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CUIDADO NA RUA:

ações de redução de danos


em contexto do uso de drogas no
centro da cidade de São Paulo

ORGANIZADORES
Julia Landgraf Pupo, Mariana Takahashi Maciel e Thiago Godoi Calil.
Cuidado na rua: ações de redução de danos em contexto
do uso de drogas no centro da cidade de São Paulo

ORGANIZADORES
Julia Landgraf Pupo, Mariana Takahashi Maciel e Thiago Godoi Calil.

AUTORES
Thiago Godoi Calil, Marcelo Ryngelblum, Mariana Takahashi Maciel, Raonna Caroline Ronchi Martins,
Glauber Castro, Maria Angélica de Castro Comis, Aluízio Marino.

PA L AV R A S - CH AV E
redução de danos, redutor de danos, trabalho de campo, advocacy, insumos, territórios, “Cracolândia”.

Centro de Convivência É de Lei


São Paulo
2018

Sumário

1 Introdução 4

2 Advocacy em Redução de Danos: 6


O que é? Para quem? Como fazemos?

3 Prevenção - Redução de Danos: 12


des-aproximações arriscadas

4 Insumos e outros territórios: relato de uma 18


abertura de campo no centro de São Paulo

5 Cartografia-denúncia: a relação entre a violência 22


e os projetos urbanos na “cracolândia” paulistana

2 Cuidado na rua: ações de redução de danos em contexto do uso de drogas no centro da cidade de São Paulo 3
Introdução
Julia Landgraf Pupo1
Mariana Takahashi Maciel2

de ação da política pública que tem como conse- alvo de constantes intervenções do Estado, prin-
Entre os anos de 2016 e 2017, o Centro de Con- do como material de apoio para as formações.
quência o aumento da violência na região. Como cipalmente por parte da segurança pública. Por
vivência É de Lei, em parceria com a Secretaria
O primeiro artigo “Advocacy em Redução de Da- estratégias de cuidados relevantes destaca-se o meio de cartografias, uma sequência de mapas
de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde,
nos: O que é? Para quem? Como fazemos?”, apre- papel desempenhado pelo redutor de danos na explicitam a grave e dolorosa realidade do territó-
desenvolveu o projeto “Cuidado na rua: ações de
senta os princípios da Redução de Danos, sua execução da políticas, inclusive com estratégias rio e apontam para a relação dessa situação com
redução de danos em contexto do uso de drogas no
importância na construção de políticas públicas na direção da garantia de direitos humanos. os projetos urbanos do passado e os do presente.
centro da cidade de São Paulo”. O objetivo geral
sobre drogas, saúde e políticas sociais e define
do projeto era reduzir os riscos e danos sociais e O terceiro artigo “Insumos e outros territórios: Tenha uma boa leitura e que esse material pos-
o conceito de advocacy e aponta a relevância da
à saúde associados ao uso de álcool e outras dro- relato de uma abertura de campo no centro de sa contribuir na sua formação e auxiliar na busca
prática do advocacy em Redução de Danos. Utili-
gas junto às pessoas que fazem uso de tais subs- São Paulo” conta a experiência de como é che- de informações para ampliar o seu conhecimento
za, para ilustrar tal importância, as ações realiza-
tâncias psicoativas e em situação de vulnerabili- gar a uma nova cena de uso de drogas. O relato acerca da redução de danos e de práticas de cui-
das pelo Centro de Convivência É de Lei quando
dades no centro da cidade de São Paulo. apresenta as estratégias de aproximação e de dado ofertadas para pessoas que usam drogas.
a instituição esteve na presidência do Conselho
vinculação usada pelos redutores de danos para
Para isso três frentes de trabalho foram organiza- Municipal de Drogas e Álcool (COMUDA) em 2017.
que possam ser compreendidos e aceitos como
das: a equipe de redutores de danos que realizou
No segundo artigo “Prevenção - Redução de Da- profissionais que ofertam cuidado. Predominam
idas semanais a campo; articulação de rede local,
nos: des-aproximações arriscadas”, é apresentada como principais estratégias de vinculação com as 3
O ‘Fórum Aberto Mundaréu da Luz’ é uma experiência para constru-
que teve como principal ação a articulação do Fó- ção de sentidos e propósitos coletivos e comunitários na região da
uma síntese dos fatos e dados registrados que fo- pessoas do local, a distribuição de insumos, o res-
rum Intersetorial de Drogas e Direitos Humanos; Luz e de Campos Elíseos. É um dispositivo para compartilhar visões e
ram mais relevantes nas idas a campo realizadas peito pelo tempo do outro, a escuta qualificada e saberes, formular propostas, construir futuros possíveis para o bairro
e formações para os profissionais que também e a cidade.
pelo É de Lei no ano de 2017. Para isso, parte-se sensível às necessidades do outro e a exploração
atuam na região central de São Paulo com pes-
da definição de território e em seguida faz-se uma curiosa pelo novo território e pelas pessoas que
soas que fazem uso de drogas e em situação de
leitura crítica da formação da cena de uso cha- ali habitam.
vulnerabilidades. A formação aconteceu em dois
mada “Cracolândia” e como na atualidade esse
formatos: para equipes do Consultório na Rua No quarto e último artigo “Cartografia-denúncia:
lugar se tornou um espaço de disputa política. É
que atuam na região da Luz e um Ciclo (In)for- a relação entre a violência e os projetos urbanos na
feito também, um breve histórico sobre a Redu-
mativo aberto para os outros atores da região e “cracolândia” paulistana” apresenta um levanta-
ção de Danos, em que se apresenta a seguinte
quem mais tivesse interesse. mento das ocorrências de violações de direitos
problemática: a redução de danos é considerada
entre 2005 e 2017 na região dos bairros da Luz
Os textos que compõem essa coletânea foram uma estratégia marginal em países proibicionis-
e dos Campos Elíseos. O texto surge a partir de
construídos a partir da prática desse trabalho tas que não consideram a pessoa que faz uso de
parcerias na interface entre as políticas de cuida-
e têm a finalidade de compartilhar as experi- drogas como cidadão de direitos, e dessa forma
do e o urbanismo no território da “Cracolândia”
ências de execução do projeto. O material tem fica a questão: como construir políticas públi-
via participação no “Fórum Aberto Mundaréu da
como objetivo propor reflexões acerca de con- cas efetivas quando não se considera cidadão a
Luz”3. Na constituição das cenas de uso de drogas
ceitos e práticas inovadoras na perspectiva da pessoa que irá se beneficiar dela? Destaca-se o
públicas, os processos referentes ao planejamen-
Redução de Danos (RD), além de ter sido utiliza- aumento das ações policiais como uma escolha
to urbano se relacionam com a formação, per-
manência e disputa destes espaços, tornando-os
1
Coordenadora do Núcleo de Ensino e Pesquisa do Centro de Convivência É de Lei em 2017 e 2018.
2
Coordenadora no Núcleo de Práticas de Redução de Danos em 2017 e 2018.

4 Cuidado na rua: ações de redução de danos em contexto do uso de drogas no centro da cidade de São Paulo 5
Advocacy em Segundo Engelsman (1989), o problema do abu-
so de drogas não deve ser visto principalmente
É fundamental que as políticas públicas tenham
embasamento científico e que seja pautado na

Redução de Danos: como um problema da segurança pública. realidade, por isso a RD defende a educação so-
bre saúde e sobre drogas, pois elas fazem parte
O que é? Para quem? A sociedade precisa aprender a conviver com
drogas: isso não significa aceitação de danos co-
da sociedade e estão cada vez mais presentes na

