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Interações

ISSN: 1413-2907
interacoes@smarcos.br
Universidade São Marcos
Brasil

Eiguer, Alberto
A apropriação do espaço da casa
Interações, vol. V, núm. 10, julho-dezembro, 2000, pp. 11-24
Universidade São Marcos
São Paulo, Brasil

Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=35401002

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A apropriação do espaço da casa

Resumo: A representação do corpo e do grupo intervém no investimento familiar do ALBERTO EIGUER


ALBERTO
espaço da casa. O autor sugere a idéia de que uma síntese destas representações compar-
Psiquiatra, Psicanalista e
tilhadas fazem parte de um “hábitat interno”. Este último pode ser compreendido como
Terapeuta familiar.
uma metáfora e como uma estrutura, que facilita a instalação neste espaço, que se liga e Traduzido por
desliga de acordo com as mudanças. Suas falhas estariam na origem das fugas, dos Maria Consuêlo Passos
estranhamentos, das mudanças inexplicadas, ou da imobilidade daqueles cuja identidade
primária é precária e que se “agarram” às paredes. Dois casos de terapia familiar e de casal
ilustram estas idéias.
Palavras-chave: casa, onirismo familiar, hábitat interno, narcisismo, intimidade.

The apropriation of the house space


Abstract: “The appropriation of house space”. Representation of body and group
intervenes in investissements of families in the house space. A synthesis of this common
representations can be suggested: the “internal dwelling”. This one can be understood as
a metaphor and as a structure, which help to set in this space, which retreat and deploy
in each removal. The origin of scattered anxieties, strangeness, escapes, unexplained
removals, or of immobilism in families with precarious identity (they “cramp into
walls”) are the results of these failings. Two vignettes of family and couple therapies are
INTERAÇÕES
presented. Vol. 5 -— Nº 10 — pp. 11-24
Keywords: house, familiar onirism, internal habitat, narcisism, intimacy. JUL/DEZ 2000
12
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S e somos muitos a nos interessar pela casa familiar, é porque ela
representa para nós um lugar singular de reconforto e de segurança
que permite o sonho... Família e casa são praticamente sinônimos. Mas a
casa aparece como um lugar quase inatingível para inúmeras pessoas.
Não há um só dia em que a habitação não seja mencionada nas
mídias para evocar o drama das habitações precárias, dos sem domicílio
fixo, dos sem abrigo por causa de expulsões, de rupturas, de crises fa-
miliares, de inadimplências e, em outras latitudes, de guerras ou de
catástrofes naturais. A questão das cidades evoca a da habitação insufici-
ente. Quantos jovens fogem por falta de espaço e de intimidade, para se
encontrar na rua: eles não têm áreas comuns de lazer, de esportes, ou
simplesmente de encontros com outros jovens que, como eles, precisam
de referências.
Essas perdas e esses medos são fontes de sofrimento. Mas há um
sofrimento comum a todas essas frustrações: aquele da impossibilidade
de fantasiar, de pensar, de sonhar. Pois a casa faz sonhar, ela é a condi-
ção do sonho e do onirismo familiar. “A casa abriga o ato de sonhar, a
casa protege o sonhador, a casa nos permite sonhar em paz”, diz Bache-
lard em A Poética do espaço (1957, p. 26). Ele acrescenta:
“à capacidade de sonhar pertencem os valores que marcam o homem em sua
profundidade. A capacidade de sonhar é um privilégio de auto-valorização. Ela
emerge diretamente do seu ser. Então, os lugares onde se viveu a capacidade de
sonhar restituem por eles mesmos uma nova capacidade de sonhar. É porque as
lembranças de antigas moradias são revividas como fantasias que as moradias do
passado são, para nós, imortais”.

Todas as moradias evocam em nosso espírito a casa natal (p. 33), verda-
deira, autêntica, ela nos habita, ela se refaz um pouco nos nossos sonhos.

