Você está na página 1de 93

Judith Revel

MICHELFOUCAULT
CONCEITOS ESSENCIAlS

~
claraluz
EDITORA
Juclith Revel

MICHELFOUCAULT
CONCEITOS ESSENCIAIS

Tradução: Carlos Piovezani Filho e Nilton Milanez


Revisão Técnica: Maria do Ro ário Gregolin

$
claraluz
EDITORA
T ítu lo o r ig in a l:
Le Vocabulaire de Foucault
© E llip s e s É d itio n M a r k e tin g S .A ., 2 0 0 2
3 2 , r u e B a r g u e 7 5 7 4 0 P a r is c e d e x 1 5
IS B N 2 -7 2 9 8 -1 0 8 8 -9

D ia g r a m a ç ã o
Malra Valencise

C apa
Dez e Dez Mu/timeios

F ic h a C a ta lo g r á f ic a e la b o r a d a p e la B ib lio te c a d o I C M C /U S P

R 449m R e v e l, J u d ith .
M ic h e l F o u c a u lt: c o n c e ito s e s s e n c ia is / J u d ith R evel ;
tr a d u ç ã o M a r ia d o R o s á r io G r e g o lin , N ilto n M ila n e z ,
C a r lo P io v e s a n i. - S ã o C a r lo s : C la r a lu z , 2005.
9 6 p .; 2 1 c m

IS B N 8 5 -8 8 6 3 8 -0 9 -6

I . T e o r ia d e F o u c a u lt. 2 . L in g u a g e m - F ilo s o f ia .
3 . A n á lis e d o d is c u r s o . L G r e g o lin , M a r ia d o R o s á r io , tr a d .

1 1 . M ila n e z , N ilto n , tr a d . 1 I I . P io v e s a n i, C a r lo s , tr a d . I V . T ítu lo .

E D IT O R A CLARALUZ
R u a R a f a e l d e A . S a m p a io V id a l, 1 2 1 7
CEP 1 3 5 6 0 -3 9 0 - C e n tr o / S ã o C a r lo s - S P
F o n e lF a x : (1 6 ) 3 3 7 4 8 3 3 2
S ite : w w w .e d ito r a c la r a lu z .c o m .b r

T o d o s o s d ir e ito s re se rv a d o s. N enhum a p a r te d e s ta o b r a p o d e s e r r e p r o d u z id a ou
tr a n s m itid a p o r q u a lq u e r fo rm a e /o u q u a is q u e r m e io s o u a r q u iv a d a em banco de
d a d o s s e m p e r m is s ã o d a E d ito r a C la r a lu z L td a .

© E d ito r a C la r a lu z , S ã o C a r lo s , 2 0 0 5
Conceitos EssenciaisJIHGFEDCBA

A c o n te c im e n to 13

A rq u e o lo g ia 16

A rq u iv o 18

A tu a lid a d e 20

A u fk la ru n g 22

A u to r 24

B io p o litic a 26

C o n tro le 29

C o rp o s (in v e s tim e n to p o litic o dos) 31

C u id a d o d e s i / T é c n ic a s de si 33

D is c ip lin a 35

D is c u rs o 37

D is p o s itiv o 39

E p is te m e 41

E té tic a (d a e x is tê n c ia ) .4 3

tic a 45

E x p ê rie n c ia 47

E x te rio r 50

G e n e a lo g ia 52

G o v e rn a m e n ta lid a d e 54
G u e rra 56

H is tó ria 58

L o u c u ra 62

N o rm a 65

Poder 67

P ro b le m a tiz a ç ã o 70

R azão / R a c io n a lid a d e 72

R e s is tê n c ia / Tran g re ssã o 74

Saber / S a b e re s 77

S e x u a lid a d e 80

S u b je tiv a ç ã o (p ro c e sso de) 82

S u je ito / S u b je tiv id a d e 84

V e rd a d e / Jogos de v e rd a d e 86
ApresentaçãoWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

A o b ra de M ic h e l F o u c a u lt é c o m p le x a : n e la

fre q ü e n te m e n te s u b lin h o u -s e a g ra n d e v a rie d a d e dos cam pos

de in v e s tig a ç ã o , a e s p a n to a e s c ritu ra b a rro c a , o s e m p ré s tim o s

de o u tra s d is c ip lin a s , a s v o lta s e re v ira v o lta s , as m udanças de

te rm in o lo g ia , a vocação s im u lta n e a m e n te f .tlo s ó f ic a e jo r n a li tic a

- num a p a la v ra , nada que possa p a re c e r com a q u ilo que a

tra d iç ã o nos h a b itu o u a conceber com o um s is te m a filo s ó fic o .

Um vocabulário d e F o u c a u lt que a p re s e n ta seus conceitos essenciais


se in s c re v e ne sa m esm a d ife re n ç a , v is to que e le a p re s e n ta ,

a b s o lu ta m e n te ao m esm o te m p o , a re to m a d a de c o n c e ito s

filo s ó fic o s h e rd a d o s de o u tro s p e n s a m e n to s - e, por vezes,

la rg a m e n te d e s v ia d o s de seu s e n tid o in ic ia l -, a c ria ç ã o de

c o n c e ito s in é d ito s e a e le v a ç ã o de te rm o s e m p re s ta d o s da

lin g u a g e m com um à d ig n id a d e f .tlo s ó f ic a ; p o r o u tro la d o , é u m

vocabulário que e m e rg e fre q ü e n te m e n te a p a rtir d e p rá tic a s e que

se p ro p õ e com o g e ra d o r de p rá tic a s : is s o o c o rre p o rq u e um

arsenal conceitual; é , lite ra lm e n te (g o s ta v a de le m b ra r F o u c a u lt),

um a " c a ix a de fe rra m e n ta s " . E n fim , a n te s de ser fix a d o

I NT: Dits et écrits fo i p u b lic a d o , n o F ra n ç a , p e la G a llim a rd (1 9 9 4 , 0 4 v o lu m e s ),


s o b a d ire ç ã o d e O a n ie l O e fe rt e F ra n ç o is E w a ld com a c o la b o ra ç ã o de Jacques
L a g ra n g e . A e d iç ã o b ra s ile ira de Ditos e Escritos, o rg a n iz a d a p o r M a n o e l B a rro s d a
M o rta , fo i p u b lic a d a , em 05 v o lu m e s , p e la F o re n se U n iv e rs itá ria , e n tre 2002 e
2004.
d e fin itiv a m e n te no liv ro s , o vocabulário s e fo rja e e m o d e la no

la b o ra tó rio d a o b ra : o e n o rm e corpus d e te x to s e s p a rs o s re u n id o s

sob o títu lo de Ditos e escritos' fo rn e c e , d e s s e p o n to d e v is ta , u m

re su m o fo rm id á v e l do tra b a lh o de p ro d u ç ã o de c o n c e ito s que

im p lic a o e x e rc íc io d o p e n s a m e n to ; e s s a é a ra z ã o p e la q u a l, n a

m a io r p a rte d o s c a s o s , s e e n c o n tra rá a q u i n e s te liv ro re fe rê n c ia s

a o s te x to s de Ditos e escritos. É p re c is o ig u a lm e n te s u b lin h a r que

e s s e la b o ra tó rio do p e n s a m e n to não é s o m e n te o lu g a r o n d e se

c ria m c o n c e ito s , m as, fre q ü e n te m e n te , ta m b é m o lu g a r onde,

num m o v im e n to de re v ira v o lta que e s tá se m p re p re s e n te em

F o u c a u lt, e le s p a s s a ra m num segundo te m p o p e lo c riv o d e u m a

c rític a in te rn a : os te rm o s s ã o , p o rta n to , p ro d u z id o s , fix a d o s ,

d e p o is re e x a m in a d o s e abandonados, m o d ific a d o s o u a m p lia d o s

num m o v im e n to c o n tín u o d e re to m a d a e d e d e s lo c a m e n to .

E s te liv ro , no qual p ro p o n h o a d e fin iç ã o de conceitos


essenciais d e F o u c a u lt sob a fo rm a de um v o c a b u lá rio em o rd e m

a lfa b é tic a , p re c is o u c o n s id e ra r tu d o is o a o m e s m o te m p o . T a re fa

á rd u a , c e rta m e n te , já q u e p ro c u re i n ã o e s ta n c a r e s s e m o v im e n to

e, ao m esm o te m p o , p re te n d i to rn a r c o m p re e n s ív e l a c o e rê n c ia

fu n d a m e n ta l d a re fle x ã o fo u c a u ltia n a . F o i n e c e s s á rio , p o rta n to ,

o p e ra r e s c o lh a s - fre q ü e n te m e n te d ifíc e is - a fim de to rn a r

v is ív e is a s p a s s a g e n s e s s e n c ia is des a p ro b le m a tiz a ç ã o c o n tín u a ;

e, na m e d id a do p o s s ív e l, te n te i te c e r s is te m a tic a m e n te , por

m e io d e u m jo g o d e re m is s õ e s , a tra m a a p a rtir d a q u a l o p e rc u rs o

filo s ó fic o de F o u c a u lt p o d ia ser v is u a liz a d o na c o m p le x id a d e

d e s u a s ra m ific a ç õ e s e d e s u a s re v ira v o lta s . o fin a l d e s u a v id a ,


F o u c a u lt g o s ta v a d e fa la r d e " p ro b le m a tiz a ç ã o " e não e n te n d ia ,

nessa id é ia , a re p re s e n ta ç ã o de um o b je to p ré -e x is te n te nem a

c ria ç ã o , p o r m e io d o d is c u rs o , de um o b je to q u e n ã o e x is te , m a s

"o c o n ju n to d e p rá tic a s d i c u rs iv a s ou n ã o -d is c u rs iv a s que fa z

e n tra r a lg u m a c o i a n o jo g o d o v e rd a d e iro e d o fa ls o e o c o n s titu i

com o o b je to p a ra o p e n s a m e n to (q u e r is s o s e ja s o b a fo rm a da

re fle x ã o m o ra l, do c o n h e c im e n to c ie n tific o , d a a n á lis e p o lític a

e t c .) " . E le a s s im d e fin ia , p o rta n to , um e x e rc íc io c rític o do

p e n s a m e n to que se opõe à id é ia de um a p e s q u is a m e tó d ic a da

" s o lu ç ã o " , p o rq u e a ta re fa da filo s o fia não é re s o lv e r - aí

c o m p re e n d id a a a ç ã o d e s u b s titu ir um a s o lu ç ã o p o r o u tra - m a s

" p ro b le m a tiz a r" , não re fo rm a r, m as in s ta u ra r um a d is tâ n c ia

c rític a , fa z e r jo g a r o " d e s p re n d im e n to " .

A m a io r hom enagem que podem os p re s ta r, h o je , a

F o u c a u lt é p re c i a m e n te re s titu ir ao seu p e n s a m e n to sua

d im e n s ã o p ro b le m á tic a . E s te liv ro , a o o rg a n iz a r u m v o c a b u lá rio

com os conceitos essenciais de F o u c a u lt (m u ito m a is do que um

s im p le s c o n ju n to de te rm o s e n u m e ra d o s segundo a o rd e m

a lfa b é tic a ) é um a te n ta tiv a d e re c o n s titu ir a d iv e rs id a d e dessas

p ro b le m a tiz a ç õ e s - s u c e s s iv a s ou su p e rp o ta s - que fa z e m a

e x tra o rd in á ria riq u e z a das a n á li e s fo u c a u ltia n a .

J u d ith R evel
Organização do livro

Este livro apresenta conceitos essenciais de Michel


Foucault em forma de verbetes, com três níveis assinalados por
asteriscos:

* definição de base

** definição particularizada que apresenta o desenvolvimentos


do conceito na obra foucaultiana

*** definição mais ampla que insere o conceito e o relaciona


com outros no interior da obra de Foucault
CONCEITOS ESSENCIAIS
13

Acontecimento
* Por a c o n te c im e n to , F o u c a u lt e n te n d e , a n te s de tu d o de m a n e ira

n e g a tiv a , u m fato p a ra o q u a l a lg u m a s a n á lis e s h is tó ric a s s e c o n te n ta m

em fo rn e c e r a d e s c riç ã o . O m é to d o a rq u e o ló g ic o fo u c a u ltia n o busca,

a o c o n trá rio , re c o n s titu ir a trá s do foto to d a um a re d e d e d is c u rs o s , de

p o d e re s, d e e s tra té g ia s e d e p rá tic a s . É , p o r e x e m p lo , o c a s o d o tra b a lh o

re a liz a d o so b re o d o s s iê Pierre Rioiêre: " re c o n s titu in d o e s e c rim e do

e x te rio r [. . .] , c o m o e fo sse um a c o n te c im e n to , e nada a lé m de um

a c o n te c im e n to c r i m i n a l , e u c r e i o q u e n o s f a l t a o e s s e n c i a l '" . E n tre ta n to ,

num segundo m o m e n to , o te rm o " a c o n te c im e n to " com eça a a p a re c e r

em F o u c a u lt de m a n e ira p o s itiv a , com o um a c ris ta liz a ç ã o de

d e te rm in a ç õ e s h is tó ric a s c o m p le x a s gue e le o p õ e à id é ia d e e s tru tu ra :

" A d m ite -s e que o e tru tu ra li m o te n h a s id o o e s fo rç o m a is s is te m á tic o

p a ra e lim in a r, não apenas da e tn o lo g ia m as de um a s é rie de o u tra s

c iê n c ia s e a té m esm o da h is tó ria , o c o n c e ito de a c o n te c im e n to . Eu

não v e jo guem pode ser m a is a n ti-e s tru ru ra lis ta do que e u '" . O

p ro g ra m a d e F o u c a u lt to rn a -s e , p o rta n to , a a n á lis e d e d ife re n te s re d e s

e n ív e is aos q u a is a lg u n s a c o n te c im e n to s p e rte n c e m . E sa nova

concepção a p a re c e , por e x e m p lo , quando e le d e fin e o d is c u rs o com o

um a é rie de a c o n te c im e n to s , c o lo c a n d o -s e o p ro b le m a da re la ç ã o

e n tre os " a c o n te c im e n to s d is c u rs iv o s " e os a c o n te c im e n to s de um a

o u tra n a tu re z a (e c o n ô m ic o s , s o c ia is , p o lític o s , in s titu c io n a is ).

2 E n tre tie n a v e c M ic h e l F o u c a u lt. Cahiers du Cinéma, n ° 2 7 1 , n o v e m b ro de 1976.

3 E n tre v is ta com M ic h e l F o u c a u lt. In : F o n ta n a , A . e P a s q u in o , P. Microfisica dei


Potere: interventi politici. T u r i n : E in a u d i, 1 9 7 7 . [T ra d u ç ã o b ra s ile ira : V e rd a d e e

p o d e r . ln : Microfisica do poder. R io d e J a n e iro : G ra a l, 1 9 8 5 , p .5 ) .


/4 Judith Revel

** É a p a rtir dessa in s e rç ã o do a c o n te c im e n to no c e n tro de sua

a n á lis e s gue F o u c a u lt re iv in d ic a o e s ta tu to de h is to ria d o r - ta lv e z ,

ta m b é m p o rg u e , com o e le m esm o o o b se rv a , o a c o n te c im e n to não

te n h a s id o um a c a te g o ria filo s ó fic a , s a lv o , ta lv e z , nos e s tó ic o s : "O

fa to de eu c o n s id e ra r o d is c u rs o com o um a série de a c o n te c im e n to s

nos s itu a a u to m a tic a m e n te na d im e n s ã o da h is tó ria f ... ]. ão sou

h is to ria d o r no s e n tid o e s trito do te rm o ; m as os h is to ria d o re s e eu

te m o s em com um um in te re s s e p e lo a c o n te c im e n to [... 1 . em a ló g ic a

do s e n tid o , nem a ló g ic a d a e s tru tu ra são p e rtin e n te s p a ra esse tip o de

p e s q u is a ? " . É , p o rta n to , por o c a s iã o de um a d is c u s s ã o com os

h is to ria d o re s ! gue F o u c a u lt d á a d e fin iç ã o d e " a c o n te c im e n ta liz a ç ã o " :

não um a h is tó ria a c o n te c i m e n ta l, m as a to m a d a de c o n s c iê n c ia das

ru p tu ra s d a e v id ê n c ia in d u z id a s por c e rto s fa to s . O gue s e tra ta e n tã o

de m o s tra r é a irru p ç ã o de um a " s in g u la rid a d e " não n e c e s s á ria : o

a c o n te c im e n to gue re p re s e n ta o e n c la u s u ra m e n to , o a c o n te c im e n to

da a p a riç ã o da c a te g o ria de "doenças m e n ta is " e tc ,

*** A p a rtir da d e fin iç ã o de a c o n te c im e n to com o irru p ç ã o de um a

s in g u la rid a d e h is tó ric a , F o u c a u lt vai d e s e n v o lv e r d o is d is c u rs o s . O

p rim e iro c o n s is te em d iz e r gue nós re p e tim o s sem o saber os

a c o n te c im e n to s , "nós os re p e tim o s na nossa a tu a lid a d e , e eu te n to

a p re e n d e r gual é o a c o n te c im e n to sob c u jo s ig n o nós nascem os, e

gual é o a c o n te c im e n to gue c o n tin u a a in d a a nos a tra v e s s a r" . A

a c o n te c im e n ta liz a ç ã o da h is tó ria deve, p o rta n to , se p ro lo n g a r de

m a n e ira g e n e a ló g ic a por um a a c o n te c im e n ta liz a ç ã o de nossa p ró p ria

4 D ia lo g u e sur le p o u v o ir. In : W a d e , S . Che; Foucault . L o s A n g e l e s : C i r c a b o o k ,


1 9 7 8 . [T ra d u ç ã o b ra s i le ira : D iá lo g o so b re o p o d e r . I n : Ditos e Escritos, v o l . I V , p .

2 5 8 ].
5 L a p o u s s iê re e t le n u a g e . In : M . P e rro t ( e d .) L'impossible prison. P a r i s : S e u i l ,
1 9 8 0 . [T ra d u ç ã o b ra s ile ira : A p o e ira e a n u v e m . Ditos e Escritos, v o l . I V , p . 3 2 3 -
In :

3 3 4 ).
M ic h e l F o u c a u lt: c o n c e ito s e s s e n c ia is /5

a tu a lid a d e . O segundo d is c u r s o c n s is te p r e c is a m e n te em buscar na

nossa a tu a lid a d e o s tr a ç o s de um a " r u p tu r a a c o n te c im e n ta l" - tr a ç o

q u e F o u c a u lt lo c a liz a já n o te x to k a n tia n o c o n sa g ra d o às L uzes, e que

e le c rê r e e n c o n tr a r por o c a s iã o da r e v o lu ç ã o ir a n ia n a , em 1979 -

p o rq u e e s tá a í, s e m d ú v id a , o v a lo r d e r u p tu r a d e to d a s a s r e v o lu ç õ e s :

"A r e v o lu ç ã o [ ... ] c o rre o r is c o de b a n a liz a r - s e , m as com o

a c o n te c im e n to c u jo p r ó p r io c o n te ú d o é im p o r ta n te , sua e x is tê n c ia

a te s ta um a v ir tu a lid a d e p e r m a n e n te e que não pode s e r e s q u e c id a '" .

6 W h a t's is E n lig h te n m e n t ? I n P . R a b in o w ( ê d .) . The Foucault Reader. N e w Y o r k :


P a n th e o n B ooks, 1 9 8 4 , e Q u 'e s t- c e q u e le s lu m iê r e s ? I n : Magazine Littéraire, n a
2 0 7 , m a io d e 1 9 8 4 . [ T r a d u ç ã o b r a s ile ir a : O que s ã o a s L u z e s ? I n : Ditos e E s c r ito s ,
v o l. lI , p . 3 3 5 - 3 5 1 ) .
16 Judith Revel

ArqueologiaUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
*0 te rm o a p a r e c e t r ê s v e z e s n o s título d a o b r a d e
" a rg u e o lo g ia "

F o u c a u lt - ascimento da clínica. Uma arqueologia do olhar médico ( 1 9 6 3 ) , As


palavras e as coisas. Uma arqueologia das ciências humanas ( 1 9 6 6 ) e Arqueologia
do saber ( 1 9 6 9 ) - e c a r a c t e r i z a a t é o f i n a l d o s a n o s 7 0 o m é t o d o d e
p e s g u i s a d o f J . i ó s o f o .U m a a r g u e o l o g i a n ã o é u m a " h i s t ó r i a " n a m e d i d a

e m q u e , c o m o s e tra ta d e c o n s tru ir u m c a m p o h is tó ric o , F o u c a u lt o p e ra

com d ife re n te s d im e n s õ e s (filo s ó fic a , e c o n ô m ic a , c ie n tífic a , p o litic a

e tc .) a f im d e o b te r a s c o n d iç õ e d e e m e rg ê n c ia d o s d is c u rs o s d e s a b e r

d e u m a d a d a é p o c a . A o in v é s d e e s tu d a r a h is tó ria d a s id é ia s e m s u a

e v o lu ç ã o , e le e c o n c e n tra so b re re c o rte s h is tó ric o s p re c is o s - em

p a rtic u la r, a id a d e c lá s s ic a e o in íc io d o s é c u lo X IX -, a fim d e d e s c re v e r

não s o m e n te a m a n e ira p e la g u a l o s d ife re n te s sa b e re s lo c a is s e

d e te rm in a m a p a rtir d a c o n s titu iç ã o d e n o v o s o b je to s g u e e m e rg ira m

n u m c e rto m o m e n to , m a s c o m o e le s s e re la c io n a m e n tre s i e d e s e n h a m

d e m a n e ira h o riz o n ta l u m a c o n fig u ra ç ã o e p is tê m ic a c o e re n te .

** e o te rm o a rq u e o lo g ia n u triu , em d ú v id a , a id e n tific a ç ã o de

F o u c a u lt c o m a c o rre n te e s tru tu ra li ta - n a m e d id a e m g u e e le p a re c ia

e v id e n c ia r u m a v e rd a d e ira e s tru tu ra e p is tê m ic a d a q u a l o s d ife re n te s

sa b e re s não te ria m s id o enão v a ria n te s -, s u a in te rp re ta ç ã o é, na

v e rd a d e , bem o u tra . C om o le m b ra o s u b títu lo de As palavras e as


coisas, n ã o s e tra ta d e fa z e r a arqueologia, m as Nma arqueologia d a c iê n c ia

h u m a n a s : m a is d o q u e u m a d e s c riç ã o p a ra d ig m á tic a g e ra l, tra ta -s e d e

um c o rte h o riz o n ta l de m e c a n is m o s gue a rtic u la m d ife re n te s

a c o n te c im e n to s d is c u rs iv o s - o a b e re s lo c a is - a o p o d e r. E ssa

a rtic u la ç ã o , c la ro , é in te ira m e n te h is tó ric a : e la p o s s u i u m a d a ta d e


M ic h e l F o u c a u lt: c o n c e ito s e s s e n c ia is J7

n a s c im e n to - e o g ra n d e d e s a fio c o n s is te em e n c a ra r ig u a lm e n te a

p o s s ib ilid a d e de seu d e s a p a re c im e n to , "com o na o rla do m ar um

ro s to de a r e i a '" .

*** a " a rq u e o lo g ia " , re e n c o n tra -s e , ao m esm o te m p o , a id é ia da

arcbê, is to é, do com eço, do p rin c íp io , da e m e rg ê n c ia dos o b je to s de

c o n h e c im e n to , e a id é ia de a rq u iv o - o re g is tro desses o b je to s . M as,

da m esm a m a n e ira que o a rq u iv o não é o tra ç o m o rto do passado, a

a rq u e o lo g ia v is a , n a v e rd a d e , ao p re s e n te : "S e eu fa ç o is s o , é c o m o

o b je tiv o de saber o que nós som os h o j e '" . C o lo c a r a que tã o da

h is to ric id a d e dos o b je to de saber é, de fa to , p ro b le m a tiz a r nosso

p ró p rio p e rte n c im e n to , ao m esm o te m p o , a um re g im e de

d is c u rs iv id a d e dado e a um a c o n fig u ra ç ã o do p o d e r. O abandono do

te rm o " a rq u e o lo g ia " em p ro v e ito do c o n c e ito de " g e n e a lo g ia " , lo g o

no com eço d o s a n o s 7 0 , in s is tirá o b re a n e c e s s id a d e d e d irig ir a le itu ra

" h o riz o n ta l" d a s d is c u rs iv id a d e s p a ra um a a n á lis e v e rtic a l- o rie n ta d a

p a ra o p re s e n te - d a s d e te rm in a ç õ e s h is tó ric a s de nosso p ró p rio re g im e

de d is c u rs o .

1 Les mOIS et les choses. Une archéologie des sciences humaines. P a r i : G a J l i m a r d ,


1 9 6 6 . [T ra d u ç ã o b r a i l e i r a : A s palavras e as coisas. Uma arqueologia das ciências

humanas. São P a u lo : M a rtin s F o n te , 2000, p . 5 3 6 ].


8 D ia lo g u e u r le p o u v o ir, o p . c it. n o ta 4 .
/8BA J u d ith R evel

ArquivoZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
* "C h a m a re i de a r q u iv o não a to ta lid a d e de te x to s que fo ra m

c o n se rv a d o s por um a c iv iliz a ç ã o , nem o c o n ju n to de tra ç o s que

p u d e ra m s e r s a lv o s d e s e u d e s a s tre , m a s o jo g o d a s re g ra s que, num a

c u ltu ra , d e te rm in a m o a p a re c im e n to e o d e s a p a re c im e n to de

e n u n c ia d o s , sua p e rm a n ê n c ia e seu a p a g a m e n to , sua e x is tê n c ia

p a ra d o x a l de a c o n te c im e n to s e d e c o is a s . A n a l i s a r o fa to s d e d i c u rso no

e le m e n to g e ra l do a rq u iv o é c o n s id e rá -Io s não ab o lu ta m e n te com o

d o c u m e n to s (d e um a s ig n ific a ç ã o e s c o n d id a ou de um a re g ra de

c o n s tru ç ã o ), m as com o m o n u m e n to s : é - fo ra de q u a lq u e r m e tá fo ra

g e o ló g ic a , em nenhum a s s in a la m e n to d e o rig e m , sem o m enor g e s to

n a d ire ç ã o do com eço de um a arcbê - fa z e r o q u e p o d e ría m o c h a m a r,

c o n fo rm e os d ire ito s lú d ic o s da e tim o lo g ia , de a lg u m a c o is a com o

um a a r q /I C o lo g ia' '9 .

**D a H is to r ia d a L o u c u r a à A r q u e o lo g ia d o S a b er, o a rq u iv o re p re s e n ta ,

p o rta n to , o c o n ju n to dos d is c u rs o s e fe tiv a m e n te p ro n u n c ia d o s num a

época dada e que c o n tin u a m a e x is tir a tra v é s da h is tó ria . Fazer a

a rq u e o lo g ia dessa m assa d o c u m e n tá ria é buscar c o m p re e n d e r as uas

re g ra s , s u a s p rá tic a s , s u a s c o n d iç õ e s e s e u fu n c io n a m e n to . P a ra F o u c a u lt,

is s o im p lic a , a n te s de tu d o , um tra b a lh o de re c u p e ra ç ã o do a r q u iv o

geral d a época e s c o lh id a , is to é, de to d o s os tra ç o d is c u r iv o s

s u s c e p tív e i d e p e rm itir a re c o n s titu iç ã o do c o n ju n to d a s re g ra s que,

num m o m e n to d a d o , d e fin e m ao m esm o te m p o o s lim ite e a s fo rm a s

9 S u r I 'a r c h é o l o g i e des c ie n c e . R éponse a u C e rc le d 'é p i s t é r n o l o g i e . ln : C a h ie r s

pour I'analyse, n " 9 , 1 9 6 8 . [T ra d u ç ã o b ra s ile ira : S o b re a A rq u e o lo g ia d a C iê n c ia .

R e s p o s ta a o C írc u lo de Epi te m o lo g ia . ln : D ito s e E s c r ito s , v o l. lI, p . 9 5 ].


M ic h e l F o u c a u lt: c o n c e ito s e s s e n c ia is J9

da d iz ib ilid a d e , da c o n se rv a ç ã o , da m e m ó ria , da re a tiv a ç ã o e da

a p ro p ria ç ã o . O a rq u iv o p e rm ite a F o u c a u lt, p o rta n to , d is tin g u ir-s e dos

e s tru tu ra lis ta s - p o is se tra ta de tra b a lh a r o b re os d is c u rs o s

c o n s id e ra d o s com o a c o n te c im e n to s e não so b re o s is te m a da lín g u a

em g e ra l -, e d o s h is to ria d o re s - um a vez que e e s s e s a c o n te c im e n to s

não fa z e m , lite ra lm e n te , p a rte de nosso p re s e n te , " e le s s u b s is te m e

e x e rc e m , nessa m esm a s u b s tâ n c ia no in te rio r da h is tó ria , um c e rto

n ú m e ro de fu n ç õ e s m a n ife s ta s ou s e c re ta s " . E n fim , se o a rq u iv o é o

c o rp o d a a rq u e o lo g ia , a id é ia d e c o n s titu ir um a rq u iv o g e ra l, is to é , d e

e n c e rra r num lu g a r to d o os tra ç o s p ro d u z id o s , é, por sua vez,

a rq u e o lo g ic a m e n te d a tá v e l: o m useu e a b ib lio te c a s ã o , c e rta m e n te ,

fe n ô m e n o s p ró p rio s à c u ltu ra o c id e n ta l do s é c u lo X IX .

*** A p a rtir do in ic io dos anos 7 0 , p a re c e que o a rq u iv o m uda de

e s ta tu to em F o u c a u lt: em fa v o r de um tra b a lh o d ire to com os

h is to ria d o re s (e m Pierre Riviere, de 1973; em L'i1JtfJossib/e prison, sob a

d ire ç ã o de M ic h e lle P e rro t, de 1978; ou com A rle tte F a rg e , em Le


désordre des fa!JIi/Ies, de 1 9 8 2 ), e le re iv in d ic a cada vez m a is a d im e n s ã o

s u b je tiv a de seu tra b a lh o ("E te n ã o é um liv ro d e h is tó ria . A e s c o lh a

que n e le s e e n c o n tra rá não s e g u iu o u tra re g ra m a is im p o rta n te do que

m eu g o s to , m eu p ra z e r, um a e m o ç ã o '? " ) e se e n tre g a a um a le itu ra

fre q u e n te m e n te m u ito lite rá ria d o q u e e le c h a m a , à s v e z e s , d e " e s tra n h o s

poem as". O a rq u iv o fu n c io n a , a p a rtir d e e n tã o , m a is c o m o tra ç o de

e x is tê n c ia do que com o p ro d u ç ã o d is c u rs iv a : sem d ú v id a , p o rq u e , na

re a lid a d e , F o u c a u lt re in tro d u z n e s s e m o m e n to a noção d e s u b je tiv id a d e

em s u a re fle x ã o . O p a ra d o x o d e u m a u tiliz a ç ã o n ã o h is tó ric a d a s fo n te s

h is tó ric a s lh e fo i m u ita s vezes a b e rta m e n te c e n su ra d o .