Como fazemos?
vida das pessoas.
laterais. A redução de danos visa reduzir os riscos
e mitigar o impacto sobre o indivíduo e a socie-
dade em geral. A redução de danos é uma boa Advocacy em Redução de Danos
Maria Angélica de Castro Comis1 política de saúde pública e social. Desta maneira,
deve ser o princípio transversal de todas as políti- O Advocacy em Redução de Danos busca eliminar
cas de drogas para garantir o engajamento da po- as disparidades existentes na provisão de servi-
pulação, da comunidade e a criação de condições ços de saúde e serviços humanos básicos para
O que é Redução de Danos? é fundamental garantir um cuidado continuado usuários de drogas e suas comunidades. Defen-
para as mudanças que forem necessárias.
e integral baseado no bem-estar do indivíduo dendo a aceitação e expansão das abordagens
A Redução de danos (RD) possui raízes filosófi-
(Marlatt, et al,1996). Na Declaração Política sobre HIV e AIDS da Assem- de redução de danos necessárias para práticas
cas no pragmatismo e sua compatibilidade com
bleia Geral das Nações Unidas de 2011, os Estados saudáveis ​​de saúde pública, busca a inclusão de
uma abordagem de saúde pública, oferece uma Os redutores de danos defendem e encorajam
Membros se comprometeram a reduzir a transmis- usuários de drogas em discussões sobre políticas
alternativa prática aos modelos morais ou de movimentos em direção à RD que estejam as-
são do HIV entre pessoas que injetam drogas em para criar mudanças nas esferas local, estadual,
doença associados ao consumo de substâncias sociados aos programas e políticas que estejam
50% até 2015. Contudo, a criminalização, o estig- nacional e internacional.
psicoativas. A RD coloca o foco no ser humano dispostos a remover as barreiras de acesso, ou
ma e a discriminação continuam generalizados
que faz uso de substâncias psicoativas e nas seja, serviços de baixa exigência que aceitem as O Advocacy monitora tendências de políticas de
impedindo as pessoas que usam drogas de aces-
consequências desse consumo que pode ter se pessoas nas condições que elas estão, o que fa- redução de danos locais e estaduais relevantes,
sarem serviços essenciais de HIV.
tornado problemático. cilita a vinculação e a elaboração de estratégias constrói relacionamentos com líderes emergen-
em conjunto, além de buscar a diminuição do es- “Embora as pessoas que usam drogas injetáveis ​​res- tes de redução de danos e defensores aliados,
Diferente de colocar o uso de drogas como algo
tigma em relação às pessoas que usam drogas. pondam por apenas 0,2 a 0,5% da população mun- e representa a redução de danos em diferentes
moral ou apenas como uma patologia clínica, o
Adotando uma resposta abrangente a problemas dial, elas representam aproximadamente de 5% a espaços de participação, inclusive perante auto-
objetivo da RD é oferecer uma ampla gama de po-
de estilo de vida que inclua o uso de substâncias, 10% de todas as pessoas que vivem com o HIV. No ridades eleitas. É fundamental que o Advocacy
líticas e procedimentos que visem a autonomia e
práticas sexuais, exercícios, nutrição e outras entanto, globalmente, menos de 1% das pessoas que esteja diretamente ligado à comunicação, prin-
a diminuição das consequências prejudiciais do
atividades pessoais e interpessoais (Marlatt & Ta- usam drogas têm acesso ao tratamento do HIV. Hou- cipalmente por que é necessário realizar articu-
comportamento de uso de substâncias.
pert, 1993). ve consenso entre os participantes de que estraté- lações e construção de coligações; construir li-
A Redução de danos não é contra a abstinência. gias de redução de demanda deveriam ser baseadas derança entre pessoas que usam drogas e outras
As pessoas gostam de usar substâncias psicoati-
A redução de danos busca promover estratégias em dados científicos e saúde. Tratados internacio- populações diretamente afetadas; e um compro-
vas. Eles gostam de usar café, chá, nicotina, álco-
para diminuir os comportamentos de risco e nais sobre drogas ressaltam que a saúde é essencial misso com a justiça racial, feminismo e com a mu-
ol, cannabis e uma ampla gama de outras drogas.
até mesmo a diminuição do consumo para um e que o controle de drogas através da repressão da dança na política de drogas (Higgs, et al, 2009).
As pessoas usam drogas para serem sociáveis,
nível mais temperado caso a pessoa queira. Se produção e do tráfico não é suficiente. Todas as par-
para diversão e prazer, para autocompreensão, Além disso, o Advocacy também busca favorecer
o foco é colocado apenas na abstinência como tes interessadas, incluindo a sociedade civil, devem
para experiência mística, para trabalhar e jogar a conscientização pública e política das questões
forma de reduzir ou eliminar totalmente o risco ser incluídas e envolvidas em políticas e programas
mais e para se automedicar. Usar drogas pode que envolvem as pessoas que usam drogas por
de dano associado ao consumo drogas, como de redução da demanda. (UNAIDS, 2014).”
ser prejudicial - embora geralmente não seja. Se meio de pesquisas, relatórios, engajamento es-
ficam as pessoas que não fazem uso problemá-
as pessoas usam drogas, a questão de política Apesar das conferências e tratados de direitos tratégico de mídia e campanhas, treinamento em
tico? E as que não conseguem ficar abstinentes?
pública é: o que pode ser feito para ajudá-las a humanos, ainda se encontra dificuldades em rea- monitoramento de violações de direitos huma-
É necessário retirar a discussão sobre o consu-
evitar danos a si mesmas ou a outras pessoas? lizar o trabalho voltado para a redução de danos, nos, mapear grupos de usuários de drogas; forne-
mo de substâncias desse aspecto dicotomizado,
(Drucker, 2013). por conta das questões morais e o estigma em re- cimento de apoio técnico a redes de usuários de
lação às populações-chave. drogas; monitoramento de reformas de política
Coordenadora do Núcleo de Comunicação e Advocacy do Centro de Convivência É de Lei em 2018.
1

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de drogas para assegurar um ambiente político ted Nations Office on Drugs and Crime (UNODC); de articulação das redes, como o “Fórum Estadu- A luta pelos direitos de pessoas que usam drogas
mais favorável e proteção dos direitos humanos Open Society Foundation (OSF), entre outros. al de Redução de Danos”. é um dos principais marcos da Redução de Da-
das pessoas que usam drogas; capacidade forta- nos. Os holandeses do JunkieBond começaram
“Temos a missão de cocriar e disseminar referên- Com o acúmulo de 19 anos de prática, o É de Lei,
lecida de organizações, especialmente redes de a reivindicar das autoridades locais, o acesso a
cias, práticas de cuidado e estratégias de redu- tem dado ênfase para capacitações e treinamen-
pessoas que usam drogas e para influenciar a for- seringas limpas e descartáveis. A partir desse fato
ção de danos baseadas em intervenções junto a tos voltados ao desenvolvimento de ações de
mulação de políticas. político que ia além da prevenção de hepatites e,
pessoas que usam drogas, trabalhadores da rede Redução de Danos para profissionais de diversas
posteriormente HIV/AIDS. Iniciou um novo para-
Os defensores dos direitos humanos e da redução intersetorial, membros da academia e gestores áreas e atividades de consultoria para a imple-
digma na atenção às pessoas que usam drogas,
de danos devem perseguir o objetivo de conven- públicos, buscando incidência política que mude a mentação de programas e projetos na ótica da
um modo de entender o cuidado que coloca os
cimento da lei a aceitar a redução de danos, mas lógica de Guerra às Pessoas, também chamada de Redução de Danos.
usuários e usuárias no centro, como especialistas
isso envolve esforços contínuos para obter gover- Guerra às Drogas.”
Produzimos insumos, materiais informativos so- que precisam ser ouvidos e legitimados como ci-
nos a adotarem explicitamente a redução de da-
Os projetos do É de Lei têm como meta a redução bre redução de danos, prevenção das IST/HIV/ dadãos de direitos. Por isso, que essa abordagem
nos como um pilar da política, investimento em
de danos sociais e à saúde associados ao consu- HCVC, publicações e sistematização do trabalho é tratada como uma abordagem técnico-política,
formação orientada para a redução de danos ou,
mo de substâncias psicoativas junto às popula- realizado que são produtos que tem como obje- que marca uma maneira diferente de pensar o
de maneira mais otimista, estratégias para lidar
ções-chave e prioritárias. tivo ampliar e compartilhar informações sobre as cuidado, indo além de objetivos externos pré-es-
com a segurança pública.
diferentes substâncias, estratégias e tecnologias tabelecidos para o cuidado, mas considerando a
• As diversas estratégias e atividades visam importância de se aproximar dessas pessoas, es-
Os principais objetivos do Advocacy é contribuir sociais para diferentes atores, desde trabalhado-
possibilidades de cuidado, promoção e pre- pecialmente as mais vulneráveis, acessá-las em
para que as esferas de poder compreendam que res da rede de atenção psicossocial, usuários de
venção relacionada à saúde; seu local de uso, conhecer suas formas e sentidos
possuem responsabilidades como: (1) equilibrar / substâncias e outras instituições. Esses materiais
harmonizar adequadamente a meta de controle • A prevenção combinada com objetivo de pre- estão disponíveis fisicamente em nossa sede e de uso, para juntos criar estratégias de cuidados
de uso com o objetivo de garantir o acesso ao tra- venir a disseminação de HIV, Hepatites e Tu- virtualmente no nosso site. pragmáticas e respeitosas (Burris, 2009).
tamento assistido por medicação, cuidados mé- berculose;
Atualmente o É de Lei se destaca como uma das Da mesma maneira, o É de Lei, desde sua funda-
dicos e serviços de redução de danos; (2) para mi-
• Reconhecimento de direitos e de cidadania principais referências nacionais de redução de ção luta para que as pessoas que usam drogas
nimizar os danos e violações de direitos humanos
por parte de populações fragilizadas e não danos no Brasil e mantém seu compromisso de sejam respeitadas. Luta para que possamos com-
por parte do policiamento; e (3) assegurar que os
reconhecidas em seus direitos; contribuir para uma mudança na cultura no cam- preender que todos, de alguma maneira, usam
serviços de saúde e sociais tenham atuação em
po das drogas. Visamos a diminuição do estigma drogas lícitas ou ilícitas, para nos divertir, para
que os direitos fundamentais sejam transversais. • Atividades de controle social e incidência po- e do preconceito em relação às pessoas que usam remediar os sofrimentos do corpo e da alma, para
lítica; substâncias e com isso, a diminuição dos agravos nos socializar melhor, para entrar em contato
Sobre o É de Lei à saúde, da marginalização, da violência e das com o sagrado. Se o uso de drogas é tão intrín-
• Ações de produção e fruição cultural, como
violações de direitos humanos. seco à experiência humana, em todas as culturas,
curta metragens e chá de lírio (atividades rea-
O Centro de Convivência É de Lei atua há mais porque predomina o discurso de combate, de
lizadas para e com os conviventes do É de Lei);
de 19 anos com pessoas que usam substâncias Guerra às Drogas? Com quais interesses se esco-
psicoativas na perspectiva da Redução de Danos • Capacitações sobre drogas, direitos humanos Como fazemos o Advocacy em Redução lheu as drogas a serem combatidas e as drogas a
(RD). Neste período, realizou cerca de 30 projetos e população em situação de rua. de Danos? serem estimuladas, pela indústria e mesmo pe-
ligados especialmente à área da saúde, mas que los profissionais da saúde? Essas são perguntas
incluem também a cultura e direitos humanos. As intervenções do É de Lei são realizadas tanto Em 2017, diante de um novo cenário na política de
que fazemos para facilitar a compreensão sobre
Entre nossos parceiros, financiadores estão: Pro- em sua sede na região central da cidade de São drogas, tornou-se necessário a consolidação de
a Guerra às Drogas que se tornou uma grande
grama Nacional de DST/Aids e Hepatites Virais; Paulo, como também no território, com as ações um núcleo de Comunicação e Advocacy capaz de
Guerra às Pessoas.
Programa Nacional de Controle da Tuberculose; in loco na região da denominada Cracolândia e organizar o acúmulo técnico-político da institui-
Coordenação Estadual de DST/Aids de São Pau- em parceria com outros atores, além das inter- ção para uma maior incidência nas políticas pú- As ações de Advocacy do Centro de Convivência
lo; Programa Municipal de DST/HIV/AIDS do Mu- venções do Projeto ResPire que atua em contex- blicas, especialmente em nível local, municipal. do É de Lei no ano de 2017, envolveu a atuação em
nicípio de São Paulo; Ministério da Cultura; Uni- tos de festas. O de Lei também promove fóruns