O corpo e o grupo, organizadores da casa


A hipótese de uma projeção da imagem do corpo sobre o hábitat,
INTERAÇÕES este último podendo ser arrumado, organizado, por essa imagem, não é
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JUL/DEZ 2000 uma proposição exclusiva da Psicologia. As pesquisas em urbanismo
têm acentuado o fato de que as cidades parecem ter sido espontanea- 13
mente construídas a partir do modelo do corpo e de suas funções, como

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se os habitantes tivessem projetado sua representação. No interior da
casa, as atividades se desenvolvem em lugares mais ou menos precisos,
que se religam a funções físicas determinadas: alimentação, excreção,
repouso. No último século, os apartamentos nas cidades apresentavam
uma disposição particular: os cômodos se organizavam de tal modo
que os visitantes, ao entrarem, percebiam o que se passava nos quartos,
principalmente naquele onde dormiam os donos da casa.
A disposição atual parece ser uma conquista do aumento da inti-
midade de cada um. Nós vemos um setor de atividades diurnas (onde
se prepara e onde se toma as refeições, sala de leitura e de recepção),
que é a parte mais próxima da entrada, e um setor de atividades notur-
nas (quartos e banheiros). As funções corporais têm uma influência
neste agenciamento. Papéis e funções são aí distribuídos. A mãe pode
se sentir à vontade no setor onde ela desenvolve suas atividades prefe-
ridas e, se seu poder é importante no interior da família, seu “domínio”
pode ser um testemunho, um lugar de reunião, e mesmo de decisão.
Os membros da família tendo estabelecido alianças entre si, po-
dem escolher um território onde tenham trocas emocionalmente inten-
sas, onde organizem suas estratégias de poder e de defesa, caso se sin-
tam em perigo. Geralmente, essas alianças, dando lugar a subgrupos,
não são evidentes para o observador externo.
Elas se reforçam pelos pactos secretos ou perversos, dependendo
do caso. Seus membros não se apresentam como tendo uma afinidade
particular, mas, se estudamos o lugar de seus quartos na casa, constata-
mos, com freqüência, que eles são muito próximos, e que a circulação é
fácil entre eles. Observamos, também, que a dimensão corporal é du-
plicada da dimensão grupal. Trata-se de uma analogia, de uma metá-
fora, ou melhor, de um modelo de funcionamento onde o humano re-
produz o que ele vive no interior de si mesmo, conjugando a represen-
tação de seu corpo e a da psique familiar? Convém lembrar aqui que,
nos sonhos, a casa representa o corpo do sonhador e seus setores. O INTERAÇÕES
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teto e o sótão evocarão a cabeça, o pensamento, ou a aspiração em dire- JUL/DEZ 2000
14 ção a um ideal. Se a forma do teto é aguda, pontiaguda, ela traduzirá,
muitas vezes, um conflito intelectual com os genitores, muito parti-
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cularmente com o pai. O porão faz evocar, eventualmente, as periferias


da psique, suas profundezas arcaicas, temidas e enigmáticas, onde o self
se enraiza. (Ver janelas-olhos, portas-bocas, etc). Para a abordagem psi-
canalítica, o centro vital da casa é certamente o quarto dos pais, de onde
provêm todos os outros investimentos.
Num outro registro, a unidade familiar coincide com a casa fami-
liar, ela busca aí suas forças e sua consistência. Há pessoas que vivem
sozinhas, mas a maior parte de nós residimos em família e na mesma
casa. Na Roma antiga, a família não agrupava somente os indivíduos
que tinham laços de sangue e de aliança marital, mas igualmente as
pessoas, os operários, se se tratava de um domínio agrícola, por exem-
plo. A família era composta por todos aqueles que habitavam a casa.

O enquadre de minha pesquisa


As observações de casos de famílias visitadas no contexto do tra-
balho a domicílio, estimulou minha reflexão sobre a importância dada
pelo grupo familiar ao lugar que habita (realizadas no quadro de con-
sulta no Centro de saúde mental de Buenos Aires, setor 1, e, esporadi-
camente, na Associação de saúde mental do 13º distrito de Paris).
A prática da terapia familiar psicanalítica tem me permitido com-
preender, além disso, a importância dada pela família ao ambiente da
sala na qual têm lugar as sessões. Em um dos casos que tratei no hos-
pital dia do serviço de psicopatologia do hospital internacional da Uni-
versidade (Paris), os membros da família se queixavam do ambiente,
que para eles era frio e anônimo. Em outro, ele é muito marcado pelos
gostos pessoais, que os impediria de se sentir à vontade e sem interfe-
rências para fantasiar. Fui convidado para ir à casa deles, “para melhor
nos conhecer”, “para que compreendas o que explicamos aqui”, convite
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que eu não aceitei por razões evidentes, ligadas à lei do enquadre. Tra-
JUL/DEZ 2000 ta-se geralmente de pessoas que têm uma dificuldade maior para defi-
nir sua família como um grupo, como se alguma coisa da ordem da 15
identidade estivesse faltando.