10 L a v ie d e s h o m m e s in fâ m c s . In : Les cahiers du chemim, n ? 2 9 , 1 9 7 7 . [ T r a d u ç ã o


b ra s ile ira : A v id a d o s h o m e n s in fa m e s . l n : Ditos e Escritos, v o l . I V , p . 2 0 3 ] .
20 Judith Revel

Atualidade
*edcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
A noção d e a tu a lid a d e a p a re c e de dua m a n e ir a s d if e r e n te s em

F o u c a u lt. A p r im e ir a c o n s is te e m d e s ta c a r c o m o u m a c o n te c im e n to -

por e x e m p lo , a c is ã o e n tr e lo u c u r a e n ã o - lo u c u r a - não o m e n te

e n g e n d ra u m a s é r ie d e d is c u r s o s , d e p r á tic a , d e c o m p o r ta m e n to s e

d e in s titu iç õ e s , m a s s e e s te n d e a té n ó s . " T o d o e s e s a c o n te c im e n to ,

p a re c e -m e q u e o s r e p e tim o s . ó s o s r e p e tim o s e m n o s s a a tu a lid a d e e

e u te n to c o m p re e n d e r q u a l é o a c o n te c im e n to que p r e id iu nosso

n a s c im e n to e qual é o a c o n te c im e n to que c o n tin u a , a in d a , a nos

a tr a v e s s a r " ! '. A passagem da a r q u e o lo g ia à g e n e a lo g ia se rá , p a ra

F o u c a u lt, a o c a s iã o de a c e n tu a r a in d a m a is essa d im e n s ã o de

p r o lo n g a m e n to d a h is tó r ia no p r e s e n te . A segunda concepção de

atua/idade e s tá e s tr ita m e n te lig a d a a u m c o m e n tá r io q u e F o u c a u lt fa z

d o te x to d e K a n t, O que é o J/u1JIinis1Jlo?, e m 1 9 8 4 12
• A a n á lis e in s i te ,

e n tã o , s o b r e o f a to d e q u e c o lo c a r f ilo s o f ic a m e n te a q u e s tã o de sua

p r ó p r ia a tu a lid a d e - o que fa z K a n t p e la p r im e ir a vez - m a rc a , na

r e a lid a d e , a passagem p a r a a m o d e r n id a d e .

** F o u c a u lt d e s e n v o lv e d u a s lin h a s d e d is c u r s o a p a r tir d e K a n t.

P a r a K a n t, c o lo c a r a q u e s tã o d o p e r te n c im e n to a s u a p r ó p r ia a tu a lid a d e ,

é - c o m e n ta F o u c a u lt - in te r r o g á - I a com o u m a c o n te c im e n to do qual

s e p o d e r ia f a la r e m te r m o s d e s e n tid o e s in g u la r id a d e , e c o lo c a r a

q u e s tã o do p e r te n c im e n to a um "nós" que c o rre sp o n d e a essa

11 S e x u a lité e t p o u v o ir . C o n f e r ê n c ia n a U n iv e r s id a d e d e T ó k io ( 1 9 7 8 ) . R e to m a d o
em Dits et Écrits, P a r is : G a llim a r d , J 9 9 4 , v o l. 3 ., te x te n . 2 3 3 . [ T r a d u ç ã o b r a s ile ir a :
S e x u a lid a d e e p o d e r . L n : Ditos e Escritos, v o l. V , p . 5 6 ]
12 V e r : W h a t's is E n lig h te n m e n t ? o p . c it. n o ta 6 .
M ic h e l F o u c a u lt: c o n c e ito s e s s e n c ia is 21

a tu a lid a d e , is to é , fo rm u la r o p ro b le m a d a c o m u n id a d e d a q u a l fa z e m o s

p a rte . M a s é p re c is o ig u a lm e n te c o m p re e n d e r que s e re to m a m o s h o je

a id é ia k a n tia n a de um a o n to lo g ia c rític a do p re s e n te , não é s o m e n te

p a ra c o m p re e n d e r o que fu n d a o espaço de nosso d is c u rs o , m a s p a ra

desenhar os seus lim ite s . D a m esm a m a n e ira que K ant "busca um a

d ife re n ç a : q u a l a d ife re n ç a q u e o h o je in tro d u z em re la ç ã o a o n t e m ? " ! ',

devem os, de nossa p a rte , fa z e r e m e rg ir d a c o n tin g ê n c ia h is tó ric a , que

nos fa z ser o que som os, p o s s ib ilid a d e s de ru p tu ra e de m udança.

C o lo c a r a q u e s tã o da a tu a lid a d e re to m a , p o rta n to , a d e fin iç ã o do

p ro je to de um a " c rític a p rá tic a sob a fo rm a da u ltra p a s s a g e m

p o s s ív e l" !" ,

*** " A tu a lid a d e " e " p re s e n te " são, in ic ia lm e n te , s in ô n im o s . o

e n ta n to , um a d ife re n ç a v a i s e a c e n tu a r cada v e z m a is e n tre o que, de

um la d o , n o s p re c e d e m a s c o n tin u a , ape a r d e tu d o , a n o s a tra v e s s a r e

o que, de o u tro la d o , so b re v é m , ao c o n trá rio , com o um a ru p tu ra da

g ra d e e p is tê m ic a a q u e p e rte n c e m o s e d a p e rio d iz a ç ã o q u e e la e n g e n d ra .

E ssa irru p ç ã o do "novo", que ta n to F o c a u lt q u a n to D e le u z e cham am

ig u a lm e n te de " a c o n te c im e n to " , to rn a -s e , a s s im , o que c a ra c te riz a a

a tu a lid a d e . O p re s e n te , d e fin id o por s u a c o n tin u id a d e h is tó ric a , não é,

ao c o n trá rio , in te rro m p id o por nenhum a c o n te c im e n to : e le pode

s o m e n te o s c ila r e se ro m p e r dando lu g a r à in s ta la ç ã o de um novo

p re s e n te . S e e la s re p re s e n ta ra m um g ra n d e p ro b le m a - p a rtic u la rm e n te

no m o m e n to d e p u b lic a ç ã o de As palavras e as coisas ( 1 9 6 6 ) - nos anos

8 0 , o c o n c e ito d e " a tu a lid a d e " p e rm ite a F o u c a u lt e n c o n tra r, e n fim , o

m e io p a ra in te g ra r a s ru p tu ra s e p is tê rn ic a s .

13 W h a t 's is E n lig h te n rn e n t ? o p . c ito n o ta 6.

14 W h a t 's is E n lig h te n m e n t ? o p . c it. n o ta 6.


22PONMLKJIHGFEDCBA J u d ith R evel

AufklãrungfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
*0 te m a d o A l i j k l t i n l 1 1 g a p a r e c e n a o b r a d e F o u c a u lt d e m a n e ir a c a d a

v e z m a is in s is te n te a p a r tir d e 1 9 7 8 : e le r e m e te se m p re a o te x to de

K a n t, W a s is t A u J k là m n g ? (1 7 8 4 ) 15.

A a b o rd a g e m é c o m p le x a : e , d e im e d ia to , F o u c a u lt c o n s ig n a à q u e s tã o

k a n tia n a o p r iv ilé g io d e te r c o lo c a d o p e la p r im e ir a v e z o p r o b le m a

f ilo s ó f ic o (o u , c o m o o d iz F o u c a u lt, d o " jo r n a lis m o f ilo s ó f ic o " ) da

a tu a lid a d e , o q u e in te r e s s a a o f iló s o f o p a re c e s e r , a n te s d e tu d o , o

d e tin o dessa q u e s tã o n a F ra n ç a , n a A le m a n h a e n o s p a ís e s a n g lo -

saxões. É s o m e n te num segundo m o m e n to q u e F o u c a u lt tr a n s f o r m a r á

a r e f e r ê n c ia a o te x to k a n tia n o n u m a d e f in iç ã o d e s s a " o n to lo g ia c r itic a

d o p r e s e n te " , com a q u a l e le f a r á s e u p r ó p r io p ro g ra m a d e p e s q u is a .

* * F o u c a u lt d e e n v o lv e , n a v e r d a d e , tr ê s n ív e is d e a n á lis e d if e r e n te s .

O p r im e ir o busca r e c o n s titu ir d e m a n e ir a a r q u e o ló g ic a o m o m e n to

e m q u e o O c id e n te to r n o u , ao m esm o te m p o , s u a r a z ã o a u tô n o m a e

so b e ra n a : n e s s e s e n tid o , a r e f e r ê n c ia à s L u z e s s e in s e r e n u m a d e s c r iç ã o

que a p re c e d e (a re fo rm a lu te r a n a , a r e v o lu ç ã o c o p e r n ic a n a , a

m a te m a tiz a ç ã o g a lile n ia n a d a n a tu r e z a , o p e n s a m e n to c a r te s ia n o , a f ís ic a

n e w to n ia n a e tc .) e n a q u a l e la r e p r e s e n ta o m o m e n to d a r e a liz a ç ã o

c a b a l; m a s , e s s a d e s c r iç ã o a r q u e o ló g ic a e s tá s e m p r e g e n e a lo g ic a m e n te

in c lin a d a p a r a u m p r e s e n te d o q u a l n ó s p a r tic ip a m o s a in d a : é p r e c is o ,

p o r ta n to , c o m p re e n d e r "o que p d e s e r s e u b a la n ç o a tu a l, q u a l r e la ç ã o

é p r e c is o e s ta b e le c e r com e s s e g e s to fu n d a d o r" 16. O segundo te n ta

os W as is t A u f k lã r u n g ? In : B e r lin is c h e M o n a ts s c h r ift, d e z e m b ro 1784. (T ra d u ç ã o


b r a s ile ir a : KANT, I. Q u e é " E s c la r e c im e n to " ? In : Im m a n u e l K a n t: T e x to s S e le to s ,

P e tr ó p o lis : V ozes, 19851.


16 I n tr o d u ç ã o a C a n g u ilh e m , G. O n lh e N orm al and lh e P a th o lo g ic a l, B o s to n : D.
R e id e l, 1978. R e to m a d o em D its et É c r its , v o I. 3 , P a r is : G a llim a r d , 1994, te x to n"
219.
M ic h e l F o u c a u lt: c o n c e ito s e s s e n c ia is 23

c o m p re e n d e r a e v o lu ç ã o d a p o s te rid a d e do Atifkliinmg nos c life re n te s

p a ís e s e a m a n e ira p e la q u a l e la fo i in v e s tid a em cam pos c liv e rs o s : em

p a rtic u la r, n a A le m a n h a , num a re fle x ã o h is tó ric a e p o litic a d a s o c ie d a d e

("d o s h e g e lia n o s à E s c o la d e F ra n k fu rt e a L ukács, F e u e rb a c h , M a rx ,

ie tz s c h e e M a x W e b e r"I~ ; n a F ra n ç a , p o r m e io d a h is tó ria d a s c iê n c ia s

e d a p ro b le m a tiz a ç ã o d a c life re n ç a e n tre s a b e r/c re n ç a , c o n h e c im e n to /

re lig iã o , c ie n tífic o /p ré -c ie n tífic o (C o m te e o p o s itiv is m o , D uhem ,

P o in c a ré , K o y ré , B a c h e la rd , C a n g u ilh e m ). E n fim , o te rc e iro c o lo c a a

q u e s tã o de nosso p ró p rio p re s e n te : "K ant não busca c o m p re e n d e r o

p re s e n te a p a rtir de um a to ta lid a d e ou de um a re a liz a ç ã o fu tu ra . E le

busca um a c life re n ç a : q u a l a c life re n ç a q u e e le in tro d u z h o je em re la ç ã o

ao o n te m " 1 8 ? É essa busca d a c life re n ç a que c a ra c te riz a não s o m e n te


"a a titu d e da m o d e rn id a d e " , m as o ethos que nos é p ró p rio .

***0 c o m e n tá rio de K ant e s te v e no c e n tro de um d e b a te com

H a b e rm a s, in fe liz m e n te in te rro m p id o p e la m o rte de F o u c a u lt, As

le itu ra s que os d o is filó s o fo s dão à q u e s tã o das L uzes são

d ia m e tra lm e n te o p o s ta s , em p a rtic u la r, p o rq u e H a b e rm a s busca, na

v e rd a d e , d e fin ir, a p a rtir d a re fe rê n c ia k a n tia n a , a s c o n c liç õ e s re q u e rid a s

p a ra u m a c o m u n id a d e lin g ü is tic a id e a l, is to é , a u n id a d e d a ra z ã o c rític a

e do p ro je to s o c ia l. Em F o u c a u lt, o p ro b le m a d a c o m u n id a d e não é

c o n d iç ã o de p o s s ib ilid a d e de um novo u n iv e rs a lis m o , m as a

c o n s e q ü ê n c ia d ire ta d a o n to lo g ia d o p re s e n te : "p a ra o filó s o fo , c o lo c a r

a q u e s tã o do p e rte n c im e n to a esse p re s e n te , não se rá m a is ,

a b s o lu ta m e n te , c o lo c a r a q u e s tã o d e s e u p e rte n c im e n to a u m a d o u trin a

ou a um a tra c liç ã o ; não s e rá m a is , s im p le s m e n te , c o lo c a r a q u e s tã o de

seu p e rte n c im e n to a um a c o m u n id a d e hum ana em g e ra l, m a s a q u e la

de seu p e rte n c im e n to a um c e rto "nós", a um nós que s e re la c io n a

com um c o n ju n to c u ltu ra l c a ra c te rís tic o de s u a p ró p ria a tu a lid a d e " ? " .

17 I n t r o d u ç ã o a C a n g u ilh e m , G. 011 lhe Normal nnd lhe Pathological, o p .c it. n o ta 16.


IR W hat is E n lig h te n rn e n t? o p . c it. n o ta 6.
19 W h a t 's e n lig h te n m e n t? , o p . c it. n o ta 6.
J u d ith R evel
24DCBA

AutorfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
*Em 1 9 6 9 , F o u c a u lt fa z u m a c o n fe rê n c ia so b re a noção d e a u to r que

se a b re com essas p a la v ra s : " 'Q u e im p o rta quem fa la ? ' essa

in d ife re n ç a s e a firm a o p rin c ip io é tic o , ta lv e z o m a is fu n d a m e n ta l, da

e s c rita c o n t e m p o r â n e a 'F " . E ssa c ritic a ra d ic a l da id é ia de a u to r - e

m ai g e ra lm e n te do par a u to r/o b ra - v a le ao m esm o te m p o com o

d ia g n ó s tic o so b re a lite ra tu ra (e m p a rtic u la r, na trip la e s te ira de

B la n c h o t, do novo ro m a n c e e da nova c rític a ), e com o m é to d o

fo u c a u ltia n o de le itu ra a rq u e o ló g ic a : com e fe ito , e re e n c o n tra m o s

fre q u e n te m e n te a te o riz a ç ã o desse " lu g a r v a z io " em a lg u n s e s c rito re s

g u e F o u c a u lt c o m e n ta n a é p o c a , é ig u a lm e n te v e rd a d e iro q u e a a n á lis e

a q u e s e d e d ic a o filó s o fo em As P a la v r a s e a s C o is a s p ro c u ra , por sua

v e z , a p lic a r a o a rq u iv o , is to é , à h is to ria , o p rin c íp io d e u m a le itu ra d a s

"m assas de e n u n c ia d o s " ou " p la n o s d is c u rs iv o s " , que não e s ta v a m

"bem a c e n tu a d o s p e la s u n id a d e s h a b itu a is do liv ro , da o b ra e do

a u t o r " ? '. D esse p o n to de v is ta , o in íc io de A O r d e m d o D is c u r s o d á

c o n tin u id a d e à re fle x ã o so b re um flu x o de fa la q u e s e ria ao m esm o

te m p o h is to ric a m e n te d e te rm in a d o e n ã o -in d iv id u a liz a d o , e q u e d ita ria

a s c o n d iç õ e s de fa la d o p ró p rio F o u c a u lt na sua a u la in a u g u ra l no

C o l/e g e d e F r a n c e : " G o s ta ria d e p e rc e b e r q u e n o m o m e n to d e fa la r u m a

voz sem nom e me p re c e d ia h á m u ito te m p o " 2 2 .

**D o p o n to -d e -v is ta do m é to d o , F o u c a u lt e s tá a p a re n te m e n te

b a s ta n te p ró x im o d o q u e fe z B a rth e s na m esm a é p o c a , p o rq u e a a n á lis e

e s tru tu ra l d a n a rra tiv a não se re fe re à p s ic o lo g ia , à b io g ra fia pessoal

20 Q u 'e s t - c e q u 'u n a u te u r? In : B u lle tin de Ia S o c ié té F r a n ç a is e de P h ilo s o p h ie , ju n h o -


s e te m b ro 1969. [T ra d u ç ã o b ra s ile ira : O que é um a u to r? In : D ito s e E s c r ito s , v o l. 111,

~. 2641·
I Q u 'e s t - c e q u 'u n a u t e u r ? , o p . c it. n o ta 2 0 .
n L 'o r d r e d u d i s c o u r s . P a ris : G a llim a rd , 1971. [T ra d u ç ã o b ra s ile ira : A ordem do
d is c u r s o . São P a u lo : L o y o la , 1996 , p. 5] .
M ic h e l F o u c a u l( · c o n c e ito s e s s e n c ia is 25

o u à s c a r a c te r ís tic a s s u b je tiv a s d o a u to r , m a s à s e s tr u tu r a s in te r n a s do

te x to e ao jo g o de sua a r tic u la ç ã o . É p r o v a v e lm e n te a p a r tir da

c o n s ta ta ç ã o dessa " v iz in h a n ç a " m e to d o ló g ic a (q u e o a p r o x im a

ig u a lm e n te d e A lth u s s e r , de L évy- tr a u s s o u d e D u r n é z il) q u e s e te m

g e r a lm e n te a s s o c ia d o F o u c a u lt à c o r r e n te e s tr u tu r a lis ta . Em F o u c a u lt,

e n tr e ta n to , a busca d e e s tr u tu r a ló g ic a s e tá m a r c a d a por um a v e ia

b la n c h o tia n a p a r tic u la r ( " a o b r a c o m p o r ta se m p re , p o r a s s im d iz e r , a

m o r te do a u to r : no m esm o m o m e n to em que se e sc re v e , se

d e s a p a r e c e 'P ') q u e , a lé m d a s im p le s r e f e r ê n c ia à c a d u c id a d e h is tó r ic a

d e u m a c a te g o r ia q u e s e h a v ia a c r e d ita d o a té e n tã o in c o n to r n á v e l, le v a

F o u c a u lt a um a a n á lis e d a s r e la ç õ e s que e n v o lv e m a lin g u a g e m e a

m o r te . À d e s c r iç ã o d o a p a g a m e n to d e u m a n o ç ã o d a q u a l e le d e s c r e v e

h is to r ic a m e n te a c o n s titu iç ã o e o s rn e c a n i m o s , d e p o is a d is s o lu ç ã o (e ,

por i so, a noção d e a u to r r e c e b e o m esm o tr a ta m e n to q u e a q u e la d e

" s u je ito " ) ; F o u c a u lt a c r e s c e n ta , a s s im , a o m e s m o te m p o a id e n tif ic a ç ã o

d e s e u p r ó p r io e s ta tu to d e f a la e a p r o b le m a tiz a ç ã o d e u m a e x p e r iê n c ia

d a e s c r itu r a c o n c e b id a com o passagem a o lim ite .

*** E s s a in f lu ê n c ia b la n c h o tia n a o le v a r á , a o lo n g o dos anos 60, e à

m a rg e m dos g ra n d e s liv r o s , a e d e te r so b re um c e r to n ú m e ro de

"casos" lite r á r io s que p ssuem to d o s u m p a r e n te s c o c o m a lo u c u r a ( e

e s ta m o s a in d a bem lo n g e das p ro p o ta s d a História da LoIfCllra) o u


com a m o r te . F o u c a u lt c o m e n ta r á , e n tã o , H ô ld e r lin e e r v a l, R o u s s e l

e A r ta u d , F la u b e r t e K lo s s o w s k i, e a té m esm o a lg u n s e s c r ito r e s

p r ó x im o s d o g ru p o Te! Que!, s u b lin h a n d o - lh e s o v a lo r e x e m p la r : "A

lin g u a g e m , e n tâ , to m o u s u a e ta tu r a so b e ra n a : e la s u r g e c o m o v in d a

d e a lh u r e s , d e lá o n d e n in g u é m f a la ; m a s s ó e x is te o b r a s e , r e m o n ta n d o

s e u p r ó p r io d is c u r o , e la f a la n a d ir e ç ã o d e s s a a u s ê n c ia " ? '.

23 I n te r v ie w a v e c M ic h e l F o u c a u lt, Bonniers Liuerãre Magasin, S to c k h o lr n , n" 3,


m a r ç o d e 1 9 6 8 . R e to m a d o Dits e Écrits, v o l.l, te x to n " 5 4 .
em
2 4 .L e 'n o n ' d u p é r e . I n : Critique n " 1 7 8 , m a r ç o d e 1 9 6 2 . [ T r a d u ç ã o b r a ile ir a : O
n ã o d o p a i. I n : Ditos e Escritos, v o l. I , p . 2 0 0 ] .
26 Judith Revel

BiopolíticaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
*0 te rm o " b io p o lític a " d e s ig n a a m a n e ira p e la q u a l o p o d e r te n d e a

se tra n s fo rm a r, e n tre o fim do s é c u lo X V III e o com eço do s é c u lo

X lX , a fim d e g o v e rn a r não s o m e n te o s in d iv íd u o s por m e io de um

c e rto n ú m e ro de p ro c e d im e n to s d is c ip lin a re s , m as o c o n ju n to dos

v iv e n te s c o n s titu id o s em p o p u la ç ã o : a b io p o lític a - por m e io dos

b io p o d e re s lo c a is - se o c u p a rá , p o rta n to , da g e s tã o da saúde, da

h ig ie n e , d a a lim e n ta ç ã o , d a s e x u a lid a d e , da n a ta lid a d e e tc ., n a m e d id a

em que e la s s e to rn a ra m p re o c u p a ç õ e s p o lític a s .

** A noção de b io p o lític a im p lic a um a a ru ilis e h is tó ric a do q u a d ro

d e ra c io n a lid a d e p o lític a no q u a l e la a p a re c e , is to é , o n a s c im e n to do

lib e ra lis m o . P o r lib e ra lis m o é p re c is o e n te n d e r u m e x e rc íc io d o g o v e rn o

q u e n ã o s o m e n te te n d e a m a x im iz a r s e u s e fe ito s , re d u z in d o a o m á x im o

seus c u s to s , so b re o m o d e lo d a p ro d u ç ã o in d u s tria l, m as que a firm a

a rris c a r-s e e m p re a g o v e rn a r d e m a is . M e s m o q u e a "ra z ã o d o E s ta d o "

tiv e s s e buscado d e s e n v o lv e r seu poder por m e io do c re s c im e n to do

E s ta d o , "a re fle x ã o lib e ra l não p a rte da e x is tê n c ia do E s ta d o ,

e n c o n tra n d o no g o v e rn o um m e io de a tin g ir essa fin a lid a d e que e le

s e ria p a ra si m esm o; m a s d a s o c ie d a d e que vem a e s ta r n u m a re la ç ã o

c o m p le x a d e e x te rio rid a d e e d e in te rio rid a d e em re la ç ã o a o E s ta d o " 2 5 .

E sse novo tip o de g o v e rn a m e n ta lid a d e , que não é re d u tív e l nem a

um a a n á lis e ju ríd ic a nem a um a le itu ra e c o n ô m ic a (a in d a que um a e

25 N a is s a n c e de Ia b io p o litiq u e . ln : Annuaire du Collêge de France, 79 année.

C h a ire d 'h i s t o i r e des s y s tê rn s de pensée, année 1 9 7 8 -1 9 7 9 , 1979. [T ra d u ç ã o

b ra s ile ira : N a s c im e n to d a b io p o lític a . 1n: Resumo dos Cursos do College de France


(/970-1982). R io d e J a n e iro : Jo rg e Z a h a r, 1997, p. 911-
M ic h e l F o u c a u lt: c o n c e ito s e s s e n c ia is 27

o u tra a í e s te ja m lig a d a s ), se a p re s e n ta , por c o n s e q ü ê n c ia , com o um a

te c n o lo g ia do p der que se dá um novo o b je to : a " p o p u la ç ã o " . A

p o p u la ç ã o é um c o n ju n to d e se re s v iv o s e c o e x is te n te s q u e a p re s e n ta m

tra ç o s b io ló g ic o s e p a to ló g ic o s p a rtic u la re s e c u ja p ró p ria v id a é

s u s c e tív e l de s e r c o n tro la d a a fim de a sse g u ra r um a m e lh o r g e s tã o da

fo rç a de tra b a lh o : « A d e s c o b e rta da p o p u la ç ã o é, ao m esm o te m p o

que a d e s c o b e rta do in d iv íd u o e do c o rp o m o d e lá v e l, o o u tro g ra n d e

nó te c n o ló g ic o ao re d o r do qual os p ro c e d im e n to s p o lític o s do

O c id e n te são tra n s fo rm a d o s . In v e n to u -s e , nesse m o m e n to , o que eu

c h a m a re i, por o p o s iç ã o à a n á to m o -p o lític a que acabei de m e n c io n a r,

de b io p o lític a " . E n q u a n to a d is c ip lin a se dá com o a n á to m o -p o lític a

dos c o rp o s e se a p lic a e s s e n c ia lm e n te aos in d iv íd u o s , a b io p o lític a

re p re s e n ta um a "g ra n d e m e d ic in a s o c ia l" que s e a p lic a à p o p u la ç ã o a

fim de g o v e rn a r a v id a : a v id a fa z , p o rta n to , p a rte do cam po do

p o d e r.

*** A noção de b io p o lític a le v a n ta d o is p ro b le m a s . O p rim e iro e s tá

lig a d o a um a c o n tra d iç ã o que se e n c o n tra no p ró p rio F o u c a u lt: nos

p rim e iro s te x to s onde a p a re c e o te rm o , e le p a re c e e s ta r lig a d o ao que

os a le m ã e s c h a m a ra m no s é c u lo X IX de PolizeiwissC11schaft, is to é, a

m a n u te n ç ã o da o rd e m e da d is c ip lin a por m e io do c re s c im e n to do

E s ta d o . M as, em e g u id a , a b io p o lític a p a re c e , ao c o n trá rio , a s s in a la r

o m o m e n to de u ltra p a s s a g e m da tra d ic io n a l d ic o to rn ia E s ta d o /

s o c ie d a d e , em p ro v e ito de um a e c o n o m ia p o lític a da v id a em g e ra l.

É dessa segunda fo rm u la ç ã o que nasce o o u tro p ro b le m a : tra ta -s e de

pensar a b io p o lític a com o um c o n ju n to de b io p o d e re s ou, a n te s , na

m e d id a em que d iz e r que o poder in v e s tiu a v id a s ig n ific a ig u a lm e n te

26 L e s m a ille s du p o u v o ir, c o n fe rê n c ia n a U n iv e rs id a d e d a B a h i a , 1 9 7 6 . L n : Barbárie,

n ° 4 e n ? 5 , 1 9 8 1 . R e to m a d o em Dits et Écrits, v o l. 4, te x to n° 297.


28 Judith RevelZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFE

que a v id a é um p o d e r, p o d e -se lo c a liz a r na p ró p ria v id a - is to é,

c e rta m e n te , no tra b a lh o e n a lin g u a g e m , m as ta m b é m no c o rp o , nos

a fe to s , nos d e s e jo s e na s e x u a lid a d e - o lu g a r de e m e rg ê n c ia de um

c o n tra -p o d e r, o lu g a r d e u m a p ro d u ç ã o de u b je tiv id a d e que s e d a ria

com o m o m e n to de d e s a s s u je ita m e n to ? esse ca o, o te m a da

b io p o lític a s e ria fu n d a m e n ta l p a ra a re fo rm u la ç ã o é tic a da re la ç ã o

com o p o lític o que c a ra c te riz a a s ú ltim a s a n á lis e s de F o u c a u lt; m a is

a in d a : a b io p o litic a re p re s e n ta ria e x a ta m e n te o m o m e n to de passagem

do p o lític o a o é tic o . C o m o o a d m ite F o u c a u lt, em 1 9 8 2 , " a a n á lis e , a

e la b o ra ç ã o , a re to m a d a da q u e s tã o das re la ç õ e s de poder e do

'a g o n i s m o ' e n tre re la ç õ e s de poder e in tra n s itiv id a d e da lib e rd a d e ,

s ã o u m a ta re fa p o lític a in c e s s a n te [. . .] é e x a t a m e n t e e s ta a ta re fa p o lític a

in e re n te a to d a e x is tê n c ia s o c ia l? " .

27 L e s u je t e t le p o u v o ir. I n : D r e y f u s , H . e R a b i n o w . P . Michel Foucault: Beyond

Structuralism and Hermeutics. C h i c a g o : T h e U n i v e r s i t y o f C h i c a g o P r e s , 1 9 8 2 .


(T ra d u ç ã o b r a i l e i r a : Michel Foucault, uma trajetória filosófica: para além do
estruturalismo e da hermenêutica. R i o d e J a n e i r o : F o r e n e U n i v e r i t á r i a , 1 9 9 5 ] .
M ic h e ! F o u c a u lt: c o n c e ito s e s s e n c ia is 29

Controle
*0 te rm o " c o n tro le " a p a re c e n o v o c a b u lá rio d e F o u c a u lt d e m a n e ira

cada vez m a is fre g ü e n te a p a rtir de 1 9 7 1 -7 2 . D e s ig n a , num p rim e iro

m o m e n to , um a s é rie d e m e c a n is m o s d e v ig ilâ n c ia gue a p a re c e m e n tre

os s é c u lo s X V III e X IX e gue tê m com o fu n ç ã o não ta n to p u n ir o

d e s v io , m as c o rrig i-lo , e , s o b re tu d o , p re v e n i-lo : "T oda a p e n a lid a d e

do s é c u lo X IX tra n s fo rm a -s e em c o n tro le , não apenas so b re a q u ilo

gue fa z e m o s in d iv íd u o s - e s tá o u não em c o n fo rm id a d e com a le i? -

m as so b re a q u ilo gue e le s p o d e m fa z e r, gue e le s s ã o c a p a z e s d e fa z e r,

d a q u ilo g u e e le s e s tã o s u je ito s a fa z e r, d a q u ilo g u e e le s e s tã o n a irn in ê n c ia

d e fa z e r"2 8 . E ssa e x te n s ã o d o c o n tro le s o c ia l c o rre s p o n d e a um a "nova

d is trib u iç ã o e s p a c ia l e s o c ia l da rig u e z a in d u s tria l e a g ríc o la " 2 9 : é a

fo rm a ç ã o da s o c ie d a d e c a p ita lis ta , is to é , a n e c e s s id a d e de c o n tro la r

os flu x o s e a re p a rtiç ã o e s p a c ia l da m ão de o b ra , le v a n d o em

c o n s id e ra ç ã o n e c e s s id a d e s da p ro d u ç ã o e do m e rc a d o de tra b a lh o ,

gue to rn a nece s á ria um a v e rd a d e ira ortopedia social, p a ra a gual o

d e s e n v o lv im e n to da p o lic ia e da v ig ilâ n c ia das p o p u la ç õ e s são os

in s tru m e n to s e s s e n c ia is .