8 Cuidado na rua: ações de redução de danos em contexto do uso de drogas no centro da cidade de São Paulo 9
diferentes espaços e contextos, principalmente como marco a Parceria com o Conselho Nacional Considerações finais
após o É de Lei assumir a presidência do Conselho de Direitos Humanos e a atuação do COMUDA no
O Advocacy em Redução de Danos tem sido muito
Municipal de Políticas sobre Álcool e Drogas da ci- acompanhamento da Subcomissão sobre Política
importante para que as pessoas em mais alta vul-
dade de São Paulo (COMUDA), em janeiro de 2017. de Drogas Envolvendo Cenas de Uso na Cidade de
nerabilidade tenham sua voz escutada, seus di-
São Paulo que é ligada à Comissão de Direitos Hu-
As mudanças nos poderes executivos (prefeitu- reitos defendidos e que o seu protagonismo seja
manos da Câmara dos Vereadores do Município
ra) e legislativo (vereadores) da cidade impactou incentivado e fortalecido, pois as pessoas devem
de São Paulo.
fortemente as diretrizes do programa municipal ter sua cidadania reconhecida e respeitada.
de álcool e outras drogas, pois foram anunciadas As atividades de Advocacy foram além da atua-
É fundamental disseminar informações baseadas
mudanças que não contaram com a participação ção no COMUDA, foi realizada uma grande mobi-
na realidade para que possamos contribuir para
social, com ausência de propostas concretas e lização entre o É de Lei junto à urbanistas do Lab
uma sociedade que entenda o que são os direitos
sem a consulta ao COMUDA, que tem como obje- Cidade da Faculdade de Arquitetura e Urbanis-
humanos, que lute pela dignidade das pessoas que
tivo formular e fiscalizar as políticas públicas rela- mo de São Paulo (FAU/USP) para a criação de um
fazem uso de substâncias e compreendam o que
cionadas à temática. “Fórum Aberto Mundaréu da Luz” que trabalhou
são as estratégias de redução de riscos e danos.
para organizar a população local e proprietários
As principais tarefas foram constituir respaldo
de pequenas empresas e estabelecer uma forma
político no COMUDA, ampliar a participação da
de “governança local” com base na participação
sociedade civil e dos atores do governo munici-
social. Sempre buscando a garantia dos direitos
pal que compõem o Conselho, além do apoio de Referências Bibliográficas
das pessoas que vivem na região. O objetivo foi
membros do poder legislativo, tendo em vista o
de discutir coletivamente o que era melhor para o Engelsman, El. Dutch policy on the management of drug-rela-
cumprimento das atribuições desse órgão de par- ted problems. British Journal of Addicfion, 84.211-218, 1989.
bairro, buscar algum tipo de acordo que também
ticipação social. Apesar das adversidades, como
fosse inclusivo para a população mais vulnerável Marlatt, G. A., & Tapert, S. F. (1993). Harm reduction: Reducing
o esvaziamento político do COMUDA, o aumen-
que frequenta o bairro e se tornasse uma parce- the risks of addictive behaviors. In J. S. Baer, G. A. Marlatt, &
to da repressão na cena de uso da região da Luz
ria entre os redutores de danos, os urbanistas, os R. J. McMahon (Eds.), Addictive behaviors across the life span:
(Cracolância), a desarticulação da coordenação Prevention, treatment, and policy issues (pp. 243-273). Thou-
moradores, celebrando a diversidade, cultura e
executiva do Programa De Braços Abertos, a ine- sand Oaks, CA, US: Sage Publications, Inc.
afeto. Desta maneira, foram realizadas atividades
xistência de diálogo e a estigmatização das orga-
nas ruas, como mapeamento social participativo, Marlatt, G. A.,Tucker, J. A., Donovan, D. M., & Vuchinich, R. E.
nizações da sociedade civil.
evento com redutores de danos e urbanistas da (1996). Help-seeking by substance abusers: The role of harm
Colômbia, Saraus e exposições de arte (incluindo reduction and behavioral-economic approaches to facilita-
No segundo semestre de 2017, o COMUDA alcançou
artistas da cena de uso aberta), inclusive, reuni- te treatment entry and retention by substance abusers In L.
a legitimidade, principalmente pela atuação da
S. Onken, J. D. Blaine, & J. J. Boren (Eds.), Beyond the the-
sociedade civil organizada e pela ampliação da di- ões semanais com os moradores da região para a
rapeutic alliance: Keeping the drug dependent individual in
versidade de membros atuantes em parceria com construção de um projeto de urbanismo que fosse
treatment. National Institute on Drug Abuse Research Mono-
o conselho. O poder executivo voltou a participar pautado na realidade local e possibilitasse a parti-
graph. Rockville, MD: U.S. Department of Health and Human
das atividades do conselho, porém não foram to- cipação de todos. Services, Public Health Service, National Institutes of Health.
das as secretarias que o compõe que retornaram.
Principais articulações: Higgs, P. Moore, D. & Campbell, A.  (2009) Engagement, re-
ciprocity and advocacy: ethical harm reduction practice
A participação do É de Lei na presidência do CO-
in research with injecting drug users,  Drug and Alcohol Re-
MUDA foi fundamental para contribuir na articu- COMUDA (Conselho), Coletivo Sem Ternos (ter-
view, 25:5, 419-423.
lação e diálogo com órgãos como Ministério Pú- ritório), Poder Executivo, Ministério Público,
blico, Defensoria Pública e Conselhos de Direitos Defensoria Pública, Fiscalizações, Vigília Ecu- Burris S, Burrows D. Drug policing, harm reduction and heal-
th: Directions for advocacy. International Journal of Drug Poli-
e de Classes, que inclusive resultou em uma mobi- mênica, Nota Técnica sobre a Política Munici-
cy 20 (2009) 293–295.
lização conjunta para fiscalizações que acontece- pal, Intercâmbio Nova York, Festividades na
ram nos Hospitais Psiquiátricos conveniados ao Luz, Campanha de Carnaval em Mídias Sociais. Drucker, E. Advocacy Research in Harm Reduction Drug Poli-
Programa Redenção. Ainda, é importante deixar cies Journal of Social Issues, Vol. 69, No. 4, 2013, pp. 684—693.

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Prevenção - Redução de para além do uso de drogas injetáveis. Para isso,
vale ressaltar o histórico das práticas de redu-
dos do poder público como pelas condições de
vida e violência às quais toda a população está

Danos: des-aproximações ção de danos, e assim traduzir estas práticas


para o contexto social e político da atualidade.
submetida.

