociais, mas também
biológicos, cognitivos, envolvidos na produção e interpretação da
linguagem, porque, por mais que haja fatores sócio-contextuais na
produção, por exemplo, de textos, os textos são produzidos por indi-
víduos da espécie humana que empregam certas funções cerebrais
específicas e sem elas – assim como sem o entorno social – não é
possível a produção linguística.
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Construindo gramáticas na escola
As línguas faladas, mesmo aquelas que não têm uma escrita (que são,
na verdade, a maioria delas), são extremamente complexas e, apesar de
longos anos de estudos sérios e criteriosos, não há hoje em dia um sistema
único para explicá-las completamente. Os linguistas têm trabalhado sis-
tematicamente nesse projeto, mas ele está longe de estar terminado, ainda
que tenha havido muitos progressos significativos. Tudo isso para dizer
que, atualmente, diante do conhecimento que temos, estudar gramática
significa abrir para inúmeras áreas, incluindo a matemática, e estar diante
de um objeto muito intrincado, mas facilmente acessível.
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Preâmbulos para um ponto de vista CAPÍTULO 01
aulas de português; mostrar que é possível ter uma maneira diferente de
abordar as línguas e construir, na interação com vocês, leitores/alunos,
propostas para a escola. Propostas em que as aulas de português não
sejam decorar regras ou decorar nomenclaturas. Mas também sem que
as aulas de português sejam apenas aulas de produção e leitura de textos
que deixam de lado a beleza da oralidade, a criatividade que permeia a
gramática, que não se colocam o desafio de entender esse sistema com-
plexo que são as línguas faladas, que perdem as dimensões biológicas,
físicas, matemáticas, geográficas, históricas, antropológicas etc que es-
tão intrinsicamente associadas a falar uma língua.
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Construindo gramáticas na escola
Como nos PCNs, o pano de fundo desta nossa reflexão tem presen-
te não apenas os baixos índices de desempenho dos nossos alunos, mes-
mo daqueles que estão em escolas particulares, aferidos por diversos
métodos, mas também o fato de que esses índices pouco se alteraram ao
longo desses últimos anos, em particular desde a publicação dos PCNs
para o ensino médio, em 1997, já lá se vão mais de 10 anos. Também
temos em mente que são ainda poucas as pesquisas no país que podem
ser consideradas de ponta, e não apenas na Linguística. Um estudo di-
vulgado pela Royal Society, academia nacional de ciência britânica, em
março de 2011, mostrou que houve um pequeno progresso da produção
científica do Brasil: levando em consideração as pesquisas globais, pas-
samos de 1,3% do total das pesquisas realizadas no mundo para 1,6%.
Esse é ainda um índice muito baixo e são ainda poucos os pesquisadores
no país. Já vimos que a Linguística pode ajudar porque é possível ensi-
nar o método científico com um material facilmente acessível.
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Preâmbulos para um ponto de vista CAPÍTULO 01
falar em verdade última; não há completude, como mostrou Gödel. E
quem estuda física e o universo sabe bem que quanto mais entendemos Kurt Friedrich Gö-
sobre o Big Bang, mais questões surgem, surgem novas perguntas que del, lógico, filósofo e
matemático, publicou
só podem ser colocadas a partir dessa perspectiva. Por exemplo, atual- seus teoremas sobre a
mente há um grande consenso entre os físicos de que há “matéria escu- incompletude em 1931.
O teorema mostra que
ra”; podemos dizer inclusive que sabemos que há matéria escura, mas qualquer sistema axio-
não sabemos ainda o que é matéria escura. Ter descoberto isso não ape- mático recursivo com
poder suficiente para
nas desnorteou a comunidade de físicos que demoraram a aceitar que descrever a aritmética
a maior parte do universo é feito com essa matéria, mas colocou uma dos números naturais
(o modelo de Peano,
série de questões que não tínhamos nem mesmo condições de imaginar por exemplo) gera
antes disso ter ocorrido. E pode ser que estejamos vivendo um momen- proposições verdadei-
ras que não podem ser
to de revolução científica e que o nosso conceito mesmo de matéria te- provadas a partir exclu-
nha que ser abandonado. Já vivemos isso em outros períodos da história sivamente dos axiomas.
Convidamos o leitor a
quando, por exemplo, abandonamos a ideia de que a Terra é o centro do pesquisar (através do
universo. Voltando ao domínio da Linguística, abandonamos a ideia de Google, por que não?)
os termos e conceitos
que há uma língua correta ou melhor, porque isso está errado, embora que não conhece nesta
esse fato ainda não seja de domínio público. Demoramos muitos anos passagem.
para aceitar o sistema heliocêntrico e só recentemente, em 1983, a con-
denação de Galileu Galilei como herege foi retirada.
Galileu Galilei foi um
Nossa convicção, que é aquela do cientista, é de que o conhecimen- homem muito inte-
ressante e vale a pena
to científico se constrói racionalmente, avaliando hipóteses, testando te- ler sobre ele. Veja,
orias, e principalmente, falsificando essas teorias. Esse método pode ser por exemplo, Galileu
Galilei, o Primeiro Físico
facilmente ensinado através da reflexão sobre a língua falada. É claro que de James MacLachlan
tal procedimento não é livre de outros fatores, não há uma razão pura. (2008); e certamente
a famosa peça de
Bertold Brecht
Veja, por exemplo, a descrição que Ludwik Fleck (2010) faz da des-
coberta da sífilis em Gênesis e Desenvolvimento de um fato cientí-
Há muitos livros bons de
fico. Ele mostra que o que leva à descoberta não são apenas fatores divulgação científica sobre
lógico-dedutivos, embora sem eles o processo de descoberta não o universo e a física con-
temporânea. Recomenda-
funcione, mas fatores externos como a guerra e também, em grande mos Simon Singh, Big Bang
medida, a imaginação dos cientistas. (2010).
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Construindo gramáticas na escola
Sobre o papel da
guerra e da decifração
de códigos para o
desenvolvimento dos
computadores ver de
Simon Singh, O livro
dos Códigos (2008).
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A Linguística, os cursos de Letras e os Parâmetros Nacionais CAPÍTULO 02
2 A Linguística, os cursos
de Letras e os Parâmetros
Nacionais
A disciplina, “Construindo Gramáticas na Escola”, foi pensada
como uma maneira de viabilizar a reflexão sobre os conteúdos que os
alunos de letras da UFSC aprendem nas disciplinas introdutórias de lin-
guística.
25
Construindo gramáticas na escola
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A Linguística, os cursos de Letras e os Parâmetros Nacionais CAPÍTULO 02
para além de escrever e ler. Mudanças tomam tempo e modificar modos
de pensar é um processo lento, ainda mais quando estamos tratando de
línguas e de relações de poder. A quem interessa excluir a língua da gen-
te – aquela em que dizemos a gente, em que a concordância é marcada
apenas no artigo os menino saiu – em nome de uma suposta língua cor-
reta (ou incorreta – a noção de correção simplesmente não faz sentido
quando falamos de língua)? Mas, há mudanças – para lembrar Galileu,
eppur se muove... Já temos várias gramáticas do português falado e a
presença da linguística na licenciatura em letras é também sintoma de
que estamos avançando porque o conhecimento científico sobre a lin-
guagem está ganhando vez e voz.
27
Construindo gramáticas na escola
Mas, talvez como não poderia deixar de ser, esse movimento foi
interpretado ou ressignificado como uma negação do ensino de gramá-
tica na escola. É como se, desse momento em diante, não se devesse
mais ensinar gramática na escola. Certamente, essa é uma leitura equi-
vocada das propostas que criticavam o ensino tradicional de português
(como Rodolfo Ilari, um dos precursores da Linguística na escola, deixa
claro em sua entrevista disponível em http://www.videoconferencia.cce.
ufsc.br/index.php?option=com_flexicontent&view=items&cid=84&
id=1701). Mas, nos círculos dos detentores do saber sobre o ensino de
português, ensinar gramática ficou relegado a muito pouco e esse pouco
é, na verdade, o que já se fazia antes.
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A Linguística, os cursos de Letras e os Parâmetros Nacionais CAPÍTULO 02
mas mantém-se a mesma imagem de gramática que se tinha e a
mesma prática com relação à gramática – fundamentalmente, a
concepção científica sobre as línguas naturais não tem espaço. A
gramática foi expulsa da sala de aula, como se fosse ela a respon-
sável pelos maus índices dos alunos. Equivocadamente, na nossa
compreensão. Atenção, obviamente não estamos propondo que
se ensine gramática tradicional nos moldes de decorar regras ou
nomenclaturas. Pode-se de fato ensinar gramática tradicional, mas
que isso seja feito dentro de uma perspectiva que entende o que é
uma gramática e para que ela serve.
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Construindo gramáticas na escola
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A Linguística, os cursos de Letras e os Parâmetros Nacionais CAPÍTULO 02
Syntactic Structures, é de 1955 e desde então ele vem produzindo
diferentes modelos de compreensão da sintaxe das línguas naturais.
(Há muita bibliografia sobre Chomsky, também porque ele é um ati-
vista político de esquerda, engajado. Sobre o método negativo veja
Pires de Oliveira (2010), disponível na webteca).
Formalismo e Funcionalismo
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Construindo gramáticas na escola
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A Linguística, os cursos de Letras e os Parâmetros Nacionais CAPÍTULO 02
se faz é, então, o mesmo que a gramática faz só que agora no texto do
aluno: olha aqui, você errou porque o verbo concorda com o sujeito; ou,
olha aqui, você separou o sujeito do verbo por uma vírgula e não pode
fazer isso (pelas regras da gramática). Estamos agora olhando para o
texto do aluno com a miopia da gramática tradicional e estamos vendo
os erros, sem explicar que são outras gramáticas, sem entender o que
está acontecendo no texto., sem saber qual é a gramática do texto Para
isso, precisamos entender o que é uma gramática, que há várias gramáti-
cas e só fazemos isso se construirmos essas gramáticas. A gramática não
serve para melhorar a produção escrita do aluno, ela serve para que o
aluno entenda a sua língua e entenda a língua do outro e com isso enten-
da que pode se movimentar nas diferentes línguas e assim, ao entender a
sua língua, ser falante de outras línguas, inclusive a língua escrita.
Nos PCNs, a gramática não deve ser considerada quando ela é “um
palavreado sem função”. Ora, quando a gramática é um palavreado sem
função? Só quando adotamos a posição de que há uma gramática já feita
e precisamos repeti-la, só quando não estamos construindo uma gramá-
tica. Quem constrói gramáticas sabe da importância dos termos e da sua
função. É claro que oração subordinada adverbial temporal é palavrea-
do sem função, sem sentido, mas apenas quando não entendemos o que
essa etiqueta significa, quando não temos noção do projeto de construir
gramática e apenas usamos os rótulos sem saber sua história e o que eles
têm por função explicar. Mais uma vez, nega-se a tradição para retomá-
-la com uma roupagem “modernosa”, o texto, mas mantém-se a prática
de tomar a gramática como etiquetagem já pronta. Repetimos: não há
espaço para a concepção científica de língua e de gramática.