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O pai da família Argos, caso apresentado no Parentesco Fantasmáti-
co, se sentiu pouco à vontade, um pouco “desrealizado” durante uma
sessão, reação seguida de um acesso de cólera contra aqueles que tinham
decorado o hospital, de cores “neutras, sem alma”. Ele parece assim
deslocar para nosso ambiente um sentimento de estranhamento, que era
seu e de outros membros de sua família, em seguida ao seu retorno à
metrópole, após longos anos passados no estrangeiro. Sentimento ainda
mais vivo devido ao acolhimento de parentes próximos que havia sido
frio, e também porque as facilidades de reinserção, prometidas pelo
antigo empregador do pai se mostraram insuficientes.
Se os membros da família possuem uma representação estável, uni-
ficada do grupo, o ambiente material é rapidamente aceito: um abrigo
seguro que evita o sentimento de estranheza.

O conceito de hábitat interior


Esses exemplos têm me sugerido a idéia de uma representação glo-
bal de hábitat, que eu designei com o termo “hábitat interior” (Eiguer,
1981, 1983). Outras figurações ou representações podem existir conti-
das nesta que foi mencionada, de uma parte, os móveis e os objetos, e,
de outra parte, a distribuição dos membros da família e suas localiza-
ções neste espaço habitável, etc. Mas o hábitat interior como enquadra-
mento, constitui seu substrato necessário. Esta representação primeira
nos parece se referir a uma dupla sustentação, uma real, os locais con-
cretos da residência, e uma outra imaginária que se constrói de acordo
com a história comum. Entre a externa e a interna se coloca um, inter-
mediário.
Nós observamos uma dimensão metafórica e uma dimensão orga-
nizadora do hábitat interior. Conjunto composto de indivíduos, de so-
mas separadas, o grupo familiar é incessantemente assombrado pelo INTERAÇÕES
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desmembramento, como se tivesse medo que cada elemento somático JUL/DEZ 2000
16 individual retire uma parte de sua contribuição ao coletivo. Vemos aí
uma das razões que conduzem à construção de um lugar geográfico
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real, fortemente investido, que contém o investimento familiar.


No início, conduta hesitante, depois, cada vez mais segura, a orga-
nização do hábitat familiar permite indiretamente marcar, no inconsci-
ente grupal, os traços mnêmicos do lar em fase de instauração. Eles se
nutrem do onirismo familiar ao qual me referi acima. O hábitat interior
se “edifica” a partir do inconsciente grupal. Representação dividida, o
hábitat é, de algum modo a base do reconhecimento do grupo, o senti-
do de gratidão, de referências, de isolamento e de conhecimento inti-
mista. Isto não exclui conflitos, a agressividade se manifestando em
ataques contra as paredes, mas nestes exemplos se pode, ao contrário,
reconhecer que o hábitat “contém” esta violência e permite deslocamen-
tos, sem o que esta violência poderia se voltar contra as pessoas.
Uma vez consolidado o hábitat interior, a família pode se sentir
mais contida, tendo adquirido para o grupo o que a pele psíquica repre-
senta para o sujeito (D. Anzieu, 1985). Num segundo tempo, o hábitat
exterior, pelas marcas que deixa no hábitat interior, torna-se um lugar
de prazer e de gratificação, tal como no caso da pele psíquica para indi-
víduos. Uma prova clínica da existência do hábitat interior se deduz do
fato de que, quando a família muda, ela tende a reproduzir a distribui-
ção dos cômodos designados para cada um dos seus membros.