arriscadas Segundo Rodrigues, as infecções pelo vírus da


Fica evidente a dificuldade de se estabelecer
um trabalho na perspectiva de cuidado quan-
Hepatite B e pelo HIV entre pessoas que fazem do o Estado não reconhece as pessoas atendi-
Raonna Caroline Ronchi Martins1 uso de drogas injetáveis obtiveram um papel das como cidadãs, e que qualquer aproximação
Thiago Godoi Calil2
importante no desenvolvimento das políticas a estas pessoas representa abstrata ameaça.
Marcelo Ryngelblum3
de redução de danos. Foi no final de 1984 que Como mostraremos a seguir, as condições para
Mariana Takahashi Maciel4
se iniciou, em Amsterdã, na Holanda, um projeto o desenvolvimento desta prática são obstáculos
experimental de prevenção, a troca de seringas, contínuos no cotidiano de trabalho.
com o objetivo de prevenir a infecção pelos vírus
Este texto relata experiência do trabalho de de ocupação ao longo do último século, passan- Resgatando para o contexto de trabalho na re-
da hepatite. Em seguida, quando percebeu-se
campo realizado pelo Centro de Convivência É do a acolher dinâmicas populares, informais, e gião da Luz, em 2004, em parceria com o Minis-
que o HIV poderia também ser transmitido pelo
de Lei na perspectiva da Redução de Danos (RD) por vezes ilícita. Esta transformação explicita tério da Saúde (MS), o “É de Lei” foi convidado
uso comum de seringas entre pessoas que inje-
na “Cracolândia” durante o ano de 2017. Porém, gradativamente características de degradação para execução de um projeto piloto que apre-
tavam drogas, a meta central desses programas
para conseguirmos delimitar com clareza nos- urbana e social, ocasionando piora na qualidade sentava um insumo de prevenção para o uso de
se tornou a prevenção da Aids (Verster, 1998).
sas ações no território da Luz no período citado, de vida da população local (Calil, 2015). Desde cocaína fumada, o crack. O uso de crack pode
Esta estratégia apenas tornou-se viável por ser
é preciso sinalizar algumas questões que estão o início dos anos 90, o bairro da Luz aglomera provocar queimaduras nos lábios, e o com-
implantada em um país que não estava sob um
em articulação com este campo-território de grande concentração de pessoas que fazem uso partilhamento dos cachimbos, prática comum
regime plenamente proibicionista. Segundo
atuação. Compreendemos território como espa- de crack, formando uma das maiores cenas pú- entre usuários, associado às feridas na boca,
este autor, diferentemente do que ocorre com
ço dinamicamente ocupado que apresenta rela- blicas de uso de crack e outras drogas do país, a podem aumentar os possíveis riscos de conta-
a maioria dos países onde a política de drogas
ção com a definição que Milton Santos e Maria região conhecida como “Cracolândia”. minação. A proposta do MS foi a distribuição de
é de responsabilidade do Ministério da Justiça,
Laura Silveira (2001) oferecem: um lugar ocupa- cachimbos de madeira (figura 01) para estimu-
é o Ministro da saúde o responsável pela coor-
do, em configuração pelo uso que dele fazem as lar o uso individual, evitar o compartilhamento
mulheres e os homens em cada momento histó- Dentro da Luz denação da política de drogas holandesa e pelas
e prevenir a transmissão de doenças (Tubercu-
políticas direcionadas à prevenção e à assistên-
rico. É nessa perspectiva que a explicação des- Com a diminuição do uso de drogas injetáveis no lose, Hepatites, entre outras).
cia.   Sendo assim, sob um regime de guerra às
ses autores sobre a espacialidade que implica o Brasil no início dos anos 2000, o Centro de Con- drogas, as estratégias de redução de danos só
território nos ajuda a refletir sobre a dimensão vivência É de Lei paralelamente acompanhou o são levadas adiante como estratégias “unde- Segundo Calil:
de território no campo da saúde, da assistência aumento do uso público de crack na região cen- ground”, marginais, proscritas.
social e dos direitos humanos. Assim, compre- tral da cidade de São Paulo. Esta mudança na “no início, as pró-
endemos o território não apenas como um solo via de administração e dinâmica de uso da co- Assim, atualmente o sofrimento parte das es- prias pessoas que
– o que levaria à noção de espaço fixo, mas sim caína tornou necessário repensar as estratégias tratégias de “contenção controlada”, isto é, uma usam crack estra-
um complexo de relações econômico-sociais de RD ofertadas.  Sendo assim, o Centro de Con- vigia constante das pessoas por parte dos dispo- nharam a proposta
nos quais os sujeitos constituem seu viver coti- vivência É de Lei inicia os trabalhos de campo na sitivos de segurança pública impedindo que eles e reproduziam afir-
Figura 01. Cachimbo de ma-
diano. Dessa maneira, são colocadas em movi- região da Luz em 2002, e desde então mantém transitem livremente pelas ruas do bairro. Este mações do senso
deira. Foto por Thiago Calil.
mento, no presente, relações que têm ligações presença regular no território. controle por parte do Estado, intensifica-se com comum relacionan-
com seu passado histórico. (Martins, 2016) incursões munidas de bombas, balas de bor- do a distribuição de insumos com apologia ou in-
Consideramos necessária uma reflexão sobre racha e revistas arbitrárias, além da contínua, centivo ao uso de drogas. Para desconstruir esta
Nesse sentido, o bairro da Luz apresenta uma esta transição na forma de uso, e também das porém submersa, violência que limita o básico relação, foi associado o uso do cachimbo ao uso
trajetória com diversas mudanças em sua forma práticas da RD como estratégia de prevenção direito de ir e vir citada acima. Desta forma, o de preservativos, ambos criam a possibilidade de
território se assemelha a um contexto de guer- proteção, caso as pessoas venham a se expor em
1
Redutora de danos pelo É de Lei em 2017 e Psicóloga/psicanalista. Doutoranda em Psicologia clínica pelo IP/USP.
ra, tanto por parte dos ataques cotidianos vin- uma situação de risco.” (Calil, 2015)
2
Redutor de Danos pelo É de Lei em 2017/2018 e psicólogo. Doutorando em Saúde Global e Sustentabilidade pela FSP/USP.
3
Redutor de Danos pelo É de Lei em 2017/2018 e psicólogo. Mestrando pela Faculdade de Medicina/USP.
4
Coordenadora do núcleo de práticas em Redução de Danos do “É de Lei” em 2017/2018. Psicóloga.

12 Cuidado na rua: ações de redução de danos em contexto do uso de drogas no centro da cidade de São Paulo 13
Esta experiência da distribuição dos cachimbos Porém, vale destacar algumas características e extraordinárias ações repressivas. Em 2005, a cesa Isabel, o que suscita a discussão sobre os
apresenta os ganhos e possibilidades concretas do território da Luz, principalmente nos últimos “Operação Limpa”, em 2009 a “Operação Cen- riscos que a própria equipe sofre num contexto
dos insumos de prevenção, tanto na efetiva pre- anos, que tornaram necessárias novas reflexões tro Legal”, em 2012 a “Operação Sufoco” ou como este, ou seja, que também tangenciam
venção ao contágio de doenças, como na apro- sobre as possibilidades e limites das ofertas de “Dor e Sofrimento” e mais recentemente, em questões referentes à Saúde do Trabalhador.
ximação junto às pessoas que fazem uso de dro- cuidado junto às pessoas neste espaço urbano. maio de 2017 a Operação que marca o início do Fomos abordados inúmeras vezes pela Polícia
gas como estímulo ao autocuidado. Este contato projeto Redenção. Militar e pela Guarda Civil Metropolitana; em
com os redutores de danos possibilitou uma es- algumas, inclusive, impedidos do exercício de
cuta atenta, e apontou que o insumo do MS não As especificidades do território É recorrente a ineficácia deste tipo de estraté-
nosso trabalho, visto que gerávamos incômodo
gia, porém este histórico de repressão incuta
se relacionava com a realidade do território. Na Nos últimos anos acompanhamos mudanças com o nosso testemunho das inúmeras viola-
no território e em suas vidas o atravessamento
rua, escutamos que o cachimbo de madeira era estruturais com consequências na vida e nas ções de direitos que ocorreram.
pela permanente violência policial. A princípio a
bom para fumar tabaco ou maconha, mas para o práticas cotidianas. Assim, a implementação de estratégia de repressão era o que Calil apontou Muitas pessoas passaram a nos estranhar, por
crack não funcionava, pois impossibilitava a prá- uma reforma urbanística no território da Luz de- como a “política do nomadismo” (Calil, 2015), vezes, nos associando às intervenções higienis-
tica de “tochar”. Esta prática é bastante comum mandou um aumento de nossa presença neste quando os agentes de segurança pública impos- tas, enfraquecendo vínculos construídos paula-
na região da Luz, consiste em depois de uso pro- campo, justamente por conta do aumento da sibilitavam a permanência das pessoas em situ- tinamente e dificultando a oferta de cuidado e
longado do cachimbo de alumínio, esquentar o violência. Apoiados em nossa própria legislação, ação de rua e que usam crack nas calçadas; era o trabalho com educação, prevenção, mobiliza-
cano de alumínio e a casinha5 do cachimbo para os agentes de Segurança Pública foram convo- necessário se movimentar, se deslocar, como ção e vinculação de populações chaves. De fato,
que a resina, ou “borra”, ferva e solte fumaça ca- cados a protagonizar a expulsão das pessoas do uma estratégia de cansaço, aumento da vulnera- o que observamos foi um aumento quantitativo
paz de ser inalada. Apesar de consideravelmente “fluxo” de um lado para o outro, o que foi feito bilidade, além da violência submersa de impedir e qualitativo das demandas básicas daquela po-
tóxica, esta prática é valorizada neste contexto com os artefatos de que a Polícia Militar e a Guar- a permanência nos espaços públicos. pulação, de modo que pensar e atuar a partir da
de uso, pois segundo relatos de interlocutores da Civil Metropolitana dispõem - escudos, casse- perspectiva da prevenção e do cuidado para IST/
locais, a “borra” mistura pedras de diferentes tetes, balas de borracha, armas letais, bombas Em 2017 a “Cracolândia” tornou-se um território
HIV/Aids e Hepatites virais, tornou-se extrema-
qualidades, ou seja, além de concentrada, ga- de gás lacrimogêneo e de efeito moral, entre ainda mais marcado pela instabilidade e pela in-
mente desafiador, quando não impossível.
rante certa qualidade e certamente o efeito de- outros. segurança, o que muito provavelmente também
sejado pelo uso da substância. ocorre em outras cenas de uso e regiões perifé- Observamos que diversos laços de cuidado e
Recentemente a “Cracolândia” ganha cada vez ricas da cidade e do país. Tais ações também se acompanhamentos individuais se esgarçaram,
A partir de diálogos no território, surge a estra- mais espaço no debate público, e principalmen- caracterizaram pela vigilância constante da re- bem como escutamos de muitas pessoas que
tégia de distribuição de piteiras de silicone para te no debate político. Este cenário, e consequen- gião da Luz - com câmeras, drones e a presença houve uma intensificação no uso de crack, álcool
encaixe nos cachimbos de alumínio. Assim, man- temente a vida das pessoas que o ocupam, fre- ostensiva da polícia 24 horas por dia, criando e outras drogas, devido ao clima de tensão cons-
tínhamos o objetivo de estímulo do uso indivi- quentemente é utilizado como moeda política uma atmosfera de medo, desconfiança e ten- tante. Alguns usuários relataram a dificuldade em
dual do material, além de evitar queimaduras por diferentes esferas do poder público, seja são, não apenas sentida pelas pessoas do “flu- manter a higiene pessoal, uma vez que tinham
nas bocas justamente decorrentes da prática de municipal, estadual ou federal. Por muitos anos, xo”, mas também por toda a comunidade local, medo de sair do “fluxo”, por considerarem que,
“tochar”. Vale ressaltar o papel fundamental do até 2010, não existiam políticas públicas con- moradores, frequentadores e trabalhadores. Di- fora de lá, se tornariam alvos fáceis ou pelo medo
redutor de danos na execução das políticas de sistentes no âmbito do cuidado, estas surgem ferente de outros anos, quando era possível cir- de uma nova ação policial. Nas idas a campo, ve-
cuidado, pois a escuta sobre a experiência co- em paralelo ao cada vez mais presente discurso cular de maneira mais autônoma e espontânea rificamos que circular para fora de onde estava a
tidiana permite arranjos e rearranjos que se re- sobre a “Cracolândia” na mídia, que apesar das no “fluxo”; no auge das intervenções repressivas grande concentração de pessoas já parecia justi-
lacionem de fato com a realidade das questões diferentes estratégias de cuidado apresentadas coordenadas pelo Município, em parceria com o ficar abordagens policiais exageradas e a ordem
apresentadas. Desta forma, a distribuição de pi- carrega o ideal de conquistar o “fim da Cracolân- Estado, nós e outras equipes de Saúde e Assis- de se manterem concentradas - mais uma vez
teiras de silicone, junto ao protetor labial, é uma dia”. Como o uso de crack é uma atividade ilíci- tência Social sentíamos extrema dificuldade de violando o direito constitucional de ir e vir. Além
estratégia que aos poucos vem sendo incorpora- ta, este ideal de “fim da Cracolândia” está dire- realizar nosso trabalho. disso, também presenciamos a polícia impedindo
da ao longo dos anos, assim como fortalece nos- tamente relacionado ao aumento da presença doações de roupas e alimentos.
sa relação de cumplicidade e parceria na busca policial no território, assim como as cotidianas Fomos repelidos do “fluxo” algumas vezes,
do cuidado junto às pessoas que usam drogas. principalmente na época em que era tentada a Assim, atualmente o sofrimento parte das es-
mudança daquela população para a Praça Prin- tratégias de “contenção controlada”, isto é, uma
5
Local onde se coloca a substância para queimar no cachimbo, oposto a onde posiciona-se a boca.