33
Construindo gramáticas na escola
Para vermos isso, não precisamos ir tão longe a ponto de termos que
analisar termos monstruosos como “oração subordinada adverbial
temporal”, mas sim considere a noção de “palavra”. Note, em primei-
ro lugar, que esse conceito não “caiu do céu” – “palavra” é um con-
ceito elaborado, fruto de séculos de reflexões sobre as línguas, não
é algo dado, que encontramos na natureza, mas é antes uma ferra-
menta de investigação científica. Pense agora numa língua que não
tem escrita, que não tem descrição gramatical e nem tradição de
pensamento gramatical. Será que essa língua terá o conceito de “pa-
lavra”? É muito provável que não. E se não encontramos “palavra”, o
que dizer então de termos como “sentença”, “oração”, “subordinação”,
etc. – todos termos empregados no interior de teorias que têm por
objetivo explicar a linguagem.
Por fim, quanto à terminologia, note ainda duas coisas. Mesmo de-
pois de séculos de estudo, ainda não temos uma definição muito
clara do que é uma “palavra”. Tome, por exemplo, ‘amá-la-ei’; mes-
mo considerando não seja algo muito usual no português do Brasil,
tente responder à seguinte pergunta: quantas palavras temos em
‘amá-la-ei’? Uma? Duas? Três? Quais? ‘la’ é uma palavra?
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A Linguística, os cursos de Letras e os Parâmetros Nacionais CAPÍTULO 02
Finalmente, é muito comum dar realidade a coisas que são criadas para
explicar certos fenômenos. Não é incomum dizermos que as pedras
caem por causa da gravidade. Note, porém, que “gravidade” é um con-
ceito criado pelos seres humanos (se nossa espécie nunca tivesse exis-
tido, tal conceito também não existiria), e um conceito não pode ser a
causa de uma pedra cair – confundimos o conceito com algo real, e isso
é chamado de hipostasiação. Pense agora na linguagem, na descrição
linguística e nos termos que empregamos para tanto. Quando dizemos
que “existem palavras”, estamos fazendo uma hipostasiação ou não?
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Construindo gramáticas na escola
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A Linguística, os cursos de Letras e os Parâmetros Nacionais CAPÍTULO 02
uma opinião de Chomsky, ou um modelo científico, é um fato que já sa- Uma introdução de divul-
gação científica aparece
bemos, comprovado por inúmeros experimentos, realizados por vários
em Stephen Pinker, Do que
cientistas que tiveram como objeto de estudo as mais diversas línguas. é feito o pensamento: a
língua como janela para
Obviamente, isso não quer dizer que a gramática universal como mode-
a natureza humana, 2008.
lada pelo gerativismo está correta, mas quer dizer que ter uma língua foi Sua posição não é a mesma
de Chomsky em vários as-
uma aquisição da espécie que favoreceu a nossa evolução e que, como os
pectos, mas sua perspectiva
pássaros e os golfinhos, temos aptidão para falar. é certamente naturalista).
Vamos agora dar uma rápida olhada nos PCNs para o ensino médio
que datam de 2000. Os PCNs para o ensino médio são muito mais dire-
O documento está
trizes do que procedimentos de atuação e nesse ponto eles se diferem dos disponível em http://
PCNs para o ensino fundamental. A parte II se chama “Linguagens, Códi- portal.mec.gov.br/
seb/arquivos/pdf/
gos e suas Tecnologias” e reflete uma concepção diferente de ensino e que, blegais.pdf e esse é o
no nosso modo de entender, não só vale a pena, mas pode ter nas aulas momento para você
dar uma lida nele.
de português o lugar privilegiado para o seu florescimento: a integração
de conteúdos ou a interdisciplinaridade. Associar linguagens, códigos e
tecnologias é um primeiro passo, ainda muito tímido, na direção das pes-
quisas mais atuais. É um passo tímido, porque no texto lemos, de novo,
a posição tradicional sobre a língua portuguesa. (É bem difícil inovar!).
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Construindo gramáticas na escola
Cibernética O que aparece sugerido é uma integração que teve início na déca-
A cibernética é uma abor- da de 50, com os primeiros encontros em Cibernética, que acontece-
dagem interdisciplinar – ram no MIT (Massachussetts Institute of Techonology), nos EUA, e que
física, biologia, cognição,
deram início às chamadas ciências cognitivas. Abaixo está a figura do
computação –, que explora
sistemas reguladores, suas
hexágono que representa as disciplinas envolvidas nas ciências cogniti-
estruturas, restrições e pos- vas. Atenção para a representação imagética da linguística – uma árvore
sibilidades. Evidentemente, sintática –, precisamente o que não está contemplado nos Parâmetros
as línguas naturais são para o ensino fundamental e talvez sugerido nos Parâmetros do ensi-
sistemas desse tipo, quer
no médio quando se coloca as línguas naturais em comparação com as
como sistema biológico,
quer como sistema social.
linguagens formais. Note também a presença da antropologia, da psi-
cologia, da inteligência artificial e das neurociências. Estamos dizendo
que o conhecimento atual integra os conhecimentos da linguística, da
matemática, da computação, da biologia, da sociologia. É preciso traba-
lhar juntos se queremos entender esses sistemas.
38
A Linguística, os cursos de Letras e os Parâmetros Nacionais CAPÍTULO 02
É essa a perspectiva que queremos somar às aulas de português: ver
a língua como um sistema que é característico da espécie humana – vere-
mos no próximo capítulo que várias espécies têm sistemas de comunica-
ção, mas nenhuma, a não ser o Homo sapiens, tem língua – que está entre
as funções cerebrais/mentais, que nos constitui enquanto subjetividade,
que permite construirmos sistemas de inteligência artificial e que tem es-
treitas relações com a filosofia, a lógica e a matemática (e também com a
literatura e as artes, mas, como dissemos, entendemos que essas pontes
são construídas na reflexão sobre literatura e crítica literária). Claro, esse
sistema tem uma história e ele é um veículo não apenas de interação so-
cial, mas de exclusão, de estabelecimento de relações de poder.
39
As línguas nas aulas de português CAPÍTULO 03
3 As línguas nas aulas de
português
41
Construindo gramáticas na escola
cê – pode aprender uma outra língua (ou dialeto) que tem a forma tu
e também a forma vós Mas essas são outras gramáticas e aí está o pulo
do gato: levar a criança a perceber que há várias gramáticas e qualquer
um de nós sabe mais de uma gramática e mais de uma língua – somos
multilíngues em português! Assim como podemos aprender inglês ou
outra língua qualquer. As aulas de português não são aulas de língua
materna, mas aulas de ensino de segunda ou terceira língua, aulas de
ensino de construção de gramáticas e reflexão sobre as línguas. Ob-
viamente, a língua escrita é uma outra língua e tem as suas próprias
regras, sua própria gramática e parte do problema é achar que a língua
escrita é apenas uma transcrição da língua falada; não é, nem mesmo
quando se trata da variedade culta. E é bom já dizer, a língua das gra-
máticas normativas não é nem mesmo a variedade culta, é uma varie-
dade estandardizada com base em padrões europeus por vezes muito
distantes do que se fala no Brasil.
42
As línguas nas aulas de português CAPÍTULO 03
Nesse caminho, vamos contar com os conteúdos que foram estuda-
dos nas disciplinas de linguística – fonética/fonologia, morfologia, sintaxe
e semântica – e que constituem os componentes do que podemos chamar
de “faculdade da linguagem” de maneira ampla, isto é, sem com isso es-
tarmos adotando a visão gerativa de que há uma centralidade da sintaxe.
Há, no momento na linguística, diferentes arquiteturas da mente/cérebro
e da faculdade da linguagem; embora haja consenso que deve haver uma
faculdade da linguagem, não há consenso sobre se se trata de um compo-
nente autônomo da mente/cérebro ou da junção de componentes. Essas
são questões empíricas e ainda não temos uma resposta final para elas.
Além disso, certamente a pragmática deveria estar aí contemplada, por-
que é um dos componentes da faculdade da linguagem.
43
Unidade B
Gramáticas, línguas e a faculdade
da linguagem
Mas por que afinal achamos que dizer Os menino saiu está er-
rado? Porque historicamente o dialeto que se tornou a língua escrita
oficial de Portugal, a língua da nação, a língua nacional, é o que marca
a pluralidade em todos os termos da sentença. Há um aspecto muito
49
Construindo gramáticas na escola
50
Línguas e Gramáticas CAPÍTULO 04
51
Construindo gramáticas na escola
52
Línguas e Gramáticas CAPÍTULO 04
freguês brasileiro responde, atencioso, pois não. O garçom vai embora.
Retorna um tempo depois e faz a mesma pergunta e o brasileiro repete
pois não. E o garçom se vai mais uma vez. E mais uma vez retorna e eles
repetem a estória, até que alguém percebe que pois não é não no PE!
53
Construindo gramáticas na escola
55
Construindo gramáticas na escola
existe há 150 mil anos; sabemos também que os sistemas de escrita existem
há não mais que 6 mil anos. Ou seja, falamos sem escrever há, mais ou
menos, 143 mil e chegamos até aqui! Sem leis obrigando os falantes a dizer
desse ou desse modo! Sem um compêndio de regras de “etiqueta” verbal e
colocação sintática. Obviamente não sem a gramática, porque é a gramática
que possibilita a confecção de proferimentos, a enunciação; sem ela, como
já dissemos, não há língua. Essas regras da gramática de qualquer língua
existem sem a escrita e sem compêndios gramaticais e muitas, na verdade,
existem à revelia disso tudo, como atesta a perpétua mudança linguística.
56
Línguas e Gramáticas CAPÍTULO 04
conclui ironicamente que “o que importa é que as pessoas se enten-
dam, ainda que apenas grunhindo”. Faz só uns 400 anos que eles Este parágrafo foi ba-
dizem que o português vai se acabar! seado em um texto de
Bagno, M. “Cassandra,
fênix e outros mitos”,
in: Faraco, C. et al.
(org.) Estrangeirismos:
guerras em torno da
O medo em questão parece ter um fundo mitológico na famosa ale- língua. São Paulo: Pa-
goria da Torre de Babel, que nos fala sobre o desejo humano de alcançar rábola Editorial, 2001,
pp. 49-84; e em um
Deus, concretizado na construção de uma torre que deveria ser tão alta que texto de Ferreira Gullar,
alcançaria os céus – naquele momento, certamente se acreditava que o céu chamado “Da fala ao
grunhido”, publicado
era alcançável. Esse empreendimento humano foi punido por Deus através no jornal Folha de São
da criação de línguas diferentes. Deus nos impediu de alcançá-lo impedin- Paulo, em 25/03/2012.
do que nos comunicássemos, dando a cada um de nós uma língua diferente.
Talvez seja esse o medo que está por trás da ideia de que precisamos de um
compêndio do bem dizer para controlar os usos; como se sem isso, fosse-
mos caminhando em direção aos caos, à total incompreensão e, de certa
forma, ao isolamento absoluto, já que ninguém entenderia ninguém.