**0 c o n tro le s o c ia l passa não s o m e n te p e la ju s tiç a , m as por um a

s é rie d e o u tro s p o d e re s la te ra is (a s in s titu iç õ e s p s ic o ló g ic a s , p s ig u iá tric a s ,

c rim in o ló g ic a s , m é d ic a s , p e d a g ó g ic a s ; a g e s tã o dos c o rp o s e a

in s titu iç ã o de um a p o litic a da saúde; o s m e c a n is m o s d e a s s is tê n c ia , as

a s s o c ia ç õ e s fila n tró p ic a s e o s p a tro c in a d o re s e tc .) g u e s e a rtic u la m em

d o is te m p o s : tra ta -s e , de um la d o , d e c o n s titu ir populações n a s q u a is os

28 L a v é rité e t le s fo rm e s ju rid iq u e s . C o n fe rê n c ia n a u n iv e rs id a d e d o R io d e J a n e iro ,


m a io , Dits et Écrits, v o l . 2 , t e x t o
1 9 7 3 . R e to m a d o em : n ° 13 9 .[ T r a d u ç ã o b ra s ile ira :

A verdade e as formas jurídicas. R i o d e J a n e i r o : N a u E d ito ra , 1 9 9 9 ].


29 L a v é r i t é e t le s fo rm e ju rid iq u e , o p . c it. n o ta 2 8 .
30
Judith Revel

in d iv íd u o s s e rã o in s e rid o s - o c o n tro le é e s s e n c ia lm e n te u m a e c o n o m ia

do poder q u e g e re n c ia a s o c ie d a d e em fu n ç ã o d e m o d e lo s n o rm a tiv o s

g lo b a is in te g ra d o s num a p a re lh o de E s ta d o c e n tra liz a d o - ; m as, de

o u tro , tra ta -s e ig u a lm e n te d e to rn a r o poder c a p ila r, is to é , d e in s ta la r

um s is te m a d e in d iv id u a liz a c ã o q u e s e d e s tin a a m o d e la r c a d a in d iv id u o

e a g e rir s u a e x is tê n c ia . E sse d u p lo a s p e c to d o c o n tro le s o c ia l (g o v e rn o

das p o p u la ç õ e s /g o v e rn o p e la in d iv id u a liz a ç ã o ) fo i p a rtic u la rm e n te

e s tu d a d o por F o u c a u lt no caso do fu n c io n a m e n to d a s in s titu iç õ e s de

saúde e do d is c u rs o m é d ic o do s é c u lo X IX , m as ta m b é m na a n á lis e

das re la ç õ e s e n tre a s e x u a lid a d e e a re p re ssã o no p rim e iro v o lu m e da

História da Sexualidade (A vontade de saber).

* .. ~~Toda a a m b ig ü id a d e do te rm o " c o n tro le " d e v e -se ao fa to de

q u e , a p a rtir d o s a n o s 8 0 , F o u c a u lt d e ix a s u b e n te n d e r q u e e le o e n te n d e

com o um m e c a n is m o de a p lic a ç ã o do poder d ife re n te da d is c ip lin a .

É e m p a rte s o b re e s s e p o n to q u e s e e fe tu a a re v ira v o lta p ro g ra m á tic a

d a Histôria da Sexualidade, e n t r e a p u b l i c a ç ã o d o p rim e iro v o lu m e (1 9 7 6 )

e a q u e le dos d o is ú ltim o s (1 9 8 4 ): "o c o n tro le do c o m p o rta m e n to

sexual te m um a fo rm a c o m p le ta m e n te d ife re n te d a fo rm a d is c ip lin a r

que se e n c o n tra , por e x e m p lo , nas e s c o la s . ão se tra ta de m odo

a lg u m do m esm o a s s u n to " ? " , A in te rio riz a ç ã o da n o rm a , p a te n te na

g e s tã o da s e x u a lid a d e , c o rre sp o n d e ao m esm o te m p o a um a

p e n e tra ç ã o e x tre m a m e n te fin a do poder nas m a lh a s da v id a e à sua

s u b je tiv a ç ã o . A n o ç ã o d e c o n tro le , u m a v e z to m a d a in d e p e n d e n te m e n te

das a n á lis e s d is c ip lin a re s , conduz e n tã o F o u c a u lt ao m esm o te m p o

em d ire ç ã o a um a " o n to lo g ia c ritic a da a tu a lid a d e " e a um a a n á lis e

dos m odos d e s u b je tiv a ç ã o q u e e s ta rã o no c e n tro d e s e u tra b a lh o nos

anos 80.

30 In te rv ie w de M ic h e l F o u c a u lt. In : Krisis, rn a rs 1984. [T ra d u ç ã o b ra s ile ira :


E n tre v is ta com M ic h e l F o u c a u lt. In : Di/os e Escritos, v o l. I, p . 3 3 8 ].
M jc h e l F o u c a u lt: c o n c e ito s e s s e n c ia is 3J

Corpos (investimento político dos)


*"H ouve, n o c u rso d a id a d e c lá s s ic a , to d a u m a d e s c o b e rta d o c o rp o

com o o b je to e a l v o d o p o d e r '? ': a s a n á lis e s d e F o u c a u lt nos anos 70

buscam a n te s de tu d o c o m p re e n d e r com o se passou de um a

concepção do poder e m q u e s e tra ta v a o c o rp o com o u m a s u p e rfíc ie

d e in s c riç ã o de s u p líc io s e de penas a um a o u tra que buscava, ao

c o n trá rio , fo rm a r, c o rrig ir e re fo rm a r o c o rp o . A té o fin a l d o s é c u lo

X V III, o c o n tro le s o c ia l do c o rp o passa p e lo c a s tig o e p e lo

e n c la u s u ra m e n to : "C om o s p rín c ip e s , o s u p líc io le g itim a v a o poder

a b s o lu to , s u a 'a t r o c i d a d e ' se d e sd o b ra v a so b re o s c o rp o s, p o rq u e o

c o rp o e r a a ú n i c a r i q u e z a a c e s s iv e l'P " ; e m c o n tra p a rtid a , n a s in s tâ n c ia s

d e c o n tro le q u e a p a re c e m d e s d e o in íc io d o s é c u lo X IX , tra ta -s e , a n te s

d e tu d o , d e g e rir a ra c io n a liz a ç ã o e a re n ta b ilid a d e d o tra b a lh o in d u s tria l

p e la v ig ilâ n c ia do c o rp o da fo rç a d e tra b a lh o : "P a ra que um c e rto

lib e ra li m o b u rg u ê s te n h a s id o p o s s ív e l no n ív e l d a s in s titu iç õ e s , fo i

p re c is o , n o n ív e l d o q u e e u c h a m o d e m ic ro -p o d e re s , u m in v e s tim e n to

m u ito m a is fo rte dos in d iv íd u o s , fo i p re c is o o rg a n iz a r o

e s q u a d rin h a m e n to dos c o rp o s e dos c o m p o rta m e n to s = " .

**"F oi um p ro b le m a d e c o rp o e d e m a te ria lid a d e - u m a q u e s tã o de

fís ic a - q u e p ro p o rc io n o u a g ra n d e re n o v a ç ã o da época: nova fo rm a

de m a te ria lid a d e to m a d a p e lo a p a re lh o d e p ro d u ç ã o , novo tip o de

c o n ta to e n tre e s s e a p a re lh o e o q u e o fe z fu n c io n a r; n o v a s e x ig ê n c ia s

im p o s ta s a o s in d iv íd u o s com o fo rç a s p ro d u tiv a s [...] é u m c a p í t u l o na

31 Surveiller e/ Punir. P a r i: G a llim a r d , 1975, p. 138. [T ra d u ç ã o b r a s ile ir a : Vigiar e


punir. P e tr ó p o lis /R J : V ozes, 1987J.
32 La p r is io n vue par un p h ilo s o p h c ( r a n ç a is . In : L 'Europeo, n° 1515, a b r il de 1975.
[T ra d u ç ã o b r a s ile ir a : A p r is ã o v is ta por um f iló s o f o fra n c ê s. In : Di/os e Escritos, v o l.
[V , p . 154J.
3] Sur I a s e lle tte . In : Les Nouvelles Littéraires, n? 2477, m a rç o de 1 9 7 5 . R e to m a d o em
Dits e/ Écrits, v o l. 2 , te x to n° 152.
32DCBA J u d ith R evel gfedcbaZYXWVUTSRQPONMLK

h is tó ria do c o r p o '? " . S o b re essa b a s e , F o u c a u lt v a i d e s e n v o lv e r sua

a n á lis e em duas d ire ç õ e s : a p rim e ira c o rre sp o n d e a um a v e rd a d e ira

" fís ic a do p o d e r" o u , com o a d e s ig n a rá m a is ta rd e o filó s o fo , um a

a n á to m o -p o litic a , um a o r to p e d ia s o c ia l, is to é, um e s tu d o d a s e s tra té g ia s e

d a s p rá tic a s p o r m e io d a s q u a is o p o d e r m o d e la c a d a in d iv íd u o desde

a e s c o la a té a u s in a ; a s e g u n d a c o rre s p o n d e , p o r su a v e z , a u m a b io p o /ític o ,

is to é , à g e s tã o p o lític a d a v id a : n ã o s e tra ta m a is d e re d o m e s tic a r e de

v ig ia r os c o rp o s dos in d iv íd u o , m as de g e rir as " p o p u la ç õ e s " ,

in s titu in d o v e rd a d e iro s p ro g ra m a s d e a d m in is tra ç ã o d a s a ú d e , d a h ig ie n e

e tc .

***Q uando F o u c a u lt com eça a p e s q u is a r a s e x u a lid a d e , e le to m a ,

e n tre ta n to , c o n s c iê n c ia d e d u a s c o is a : d e u m a p a rte , é a p a rtir d e u m a

re d e d e s o m a to -p o d e r q u e n a s c e a s e x u a lid a d e "com o fe n ô m e n o h is tó ric o

e c u ltu ra l no qual nós nos r e c o n h e c e m o s 'J " , e não a p a rtir de um a

p e n e tra ç ã o m o ra l d a s c o n s c iê n c ia s : é p re c is o , p o rta n to , fa z e r s u a h is tó ria ;

d e o u tra p a rte , a a tu a lid a d e d a q u e s tã o d a s re la ç õ e s e n tre o p o d e r e os

c o rp o s é e s s e n c ia l: p o d e -s e re c u p e ra r s e u p ró p rio c o rp o ? A q u e s tã o é

a in d a m a is p e rtin e n te n a m e d id a e m q u e F o u c a u lt p a rtic ip a , n a m e s m a

é p o c a , d a s d is c u s s õ e so b re o m o v im e n to hom ossexual e que é "essa

lu ta p e lo s c o rp o s que fa z c o m que a s e x u a lid a d e s e ja u m p ro b le m a

p o l f t i c o 'P " . O c o r p o re p re s e n ta desde e n tã o um fo c o d a re s is tê n c ia ao

p o d e r, um a o u tra v e rte n te dessa " b io p o lític a " que s e to rn a o c e n tro

da a n á lis e s d o filó o fo no fin a l d o s a n o s 70.

34 L a s o c ie té p u n itiv e . In : A n n u a ir e du C o llê g e de France, 1 9 7 2 - 1 9 7 3 . [ T r a d u ç ã o


b ra s ile ira : A s o c ie d a d e p u n itiv a . R esum o dos C ursos do C o lle g e de F rance (1 9 7 0 -
1 9 8 2 ). R io d e J a n e iro : Jo rg e Z a h a r E d ito r, 1 9 9 7 , p . 4 1 ].
35 L e s ra p p o rts d e p o u v o ir p a s s e n t à I'i n t é r i e u r d e s c o rp s. In : L a Q u in z a in e L itté r a ir e ,
n ° 2 4 7 , ja n e iro d e 1 9 7 7 . R e to m a d o em D its e t É c r its , v o l. 3 , te x to n? 197.
36 S e x u a lité e t p o litiq u e . In : C o m b a t, n " 9 2 7 4 , a b ril d e 1 9 7 4 . [T ra d u ç ã o b ra ile ira :
S e x u a lid a d e e p o lític a . ln : D i t o s e E s c r i t o s , v o l. V , p . 2 6 -3 6 ].
M ic h e l F o u c a u lt· c o n c e ito s e s s e n c ia is 33

Cuidado de si / Técnicas de si
* o

v o c a b u lá rio
in íc io dos

de
anos

F o u c a u lt
80, o te m a

no
do c u id a d o

p ro lo n g a m e n to
de S1

da
a p a re c e

id é ia
no

de

g o v e rn a m e n ta lid a d e . À a n á lis e do g o v e rn o dos o u tro s segue, com

e fe ito , a q u e la d o g o v e rn o d e s i, is to é , a m a n e ira p e la q u a l o s s u je ito

s e re la c io n a m c o n s ig o m esm os e to rn a m p o s s ív e l a re la ç ã o com o

o u tro . A e x p re ssã o " c u id a d o d e s i" , q u e é um a re to m a d a d o DCBA


e p im e le ia

h e a u to « q u e s e e n c o n tra , em p a rtic u la r, n o P r im e ir o A /c e b ía d e s , d e P ia tã o ,

in d ic a , n a v e rd a d e , o c o n ju n to das e x p e riê n c ia s e das té c n ic a s que o

s u je ito e la b o ra e q u e o a ju d a a tra n s fo rm a r-s e a si m esm o. o p e río d o

h e le n ís tic o e ro m a n o so b re o q u a l s e c o n c e n tra ra p id a m e n te o in te re s s e

d e F o u c a u lt, o c u id a d o d e s i in c lu i a m á x im a d é lfic a gf1âtbi s e a u to u , m as

a e la não se re d u z : o e p im e /e ia b e a u to « c o rre sp o n d e a n te s a um id e a l

é tic o (fa z e r d e s u a v id a um o b je to d e te k h n ê , um a o b ra d e a rte ) q u e a

um p ro je to d e c o n h e c im e n to em s e n tid o e s trito .

** A a n á li e do c u id a d o de s i p e rm ite , na v e rd a d e , e s tu d a r d o is

p ro b le m a s . O p rim e iro c o n s is te em c o m p re e n d e r, e m p a rtic u la r, com o

o n a s c im e n to de um c e rto n ú m e ro de té c n ic a s a s c é tic a s a p a rtir do

c o n c e ito c lá s ic o de c u id a d o de s i fo i, p o s te rio rm e n te , a trib u íd o ao

c r is tia n is m o ." enhum a h a b ilid a d e té c n ic a ou p ro fis s io n a l pode ser

a d q u irid a , em e x e rc íc io ; nem se pode a p re n d e r a a rte d e v iv e r, a te c h n ê

to « b io u , em um a ascese que deve s e r to m a d a com o um tre in a m e n to

de si por s i" r. Q u a l é , e n tã o , o e le m e n to q u e d ife re n c ia a é tic a g re c o -

17 À p ro p o s de Ia g é n e a lo g ie de I 'é t h i q u e : un a p e rç u du tra v a il em c o u rs. In : R a b in o w ,

P. e D re y fu , H. M ic h e l F o u c a u lt: B eyond S tr u c tu r a lis m and H e r m e u tic s . C h ic a g o :


The U n iv e rs ity o f C h ic a g o P re ss, 1982. [T ra d u ç ã o b ra s ile ira : A p ro p ó s ito da g e n e a lo g ia
da é tic a : um a re v is ã o do tra b a lh o . In : R a b in o w . P . e D re y fu s, H . M ic h e l F o u c a u lt, 1111/0

tr a je tô r ia filo s ó fic a : para a lé m do e s tr u tu r a lis m o e da h e r m e n ê u tic a . R io de J a n e iro :

F o re n e n iv e rs itá ria . 1995. p. 2721.


34 Judith RevelLKJIHGFEDCBA

ro m a n a d a m o ra l p a s to ra l c ris tã ; e n ã o é p re c is a m e n te n a a rtic u la ç ã o

do c u id a d o de si com os apbrodisia que se pode c o m p re e n d e r essa

passagem d a é tic a g re c o -ro m a n a à m o ra l p a s to ra l c ris tã ? O segundo

p ro b le m a c o n c e rn e , n a v e rd a d e , à h is tó ria d e s s e s aphrodisia com o cam po

de in v e s tig a ç ã o e s p e c ífic o da re la ç ã o com o s i: tra ta - e de buscar

a p re e n d e r com o os in d iv íd u o s fo ra m le v a d o s a e x e rc e r so b re si

m esm os e so b re o s o u tro s "um a h e rm e n ê u tic a d o d e s e jo na qual seu

c o m p o rta m e n to sexual e s te v e , sem d ú v id a , e n v o lv id o , m as não,

c e rta m e n te , com o d o m ín io e x c lu s iv o " , e d e a n a lis a r o s d ife re n te s jo g o s

d e v e rd a d e u tiliz a d o s n o m o v im e n to d e c o n s titu iç ã o do si com o s u je ito

do d e s e jo .

***N a A n tig ü id a d e c lá s s ic a , o c u id a d o de si não e s tá e m o p o s iç ã o

a o c u id a d o d o s o u tro s : e le im p lic a , a o c o n trá rio , re la ç õ e s c o m p le x a s

com o s o u tro s p o rq u e é im p o rta n te , p a ra o hom em liv re , in c lu ir na

sua "boa c o n d u ta " um a ju s ta m a n e ira d e g o v e rn a r s u a m u lh e r, suas

c ria n ç a s o u s u a c a s a . O ethos d o c u id a d o d e s i é , p o rta n to , ig u a lm e n te

um a a rte d e g o v e rn a r o s o u tro s e, por isso, é e s s e n c ia l saber to m a r

c u id a d o d e si p a ra p o d e r bem g o v e rn a r a c id a d e . É so b re e s s e p o n to ,

e não so b re a d im e n s ã o a s c é tic a d a re la ç ã o c o n s ig o , que s e e fe tu a a

ru p tu ra da p a s to ra l c ris tã : o amor a si to rn a -s e a ra iz de d ife re n te s

fa lh a s m o ra is e o c u id a d o d o s o u tro s im p lic a , d o ra v a n te , u m a re n ú n c ia

de si no tra n s c u rs o d a v id a te rre n a .
M ic h e l F o u c a u lt: c o n c e ilo s e s s e n c ia is 35

Disciplina
* Io d a lid a d e de a p lic a ç ã o do poder que a p a re c e e n tre o fin a l do

s é c u lo X V III e o in íc io do é c u lo X IX . O " re g im e d is c ip lin a r"

c a ra c te riz a -s e por um c e rto n ú m e ro d e té c n ic a s d e c o e rç ã o q u e e x e rc e m

um e s q u a d rin h a m e n to s is te m á tic o do te m p o , do espaço e do

m o v im e n to do in d iv íd u o s e que a tin g e m p a rtic u la rm e n te a s a titu d e s ,

os g e s to s , os c o rp o s: " T é c n ic a s de in d iv id u a liz a ç ã o do p o d e r. C om o

v ig ia r a lg u é m , com o c o n tro la r sua c o n d u ta , seu c o m p o rta m e n to , suas

a titu d e s , com o in te n s ific a r sua p e rfo rm a n c e , m u ltip lic a r suas

c a p a c id a d e s , com o c o lo c á -Io no lu g a r onde e le se rá m a is ú til" 3 8 . O

d is c u rs o da d is c ip lin a é e s tra n h o à le i o u à re g ra ju ríd ic a d e riv a d a da

s o b e ra n ia : e la p ro d u z um d is c u rs o so b re a re g ra n a tu ra l, is to é , . o b re

a n o rm a .

**O s p ro c e d im e n to s d is c ip lin a re s se e x e rc e m m a is s o b re o . p ro c e sso s

da a tiv id a d e do que so b re seus re s u lta d o s e "a s u je iç ã o c o n s ta n te de

suas fo rç a . [... ] im p õ e um a re la ç ã o de d o c i l i d a d e - u t i l i d a d e 'P " , As

" d is c ip lin a s " não nascem , com c e rte z a , v e rd a d e ira m e n te no s é c u lo

X V III - e la s s e e n c o n tra m desde há m u ito te m p o nos c o n v e n to s , nas

fo rç a s a rm a d a , nas o fic in a -, m as F o u c a u lt p ro c u ra c o m p re e n d e r

de que m a n e ira e la s to rn a ra m -s e , num d e te rm in a d o m o m e n to ,

fó rm u la s g e ra is de d o m in a ç ã o . "O m o m e n to h is tó ric o das d is c ip lin a s

é o m o m e n to em que nasce um a a rte do c o rp o hum ano, que não v is a

s o m e n te ao c re s c im e n to de suas h a b ilid a d e s , nem ao in c re m e n to de

s u a s u je iç ã o , m a s à fo rm a ç ã o de um a re la ç ã o que no m esm o m e c a n is m o

o to rn a ta n to m a is o b e d ie n te q u a n to m a i s ú t i l e l e f o r , e i n v e r s a m e n t e 't '" ,

"L c m a ille s du p o u v o ir. op. c it. n o ta 26.

19 Surveiller et Punir, op. cit. nora 31.


10 Surveiller et Punir, op. c i t . n o t a 31.
36
Judirh Revel

E ssa " a n a to m ia p o litic a " in v e s te e n tã o so b re a s e s c o la s , o s h o s p ita is ,

o s lu g a re s d e p ro d u ç ã o , e m a is g e ra lm e n te so b re to d o espaço fe c h a d o

que possa p e rm itir a g e s tã o dos in d iv íd u o s no espaço, s u a re p a rtiç ã o

e s u a id e n tific a ç ã o . O m o d e lo de um a g e s tã o d is c ip lin a r p e rfe ita e s tá

p ro p o s to por m e io da fo rm u la ç ã o b e n th a m in ia n a do " p a n ó p tic o " ,

lu g a r d e e n c la u s u ra m e n to onde o s p rin c íp io s d e v is ib ilid a d e to ta l, de

d e c o m p o s iç ã o das m assas e m u n id a d e s e d e su a re o rd e n a ç ã o c o m p le x a

segundo um a h ie ra rq u ia rig o ro s a p e rm ite m s u b m e te r c a d a in d iv íd u o

a um a v e rd a d e ira e c o n o m ia do p o d e r: n u m e ro sa s in s titu iç õ e s

d is c ip lin a re s - p ris õ e s , e s c o la s , a s ilo s - possuem a in d a h o je um a

a rq u ite tu ra p a n ó p tic a , is to é, um espaço c a ra c te riz a d o , de um a p a rte ,

p e lo e n c la u s u ra m e n to e p e la re p re ssã o dos in d iv íd u o s , e, de o u tra ,

por um a b ra n d a m e n to do fu n c io n a m e n to do p o d e r.

***0 m o d e lo d is c ip lin a r fo i, s e m d ú v id a , em p a rte con tru íd o em

to rn o d a e x p e riê n c ia q u e F o u c a u lt te v e , a p a rtir d e 1 9 7 1 -7 2 , n o in te rio r

do G IP (G ru p o d e In fo rm a ç ã o so b re a s P ris õ e s ). É s o m e n te e n tre a

p u b lic a ç ã o de Vzgiar e pnnir (1 9 7 5 ) e o s c u rso s do C o llê g e d e F ra n c e ,

de 1 9 7 8 -7 9 , que F o u c a u lt com eça a tra b a lh a r num o u tro m o d e lo de

a p lic a ç ã o do p o d e r, o c o n tro le , que tra b a lh a ao m esm o te m p o a

d e s c riç ã o d a in te rio riz a ç ã o d a n o rm a e d a e s tru tu ra re tic u la r d a s té c n ic a s

de a s s u je ita m e n to , a g e s tã o das p o p u la ç õ e s e a s té c n ic a s de s i. E s s a

passagem de um a le itu ra d is c ip lin a r da h is tó ria m o d e rn a p a ra um a

le itu ra " c o n te m p o râ n e a " do c o n tro le s o c ia l c o rre sp o n d e u , no fin a l

dos anos 70, a um n ítid o e n g a ja m e n to n a q u ilo que F o u c a u lt cham ou

de " a n to lo g ia da a tu a lid a d e " .


M ic h e l F o u c a u lt: c o n c e ito s e s e n c ia i 37

Discurso
*0 d is c u rs o d e s ig n a , em g e ra l, p a ra F o u c a u lt, um c o n ju n to de

e n u n c ia d o s que podem p e rte n c e r a cam pos d ife re n te s , m as que

obedecem , apesar d e tu d o , a re g ra s d e fu n c io n a m e n to com uns. E ssas

re g ra s não são o m e n te lin g ü ís tic a s ou fo rm a is , m a s re p ro d u z e m um

c e rto n ú m e ro d e c is õ e s h is to ric a m e n te d e te rm in a d a (p o r e x e m p lo , a

g ra n d e se p a ra ç ã o e n tre ra z ã o / d e sra z ã o ): a "o rd e m do d is c u r o"

p ró p ria a um p e río d o p a rtic u la r p o s s u i, p o rta n to , um a fu n ç ã o

n o rm a tiv a e re g u la d o ra e c o lo c a em fu n c io n a m e n to m e c a n is m o s de

o rg a n iz a ç ã o do re a l p o r m e io da pr dução d e sa b e re s, d e e s tra té g ia s

e d e p rá tic a s .

**0 in te re s e de F o u c a u lt p e lo s " p la n o s d is c u rs iv o s " fo i

im e d ia ta m e n te d u p lo . De um la d o , tra ta v a -s e de a n a lis a r a s m a rc a s

d i c u rs iv a s , p ro c u ra n d o is o la r a s le is d e fu n c io n a m e n to in d e p e n d e n te

d a n a tu re z a e d a s c o n d iç õ e s d e e n u n c ia ç ã o , o q u e e x p lic a o in te re s s e

de F o u c a u lt, na m esm a época, p e la g ra m á tic a , p e la lin g ü ís tic a e p e lo

fo rm a lis m o : "fo i o rig in a l e im p o rta n te a d e s c o b e rta de que a q u ilo

que se fa z c o m a lin g u a g e m - p o e s ia , lite ra tu ra , filo s o fia , d is c u rs o em

g e ra l- obedece a um c e rto n ú m e ro d e le is e d e re g u la rid a d e s in te rn a s :

a s le is e a s re g u la rid a d e s d a lin g u a g e m . O c a rá te r lin g ü ís tic o d o s fa to

d e lin g u a g e m fo i u m a de c o b e rta m u ito im p o rta n te " :" ; m a s , d e o u tro ,

tra ta v a - e de d e sc re v e r a tra n s fo rm a ç ã o dos tip o de d is c u rs o nos

s é c u lo s À 'V I I e X V III, is to é, de h is to ric iz a r o p ro c e d im e n to s de

id e n tific a ç ã o e d e c la s s ific a ç ã o p ró p rio s de s e p e río d o : nesse s e n tid o ,

4' L a v é rité e t le s fo rm e ju rid iq u e , o p . c it. n o ta 2 8 .


38 EDCBA J u d ith R evel

a a rq u e o lo g ia fo u c a u ltia n a dos d is c u rs o s não é apenas um a a n á lis e

lin g ü is tic a , m as um a in te rro g a ç ã o so b re as c o n d iç õ e s de e m e rg ê n c ia

de d is p o s itiv o s d is c u rs iv o s que s u s te n ta m p rá tic a s (c o m o em H is tó r ia

d a L o u c llt( 1 ) o u a s e n g e n d r a m (c o m o em As P a la v r a s e a s C o is a s o u e m

A a r q /le o lo g ia d o S a b e r ) . esse s e n tid o , F o u c a u lt s u b s titu i o par

sa u ssu re a n o lín g u a /fa la por duas o p o s iç õ e s que e le fa z fu n c io n a r

a lte rn a tiv a m e n te : o par d is c u rs o /lin g u a g e m , no qual o d is c u rs o é,

p a ra d o x a lm e n te , o que é re n ite n te à o rd e m da lin g u a g e m em g e ra l (é ,

por e x e m p lo , o caso do " e s o te ris m o e s tru tu ra l" de R aym ond R o u s s e l)

- e é p re c is o n o ta r que o p ró p rio F o u c a u lt a n u la rá essa o p o s iç ã o ,

in titu la n d o s u a a u la in a u g u ra l no C o llê g e de F ra n c e com o A O rdem do

D is c u r s o , e m 1971; e o par d is c u rs o / fa la , n o q u a l () d is c u rs o s e to rn a o

eco lin g ü ís tic o da a rtic u la ç ã o e n tre saber e p o d e r, e no qual a fa la ,

com o in s tâ n c ia s u b je tiv a , e n c a rn a , ao c o n trá rio , um a p rá tic a de

re s is tê n c ia à " o b je tiv a ç ã o d is c u r iv a " .

***0 a p a re n te abandono do te m a do d is c u rs o d e p o is de 1971, em

p ro v e ito de um a a n á lis e das p rá tic a s e das e s tra té g ia s , c o rre sp o n d e ao

que F o u c a u lt d e sc re v e com o a passagem de um a a rq u e o lo g ia a um a

" d in a s tia do sa b e r": não m a is s o m e n te a d e s c riç ã o de um re g im e de

d is c u rs iv id a d e e d e s u a e v e n tu a l tra n s g re s s ã o , m as a a n á lis e "da re la ç ã o

q u e e x is te e n tre e sse s g ra n d e s tip o s d e d is c u rs o e a s c o n d iç õ e s h is tó ric a s ,

a s c o n d iç õ e s e c o n ô m ic a s , a c o n d iç õ e s p o litic a s de seu a p a re c im e n to

e d e s u a f o r r n a ç ã o 't '" . O ra , e s s e d e s lo c a m e n to , que em basa a passagem

m e to d o ló g ic a da a rq u e o lo g ia à g e n e a lo g ia , p e rm ite p ro b le m a tiz a r as

c o n d iç õ e s do d e s a p a r e c im e n to d o " d is c u rs o " : () te m a das p rá tic a s de

re s is tê n c ia , o n ip re s e n te em F o u c a u lt a p a rtir dos anos 7 0 , p o s s u i, na

re a lid a d e , um a o rig e m d is c u rs iv a .

• 2 De I 'a r c h é o l o g i e à Ia d y n a s tiq u e . E n tre tie n avec S. Hasurni, s c p ie rn b re 1972.

R e to m a d o em D its et É c r its , v o l. 3 , te x to n" 1 1 9 . [T ra d u ç ã o b ra s ile ira : Da a rq u e o lo g ia

à d in á s tic a . In : D ito s e E s c r ito s . v o l. IV , p . 491.


M ic h e l F o u c a u lt: c o n c e ito s e s s e n c ia is 39

Dispositivo
*0 te rm o " d is p o s itiv o s " a p a re c e em F o u c a u lt nos anos 70 e d e s ig n a

in ic ia lm e n te o s o p e ra d o re s m a te ria is do p o d e r, is to é , a s té c n ic a s , as

e s tra té g ia s e a s fo rm a s d e a s s u je ita m e n to u tiliz a d a s p e lo p o d e r. A p a rtir

do m o m e n to em que a a n á lis e fo u c a u ltia n a s e c o n c e n tra n a q u e s tã o

do p o d e r, o filó s o fo in s is te so b re a im p o rtâ n c ia de se ocupar não

"do e d ifíc io ju ríd ic o da s o b e r a n .ia , dos a p a re lh o s do E s ta d o , das

id e o lo g ia s q u e o a c o r n p a n h a m 'r " , m a s d o s m e c a n is m o s d e d o m in a ç ã o :

é essa e s c o lh a m e to d o ló g ic a que e n g e n d ra a u tiliz a ç ã o da noção de

" d is p o s itiv o s " . E le s s ã o , p o r d e fin iç ã o , d e n a tu re z a h e te ro g ê n e a : tra ta -

se ta n to de d is c u rs o s q u a n to de p rá tic a s , de in s titu iç õ e s q u a n to de

tá tic a s m o v e n te s : é a s s im que F o u c a u lt chega a fa la r, s e g u n d o o caso,

de " d is p o s itiv o s de p o d e r", de " d is p o s itiv o s de sa b e r", de

" d is p o s itiv o s d is c ip lin a re s " , de " d is p o s itiv o s de s e x u a lid a d e " e tc .