14 Cuidado na rua: ações de redução de danos em contexto do uso de drogas no centro da cidade de São Paulo 15
vigia constante das pessoas por parte dos dispo- panhamos abordagem policial com violações de venções sobre o território, que demonstravam a atualmente escutamos o quanto as violações
sitivos de segurança pública impedindo que eles direitos humanos nas ruas da Luz. Vale ressaltar construção de outras perspectivas de vida, per- dos direitos humanos são devastadoras nos
transitem livremente pelas ruas do bairro. Este que qualquer atuação que impeça pleno exercí- petuaram o desgaste de laços constituídos ao processos de vidas individuais, assim como na
controle por parte do Estado, intensifica-se com cio de cidadania digna, como o direito de ir e vir longo do tempo e com muito cuidado e respei- oferta e sustentação das políticas públicas de
incursões munidas de bombas, balas de borracha foi considerado no levantamento destes dados. to aos corpos. Este ciclo de desconfiança atinge prevenção e cuidado.
e revistas arbitrárias, além da contínua, porém outras instituições públicas e as formulações e
Esta dinâmica fez com que a presença da equipe implementações de suas políticas, gerando sen-
submersa, violência que limita o básico direito de
em campo fosse extremamente importante nes- timentos de descrença que podem afastar ou
ir e vir citada acima. Desta forma, território se as-
te território, pois para além da aproximação e mesmo suscitar ataques aos serviços públicos
semelha a um contexto de guerra, tanto por parte Referências Bibliográficas
vinculação para alternativas de cuidado em rela- intersetoriais.
das dos ataques cotidianos vindos do poder pú-
ção ao uso de drogas, nossa presença foi funda- CALIL, T. G. Condições do lugar: relações entre saúde e am-
blico como pelas condições de vida e violência em biente na região da Luz, especificamente na região conhe-
mental como estratégia de inibição de excessos Avaliamos que a reforma urbanística em cur-
que toda a população está submetida. cida como “Cracolândia”. Dissertação de mestrado e Saú-
de violação de direitos, articulando claramente so na região da Luz tem, portanto, aumentado
de Pública. São Paulo. Universidade de São Paulo, 2015.
Esta característica fica evidente quando recen- as estratégias de redução de danos com a luta ainda mais a vulnerabilidade dessa população.
temente em uma atividade proposta pelo “Fó- por garantia de direitos. E apostamos em repensar a criminalização das ELIAS, L. E; Atendendo na guerra: dilemas médicos e jurídi-
pessoas que fazem uso de determinadas subs- cos sobre o crack. 2. Ed. Rio de Janeiro, Revan, 2014.
rum Aberto Mundaréu da Luz”, quando em uma
roda de conversa com microfone aberto iniciou- tâncias e outras populações chaves, como traba-
MARTINS, R.C.R;. A escuta ético política na rua. Disserta-
-se uma reflexão sobre os excessos da violência. Apontamentos finais lhadores(as) do sexo, com o objetivo de reduzir ção de mestrado em psicologia social. São Paulo: Pontifí-
As crianças que brincavam alegres durante todo os riscos aos quais toda a população local fica cia Universidade Católica de São Paulo, 2016.
A atuação dos dispositivos de Segurança Públi-
o dia na atividade se assustaram, pararam de submetida neste contexto.
ca, com sua tática ostensiva, criou (e cria) um SANTOS, M.; SILVEIRA, M. L. O Brasil: território e sociedade
brincar, se aproximaram de nós e disseram: “Tio, ambiente adverso, condicionante, quando não no início do século XXI. Rio de Janeiro/ São Paulo: Record,
Desta forma, em territórios como o bairro da Luz,
melhor não falar disso, porque assim a polícia determinante aos agravos, ou seja, contrapro- 2001.
trabalhar na perspectiva da Redução de Danos
vai jogar bomba.” (relato de campo do Centro de ducente do ponto de vista da saúde e da garan- amplia-se para além do desenvolvimento de es-
Convivência É de Lei, 28/10/2017). tia de direitos de modo geral. Muitos usuários, tratégias e processos de cuidado relacionados di-
em momentos de grande tensão, nos diziam retamente ao uso de drogas e a prevenção de IST/
da impossibilidade de pensar sobre autocuida- HIV/Aids e Hepatites virais. É uma prática que por
Violência policial
do relacionado ao consumo de drogas, práticas meio do dispositivo da escuta, é capaz de ofertar
Na Luz, dispositivos da segurança pública fazem sexuais e outras questões de saúde, frente à ta- testemunho e acolhimento, e nesse “estar junto”
parte da paisagem. Praticamente para onde se manha exposição à violência e intensificação de desenvolver estratégias de educação, promoção
olha observa-se a Guarda Civil Metropolitana vulnerabilidades. política e garantia dos direitos humanos. Assim,
(GCM), com sua Inspetoria de Operações Espe- as estratégias de redução de danos expandem-se
Sendo assim, a violência também afeta a saúde
ciais (IOPE) e Guarda Civil Ambiental, ou a Polícia como forma de resistência contra as violências
na medida em que diminui a qualidade de vida
Militar (PM) do Governo Estadual. Para além des- providas por parte do Estado.  
das coletividades e das pessoas, comprometen-
ta presença constante, a notícia da ocorrência
do a construção de relações comunitárias e re- Sendo assim, o papel do agente redutor de Da-
de uma intervenção policial violenta no territó-
des de apoio social. Para além dos danos indivi- nos apresenta uma especificidade fundamental,
rio faz parte do cotidiano, e chegava até nós pe-
duais causados, outro aspecto a ser considerado pois estamos em contato com a população, e
los nossos corpos na rua, pelos parceiros da rede
é o agravo e as consequências sociais e políticas escutamos de primeira mão os efeitos das polí-
e pelos meios de comunicação. Segundo nossos
deste tipo de violência, considerando que a po- ticas nos corpos e nas subjetividades na experi-
registros de campo pelo É de Lei, entre o final de
lícia é uma das faces mais visíveis e presentes do ência cotidiana. E assim como no início dos anos
2016 o final de 2017, foram registrados 136 tra-
Estado. A violência excessiva e desproporcional 2000 escutamos que apesar da boa intenção os
balhos de campo no território, e como dissemos,
às pessoas em situação de vulnerabilidades, cachimbos de madeira ofertados pelo Ministério
para além de observar a presença, em 67 deles,
aliada aos ataques direcionados às demais inter- da Saúde não obtiveram os efeitos desejados,
ou seja, praticamente 50% vivenciamos e acom-

