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norte-americanos devem ser muito atrasados, pois positivo sociocognitivo pré-verbal que antecede a
quase despacharam por inteiro 'dona concordância' execuçáo lingüística e a governa. Nossa mente ope-
para o cesto das inutilidades. Em suma, a norma ra ao mesmo tempo nos domínios da semântica, da
culta é a variedade escolhida como padráo. E as ou- gramática e do discurso para produzir expressóes
tras? No ensino tradicional elas foram solenemente verbais ou interpretar as produzidas por seu
ignoradas. interlocutor. +
se de acordo com a norma culta. ]á os países rlais sua fase de aprendizagem da língua falada, na famí- I
adiantados náo dâo tanta importância à norma cul- lia, e depois da língua escrita, no ensino básico, ela
ta como aqui. Lá, sáo outros os objetivos ao valorizar teve de dominar o conjunto dos quatro sistemas já
a leitura e a redação. A explosáo das trocas comer- mencionados. O papel do professor de português dos
ciais no mundo globalizado aumentou a necessi- graus médio e superior está em suscitar no aluno
dade de escrever com clareza e de entender com efi- esse conhecimento. em fazê-lo 'lembrar-se' disso.
ciência textos escritos. Atividades como escrever Sáo muitas as experiências pedagógicas no Brasil -
relatórios sobre processos industriais, compor a cor- infelizmente conhecidas por uma minoria dos pro-
respondência eletrônica, Ier jornais e interpretar ma- fessores - de levar o aluno a exteriorizar as regulari-
nuais de instrr.rçóes que acompanham produtos pas- dades discursivas, semânticas e sintáticas qr-re ele
saram a ser prementes no clia-a-dia. Além de falar internalizou quando aprendeu a falar e a escrever
ao menos duas lÍnguas estrangeiras e saber compu- em sua língua. As atividades que levam a esse obje-
tação, o cidadáo do novo milênio ainda terá de ler tivo constituem o centro da atividade pedagógica,
e escrever bem. Um hábito antes restrito à aristocra- reconhecidas nos Pnrdmetros curriculares nacio-
cia (que lia literatura, naturalmenteJ espal.hou-se nois, editados pelo MEC. Esses parâmetros enfeixam
por toda a comunidade alfabetizada, para o bom uma percepÇão do ensino de português que se situa
exercÍcio das atividades diárias. O fosso entre alfa- muito além das pobres práticas pedagógicas vigen-
betizados e náo-alfabetizados se aprofundou e ame- tes, nas quais se alimentam sujeitos espertos, com
aça o futuro de nações como o Brasil, onde ainda há fino senso mercadológico e espessa ignorância lin-
analfabetos. gtiística,
O que poderia ser feito para desenvolver Por que é tão difícit ensinar a norma culta na escola?
as habilidades de leitura e redação, no caso PeIo menos três complicadores tornam difícil a exe-
da língua portuguesa? cuçáo dessa tarefa em nossos dias: a mudança so-
Deveriam ser oÍ'erecidos aos alunos textos de cará- cia1, a mudança lingüística e a mudança cle pers-
ter prático combinados aos de alcance artístico. Não pectiva didática. Quando falo de r.nudança social,
se trata de pôr abaixo o texto literário nem de limi- refiro-me às alterações da sociedade brasileira. De
tar a experiência unicamente a ele. A criatirra lin- 1950 para cá, o Brasil deixou de ser um país rural e
guagem brasileira da propaganda está aÍ para mos- passou a ser um país urbano. Com as fortes migra-
trar a eficácia da confluência entre textos rzeicula- ções de europeus no século 19 e de brasileiros que
res e textos literários. Veículos de comunicaçáo cle vieram do campo pala a cidade no século 20, a so-
mâssa se deram conta da atual demanda do grande ciedade urbana se tornou muito heterogênea. Nesse
público por um desempenho lingüístico eficiente e, quadro de mobilidade social. em que a subida de
antes deies, autores de manuais didáticos. Até aí, segmentos e a descida de outros acarretam uma pro-
tudo bem. Mas há o risco de respostas simplistas a funda rerrisão dos r,alores, como ficam as certezas da
essa demanda, como algumas já disponíveis no mer- gramática escolar? Como elas se sustentaráo nesse
cado. Em lugar de ensinar de fato a ler e escrever - clima de mudançà? O que está ocorrendo afinal com
uma tarefa nada fácil -, tem-se optaclo por reduzir o a nossa língua brasileira? A rnr-rdança lingüÍstica vem
ensino da língua materna a uma questâo de certo e sendo amplamente documentada nas pesquisas dia-
errado. Balizar o ensino unicamente nesse critério é crônicas empreendidas peias universidades brasi-
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leirasa partir dos anos 80. Desde o século 19, o por- cracia direta, na praÇa pública. Com o tempo, a gra-
tuguês brasileiro comeÇou a se afastar do portugr.rês mática virou uma disciplina com um fim em si mes-
europeu. A mudança começou no quadro dos prono- ma. Começaram aí os fracassos em seu ensino. Recon-
mes e daí se irradiou para a morfologia e para a di"rzir a reÍlexão gramatical ao seu lugar de origem,
sintaxe, atingindo o sistema gramatical, cerne de isto é, ao uso lingüístico concreto, é uma boa proposta
toda lÍngua. Ora, nossos nanuais didáticos ainda nos para a renovaçáo de seu ensino. Uma pequena retifi-
julgam muito próximos de Portugal! Será qlle nos- cação: não ensinamos gramática, pois e1a já está
sos joguinhos do certo e do errado ainda se susten- internalizada na mente dos alunos, Eles não falariam
tam em face do novo quadro lingüístico? N4as a mu- se náo dominassem a chamada gramática implícita.