Há muitos pontos curiosos nesse mito. Talvez o mais claro seja a hi-
pótese de que houve um momento em que todos nós falamos uma mesma
língua. Mas será que houve de fato essa língua primitiva ou Ursprache, a
língua original, esse momento na história da humanidade que os huma-
nos falaram uma única língua? Será que se formos traçando as famílias
linguísticas chegamos numa única língua mãe? Ainda não sabemos uma
resposta para essa pergunta e há várias reconstruções dessa suposta língua
primitiva. Há teorias que suportam que houve uma única língua – ver,
57
Construindo gramáticas na escola
Por que nas aulas de língua portuguesa não nos perguntamos como
surgiram as línguas nos homens? Com toda certeza, esse é um tema
apaixonante e que permite explorarmos relações entre a biologia, a
história e a linguística, sem contar nos inúmeros mitos de criação das
línguas, incluindo a Torre de Babel e Adão nomeando os animais.
58
A faculdade da linguagem CAPÍTULO 05
5 A faculdade da linguagem
A punição das línguas parece ter sido eficiente no mito: a construção
da Torre não foi adiante porque a construção virou uma Babel. Essa estó-
ria e muitas outras semelhantes sobrevivem na nossa língua, por exemplo,
quando dizemos que algo está ou é uma babel, uma confusão. Mas sabemos
hoje em dia que não há efetivamente uma babel e não há como termos uma
babel e lembre-se de que estamos assumindo que as línguas são individuais
(cada um com a sua língua!) e mesmo assim não há qualquer perigo de
não nos entendermos. As línguas variam, é verdade, mas não variam ar-
bitrariamente e se não houver um compêndio do bem dizer, como não há
nas inúmeras línguas ágrafas – a maioria das línguas no mundo é ágrafa –,
não vamos deixar de nos entender, não vamos grunhir. Houve uma época
que as pessoas tinham medo de navegar para o horizonte porque a Terra
era uma plana e ao final havia uma queda d’água monumental, repleta de
monstros marinhos, todos a nos esperar e acabar dolorosamente com a vida
dos desventurados que por ali resolviam se arriscar. Talvez a mensagem fos-
se fique em casa, não se arrisque... ou talvez fosse conforme-se com o que
lhe dizem e não sai por aí descobrindo coisas e desafiando o conhecimento
estabelecido. Hoje sabemos que não há cachoeira alguma, que a Terra não
é plana e que somos apenas um planeta na imensidão do universo que tem
fim e irá se acabar. Da mesma maneira, sabemos, hoje em dia, através de
várias evidências, que não é possível chegarmos a essa situação traumática
de não conseguirmos nos entender. Em ambos os casos, há os corajosos que
Language Universals:
se arriscam no desconhecido e, num grande número de vezes, nos levam a with special reference
repensar o que antes era dado com certo. to feature hierarchies.
Publicado pela primei-
ra vez em 1966 e ainda
É de fato muito provável, como já dissemos, que cada um de nós tenha não traduzido para o
português. Uma apre-
a sua língua, assim como cada um de nós tem o seu código genético, mas sentação desse traba-
nem por isso há qualquer problema, ao contrário, a variação é bom. Sabe- lho pode ser encon-
trado no Manual de
mos, hoje em dia, que uma língua se deteriorar, virar grunhido, simples- Linguística: subsídios
mente não é uma possibilidade empírica porque por mais diferentes que para a formação de
professores indígenas
sejam as línguas, há universais. Todas as línguas têm substantivos e verbos, na área de linguagem.
por exemplo. Todas as línguas tem negação e por aí vamos. O linguista Jo- http://pt.scribd.com/
doc/59396578/57/
seph Greenberg foi um pioneiro na empreitada de detectar e classificar esses Os-universais-de-Gre-
universais; em seu trabalho mais famoso, ele apresenta 45 universais. enberg).
59
Construindo gramáticas na escola
Assim, mesmo que cada um fale uma língua que não tem nada a ver
com a outra, por exemplo, inglês e malaio – você sabe onde se fala malaio?
Escute um pouco da – e mesmo sem o auxílio de um tradutor ou de uma língua em comum,
língua malaia conseguimos nos entender. Sabemos isso porque já vivemos essa história.
http://www.youtube.
com/watch?v=HTx É só lembrar os vários exemplos de contato entre culturas que não tinham
VUbrOnEM antes entrado em contato, por exemplo, os portugueses que desembarca-
ram no Brasil em 1500 e encontraram os índios. Independente da língua
que esses índios falavam, não só houve comunicação entre eles –adiante
faremos uma diferença entre comunicar e falar uma língua –, mas cer-
tamente houve aqueles que aprenderam português e houve portugue-
ses que aprenderam a língua local e houve também a construção de uma
língua de contato – a chamada língua geral, que foi falada no Brasil pelo
menos até o século XVII.
60
A faculdade da linguagem CAPÍTULO 05
curiosidade, mas porque ele mostra que há certas restrições biológicas
que impedem que uma língua seja uma língua natural.
O caso de Christopher
61
Construindo gramáticas na escola
62
A faculdade da linguagem CAPÍTULO 05
Vejamos um rápido exemplo de variação para mostrar como nem
todas as possibilidades estão disponíveis. Retiramos esse exemplo do Essa é uma leitura in-
dicada para acompa-
primeiro capítulo, chamado “Um castelo no ar”, do livro The Unfolding nhar este capítulo e se
of Language de Deutscher. O autor está empenhado em mostrar que encontra na webteca.
uma língua não é um conjunto de palavras, pois, se fosse assim, a sequ-
ência a seguir faria sentido:
Certamente, você sabe que (1) não é gramatical. Mas por que (1)
não é uma sentença do português? Que regras estão sendo violadas? Você
consegue construir sentenças gramaticais a partir de (1)? Eis algumas
possibilidades:
Escute um pouco de
b. O líder das tropas trouxe o sultão para o seu vizir. turco http://www.you-
tube.com/watch?v=
VRugWpcR6iw.
Compare, agora, com o que ocorre em turco. Preste atenção na glos-
sa, a tradução palavra a palavra:
63
Construindo gramáticas na escola
O que você nota sobre a sintaxe dessa língua? Como ela é? Certa-
mente, você deve ter notado que o verbo principal aparece no final da
sentença, uma posição que raramente utilizamos, ainda mais quando se
trata de verbos transitivos conjugados como trazer. Há muitas línguas que
colocam o verbo principal na última posição e os auxiliares ficam na se-
gunda posição da sentença, como, por exemplo, o alemão e o holandês
(entre várias outras):
Há, pois, variação entre as línguas, mas – e esse é o ponto – essa va-
riação é regrada. Em The boundaries of Babel. The brain and the enigma of
impossible languages, Andrea Moro descreve três experimentos com ma-
peamento de ondas cerebrais e fluxo sanguíneo no cérebro que atestam
uma interação entre a linguística e as pesquisas sobre cérebro e mente.
Seu objetivo último é mostrar que os limites para a variação das línguas
naturais são detectáveis pelas ondas cerebrais, ou seja, há uma contraparte
cerebral, física, para a variabilidade sintática. Ao discutir um exemplo, ele
mostra claramente que embora as línguas variem, elas não variam alea-
toriamente. Um de seus exemplos é exatamente sobre ordem, um caso
parecido com o que vimos na comparação entre o turco e o português.
Vamos adaptar seu exemplo para o português abaixo; podemos supor as
seguintes variações na ordem do português:
64
A faculdade da linguagem CAPÍTULO 05
(5) a. Maria disse que João tinha visto uma foto.
65
Construindo gramáticas na escola
66
A faculdade da linguagem CAPÍTULO 05
rios danos cerebrais ou genéticos, fala a sua língua e a aprende sem esforço
merece uma explicação e um momento de reflexão. Esse é o chamado pro-
blema da aquisição da linguagem que foi colocado por Chomsky quando,
com sua famosa resenha do livro Verbal Behavior de Skinner, em 1957, ele
fundou a abordagem cognitiva da linguagem. Somos os únicos animais
Uma excelente discussão so-
que temos uma língua materna. Podemos, como faz Pinker (2008), entre bre esse assunto, com uma
perspectiva multiteórica,
outros autores, entender que a evolução das línguas foi gradual e que não
no sentido de que o autor
há uma ruptura entre nós e outras espécies ou, como Chomsky, que há busca entreter diferentes te-
orias, é Fitch (2010), infeliz-
uma ruptura evolutiva. Essa é uma disputa que está em vários lugares da
mente ainda sem tradução
biologia e não há como decidirmos sobre ela ainda. De qualquer modo, o para o português.
ponto crucial é que nenhuma outra espécie tem uma língua. Há sistemas
de comunicação usados por outras espécies: as abelhas se comunicam,
assim como os golfinhos, mas eles não têm língua e não se trata de uma
postura antropocentrista, mas de um dado científico que, mais uma vez,
precisa ser explicado. Por mais que tenhamos tentado ensinar outros ani-
mais a falar, nunca somos bem sucedidos.
67
Construindo gramáticas na escola
Se você quiser saber mais sobre essa experiência pode consultar Ter-
race, H. (1979) Nim: A Chimpanzee Who Learned Sign Language
Knopf, mais uma vez sem tradução para o português.
68
A faculdade da linguagem CAPÍTULO 05
Há muitos pontos importantes nessa experiência com Nim. Um
ponto fundamental é que uma língua NÃO é um sistema de comuni-
cação. Desfazer esse modo de ver as línguas vai certamente levar muito
tempo. Encontramos essa definição de língua em documentos oficiais
– nos Parâmetros Curriculares Nacionais tanto de ensino médio quanto
de ensino fundamental -, em livros didáticos, nas conversas, na nossa
vida cotidiana, etc. As abelhas têm um sistema de comunicação extre-
mamente sofisticado, elas conseguem indicar a posição do pólen, a sua
quantidade e qualidade, a distância em que se encontra. Mas, uma abe-
lha não cria algo novo, ela comunica apenas aquilo para o que ela está
geneticamente programada – abelhas nunca poderão, por exemplo, fa-
zer fofoca ou contar uma piada. Como a experiência com Nim mostrou,
não há sintaxe, não há um sistema que permite combinações infinitas
e consequentemente criar sentenças novas. É justamente a propriedade
da recursividade que torna as línguas naturais especiais e distintas de
quaisquer outros sistemas de comunicação.
Por que nas aulas de português nunca falamos sobre nós e os outros ani-
mais? Por que não perguntamos aos alunos se eles acham que os bichos
falam e em que sentido eles falam? Essas são questões interessantes e o
professor pode, com a sua turma, fazer uma pesquisa sobre o tema. De
novo, esse é um tema que pode ser desenvolvido com a biologia e, a
depender da série, com o professor de computação, refletindo sobre as
linguagens computacionais, que, afinal, também não são faladas.
69
Construindo gramáticas na escola
Exercício 1. Mostre por que uma língua não é uma etiquetagem de objetos
como parece ser a compreensão de língua no mito de Adão.
http://vestibular.brasilescola.com/guia-de-profissoes/linguistica.htm
70
O que as crianças nos dizem? CAPÍTULO 06
6 O que as crianças nos dizem?
Nosso objetivo com essa pequena incursão pela questão de como
as crianças “aprendem” sua língua é mostrar mais uma evidência para a
faculdade da linguagem. Chomsky, já vimos, foi quem colocou o proble-
ma da aquisição da linguagem de modo mais explícito e o trouxe para o
centro das atenções em linguística: a linguística precisa explicar como as
crianças aprendem, com dados tão truncados, sem instrução formal e em
tão pouco tempo, um sistema tão complexo como uma língua natural, um
sistema que, apesar das intensas pesquisas nos últimos anos, ainda não
teve seu funcionamento e estrutura plenamente entendido, nem mesmo
para o inglês, a língua mais estudada por razões certamente políticas.