16 Cuidado na rua: ações de redução de danos em contexto do uso de drogas no centro da cidade de São Paulo 17
Insumos e outros territórios: lugar. de sua atenção.

relato de uma abertura de


Por volta das 17h, em meados de novembro de Apresentamos nosso trabalho, e gradativamen-
2016,  fomos desbravar por novas terras. Estra- te, pela conversa, a tensão se esparramou, e o

campo no centro de São Paulo nhamente fazia frio em novembro, mas a empol-
gação era tanta que esquentava nossos corpos.
clima melhorou entre nós. Conversamos um
pouco e em dado momento a moça diz enquan-
Andamos do Glicério ao Parque Dom Pedro II. Ta- to aponta para o “fluxo”: “Precisa de trabalho
Thiago Godoi Calil1
teando pelas ruas e mocós, atentos e escutando ali mesmo para conversar com as pessoas”.
Glauber Castro2
as pessoas da região, fomos colhendo algumas Esta fala explicita a necessidade de um traba-
pistas. No meio do caminho conhecíamos outras lho na perspectiva do cuidado nesta cena de
“Do rio que tudo arrasta se diz que é violento. cenas de uso, menores, às vezes contando com 5 uso. Sim, realmente a concentração de pessoas
Mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem.” pessoas. Num destes locais, embaixo do viaduto fica escondida, e provavelmente não recebe a
Bertolt Brecht Vinte e cinco de março, pedimos informação de aproximação de serviços e equipes de cuidado.
como chegar no “Quadrado”, e um rapaz nos avi- Entregamos alguns insumos de prevenção (pi-
Em 2002 o Centro de Convivência É de Lei inicia perspectiva da Redução de Danos, ou seja, abrir sa: “Lá é tenso hein. Pesado.” Estávamos avisa- teiras e protetores labiais) para ela, por fim, re-
o trabalho de campo3 na região da Luz em con- novos campos. dos. Isso era fato. Mas algo instigava a seguir ta- cebemos uma devolutiva do rápido bate-papo:
texto de uso de crack. Apesar de em alguns mo- teando, afinal, qual seria o peso daquele lugar?  “Vou informar o gerente que vocês virão outras
A seguir, compartilhamos parte de nossa vivên-
mentos realizar trabalho de campo em outros vezes”. Entendemos esta fala como um pedido
cia neste processo, para assim reforçar o valor Foi preciso cruzar para o outro lado do rio Ta-
territórios do centro de São Paulo, a região da para irmos embora naquele momento, porém,
do trabalho de campo como estratégia de cuida- manduateí, e de longe, avistamos o tal “Quadra-
Luz manteve-se como foco de atuação ininter- sentimos também que nossa presença foi valo-
do e respeito à vida. do”.  Passando sobre o viaduto Antônio Nakashi-
rupta devido às inúmeras disputas econômicas rizada, e que certamente declarava um convite
ma foi possível ver o “fluxo”, com cerca de 30
e políticas que circundam a temática da “Cra- para voltarmos.
usuários ou mais. Um local cercado por grades,
colândia” vulnerabilizando as pessoas e o lugar. I Parte - Como tudo começou justamente para impedir que os cidadãos o ocu- Esta primeira aparição foi um tanto tensa, ás-
A atuação na Luz tornou-se rotina no planeja- O dia estava cinza e garoava um pouco. Após pem, o que dificulta bastante o acesso. Quando pera, mas isso nos possibilitou, todavia, nosso
mento e na prática do trabalho do É de Lei, e acessarmos algumas pessoas que usam crack nos aproximávamos, ainda em cima do viaduto, primeiro contato. 
ao longo dos anos, os laços com este território no Glicério, na rua São Paulo, por meio de uma vimos um rapaz bem próximo à grade. Sentimos
Refletimos sobre as características do lugar,
permitiram criar intimidade com suas caracte- delas, descobrimos a existência do “Quadrado”. ser uma possibilidade de contato e então resol-
e como era possível circundar o espaço pelas
rísticas, sejam elas doces ou amargas. Porém, Ouvimos falar algumas vezes sobre este espaço. vemos chamá-lo. Pelo ímpeto da oportunidade
grades, sustentamos a estratégia de manter
paralelamente ao fetiche midiático em torno Comentavam que era uma cena de uso mais es- um de nós praticamente subiu na cerca, e em
aproximações pelos arredores. Na semana se-
da “Cracolândia”, outras cenas públicas de uso condida, próxima à estação do metrô. seguida, lá de dentro do fluxo, uma pessoa grita
guinte, do alto da plataforma da estação de
de crack acontecem no centro de São Paulo. para chamar nossa atenção.
Nossa presença marcada há anos no contexto metrô observamos uma pequena trilha por
Cenas que recebem muito menos ou nenhuma
da “Cracolândia”, onde a cena de uso é expos- Um susto! onde as pessoas entram.
atenção, seja pelos meios de comunicação ou
pela oferta de políticas públicas. A falta de olha- ta e de alta visibilidade, nos intrigou a partir da Atenção. Uma pista.
res para determinados contextos não elimina a informação da existência desta cena de uso es-
necessidade de atenção. Desta forma, a partir condida. Naturalmente, a imaginação sobre as Era uma mulher, e aparentemente tinha res- Dava para sentir um pouco como estava o pe-
de projeto apoiado pela Secretaria de Vigilân- características, as condições de vida e as pos- ponsabilidades por ali. Parecia exercer uma queno “fluxo”. Observamos por um bom tem-
cia em Saúde do Ministério da Saúde, o É de Lei síveis necessidades deste território permeavam possível função de sentinela, que “fica de olho” po o ritmo dali, de longe, tentando entender o
ampliou sua área de atuação, e no final de 2016 nossa prática, e rapidamente nos demos conta em tudo. Realmente ela estava atenta à nossa funcionamento daquele espaço. Tivemos uma
começou a explorar novas regiões do centro na de que precisávamos nos aproximar deste novo aproximação. Aos berros, pedia para irmos em- visão panorâmica do local, e foi possível visuali-
bora. Ela parecia muito irritada, mas bancamos zar onde ficavam os barracos, entradas e saídas
ficar, a chamamos, e conseguimos um minuto pela cerca, o “fluxo”, a dinâmica, tudo ligado por
1
Redutor de Danos pelo É de Lei em 2017/2018 e psicólogo. Doutorando em Saúde Global e Sustentabilidade pela FSP/USP.
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Redutor de Danos pelo É de Lei em 2017.
3
Abordagem às pessoas que usam drogas no contexto de uso.