**0 a p a re c im e n to d o te rm o " d is p o s itiv o " n o v o c a b u lá rio c o n c e itu a l

d e F o u c a u lt e s tá p ro v a v e lm e n te lig a d o à u a u tiliz a ç ã o por D e le u z e e

G u a tta ri no .Anti-Édipo (1 9 7 2 ): é , p e lo m enos, o q u e d e ix a e n te n d e r o

p re fá c io que F o u c a u lt e sc re v e u em 1977 p a ra a e d iç ã o a m e ric a n a do

liv ro , v is to que e le a í o b e rv a "a noções em a p a rê n c ia a b s tra ta s de

m u ltip lic id a d e s , de flu x o s , de d is p o s itiv o s e de ra rn ific a ç õ e "44.

P o s te rio rm e n te , o te rm o re c e b e rá um a acepção cada vez m a is a m p la

(m e sm o que, no com eço, F o u c a u lt s o m e n te u tiliz e a e x p re ssã o

4, ll faut
défendre Ia société, P a r i s : S e u i l , 1 9 9 7 . [ T r a d u ç ã o b ra s ile ira : Em defesa da
sociedade. C u r s o n o C o l l e g e d e F r a n c e ( 1 9 7 5 - 1 9 7 6 ) . S ã o P a u lo : M a rtin s F o n te s ,
1 9 9 9 ].
44 P re fá c io a D e le u z e , G . e G u a u a ri, F. Anti-Oedipus: Capitalism and Schizophrenia.
N e w Y o rk : V ik in g P re ss, 1 9 7 7 . R e to m a d o e m Dits et Écrits, v o l . 3 , t e x t o n " 1 8 9 .
40 Judith RevelZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCB

" d is p o s itiv o de p o d e r") e cada vez m a is p re c is a , a té ser o b je to de

um a re fle x ã o c o m p le ta após A uontade de saber (1 9 7 6 ), em que a

e x p re ssã o " d is p o s itiv o de s e x u a lid a d e " é c e n tra l: um d is p o s itiv o é

"um c o n ju n to d e c id id a m e n te h e te ro g ê n e o que e n g lo b a d is c u rs o s ,

in s titu iç õ e s , o rg a n iz a ç õ e s a rq u ite tõ n ic a s , d e c is õ e s re g u la m e n ta re s , le is ,

m e d id a s a d m in is tra tiv a s , e n u n c ia d o s c ie n tífic o s , p ro p o s iç õ e s filo s ó fic a s ,

m o ra is , fila n tró p ic a s . ~m sum a: o dito e o n ã o -d ito l..


']'O d is p o s itiv o

é a re d e que se pode e s ta b e le c e r e n tre esses e l e m e n t o s 'r " . O p ro b le m a

é , e n tã o , p a ra F o u c a u lt, o d e in te rro g a r ta n to a n a tu re z a dos d ife re n te s

d is p o s itiv o s que e le e n c o n tra q u a n to sua fu n ç ã o e s tra té g ic a .

*** a v e rd a d e , a noção de d is p o s itiv o s u b s titu i pouco a pouco

a q u e la de episteme, e m p re g a d a p o r F o u c a u lt, de um m odo a b s o lu ta m e n te

p a rtic u la r, em As palavras e as coisas e a té o fin a l dos anos 60. C om

e fe ito , a episteme é um d is p o s itiv o e s p e c ific a m e n te d is c u rs iv o , e n q u a n to

o " d is p o s itiv o " , no s e n tid o que F o u c a u lt e x p lo ra rá dez anos m a is

ta rd e , c o n té m ig u a lm e n te in s titu iç õ e s e p rá tic a s , is to é , " to d o o s o c ia l

n ã o -d is c u rs iv o "46.

4j L e je u d e M ic h e l F o u c a u lt. Ornicar? Bulletin périodique du champ [reudien. n"

1 0 , ju lh o de 1977. (T ra d u ç ã o b ra s ile ira : S o b re a h is tó ria da s e x u a lid a d e . In :

Microftsica do Poder. R io d e J a n e iro : G ra a l, 1999, p . 2 4 4 ).

46 L e je u d e M ic h e l F o u c a u lt, o p . c it. n o ta 45.


M jc h e l F o u c a u lt: c o n c e ito s e s s e n c ia is 41

Episteme
*0 te rm o " e p is te rn e " e s tá no c e n tro das a n á lis e s de As Palavras e as
Coisas (1 9 6 6 ) e deu lu g a r a n u m e ro so s d e b a te s na m e d id a em que a

noção é, ao m esm o te m p o , d ife re n te da de " s is te m a " - que F o u c a u lt

p ra tic a m e n te nunca u tiliz a a n te s que s u a c a d e ira n o C o llê g e d e F ra n c e

fo sse , a seu p e d id o , re b a tiz a d a , em 1971, com o " c a d e ira de h is tó ria

dos s is te m a s de p e n s a m e n to " - e da de " e s tru tu ra " . Por episteme,


F o u c a u lt d e s ig n a , n a re a lid a d e , um c o n ju n to d e re la ç õ e s que lig a tip o s

de d is c u rs o s e que c o rre sp o n d e a um a dada época h is tó ric a : "são

to d o s esses fe n ô m e n o s de re la ç õ e s e n tre as c iê n c ia s ou e n tre os

d ife re n te s d is c u rs o s c ie n tífic o s q u e c o n s titu e m a q u ilo q u e e u d e n o m in o

a episteme de um a é p o c a " :"

**O s m a l-e n te n d id o s e n g e n d ra d o s nos anos 6 0 p e lo u o da noção

d e v e m -se a d o is m o tiv o s : de um la d o , in te rp re ta -s e a episteme com o

um s is te m a u n itá rio , c o e re n te e fe c h a d o , is to é, com o um a c o e rç ã o

h i tó ric a , que im p lic a um a s o b re d e te rm in a ç ã o ríg id a d o s d is c u rs o s ; e,

de o u tro la d o , a c u sa -se F o u c a u lt de um c e rto re la tiv is m o h is tó ric o ,

is to é , ele fo i in s ta d o a e x p lic a r a ru p tu ra e p is tê rn ic a e a d e s c o n tin u id a d e

gue a pa sagem de um a episteme a o u tra n e c e s s a ria m e n te im p lic a . o b re

o p rim e iro p o n to , F o u c a u lt re sp o n d e que a episteme de um a época não

é "a som a d e s e u s c o n h e c im e n to s ou o e s tilo g e ra l d e su a s p e g u is a s ,

m a s o d e s v io , a s d is tâ n c ia s , a s o p o s iç õ e s , a s d ife re n ç a s , a s re la ç õ e s de

s e u s m ú ltip lo s d is c u r o s c ie n tífic o s : a episteme não é tona espécie de gratlde

4? Le p ro b lê rn e s d e Ia c u ltu re . U n débat F o u c a u lt-P re li. In : 11Bimestre, n ? 2 2 -2 3 ,

s e te m b ro -d e z e m b ro . 1 9 7 2 . R e to m a d o em Dits et Écrits, v o l. 2 , te x to n? 109.


42 GFEDCBA J u d ith R evel

te o r ia s u b ia c e n te , é um espaço d e d is p e r s ã o , é um c a m p o a b e r to l ... 1 a e p is te m e

nào é lim a c o b e r tu r a de h is tó ria com um a to d a s as c iê n c ia s ; é u m jo g o

s im u ltâ n e o de rem anêndas e s p e c ific a s " 4 8 . [a is d o que um a fo rm a g e ra l da

c o n s c iê n c ia , F o u c a u lt d e sc re v e , p o rta n to , um fe ix e de re la ç õ e s e de

d e s lo c a m e n to s ; não um s is te m a , m as a p ro life ra ç ã o e a a rtic u la ç ã o de

m ú ltip lo s s is te m a s que re m e te m uns aos o u tro s . S o b re o segundo

p o n to , F o u c a u lt re iv in d ic a , por m e io do uso da noção, a s u b s titu iç ã o

d a q u e s tã o a b s tra ta da m udança (p a rtic u la rm e n te v iv a , n a é p o c a , p a ra

os h is to ria d o re s ) por a q u e la dos " d ife re n te s tip o s de tra n s fo rm a ç ã o " :

" s u b s titu ir, e n fim , o te m a do d e v ir (fo rm a g e ra l, e le m e n to a b s tra to ,

causa p rim e ira e e fe ito u n iv e rs a l, m is tu ra c o n fu sa do id ê n tic o e do

novo) p e la a n á lis e das tr a n s fo r m a ç õ e s em sua e s p e c ific id a d e " :" .

***0 abandono da noção de e p is te m e c o rre sp o n d e ao de lo c a m e n to

d o in te re s s e d e F o u c a u lt, d e o b je to s e s trita m e n te d is c u rs iv o s a re a lid a d e s

n ã o -d is c u rs iv a s - p rá tic a s , e s tra té g ia s , in s titu iç õ e s e tc : " E m As P a la o r a s

e a s C o is a s , q u e r e n d o fa z e r um a h is tó ria da e p is te lJ le , p e r m a n e c i a num

im p a s s e . A g o ra , g o s ta ria de m o s tra r que o c1ue cham o de d is p o s itiv o

é a lg o m u ito m a is g e ra l que c o m p re e n d e a e p is te m e . Ou m e lh o r, que a

e p is te m e é um d is p o s itiv o e s p e c ific a m n te d is c u rs iv o , d ife re n te m e n te

do d is p o s itiv o , q u e é d is c u rs iv o e n ã o -d is c u rs iv o , sendo s e u s e le m e n to s

m u ito m a is h e te ro g ê n e o s " :" .

4H R é p o n s e à u n e q u e s tio n o ln : E s p r it, n a 3 7 1 , m a io 1 9 6 8 . R e to m a d o em D its


e t É c r its , v o l. I , te x to N ° 58.

49 Réponse à u n e q u e s tio n , o p . c it. n o ta 48.

50 L e je u d e M ic h e l F o u c a u lt. o p . c it. n o ta 4 5 .
M ic h e l F o u c a u ll: c o n c e ito s e s s e n c ia is 43

Estética (da existência)


*0 te m a de um a " e s té tic a da e x is tê n c ia " a p a re c e m u ito n itid a m e n te

em F o u c a u lt no m o m e n to da a p a riç ã o dos d o is ú ltim o s v o lu m e s da A


H istória da Sexualidade, em 1984. F o u c a u lt fa z , c o m e fe ito , a d e s c riç ã o

de d o is tip o s de m o ra l ra d ic a lm e n te d ife re n te s , um a m o ra l g re c o -

ro m a n a d irig id a p a ra a é tic a e por m e io da qual s e tra ta d e Jazer de SIIa

vida lim a obra de arte, e u m a m o r a l c ris tã n o in te rio r d a q u a l s e tra ta , a o

c o n trá rio , e s s e n c ia lm e n te , de obedecer a um c ó d ig o : " S e m e in te re s s e i

p e la A n tig ü id a d e , fo i p o rq u e , por to d a um a s é rie d e ra z õ e s , a id é ia d e

um a m o ra l com o o b e d iê n c ia a um c ó d ig o de re g ra s e s tá

d e sa p a re c e n d o , já d e s a p a re c e u . E a e s ta a u s ê n c ia d e m o ra l c o rre sp o n d e ,

deve c o rre sp o n d e r um a busca que é a q u e la de um a e s té tic a da

e x i s t ê n c i a '? '. O s te m a s d a é tic a e d a e s té tic a d a e x is tê n c ia e s tã o p o rta n to

e s tre ita m e n te lig a d o s .

** A " e s té tic a " d a e x is tê n c ia lig a d a à m o ra l a n tig a m a rc a em F o u c a u lt

o re to rn o ao te m a d a in v e n ç ã o de s i (Jàzer de sua vida lim a obra de alte):

um a p ro b le m a tiz a ç ã o a que e le já h a v ia chegado em filig ra n a num

c e rto n ú m e ro de te x to s " lite rá rio s " nos anos 60 (p o r e x e m p lo , no

H .aY fJ/ond R oussel, m a s i g u a l m e n t e n a s a n á lis e s c o n sa g ra d a s a B ris s e t e a

W o lfs o n ), e que e le re to m a v in te anos m a is ta rd e por m e io de um a

d u p la s é rie de d is c u rs o s . A p rim e ira , no in te rio r da H istória da


Sexualidade, e s tá e s s e n c ia lm e n te lig a d a à p ro b le m a tiz a ç ã o da ru p tu ra

que re p re s e n ta a " p a s to ra l c ris tã " em re la ç ã o à é tic a g re g a ; a s e g u n d a

passa, em c o n tra p a rtid a , p e la a n á lis e da " a titu d e da rn o d e rn id a d e "

51 U n e e s th é tiq u e d e I 'e x i s t e n c e . In : Le Monde, 1 5 -1 6 d e ju lh o de 1 9 8 4 . [T ra d u ç ã o


b ra ile ra : U m a e s té tic a d a e x is tê n c ia . I n : D ito s e E scrito s, v o l V , p . 2 9 0 ].
44 Judith RevelZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFED

(p o r m e io da re to m a d a do te x to k a n tia n o so b re as L uzes) e fa z da

in v e n ç ã o de si um a das c a ra c te rís tic a s dessa a titu d e : a m o d e rn id a d e

n ã o é s o m e n te a re la ç ã o com o p re s e n te , m a s a re la ç ã o c o n s ig o m esm o,

n a m e d id a em que "ser m o d e rn o não é a c e ita r a si m esm o ta l c o m o

se é no flu x o dos m o m e n to s que passam ; é to m a r a si m esm o com o

o b je to de um a e la b o ra ç ã o c o m p le x a e d u ra : o que B a u d e la ire cham a,

de a c o rd o com o v o c a b u lá rio da época, de 'd a n d i s m o 't 'F , A e s té tic a

da e x is tê n c ia é, ao m esm o te m p o , o que F o u c a u lt lo c a liz a fo ra da

in flu ê n c ia da p a s to ra l c ris tã (te m p o ra lm e n te : o re to rn o aos G re g o s;

e s p a c ia lm e n te : o in te re s s e c o n te m p o râ n e o d e F o u c a u lt p e lo zen e p e la

c u ltu ra ja p o n e s a ) e o que d e v e , d e n o v o , c a ra c te riz a r a re la ç ã o que nó

m a n te m o s com a nossa p ró p ria a tu a lid a d e .

***0 te m a d a e s té tic a d a e x is tê n c ia com o p ro d u ç ã o in v e n tiv a de si

não m a rc a , e n tre ta n to , um re to rn o à fig u ra do s u je ito so b e ra n o ,

fu n d a d o r e u n iv e rs a l, nem a um abandono do cam po p o lític o : "penso,

p e lo c o n trá rio , q u e o s u je ito s e c o n s titu i a tra v é s d a s p rá tic a s d e s u je iç ã o

ou, de m a n e ira m a is a u tô n o m a , a tra v é s de p rá tic a s de l i b e r a ç ã o 't " . A

e s té tic a da e x is tê n c ia , na m e d id a em que e la é um a p rá tic a é tic a de

p ro d u ç ã o d e s u b je tiv id a d e , é, ao m esm o te m p o , a s s u je ita d a e re s is te n te :

é , p o rta n to , um g e s to e m in e n te m e n te p o lític o .

~2 W h a t 's e n lig h te n m e n t? , o p . c it. n o ta 6.

S3 U ne e th é tiq u e d e l 'e x i te n c e , o p . e u , n o ta 51.


M ic h e l F o u c a u ll: c o n c e ito s e s s e n c ia is 45

,
Etica
* os ú ltim o s v o lu m e da História da sexualidade, F o u c a u lt d is tin g u e

c la ra m e n te e n tre o q u e é p re c is o e n te n d e r por " m o ra l" e o q u e s ig n ific a

" é tic a ' . A m o ra l é, em s e n tid o a m p lo , um c o n ju n to de v a lo re s e de

re g ra s de ação que são p ro p o s ta s ao in d iv íd u o s e aos g ru p o s por

m e io de d ife re n te s a p a re lh o s p re s c ritiv o s (a fa m ília , as in s titu iç õ e s

e d u c a tiv a s , a s Ig re ja s e tc .) ; e s s a m o ra l e n g e n d ra um a " m o ra lid a d e dos

c o m p o rta m e n to s " , is to é, um a v a ria ç ã o in d iv id u a l m a is ou m enos

c o n s c ie n te em re la ç ã o ao s is te m a de p re s c riç õ e s do c ó d ig o m o ra l.

Por o u tro la d o , a é tic a c o n c e rn e à m a n e ira p e la qual cada um c o n s titu i

a si m esm o com o s u je ito m o ra l do c ó d ig o : "D ado um c ó d ig o de

c o n d u ta s [...] , há d ife re n te s m a n e ira s de o in d iv íd u o 'c o n d u z i r - s e '

m o ra lm e n te , d ife re n te s m a n e ira s p a ra o in d iv íd u o , ao a g ir, n ã o o p e ra r

s im p le s m e n te com o a g e n te , m as im com o s u je ito m o ra l dessa a ç ã o " ? '.

** A to d a é tic a c o rre sp o n d e a d e te rm in a ç ã o de um a " s u b s tâ n c ia

é tic a " , is to é, a m a n e ira p e la qual um in d iv íd u o fa z de si m esm o a

m a té ria p rin c ip a l d e s u a c o n d u ta m o ra l; da m esm a m a n e ira , e la im p lic a

n e c e s s a ria m e n te um m odo de s u je iç ã o , is to é , a m a n e ira p e la qual um

in d iv id u o s e re la c io n a com um a re g ra ou com um s is te m a d e re g ra s e

e x p e rim e n ta a o b rig a ç ã o de c o lo c á -Ia s em ação. A é tic a g re c o -ro m a n a

que d e sc re v e F o u c a u lt, em p a rtic u la r no segundo v o lu m e da História


da Sexualidade (O uso dos prazeres), te m por s u b s tâ n c ia é tic a os apbrodisia
e seu m odo d e s u je iç ã o é um a e c o lh a pessoal e s té tic o -p o litic a (n ã o se

tra ta ta n to de re s p e ita r um c ó d ig o q u a n to de "fa z e r da sua v id a um a

54 U sage des p la is irs e t te c h n iq u e s de s a i. ln : Le Débat, n? 27, n o v e m b ro 1983.

[T ra d u ç ã o b ra s ile ira : O U so d o s P ra z e re e a T é c n ic a s d e S i. In : Ditos e Escritos,


v o l, V . p. 2 1 1 -2 1 2 ).
46 Judith RevelbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFED

o b ra d e a rte " ). Em c o n tra p a rtid a , a m o ra l c ris tã fu n c io n a não so b re a

e s c o lh a m as so b re a o b e d iê n c ia , não so b re os apbrodisia (q u e são ao

m esm o te m p o o p ra z e r, o d e s e jo e o s a to s ), m a s so b re a "c a rn e " (q u e

c o lo c a e n tre p a rê n te s e s ta n to o p ra z e r q u a n to o d e s e jo ): com o

c ris tia n is m o , "o m odo d e s u je iç ã o é , e n tã o , a le i d iv in a . E c re io q u e a té

m esm o a s u b s tâ n c ia é tic a m udou, p o rq u e e la n ã o é m a is c o n s titu id a

p e la apbrodisia, m a s p e lo d e s e jo , p e la c o n c u p is c ê n c ia , p e la c a rn e e tc .? " .

***0 te rm o é tic a a p a re c e p e la p rim e ira vez de m a n e ira re a lm e n te

s ig n ific a tiv a em 1977, em um te x to o b re O .Anti-Édipo d e D e le u z e e

G u a ta rri: "E u d iria que O Anti-Édipo (p e rd o e m -m e o s a u to re s ) é um

liv ro de é tic a , o p rim e iro liv ro de é tic a que se e sc re v e u na F ra n ç a

d e p o is de m u ito te m p o ? " . E é in te re s s a n te c o n s ta ta r que F o u c a u lt

c a ra c te riz a da m esm a m a n e ira , a lg u n s anos m a is ta rd e , sua p ró p ria

História da Sexllalidade: "se, por 'é t i c a ' e n te n d e r-s e a re la ç ã o que o

in d iv íd u o e s ta b e le c e c o n s ig o m esm o, eu d iria que te n d e a ser um a

é tic a , o u , p e lo m enos, te n ta re i m o s tra r o q u e p o d e ria ser um a é tic a d o

c o m p o rta m e n to s e x u a l" ? " . E p a ra a lé m da s e x u a lid a d e , o p ro je to de

um a " o n to lo g ia c rític a da a tu a lid a d e " re c e b e , às vezes, a fo rm u la ç ã o

de um a " p o lític a com o um a é tic a " : is s o quer d iz e r que o in te re s s e

fo u c a u ltia n o p e la é tic a , nos ano 8 0 , lo n g e de ser o fim da

p ro b le m a tiz a ç ã o filo s ó fic a e h is tó ric a das e s tra té g ia s do poder e de

s u a a p lic a ç ã o a o s in d iv íd u o s , re -p ro p õ e a a n á lis e do cam po p o lític o a

p a rtir da c o n s titu iç ã o é tic a dos s u je ito s , a p a rtir da p ro d u ç ã o da

s u b je tiv id a d e .

55 A p ro p o s d e Ia g é n é a lo g ie d e l 'é t h i q u e : u n a p e rç u d u tra v a il c n c o u rs, o p . c it.


n o ta 3 7 .
56 P re fá c io a D e le u z e , G . e G u a rta ri, F. Anti-Oedipus, o p . c it. n o ta 4 4 .
57 U n e in te rv ie w d e M ic h e l F o u c a u lt p a r S te p h e n R ig g in s . In : Ethos, v o l. &, n° 2.
1 9 8 3 . R e to m a d o em Dits et Écrits. v o l 4 , te x to n° 336.
M ic h e l F o u c a u lt: c o n c e ito s e s s e n c ia is 47

Expêriencia
* A noção de e x p e riê n c ia e tá p re s e n te ao lo n g o de to d o o p e rc u rso

filo s ó fic o de F o u c a u lt, m as e la passa por im p o rta n te s m o d ific a ç õ e s

no d e c o rre r dos anos. e é v e rd a d e que, de m a n e ira g e ra l, "a

e x p e riê n c ia é a lg u m a c o is a da qual s a ím o s t r a n s f o r r n a d o s 't " , F o u c a u lt

re fe re -se , in ic ia lm e n te , a um a e x p e riê n c ia que deve m u ito , ao m esm o

te m p o , a B a ta ille e a B la n c h o t: no c ru z a m e n to de um a e x p e riê n c ia do

lim ite e de um a e x p e riê n c ia da lin g u a g e m c o n s id e ra d a com o

" e x p e riê n c ia do e x te rio r" , e le p ro c u ra , com e fe ito , d e fin ir - em

p a rtic u la r no d o m ín io d a lite ra tu ra - um a e x p e riê n c ia do ilim ita d o , do

in tra n s p o n ív e l, d o im p o s s iv e l, is to é , d a q u ilo que a fro n ta , n a re a lid a d e ,

a lo u c u ra , a m o rte , a n o ite o u a s e x u a lid a d e , a o a p ro fu n d a r, n a e sp e ssu ra

da lin g u a g e m , seu p ró p rio espaço de fa la . um segundo m o m e n to ,

m u ito d ife re n te m e n te , a e x p e riê n c ia se to rn a p a ra F o u c a u lt a ú n ic a

m a n e ira de d is tin g u ir a g e n e a lo g ia ao m esm o te m p o de um a

a b o rd a g e m e m p íric a ou p o s itiv is ta e de um a a n á lis e te ó ric a : s e a lg u m a s

p ro b le m a tiz a c õ e nascem de um a e x p e riê n c ia (p o r e x e m p lo , a e c ritu ra

de Vigiar e Punir d e p o is da e x p e riê n c ia do G ru p o de In fo rm a ç ã o

so b re a s P ris õ e s e , m a is a m p la m e n te , d e p o is de 1 9 6 8 ), é n o s e n tid o de .

que o p e n s a m e n to filo s ó fic o de F o u c a u lt é v e rd a d e ira m e n te um a

experimentação: e le dá, com e fe ito , a ver o m o v im e n to da c o n s titu iç ã o

h is tó ric a dos d is c u rs o s , das p rá tic a s , das re la ç õ e s de poder e das

s u b je tiv id a d e s , e é d e v id o a essa re la ç ã o com a g e n e a lo g ia que a

5N E n tre tie n avec M ic h e l F o u c a u lt (a v e c D u c io T ro m b a d o ri, P a ris , 1 9 7 8 ). In : 1/


Contributo, 4 année, n . I. R e to m a d o em Dits et Écrits, v o l. 4 , 1 9 9 4 , te x te n. 281.
48 Judith RevelZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDC

e x p e riê n c ia s a i d e la m esm a m o d ific a d a : "M eu p ro b le m a é o de fa z e r

eu m esm o - e d e c o n v id a r os o u tro s a fa z e re m c o m ig o , por m e io de

um c o n te ú d o h is tó ric o d e te rm in a d o - um a e x p e riê n c ia d a q u ilo que

nós som os, d a q u ilo que é não o m e n te o nosso passado m as ta m b é m

o nosso p re s e n te , um a e x p e riê n c ia de nossa m o d e rn id a d e de ta l

m a n e ira que d e la s a ia m o s tr a n s f o r m a d o s ." ?

* * E n q u a n to a e x p e riê n c ia fe n o m e n o ló g ic a (à q u a l F o u c a u lt se re fe re

a in d a , em p a rte , nos seus te x to s dos anos 5 0 ) p ro c u ra , na re a lid a d e ,

" re to m a r a s ig n ific a ç ã o da e x p e riê n c ia c o tid ia n a p a ra c o m p re e n d e r

de que m a n e ira o s u je ito que eu sou é re a lm e n te fu n d a d o r, em suas

fu n ç õ e s tra n s c e n d e n ta is , d a q u e la e x p e riê n c ia e d e s u a s s i g n i f i c a ç õ e s 't '" ,

a re fe rê n c ia a ie tz s c h e , a B a ta ille e a B la n c h o t p e rm ite , a o c o n trá rio ,

d e fin ir a id é ia de um a e x p e riê n c ia -lim ite que a rra n c a o s u je ito d e le

m esm o e lh e im p õ e s u a fra g m e n ta ç ã o o u s u a d is s o lu ç ã o . A s s im , to rn a -

s e e v id e n te que a re fe rê n c ia a B a ta ille s e ja e s s e n c ia l e que F o u c a u lt

c e n su re o s s u rre a lis ta s , m esm o re c o n h e c e n d o q u e B re to n te n h a te n ta d o

p e rc o rre r e x p e riê n c ia lim ite s , por tê -Ia s m a n tid o em um espaço da

p s iq u e . O fa to de c o n s tru ir-s e a p a rtir do a p a g a m e n to do s u je ito fa z

com que essa id é ia da experiência como passagem ao limite não e s te ja , na

re a lid a d e , tã o d is ta n te d a s o u tra s a n á li e s d e F o u c a u lt nos anos 6 0 : e le

a tu a liz a n e la o h o riz o n te desenhado p e lo fin a l d e As Palatras e as Coisas


- O p o s s ív e l d e s a p a re c im e n to do hom em ao m esm o te m p o com o

c o n s c iê n c ia a u tô n o m a e com o o b je to de c o n h e c im e n to p riv ile g ia d o :

"um a e x p e riê n c ia e s tá p re s te s a nascer onde o que e s tá em jo g o é o

59 E n tre tie n avec M ic h e l F o u c a u lt (a v e c D u c io T ro m b a d o ri), o p . c it. n o ta 58.

60 E n tre tie n avec M ic h e l F o u c a u lt (a v e c D u c io T ro m b a d o ri), o p . c it. n o ta 58.


M ic h e l F o u c a u lt: c o n c e ito s e s s e n c ia j; 49

nosso p e n s a m e n to ; sua im in ê n c ia já v is ív e l, m as a b s o lu ta m e n te v a z ia ,

não pode a in d a ser n o m e a d a " ? '.

***Se é v e rd a d e que a m a io r p a rte das a n á lis e s d e F o u c a u lt na ce de

um a e x p e riê n c ia pe soal - com o e le m esm o re c o n h e c e - e la s não

podem , de m a n e ira a lg u m a , se re m re d u z id a s a is s o . Ao c o n trá rio ,

F o u c a u lt c o lo c a -s e com o ta re fa a re fo rm u la ç ã o da noção de

e x p e riê n c ia , a m p lia n d o -a p a ra a lé m do si (u m i já m a ltra ta d o p e la

c rític a dos filó s o fo s do s u je ito ): a e x p e riê n c ia é a lg o que se dá

s o lita ria m e n te , m as que é p le n a s o m e n te na m e d id a em (lu e e s c a p a à

p u ra s u b je tiv id a d e , is to é, que o u tro s podem c ru z á -Ia ou a tra v e s s á -Ia .

A p a rtir dos anos 7 0 , é , p o is , so b re o te rre n o de um a p rá tic a c o le tiv a

- i to é, no cam po p o lític o - que F o u c a u lt p ro c u ra s itu a r o p ro b le m a

da e x p e riê n c ia com o m o m e n to de tra n s fo rm a ç ã o : o te rm o p a ssa rá ,

e n tã o , a s e r a s s o c ia d o ao m esm o te m p o à re s is tê n c ia aos d is p o s itiv o s

de poder (e x p e riê n c ia re v o lu c io n á ria , e x p e riê n c ia d e lu ta s , exp riê n c ia

de s u b le v a ç ã o ) e aos p ro c e sso s de s u b je tiv a ç â o .

61 L a f o l i e , l 'a b s e n c e d'ceuvre, L a T a b le R onde, n° 196 : Situation de Ia psychiatrie,


1964, re to m a d o em Dits et Écrits, v o l . I , t e x t o n° 25. [T ra d u ç ã o b ra s ile ira : A

lo u c u ra , a a u s ê n c ia d a o b r a . In : Ditos e Escritos, v o l. I, p. 2 1 9 ].
50 Judith Revel

ExteriorZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
*Em 1966, num te x to c o n sa g ra d o a M a u ric e B l a n c h o t '" F o u c a u lt

d e fin e a " e x p e riê n c ia do e x te rio r" c o rn o a d is s o c ia ç ã o do "eu penso"

e do "eu fa lo " : a lin g u a g e m deve e n fre n ta r o d e s a p a re c im e n to do

s u je ito que fa la e in s c re v e r s e u lu g a r v a z io c o rn o fo n te de s u a p ró p ria

expansão in d e fin id a . A lin g u a g e m escapa, e n tã o , "ao m odo de ser do

d is c u rs o - ou s e ja , à d in a s tia d a re p re s e n ta ç ã o - e o d is c u rs o lite rá rio

s e d e s e n v o lv e a p a rtir d e le m esm o, fo rm a n d o u rn a re d e em que cada

p o n to , d is tin to dos o u tro s , à d is tâ n c ia m esm o dos m a is p ró x im o s ,

e s tá s itu a d o em re la ç ã o a to d o s num espaço que ao m esm o te m p o os

a b rig a e os s e p a r a 'r " .