71
Construindo gramáticas na escola
(6) João pediu ao seu vizinho, que tinha uma vaca, que acabara de
dar cria, que ainda não estava vendida para o seu concorrente, que esta-
va querendo comprar a cria, que João estava interessado...
Ela está colocando gênero num adjetivo que não apresenta no por-
tuguês marca de gênero. Ela está aplicando a regra de concordância de
gênero: ela é menina, então os adjetivos que se referem a ela são femi-
ninos. Só que ela nunca ouviu granda, porque não falamos assim, em
nenhum dialeto; ela inventou essa forma.
72
O que as crianças nos dizem? CAPÍTULO 06
do por comparação com formas como escrevi, comi... –, ele não permite
explicar por que a criança simplesmente não faz certas generalizações.
73
Construindo gramáticas na escola
b. Is lunch ready?
c. Is Mary home?
d. Is Paul sad?
(9) Para fazer a pergunta eu devo mover o verbo auxiliar (is) para a
primeira posição da sentença.
Veja que se a criança aplicar a regra em (9), ela acabaria por produ-
zir algo como:
74
O que as crianças nos dizem? CAPÍTULO 06
é que: nenhuma criança produz tal sentença e uma estrutura como a
exemplificada em (1) é agramatical em qualquer língua que conhece-
mos: ela é uma impossibilidade, ela é um dos limites para Babel. Por
isso, nenhum manual de ensino de inglês precisa explicar como fazer
essa pergunta. Agora a questão é: por que não produzimos sentenças
desse tipo? O que acontece em (1)?
(4) Apesar de ele estar cansado, João ainda vai fazer compra.
75
Construindo gramáticas na escola
ao exemplo em inglês, podemos dizer que a criança não imagina que (1)
possa ser a forma de perguntar, porque ela sabe que a primeira ocor-
rência de is está dentro de uma sentença relativa (who is sad), que está
encaixada em John. Não é possível tirar um elemento de dentro de uma
relativa porque ela é uma barreira que não permite extração. Na sintaxe,
ela é tratada como uma ilha forte. Os exemplos nos mostram que por
trás da aparente linearidade dos constituintes há uma hierarquia que é
respeitada para que as sentenças sejam bem interpretadas. E essa hie-
rarquia não aparece explicitamente nos dados. De fato, foram precisos
vários anos para que Chomsky enxergasse as hierarquias. Assim, não
importa a ordem linear, o que prestamos atenção são as estruturas sin-
táticas que se constroem hierarquicamente; é por isso que na sentença
em (4) no português não importa que ele ocorra antes de João, porque
estamos interpretando a estrutura sintática que está por baixo da ordem
linear e nessa estrutura João c-comanda o pronome ele. Assim, em (4)
ele só pode ser interpretado como coindexado à João, embora linear-
mente ele ocorra antes de João.
A c-comanda B.
76
O que as crianças nos dizem? CAPÍTULO 06
como (1) para o inglês ou que (3) só tem uma interpretação em portu-
guês. Nenhum manual de ensino de inglês como língua estrangeira vai
explicar que (1) não é gramatical, porque ninguém vai realizar (1) – ela
viola uma regra universal. Só os linguistas produzem sentenças como
(1) porque estão criando experimentos com as línguas para tentar en-
tender a sua estrutura. E o fato de que nossa faculdade da linguagem
interpreta não linearmente as estruturas é algo muito surpreendente.
Veja que uma regra como essa não é possível de ser apreendida induti-
vamente, apenas observando as produções dos adultos. O que nos leva
de volta a hipótese da faculdade da linguagem.
77
Unidade C
Construindo gramáticas: o
método científico na escola
Objetivo: Nesta unidade, vamos rever os diferentes níveis que constituem
uma gramática. Aprender técnicas de construção de uma gramática. Formular
hipóteses indutivas e dedutivas, e verificar a adequação de hipóteses, através da
análise de exemplos de várias línguas
Procuramos mostrar, nos capítulos anteriores, que há muitas con- Essa metodologia foi
aplicada em comuni-
tribuições que a linguística pode oferecer às aulas de português. As lín- dades indígenas da
guas são excelentes para ensinarmos o raciocínio científico – algo que é Austrália, comuni-
dades indígenas nos
necessário independentemente da área para a qual o aluno irá se dirigir Estados Unidos e na
–, porque não precisamos de equipamentos sofisticados para construir- América Central em
comunidades caren-
mos uma gramática – uma explicação para uma língua – e por isso a lin- tes. apud Honda &
guística já foi utilizada para o ensino de ciência. Isso é possível porque O’Neil (1993)
todos têm acesso direto a sua língua e conseguem, com certa facilidade,
levantar hipóteses sobre o seu funcionamento, avaliá-las, reformulá-las
e, se for o caso, fazer novas hipóteses.
85
Construindo gramáticas na escola
Contextos de Acarretamento
E sabe também que, obviamente, a sentença (ii) não acarreta (i). Veja
que podemos encaixar essa sentença em várias outras e o acarreta-
mento irá se manter:
86
O dado negativo e o erro CAPÍTULO 07
ora, como os poodles são um subconjunto do conjunto dos cachor-
ros, dizemos que há aqui um acarretamento para baixo, do conjunto
para o subconjunto.
(iv) não acarreta (v): o falante pode duvidar que todo cachorro seja
gordo e acreditar que todo poodle é gordo (mas nenhum cachorro
de outra raça é gordo, por exemplo). Além disso – e esse é um fato
extremamente interessante! –, veja que agora (v) acarreta (iv): se eu
duvido que todo poodle na vizinhança seja gordo, então duvido que
todo cachorro seja gordo. Se você prestar atenção, verá que o acar-
retamento agora é do subconjunto para o conjunto, ou seja, trata-se
de um acarretamento para cima. A relação se inverteu!
Você pode achar que isso é só uma coincidência, mas não é – longe
disso. Inúmeros fenômenos são explicados por essa propriedade do
acarretamento para baixo e pelo fato de que na negação as relações
de acarretamento se invertem. Você pode achar que as sentenças
em (iv) e (v) não são negativas, mas elas são: duvido é não acre-
dito’. Esse é um conhecimento sofisticado, e em geral os adultos
têm dificuldade de acompanhar sua explicação e entender como
ele funciona, mas nenhuma criança erra, elas aplicam esses raciocí-
nios de modo impecável. Se as crianças estivessem raciocinando via
indução, elas deveriam supor que (iv) acarreta (v) por comparação
com os exemplos anteriores. Mas as crianças simplesmente nunca
fazem isso, elas mostram que entendem perfeitamente essas rela-
ções. Note ainda que não há como depreender a regra indutivamen-
te, porque essa regra envolve manipular conceitos como conjunto
e relação de acarretamento. Se você quer ver alguns experimentos
com crianças que mostram que elas sabem esse tipo de relação, veja
87
Construindo gramáticas na escola
Crain, Meroni & Minai (2010), entre outros. Esses autores concluem
que as evidências de que as crianças manipulam esse conhecimento
“são difíceis de reconciliar com muitas abordagens da aquisição da
linguagem, especialmente aquelas que invocam mecanismos cog-
nitivos gerais para explicar essa aprendizagem”.
88
O dado negativo e o erro CAPÍTULO 07
crime não votar nas eleições. Obviamente, normativas são cultural e his-
toricamente estabelecidas e, sendo assim, podem mudar com o tempo e
ser diferente nas diversas culturas. O que nos parece um erro, pode ser
correto em outra cultura ou em outro momento da história. Na nossa
cultura, é errado casar com mais de um parceiro, mas há culturas em
que é permitido ao homem (mas não a mulher) ter mais de uma mulher.
89
Construindo gramáticas na escola
Os compêndios do bem dizer por sua vez ditam o que é o bem di-
zer. Eis alguns exemplos da abordagem normativa (preste atenção para
o uso do modal de necessidade, dever):
90
O procedimento científico CAPÍTULO 08
8 O procedimento científico
Já deve estar mais que claro que a abordagem da linguística não é a
do compêndio do bem dizer, porque para a linguística a língua é um ob-
jeto natural e enquanto tal não há como dizer que está certa ou errada.
O conceito de certo e errado simplesmente não se aplica às línguas na-
turais, porque elas não são normativas. Atenção, esse é um ponto muito
importante: não estamos dizendo que não haja regularidades na língua,
que não haja convenções, – obviamente há –, mas regularidades não são
normatividades. É um comportamento regular agradecermos as pesso-
as que nos prestam algum tipo de serviço – o motorista do ônibus, por
exemplo –, mas não há uma lei que estabelece que isso deve ocorrer.
Não há razão para relógio ser relógio em português e watch em inglês,
a não ser a regularidade do uso, a convenção. Mas não se trata de uma
lei. Confiamos que o outro fala a mesma língua que nós falamos e nos
baseamos na convenção, nas regularidades, para conversarmos. A con-
venção tem seu lugar na língua enquanto regularidades comunicativas,
da mesma forma que sorrir é uma convenção entre os humanos e é uma
maneira de nos aproximarmos; regularidades ocorrem e se tornam con-
venções. O que é preciso deixar claro é que não há nada melhor numa
ou em outra convenção. A normatividade seleciona uma convenção
como a correta e, como consequência, coloca as outras como erradas.
91
Construindo gramáticas na escola
primeiro passo é olhar as línguas como elas são, sem julgamentos de va-
lores que, como dissemos, não fazem sentido na investigação científica.
Como nas demais atividades científicas, o linguista tem que trabalhar
com fragmentos, com pedaços e muitas vezes com evidências indiretas.
Não temos acesso direto ao Big Bang, por exemplo, que aconteceu há
mais de 13 bilhões de anos, mas temos várias evidências indiretas, que
dependem crucialmente de aparelhos para medir certos fenômenos e de
outras teorias que já estão bem estabelecidas e aceitas.
O eletroencefalograma
foi reconhecido em
1937 e é utilizado hoje De modo semelhante, não temos acesso direto à faculdade da lin-
em dia em pesquisas guagem, e só muito recentemente temos uma compreensão um pouco
psicolinguísticas. Duas
técnicas bem recentes melhor do cérebro humano – compare o que sabemos sobre o estôma-
são o PET (Positron go, por exemplo, com o que sabemos sobre o cérebro. Há várias razões
Emission Tomogra-
phy - tomografia por para esse atraso, por assim dizer, com relação ao cérebro. Não podemos
Emissão de Pósitrons) avaliar o funcionamento do cérebro humano em outros animais, e isso
e o fMRI (functional
magnetic resonance se dá porque, para além das importantes e complicados questões éticas
imaging – imagem por com pesquisas com animais, a faculdade da linguagem é única nos hu-
Ressonância Magnética
Funcional) que per- manos. Só nos últimos anos surgiram tecnologias que nos deram acesso
mitem estudar o fluxo a uma investigação sobre os processos mentais, observando o que ocor-
sanguíneo no cérebro.
re no cérebro. Mas, de qualquer maneira, essas técnicas não permitem
construirmos modelos da gramática de um falante porque só vemos o
que está ocorrendo no cérebro, o fluxo sanguíneo ou as ondas cerebrais,
contudo, elas são recursos para testarmos certas hipóteses sobre a gra-
mática. Por exemplo, Moro (2010) descreve dois experimentos em que
ele testa se a sintaxe é um componente autônomo do cérebro, indepen-
dente de mecanismos cognitivos mais gerais, utilizando o PET e o fMRI.