18 Cuidado na rua: ações de redução de danos em contexto do uso de drogas no centro da cidade de São Paulo 19
uma espécie de trilha feita pelos passos marca- da “Cracolândia”. Uma ponte entre diferentes trando presente. Estávamos ali, disponíveis, na busca pelo respeito. Ele agradece. Próximo
dos no chão de barro. territórios se construía, e sentíamos que a con- abertos para uma troca de ideia, de olhares, de dali, em outro trabalho de campo, ao oferecer-
fiança estava se fortalecendo.   cumplicidade. Aos poucos a experiência foi se mos insumos para as pessoas que usam crack,
Mais uma vez, em outro dia, após observarmos de
abrindo, tomando corpo, e o campo se consti- um rapaz diz: “Irmão, aqui você não vai conse-
cima da estação de metrô, descemos para a rua, Uma moça se aproxima. Ela já vinha irritada. Ten-
tuía. Assim nascia, quase que tímido, um fino guir vender essas coisas não.” Explicamos que
e na entrada da trilha a grade que cerca o local tamos lhe oferecer insumos, mas a moça não es-
laço que nos vinculava.   estamos distribuindo, é gratuito. Ele aceita e diz:
encontrava-se torta. Parece que havíamos en- tava para conversa. Gritou: “Que vocês estão fa-
“Ó! isso é novidade, ninguém vem dar coisa pra
contrado uma entrada, ou pelo menos uma delas. zendo parados aí?!”, seguido de um “Vaza daqui!” Foi um processo um tanto difícil, desafiador, lon-
gente aqui não.”
Uma entrada física, seria só passar. Mas este por- go, e por vezes tenso. Por um bom tempo, fica-
Resolvemos dar mais uma volta no entorno do
tal é permeado por representações, regras e va- mos andando ao redor, procurando brechas, nos A partir desta forma de aproximação leve e res-
Quadrado, pela Avenida do Estado, onde identi-
lores do contexto. Apesar da passagem livre, re- colocando disponíveis, esperançosos por um peitosa, sentimos que foi possível abrir espaço
ficamos mais uma entrada, outra grade de ferro
solvemos ficar por ali, esperar, fumar um cigarro. momento qualquer que nos chamariam. Volta e para que outras questões surgissem, e a con-
entortada. Porém, logo após esta descoberta de
voltas no entorno do “Quadrado”. fiança e o vínculo foram se estabelecendo.
Por sorte haviam três pessoas acessando o lo- uma nova possibilidade de entrada, coinciden-
cal. Dois homens e uma mulher. Parece que sem- temente nos encontramos novamente com a Foram precisamente 11 trabalhos de campo Com a entrada dos insumos antes de nós e a
pre ocorre uma movimentação, um certo “entra mulher loira, e não diferente, ela, bastante ner- de aproximação antes de realmente entrarmos chegada desta oferta que claramente demons-
e sai” nesta cena de uso, de fato um “fluxo” da vosa, pediu para nos retirarmos. Entendemos o com nossos corpos no chamado “Quadrado”. tra respeito, de alguma forma nos sentimos
zona sudeste do centro.   Oferecemos insumos, recado, e precocemente fomos embora. Antes disso, o trabalho já se fazia presente via reconhecidos, e de longe nos chamam de “os
explicando a utilidade de cada um, e aproveita- entrada dos insumos, e assim mais uma vez nos rapazes das mangueirinhas e manteiga”. Desta
No campo seguinte, utilizamos da mesma tática
mos a brecha para apresentar nosso trabalho. deparamos com a potência desta estratégia de forma, os insumos são meios fundamentais na
que a anterior - andar pelo entorno. Passando
Eles, surpresos no bom sentido, mostraram in- redução de danos. produção do cuidado. A partir dos insumos, es-
pela “entrada principal”, a grade trota próximo
teresse pelos nossos materiais. Nos pediram um tabelecemos contatos inéditos em um territó-
ao metrô, dois homens se aproximaram, um de- A estratégia de distribuição de insumos de pre-
bocado a mais para que pudessem levar para as rio “escondido”. A partir dos insumos criamos
les conhecemos da “Craco”. Foi a deixa certa. A venção como os protetores labiais e as piteiras
outras pessoas do fluxo. Era a nossa deixa, por- relações, e as relações de troca produzem re-
brecha que precisávamos. Deixamos alguns in- de silicone que são distribuídas para as pessoas
tanto, certamente disponibilizamos muitos. flexões sobre o contexto e o cuidado de si. Este
sumos com eles. Foram muito receptivos.  Pedi- que fazem uso de crack apresenta ganhos con-
fluxo de troca torna-se essencial para produ-
Ao saírem ousamos perguntar se poderíamos ir mos para que conversassem com alguém de lá, cretos frente aos riscos epidemiológicos relacio-
ção de caminhos possíveis na garantia de afe-
até lá, entrar até a concentração de usuários. para ver se haveria possibilidade de autorizar nados ao uso de crack. Porém, os insumos são
tos, cuidados, acessos e direitos.
nossa entrada. Eles foram, e nós esperamos. muito mais do que isso. Eles abrem uma janela
Um silêncio.
para o diálogo permitindo um encontro despido
Um rapaz jovem vem em nossa direção. Se apre-
Eles seguem a trilha sem nos oferecer resposta. o máximo possível de preconceitos e julgamen-
senta como Menor Radiado, e traz notícias do
Não entramos. Parecia difícil a entrada no “Qua- tos morais sobre as escolhas pessoais ou sobre o
nosso pedido.   Disse que o pessoal valorizava
drado”. Porém, neste dia os insumos já estavam momento de vida que estão atravessando. Referências Bibliográficas.
nosso trabalho, mas “a gerente não autorizou
dentro. Era uma questão de tempo.    
a entrada hoje”, e completa nos dando um si- Uma prática que extrapola a lógica preventivis- AYRES, J. R. C. M.; O cuidado, os modos de ser (do) huma-
Nos trabalhos de campo seguintes mais de uma nal positivo, “mas na próxima vez que vierem, ta funcional do controle dos riscos, e que abre no e as práticas de saúde. Saúde e Sociedade. Vol. 13, n.3,
podem me procurar”. Pediu insumos para levar possibilidades para que relações inéditas se p. 16 – 29, set-dez 2004.
vez voltamos a deixar insumos que entraram
no “Quadrado” sem nossos corpos. A partir daí, para os demais dentro do “Quadrado”, e nos estabeleçam desconstruindo os papéis mecani-
com a entrada dos insumos, apesar da nossa despedimos. camente rígidos entre médico-paciente (Ayres,
distância física, sentimos que já existia alguma 2004). Em um determinado momento, quando já
relação com as pessoas, com a cena de uso. estávamos dentro do “Quadrado”, uma pessoa
II Parte - A entrada nos pergunta “Essas manteiguinhas de cacau
Paralelamente às “entradas” dos insumos, ao
redor do “Quadrado” encontrávamos algumas Nossa aproximação foi aos poucos, respeitan- não tem remédio para a gente largar a droga à
pessoas que nos reconheciam da região da luz, do o espaço dos usuários, mas sempre se mos- força, né?! Porque eu não quero parar de fumar
não!” Explicamos que não, e que estamos juntos

20 Cuidado na rua: ações de redução de danos em contexto do uso de drogas no centro da cidade de São Paulo 21
Cartografia-denúncia: fracassada guerra às drogas, o Estado abre espaço
para uma política de reestruturação urbana exclu-

a relação entre a violência dente e violenta. É isso o que a cartografia ilustra. O


aumento de violações na região acontece paralela-
e os projetos urbanos na mente à definição e execução de projetos urbanís-

"cracolândia" paulistana
ticos, tais como o projeto Nova Luz (2005-2013) e os
atuais Projetos de Intervenção Urbanística (PIUs) e
Parcerias Público-Privadas (PPP).
Aluízio Marino1

Linha do tempo das violações


O projeto urbanístico “Nova Luz”, proposto entre os
Demolições, lacramentos, remoções, incêndios, Tanto as operações policiais como os proces-
anos de 2005 e 2012, previa a “revitalização” do bair-
violência policial e internações forçadas são si- sos de remoção forçada foram realizadas nes-
ro. Um discurso que não corresponde à realidade, já
tuações recorrentes na região que corresponde se território com a justificativa do “combate ao
que a região possui taxa de densidade demográfica
aos bairros da Luz e do Campos Elíseos, no cen- tráfico”, mas o resultado prometido nunca foi
entre as mais altas do centro expandido. Quem co-
tro de São Paulo. Desde 2005, quando foi lança- alcançado. Pelo contrário, entre 2016 e 2017 o
nhece a região sabe que vida ali nunca faltou, o que
do o projeto Nova Luz essa realidade é evidente. número de usuários de drogas que frequentam
falta são condições de vida adequadas à população.
No entanto um levantamento histórico espacial, a Cracolândia aumentou 160%. Os dados são
realizado no Observatório de Remoções, mostra do Levantamento do Perfil dos Usuários de Dro- No mesmo período do Projeto Nova Luz teve início a
que tais  violações nunca foram tão frequentes gas na Região da Cracolândia2, realizado pelo “Operação Limpa Cracolândia” (2005), que utilizan-
como em 2017. governo do estado de São Paulo em parceria do de violência dispersou os usuários para a região
com o Programa das Nações Unidas para o De- dos Campos Elíseos, na época o fluxo se concentra-
O presente texto apresenta esse levantamento
senvolvimento (PNUD). va no entorno da antiga estação da Luz. A partir de
em formato de cartografias que registram as
então, verifica-se um deslocamento das ações de
ocorrências de violações de direitos entre 2005 A população pobre, que reside em pensões,
repressão para o entorno da Rua Helvetia e da Praça
e 2017 na região. Uma sequência de mapas que ocupações e outros conjuntos construídos pe-
Julio Prestes. Foi ali onde o fluxo se instalou depois
ilustram essa triste realidade e evidenciam a re- las próprias pessoas, também sentem os efeitos
das operações policiais e demolições no âmbito do
lação com os projetos urbanos passados e os em das políticas de repressão, sendo expulsas múl-
Projeto Nova Luz.
curso no território. As fontes para os registros tiplas vezes de suas moradias. Em outras pala-
das ocorrências foram notícias em veículos da vras, a “guerra às drogas” se transformou em Cabe lembrar que durante a tentativa de implantação
mídia hegemônica, registros de mídias ativistas, justificativa para remover sujeitos considerados do projeto Nova Luz, a Favela do Moinho também so-
denúncias de grupos de proteção e resistência e indesejados e abrir espaço para outras pessoas freu com uma série de incêndios. Neste local residem
observações de campo. ocuparem aquele pedaço da cidade. Este qua- a anos inúmeras famílias que também são impacta-
dro apenas agrava problemas mais amplos e es- das pelas políticas aqui descritas. Destaca-se que,
O principal objetivo da cartografia é denunciar
truturais como a falta de moradia adequada e o assim como o pedaço onde se encontra atualmente
uma sistemática violação de direitos, que atinge
encarceramento em massa. o fluxo da Cracolândia, o local onde está a favela do
os sujeitos-usuários de substâncias psicoativas
Moinho também é demarcado como Zona Especial de
em situação de rua, as famílias que residem ma- Mais do que uma coincidência, a análise históri-
Interesse Social (ZEIS) desde 2004. Mesmo com a de-
joritariamente em pensões e ocupações de mo- ca e geográfica aqui apresentada questiona os
finição de uso para moradia popular, garantida pelo
radia, e os trabalhadores de assistência social e interesses em torno dessas violações sistemá-
Plano Diretor, nunca se efetivou um projeto que visas-
saúde que atuam na região. ticas. Sob a justificativa da internacionalmente
se solucionar a precariedade habitacional na região.