Representação das formas e o


dispositivo narcísico
Um domínio sobre o qual os trabalhos de Freud dos anos dez
chamam nossa atenção, é o da auto-conservação. As descobertas sobre o
narcisismo construtivo (Freud, 1914), seu papel sobre a organização das
primeiras estruturações do eu são sua conseqüência teórica e clínica.
Elas nos são úteis para melhor compreendermos a estruturação do hábi-
INTERAÇÕES tat interior. Sobre isso os conteúdos mais primitivos que têm uma função
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JUL/DEZ 2000 de consolidação do aparelho psíquico se enraízam na experiência auto-
erótica e auto-perceptiva do corpo próprio da criança: reconhecimento 17
da geometria do corpo, ligada às relações com o meio ambiente, suas

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formas, suas proporções, suas distâncias, seus encaixes. Estes conteúdos
primitivos foram reagrupados por Anzieu (1987) em torno do conceito
de significantes formais: seriam os primeiros rudimentos do eu pele, que
não se ligam a nenhum significado, a nenhum símbolo.
Eles são desenvolvidos, provavelmente, pela curiosidade infantil,
o desejo e o amor pelo conhecimento: procurando firmar a cabeça, sen-
tar-se, colocar-se em pé, andando, tocando-se, tocando sua mãe e os
objetos, a criança deseja explorar seu meio e, assim, alimentar seu saber.
Os significantes formais são as representações das formas geométricas e
das configurações espaciais, portanto das relações entre as coisas. À di-
ferença das outras representações psíquicas, eles não são exclusivamente
representações de pulsões, mas também de “diversas formas de organi-
zação do si e do eu”.
Eles ajudam a reparar, por exemplo, a diferença entre o espaço bi-
dimensional e tridimensional, entre a figura e o fundo, entre o sólido, o
líquido e o estado gasoso, entre a posição deitada e de pé, entre o próxi-
mo e o distante, entre o dentro e o fora, entre o todo e a parte, e, nesse
sentido, eles testemunham a instalação da primeira clivagem, aquela
que será essencial para que o sujeito saiba organizar, com sua evolução,
o mundo sensível e abstrato, de acordo com diferentes categorias lógi-
cas. Estes significantes serão em seguida, libidinizados. Na origem, são
representações puras das formas que vão intervir na maneira pela qual o
indivíduo vai organizar seu hábitat e, com ele, todos os membros de sua
família. Esta geometria não tem, portanto, uma significação precisa, mas
ela nos dá um sentimento familiar, aquele de um espaço conhecido.
A casa torna-se, assim, o lugar privilegiado do íntimo: nós gosta-
mos de nos encontrarmos, e nos sentirmos à vontade. Os significantes
formais traçam as linhas do sentimento de intimidade, mas, onde, e como
ele se forma? Antes de responder a esta questão, convém precisar que há
duas maneiras de viver a intimidade: o íntimo, o que nós desejamos
guardar em nós, cuidar, preservar do olhar de fora e a intimidade, plena INTERAÇÕES
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de cumplicidade, que se instaura entre duas pessoas. Em família, estas JUL/DEZ 2000
18 duas intimidades entram regularmente em conflito: um mal-estar pode
se instalar porque o sujeito pensa que ele se dilui, pela atração exercida
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pelo grupo familiar, pelo prazer que ele sente na troca com os outros,
com um temor consecutivo, eventual, de perda do sentimento de iden-
tidade. Pode mesmo se sentir enganado se depositou num outro mem-
bro da família (ou outros), a esperança de uma união sagrada, e mesmo,
exclusiva. Trata-se certamente de ciúme, mas o problema psicológico
dos membros da família é que eles têm uma tendência à uniformização,
seja ela o efeito de uma ilusão fusional, logo os desejos são por princípio
individuais. Cada encontro a dois lança a ilusão de comunhão, mas faz
reemergir seus limites, com tanto mais gravidade quanto mais o sujeito
espera da família.
Freud soube dar um novo sentido à intimidade, quando desco-
briu, em 1919, que a relação entre o íntimo familiar e o estranho inquie-
tante não é de exclusão, como parecia à primeira vista, mas, o que é
estranho e inquietante é a descoberta do que o familiar esconde do des-
conhecido. Se, por exemplo, eu encontro na rua alguém que se parece
comigo, eu vou viver esta proximidade de maneira chocante. Ou se eu
encontro na rua um amigo que perdi de vista há uns quinze anos, e se
eu o revejo no mesmo dia por três vezes, eu vou dizer que alguma coisa
de curiosa está se passando, que o diabo está se metendo, mesmo se eu
sou totalmente agnóstico. Um retorno do recalcado, diria Freud, que
faz renascer nossas crenças da infância (magia, fantasmas).
Em resumo, o íntimo seria o reflexo do verdadeiro self (D. Winni-
cott, 1960), o que é mais precioso de si, mas do que não temos uma
idéia precisa e que nós não conseguimos nos explicar, pois isto não foi
jamais vivido como uma experiência identificável, e em conseqüência
memorizada. Isto lembra o recalcamento primário que atrai todas as
representações, como a originária. Nossa psique arcaica, esta desconhe-
cida, jamais reconhecível, mistério jamais desvendado, e que é também
um vazio e o receptáculo de todo saber. Por trás da intimidade sentida,
nós encontramos o estranho inquietante, mais além, uma outra intimi-
dade trabalha, aquela do self verdadeiro. Igualmente, atrás de cada vín-
INTERAÇÕES culo, um não vínculo, estranho, ainda que próximo de nossa identidade
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JUL/DEZ 2000 primária, irreconhecível, ainda que vagamente representável, com ten-
dência a emergir face às crises. O verdadeiro self, diz Winnicott, não 19
procura transmitir uma significação, ele existe simplesmente. Eu acres-