92
O procedimento científico CAPÍTULO 08
tempo lidando com esses vários níveis que constituem uma língua. É
muito comum ouvirmos a crítica de que os formalistas estão descreven-
do o papel da azeitona na empadinha de frango. Em certo sentido, de
fato olhamos para um fenômeno pequeno, uma palavra, um morfema,
uma construção, porque queremos entender esse fenômeno, mas só é
possível entendê-lo no sistema em que ele está; não é possível entender
um fenômeno específico sem ter alguma teoria, alguma suposição sobre
como é o todo. Logo, buscamos entender a empadinha de frango olhan-
do para a importância da azeitona, mas sem esquecer como a empadi-
nha deve ficar no final, seu sabor, sua textura, sua coloração, etc. Esse
olhar focado é característico do empreendimento científico. As grandes
unificações, as generalizações mais amplas, são feitas por vários grupos
de pesquisas ao longo de vários anos.
Mas a sequência em (2) não é gramatical no PE! Note que não faz
sentido afirmar que (2) é errada ou certa. Ela é ou não é produzida por
uma certa gramática, um conjunto de regras. Ela não é produzida nem
pelas regras do inglês nem pelas regras do PE, mas é produzida pelas do
PB. Há muitas questões aqui, entre elas, qual é a história dessa constru-
ção no PB?; será que ela existia no português mais antigo e sobreviveu
no Brasil, mas desapareceu em Portugal?; será que ela é uma inovação
brasileira? O que não é possível é afirmar que essa construção é errada.
Comportamento linguístico
94
O procedimento científico CAPÍTULO 08
gar problemático. Sabemos também que demoramos mais tempo
para interpretar sequências problemáticas e que há correlatos ce-
rebrais de estruturas gramaticais consideradas malformadas que
também podem ser medidos, como o famoso N400.
Os falantes sabem muito bem quais estruturas são geradas por sua
língua e quais não são, e a escola poderia explorar esse conhecimen-
to epilinguístico colocando os alunos para construírem gramáticas.
Quando construímos gramáticas, nosso ponto de partida são as intui-
ções do falante, que se manifestam através do seu comportamento lin-
guístico: um falante do inglês não aceita (1) e um falante do PB aceita
(2). As gramáticas não são as mesmas e é por isso que quando vamos
aprender inglês ou português já mais velhos, como língua estrangeira,
transpomos as regras da nossa língua materna para a outra língua que
estamos aprendendo. Brasileiros não raramente proferem sentenças
como (1) e falantes de inglês aprendendo PB raramente proferem sen-
tenças como (2), eles vão optar por uma sentença com a estrutura do
inglês; vão dizer Meninos choram muito, que é uma sentença certa- Veja o estudo de Ionin,
Montrul & Santos
mente aceitável em português, mas muito menos comum, com algo de (2011) comparando
“formal”, “requintado”. Ou seja, houve uma mudança de registro, pas- falantes de inglês que
estão aprendendo por-
samos para uma variedade mais próxima da escrita, mais distante da tuguês e falantes do PB
oralidade, quando usamos o plural nu (meninos). Evidentemente esse que estão aprendendo
inglês e seu comporta-
não é o caso do inglês: o plural nu em inglês é uma estrutura informal, mento com relação aos
altamente recorrente na língua falada. nominais nus.
95
O procedimento linguístico CAPÍTULO 09
9 O procedimento linguístico
Imagine que você foi transportado para uma ilha habitada por um
povo que fala uma língua muito diferente da sua. Esse povo acolheu
você super bem, como eles sempre fazem com estrangeiros, e conver-
sam muito com você, embora você não entenda nada, nem mesmo
consiga detectar se eles estão falando uma palavra ou várias, se estão
perguntando ou afirmando.
Se você não é um linguista, você vai, sem nem se dar conta, come-
çar a “analisar” essa língua; vai detectar recorrências ou regularidades e
vai começar a associar recorrências com estados de coisas; vai também,
sem perceber, reparar na sintaxe dessa língua. Claro, esse processo é
feito sem que você tenha consciência e com a ajuda da faculdade da
linguagem. Certas combinações como já vimos não serão nem mesmo
aventadas, porque não estão disponíveis.
97
Construindo gramáticas na escola
gavagai, e viu, mais de uma vez, os falantes usando gavagai para falar
Essa é uma estória sobre coelhos, de tal forma que você levantou a seguinte hipótese: ga-
muito conhecida na vagai significa coelho. Você vai testar essa hipótese e aponta para um
filosofia e na linguística
e foi introduzida pelo coelho dizendo gavagai e esperando um sinal de aprovação, alguma
filósofo americano reação do seu informante. Suponha que o seu informante ficou muito
Willard Quine (1908-
2000) para discutir a feliz e mostrou essa felicidade quando viu que você usou gavagai para
questão do relativismo falar sobre um coelho. E você também ficou feliz porque achou que
ontológico. Trocando
em miúdos, como ter tinha aprendido a unir um fragmento dessa língua e algo no mundo,
certeza do que está deu o primeiro passo para conhecer a semântica dessa língua.
sendo apontado no
mundo? Se coloque
numa posição de Mas depois você percebeu que eles usavam gavagai também para se
quem não sabe nada e
imagine alguém apon- referir a galinhas brancas e à mandioca descascada e percebeu que a sua
tando um objeto e pro- hipótese inicial estava errada, embora você tenha tido uma confirmação,
ferindo uma sequência
linguística; o que ele gavagai não é coelho ou não é só coelho. Você formula então uma nova
está apontando? a cor? hipótese e vai assim galgando os passos na direção daquela língua. É óbvio
a forma? o tipo de ob-
jeto? o material de que que estamos racionalizando um procedimento que é natural nos huma-
é feito? tudo isso?... nos e estamos também simplificando absurdamente esse procedimento
porque estamos falando como se aprendêssemos sequências de modo iso-
lado para então construirmos uma gramática. Não é bem assim. Fazemos
tudo junto, mas o que nos interessa exemplificar é o método: observar
os dados, formular uma hipótese e verificar se ela está correta – veja que
apenas o fato de nossa hipótese se aplicar a uma situação não quer dizer
que ela esteja correta, porque podemos não estar enxergando a regra, mas
apenas um caso particular de sua aplicação, como ocorreu com o nosso
amigo perdido na ilha. É preciso verificar várias vezes e formular uma
hipótese sobre o que não é o caso, inventar um dado negativo.
98
O procedimento linguístico CAPÍTULO 09
Essa é uma metodologia muito corrente na linguística. Formula-
mos uma hipótese e esperamos a partir dessa hipótese que tal ou qual
sequência não seja gramatical, não seja aceitável, porque essa sequência Escute um pouco
dessa língua http://
não faz parte da gramática do nosso informante. Vamos ilustrar esse www.youtube.com/
procedimento com dados da língua inuite, uma língua dos esquimós, watch?v=_HZ_Dvkxi-8
que é falada no Canadá e tem cerca de 30 mil falantes.
e) aglu ‘buraco para foca respirar’ l) aivuq ‘ela vai pra casa’
99
Construindo gramáticas na escola
Língua aglutinante Podemos também, apenas olhando para esses poucos dados, supor
Numa língua aglutinante, que essa é uma língua aglutinante porque o que nós dizemos usando
uma palavra contém vários
várias palavras – veja os dados em d), g) e k) – eles realizam com uma
morfemas e cada afixo é
claramente identificável e única palavra, através de vários morfemas, mas o significado e a forma
normalmente representa desses morfemas são estáveis. Podemos, assim, imaginar que ‘mit’ é um
uma única categoria gra- morfema que indica a procedência, a partir dos dados em f) e em j).
matical ou significado. Veja Não é muito fácil produzir dados negativos quando temos tão poucas
o exemplo em turco: köy
ocorrências, mas parece que nessa língua o que para nós é uma preposi-
‘vila’ (singular), köy-ler ‘vilas’
(plural), köy-ler-in ‘das vilas’ ção aparece como um sufixo; examine f), por exemplo. Podemos então
(genitivo plural). esperar que a sequência mitiglu não seja gramatical nessa língua. Se esse
for o caso, esperamos que nessas línguas as preposições sejam ou sufi-
xos ou prefixos, mas não ambos, como ocorre em várias outras línguas,
como, por exemplo, o coreano. Em coreano, hakkyo-eyse é literalmen-
te escola-na, a preposição é um sufixo (trata-se, mais tecnicamente, de
uma posposição.), mas *eyse-hakkyo é agramatical.
a) xaridam eu comprei
100
O procedimento linguístico CAPÍTULO 09
Sabemos que xar significa comprar e que –id designa tempo passa-
do. Procure identificar as pessoas nessa língua, ou seja, como é eu,
você, ele, ela, eles, elas, nós, vocês. Como são as pessoas gramati-
cais nessa língua? Elas são morfemas livres? Como é feita a forma
progressiva nessa língua, que corresponde ao nosso estar V+ndo?
Como é a negação nessa língua?
Princípios e Parâmetros
(i) a. * is tired.
b. * est sorti.
101
Construindo gramáticas na escola
(ii) eu sai.
ele/ela saiu.
a gente saiu.
vocês saiu.
eles saiu.
(iii) sai
Por isso, dizemos que o português é uma língua de sujeito nulo par-
cial, permitindo a omissão do mesmo em contextos restritos. Veremos
outras propriedades do português brasileiro no próximo capítulo.
102
O procedimento linguístico CAPÍTULO 09
(3) sono gakuesi-ga gakko kara modot ta
103
Construindo gramáticas na escola
104
O procedimento linguístico CAPÍTULO 09
(ii) *inadvogado, *incadeira,...
105
Construindo gramáticas na escola
em português temos apenas a distinção entre aqui e lá, que se ancora na figura
do falante (eles são dêiticos, portanto); um objeto está aqui se está próximo ao
falante e um objeto está lá se está longe do falante. Mas há línguas que o uso
dos dêiticos não depende da proximidade do objeto com relação ao falante,
mas do objeto estar ou não visível para o falante. Por exemplo, em malgaxe,
uma das línguas oficiais de Madagascar, ety é usado quando o objeto está visí-
vel para o falante, enquanto que aty é usado se o falante não vê o objeto:
(8) Ey ny tranony
Aty ny tranony
Não importa se a casa está perto ou longe. Ela pode estar longe e
estar visível. Se a semântica relaciona mundo e linguagem, será que o
mundo em malgaxe é diferente do mundo em português?
106
O procedimento linguístico CAPÍTULO 09
kemudrau segunda pessoa do dual ‘vocês dois’
Números
107
Construindo gramáticas na escola
tuguês. Há línguas que têm palavras apenas para contar até três ou
cinco e não temos certeza de que o que denominamos um, dois,
três... tem o mesmo significado que essas palavras nessas línguas.