dança de perspectiva didática é a que torna ainda Como nos diá1ogos platônicos, devemos Íàzer com que
mais duvidoso centrar o ensino na questáo do certo e os alunos se lembrem dessa gramática e a explicitem.
do errado. A ninguém deve ter passado despercebi- Então náo há ensino de gramática, há reflexóes sobre
do que a escola deixou cle ser a úrnica institr.rição que eIa. Precisamos deixar de laclo a aula de 'pacotes gra-
dissemina informaçóes, A mídia faz isso com muito malicais', em que recitamos um ponto decorado, que
mais eficiência. Libertada finalmente de seus en- às rrezes nem nós trresmos entendemos direito, da-
cargos de depositária do conhecin-rento, a escola po- mos exercícios com o que se encaixa e depois, na
derá finalmente cumprir o mais alto de seus objeti- prova, propomos questÕes que igualmente se encai-
vos: criar conhecimento e levar as pessoas a desen- xem. Fingimos que ensinamos e os alunos, que apren-
volver juízo crÍtico. deram. Sugiro que o professor de português, em vez
de responder a perguntas que os alunos náo formula-
A dificuldade de ensino da norma cutta ram, faça perguntas e deixe que eles respondam. Se-
ameaça o português brasileiro? ria mais proveitoso se cada unidade se constituísse
Ouvimos todo dia na televisáo e lemos nos 1'ornais que à volta de um projeto de descobertas, a partir de um
o português está decadente, que todo mundo fala mal conjunto de dados previamente selecionados, sobre
e escreve pior; qr,re é preciso defender a pátria, os qtiais formularÍamos perguntas articuladas.
ameaçada pelos solecismos e pela entrada maciça
dos anglicismos. A1iás, mr-rita gente está ganhando Que dados seriam esses?
um bom dinheiro com esse pânico todo. Voitando uo Inicialmente, a própria fala e escrita dos alunos. Em
tempo, parece que alguns iluminados lançaram a seguida, a fala e a escrita dos outros, em uma exten-
campanha "Ouro para o bem do português clo Brasil"! sáo tal que inclua amostras da linguagem familiar e
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A despeito desse catastrofismo, todo mundo se en- amostras da iinguagenr paciráo - a da classe culta.
tende por meio da linguagem, a tiragem dos jornais Orientados pelo professor, os alunos gravarian suas
aumenta e a indÍrstria editorial do país corneca a próprias conversas, e esses recortes de iÍngua se-
ombrear-se com a de lugares adiantados. tiarl a seguir transcritos. Isso permitiria ao profes-
sor e aos aiunos obsen ar os rlecanismos da lÍngua
Como o senhor acha que deveria falada. Trechos narrativos dessas conr,ersas seriarl
ser o ensino de gramática? escritos, e novas obsen,açóes intuitivas sobre a fala
Acho que a gramática deveria ser restituída à sua e a escrita poderian.r ser feitas. A atividade é espe-
climensáo original. Os prinleiros gramáticos gre- cialilente rnotivadora porque é o próprio indir,íducr
gos e latinos estavam mais preocupados com a eÍici- que prodr-rz os clados que analisa.