1
Doutorando em Planejamento e Gestão do Território pela UFABC. Pesquisador do Lab Cidade - Observatório de Remoções da FAU - USP.
2
Governo do Estado de São Paulo. Levantamento do perfil de usuários de drogas da região da cracolândia. Disponível em: https://drive.google.
com/file/d/0BzuqMfbpwX4wb3kyQzdwTlRrbHc/view (acessado em 23 de março de 2018)

22 Cuidado na rua: ações de redução de danos em contexto do uso de drogas no centro da cidade de São Paulo 23
O ano de 2012 ficou marcado pela “Operação Sufo- moradores da favela foram duramente reprimidos
co”3. Quando policiais militares e guardas civis me- pela guarda civil metropolitana.
tropolitanos reprimiram de forma violenta o “fluxo”,
Em 2017, apesar do reconhecimento da mídia e de
realizando ações diárias na região. Uma das táticas
pesquisadores afirmando que a repressão policial
da operação foi impedir as pessoas de ficar na rua
não resolve os problemas da região, há uma inten-
e obrigar todos a circular, a intenção era fazer com
sificação das violações, violências e remoções. O nú-
que abandonassem o local devido ao “sufocamen-
mero de ocorrências entre os meses de maio e julho
to”. Entretanto não houve êxito, o fluxo permaneceu
são os maiores desde 2005. Evidencia-se também
e passou a se espalhar. Na época ganhou repercus-
uma maior violência institucional, com denúncias de
são na mídia as chamadas “procissões do crack”.
tortura e assassinato de um morador da Favela do
A partir de 2013, após a interrupção do Projeto Nova Moinho por policiais militares. Em outro episódio um
Luz, observa-se pela primeira vez experiências alter- jovem perdeu a visão de um olho devido a um dispa-
nativas de atuação do poder público nesse território, ro de bala de borracha contra os usuários na Praça
com destaque a política municipal “De Braços Aber- Princesa Isabel, também por policiais militares. Em
tos”, que oferecia moradia, trabalho e ações cultu- outro caso, que teve grande destaque na mídia a
rais e de redução de danos para os dependentes quí- prefeitura demoliu uma pensão com pessoas dentro,
micos em situação de rua. Entretanto, nesse período deixando ao menos três feridas 4.
ainda houveram demolições - e consequentemente
Todo esse triste cenário se desenrola concomitante-
remoções - por parte do Governo do Estado, motiva-
mente a uma enxurrada de novos projetos urbanos
das inicialmente para construção de equipamentos
para a região, especificamente os PIUs Princesa Isa-
culturais âncora, para assim “renovar” a região.
bel e Campos Elíseos; o Projeto Redenção, por par-
Naquela época o Governo do Estado, por meio te da prefeitura; e duas PPPs, a de habitação “Casa
da Companhia de Desenvolvimento Habitacional Paulista” e a do Hospital Perola Byington, pelo go-
(CDHU), se comprometeu a reassentar as famílias re- verno do estado.
movidas, garantindo auxílio aluguel e atendimento
Após a mega operação policial em maio de 2017 o pre-
habitacional posterior. Entretanto, segundo os rela-
feito, João Dória, chegou a afirmar que a cracolândia
tos locais até hoje essas famílias não receberam tal
havia acabado. Entretanto, o acompanhamento dos
atendimento. Inclusive, boa parte delas permane-
fatos após esse período apontam algo bem diferente:
cem na região e ainda vivem sob constante ameaça
mesmo com a intensificação de operações policiais e
de remoção.
remoções - com relatos de violência e crueldade - a
Mesmo com revisão do Plano Diretor e o aumen- cracolândia não acabou. Verifica-se na realidade que
to da demarcação de ZEIS a insegurança e vulne- o fluxo passa a se deslocar com maior frequência, se
rabilidade permaneceram rondando a população esquivando das operações policiais e das práticas de
local. Nesse período, especialmente na Favela do “limpeza” com os caminhões pipa da prefeitura. Esse
Moinho, a relação com a prefeitura se torna bastan- deslocamento está principalmente entre diferentes
te tensa e acontecem diversos protestos devido a alturas da Rua Helvetia, desde a Praça Julio Prestes
novas ocorrências de incêndio. Nesses protestos os até a Praça Princesa Isabel. Esse movimento pode

3
RUI, Taniele. Depois da “operação sufoco”: sobre espetáculo policial, 4
El Pais Brasil. Gestão Doria inicia demolição de prédio na cracolândia
cobertura midiática e direitos na “cracolândia” paulistana. Revista Con- com moradores dentro. São Paulo, 24 de maio de 2017. Disponível em: ht-
temporânea - UFSCAR. v.3, n.2, pp.287-310: 2013. Disponível em: http:// tps://brasil.elpais.com/brasil/2017/05/24/politica/1495579264_276005.
www.contemporanea.ufscar.br/index.php/contemporanea/article/ html (acessado em 23 de março de 2018).
view/144/80 (acessado em 23 de março de 2018).

24 Cuidado na rua: ações de redução de danos em contexto do uso de drogas no centro da cidade de São Paulo 25
ser verificado, assim como nos outros mapas, na reconhece que a violência e a repressão não re-
presença dos ícones que correspondem a “violên- solvem os verdadeiros problemas, pelo contrário,
cia policial”. intensificam os conflitos, reforçam a histórica
desigualdade social e fragilizam o tecido social.
Portanto, mais uma vez o discurso da “guerra às
No contexto da cracolândia isso é evidente: o
drogas” justifica violências contra o fluxo e as
combate ao tráfico de drogas, justificativa apre-
famílias que ali residem. Entre outras questões,
sentada pelos governos municipal e estadual em
essas ações violam os parâmetros da política ur-
suas ações, serve como cortina de fumaça para
bana em vigor, já que a área alvo de demolições
outros objetivos e interesses, tais como o avanço
por parte dos governos municipal e estadual
do mercado imobiliário e a gentrificação.
está configurada, conforme dito acima, como
ZEIS. Este  instrumento do Plano Diretor  prevê o
aumento da  oferta de moradia popular e a me- 5
Portal de notícias UOL. Ativistas denunciam “ação de guerra” da
lhoria das condições habitacionais de quem ali PM e da GCM na cracolândia. São Paulo, 11 de janeiro de 2018. Dis-
ponível em: https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noti-
reside, assim como  a participação desta  popu-
cias/2018/01/11/ativistas-denunciam-acao-de-guerra-na-pm-e-da-
lação, via conselho gestor, na implementação de -gcm-na-cracolandia-ha-feridos.htm (acessado em 23 de março de
2018).
projetos de intervenção urbana. Nesse sentido
as ações atuais e passadas desrespeitam um es- 6
Ponte Jornalismo. PM faz em média uma ação por semana com bom-
bas de gás na Cracolândia. Disponível em: https://ponte.org/pm-fa-
paço de participação social legítimo e não pre- z-em-media-uma-acao-por-semana-com-bombas-de-gas-na-craco-
vê o atendimento das famílias que ali residem, landia/ (acessado em 23 de março de 2018).

pois as exigências para aquisição dos imóveis via 7


O Estado de São Paulo. Mesmo com ações policiais, cresce o número
PPP não correspondem aos padrões de renda e de roubos na região da Cracolândia. São Paulo, 07 de agosto de 2017.
Disponível em: http://sao-paulo.estadao.com.br/noticias/geral,mes-
exigem comprovação via registro em carteira (a mo-com-acoes-policiais-cresce-o-numero-de-roubos-na-regiao-
maioria da população que ali vive possui traba- -da-cracolandia,70001926479 (acessado em 23 de março de 2018).

lhos “informais”).

Existe atualmente um verdadeiro  clima de guer-


ra na região5, onde todos que ali habitam, traba-
lham e circulam são prejudicados. Dados obtidos
via Lei de Acesso à Informação (LAI) pelo portal
Ponte demonstram isso. Tais dados mostram que
de maio até início de dezembro de 2017, foram re-
alizadas 29 operações com utilização de bombas
de gás e de efeito moral6. É nítida também a sen-
sação de insegurança no território, o que inclusi-
ve é reforçado pelos dados divulgados pelo jornal
O Estado de São Paulo, que   via LAI constatou:
o número de roubos registrados na região quase
triplicou após as operações da Polícia Militar que
tiveram início no dia 21 de maio7.
Esta publicação é uma realização do O Centro de Convivência é de Lei em parceria com a Secretaria
A literatura internacional, pautada na descri-
de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde no contexto do Projeto “O CUIDADO NA RUA: AÇÕES
minalização das drogas e na redução de danos,
DE REDUÇÃO DE RISCOS E DANOS EM CONTEXTO DE USO DE DROGAS NO CENTRO DA CIDADE DE SÃO
PAULO” Convênio SICONV 814605/2014

26 Cuidado na rua: ações de redução de danos em contexto do uso de drogas no centro da cidade de São Paulo 27
www.edelei.org
Rua do Carmo, 56 • 2º andar • Sala 201 e 202
Tel (11) 3337-6049 • campo.edelei@gmail.com

ISBN: 978-85-54208-00-4

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