Esse tópico, por exemplo, pode ser trabalhado juntamente com o
professor de matemática e com o professor de história e geografia.
O mundurukú, uma língua da família Tupi falada no Pará por apro-
ximadamente 7000 pessoas, tem nome apenas para os números
de 1 a 5. Essa língua não tem também uma rotina de contar que
ensinamos às crianças já bem cedo: um, dois, três, quatro, cinco...
São várias as questões que se colocam e há relatos de antropólo-
gos que afirmam que viver em culturas que não prestam atenção
para os números – não tem relógio, não marcam os dias do mês, as
horas que duram uma viagem – é muito diferente de morar numa
cultura como a nossa, na qual medimos tudo. Há também vários es-
tudos que mostram que os mundurukús, por exemplo, têm noção
de quantidade e sabem operar com quantidades – somar e subtrair
–, mas não têm representação exata dos números, eles não diferen-
ciam entre, por exemplo, 58 e 59.
Veja Feigenson, Dehaene & Spelke (2004) para uma revisão sobre os
sistemas de numerais e as línguas naturais. Esse é um artigo em inglês.
Exercício
108
O procedimento linguístico CAPÍTULO 09
‘Terry gosta daquela menina.’
(ii) Desenhe a árvore sintática para pelo menos uma dessas sentenças.
Tradicionalmente essas são as quatro áreas basilares da linguís- O leitor interessado pode
tica: a fonética/fonologia, a morfologia, a sintaxe e a semântica. Mais consultar Pires de Oliveira
& Basso (2013) e Levinson
recentemente, é costume incluirmos a área da pragmática, que junta- (1983; 2000)
mente com a semântica, daria conta dos significados. Em especial os
fenômenos conhecidos como implicaturas generalizadas têm se mos-
trado muito regulares e parte da gramática da língua. Não podemos
nessa revisão introduzir esse assunto.
O mais importante é notar que essas áreas têm uma certa autono-
mia, embora quando estamos conversando todos esses processos ocor-
ram simultaneamente e quase instantaneamente, ou seja, a divisão em
áreas é um recurso científico, o objeto é um todo que funciona como
tal, mas a divisão em áreas não é uma convenção. Reflita um pouco so-
bre esse processo que se dá em duas vias, a recepção e a produção. Na
recepção, as palavras chegam ao seu ouvido como um continuum que é
então analisado em fonemas, morfemas, palavras, uma certa combina-
ção sintática é atribuída a essa fala e também uma interpretação semân-
109
Construindo gramáticas na escola
110
O procedimento linguístico CAPÍTULO 09
grandes dificuldades) imaginar a situação descrita em (11), porque não há
círculos quadrados; de fato, é uma contradição falar em círculos quadra-
dos. Um outro caso é quando temos sequências que não são gramaticais,
mas que têm uma interpretação. A sequência em (12) não é gramatical
(suponha que a sequência é o início de uma conversa, logo, não há um
sujeito não dito, mas presente na interpretação dessa sequência):
111
Unidade D
O PB
José Saramago.
O PB, que bicho é esse? CAPÍTULO 10
10 O PB, que bicho é esse?
Seja como for, as diferenças entre o PB e o PE não são apenas de
pronúncia e de léxico; elas são mais profundas, dizem respeito ao sis-
tema gramatical como um todo. Por isso, parece-nos importante que
tenhamos uma compreensão menos impressionista de como é a gra-
mática do PB, entre outras razões, porque é essa a língua que os alunos
falam, que nós falamos. Essas diferenças são tão fortes que há diferentes
opiniões sobre como foi a formação do PB, como foi possível que o PB
se tornasse uma língua tão diferente do PE.
A formação do PB
Mais uma vez, não podemos entrar nos detalhes, mas há um de-
bate bastante acalorado sobre como se deu a formação do PB.
Embora haja posições intermediárias no debate, ele tem se pola-
rizado em duas vertentes: os que defendem a hipótese da deriva
linguística e os que entendem que houve influência de outras lín-
guas, em particular as africanas. Assim, há os que consideram que
a singularidade do PB frente ao PE se deve a uma “deriva natural”;
essa hipótese, defendida entre outros autores por Naro & Scher-
re (2007), entende que não houve influência de nenhuma outra
língua, nem africana, nem indígena, na formação do PB, mas que
todas as diferenças podem ser encontradas em estratos mais anti-
gos do PE e em grande medida no PE atual – nessa teoria o papel
de falantes de línguas africanas e indígenas é “acelerar” a deriva no
Brasil, o que levaria então às diferenças frente a Portugal. Do outro
lado, há os que entendem que houve influência do contato com
outras línguas; em especial, há uma forte tendência para destacar
o papel das línguas africanas na formação do PB – nesse caso, o PB
teria incorporado traços ou características das línguas africanas.
Guy (1989), por exemplo, defende que o PB surgiu de um processo Ver Ilari & Basso (2006)
de crioulização. Esse tema é sem dúvida fascinante e pode mobili- para uma história do
PB.
zar pesquisas com o professor de história.
117
Construindo gramáticas na escola
Variantes e variáveis
118
O PB, que bicho é esse? CAPÍTULO 10
da por ele. Por exemplo, só ocorre a palatização do /t/ e do /d/ antes
da vogal /i/. Não é gramatical em nenhum dialeto do português di-
zermos /dzado/ (dado) (em alguns dialetos há também a palatização
antes do /u/). Mais uma vez, não podemos nos deter na apresentação
desses condicionantes internos, mas vamos mencioná-los ao longo
desta exposição sobre o PB.
119
“Perda” de morfologia de número no nome e no verbo CAPÍTULO 11
11 “Perda” de morfologia de
número no nome e no verbo
Esse tipo de evidência foi descrito por Scherre & Naro (1997), Naro O artigo está disponível
para leitura em http://
& Scherre (2003) e Scherre et al. (2007), entre outros, com base em aná-
www.ai.mit.edu/pro-
lises quantitativas de amostras faladas.Vejamos alguns exemplos reti- jects/dm/bp/scherre-
-naro98.pdf
rados de Scherre & Naro (1998). Nesse primeiro bloco, apresentamos
casos que envolvem a concordância do verbo com o sujeito:
121
Construindo gramáticas na escola
(2) ... eles GANHAø demais po que eles fayz ( CAB02MP16/ 0026).
122
“Perda” de morfologia de número no nome e no verbo CAPÍTULO 11
Além disso, a forma tu no PB aparece em alguns dialetos e mesmo
neles ela está em variação com você, ou seja, ela concorda com uma
suposta forma de terceira pessoa. Disso decorre que no PB falado
o paradigma de conjugação é bastante diferente daquele normal-
mente encontrado na escola e no PE. Temos:
Eu viajei
Você/tu (em alguns dialetos do Brasil) viajou
Ele/ela viajou
A gente viajou
Vocês/Eles viajou
I traveled
You traveled
He/she/it traveled
We traveled
They traveled
123
Construindo gramáticas na escola
cia for como na gramática de (2) e (3) acima, é essa a estrutura que vai
aparecer na língua “intermediária” – a língua de transição entre a língua
que o aluno já sabe e a língua que ele está aprendendo -, porque ele vai
transpor a sua gramática, como vimos no caso do singular nu para os
falantes de inglês. Na escrita culta, a concordância aparece marcada em
todos os termos. Assim quando estamos aprendendo uma língua que tem
a concordância marcada em todos os termos, e na nossa língua materna a
concordância aparece em apenas um dos termos, tenderemos a não mar-
car a concordância em todos os termos, até o momento em que dominar-
mos essa nova gramática, em que ela seja uma outra língua na qual nos
movemos naturalmente.
Repare como soa na- E é por isso que nas redações dos alunos certamente vai aparecer
tural essa sentença. casos em que não há morfologia.
Na escola
124
“Perda” de morfologia de número no nome e no verbo CAPÍTULO 11
ta nos jornais. Esse é um tema rico que permite explorar relações
gramaticais, a noção de sujeito, as diferentes variedades no Bra-
sil, o português brasileiro e o PE, que não tem a variedade sem a
marcação morfológica. Outra pesquisa interessante é verificar nas
gramáticas tradicionais como o tema é tratado e comparar com as
gramáticas do português falado.
É muito importante
É fundamental que essa discussão permita que o aluno entenda o estudar as gramáticas
que ele está fazendo, entenda porque ele não está colocando a con- do português falado, ver
entre outras Castilho,
cordância como a gramática normativa exige e essa lição vale para 2010) e ver como elas
todos os supostos “problemas” de redação: trata-se de entender o diferem no tratamento
dado a essa e a outras
erro como um estágio na aquisição de uma nova língua, como uma questões gramaticais).
transposição de gramáticas, e levar o aluno a entender o que está
acontecendo, o que ele está vivendo. Uma outra lição, talvez não tão
clara, mas muito importante, é que somos fundamentalmente mul-
tilíngues, manipulamos diferentes gramáticas o tempo todo e essa é
uma capacidade importante que a escola precisa explorar. Aprender
a escrever é aprender uma outra língua, uma outra gramática e isso
é algo muito natural, se soubermos explorar, se não bloquearmos o
aluno, estigmatizando a sua fala.
(6) essaS estradaS novaø; doø meuS paiS (variantes explícitas e va-
riantes zero);
125
Construindo gramáticas na escola
Mas note, mais uma vez, que a variação não é aleatória. Diferente-
mente do inglês, não podemos apagar a marca do determinante (o artigo
definido ou o pronome demonstrativo), ou seja, apesar da variação, as
sequências em (8) são agramaticais em qualquer variedade do português:
Na escola
126
“Perda” de morfologia de número no nome e no verbo CAPÍTULO 11
personagem, quando, por exemplo, eles estão construindo textos
narrativos. Essa é uma estratégia que foi explorada por Maurício de
Souza no personagem do Chico Bento e que aparece em diversos
romances contemporâneos, por exemplo, o romance Cidade de
Deus de Paulo Lins. Essa estratégia apa-
rece também em
filmes como O auto da
compadecida, Cidade
de Deus, Tropa de Elite,
Finalmente, Scherre & Naro (1998) mostram que a concordân- entre inúmeros outros.
cia também está em variação nos predicativos e particípios passados.