ência no uso da linguagem do que com a prescri-
çáo de normas. Tudo se subordinava a um objetivo Como analisar os dados assim coletados?
maior: preparar o cidadáo para o exercÍcio da demo- Com perguntas sistemáticas a respeito deles. Üm r
primeiro grupo abordaria o discurso: Como se orga- Essa abordagem lá tem sido utilizada
niza uma conversa? Como se dá a passagem dos tur- sistematicamente em sala de auta?
nos da fala? Que faz o ouvinte para tomar o turno? Ainda náo. Os professores de português do eirsino
Que faz o falante para defender seu turno? Que mar- básico e médio em exercício náo foram bem prepa-
cas lingüísticas encontramos rresses jogos? Essas rados, razáo pela qual sáo urgentes cursos de atuali-
análises do discurso seriam seguidas de análises da zação. Nas ocasiÕes em que me envolvi nessa ativi-
organizaçáo textual - e aqui seriam valorizados ar- dade, inrrariavelmente constatei entre eles um gran-
gumentos da semântica: Como sáo desenvolvidos os de desgosto com a prática atr.tal e grandes dificulda-
assuntos em ulrl texto? Que processos lingüísticos des em encontrar alternativas. Mas suas mentes es-
sáo usados para dizer o novo ou repetir o velho em tão abertas. A neutralização dos charlatães. a cierro-
matéria de inÍbrmação? Que uniclades clo texto fala- luçáo das aulas de português à dignidade perdlda,
do e do texto escrito contêm esses bocados de infor- passa por um esforço articr-rlado das universiclades
maçáo? Como essas unidades sáo articuladas formal- púrblicas, instrumentalizadas peias secretarias esta-
mente ou, em outras palar,ras, como são utilizados duais e municipais de educaçâo. Â sociedade nacio-
os conectivos textuais? Finalmente chegamos à aná- nal deveria enrrolveL-se fortemente na solucáo do
fa[*m errãdo é I
ehegar à ese*ta e sô mLcv§fl Err# vorê s suâ fami§.Es =eceb*r I
lise gramatical dos textos: Qne classes de palavras problema do ensino se é que deseja mesmo ingres-
nele encontramos e qual sua funçáo? Em que unida- sar no primeiro mrindo.
des de complexidade crescente as palavras se agru-
pam? Qual o formato dos sintagmas e clas oraçóes? Quat é a seu ver a verdadeira missão do professor
Corno uns e otitros se interligarn no enunciado? Ha- de português hoje?
verá alguma correspondência entre marcadores Temos de lembrar que nosso ofício maior não é ensi-
conversacionais, conectivos textuais e conectivos nar a crase, é formar o cidadão de um estado derno-
oracionais? Por meio de que expedientes sintáti- r;rático. Na democracia, exige-se do cidadáo senso
cos alteramos orações de base para a eficácia da crítico, capacidade de julgar entre alternativas e es-
interaçáo? Trata-se, pois, de descrever a gramática colher a que the pareça melhor. Dele se exige anipla
da língua viva em sala de aula: coieta de dados, per- exposiçáo à variedacle de possibilidades, à varieda-
guntas sobre eles, elaboraçáo de respostas. de de entendimentos e também à variedade Iingtiís-
tica. Se the prescrevermos sem mais debates e que é
Não se estudariam então as anátises considerado certo e condenarmos o que os manuais
de gramáticos e [ingüistas? atirmam ser errado, estaremos matando na fonte a
Em um segundo morlento, sim. Os alunos seriant formaçáo do cidadáo. lsso é mais glave no caso dos
orientados a verificar corno se arranjou nessas ques- alunos de classes subalternas - hoje a maiorla. Esta-
tóes quem iá escreveu sobre a língr.ra. No ritmo aqui remos destruindo seu apego à r,ariedade lingüística
sugerido - e já testado em rnais de um arnbiente - as aprendida em famÍlia, um dos tundamentos de sua
questoes da língua ganham sua verdadeira dimen- identidade psicossocial. Chegar à escola e só ouvir
são, retomam sua vitalidade, transformando as au- que você e sua família falam errado é receber uma Í
las em lugares de descoberta cientÍfica. Nossos alu- sentença de exclusáo. E depois nos espantamos quan-
nos sáo nossos colegas mais jovens. Não tentemos do esses excluídos voltam e vandalizam a escola!
transformar a cabeça deles em um armário de re- Quantos cidadãos nào temos castrado em nome do
gras clitadas de fora para dentro; deixemos que eles certo e do erradol Em lugar disso, qr,re tai conscien-
mesmos descubram essas regras, isto é, essas regu- tizar os alunos da adequaçáo de cada variedade lin-
laridades, conduzidos por uma Iiderança esclareci- giiística a determinado contexto? Derrocracia é a I
cla, náo por imposições ou pela recitaçáo de regras convivência dos contrários. Há algr-rm senso demo-
que nem nós mesmos aplicamos. Expus essas idéias I
crático em nos limitarmos a um único recorte de
no livro LÍngtta falada e ensino do portugttês, publi- lÍngua, mesmo que seja aqr.rele prestigiado pela so-
cado pela editora Contexto. ciedade,condenaldooresto? s