** E ssa passagem ao e x te rio r com o d e s a p a re c im e n to do s u je ito que

fa la e, c o n te m p o ra n e a m e n te , com o a p a riç ã o do p ró p rio ser da

lin g u a g e m , c a ra c te riz a p a ra F o u c a u lt um a e s p é c ie d e lin h a g e m m a rg in a l

d a c u ltu ra o c id e n ta l, c u jo p e n s a m e n to "se rá n e c e s s á rio um d ia te n ta r

d e fin ir a s fo rm a s e a s c a te g o ria s fu n d a m e n ta is " . De Sade a H ô ld e rlin ,

de ie tz c h e a M a lla rm é , d e A rta u d a B a ta ille e a K lo s s o w s k i, tra ta -s e

se m p re de c o n s id e ra r essa passagem ao e x te rio r, is to é, ao m esm o

te m p o a fra g m e n ta ç ã o da e x p e riê n c ia da in te rio rid a d e e o

d e s c e n tra m e n to d a lin g u a g e m em d ire ç ã o ao seu p ró p rio lim ite : nesse

s e n tid o , segundo F o u c a u lt, B la n c h o t p a re c e te r c o n s e g u id o tira r da

lin g u a g e m a re fle x iv id a d e da c o n s c iê n c ia e tra n s fo rm a d o a fic ç ã o em

um a d is s o lu ç ã o da n a rra ç ã o que v a lo riz a "o in te rs tíc io das im a g e n s " .

O p a ra d o x o dessa p a la v ra sem ra iz e sem fu n d a ç õ e s, que se re v e la

62 La pensée du d e h o rs. In : Critique, n . 2 2 9 , 1966. [T ra d u ç ã o b ra s ile ira : O


p e n s a m e n to d o e x te rio r. ln : Ditos e Escritos, v o l . H l, p . 2 1 9 -2 4 2 ).
63 L a pensée d u d e h o rs, o p . c it. n o ta 62.
M ic h e l F o u c a u ll: c o n c e ito s e s s e n c ia is 5/

com o d e s liz a m e n to e com o m u rm ú rio , com o d iv is ã o e com o

d is p e rs ã o , é que e la re p re s e n ta um avanço em d ire ç ã o ao que nunca

re c e b e u lin g u a g e m - a p ró p ria lin g u a g e m , que não é nem re fle x ã o

nem fic ç ã o , m as jo rro in fin ito - ou s e ja , o s c ila ç ã o in d e fin id a e n tre a

o rig e m e a m o rte .

***0 te m a do e x te rio r é in te re s s a n te , ao m esm o te m p o , p o rq u e

in te rlig a o a u to re s do quai F o u c a u lt se ocupa no m esm o p e río d o -

a " lin h a g e m do e x te rio r" , da qual B la n c h o t s e ria a e n c a rn a ç ã o m a is

e v id e n te - e p o rq u e fo rm a um c o n tra p o n to ra d ic a l com a q u ilo que o

filó s o fo se a p lic a a de c re v e r, no m esm o m o m e n to , em seus liv ro s .

C om e fe ito , quando F o u c a u lt s u b lin h a o ris c o de re c o n d u z ir a

e x p e riê n c ia do e x te rio r à d im e n s ã o d a in te rio rid a d e e a d ific u ld a d e de

d o tá -Ia de um a lin g u a g e m que lh e s e ja fie l, e le se re fe re à fra g ilid a d e

desse " e x te rio r" : não h á e x te rio r p o s s ív e l num a d e s c riç ã o a rq u e o ló g ic a

dos d is p o s itiv o s d is c u rs iv o s ta l c o m o a p re s e n ta d a em As pala/Iras e as


Coisas. S e rá s o m e n te bem m a is ta rd e que F o u c a u lt d e ix a rá de pensar o

" e x te rio r" com o um a passagem ao lim ite ou com o um a p u ra

e x te rio rid a d e , e que e le lh e d a rá um lu g a r no s e io m esm o da o rd e m

do d is c u rs o : a o p o s iç ã o não se rá , p o rta n to , m a is e n tre o d e d e n tro e o

de fo ra , e n tre o re in o do s u je ito e o m u rm ú rio a n ô n im o , m as e n tre a

lin g u a g e m o b je tiv a d a e a p a la v ra de re s is tê n c ia , e n tre o s u je ito e a

s u b je tiv id a d e , is to é , a q u ilo que D e le u z e c h a m a rá "a d o b ra ". d o b ra

- e o te rm o já f o r a ., e s tr a n h a m e n te , u tiliz a d o por F o u c a u lt em 1966 -

, é o fim da opo iç ã o d e n tro /fo ra , p o rq u e é o e x te rio r do d e n tro . E

F o u c a u lt c o n c lu i: "l...
] e s ta rn o s se m p re no in te rio r. A m a rg e m é um

m ito . A fa la do e x te rio r é um sonho que não p a ra m o s de r e p e t i r " ? '.

64 L 'e x t e n s i o n s o c ia le d e Ia n o rm e . In : Politique Hebdo, nO 212, m a rç o de 1976.

R e to m a d o em Dits et Écrits, v o l. 3 . te x to n° 173.


52 Judirh Reve!

GenealogiaaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
*D esde a p u b lic a ç ã o deAs Palavrase as Coisas ( 1 9 6 6 ) , F o u c a u lt q u a lific a

seu p ro je to de a rq u e o lo g ia das c iê n c ia s hum anas m a is com o um a

" g e n e a lo g ia n ie tz s c h ia n a " do que com o um a o b ra e s tru tu ra lis ta . E sse

c o n c e it é re to m a d o e p re c is a d o , em 1971, em um te x to so b re

ie tz s c h e : a g e n e a lo g ia é um a p e s q u is a h is tó ric a que se opõe ao

" d e s d o b ra m e n to m e ta -h is tó ric o das s ig n ific a ç õ e s id e a is e das

in d e fin id a s t e o l o g i a s '" , que se opõe à u n ic id a d e d a n a rra tiv a h is tó ric a e

à busca da o rig e m , e que p ro c u ra , ao c o n trá rio , a " s in g u la rid a d e dos

a c o n te c im e n to s fo ra d e q u a lq u e r fin a lid a d e m o n ó t o n a '? " . A g e n e a lo g ia

tra b a lh a , p o rta n to , a p a rtir da d iv e rs id a d e e da d is p e rs ã o , do acaso

dos com eços e dos a c id e n te s : e la n ã o p re te n d e v o lta r ao te m p o p a ra

re s ta b e le c e r a c o n tin u id a d e da h is tó ria , m as p ro c u ra , ao c o n trá rio ,

re s titu ir o s a c o n te c im e n to s n a s u a s in g u la rid a d e .

**0 e n fo q u e g e n e a ló g ic o não é , n o e n ta n to , um s im p le s e rn p iris m o ,

"nem ta m p o u c o um p o s itiv is rn o , n o s e n tid o h a b itu a l d o te rm o " . T ra ta -

s e , d e fa to , d e a tiv a r s a b e re s lo c a is , d e s c o n tín u o s , d e s q u a lific a d o s , não

le g itim a d o s , c o n tra a in s tâ n c ia te ó ric a u n itá ria q u e p re te n d e ria d e p u rá -

lo s , h ie ra rq u iz á -Io s , o rd e n á -Io s em nom e de um c o n h e c im e n to

v e rd a d e iro [. . .] . A s g e n e a l o g i a s não s ã o , p o rta n to , re to rn o s p o s itiv is ta s

a um a fo rm a d e c iê n c ia m a is a te n ta ou m a is e x a ta ; a s g e n e a lo g ia s são

m a is e x a ta m e n te anti-aênaasí'", O m é to d o g e n e a ló g ic o é , p o rta n to ,

65 N ie tz c h e , Ia g é n é a lo g ie , l 'h i s t o i r e , In : Dits et Écrits, v o l . 2 , t e x t o n ? 8 4 . [ T r a d u ç ã o


b ra s ile ira : N ie tz s c h e , a G e n e a lo g ia , a H is tó ria . I n : Ditos e Escritos, v o l . lI, p . 2 6 1 ] .
66 N ie tz c h e , Ia g é n é a lo g ie , l 'h i s t o i r e , o p . c it. n o ta 6 5 .
M ic h e l F o u c a u lt: c o n c e ito s e s s e n c ia is 53

um a te n ta tiv a d e d e s a s s u je ita r o s sa b e re s h i tó ric o ,is to é , d e to rn á -lo s

capazes de o p o s iç ã o e de lu ta c o n tra "a o rd e m do d is c u rs o " ; is s o

s ig n ific a que a g e n e a lo g ia não bu c a s o m e n te no passado a m a rc a de

a c o n te c im e n to in g u la re s , m as que e la s e c o lo c a h o je a q u e s tã o da

p o s s ib ilid a d e dos a c o n te c im e n to s : " e la d e d u z irá da c o n tin g ê n c ia que

nos fe z ser o que som os, a p o s s ib ilid a d e de não m ai se r, fa z e r ou

pensar o que som os, fa z e m o s ou p e n s a r n o s 'r " .

*** A g e n e a lo g ia p e rm ite a p re e n d e r d e m a n e ira c o e re n te o tra b a lh o

de o u c a u lt desde os p rim e iro s te x to s (a n te s que o c o n c e ito de

g e n e a lo g ia com eçasse a se r e m p re g a d o ) a té o s ú ltim o s . F o u c a u lt in c lic a ,

com e fe ito , q u e h á trê s d o m ín io s p o s s ív e is d e g e n e a lo g ia : u m a a n to lo g ia

h is tó ric a de nó -rn e srn o s em nossas re la ç õ e s com a v e rd a d e , que

p e rm ite n o s c o n s titu irm o s com o s u je ito s d e c o n h e c im e n to ; nas nossas

re la ç õ e s com um cam po de p o d e r, que p e rm ite nos c o n s titu irm o s

com o s u je ito s que agem so b re o s o u tro s ; e em nossas re la ç õ e s com a

m o ra l, que p e rm ite nos c o n s titu irm o s com o a g e n te é tic o s . "T odos

o trê s [e ix o s p o s s ív e is p a ra a g e n e a lo g ia ] e s ta v a m p re s e n te s , e m b o ra

de fo rm a um ta n to c o n fu a, em História da Loucura. E s tu d e i o e ix o d a

v e rd a d e em astimento da Clínica e As Palavras e as Coisas. D e s e n v o lv i o

e ix o do poder em Vigiar e Punir, e o e ix o m o ra l em História da


eXllalidade"69.

67 C our du 7 ja n v ie r 1976. In : Microfisica dei potere. T o rin o : E n a u d i, 1977.

[T ra d u ç ã o b ra s ile ira ; G e n e a lo g ia e P o d e r. 111: Microfisica do Poder. R io d e J a n e iro :

G r a a l,1 9 9 9 ,p .1 7 I ] .
68 W h a t 's e n lig h te n m e n t? , o p . c it. n o ta 6.

69 À p ro p o s d e Ia g é n e a lo g ie d e I 'é t h i q u e : u n a p e rç u du tra v a il em c o u rs, o p . c it.

n o ta 37.
54 Judith Revel

GovernamentalidadeWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
* A p a rtir de 1978, em seu c u rso no Co//ege de France, F o u c a u lt a n a lis a

a ru p tu ra que s e p ro d u z iu e n tre o fin a l d o s é c u lo XVI e o in íc io do

s é c u lo À 'V I I e q u e m a rc a a passagem de um a a rte d e g o v e rn a r h e rd a d a

da Id a d e Ié d ia , c u jo s p rin c íp io s re to m a m a v irtu d e s m o ra is

tra d ic io n a is (s a b e d o ria , ju s tiç a , re s p e ito a D eus) e o id e a l de m e d id a

(p ru d ê n c ia , re fle x ã o ), p a ra um a a rte de g o v e rn a r c u ja ra c io n a lid a d e

te m por p rin c íp io e cam po d e a p lic a ç ã o o fu n c io n a m e n to do E s ta d o :

a " g o v e rn a m e n ta lid a d e " ra c io n a l do E s ta d o . E ssa "ra z ã o do E s ta d o "

n ã o é e n te n d id a com o a suspensão im p e ra tiv a d a s re g ra s p ré -e x is te n te s ,

m as com o um a nova m a triz d e ra c io n a lid a d e que não te m a ver nem

com o so b e ra n o de ju s tiç a , nem com o m o d e lo m a q u ia v é lic o do

P rín c ip e .

**"P or e s a p a la v ra 'g o v e r n a r r i e n t a l i d a d e ', e u q u e ro d iz e r trê s c o is a s .

Por g o v e rn a m e n ta lid a d e , eu e n te n d o o c o n ju n to c o n s titu íd o p e la s

in s titu iç õ e s , p ro c e d im e n to , a n á lis e s e re fle x õ e , c á lc u lo s e tá tic a s que

p e rm ite m e x e rc e r essa fo rm a b a s ta n te e s p e c ífic a e c o m p le x a d e p o d e r,

que te m por a lv o a p o p u la ç ã o , com o fo rm a p rin c ip a l de aber a

e c o n o m ia p o lític a e p o r in s tru m e n to s té c n ic o s e s s e n c ia is o s d is p o s itiv o s

de se g u ra n ç a . Em segundo lu g a r, por g o v e rn a rn e n ta lid a d e , e n te n d o a

te n d ê n c ia que em to d o o O c id e n te c o n d u z iu in c e s s a n te m e n te , d u ra n te

m u ito te m p o , à p re e m in ê n c ia desse tip o de poder que se pode cham ar

de "g o v e rn o " so b re to d o s os o u tro s - s o b e ra n ia , d is c ip lin a e tc [. . . 1.


E n fim , por g o v e rn a m e n ta lid a d e , e u c re io que s e ria p re c is o e n te n d e r o

re s u lta d o do p ro c e sso a tra v é s do qual o E s ta d o de ju s tiç a da Id a d e

M é d ia , que s e to rn o u nos s é c u lo s XVI e X V II E s ta d o a d m in is tra tiv o ,


M ic h e l F o u c a u lt: c o n c e ito s e s s e n c ia is 55

fo i pouco a pouco 'g o v e r n a m e n t a l i z a d o , > 7 O . A nova

g o v e rn a m e n ta lid a d e da ra z ã o do E s ta d o s e a p ó ia so b re d o is g ra n d e s

c o n ju n to s d e sa b e re s e d e te c n o lo g ia s p o lític a s , um a te c n o lo g ia p o lític o -

m ilita r e um a " p o lic ia " . o c ru z a m e n to dessas duas te c n o lo g ia s ,

e n c o n tra -s e o c o m é rc io e a c irc u la ç ã o in te re s ta ta l da m oeda: "é do

e n riq u e c im e n to p e lo c o m é rc io que se e sp e ra a p o s s ib ilid a d e de

a u m e n ta r a p o p u la ç ã o , a m ã o -d e -o b ra , a p ro d u ç ã o e a e x p o rta ç ã o , e

de se d o ta r de a rm a s fo rte s e n u m e ro sa s. O par p o p u la ç ã o -riq u e z a

fo i, n a é p o c a do m e rc a n tilis m o e d a c a m e ra lis tic a , o o b je to p riv ile g ia d o

da nova ra z ã o g o v e r n a m e n ta l,,7 1 . E sse par e s tá no fu n d a m e n to da

fo rm a ç ã o de um a " e c o n o m ia p o lític a " ,

*** A g o v e rn a m e n ta lid a d e m o d e rn a c o lo c a p e la p n m e Jra vez o

p ro b le m a da " p o p u la ç ã o " , is to é, não a som a dos s u je ito s de um

te rritó rio , o c o n ju n to de s u je ito s de d ire ito ou a c a te g o ria g e ra l da

" e s p é c ie hum ana", m as o o b je to c o n s tru íd o p e la g e s tã o p o litic a g lo b a l

da v id a dos in d iv íd u o (b io p o lític a ). E ssa b io p o lític a im p lic a ,

e n tre ta n to , não s o m e n te um a g e s tã o da p o p u la ç ã o , m as um c o n tro le

das e s tra té g ia s que os in d iv íd u o s , na sua lib e rd a d e , podem te r em

re la ç ã o a e le s m esm os e uns em re la ç ã o aos o u tro s . As te c n o lo g ia s

g o v e rn a m e n ta is c o n c e rn e m , p o rta n to , ta m b é m ao g o v e rn o da

educação e da tra n s fo rm a ç ã o dos in d iv íd u o s , à q u e le das re la ç õ e s

fa m ilia re s e à q u e le d a s in s titu iç õ e s . Épor e s s a ra z ã o q u e F o u c a u lt e s te n d e

a a n á lis e da g o v e rn a m e n ta lid a d e dos o u tro p a ra um a a n á lis e do

g o v e rn o de s i: " E u cham o 'g o v e r n a m e n t a l i d a d e ' o e n c o n tro e n tre as

té c n ic a s d e d o m in a ç ã o e x e rc id a s so b re o s o u tro s e a s té c n ic a s de MLKJIHGFEDC
s i" n .

70 La g o u v e rn a m e n ta lité . C ours ou C o llê g e de F rance, 1977-1978: S é c u rité . te rrito ire ,


p o p u la tio n , 4a a u la , 1 0
de fe v e re iro de 197 . ln : D its et É c r its , v o l. 3, te x to n" 239.
[T ra d u ç ã o b ra s ile ira : A G o v e rn a m e n ta lid a d e . I n : M ic r o jís ic a do P oder. R io de J a n e iro :
G ra a l, 1999, p. 291-292J.
7 1 S é c u rité , te rritc ire . p o p u la tio n [ S e g u ra n ç a . te rritó rio e p o p u la ç ã o . ln : R esum o dos
C ursos do C o llê g e de F rance (/9 7 0 -1 9 8 2 ). R io de J a n e iro : Jo rg e Z a h a r, 1997, p.

841·
72 L cs te c h n iq u e s de s o i. ln : T e c h n o lo g ie s o f lh e S e l] . A S e m in a r w ith M. F O I/c a I/lI.
M assachuseus, U .P ., [988. R e to m a d o em D its et É c r its , v o l. 4, te x to n '' 3 6 3 .
56 Judith Revel

GuerradcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
* F o u c a u lt s e in te re s s a p e la g u e rra d u ra n te um p e río d o re la tiv a m e n te

b re v e , e n tre 1 9 7 5 e 1 9 7 7 , e d e m a n e ira e x tre m a m e n te in te n s a , p o is e le

lh e c o n sa g ra um ano de c u rso no C o llê g e de F ra n c e ". A p rim e ira

re fe rê n c ia à g u e rra lim ita -s e a in v e rte r a fó rm u la c la u s e w itz ia n a ? ' a fim

d e d e sc re v e r a s itu a ç ã o da c ris e in te rn a tio n a l c ria d a p e lo s choques

p e tro lífe ro s : " a p o lític a é a c o n tin u a ç ã o d a g u e rra p o r o u tro s m e io s " 7 5 .

D essa fo rm a , F o u c a u lt re to m a te o ric a m e n te o te m a d a g u e rra na

m e d id a em que, sendo o poder e s s e n c ia lm e n te u m a re la ç ã o d e fo rç a s,

os esquem as de a n á lis e do poder "não devem s e r e m p re s ta d o s da

p s ic o lo g ia o u d a s o c io lo g ia , m a s d a e s tra té g ia . E d a a rte d a g u e rra " 7 6 .

E ssa a firm a ç ã o , re fo rm u la d a de m a n e ira in te rro g a tiv a , to rn a -s e o

c o ra ç ã o do c u rso "E m d e fe sa da s o c ie d a d e " : se a noção de

" e s tra té g ia " é e s s e n c ia l p a ra fa z e r a a n á lis e d o s d is p o s itiv o s de saber e

d e p o d e r, e s e e la p e rm ite , em p a rtic u la r, a n a lis a r a s re la ç õ e s de poder

por m e io das té c n ic a s de d o m in a ç ã o , p o d e -se , e n tã o , d iz e r que a

d o m in a ç ã o n ã o é o u tra c o is a s e n ã o u m a fo rm a c o n tin u a d a d a g u e rra ?

**A q u e s tã o de saber se a g u e rra pode v a le r c o m o g ra d e d e a n á lis e

d a s re la ç õ e s de poder s e s u b d iv id e em v á rio s p ro b le m a s : a g u e rra é

731/ faut défendre Ia soeiété, o p . c it. n o ta 4 3 .


74 N T : F o u c a u lt a lu d e a o a fo ris m a d e C a rl V o n C la u s e w itz (tra d . fra n c e sa De Ia
guerre. P a r i s : M i n u i t , 1 9 5 5 ): " a g u e rra n ã o é m a is d o q u e a c o n tin u a ç ã o d a p o lític a
p o r o u tro s m e io s " .
75 L a p o litiq u e e s t Ia c o n tin u a tio n d e Ia g u e rre p a r d 'a u t r e s m oyens. ln : L'imprévu,
n ? J, j a n v i e r 1 9 7 5 . R e to m a d o em Dits e! Écrits, v o l. 2 , te x to n ? J 4 8 .
76 M ic h e l F o u c a u lt, l 'i l l é g a l i s m e e t l 'a r t d e p u n i r . I n : La Presse, n ° 8 0 , 3 a v ril 1 9 7 6 .
R e to m a d o em Dits et Écrits, v o l. 3 , te x te n " 1 7 5 .
M ic h e l F o u c a u lt: c o n c e ito s e s s e n c ia is 57

um e s ta d o p rim e iro do qual d e riv a m to d o s os fe n ô m e n o s de

d o m in a ç ã o e d e h ie ra rq u iz a ç ã o s o c ia l? O s p ro c e sso s d e a n ta g o n is m o

e de lu ta s , s e ja m e le s in d iv id u a is ou de c la s s e , são re c o n d u z ív e is ao

m o d e lo g e ra l d a g u e rra ? A s in s titu iç õ e s e o s p ro c e d im e n to s m ilita re s

sã o o c o ra ç ã o d a s in s titu iç õ e s p o lític a s ? E , s o b re tu d o , quem p rim e iro

pensou q u e a g u e rra e ra a c o n tin u a ç ã o d a p o lític a p o r o u tro s m e io s , e

desde quando? O c u rs o , q u e s e a lo n g o u so b re a ru p tu ra e n tre o d ire ito

de paz e de g u e rra c a ra c te rís tic o do poder m e d ie v a l e a concepção

p o litic a d a g u e rra a p a rtir do s é c u lo X V II, p ro c u ra , e s e n c ia lm e n te ,

re sp o n d e r à ú ltim a q u e s tã o ; po te rio rm e n te , o m o d e lo da g u e rra é

abandonado em p ro v e ito de um m o d e lo m a is c o m p le x o de a n á lis e

das re la ç õ e s de p o d e r: a " g o v e rn a m e n ta lid a d e " .

* * * F o u c a u lt lo c a liz a no s é c u lo X V II um d is c u rs o h is tó ric o -p o litic o

- " m u ito d ife re n te do d is c u rs o filo s ó fic o -ju ríd ic o o rd e n a d o p e lo

p ro b le m a da s o b e r a n i a '? " - que tra n s fo rm a a g u e rra num fu n d o

p e rm a n e n te d e to d a s a s in s titu iç õ e s d e p o d e r. a F ra n ç a , e s s e d is c u rs o ,

que fo i d e s e n v o lv id o em p a rtic u la r por B o u la in v illie rs , a firm a que a

g u e rra p re s id iu o n a s c im e n to dos E s ta d o s : não a g u e rra im a g in á ria e

id e a l im a g in a d a p e lo s filó s o fo s d o e s ta d o d a n a tu re z a - "p a ra H obbes,

é a n ã o -g u e rra que fu n d a um E s ta d o e lh e dá sua f o r m a ,,7 8 - m as

u rn a g u e rra re a l, u m a " b a ta lh a " d a q u a l, n o m esm o ano, [/igiar e Punir


nos in c ita a o u v ir o' e s tro n d o su rd o ".

77 11[aut défendre Ia societé, o p .c it. n o ta 4 3 .


78 11 faut défendre Ia societé, o p .c it. n o ta 4 3 .
58
Judirh Revel

História
* A in d a que o te rm o " h is tó ria " a p a re ç a em n u m e ro sa s re to m a d a s

nos títu lo s das o b ra s de F o u c a u lt, e le re c o b re , na v e rd a d e , trê s e ix o s

de d is c u rs o s d is tin to s . O p rim e iro c o n s is te num a re to m a d a e x p líc ita

de ie tz s c h e , is to é , a b s o lu ta m e n te ao me mo te m p o , da c rític a da

h is tó ria c o n c e b id a com o c o n tín u a , lin e a r, p ro v id a de um a o rig e m e

de um te/os, e da c rític a do d is c u rs o dos h is to ria d o re s com o " h is tó ria

m o n u m e n ta l" e s u p ra -h is tó ric a , É , p o rta n to , essa le itu ra n ie tz s c h ia n a

que im p u ls io n a F o u c a u lt a a d o ta r, desde o com eço dos anos 70, o

te rm o " g e n e a lo g ia " : tra ta -s e de re e n c o n tra r a d e s c o n tin u id a d e e o

a c o n te c im e n to , a s in g u la rid a d e e os acasos, e de fo rm u la r um tip o de

e n fo q u e que não p re te n d e re d u z ir a d iv e rs id a d e h is tó ric a , m as que

d e la s e ja o eco. O segundo e ix o c o rre sp o n d e à fo rm u la ç ã o de um

v e rd a d e iro " p e n s a m e n to do a c o n te c im e n to " - de m a n e ira m u ito

p ró x im a do que fa z D e le u z e na m esm a época -, is to é , à id é ia de um a

h is tó ria m enor fe ita d e u m a in fin id a d e d e tra ç o s s ile n c io s o s , d e n a rra tiv a s

d e v id a s m in ú s c u la s , de fra g m e n to s d e e x is tê n c ia s - donde o in te re s s e

d e F o u c a u lt p e lo s a rq u iv o s . O te rc e iro e ix o s e d e s e n v o lv e p re c is a m e n te

a p a rtir dos a rq u iv o s e in d u z F o u c a u lt a c o la b o ra r com um c e rto

n ú m e ro de h is to ria d o re , is to é, ao m esm o te m p o , a p ro b le m a tiz a r o

que d e v e ria ser a re la ç ã o e n tre a filo o fia e a h is tó ria (o u , m a is

e x a ta m e n te , e n tre a p rá tic a filo s ó fic a e a p rá tic a h is tó ric a ) um a vez

a íd o s da tra d ic io n a l d iv e rg ê n c ia filo o fia da h is tó ria /h is tó ria da

filo s o fia , e a in te rro g a r, d e m a n e ira c rític a , a e v o lu ç ã o d a h is to rio g ra fia

fra n c e sa desde os anos 60.


M ic h e l F o u c a u ll: c o n c e ito s e s s e n c ia is 59

** a v e rd a d e , p a re c e que o d is c u rs o de F o u c a u lt o s c ila e n tre duas

p o s iç õ e s : de um a p a rte , a h is tó ria não é um a d u ra ç ã o , m as "um a

m u ltip lic id a d e de d u ra ç õ e s que se e m a ra n h a m e se e n v o lv e m um as

nas o u tra s [ . . .] o e s tru tu ra lis m o e a h is tó ria p e rm ite m abandonar essa

g ra n d e m ito lo g ia b io ló g ic a da h is tó ria e d a d u ra ç ã o -9 " - o que re s u lta

em a firm a r que apenas um e n fo q u e que fa ç a jo g a r a c o n tin u id a d e das

s é rie s com o chave de le itu ra das d e s c o n tin u id a d e s c o n te m p la , na

v e rd a d e , "os a c o n te c im e n to s que, d e o u tro m odo, não a p a re c e ria m " ? " ,

O a c o n te c im e n to não é em si fo n te da d e s c o n tin u id a d e ; m as é o

c ru z a m e n to de um a h is tó ria s e ria I e d e um a h is tó ria a c o n te c i m e n ta l -

s é rie e a c o n te c im e n to não c o n s titu e m o fu n d a m e n to do tra b a lh o

h is tó ric o , m as seu re s u lta d o a p a rtir do tra ta m e n to de d o c u m e n to s e

a rq u iv o s - gue p e rm ite fa z e r e m e rg ir, ao mesmo tempo, d is p o s itiv o s e

p o n to s de ru p tu ra , p la n o s d e d is c u rs o e fa la s s in g u la re s , e s tra té g ia s de

poder e fo c o s de re si tê n c ia e tc . " A c o n te c im e n to : é p re c is o e n te n d ê -

10 não com o um a d e c is ã o , um tra ta d o , um re in o , ou um a b a ta lh a , m as

com o um a re la ç ã o de fo rç a s que s e in v e rte , um poder c o n fis c a d o , um

v o c a b u lá rio re to m a d o e v o lta d o c o n tra seus u tiliz a d o re s , um a

d o m in a ç ã o que se e n fra q u e c e , se a m p lia e se envenena e um a o u tra

que fa z sua e n tra d a , m a sc a ra d a "? ". Por o u tro la d o , essa re iv in d ic a ç ã o

de um a h is tó ria que fu n c io n a ria não com o a n á lis e do passado e da

d u ra ç ã o , m as com o ilu m in a ç ã o das tra n s fo rm a ç õ e s e do

a c o n te c im e n to s , d e fin e -s e por vezes com o um a v e rd a d e ira " h is tó ria

a c o n te c i m e n ta l" por m e io da re fe rê n c ia a um c e rto n ú m e ro de

79 R e v e n ir à l 'H i s t o i r e , In : Paidéia, n ° 1 1 , fe v e re iro de 1 9 7 2 . R e to m a d o em Dits et


Écrits, v o l . 2 , te x to n '' 1 0 3 . [ T r a d u ç ã o b ra s ile ira : R e to rn a r à h is tó ria . In : DiTOS e
Escritos, v o l . 11, p .2 9 3 - 2 9 4 1 .

R II R e v c n ir à l 'H i s t o i r e , o p . c it. n o ta 79.

RI N ic tz c h e , Ia g é n é a lo g ie , l 'h i s t o i r e , o p . c it. n o ta 65.


60 Judith RevelZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFED

h is to ria d o re s que e s tu d a ra m o c o tid ia n o , a s e n s ib ilid a d e , os a fe to s

(F o u c a u lt c ita v á ria s v e z e s L e R o y L a d u rie , A riê s e M a n d ro u ); e m esm o

se e le re c o n h e c e u na E s c o la dos A n n a le s - e, em p a rtic u la r, M a rc

B lo c h e d e p o is F e rn a n d B ra u d e l - o m é rito de te r m u ltip lic a d o as

d u ra ç õ e s e re d e fin id o o a c o n te c im e n to não com o um s e g m e n to de

te m p o , m as com o o p o n to d e in te rs e c ç ã o d e d u ra ç õ e s d ife re n te s , não

é m enos v e rd a d e que F o u c a u lt acabou por opor seu p ró p rio tra b a lh o

so b re o a rq u iv o à h is tó ria s o c ia l d a s c la s s ific a ç õ e s que c a ra c te riz a p a ra

e le u m a boa p a rte d a h is to rio g ra fia fra n c e sa desde os anos 6 0 : " E n tre

a h is tó ria s o c ia l e a s a n á lis e s fo rm a is do p e n s a m e n to , há um a v ia , u m a

p is ta - ta lv e z m u ito e s tre ita - a do h is to ria d o r do p e n s a r n e n t o 't '" . Éa


p o s s ib ilid a d e dessa " p is ta e s tre ita " que a lim e n ta rá o d e b a te se m p re

v iv o e n tre F o u c a u lt e o s h is to ria d o re s e q u e m o tiv a rá um a c o la b o ra ç ã o

o c a s io n a l com a lg u n s d e n tre e le s (d e s d e o g ru p o d e h is to ria d o re s que

tra b a lh o u no d o s s iê Pierre Riviere, a té A rle tte F a rg e e M ic h e lle P e rro t).