Vamos apenas exemplificar esse caso, mais uma vez com exemplos de
Scherre & Naro:
(9) a. ... as coisas tão muito CARAS, né? ... (variante explícita);
b. ... que as coisaø táø CARAø, num dá mesmo ... (variante zero);
127
O objeto nulo e os pronomes no acusativo CAPÍTULO 12
12 O objeto nulo e os pronomes
no acusativo
Como vimos, o sistema pronominal no PB está mudando, mas não
apenas no caso nominativo; estamos mudando também no acusativo e,
em grande parte, deixando essa posição nula. Embora a posição de ob-
jeto possa também ocorrer vazia no PE, como no exemplo apresentado
pela primeira vez por Raposo (1986, apud Cyrino 2001) e repetido aqui
em (11), essas línguas diferem muito com relação a essa posição, não
apenas porque no PB há muito mais casos em que o objeto está nulo,
casos que não são possíveis no PE, mas, como veremos, porque a forma
usada no preenchimento não é a mesma. A sentença em (11) é possível
nas duas línguas, mas as sentenças em (12) são agramaticais no PE –
exemplos retirados de Raposo (apud Cyrino 2001) e gramaticais no PB:
Esse trabalho pode ser c. Você viu o João? Eu vi ele. (*PE; PB)
recuperado em http://
www.revel.inf.br/files/
artigos/revel_9_obje- Uma pesquisa muito interessante para os nossos propósitos foi
to_direto_nulo.pdf realizada por Oliveira (2007). Nessa pesquisa, a autora fez um levan-
tamento das ocorrências de preenchimento ou de objeto nulo em re-
dações da 1 a 4 séries. Como é de se esperar, mais uma vez as caracte-
rísticas da língua do aluno serão projetadas para a língua que ele está
aprendendo. O que esperamos, então, é que quanto mais avançada a
série, quanto mais alfabetizado, isto é, quando mais o aluno dominar
a escrita, maior será a utilização do clítico (a, o), que é uma marca da
língua escrita padrão. Foi exatamente isso o que Oliveira encontrou
na sua análise das redações. A autora avaliou os seguintes casos (os
exemplos foram retirados de Oliveira, 2007):
(14) Ele ficou bravo e furou a bola e jogou [Ø] no lixo. (3ª série)
(15) Então ele falou: eu vou la ajudar ela a si levantar. (1ª série)
(16) Ele entrou e pegou a pipa derrepente caiu a pipa .(3ª série)
130
O objeto nulo e os pronomes no acusativo CAPÍTULO 12
(iv) uso do clítico acusativo de 3ª pessoa:
(17) Acho que o Cascão está em perigo vou ajudalo. (4ª série)
131
Construindo gramáticas na escola
132
O lugar como sujeito CAPÍTULO 13
13 O lugar como sujeito
Diferentemente do que ocorre no PE e em outras línguas români-
cas, no PB, sintagmas que são em geral adjuntos adverbiais de lugar Ver, por exemplo, o arti-
podem ocorrer na posição pré-verbal, como sujeito gramatical, de- go de Costa (2010) em
que ele afirma que essa
sencadeando inclusive concordância, sem, no entanto, serem o sujeito construção é de fato
lógico (ou semântico) do verbo. Essa descrição pode parecer compli- característica do PB.
cada, com tantos termos técnicos como os que aparecem sublinhados,
mas vamos desembrulhá-la olhando os exemplos abaixo, analisados em
Avelar et al. (2011) que, por sua vez, retiraram de blogs que, como sabe-
mos, são interações escritas bem próximas da oralidade. Vamos analisar
o exemplo em (21) mais detalhadamente:
(23) a. Apenas 3 desses cinco monitores aparecem imagem, enquan- Estas sentenças foram
to os outros dois ficam aparecendo a mensagem. extraídas deste site
http://linuxeducacio-
nal.com/mod/forum/
b. Apenas aparece imagem em 3 desses cinco monitores, en- discuss.php?d=1587.
quanto a mensagem fica aparecendo nos outros dois.
133
Construindo gramáticas na escola
134
Adjuntos adnominais como sujeitos CAPÍTULO 14
14 Adjuntos adnominais como
sujeitos
Vejamos, antes de mais nada, um exemplo desta construção que é
também característica do PB:
135
Construindo gramáticas na escola
136
Adjuntos adnominais como sujeitos CAPÍTULO 14
137
Construindo gramáticas na escola
138
Construções de alternância incoativa ou passivas com verbos na
forma ativa CAPÍTULO 15
15 Construções de alternância
incoativa ou passivas com
verbos na forma ativa
Uma outra característica do PB é a possibilidade de o objeto
direto ocorrer na posição de sujeito, como exemplificado no par de
sentenças abaixo:
b. O balde encheu.
b. * O balde viu.
139
Construindo gramáticas na escola
Esta sentença foi ex- (37) O dinheiro liberou através do prazo de quatorze dias.
traída deste site http://
abduzeedo.com.br/
livros-de-cabeceira- (38) Enquanto meu carro consertava em uma oficina eu lia a revista
-para-designers-3
Veja [...]. Quando meu carro consertou saí correndo de banca em banca
Esta sentença foi ex- atrás desta revista.”
traída deste site
http://www.mercado
livre.com.br/jm/ Você deve ter notado que em todas elas temos pelo menos um ver-
profile?id=9808
8497&oper=S bo transitivo que não ocorre com o seu argumento externo ou sujeito
gramatical e o seu complemento ou objeto direto é que aparece realiza-
Estas sentenças foram
extraídas deste site do na posição de sujeito. Veja o exemplo em (37), certamente não foi
http://revistacrescer. o dinheiro que liberou, no sentido de que ele é o agente do evento, o
globo.com/
Revista/Crescer/0,,E dinheiro é o tema da liberação, é o objeto direto do verbo liberou, mas
DI0-10441-2-10399,00. ele aparece na posição de sujeito. Além disso, do ponto de vista semân-
html
tico, essas construções expressam um sentido passivo, já que o sujeito
não aparece e o objeto é levado a uma posição de maior proeminência
discursiva. Veja que podemos parafrasear todas as sentenças acima uti-
lizando a passiva:
140
Sujeito nulo CAPÍTULO 16
16 Sujeito nulo
A questão do sujeito nulo foi muito debatida na literatura sobre
a sintaxe do PB porque marca um contraste paramétrico com o PE
(vejam-se, dentre outros, Duarte, 1995; Galves, 1998, 2001; Figueiredo
Silva, 1996; Kato 2000; entre outros) e é por demais complexa e extensa
para ser discutida aqui com o grau de detalhe que a questão merece.
Nosso objetivo aqui é apenas notar o que há de particular no PB.
141
Construindo gramáticas na escola
(40) Essa minha tia que mora aqui, ela é solteirona e eu acho que ela
Trecho de fala apre- é super-feliz, sabe? Eu não acho que ela seria feliz assim... Ela é uma pessoa
sentado em Duarte que ajuda os outros pra caramba. Ela – isso é até um pouco de defeito –
1995: 46.
ela pensa muito mais nos outros do que nela, né. Mais eu acho que ela é
uma pessoa feliz e tal, que não tem nada... É que a vida não ficou a dever,
entendeu, nada. Foi uma opção dela ficar solteira. Ela não ficou solteira
porque não apareceu pretendente. Ela ficou solteira porque ela quis.
142
Sujeito nulo CAPÍTULO 16
sujeitos de referência genérica/indefinida seriam necessariamente realiza-
dos pelo pronome se que aparece junto ao verbo, como mostramos em (42):
Mais uma vez, essa é uma propriedade da qual não temos consciên-
cia: simplesmente usamos ou deixamos de usar os pronomes na posição
de sujeito de forma natural, sem percebermos que estamos seguindo
uma regra e que essa regra, além de tudo, não é a mesma que rege a gra-
mática do PE. De novo, o professor de português pode explorar muitos
caminhos. Pode propor comparar o PE e o PB, comparando, por exem-
plo, as narrativas nas duas línguas, ou pode solicitar que um português
conte uma estória e que a mesma estória seja contada por um brasileiro
e comparar, pode ler receitas nas duas línguas, pode explicar definitude
e mostrar como intuitivamente lidamos com esse conceito, mesmo sem
ter consciência disso, etc.
143
O singular nu CAPÍTULO 17
17 O singular nu
Vamos agora apresentar uma diferença na interface entre a sintaxe
e a semântica e que só recentemente está sendo discutida na literatura
em linguística. Trata-se do uso bastante produtivo do que se convencio-
nou denominar singular nu no PB. Essa construção não ocorre no PE e
em nenhuma outra língua românica. Kabatek (2007) defende que essa
construção é um resquício do português antigo que não só se manteve
apenas no PB, mas se expandiu, dado que nas variedades mais antigas
do português não há tantos dados em tantos contextos de uso como
registramos no PB de hoje. Em sua pesquisa, Kabatek encontrou, em
bancos de dados do PB, os seguintes exemplos, nos quais o singular nu
vem sublinhado (repare especialmente no exemplo (47):
145
Construindo gramáticas na escola
também parece claro que não é o caso que se trata de um objeto não es-
pecífico, como em um livro e um filme respectivamente. Com um livro e
um filme interpretamos que foi apenas um livro e um filme e com o sin-
gular nu podemos ter vários livros e vários filmes ou apenas um pedaço
Ver Pires de Oliveira de filme. Finalmente, (47) é um problema, porque agora temos um caso
(2012) para uma aná-
lise semântica dessa de um evento específico e um indivíduo definido. Não é fácil conseguir
construção. uma teoria que dê conta de todos esses usos.
146
O singular nu CAPÍTULO 17
Essa construção não existe no PE. Além disso, essa sentença pode
ser interpretada tanto como expressando que o João tem um maior nú-
mero de pedras do que a Maria, quanto que o João tem um volume
maior de pedras – imagine que o João tem apenas uma pedra muito
grande, enquanto que Maria tem 5 pedras bem pequenas. Essa possi-
bilidade levanta inúmeras questões semânticas que, infelizmente, não
podemos discutir. O mesmo acontece com as sentenças abaixo que de
novo não são possíveis no PE, mas ocorrem no PB: Comparação é outro
tema interessante
quando se estuda essas
(49) Tem um pouco de aluno no auditório. duas línguas. A expres-
são que nem tem senti-
dos diferentes no PB e
(50) Tem muito menino no elevador. no PE. Assim, a senten-
ça João come que nem
o pai tem diferentes
(51) Temos q decidir pra poder reservar um pouco de mesa neh interpretações.
alias...Vila sexta a noite eh uoh...
Esta sentença foi ex-
traída deste site www.
Uma construção também típica do PB e que, dessa vez sabemos, é orkut.com/Main#Com
um resquício do português antigo está exemplificada abaixo: mMsgs?tid=25041447
84598947774&cmm=
24933144&hl=en
(52) Todo menino chora.
147
Construindo gramáticas na escola
148
Mudanças sintático-semânticas recentes no PB CAPÍTULO 18
18 Mudanças sintático-
semânticas recentes no PB
Podemos também pensar em fenômenos sintático-semânticos que
aconteceram exclusivamente no PB nas últimas décadas. Justamente por-
que os exemplos são recentes, os dados que apresentamos na sequência
devem ser lidos com cautela – mudanças linguísticas levam um certo
tempo para se solidificarem (ou então desaparecem). Não obstante, é in-
teressante observarmos construções que usamos todo dia e constatar sua
estrutura, sempre lembrando que se trata de algo único do PB.
149
Construindo gramáticas na escola
partirmos do uso canônico de dar, veremos que ele tem três argumen-
tos, o primeiro dos quais, o agente, é, em geral, animado, o segundo,
o objeto é, em geral, não animado, e o terceiro, o beneficiário (aquele
que recebe algo), pode ser animado ou não; e assim, bem simplifica-
damente, a estrutura do verbo dar relaciona dois argumentos com um
terceiro, devido a uma troca de posse:
Ainda pensando nessa construção dar para, repare que ela tem
um significado bem diferente em ...se ao te conhecer dei pra sonhar...;
neste caso, novamente, há variação com a preposição de, mas não pa-
rece que estamos falando de possibilidade e, e sim de começo; veja que
podemos parafrasear o trecho em questão do seguinte modo ...se ao te
conhecer comecei a sonhar.... Qual é a relação entre os vários exemplos
de dar (para/de)? Por que num caso interpretamos possibilidade e no
outro começo e ainda há um outro que se trata de um verbo com três
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Mudanças sintático-semânticas recentes no PB CAPÍTULO 18
argumentos e o para indica o beneficiário? Qual é o significado básico
de dar que permite que ele seja usado nesses tipos de construção e
receba as interpretações sugeridas?
Verbos leves
Não há muito consenso a respeito dos verbos leves na literatura: para al-
guns autores, os verbos leves apresentam uma semântica relativamen-
te vazia, são simples portadores das marcas de tempo e concordância;
enquanto para outros autores, os verbos leves formam um predicado
complexo com o nome deverbal. Vejamos os exemplos abaixo:
Nos dois casos, o verbo dar não reage ao tipo de agente da sentença
[±humano], ou seja, não faz restrição de seleção; parece que o que se-
leciona o argumento externo é o nome deverbal martelada e mordi-
da, respectivamente. Tanto que uma sentença como O cachorro deu
uma martelada na mesa não é semanticamente possível.
151
Construindo gramáticas na escola
Como você pode ver, apenas analisar o verbo dar nos fornece ma-
terial para uma vida de estudos (sem exagero!), e estamos considerando
apenas uma das mudanças recentes que podemos detectar no PB.
As piadas
Um outro caso que vale a pena mencionar tem a ver com o seguinte
tipo de construção, também muito comum na fala cotidiana:
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Mudanças sintático-semânticas recentes no PB CAPÍTULO 18
(59) Me vê uma porção de batatinha frita e 1 chope pra mim.
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Construindo gramáticas na escola
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Mudanças sintático-semânticas recentes no PB CAPÍTULO 18
esses verbos como tendo dois argumentos: a Maria se acha o que exata-
mente em (63)? O que precisamente João causou em (65)? Nesses dois
casos, como adiantamos, a mudança na quantidade de argumentos cau-
sa também uma mudança de significado; um prato cheio para análises
sintáticas, semânticas, sociolinguísticas – afinal, são os jovens de certa
faixa e com certo nível de renda que usam tais construções mais corri-
queiramente – e históricas, pois esses dois exemplos são recentes e sua
história pode ser traçada de modo interessante.
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Fechando algumas pontas CAPÍTULO 19
19 Fechando algumas pontas
É absolutamente necessário que professores de português no Bra-
sil saibam identificar certas propriedades do PB para não só poderem
entender melhor as transposições que os alunos fazem para a escrita,
mas, principalmente, que, ao invés de corrigir sem explicar, o profes-
sor possa explicar as diferenças e explorar essas diferenças construindo
diferentes gramáticas e mobilizando esse conhecimento na construção
de diferentes tipos de textos. A força de uma narrativa está também na
consistência dos personagens, um pescador de Caraguatatuba em São
Paulo não fala da mesma forma que um pescador em Mafra (Portugal)
e não se trata apenas, como vimos exaustivamente neste capítulo, de
diferenças prosódicas e lexicais, as línguas são diferentes.
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Conclusão
Geraldi (2006), em sua fala “Pesquisa em Linguagem na Contem-
poraneidade”, endereçada aos formandos de letras e linguística da Uni-
camp, por um caminho bem diferente, de crítica à visão científica que
Este artigo foi re-
aqui propomos, termina sugerindo a radicalização “na defesa de outras -publicado em Franchi,
Fiorin & Ilari (2011).
manifestações verbais como tão importantes ou até mais importantes do
Franchi et al. (2006) é
que aquelas que a tradição elevou à categoria de cânone”. É essa posição leitura obrigatória para
quem quer entender
radical que acreditamos que pode efetivamente fazer a diferença nas au-
melhor como a linguís-
las de português. Mas, diferentemente de Geraldi, não entendemos que tica entende gramá-
tica e também para
a linguagem é mais um modo de constituição da subjetividade do que
exemplos de como a
uma representação do mundo. A linguagem é ao mesmo tempo, como gramática pode e deve
estar na sala de aula.
bem lembra Franchi (2001) em seu famoso artigo Linguagem: Ativida-
de Constitutiva, a maneira de nos constituirmos enquanto sujeito na
medida em que, também por meio da linguagem, construímos o nosso
mundo (ou uma representação dele). Não há dicotomia entre sujeito e
mundo, mas mútua constituição.
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Construindo gramáticas na escola
Feynman no Brasil
160
Daí então eu disse: “O principal propósito da minha apresen-
tação é provar a vocês que ciência alguma está sendo ensi-
nada no Brasil!” (Leighton, 2006, p. 222; grifos nossos)
Uma outra coisa que eu nunca consegui que eles [i.e., os alunos]
fizessem era colocar questões. Finalmente, um estudante me ex-
plicou: “Se eu fizer uma pergunta durante sua aula, depois todos
ficarão me dizendo: ‘Por que você está desperdiçando o tempo da
aula? Estamos tentando aprender alguma coisa aqui. E você fica in-
terrompendo o professor com perguntas’”.
Em sua autobiografia, ele diz que fez tal provocação com a melhor
das intenções, procurando mostrar que o sistema de educação no
Brasil era baseado em decorar coisas, em saber a resposta correta
sem saber o que ela significa. Essa situação irritava Feynman sobre-
maneira porque para ele, como ele deixou bem claro em diversas
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Construindo gramáticas na escola
“Ah, nós estudamos essas anotações”, ele disse. “Nós vamos ter uma
prova”.
“Muito fácil. Eu posso até te dizer agora uma das questões”. Ele olhou
para seu caderno e disse “Quando dois corpos são equivalentes?” E
a resposta é “Dois corpos são equivalentes se torques iguais produ-
zirem acelerações iguais”. Então, como você pode ver, eles poderiam
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passar nas provas, e “aprender” todas essas coisas, e não saber abso-
lutamente nada, exceto o que eles memorizaram.
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Construindo gramáticas na escola
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(7) Ele tem um restaurante num bairro distante.
Pode parecer bobagem testar uma sentença como (8), afinal é óbvio
que não falamos assim. Mas nós vimos que há línguas em que isso ocorre
e podemos explorar essas outras línguas. Além disso, a ordem é um ele-
mento importante para decidirmos se estamos diante de um /nuN/ de
165
Construindo gramáticas na escola
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sibilidade psicológica dessa hipótese – ou há um item /nuN/ no nosso
léxico mental e os diferentes usos podem ser explicados por associações
via analogia (ou metáfora).
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Construindo gramáticas na escola
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A sentença em (24) é um contra-exemplo a sua generalização?
Qual é então a generalização? Veja que você terá que levantar um outro
tipo de dados agora.
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Construindo gramáticas na escola
pode haver elementos que estão presentes na interpretação, mas não são
explicitamente falados), ele tem duas alternativas: ou ele considera que
comer é um verbo intransitivo ou que muito é o objeto. Nos dois casos, a
reação convencional do professor é considerar que o aluno errou. Uma
outra postura é entender o raciocínio que o aluno realizou para respon-
der de um ou de outro modo.
Além disso, o que fará este mesmo aluno diante de sentenças como
as de (27)?
Para que haja uma boa compreensão por parte do aluno, é mui-
to mais fácil que o professor trabalhe a noção de núcleo da sentença e
complementação verbal antes de solicitar que o mesmo memorize uma
classificação de verbos de forma incoerente e inconsistente. A ideia é
que o professor comece discutindo esses dados com os alunos e ava-
liando as hipóteses que eles irão levantar. Pode partir da intuição de
núcleo, perguntando qual é o elemento principal da sentença. O núcleo
é o elemento principal da frase, aquele que desencadeia um evento/uma
cena. Vamos exemplificar com a sentença (27d): qual é o núcleo desta
sentença? Quantos elementos se combinam com este núcleo para que o
evento seja bem descrito e a sentença seja sintaticamente bem formada?
170
to? Trata-se obviamente de um evento de comer. Se comer é o núcleo, é ele
que requer um elemento que desempenhe o papel de “comedor” e outro
elemento que desempenhe o papel de “comido”; observamos, ainda, que o
“comedor” é o Pedro, que aparece antes do verbo, e o “comido” é o pastel,
que não está posicionado na sua posição natural – que é depois do verbo.
O que aconteceu neste caso é que o complemento do verbo sofreu um mo-
vimento para uma posição à esquerda, uma posição de tópico, como já vi-
mos no capítulo sobre o PB. O importante é saber que, mesmo deslocado,
o constituinte o pastel continua sendo o complemento interno do verbo.
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Construindo gramáticas na escola
b. A empresa faliu.
d. A encomenda chegou.
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em (29) praticam uma ação? Ao que tudo indica estes constituintes são,
de alguma forma, afetados por uma ação; não se comportam como os
constituintes que antecedem o verbo nas sentenças em (28), já que nes-
sas sentenças esses constituintes de fato praticam a ação. Os alunos não
são chamados para analisar a diferença que aparece na classe dos verbos
que selecionam um único constituinte para compor um evento.
Inacusativos e Inergativos
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Construindo gramáticas na escola
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O professor pode juntamente com os alunos construir hipóteses para
dar conta da diferença entre os verbos que se comportam como parecer
e os verbos que se comportam como desejar. Eles podem levantar outros
verbos que têm esse mesmo comportamento e procurar generalizações.
Construir uma gramática para esses verbos. Além disso, o professor pode
observar com os alunos, partindo de dados como os apresentados em (28)
e (29), que a classe dos verbos intransitivos não é homogênea. Tal ob-
servação pode ser feita por meio de argumentos sintáticos e semânticos
Mais uma vez pode levantar essas classes e construir gramáticas para elas,
mobilizando ativamente vários conceitos gramaticais.
É esse o nosso convite. Ele não é fácil, mas estamos sempre à dis-
posição para ajudá-los nessa empreitada. Basta enviar uma mensagem
para qualquer um de nós.
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REFERÊNCIAS
Referências bibliográficas
AVELAR, Juanito et al. 2011. Concordância e posição de sujeito em va-
riedades brasileiras e africanas do português. Manuscrito.
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Construindo gramáticas na escola
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REFERÊNCIAS
FOX, Margalit. Talking hands: what sign language revels about the
mind. New York: Simon & Schuster, 2007.
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Construindo gramáticas na escola
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REFERÊNCIAS
KATO, Mary. The partial pro-drop nature and the restricted VS order in
Brazilian Portuguese. In: M. Kato & E. Negrão (orgs.). The null subject
parameter in Brazilian Portuguese. Frankfurt: Vervuert - Latino Ame-
ricana, 2000. pp. 55-74.
MORO, Andrea. The boundaries of Babel. The brain and the enigma
of impossible languages. Cambridge: MITPress 2010.
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REFERÊNCIAS
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tica.(Atti del XXI Congresso Internazionale di Linguistica e Filologia
Romanza) Centro di Studi Filologici e Linguistici Siciliani, Universitá di
Palermo. Tübingen: Max Niemeyer Verlag, 5:509-523, 1998.