***0 te m a d a h is tó ria com o in te rro g a ç ã o so b re a s tra n s fo rm a ç õ e s

e s o b re o s a c o n te c im e n to s e s tá e s tre ita m e n te lig a d o à q u e le d a a tu a lid a d e .

e a h is tó ria não é m e m ó ria , m a s g e n e a lo g ia , e n tã o a a n á lis e h is tó ric a

não é , n a v e rd a d e , senão a c o n d iç ã o d e p o s s ib ilid a d e de um a o n to lo g ia

c rític a d o p re s e n te . E s s a p o s iç ã o d e v e , e n tre ta n to , e v ita r d o is o b s tá c u lo s

- que c o rre sp o n d e m , de fa to , às duas g ra n d e s o b je ç õ e s que fo ra m

fe ita s a F o u c a u lt d u ra n te s u a v id a , c o n c e rn e n te s à s u a re la ç ã o com a

h is tó ria -: a u tiliz a ç ã o de um a busca h is tó ric a não im p lic a um a

" id e o lo g ia do re to rn o " (F o u c a u lt não se ocupa d a é tic a g re c o -ro m a n a

a fim de dar um " m o d e lo a s e g u ir" que se tra ta ria de a tu a liz a r ) ,m a s

82 V e r i t é , p o u v o ir e s o i. In : Tecnhologies of the Self. A Seminar with M. Foucault.


M a s s a c h u s e tts , U .P ., 1 9 8 8 . [T ra d u ç ã o b ra s ile ira : V e rd a d e , Poder e si m esm o. In :
Ditos e Escritos, v o l. V , p . 2 9 5 ].
M ic h e l F o u c a u ll: c o n c e ilo s e s s e n c ia is 61

um a h is to ric iz a ç ã o de nosso p ró p rio o lh a r a partir do que nós não somos


mais; a h is tó ria deve nos p ro te g e r de um " h is to ric is m o que in v o c a o

passado p a ra re s o lv e r os p ro b le m a s do p r e s e n t e 't '" . É esse d u p lo

p ro b le m a que s e re e n c o n tra nos te x to s q u e F o u c a u lt c o n sa g ra , n o fim

d e s u a v id a , à a n á lis e do te x to "O que são as L uzes?", d e K a n t: tra ta -

se de se d e fe n d e r, ao m esm o te m p o , da acusação de a p o lo g ia do

passado e d e re la tiv is m o h is tó ric o , o que F o u c a u lt fa z e m p a rtic u la r

no d e b a te - in te rro m p id o p e la m o rte - com H a b e r r n a s '" .

83 E space, s a v o ir, p o u v o ir. E n tre tie n avec P . R a b in o w . In : Sky/ine, m a rç o de 1982.


R e to m a d o em Dits et Écrits, v o l. 4 , te x to n° 310.
84 NT: As c rític a s fo rm u la d a s por H a b e rm a s a F o u c a u lt e s tã o e x p re s as,
p rin c ip a lm e n te e m L a m o d e rn ité : u n p ro je c t in a c h e v é (Critique 1 9 8 1 , p . 9 5 0 - 9 6 7 )
e em U n e f1 é c h e d a n s le c o e u r d u te m p s p ré se n t (Critique, 1 9 8 6 , p . 7 9 4 - 9 ) .
62 Judith Revel

LoucuraVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
*0 te m a d a lo u c u ra e s tá , c e rta m e n te , n o c e n tro da Histôria da Loacura
q u e F o u c a u lt p u b lic a em 1 9 6 1 : tra ta -s e , com e fe ito , d e a n a lis a r a m a n e ira

p e la q u a l, n o s é c u lo À rv II, a c u ltu ra c lá s s ic a ro m p e u com a re p re s e n ta ç ã o

m e d ie v a l de um a lo u c u ra , ao m esm o te m p o , c irc u la n te (a fig u ra da

"nau d o s l o u c o s '') e c o n s id e ra d a com o o lu g a r im a g in á rio da passagem

(d o m undo ao trá s -m u n d o , d a v id a à m o rte , do ta n g ív e l ao se g re d o

e tc .) . Ao c o n trá rio , a id a d e c lá s s ic a d e fin e a lo u c u ra a p a rtir de um a

se p a ra ç ã o v e rtic a l e n tre a ra z ã o e a d e sra z ã o : e la a c o n s tiru i, p o rta n to ,

não m a is com o a q u e la zona in d e te rm in a d a que d a ria acesso à s fo rç a s

do d e s c o n h e c id o (a lo u c u ra com o um para além do sa b e r, is to é, ao

m esm o te m p o , com o am eaça e com o fa s c in a ç ã o ), m as com o o O u tro

da ra z ã o segundo o d is c u rs o da p ró p ria ra z ã o . A lo u c u ra com o

d e sra z ã o é a d e fin iç ã o p a ra d o x a l de um espaço g e rid o p e la ra z ã o no

in te rio r de seu p ró p rio cam po que e la re c o n h e c e com o o u tro .

** A n a rra tiv a dessa c is ã o fu n d a d o ra d e in c lu s ã o passa por um c e rto

n ú m e ro d e p ro c e d im e n to s e d e in s tiru iç õ e s que possuem um a h is tó ria .

O o b je tiv o d e F o u c a u lt nunca fo i, e n tre ta n to , o de fa z e r a h is tó ria do

e n c la u s u ra m e n to e do a s ilo , m a s do d is c u rs o que c o n s tiru i o s lo u c o s

com o o b je to s de saber - is to é, desse e s tra n h o la ç o e n tre ra z ã o e

d e sra z ã o que a u to riz a a p rim e ira a p ro d u z ir um d is c u rs o de saber

so b re a segunda. T ra ta -s e , por c o n s e q ü ê n c ia , d e fa z e r a n te s d e tu d o a

h is tó ria de um p o d e r: "o que e s ta v a im p lic a d o , a n te s de tu d o , nessas

re la ç õ e s de p o d e r, e ra o d ire ito a b s o lu to da n ã o -lo u c u ra so b re a

lo u c u ra . D ire ito tra n s c rito em te rm o s de c o m p e tê n c ia , e x e rc e n d o -se

so b re a ig n o râ n c ia , de bom senso, de acesso à re a lid a d e , c o rrig in d o os

e rro s (ilu s õ e s , a lu c in a ç õ e s , fa n ta s m a s ), d a n o rm a lid a d e , im p o n d o -s e à


M ic h e l F o u c a u lt: c o n c e ito s e s s e n c ia is 63

d e so rd e m e ao d e s v i o '" . E sse trip lo poder c o n s titu i a lo u c u ra com o

o b je to d e c o n h e c im e n to , e é por e ssa ra z ã o q u e é p re c i o e n tã o fa z e r

a h is tó ria d a s m o d ific a ç õ e s dos d i c u rso s so b re a lo u c u ra : do g ra n d e

e n c la u s u ra m e n to - in v e n ç ã o de um lu g a r in c lu s iv o d a e x c lu s ã o - à

a p a riç ã o de um a c iê n c ia m é d ic a da lo u c u ra (d a "doença m e n ta l" à


p s iq u ia tria c o n te m p o râ n e a ), F o u c a u lt fa z , n a v e rd a d e , a g e n e a lo g ia de

um a das fa c e s p o s s ív e is dessa fo rm a s in g u la r do p o d e r-sa b e r que é o

c o n h e c im e n to . C o m p re e n d e -se e n tã o p o rq u e o d is c u rs o d e F o u c a u lt

fo i ra p id a m e n te a s s o c ia d o à a n tip s iq u ia tria de L a in g e C o o p e r, de

B a s a g lia , o u - m a is ta rd ia m e n te - a o CBA
.A n ti-É d ip o , d e D e l e u z e e G u a tta ri,

is to é, aos d is c u rs o s que c ritic a m a lig a ç ã o e n tre c o n h e c im e n to /

a s s u je ita m e n to n a p rá tic a p s iq u iá tric a : "É p o s s ív e l q u e a p ro d u ç ã o da

v e rd a d e d a lo u c u ra possa s e e fe tu a r em fo rm a s que não s e ja m as de

re la ç ã o de c o n h e c i m e n t o ê 't '" . A le itu ra da h is tó ria d a lo u c u ra com o

h i tó ria d a c o n s titu iç ã o do p o d e r-sa b e r im p u ls io n a F o u c a u lt a u tiliz a r

a fig u ra do a s ilo com o p a ra d ig m a g e ra l da a n á lis e das re la ç õ e s de

poder n a s o c ie d a d e a té o c o m e ç o dos anos 70. A passagem p a ra um a

o u tra fo rm u la ç ã o do poder p e rm ite e n tã o c o m p re e n d e r o abandono

re la tiv o do te m a da lo u c u ra em p ro v e ito do te m a m a is g e ra l da

m e d ic a liz a ç ã o (o c o n tro le com o m e d ic in a s o c ia l): n ã o s o m e n te p o rq u e

no m o m e n to em que o e n c la u s u ra m e n to não dava a ver senão o

p a ra d o x o de um c o n h e c im e n to que jo g a c o n te m p o ra n e a m e n te com

a e x c lu s ã o (e s p a c ia l) e com a in c lu s ã o (d is c u rs iv a ), a fig u ra d o h o s p ita l

p e rm ite in te g ra r a m a n e ira p e la q u a l, a p a rtir do com eço do s é c u lo

X IX , o poder pas a a g e rir a v id a (so b a fo rm a d e b io p o d e re s ); m as

ta m b é m p o rq u e F o u c a u lt abandona um a concepção p u ra m e n te

8~ L e p o u v o ir p s y c h ia triq u e . I n : A n n u a ir e d u C o llê g e d e F r a n c e . C h a ir e d 'h is to ir e


des syst êm es de pensée . année 1 9 7 3 -1 9 7 4 . [T ra d u ç ã o b ra s ile ira : O poder
p s iq u iá tric o . In : R esum o d o s C u r s o s d o C o llê g e d e F r a n c e (/9 7 0 -/9 8 2 ). R io d e
J a n e iro : Jo rg e Z a h a r, 1997, p. 561.
86 L e p o u v o ir p s y c h ia triq u e , o p . c it. n o ta 8 5 .
64 Judith Revel

n e g a tiv a do poder ("P a re c e u -m e q u e , a p a rtir de um c e rto m o m e n to ,

e ra in s u fic ie n te , e is s o no c u rso de um a e x p e riê n c ia c o n c re ta que eu

pude fa z e r, a p a rtir dos anos 1 9 7 1 -1 9 7 2 , a p ro p ó s ito das p r i s õ e s '? " ) .

D as p e s q u is a s so b re a lo u c u ra às a n á lis e s dos m e c a n is m o s de

g o v e rn a m e n ta lid a d e , o que e s tá em jo g o , p o rta n to , é u rn a m udança

d e le itu ra d a s re la ç õ e s d e p o d e r.

* * * D u ra n te os anos 6 0 , o te m a d a lo u c u ra e s tá g e ra lm e n te c ru z a d o

com a q u e le da lite ra tu ra e, m a is g e ra lm e n te , com a q u e le da

irre d u tib ilid a d e de um c e rto tip o de fa la q u e é, em g e ra l, e n c a rn a d o

por trê s fig u ra s s u p e rp o s ta s : o lo u c o (H ô ld e rlin , e rv a l, ie rz s c h e ,

R o u s s e l, A rta u d ), o e s c rito r (S a d e , H ô ld e rlin , e rv a l, M a lla rm é , R o u s s e l,

B re to n , B a ta ille , B la n c h o t), o filó s o fo ( ie tz s c h e - e o p ró p rio

F o u c a u lt? ). " A lite ra tu ra p a re c e re e n c o n tra r sua vocação m a is p ro fu n d a

quando e la s e re te m p e ra n a fa la d a lo u c u ra . A m a is a lta fa la p o é tic a é

a q u e la de H ô ld e rlin , com o se a lite ra tu ra , p a ra chegar a se

e le s in s titu c io n a liz a r, p a ra to m a r to d a m e d id a d e s u a a n a rq u ia p o s s ív e l,

fo sse em c e rto s m o m e n to s o b rig a d a ou a im ita r a lo u c u ra ou, m a is

a in d a , a to rn a r-s e lite ra lm e n te l o u c a '? " . Na m a rg e m das a n á lis e s e la

história da loucura, a id é ia d e u m a fa la filo s ó fic a o u lite rá ria q u e e n c o n tra ria

n a lo u c u ra s u a irre d u tib ilid a d e à o re le m do d i c u rso não é s o m e n te o

re s íd u o fe n o m e n o ló g ic o de um a e x p e riê n c ia c ru c ia l ou a re to m a d a

e la e x p e riê n c ia do lim ite que s e e n c o n tra em B a ta ille : e la p e rm ite a

F o u c a u lt p ro b le m a tiz a r p e la p rim e ira v e z a id é ia d a re s is tê n c ia ao poder

- u m te m a q u e s e re e n c o n tra rá , n o s a n o s 7 0 , fo rm u la d o d ife re n te m e n te

n o q u a d ro das a n á lis e s p o lític a s sob a fo rm a de um d is c u rs o so b re a

p ro d u ç ã o de s u b je tiv id a d e com o d e s a s s u je ita m e n to , is to é , ta m b é m

sob a fo rm a de um a re la ç ã o é tic a com o si m esm o.

87 L e s ra p p o rts d e p o u v o ir passent à I 'i n t e r i e u r d e s c o rp s, o p . c it. n o ta 3 5 .


88 L a fo lie e t Ia s o c ie té . In : F o u c a u lt, M . e W a ta n a b e , M. Telsugaku no butai. T o k i o ,
1978. [T ra d u ç ã o b ra s ile ira : A lo u c u ra e a s o c ie d a d e . ln : Ditos e Escritos, v o l .l , p . 2 6 3 1 .
M ic h e l F o u c a u lr c o n c e ito s e s s e n c ia is 65

Norma
* o v o c a b u lá rio de F o u c a u lt, a noção de n o rm a e s tá lig a d a à q u e la

de " d is c ip lin a " . C om e fe ito , a s d is c ip lin a s são e tra n h a s a o d is c u rs o

ju ríd ic o d a le i, d a re g ra e n te n d id a com o e fe ito d a v o n ta d e so b e ra n a .

A re g ra d is c ip lin a r é, ao c o n trá rio , um a re g ra n a tu ra l: a n o rm a . As

d is c ip lin a s , e n tre o fim do é c u lo X V III e o in ic io do s é c u lo X IX ,

" d e fin irã o um c ó d ig o que não s e rá o d a le i m a s o d a n o rm a liz a ç ã o ;

re fe rir-s e -ã o a um h o riz o n te te ó ric o que não pode ser de m a n e ira

a lg u m a o e d ifíc io do d ire ito m as o d o m ín io d a s c iê n c ia s hum anas; a

s u a ju ris p ru d ê n c ia se rá a d e u m saber c l í n i c o 'P " .

** A n o rm a c o rre sp o n d e à a p a riç ã o de um b io -p o d e r, is to é , d e u m

poder o b re a v id a e das fo rm a s d e g o v e rn a m e n ta lid a d e que a e la

e s tã o lig a d a s : o m o d e lo ju ríd ic o da s o c ie d a d e , e la b o ra d o e n tre os

s é c u lo s À rv I! e X V III, ucum be a um m o d e lo m é d ic o , em s e n tid o

a m p lo , e a s s is te -s e a o n a s c im e n to d e u m a v e rd a d e ira " m e d ic in a s o c ia l"

que se ocupa de cam pos d e in te rv e n ç ã o que vão bem a lé m d o d o e n te

e da doença. O e s ta b e le c im e n to de um a p a re lh o de m e d ic a liz a ç ã o

c o le tiv a que g e re as " p o p u la ç õ e s " por m e io da in s titu iç ã o de

m e c a n is m o de a d m in is tra ç ã o m é d ic a , de c o n tro le da saúde, da

d e m o g ra fia , d a h ig ie n e o u d a a lim e n ta ç ã o , p e rm ite a p lic a r à s o c ie d a d e

to d a u m a d i tin ç ã o p e rm a n e n te e n tre o n o rm a l e o p a to ló g ic o e im p o r

um s is te m a d e n o rm a liz a ç ã o dos c o m p o rta m e n to s e d a s e x is tê n c ia s ,

d o s tra b a lh o s e d o s a fe to s : " P o r p e n s a m e n to m e d ic a liz a d o , e u e n te n d o

u m a m a n e ira d e p e rc e b e r a s c o is a s q u e s e o rg a n iz a e m to rn o d a n o rm a ,

89 C u rso de 1 4 d e ja n e iro de 1 9 7 6 . ln : Microfisica dei Potere: interventi politici.


T u rin , E in a u d i, 1 9 7 7 . [T ra d u ç ã o S o b e r a n i a e d i c i p l i n a . I n : Microfísica
b ra s ile ira :
do poder. R io d e J a n e iro : G ra a l, 1 9 8 5 , p .1 8 9 ] .
66 Judith RevelZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDC

is to é, que se p a ra o que é n o rm a l d a q u ilo que é a n o rm a l, o que não

c o in c id e e x a ta m e n te com a re p a rtiç ã o e n tre o lic ito e o ilíc ito ; o

p e n s a m e n to ju ríd ic o d is tin g u e o líc ito do ilíc ito , o p e n s a m e n to

m e d ic a liz a d o d is tin g u e o n o rm a l e o a n o rm a l; e le s e a trib u i os m e io s

d e c o rre ç ã o que não são e x a ta m e n te o s m e io s de p u n iç ã o , m as m e io s

de tra n s fo rm a ç ã o dos in d iv íd u o s , to d a um a te c n o lo g ia do

c o m p o rta m e n to do ser hum ano que e s tá lig a d a a e le s " ? " . A s d is c ip lin a s ,

a n o rm a liz a ç ã o por m e io da m e d ic a liz a ç ã o s o c ia l, a e m e rg ê n c ia de

um a s é rie de b io -p o d e re s que se a p lic a m ao m esm o te m p o aos

in d iv íd u o s em sua e x is tê n c ia s in g u la r e às p o p u la ç õ e s segundo o

p rin c íp io d a e c o n o m ia e d a g e s tã o p o lític a , e a a p a riç ã o d e te c n o lo g ia s

do c o m p o rta m e n to fo rm a m , p o rta n to , um a c o n fig u ra ç ã o do poder

que, segundo F o u c a u lt, é a in d a a nossa no fim do s é c u lo XX.

***0 p ro b le m a da pas agem do s is te m a ju ríd ic o da s o b e ra n ia ao

da n o rm a liz a ç ã o d is c ip lin a r não é s im p le s : "O s d e s e n v o lv im e n to s da

m e d ic in a , a m e d ic a liz a ç ã o g e ra l do c o m p o rta m e n to , dos d is c u rs o s ,

do d e s e jo e tc . se dão onde os d o is p la n o s h e te ro g ê n e o s da d is c ip lin a

e da s o b e ra n ia se e n c o n t r a m " ? '. P a ra a lé m das a n á lis e s h is tó ric a s ,

p rin c ip a lm e n te c o n c e n tra d a s nos c u rso s do Col/ége de France do fin a l

dos anos 70, o d e s lo c a m e n to do d ire ito p a ra a m e d ic in a é um te m a

ao qual F o u c a u lt a s s in a la , in ú m e ra s vezes, a a tu a lid a d e a b s o lu ta . A

q u e s tã o p a re c e , e n tã o , não m a is s e r a q u e la da h is tó ria do n a s c im e n to

d a m e d ic in a s o c ia l, m a s a q u e la d a s m o d a lid a d e s p re s e n te d e re s is tê n c ia

à n o rm a : com o lu ta r c o n tra a n o rm a tiz a ç ã o sem com is s o re to m a r

um a concepção so b e ra n a de p o d e r? P o d e -se ao m esm o te m p o ser

a n ti-d is c ip lin a r e a n ti-s o b e ra n o ?

90 L e p o u v o ir, u n e b ê te m a g n ifiq u e . l n : Quadernos para el dialogo, n " 2 3 8 , n o v e m b ro

de 1 9 7 7 . R e to m a d o em Dits et Écrits, v o l . 3 , t e x t o n ° 2 1 2 .
91 C u rso de 14 d e ja n e iro de 1 9 7 6 , o p . c ir. n o ta 89.
M ic h e l F o u c a u lt: c o n c e ito s e s s e n c ia is 67

Poder
* F o u c a u lt nunca tra ta do poder com o u m a e n tid a d e c o e re n te , u n itá ria

e e s tá v e l, ma d e " re la ç õ e s d e p o d e r" que supõem c o n d iç õ e s h is tó ric a s

de e m e rg ê n c ia c o m p le x a s e que im p lic a m e fe ito s m ú ltip lo s ,

c o m p re e n d id o s fo ra do que a a n á lis e filo s ó fic a id e n tific a

tra d ic io n a lm e n te com o o cam po d o p o d e r. A in d a que F o u c a u lt p a re ç a

por vezes te r q u e s tio n a d o a im p o rtâ n c ia do te m a do poder em seu

tra b a lh o (" ão é , p o rta n to , o p o d e r, m as o s u je ito que c o n s titu i o

te m a g e ra l de m in h a p e s q u is a " :" ), suas a n á lis e s e fe tu a m d o is

d e s lo c a m e n to s n o tá v e is : se é v e rd a d e que não há poder que não s e ja

e x e rc id o por u n s so b re o s o u tro s - "os uns" e " o s o u tro s " n ã o e s ta n d o

nunca fix a d o s num p a p e l, m as s u c e s s iv a , e a té s im u lta n e a m e n te ,

in s e rid o s em cada um dos p ó lo s da re la ç ã o -, e n tã o um a g e n e a lo g ia

do poder é in d is s o c iá v e l de um a h is tó ria d a s u b je tiv id a d e ; se o poder

não e x is te senão em a to , e n tã o é à q u e s tã o do "com o" q u e e le re to m a

p a ra a n a li a r s u a s m o d a lid a d e s d e e x e rc íc io , is to é , ta n to à e m e rg ê n c ia

h is tó ric a de seus m odos d e a p lic a ç ã o q u a n to a o s in s tru m e n to s q u e e le

se dá, os cam pos onde e le in te rv é m , a re d e que e le desenha e os

e fe ito s que e le im p lic a num a época dada. Em nenhum caso, tra ta -s e ,

por c o n s e q ü ê n c ia , de d e sc re v e r um p rin c íp io de poder p rim e iro e

fu n d a m e n ta l, ma um a g e n c ia m e n to no q u a l se c ru z a m a s p rá tic a s , os

sa b e re s e a s in s titu iç õ e s , e no qual o tip o d e o b je tiv o p e rs e g u id o não

se re d u z s o m e n te à d o m in a ç ã o , p o is não p e rte n c e a n in g u é m e v a ria

e le m e mo na h is tó ria .

** a n á lis e do poder e x ig e que s e fix e u m c e rto n ú m e ro d e p o n to s :

1) o s is te m a das d ife re n c ia ç õ e s que p e rm ite a g ir so b re a ação dos

o u tro s , e que é, ao m esm o te m p o , a c o n d iç ã o d e e m e rg ê n c ia e e fe ito

de re la ç õ e s de poder (d ife re n ç a ju ríd ic a de e s ta tu to e de p riv ilé g io s ,

92 Le s u je t ct le p o u v o ir, op. c it. n o ta 27.


68 Judith RevelZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFED

d ife re n ç a e c o n ô m ic a na a p ro p ria ç ã o d a riq u e z a , d ife re n ç a d e lu g a r n o

p ro c e sso p ro d u tiv o , d ife re n ç a lin g ü is tic a o u c u ltu ra l, d ife re n ç a d e sa b e r-

fa z e r ou c o m p e tê n c ia . . .) ; 2 ) o o b je tiv o dessa ação so b re a ação dos

o u tro s (m a n u te n ç ã o d e p riv ilé g io s , a c u m u la ç ã o d e p ro v e ito s , e x e rc íc io

d e u m a f u n ç ã o . . .) ; 3 ) a s m o d a l i d a d e s in s tru m e n ta is do poder (a s a rm a s,

o d is c u rs o , a s d is p a rid a d e s e c o n ô m ic a s , os m e c a n is m o s de c o n tro le ,

o s s i s t e m a s d e v i g i l â n c i a . . .) ; 4 ) a s f o r m a s d e in s titu c io n a liz a ç ã o do poder

(e s tru tu ra s ju ríd ic a s , fe n ô m e n o s de h á b ito , lu g a re s e s p e c ífic o s que

possuem um re g u la m e n to e um a h ie ra rq u ia p ró p rio s , s is te m a s

c o m p le x o s com o a q u e le do E s ta d o . . .) ; 5 ) o g ra u de ra c io n a liz a ç ã o ,

em fu n ç ã o de a lg u n s in d ic a d o re s (e fic á c ia dos in s tru m e n to s , c e rte z a

d o re s u lta d o , c u s to e c o n ô m ic o e p o l í t i c o . . .) . C a r a c t e r i z a n d o a s re la ç õ e s

de poder com o m odos de ação c o m p le x o s so b re a ação dos o u tro s ,

F o u c a u lt in c lu i na sua d e s c riç ã o a lib e rd a d e , na m e d id a em que o

poder não se e x e rc e senão so b re s u je ito s - in d iv id u a is ou c o le tiv o s -

"que tê m d ia n te de si um cam po de p o s s ib ilid a d e onde d iv e rs a s

c o n d u ta s [. . .] podem a c o n te c e r. ão há re la ç ã o de poder onde as

d e te rm in a ç õ e s e tã o s a t u r a d a s 't '" . A a n á lis e fo u c a u ltia n a d e s tró i,

p o rta n to , a id é ia de um p a ra d o x o /c o n tra d iç ã o e n tre o poder e a

lib e rd a d e : é p re c is a m e n te to rn a n d o -o s in d i s o c iá v e is q u e F o u c a u lt pode

re c o n h e c e r no poder um papel não s o m e n te re p re s s iv o , m a s p ro d u tiv o

(e fe ito s de v e rd a d e , de s u b je tiv id a d e , de lu ta s ), e que e le pode,

in v e rs a m e n te , e n ra iz a r o s fe n ô m e n o s d e re s is tê n c ia n o p ró p rio in te rio r

do poder q u e e le s b u s c a m c o n te s ta r, e não num im p ro v á v e l " e x te rio r" .

*** A g e n e a lo g ia do poder desenhada p o r F o u c a u lt p o s s u i, ao m esm o

te m p o , c o n s ta n te s e v a riá v e is . S e , a p a rtir d e P ia tã o , to d o o p e n s a m e n to

o c id e n ta l concebe que há um a a n tin o m ia e n tre saber e poder ("o n d e

saber e c iê n c ia s e e n c o n tra m na sua v e rd a d e p u ra , não pode a í m a is

e x is tir poder p o lític o " ? " ), F o u c a u lt, na e s te ira de ie tz s c h e , v a i, ao

93 L e s u je t e t le p o u v o ir, o p . c it. n o ta 2 7 .
94 L e v é rité e t le s fo rm e s ju rid iq u e s , o p . c it. n o ta 2 8 .
M ic h e l F o u c a u lt: c o n c e ito s e s s e n c ia is 69

c o n trá rio , buscar d is s o lv e r esse mito e re c o n s tru ir a m a n e ira p e la q u a l,

a cada época, o poder p o lític o tra m o u com o sa b e r: a m a n e ira p e la

qual e le fa z n a sc e re m e fe ito s de v e rd a d e e , in v e rs a m e n te , a m a n e ira

p e la q u a l o s jo g o s d e v e rd a d e fa z e m d e u m a p rá tic a ou de um d is c u rs o

um lu g a r de p o d e r. M as se, na Id a d e M é d ia , o poder fu n c io n a ,

p rio rita ria m e n te , p o r m e io d o re c o n h e c im e n to d o s s ig n o s d e fid e lid a d e

e da a m o s tra dos bens, a p a rtir dos s é c u lo s XVI e X V II, e le v a i s e

o rg a n iz a r a p a rtir da id é ia de p ro d u ç ã o e de p re s ta ç ã o . O b te r dos

in d iv íd u o s p re s ta ç õ e s p ro d u tiv a s , is s o s ig n ific a , a n te s d e tu d o , u ltra p a s s a r

o q u a d ro ju ríd ic o tra d ic io n a l do poder - a q u e le da s o b e ra n ia - p a ra

in te g ra r o c o rp o do in d iv íd u o s , s e u s g e s to s , s u a p ró p ria v id a - o que

F o u c a u lt d e sc re v e rá com o o n a s c im e n to d a s " d is c ip lin a s " , is to é , c o m o

um tip o de g o v e rn a m e n ta lid a d e c u ja ra c io n a lid a d e é, de fa to , um a

e c o n o m ia p o lític a . E ssa d is c ip lin a riz a ç ã o so fre , por seu tu rn o , um a

m o d ific a ç ã o , na m e d id a em que o g o v e rn o dos in d iv íd u o s é

c o m p le ta d o por um c o n tro le das " p o p u la ç õ e s " , por m e io de um a

s é rie d e " b io p o d e re s " q u e a d m in is tra m a v id a (a h ig ie n e , a s e x u a lid a d e ,

a d e m o g ra fia . . .) d e m a n e i r a g lo b a l a fim d e p e rm itir u m a m a x irn iz a ç ã o

da re p ro d u ç ã o do v a lo r (isto é, um a g e s tã o m enos d is p e n d io s a da

p ro d u ç ã o ). " H a v e ria , p o rta n to , um e s q u e m a tis m o a ser e v ita d o [. . .]

que c o n s is te em lo c a liz a r o poder no a p a re lh o d e E s ta d o e em fa z e r

d o a p a re lh o d e E s ta d o o in s tru m e n to p riv ile g ia d o , c a p ita l, m a io r, q u a s e

único do poder de um a c la s s e so b re um a o u tra c la s s e ? " : d o m e s m o

m odo que o m o d e lo ju ríd ic o da s o b e ra n ia não p e rm ite c o n s id e ra r a

e m e rg ê n c ia de um a e c o n o m ia p o lític a , a c rític a p o lític a do E s ta d o

não p e rm ite e v id e n c ia r a c irc u la ç ã o do poder no c o rp o s o c ia l in te iro

e na d iv e rs id a d e de suas a p lic a ç õ e s , is to é, a v a ria b ilid a d e dos

fe n ô m e n o s d e a s s u je ita m e n to e , p a ra d o x a lm e n te , d e s u b je tiv a ç ã o aos

q u a is e la d á lu g a r.

9' Q u e s tio n s à M ic h e l F o u c a u lt sur Ia G é o g ra p h ie . In : Hérodote, n O I , 1 9 7 6 . [ T r a d u ç ã o


b ra ile ira : P e rg u n ta s a M ic h e l F o u c a u lt so b re G e o g ra fia . I n : Ditos e Escritos, v o l.lV .

p .1 8 3 - 1 8 4 ] .
70 Judirh Revel

ProblematizaçãoZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
* os ú ltim o s d o is anos de sua v id a , F o u c a u lt u tiliz a cada vez m a is

fre q ü e n te m e n te o te rm o " p ro b le m a tiz a ç ã o " p a ra d e fin ir s u a p e s q u is a .

P o r " p ro b le m a tiz a ç ã o " , e le n ã o e n te n d e a re -a p re s e n ta ç ã o de um o b je to

p ré -e x is te n te , nem a c ria ç ã o por m e io do d is c u rs o de um o b je to que

n ã o e x is te , m a s " o c o n ju n to d a s p rá tic a s d is c u rs iv a s o u n ã o -d is c u rs iv a s

que fa z q u a lq u e r c o is a e n tra r no jo g o do v e rd a d e iro e do fa ls o e a

c o n s titu i com o o b je to p a ra o p e n s a m e n to (s e ja s o b a fo rm a d a re fle x ã o

m o ra l, d o c o n h e c im e n to c ie n tífic o , d a a n á lis e p o lític a e tc .) " ? " , A h is tó r ia

do p e n s a m e n to s e in te re s s a , p o rta n to , por o b je to s , re g ra s de ação ou

m odos d e re la ç ã o d e s i, n a m e d id a em que e la o s p ro b le m a tiz a : e la s e

in te rro g a so b re sua fo rm a h is to ric a m e n te s in g u la r e so b re a m a n e ira

p e la qual e le s a p re s e n ta ra m num a dada época um c e rto tip o de

re s p o s ta a um c e rto tip o de p ro b le m a .

* * F o u c a u lt re c o rre u à noção de p ro b le m a tiz a ç ã o p a ra d is tin g u ir

ra d ic a lm e n te a h is tó ria do p e n s a m e n to ta n to da h is tó ria das id é ia s

q u a n to da h is tó ria das m e n ta lid a d e s . E n q u a n to a h is tó ria das id é ia s

in te re s s a -s e p e la a n á lis e dos s is te m a s de re p re s e n ta ç ã o que s u b ja z e m

aos d is c u rs o e aos c o m p o rta m e n to s , e a h is tó ria das m e n ta lid a d e s

in te re s s a -s e p e la a n á lis e d a s a titu d e s e dos esquem as d e c o m p o rta m e n to ,

a h is tó ria do p e n s a m e n to p re o c u p a -se com a m a n e ira p e la qual se

c n s titu e m p ro b le m a s p a ra o p e n s a m e n to e q u a is e s tra té g ia s são

d e s e n v o lv id a p a ra re s p o n d ê -lo s : com e fe ito , " v á ria s re s p o s ta s podem

er dadas p a ra um m esm o c o n ju n to de d ific u ld a d e s . a m a io r p a rte

96 L e s o u c i d e Ia v é rité . In : Magazine Littéraire, n? 207, m ai 1 9 8 4 . R e to m a d o em

Dits et Écrits, v o l 4 , te x te n " 3 5 0 . [T ra d u ç ã o b ra s ile ira : O c u id a d o com a v e rd a d e .

l n : Ditos e Escritos, v o l. V , p . 2 4 1 J.
do te m p o , d iv e rs a s re s p o s ta s são e fe tiv a m e n te p ro p o s ta s . O ra , o que

é p re c is o c o m p re e n d e r é a q u ilo q u e a to rn a s im u lta n e a m e n te p o s s ív e is ;

é o p o n to no qual s e o rig in a sua s im u lta n e id a d e ; é o s o lo que pode

n u trir um as e o u tra s , em s u a d iv e rs id a d e e , ta lv e z , a d e s p e ito de suas

c o n t r a d i ç õ e s 't '" O tra b a lh o de F o u c a u lt é , a s s im , re fo rm u la d o nos

te rm o s de um a p e s q u is a so b re a fo rm a g e ra l d a p ro b le m a tiz a ç ã o que

c o rre sp o n d e a um a época dada: "o e s tu d o dos m odos de

p ro b le m a tiz a ç ã o - o u s e ja , d o q u e n ã o é c o n s ta n te a n tro p o ló g ic a nem

v a ria ç ã o c ro n o ló g ic a - é , p o rta n to , a m a n e ira d e a n a lis a r, e m s u a fo rm a

h i to ric a m e n te s in g u la r, a s q u e s tõ e s d e a lc a n c e g e ra l" 9 K .

***0 te rm o p ro b le m a tiz a ç ã o im p lic a duas c o n s e q ü ê n c ia s . De um

la d o , o v e rd a d e iro e x e rc íc io c rític o d o p e n s a m e n to se opõe à id é ia d e

um a busca m e tó d ic a d a " s o lu ç ã o " : a ta re fa d a filo s o fia n ã o é , p o rta n to ,

a d e re s o lv e r - in c lu a -s e : s u b s titu ir um a s o lu ç ã o por um a o u tra - m as

a de " p ro b le m a tiz a r" , não a de re fo rm a r m as a de in s ta u ra r um a

d is tâ n c ia c rític a , de "d e sp re n d e r-se ", de re to m a r os p ro b le m a s . De

o u tro la d o , e s s e e s fo rç o d e p ro b le m a tiz a ç ã o n ã o é , d e m a n e ira a lg u m a ,

um a n ti-re fo rrn is m o ou um p e s s im is m o re la tiv is ta : ao m esm o te m p o

p o rq u e e le d e s ta c a um a re a l lig a ç ã o com o p rin c íp io p a ra o qual o

hom em é um s e r p e n s a n te - de fa to , o te rm o " p ro b le m a tiz a ç ã o " é

p a rtic u la rm e n te e m p re g a d o n o c o m e n tá rio do te x to de K ant so b re a

q u e s tã o do Ilu m in is m o - e p o rq u e "o yue p ro c u ro fa z e r é a h is tó ria

d a s re la ç õ e s que o p e n s a m e n to m a n té m com a v e rd a d e ; a h is tó ria do

p e n s a m e n to , um a vez que e la é p e n s a m e n to so b re a v e rd a d e . Todos

a q u e le s que d iz e m que p a ra m im a v e rd a d e não e x is te são m e n te s

s irn p lis ta s " ? " ,

91 P o lé m iq u e , p o litiq u e e t p ro b lé m a tis a tio n . In : R a b in o w , P. The Foucault Reader.


N ew Y o rk : P a n th e o n B ooks, 1984. [T ra d u ç ã o b ra s ile ira : P o lê m ic a , P o lític a e
P ro b le m a tiz a ç õ e s . In : Ditos e Escritos, v o l . V , p .2 3 2 ] .
98 W h a t 's e n lig h te n m e n t? , o p . c it. n o ta 6 .
99 L e s o u c i d e Ia v é rité , o p . c it. n o ta 9 6 .
72
Judith Revel

Razão / Racionalidade
* te rm o ra z ã o a p a re c e in ic ia lm e n te em F o u c a u lt com o um dos

d o is e le m e n to s da re p a rtiç ã o ra z ã o /d e s ra z ã o que e s tá no c e n tro da

c u ltu ra o c id e n ta l: e n q u a n to o Logos g re g o não te m c o n trá rio , a ra z ã o

não e x is te sem sua negação, is to é, sem a e x is tê n c ia do que, por

d ife re n ç a , a fa z se r. ão é , p o rta n to , a ra z ã o que é o rig in á ria , m as

a n te s a c e s u ra q u e lh e p e rm ite e x is tir: e é a p a rtir d e s s a d iv is ã o e n tre a

ra z ã o e a n ã o -ra z ã o q u e F o u c a u lt bu c a fa z e r a h is tó ria d e u m m o m e n to

m u ito p re c is o de nossa c u ltu ra - quando a ra z ã o busca a p o d e ra r-se

d a n ã o -ra z ã o p a ra lh e a rra n c a r su a v e rd a d e , is to é , p a ra d e sd o b ra r, o

q u e e la p a re c e , e n tre ta n to , e x c lu ir, a s m a lh a s de seu poder sob a trip la

fo rm a de d is c u rs o s de sa b e r, de in s titu iç õ e s e de p rá tic a s . E x is te ,

p o rta n to , um m o m e n to em q u e a re p a rtiç ã o fu n d a d o ra e n tre a ra z ã o

e a n ã o -ra z ã o to m a a fo rm a d a ra c io n a lid a d e , e F o u c a u lt c o n sa g ra sua

p e s q u is a à c o m p re e n sã o d a a p lic a ç ã o d e s s a ra c io n a lid a d e e m d ife re n te s

cam pos - a lo u c u ra , a doença, a d e lin q ü ê n c ia , a e c o n o m ia p o litic a - e

ao tip o de poder a í im p lic a d o .

**0 m o m e n to em que a c e su ra ra z ã o /n ã o -ra z ã o to m a a fo rm a de

um a h e g e m o n ia da ra c io n a lid a d e c o rre sp o n d e ao s é c u lo X V II

o c id e n ta l, is to é , à id a d e c lá s s ic a . E s s a ra c io n a liz a ç ã o te m d ife re n te s

fa c e s : u m a ra c io n a lid a d e c ie n tífic a e té c n ic a q u e s e to rn a c a d a v e z m a is

im p o rta n te no d e s e n v o lv im e n to das fo rç a s p ro d u tiv a s e no jo g o das

d e c is õ e s p o litic a s ; um a ra c io n a lid a d e de E s ta d o que im p õ e fo rm a s

d e g o v e rn a m e n ta lid a d e e p ro c e d im e n to s d e c o n tro le c o m p le x o ; um a

ra c io n a lid a d e do c o m p o rta m e n to que fix a a m e d id a s o c ia l d a n o rm a

e do d e s v io e tc , H is to ric iz a n d o as tra n s fo rm a ç õ e s da ra c io n a lid a d e


M ic h e l F o u c a u lt: c o n c e ito s e s s e n c ia is 73

m o d e rn a , F o u c a u lt a d is tin g u e c u id a d o s a m e n te d a ra z ã o , já q u e a

c o n fu sã o r a z ã o /r a c io n a lid a d e é p r e c is a m e n te um dos m e c a n is m o s

de poder q u e s e tr a ta d e d e s c r e v e r ; e é n e ssa c o n fu sã o , c u id a d o s a m e n te

s u s te n ta d a p e lo p o d e r, q u e s e e n r a íz a a id é ia d e u m a " r a z ã o com o lu z

d e s p ó tic a " I 00, n a m e d id a e m q u e " a lig a ç ã o e n tr e a r a c io n a liz a ç ã o e os

abusos de poder p o litic o é e v id e n te '" ? '. H á, p o r ta n to , um a h is tó r ia

c r ític a d a ra z ã o q u e é a h is tó r ia d a tr a n s f o r m a ç ã o d a s r a c io n a lid a d e s e

não a h is tó r ia do a to fu n d a d o r por m e io do qual a ra z ã o na sua

e s ê n c ia te r ia s id o d e s c o b e r ta : " d if e r e n te s in s ta u r a ç õ e s , d if e r e n te s

c r ia ç õ e s , d if e r e n te s m o d if ic a ç õ e s p e la s q u a is a s r a c io n a lid a d e s se

e n g e n d ra m um as às o u tr a s , se opõem e se p e rse g u e m um as às

o u tr a s " I02.

*** A r e f e r ê n c ia a o te x to k a n tia n o s o b r e a s L u z e s HGFEDCBA


( W a s is t A IIJ k là r u n g ? )

im p u ls io n a , e n tr e ta n to , F o u c a u lt a r e f o r m u la r o p r o b le m a d a ra z ã o ,

le v a n ta n d o a h ip ó te s e de um uso a u tô n o m o , m a d u ro e c r ític o da

ra z ã o : é re c u p e ra n d o a h e ra n ç a das L uzes q u e se p o d e rá ta lv e z u tiliz a r

um a ra z ã o "que só te m e f e ito d e lib e r ta ç ã o desde que e la c o n s ig a

lib e r ta r - s e de i m e s m a 'T " .

I O O I n tr o d u ç ã o a C a n g u ilh e m ,G O n lh e N o r m a l a n d lh e P a th o lo g ic a l, o p .c it, n o ta 16.


101 P r e f á c io à segunda e d iç ã o d o liv r o d e J . V e r g ê s , D e I a s t r a t é g i e j u d i c i a i r e . P a r is :
É d itio n s d e M in u it, 1 9 8 1 . R e to m a d o e m D i t s e t É c r i t s , v o l. 4 , te x to n O 2 9 0 .
102 S tr u c tu r a lis m e e t p o s t- s tr u c tu r a lis r n e . I n : T e l a s . v o l. X V I , n ° 5 5 , 1 9 8 3 . R e to m a d o
e m D i t s e t É c r i t s , v o l. 4 , te x to n ? 3 3 0 . [ T r a d u ç ã o b r a ile ir a : E s tr u tu r a lis m o e pós-
e s tr u tu r a lis m o . In : D ito s e E s c r ito s , v o l. I l, p . 3 1 7 - 3 1 8 ] .
103

n° °
L a v i e , I 'e x p é r ie n c e ,

D ito s
I: C a n g u ilh e m ,
e E s c r ito s ,
I a s c ie n c e .ln :
1 9 8 5 . [T ra d u ç ã o
v o l. T I , p . 3 5 7 ] .
R e v u e d e m é ta p h y s iq u e

b r a s ile ir a :
e t d e m o r a le . A n o 9 0 ,

A v id a : a e x p e r iê n c ia e a c iê n c ia . I n :
74 Judith Revel

Resistência I TransgressãoVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
*0 te rm o " re s is tê n c ia " é p re c e d id o , nos tra b a lh o s de F o u c a u lt, por

um c e rto n ú m e ro de o u tra s noções e n c a rre g a d a s de e x p rim ir um a

c e rta e x te rio rid a d e - se m p re p ro v is ó ria - no s is te m a de s a b e r/p o d e r

d e s c rito em o u tro s a u to re s : é o caso d a " tra n s g re s s ã o " (q u e F o u c a u lt

e m p re s ta de B a ta ille ) e do " e x te rio r" (q u e F o u c a u lt e m p re s ta de

B la n c h o t) nos anos 6 0 . T a n to num caso com o no o u tro , tra ta -s e de

d e sc re v e r a m a n e ira p e la qual o in d iv id u o s in g u la r, por m e io de um

p ro c e d im e n to gue é, em g e ra l, de e s c ritu ra (o rig e m do in te re s s e de

F o u c a u lt por R aym ond R o u s s e l, p o r J e a n -P ie rre B ris s e t ou por P ie rre

R iv iê re ), c o n s e g u iu , de m a n e ira v o lu n tá ria ou fo rtu ita , "e sc a p a r" dos

d is p o s itiv o s de id e n tific a ç ã o , de c la s s ific a ç ã o e de n o rm a liz a ç ã o do

d is c u rs o . a m e d id a em gue não há saber p o s s ív e l so b re o b je to s

im p o s s ív e is , e s s e s c a s o s lite rá rio s " e s o té ric o s " , p o r m e io d a m o b iliz a ç ã o

de um c e rto n ú m e ro d e p ro c e d im e n to s lin g ü is tic o s , re p re s e n ta m , num

p rim e iro m o m e n to , p a ra F o u c a u lt, a im p o s s ib lid a d e da o b je tiv a ç ã o

n o rm a tiv a . O abandono, ao m esm o te m p o , d a lite ra tu ra com o cam po

p riv ile g ia d o e da noção m esm a de tra n s g re s s ã o c o rre sp o n d e , no

e n ta n to , à e x ig ê n c ia de c o lo c a r o p ro b le m a de m a n e ira g e ra l (is to é,

ig u a lm e n te p a ra a s p rá tic a s n ã o -d is c u r iv a s ) e n ã o s o m e n te no n ív e l d a

ação in d iv id u a l, m as em fu n ç ã o da ação c o le tiv a . O te rm o re s is tê n c ia

a p a re c e , e n tã o , a p a rtir dos anos 70 c o m um s e n tid o b a s ta n te d ife re n te

d a q u e le g u e tin h a a " tra n s g re s s ã o " : a re s is tê n c ia s e d á , n e c e s s a ria m e n te ,

onde h á p o d e r, p o rg u e e la é in s e p a rá v e l d a s re la ç õ e s d e p o d e r; a s s im ,

ta n to a re s is tê n c ia fu n d a a s re la ç õ e s d e p o d e r, g u a n to e la é , à s v e z e s , o

re s u lta d o dessas re la ç õ e s ; na m e d id a em gue as re la ç õ e s de poder

e s tã o em to d o lu g a r, a re s is tê n c ia é a p o s s ib ilid a d e d e c ria r espaços de

lu ta s e d e a g e n c ia r p o s s ib ilid a d e s de tra n s fo rm a ç ã o em to d a p a rte . A


M ic h e l E o u c a u l!' c o n c e ito s e s s e n c ia is 75

a n á lis e d o s v ín c u lo s e n tre a s re la ç õ e s de poder e o s fo c o s d e re s is tê n c ia

é re a liz a d a por F o u c a u lt em te rm o s de e tra té g ia e de tá tic a : cada

m o v im e n to de um se rv e d e p o n to d e a p o io p a ra u m a c o n tra -o fe n s iv a

do o u tro .

** A lig a ç ã o e n tre a s re la ç õ e s de poder e a s e s tra té g ia s d e re s is tê n c ia

não é s im p le s m e n te re d u tív e l a um esquem a d ia lé tic o (c o m o e ra o

ca o, por m a is que F o u c a u lt te n h a re c u sa d o is s o na época, do par

lim ite /p a sagem que fu n d a v a a noção de t r a n s g r e s s ã o '? ') , p o rq u e a

d e s c riç ã o do poder to rn o u -s e m a is c o m p le x a . F o u c a u lt in s is te , p o rta n to ,

e m trê s p o n to s : a ) a re s is tê n c ia n ã o é " a n te rio r a o p o d e r q u e e la e n fre n ta .

E la é c o e x te n s iv a a e le e a b s o lu ta m e n te c o n t e r n p o r â n e a 't ''" : is s o s ig n ific a

que não h á a n te rio rid a d e ló g ic a o u c ro n o ló g ic a d a re s is tê n c ia - o par

re s is tê n c ia /p o d e r não é o p a r lib e rd a d e /d o m in a ç ã o -; b ) a re s is tê n c ia

deve a p re s e n ta r as m esm as c a ra c te ris tic a s q u e o p o d e r: " tã o in v e n tiv a ,

tã o m ó v e l, tã o p ro d u tiv a g u a n to e l e [...] c o m o e le , e la s e o rg a n iz a , se

c o n s o lid a l...
] com o e le , e la vem de 'b a i x o ' e se d is trib u i

e s t r a t e g i c a m e n t e 't 'P ': a re s is tê n c ia não vem , p o rta n to , do e x te rio r do

p o d e r, e la re a lm e n te s e a s s e m e lh a a e le p o r a s s u m ir a s s u a s c a ra c te rís tic a s

- o que não guer d iz e r que e la não s e ja p o s s ív e l; c ) a s re is tê n c ia s

podem , por sua vez, fu n d a r novas re la ç õ e s de p o d e r, ta n to q u a n to

novas re la ç õ e s de poder podem , in v e rs a m e n te , s u s c ita r a in v e n ç ã o de

novas fo rm a s de re s is tê n c ia : " E la s c o n s titu e m re c ip ro c a m e n te um a

e s p é c ie d e lim ite p e rm a n e n te , d e p o n to d e in v e rs ã o p o s s ív e l [...] D e

104 V e r a re s p e ito desse a s s u n to o te x to P ré fa c e à Ia tra n s g re s s io n . In : Critique n"


1 9 5 -1 9 6 : H om m age à G e o rg e s B a ta ille , 1 9 6 3 . [T ra d u ç ã o b ra s ile ira : P re fá c io à

tra n s g re s s ã o . In : Ditos e Escritos, v o l .I J I , p . 2 8 - 4 6 J .


IOS N on au sexe r o i . I n : Le Nouvel Observateur, n " 6 4 4 , m a rç o 1 9 7 7 . R e to m a d o em
Dits et Écrits, v o l 3 , t e x t e n ? 2 0 0 . [ T r a d u ç ã o b r a s i l e i r a : N ã o a o s e x o r e i .l n : Microfisica
do Poder, R io d e J a n e iro : G ra a l, 1 9 9 9 , p . 2 4 1 ].
106 N o n a u s c x e ro i, o p . c it. n o ta 105.
76 Judith RevelNMLKJIHGFEDCBA

fa to , e n tre re la ç õ e s de poder e e s tra té g ia d e lu ta h á a tra ç ã o re c ip ro c a ,

e n c a d e a m e n to in d e fin id o e in v e rs ã o p e rp é tu a " 107. A d e s c riç ã o de

F o u c a u lt dessa " re c ip ro c id a d e " in d is s o lú v e l não é re d u tív e l a um

m o d e lo s im p lis ta no in te rio r do qual o poder s e ria in te ira m e n te

c o n s id e ra d o n e g a tiv o e a s lu ta s com o te n ta tiv a s de lib e ra ç ã o : não

s o m e n te o p o d e r, ao p ro d u z ir e fe ito s d e v e rd a d e , é p o s itiv o , m as as

re la ç õ e s de poder s o m e n te e s tã o por to d a p a rte p o rq u e por to d a

p a rte os in d iv íd u o s são liv re s . ão é , p o rta n to , fu n d a m e n ta lm e n te

c o n tra o poder que nascem a s lu ta s , m a s c o n tra c e rto s e fe ito s d e p o d e r,

c o n tra c e rto s e s ta d o s de d o m in a ç ã o , num espaço que fo i,

p a ra d o x a lm e n te , a b e rto p e la s re la ç õ e s de p o d e r. E in v e rs a m e n te : se

não houvesse re s is tê n c ia , não h a v e ria e fe ito s de p o d e r, m as

s im p le s m e n te p ro b le m a s de o b e d iê n c ia .

* * * E m b o ra no com eço de sua p e s q u is a F o u c a u lt se c o lo c a s s e o

p ro b le m a da p o s s ib ilid a d e da re s is tê n c ia no in te rio r da g ra d e dos

d is p o s itiv o s de p o d e r, e le chega, nos ú ltim o s anos, a in v e rte r essa

p ro p o s iç ã o . O p ro je to de um a o n to lo g ia c rític a da a tu a lid a d e é

in d is s o c iá v e l d a id é ia d e u m a a n á lis e q u e to m a com o p o n to d e p a rtid a

a s fo rm a s de re s is tê n c ia c o n tra d ife re n te s tip o s de p o d e r: " m a is do

que a n a lis a r o poder do p o n to d e v is ta de s u a ra c io n a lid a d e in te rn a ,

tra ta - e de a n a lis a r a s re la ç õ e s de poder a tra v é s do a fro n ta m e n to de

e s tra té g ia s " . 108

107 L e s u je t e t te p o u v o ir, o p . c it. n o ta 27.

108 L e s u je t e t te p o u v o ir, o p . c it. n o ta 2 7 .


M jc h e l Foucauh- c o n c e jto s e s s e n c ia is 77

Saber / Saberes

* F o u c a u lt d is tin g u e n itid a m e n te o "sa b e r" do " c o n h e c im e n to " :

e n q u a n to o c o n h e c im e n to c o rre sp o n d e à c o n s titu iç ã o d e d is c u rs o s

so b re e la s e s d e o b je to s ju lg a d o s c o g n o s c ív e is , is to é , à c o n s tru ç ã o de

um p ro c e sso c o m p le x o de ra c io n a liz a ç ã o , de id e n tific a ç ã o e de

c la s s ific a ç ã o d o s o b je to s in d e p e n d e n te m e n te d o s u je ito q u e o s a p re e n d e ,

o saber d e s ig n a , ao c o n trá rio , o p ro c e sso p e lo qual o s u je ito do

c o n h e c im e n to , a o in v é s d e s e r fix o , s o fre u m a m o d ific a ç ã o d u ra n te o

tra b a lh o q u e e le e fe tu a n a a tiv id a d e d e c o n h e c e r. A a n á lis e a rq u e o ló g ic a

c o n d u z id a por F o u c a u lt a té o com eço dos anos 70 o c u p a -se da

o rg a n iz a ç ã o d o c o n h e c im e n to n u m a é p o c a d a d a e e m fu n ç ã o d e c la s s e s

de o b je to s e s p e c ífic o s ; a a n á lis e g e n e a ló g ic a que lh e sucede te n ta

re c o n s titu ir a m a n e ira p e la qual o saber im p lic a , ao m esm o te m p o ,

um a re la ç ã o com os o b je to s de c o n h e c im e n to (m o v im e n to de

o b je tiv a ç ã o ) e com o s i c o g n o s c e n te (p ro c e sso d e s u b je tiv a ç ã o ).

**0 s a b e r e s tá e s s e n c ia lm e n te lig a d o à q u e s tã o d o p o d e r, n a m e d id a

em que, a p a rtir da id a d e c lá s s ic a , por m e io do d is c u rs o da

ra c io n a lid a d e - is to é , a s e p a ra ç ã o e n tre o c ie n tífic o e o n ã o -c ie n tífic o ,

e n tre o ra c io n a l e o n ã o -ra c io n a l, e n tre o n o rm a l e o a n o rm a l - v a i-s e

e fe tu a r um a o rd e n a ç ã o g e ra l do m undo, is to é, dos in d iv íd u o s , que

passa, ao m esm o te m p o , por um a fo rm a d e g o v e rn o (E s ta d o ) e por

p ro c e d im e n to s d is c ip lin a re s . A d is c ip lin a riz a ç ã o do m undo p o r m e io

da p ro d u ç ã o de sa b e re s lo c a is c o rre sp o n d e à d is c ip lin a riz a ç ã o do

p ró p rio p o d e r: n a v e rd a d e , o poder d is c ip lin a r, " p a ra e x e rc e r-s e nesses

m e c a n is m o s s u tis , é o b rig a d o a fo rm a r, o rg a n iz a r e p ô r e m c irc u la ç ã o


78 Judirh RevelZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFED

um sa b e r, ou m e lh o r, a p a re lh o s de sa b e r" 109, is to é , in s tru m e n to s

e fe tiv o s de a c u m u la ç ã o do sa b e r, de té c n ic a s de a rq u iv a m e n to , de

c o n se rv a ç ã o e d e re g is tro , d e m é to d o s d e in v e s tig a ç ã o e d e p e s q u is a ,

d e a p a re lh o s d e v e rific a ç ã o e tc . O ra o poder não pode d is c ip lin a r os

in d iv íd u o s sem p ro d u z ir ig u a lm e n te , a p a rtir d e le s e so b re e le s , u m

d is c u rs o de saber que os o b je tiv a e a n te c ip a to d a e x p e riê n c ia de

s u b je tiv a ç ã o . A a rtic u la ç ã o p o d e r/s a b e r(e s ) se rá , p o rta n to , d u p la :

"poder de e x tra ir dos in d iv íd u o s um sa b e r, e de e x tra ir um saber

s o b re e s s e s in d iv íd u o s s u b m e tid o s a o o lh a r e já c o n tro la d o s " I 10. T ra ta r-

s e -á , p o r c o n s e q ü ê n c ia , d e a n a lis a r n ã o s o m e n te a m a n e ira p e la q u a l o s

in d iv íd u o s to rn a m - e s u je ito s d e g o v e rn o e o b je to s d e c o n h e c im e n to ,

m as ta m b é m a m a n e ira p e la qual a c a b a -se por e x ig ir q u e os s u je ito s

p ro d u z a m um d is c u rs o so b re si m esm os - so b re s u a e x is tê n c ia , so b re

seu tra b a lh o , so b re seus a fe to s , so b re s u a s e x u a lid a d e e tc . - a fim de

fa z e r d a p ró p ria v id a , to rn a d a o b je to de m ú ltip lo s sa b e re s, o cam po

de a p lic a ç ã o de um b io p o d e r.

*** A tra n s fo rm a ç ã o dos p ro c e d im e n to s de saber acom panha as

g ra n d e s m u ta ç õ e s das s o c ie d a d e s o c id e n ta is : é a s s im que F o u c a u lt é

le v a d o a id e n tific a r d ife re n te s fo rm a s d e "p o d e r-sa b e r" e a tra b a lh a r

s u c e s s iv a m e n te so b re a medida (lig a d a à c o n s titu iç ã o d a c id a d e g re g a )

so b re a inquirição (lig a d a à fo rm a ç ã o do E s ta d o m e d ie v a l) e so b re o

exame (lig a d o a o s s is te m a s d e c o n tro le , d e g e s tã o e d e e x c lu s ã o p ró p rio s

d a s s o c ie d a d e s in d u s tria is ). A fo rm a do exam e s e rá c e n tra l n a s a n á lis e s

que F o u c a u lt c o n sa g ra ao n a s c im e n to da g o v e rn a m e n ta lid a d e e do

c o n tro le s o c ia l: e la im p lic a um tip o de poder e s s e n c ia lm e n te

a d m in is tra tiv o que " im p ô s ao saber a fo rm a do c o n h e c im e n to : um

s u je ito so b e ra n o te n d o fu n ç ã o de u n iv e rs a lid a d e e um o b je to de

109 C u rso de 1 4 d e ja n e iro de 1 9 7 6 , o p . c it. n o ta 89.


110 L e v é rité e t 1 e s fo rm e s ju rid iq u e s , o p . c it. n o ta 2 8 .
M ic h e l F o u c a u ll: c o n c e ito s e s s e n c ia is 79

c o n h e c im e n to que deve ser re c o n h e c ív e l por to d o s com o já e s ta n d o

a l i " ! ! '. O ra o p a ra d o x o e n c e rra p re c is a m e n te o fa to de que não e

tra ta , na v e rd a d e , de m o d ific a ç õ e s do saber de um s u je ito do

c o n h e c im e n to que s e ria a fe ta d o p e la s tra n s fo rm a ç õ e s da in fra -

e s tru tu ra , m as de fo rm a s de p o d e r-sa b e r que, fu n c io n a n d o no n ív e l

da in fra -e s tru tu ra , dão lu g a r à re la ç ã o do c o n h e c im e n to h is tó ric o

d e te rm in a d o que se fu n d o u so b re o par s u je ito -o b je to .

'li La m a is o n des fo u s. ln : B a s a g lia , F. e B a s a g lia -O n g a ro , F. Crimini de pace.


T u rin : E in a u d i, 1975. [T ra d u ç ã o b ra s ile ira : A c a s a d o s lo u c o s . In : Ditos e Escritos,
v o l. [, p . 3 1 3 1 .
80 Judith Revel

SexualidadeQPONMLKJIHGFEDCBA
*0 te m a d a s e x u a lid a d e a p a re c e em F o u c a u lt não com o um d is c u rs o

so b re a o rg a n iz a ç ã o fis io ló g ic a do c o rp o , nem com o um e s tu d o do

c o m p o rta m e n to s e x u a l, m a s c o m o o p ro lo n g a m e n to de um a a n a lític a

do p o d e r: tra ta -s e , com e fe ito , de d e sc re v e r a m a n e ira p e la q u a l, a

p a rtir do fin a l d o s é c u lo X V III, e s te p ro lo n g a m e n to da a n a lític a do

poder in v e s te , por m e io dos d is c u rs o s e das p rá tic a s de " m e d ic in a

s o c ia l" , so b re um c e rto n ú m e ro de a s p e c to s fu n d a m e n ta is da v id a

d o s in d iv íd u o s : a s a ú d e , a a lim e n ta ç ã o , a s e x u a lid a d e e tc . A s e x u a lid a d e

é s o m e n te , p o rta n to , num p rim e iro m o m e n to , um dos cam pos de

a p lic a ç ã o do que F o u c a u lt cham a na época de b io -p o d e re s . um

segundo m o m e n to , no e n ta n to , F o u c a u lt tra n s fo rm a a s e x u a lid a d e

num o b je to d e p e s q u is a e s p e c ífic o já q u e , in s is tin d o no fa to de que o

poder s e a rtic u la se m p re so b re d is c u rs o s de " v e rid ic ç ã o " , is to é, dos

" jo g o s d e v e rd a d e ", a s re la ç õ e s com o d iz e r v e rd a d e iro em nenhum

o u tro cam po é tã o e v id e n te q u a n to no d a s e x u a lid a d e : p e rte n c e m o s a

um a c iv iliz a ç ã o na qual se e x ig e aos hom ens d iz e re m a v e rd a d e a

re s p e ito de sua s e x u a lid a d e p a ra poder d iz e r a v e rd a d e so b re e le s

m e s m o s . ''A s e x u a l i d a d e , m u i t o m a is d o q u e u m e le m e n to d o in d iv íd u o

q u e s e ria e x c lu id o d e le , é c o n s titu tiv a d e s s a lig a ç ã o q u e o b rig a a s p e s s o a s

a se a s s o c ia r com sua id e n tid a d e na fo rm a da s u b j e t i v i d a d e 't 'F . O

p ro je to d e u m a h is tó ria d a s e x u a lid a d e to rn a -s e , e n tã o , u m a in te rro g a ç ã o

so b re a s m a n e ira s p e la s q u a is a s p rá tic a s e o s d is c u rs o s d a re lig iã o , d a

c iê n c ia , d a m o ra l, d a p o lític a ou d a e c o n o m ia c o n trib u íra m p a ra fa z e r

d a s e x u a lid a d e , ao m esm o te m p o , um in s tru m e n to de s u b je tiv a ç ã o e

um a fe rra m e n ta do p o d e r.

112 S e x u a lité e t P o u v o ir, o p . c it. n o ta I I.


M ic h e l F o u c a u l!' c o n c e ito s e s s e n c ia is 81

* * F o u c a u lt d is tin g u e c u id a d o s a m e n te "sexo" e " s e x u a lid a d e " : "o

d i c u rso da s e x u a lid a d e não s e a p lic o u in ic ia lm e n te ao sexo, m as ao

c o rp o , aos ó rg ã o s s e x u a is , aos p ra z e re s, à s re la ç õ e s de a lia n ç a , às

re la ç õ e s in te rin d iv id u a is e tc . [. . .] f o i e s s e c o n ju n to h e te ro g ê n e o que

e s ta v a re c o b e rto p e lo d is p o s itiv o de s e x u a lid a d e que p ro d u z iu , em

d e te rm in a d o m o m e n to , com o e le m e n to e s s e n c ia l de seu p ró p rio

c l.is c u r o e ta lv e z de seu p ró p rio fu n c io n a m e n to , a id é ia d o se x o "!".

S e a id é ia do sexo é in te rio r ao d is p o s itiv o da s e x u a lid a d e , d e v e -se ,

e n tã o , re e n c o n tra r em seu fu n d a m e n to um a e c o n o m ia p o s itiv a do

c o rp o e do p ra z e r: é nessa d ire ç ã o que irá a a n á lis e de F o u c a u lt ao

p ro c u ra r d i tin g u ir a p ro b le m a tiz a ç ã o d a s e x u a lid a d e com o aphrodisia


no m undo g re c o -ro m a n o e a da carne n o c ris tia n is m o .

*** A m o d ific a ç ã o do p ro je to da História da Sexualidade ta l c o m o

e la h a v ia s id o , p rim e ira m e n te , e x p o s ta no p re fá c io de A vontade de


saber; e m 1976, pode s e r c o m p re e n d id a a p a rtir do tra b a lh o e fe tu a d o

so b re o te m a d a s e x u a lid a d e . O q u e p a re c e , e fe tiv a m e n te , in te re sar a

F o u c a u lt, a p a rtir do [m a l d o s anos 7 0 , é m a is o p ro b le m a c o lo c a d o

p e la s " té c n ic a s d e s i" e p e la p o s s ib ilid a d e d o s p ro c e sso s d e s u b je tiv a ç ã o

d o q u e a h is tó ria d a s e x u a lid a d e com o o b je to d e v e rid ic ç ã o : o e ro tis m o

g re g o a p re s e n ta a s e x u a lid a d e m a is com o um p ro b le m a de e s c o lh a

do que com o um lu g a r d e v e rd a d e so b re o s i. A p a s a g e m p e la c u ltu ra

a n tig a p e rm itiu a F o u c a u lt, c o n s e q ü e n te m e n te , d e s e n v o lv e r s u a a n á lis e

do poder fo ra do cam po do c o n h e c im e n to , no s e n tid o e s trito - quer

s e tra te d e d is c u rs o s , d e in s titu iç õ e s o u d e p rá tic a s -, is to é , a o c o n trá rio ,

num a re la ç ã o com o s i, q u e s e d á , a n te s d e tu d o , c o m o e x p e riê n c ia de

s i, c o m o ethos.

113 L e je u d e M ic h e l F o u c a u lt, o p . c it. n o ta 4 5 .


82 Judith Revel

Subjetivação (processo de)ONMLKJIHGFEDCBA


*0 te rm o " s u b je tiv a ç ã o " d e s ig n a , p a ra F o u c a u lt, um p ro c e sso p e lo

qual s e o b té m a c o n s titu iç ã o de um s u je ito , ou, m a is e x a ta m e n te , de

um a s u b je tiv id a d e . Os "m odos de s u b je tiv a ç ã o " ou "p ro c e sso s de

s u b je tiv a ç ã o " do ser hum ano c o rre sp o n d e m , n a re a lid a d e , a d o is tip o s

d e a n á lis e : de um la d o , o s m o d o s d e o b je tiv a ç ã o que tra n s fo rm a m os

se re s hum anos em s u je ito s - o que s ig n ific a que há s o m e n te s u je ito s

o b je tiv a d o s e que os m odos d e s u b je tiv a ç ã o são, nesse s e n tid o , p rá tic a s

de o b je tiv a ç ã o ; de o u tro la d o , a m a n e ira p e la qual a re la ç ã o c o n s ig o ,

por m e io de um c e rto n ú m e ro d e té c n ic a s , p e rm ite c o n s titu ir-s e com o

s u je ito d e s u a p ró p ria e x is tê n c ia .

* * F o u c a u lt d e s ta c a , num p rim e iro m o m e n to , trê s m odos p rin c ip a is

de s u b je tiv a ç ã o : "os d ife re n te s m odos de in v e s tig a ç ã o que buscam

a tin g ir o e s ta tu to de c iê n c ia " !" c o rn o a o b je tiv a ç ã o do s u je ito fa la n te

n a g ra m á tic a o u n a lin g ü is tic a , o u a in d a a q u e la do s u je ito p ro d u tiv o na

e c o n o m ia e n a a n á lis e d a s riq u e z a s ; a s " p rá tic a s d iv is a ra s " , q u e d iv id e m

o s u je ito no in te rio r d e le m esm o (o u em re la ç ã o aos o u tro s s u je ito s )

p a ra c la s s ific á -Ia e fa z e r d e le um o b je to - com o a d iv is ã o e n tre o

lo u c o e o são d e e s p irito , o d o e n te e o hom em s a u d á v e l, o hom em de

bem e o c rim in o s o e tc .; e n f im , a m a n e ira p e la qual o poder in v e s te o

s u je ito a o s e s e rv ir não s o m e n te dos m odos d e s u b je tiv a ç ã o já c ita d o s ,

m as ta m b é m ao in v e n ta r o u tro s : é to d o o jo g o das té c n ic a s de

g o v e rn a m e n ta lid a d e . um segundo m o m e n to , a q u e s tã o de F o u c a u lt

p a re c e se in v e rte r: se é v e rd a d e que os m odos de s u b je tiv a ç ã o

114 L e s u je t e t le p o u v o ir, o p . c it. n o ta 2 7 .


M ic h e l F o u c a u ll: c o n c e ilo ~ e s s e n c ia is 83

p ro d u z e m , ao o b je tiv á -Io , a lg o com o s u je ito s , com o esses s u je ito s se

re la c io n a m c o n s ig o m esm os? Q u a is p ro c e d im e n to s o in d iv íd u o

m o b iliz a a fu n de se a p ro p ria r ou de se re a p ro p ria r de sua p ró p ria

re la ç ã o c o n s ig o ?

***É a p a rtir desse ú ltim o p o n to que F o u c a u lt se e n tre g a , por

e x e m p lo , à a n á lis e d e ta lh a d a dos hUpOfllfléfllata e , m a is g e ra lm e n te , da

e c rita p riv a d a e n tre a a n tig ü id a d e c lá s s ic a e os p rim e iro s s é c u lo s da

e ra c ris tã : em to d o s o casos, tra ta -s e de c o m p re e n d e r a s m o d a lid a d e s

de um a re la ç ã o c o n s ig o , que e n v o lv e a re a liz a ç ã o de um a p rá tic a

c o n tín u a de p ro c e d im e n to s de e s c rita de si e p a ra s i, is to é, um

p ro c e c lim e n to de s u b je tiv a ç ã o . M as e n q u a n to p a ra os hllpo!7lt1émala

g re g o s " tra ta v a -s e de c o n s titu ir a si m esm o com o o b je to de ação

ra c io n a l p e la a p ro p ria ç ã o , u n ific a ç ã o e s u b je tiv a ç ã o de um já -d ito

fra g m e n tá rio e e s c o lh id o ; no caso das a n o ta ç õ e s m o n á s tic a das

e x p e riê n c ia s e p iritu a is , tra ta r-s e -á de d e s a jo la r do in te rio r da a lm a os

m o v im e n to s m a is e s c o n c lid o s de fo rm a a poder d e le s se lib e rta r" !" .

II~ L 'é c r i t u r e de s a i. ln : Corps Écrit, nO S: L'Auto portrait, 1 9 8 3 . R e to m a d o em

Dits et Écrits, v o l 4 , te x te n " 3 2 9 . [T ra d u ç ã o b ra s ile ira : A e s c rita d e s i. In : Ditos e


Escritos, vol. V, p . 1 6 2 ].
84
Judith Revel

Sujeito / Subjetividade
*0 p e n s a m e n to d e F o u c a u lt a p re s e n ta -s e , desde o in íc io , c o m o um a

c rític a ra d ic a l do s u je ito ta l c o m o e le é e n te n d id o p e la filo s o fia "de

D e s c a rte s a S a rtre " , is to é, com o c o n s c iê n c ia s o lip s is ta e a -h is tó ric a ,

a u to -c o n s titu íd a e a b s o lu ta m e n te liv re . O d e s a fio é , p o rta n to , ao

c o n trá rio das filo s o fia s do s u je ito , chegar a "um a a n á lis e que possa

d a r c o n ta d a c o n s titu iç ã o do s u je ito n a tra m a h is tó ric a . É is to que eu

c h a m a ria d e g e n e a lo g ia , is to é, um a fo rm a d e h is tó ria q u e c o n s id e ra a

c o n s titu iç ã o d o s sa b e re s, dos d is c u rs o s , dos d o m ín io s d e o b je to s e tc .,

sem te r d e s e re fe rir a u m s u je ito , q u e r e le s e ja tra n s c e n d e n te e m re la ç ã o

ao cam po de a c o n te c im e n to s , quer e le p e rs e g u in d o sua id e n tid a d e

v a z ia a o lo n g o d a h is tó ria " !" . T ra ta -s e , p o rta n to , de pensar o s u je ito

com o um o b je to h is to ric a m e n te c o n s titu íd o so b re a base de

d e te rm in a ç õ e s q u e lh e s ã o e x te rio re s : e s ta é a q u e s tã o q u e c o lo c a , por

e x e m p lo , As palavras e as coisas a o in te rro g a r e s s a c o n s titu iç ã o segundo

a m o d a lid a d e e s p e c ífic a d o c o n h e c im e n to c ie n tífic o , v is to q u e s e tra ta

de c o m p re e n d e r com o o s u je ito pôde, num a c e rta época, to rn a r-s e

um o b je to d e c o n h e c im e n to e , in v e rs a m e n te , com o esse e s ta tu to de

o b je to d e c o n h e c im e n to te v e e fe ito s so b re a s te o ria s do s u je ito com o

s e r v iv o , fa la n te e tra b a lh a d o r.

** A a firm a ç ã o de que o s u je ito te m um a gênese, um a fo rm a ç ã o ,

um a h is tó ria , e que e le não é o rig in á rio , fo i, sem d ú v id a , m u ito

in flu e n c ia d a em F o u c a u lt p e la le itu ra d e N ie tz s c h e , d e B la n c h o t e de

K lo s s o w s k i, e ta lv e z ta m b é m p o r a q u e la d e L a c a n ; e la n ã o é in d ife re n te

à a s s im ila ç ã o fre q ü e n te do filó s o fo à c o rre n te e s tru tu ra lis ta dos anos

116 E n tre v is ta com M ic h e l F o u c a u lt (V e rd a d e e P o d e r), o p . c it. n o ta 3.


M ic h e ! F o u c a u !t: c o n c e ito s e s s e n c ia is 85

6 0 , v is to q u e a c rític a d a s filo s o fia s d o s u je ito e n c o n tra -s e ta m b é m e m

D u m é z il, em L e v is -S tra u s s e em A lth u s s e r. O p ro b le m a da

s u b je tiv id a d e , is to é , " a m a n e ira p e la q u a l o s u je ito fa z a e x p e riê n c ia d e

si m esm o num jo g o d e v e rd a d e , n o q u a l e le s e re la c io n a c o n s ig o

m e m o " 1 1 7 ,t o r n a - s e e n t ã o o c e n t r o d a s a n á l i s e s d o f i l ó s o f o : s e o s u j e i t o

s e c o n s titu i, n ã o é s o b re o fu n d o d e u m a id e n tid a d e p s ic o ló g ic a , m a s

p o r m e io d e p rá tic a s q u e p o d e m s e r d e p o d e r o u d e c o n h e c im e n to ,

o u a in d a p o r té c n ic a s d e s i.

***0 p ro b le m a d a p ro d u ç ã o h is tó ric a d a s s u b je tiv id a d e s p e rte n c e ,

p o rta n to , a o m e s m o te m p o , à d e s c riç ã o a rq u e o ló g ic a d a c o n s titu iç ã o

d e u m c e rto n ú m e ro d e s a b e re s s o b re o s u je ito , à d e s c riç ã o g e n e a ló g ic a

d a s p rá tic a s d e d o m in a ç ã o e d a s e s tra té g ia s d e g o v e rn o à s q u a is s e

pode s u b m e te r o s in d iv íd u o s , e à a n á lis e d a s té c n ic a s p o r m e io d a s

q u a is o s h o m e n s , tra b a lh a n d o a re la ç ã o q u e o s lig a a s i m e s m o s , s e

p ro d u z e m e s e tra n s fo rm a m : "no c u rs o d e s u a h is tó ria , o s h o m e n s

ja m a is c e s s a ra m d e s e c o n s tru ir, is to é , d e d e s lo c a r c o n tin u a m e n te sua

s u b je tiv id a d e , d e s e c o n s titu ir num a s é rie in fin ita e m ú ltip la de

s u b je tiv id a d e s d ife re n te s , q u e ja m a is te rã o fim e q u e n ã o n o s c o lo c a m

ja m a is d ia n te d e a lg u m a c o is a q u e s e r i a o h o m e m 'F " . E sse lu g a r

in a s s in a lá v e l da s u b je tiv id a d e em m o v im e n to , em p e rp é tu o

" d e s p re n d im e n to " e m re la ç ã o a e la m e s m a , é , a o m e s m o te m p o , p a ra

F o u c a u lt, o p ro d u to d a s d e te rm in a ç õ e s h is tó ric a s e d o tra b a lh o s o b re

s i (c u ja s m o d a lid a d e s s ã o , p o r s e u tu rn o , h is tó ric a s ), e é n e s s a d u p la

a n c o ra g e m q u e s e e n la ç a o p ro b le m a d a re s is tê n c ia s u b je tiv a das

s in g u la rid a d e s : o lu g a r d e in v e n ç ã o d o s i n ã o e s tá n o e x te rio r d a g ra d e

d o s a b e r/p o d e r, m a s n a s u a to rç ã o ín tim a - e o p e rc u rso filo s ó fic o

d e F o u c a u lt p a re c e a í, p a ra n ó s , d is s o d a r o e x e m p lo .

117 F o u c a u lt. In : H u is m a n , D. Dictionnaire des philosophes. P a ris : PUF, 1984.


[T ra d u ç ã o b ra s ile ira : F o u c a u lt. I n : Ditos e Escritos, v o l . V , p. 2 3 6 ].
118 E n tre tie n avec M ic h e l F o u c a u li (a v e c D u c io T ro m b a d o ri), op. c it. n o ta 58.
86 Judith Revel

Verdade I Jogos de verdadebaZYXWVUTSRQPONMLK


* E m b o ra a filo s o fia m o d e rn a , desde D e s c a rte s , te n h a s id o se m p re

lig a d a ao p ro b le m a do c o n h e c im e n to , is to é , à q u e s tã o da v e rd a d e ,

F o u c a u lt d e s lo c a esse lu g a r: " D e p o is de ie tz s c h e , essa q u e s tã o se

tra n s fo rm o u . ão é m a is : qual é o c a m in h o m a is c e rto da v e rd a d e ?

m as qual fo i o c a m in h o fo rtu ito da v e rd a d e ? "1 1 9 . T ra ta -s e ,

c o n s e q ü e n te m e n te , d e re c o n s titu ir u m a v e rd a d e p ro d u z id a p e la h is tó ria

e is e n ta de re la ç õ e s com o p o d e r, id e n tific a n d o ao m esm o te m p o as

c o e rç õ e s m ú ltip la s e o s jo g o s , n a m e c lid a e m que cada s o c ie d a d e possui

seu p ró p rio re g im e d e v e rd a d e , is to é, "os tip o s de d is c u rs o que e la s

a c o lh e m e fa z e m fu n c io n a r com o v e rd a d e iro s ; os m e c a n is m o s e as

in s tâ n c ia s q u e p e rm ite m c lis rin g u ir o s e n u n c ia d o s v e rd a d e iro s o u fa ls o s ,

a m a n e ira com o uns e o u tro s são s a n c io n a d o s ; as té c n ic a s e os

p ro c e c lim e n to s que são v a lo riz a d o s p a ra a o b te n ç ã o da v e rd a d e ; o

e s ta tu to d a q u e le s que tê m o poder d e d iz e r a q u ilo que fu n c io n a com o

v e r d a d e i r o 't 'P .

** As a n á lis e s de F o u c a u lt p ro c u ra ra m , em p a rtic u la r, tra z e r à lu z a s

c a ra c te rís tic a s de nosso p ró p rio re g im e d e v e rd a d e . E s s e re g im e p o s s u i,

e fe tiv a m e n te , v á ria s e s p e c ific id a d e s : a v e rd a d e e s tá c e n tra d a n o c lis c u rs o

c ie n tífic o e nas in s titu iç õ e s que o p ro d u z e m ; e la é p e rm a n e n te m e n te

u tiliz a d a ta n to p e la p ro d u ç ã o e c o n ô m ic a q u a n to p e lo poder p o litic o ;

e la é m u ito la rg a m e n te d ifu n c lid a , ta n to por m e io das in s tâ n c ia s

e d u c a tiv a s q u a n to p e la in fo rm a ç ã o ; e la é p ro d u z id a e tra n s m itid a sob

119 Q u e s tio n s à M ic h e l F o u c a u lt s u r Ia G é o g ra p h ie , o p . c it. n o ta 95.


120 L a fo n c tio n p o li tiq u e d e I' in te le c tu e l. Politique-Hebdo, 2 9
In : d e n o v e m b ro - 5
d e d e z e m b ro de 1 9 7 6 . R e to m a d o em Dits et Écrits, v o l . 3 , t e x t o n° 184.
M ic h e l F o u c a u lt: c o n c e ito s e s s e n c ia is 87

o c o n tro le d o m in a n te de a lg u n s g ra n d e s a p a re lh o s p o lític o s e

e c o n ô m ic o s (u n iv e rs id a d e s , rn íd ia , e s c rita , e x é rc ito ); e la é lu g a r d e u m

e n fre n ta m e n to s o c ia l e d e u m d e b a te p o litic o v io le n to s , so b a fo rm a

d e " lu ta s id e o ló g ic a s " . O p ro b le m a p a re c e s e r, c o n s e q ü e n te m e n te ,

p a ra F o u c a u it, o d e in te rro g a r o s jo g o s d e v e rd a d e - is to é , a s re la ç õ e s

por m e io d a s q u a is o s e r h u m a n o s e c o n s titu i h is to ric a m e n te com o

e x p e riê n c ia - q u e p e rm ite m ao hom em p e n sa r-se quando s e id e n tific a

com o lo u c o , c o m o d o e n te , com o d e s v ia d o , com o tra b a lh a d o r, com o

quem v iv e o u quem fa la , o u a in d a com o hom em d e d e s e jo . É por

e s s a ra z ã o q u e o filó s o fo d e fin e s e u tra b a lh o , n o fin a l d e s u a v id a e d e

m a n e ira re tro s p e c tiv a , com o um a " h is tó ria d a v e rd a d e ".

***0 te m a dos " jo g o s d e v e rd a d e " é o n ip re s e n te em F o u c a u lt a

p a rtir do m o m e n to em q u e a a n á lis e d a s c o n d iç õ e s d e p o s s ib ilid a d e

d a c o n s titu iç ã o d o s o b je to s d e c o n h e c im e n to e a a n á lis e d o s m o d o s

d e s u b je tiv a ç ã o são dadas com o in d is s o c iá v e is . a m e d id a em que

e s s a o b je tiv a ç ã o e e s s a s u b je tiv a ç ã o s ã o d e p e n d e n te . u m a d a o u tra , a

d e s c riç ã o d e s e u d e s e n v o lv im e n to m ú tu o e d e s e u la ç o re c íp ro c o é

p re c is a m e n te o que F o u c a u lt cham a d e " jo g o s d e v e rd a d e ", is to é,

não a d e s c o b e rta do que é v e rd a d e iro , m as das re g ra s segundo as

q u a is a q u ilo q u e u m s u je ito d iz a re s p e ito de um c e rto o b je to d e c o rre

da q u e s tã o do v e rd a d e iro e do fa ls o . Às vezes, F o u c a u lt u tiliz a

ig u a lm e n te o te rm o " v e rid ic ç ã o " a fim d e d e s ig n a r e s s a e m e rg ê n c ia

de fo rm a s que p e rm ite m a o s d is c u rs o s , q u a lific a d o s d e v e rd a d e iro s

em fu n ç ã o d e c e rto s c rité rio s , a rtic u la re m -s e com um c e rto d o m ín io

d e c o is a s .
BIBLIOGRAFIA

Livros de Michel FoucaultTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

M a la d ie m e n ta le e t p e r s o n n a lité . TSRQPONMLKJIHGFEDCBA
P a ris : P U F , 1 9 5 4 ; re e d iç ã o m o d ific a d a :

M a la d ie m e n ta le e tp ! y c h o lo g ie . P a r i s : P U F , 1 9 6 2 . [ T r a d u ç ã o b ra s ile ira : D oença

m e n ta l e p s ic o lo g ia . R io d e J a n e iro : T em po B ra s ile iro ]

F o /ie e t d é r a is o n . H is to ir e d e I afo lie à /'á g e c la s s iq u e . P a r i s : P l o n , 1 9 6 1 ; r e e d i ç ã o

m o d ific a d a : H is to ir e d e I a fo lie à I 'á g e c la s s iq u e . P a r i s : G a llim a rd , 1972.

[T ra d u ç ã o b ra ile ira : H is tó r ia d a lo u c u r a . S ã o P a u l o : P e rs p e c tiv a ]

N a is s a n c e d e I a c /in iq u e . U n e a r c h é o lo g ie d u r e g a r d m e d ic a l. P a r i s : P U F , 1 9 6 3 .

[T ra d u ç ã o b ra s ile ira : a s c im e n to d a c /ín ic a . R i o d e J a n e iro : F o re n se

U n iv e rs itá ria ]

R aym ond R a u s s e l. P a r i s : G a l l i m a r d , 1963. [T ra d u ç ã o b ra s ile ira : & fy m o n d

R o u s s e l. R io d e J a n e iro : F o re n se U n iv e rs itá ria ]

L e s m o ts e t I e s c b o s e s . U n e a r c h é o lo g ie d e s s a e n c e s b u m a in e s . P a r i s : G a l l i m a r d ,

1966. [T ra d u ç ã o b ra s ile ira : A s p a la v r a s e a s c o is a s . S ã o P a u l o : M a rtin s

F o n te s ]

L 'A r c h é o lo g ie d « S a v o ir . P a r i s : G a l l i m a r d , 1969. [T ra d u ç ã o b ra s ile ira : A

A r q u e o lo g ia d o s a b e r . R io d e J a n e iro : F o re n se U n iv e rs itá ria ]

L 'O r d r e d ll d is c o u r s . P a r i s : G a l l i m a r d , 1 9 7 1 . [T ra d u ç ã o b ra s ile ira : A ordem

d o d is c u r s o . S ã o P a u l o : E d iç õ e s L o y o la ]

M o i, P ie r r e R iv ie r e , q y a n t é g o r g é m a s o e u r ; m a m ê r e e t m o n fr ê r e . U n cas de

p a r r ic id e a li X I X ' s iê d e (o b ra c o le tiv a ). P a ris : G a llim a rd -J u llia rd , 1973.

[T ra d u ç ã o b ra s ile ira : EII, P ie r r e R iv ie r e , q lle d e g o le im in h a m ã e , m in h a ir m ã e

m e u ir m ã o . R i o d e J a n e i r o : G ra a l]

S u r v e i//e r e tp u n ir . a is s a flc e d e I a p r is o n . P a r i s : G a l l i m a r d , 1 9 7 5 . [T ra d u ç ã o

b ra s ile ira : V z g ia r e p u n ir . São P a u lo : V ozes]


H is to ir e d e I a s e x u a l i t é , ZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
t. 1 : L a v o lo n té d e s a v o ir . P a r is : G a llim a r d , 1976.

[T ra d u ç ã o b ra s ile ira : H is tó r ia d a s e x u a lid a d e 1: A v o n ta d e d e s a b e r . R io d e

J a n e iro : G ra a l]; t . I l : L 'U s a g e d e s p la is ir s , e t. lIl: L e S o u c i d e s o i. P a r is :

G a llirn a rd , 1984. [T ra d u ç ã o b ra s ile ira : H is tó r ia d a s e x u a lid a d e 2 ; o uso

dos prazeres. R io d e J a n e iro : G ra a lJ ; H is tó r ia d a s e x u a lid a d e 3 ; o c u id a d o d e

s i. R io d e J a n e ir o : G ra a lJ

L e d é so rd re d e sJ a m ille s . L e ttr e s d e c a c b e t d e s a rc b zu e s d e Ia B a s ti/le ( c o m A rle tte

F a rg e ). P a ris : G a llirn a rd -J u llia rd , 1983.

R is u m é d e s c o z a s a li C o /le g e d e F r a n c e . P a ris : J u llia rd , 1989 (d o ra v a n te

re to m a d o nos D its e t É c r its , G a llim a rd , 1994) [T ra d u ç ã o b ra s ile ira :

R e s llm o d o s c u r s o s d o C o /le g e d e F r a n c e - 1 9 7 0 -1 9 8 2 . R io d e J a n e iro : Jo rg e

Z a h a r]

D its e t l~ c r its . P a r is : G a llim a rd , 1991, 4 v o lu m e s (e d iç ã o e s ta b e le c id a

sob a d ire ç ã o d e F ra n ç o is E w a ld e D a n ie l D e fe rt, com a c o la b o ra ç ã o

de Jacques L a g ra n g e ). [T ra d u ç ã o b ra s ile ira : M ic h e l F o u c a u lt: D ito s e e s c r ito s .

R io d e J a n e iro : F o re n se U n iv e rs itá ria ]

I/ J a u t d ife n d m I a s o a é té , c u rso no C o llê g e de F ra n c e , 1 9 7 5 -1 9 7 6 . P a ris :

G a llirn a rd /S e u il/E H E S S , 1997. [T ra d u ç ã o b ra s ile ira : I~ p r e c is o d e fe n d e r

a s o c ie d a d e . S ã o P a u lo : M a rtin s F o n te s ]

Les .A n o r m a s c c , c u rso no C o llê g e de F ra n c e , 1 9 7 4 -1 9 7 5 . P a ris :

G a llim a rd /S e u il/E H E S , 1999. [T ra d u ç ã o b ra s ile ira : O s a n o r m a is . São

P a u lo : M a rtin s P o n te s ]

L 'H e m l é n e u t i q u e d u s tije t, c u r s o n o C o llê g e d e F ra n c e , 1 9 8 1 -1 9 8 2 , P a ris :

G a llim a rd /S e u il/E H E S S , 2001. [T ra d u ç ã o b ra s ile ira : A b e r m e n ê u tic a

d o s u je ito . S ã o P a u lo : M a rtin s F o n te s ]
Algumas obras criticas em língua francesaDCBA

L 'i m p o s s i b l e pnson. R e c h e r c h e s s u r I e .r y s l e m e p é n ite n tia ir e au X1X' s i ê c l e ZYXWVUTSR


(o b ra

c o le tiv a sob a d ire ç ã o d e M ic h e le P e rro t). P a ris : S e u il, 1 9 8 0 .

D re y fu s, H u b e rt e t R a b in o w , P a u l. M ic h e l F o u c a u lt, u n p a r c o u r s p h ilo s o p h iq u e .

P a ris : G a llim a rd , 1984.

D e le u z e , G ille s . F o u c a u lt. P a ris : É d itio n s M in u it, 1986.

B la n c h o t, M a u ric e . F o u c a u ll le i q u e je I 'i m a g i m . P a ris : É d ito n s F a ta

M o rg a n a , 1986.

M ic h e l r o u c a llll p h ilo s o p h e . R e n c o n tre ln te rn a tio n a le de P a ris , 9 /1 0 /1 1

de ja n e iro de 1998 (o b ra c o le tiv a ). P a ris : S e u il, 1 9 8 9 .

E rib o n , D id ie r. M ic h e l F O llc a lllt. P a r is : F la m rn a rio n , 1991.

P e n s e r Ia fo lie . E s s a is s u r M ic h e l F o u c a u ll (o b ra c o le tiv a ). P a ris : G a lilé e ,

1992.

M ic h e l F o u c a u ll. L i r e l'o e u o r e ( o b r a c o le tiv a sob a d ire ç ã o de L uce G ia rd ).

G re n o b le : É d itio n s Jé rô m e M illo n , 1992.

M acey, D a v id . M ic h e l F O llc a lllt. P a r is : G a llim a rd , 1994.

G ro s, F ré d é ric . M ic h e l F o u c a lllt. P a ris : PUF, 1996. (c o le ç ã o Q ue s a is -

je ? )

A li r is q u e d e F o u c a u lt. (o b ra c o le tiv a ). P a ris : C e n tre G e o rg e s P o m p id o u ,

1997.

Você também pode gostar