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centaria: o verdadeiro self ajuda a tornar próxima toda a experiência
sensível. As relações entre o verdadeiro self e os significantes formais
ativos da configuração do hábitat interior, são, consequentemente, mui-
to importantes. Mais ainda, o verdadeiro self, que define nosso territó-
rio psíquico, serve de matriz para o hábitat interior.
Pensar o grupo familiar significa considerar estes diferentes níveis,
dos quais uma das virtualidades é aliviar a solidão de seus efeitos des-
confortáveis. Estar próximo de seu self verdadeiro implica aceitar os
burburinhos das folhas de nosso jardim secreto, na quietude. Isto signi-
fica compreender, ao mesmo tempo que, na família, o denominador
comum somos nós que criamos. A intimidade familiar é então o fruto
desta aspiração de ultrapassar nossos limites e englobar o universo intei-
ro. A metáfora que cabe melhor na casa, é a da matriz materna, onde o
narcisismo expansivo é rei.

Instabilidades
Sobre o hábitat real aparecem os testemunhos do passado, ele é
marcado, como se observa regularmente, pelos traços objetivos da his-
tória familiar, com seus momentos intensos e seus instantes de imobili-
dade: muros, organização da mobília e dos objetos, distribuição dos
quartos, que são plenos de vida e carregados de sentidos. Se os lugares
são sobredeterminados pelos pactos e as alianças, certos locais da casa
permanecem mudos, como se eles guardassem não ditos e segredos.
Ainda que todas as famílias tenham uma representação interna do
hábitat, em algumas esta pode ficar muito lábil, dependendo do apoio
permanente do hábitat real para a consolidação da unidade psíquica. É,
por ocasião das mudanças de casa, implicando uma decontinuidade no
hábitat real, que se poderá apreciar a solidez do hábitat interior. Quan-
do o psiquismo grupal está apoiado exclusivamente no hábitat exterior,
um mal-estar indo até a angústia de desmembramento pode se manifes- INTERAÇÕES
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tar em seguida às mudanças; os conflitos ou crises psicóticas num dos JUL/DEZ 2000
20 membros podem igualmente acontecer. É como se eles deixassem uma
parte da identidade familiar colada à antiga casa, sem conseguir cons-
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truir uma pele nova.


As relações clínicas entre um ideal familiar construído em torno da
aquisição de uma casa nova, como único objetivo do casal, e os casos do
hábitat interior frágil, estão ainda por esclarecer.
Também, no que se refere aos motivos que levam às mudanças
freqüentes, como acontece com as famílias de laços de filiação incons-
tantes, ou tendo as relações muito superficiais entre seus membros, sem
apego aos objetos materiais, o que lhes permite mudar rapidamente de
residência (famílias de psicopatas ou de perversos, ou ainda famílias
com membros perseguidos), nesses casos o hábitat se torna então, “in-
continente”.
Esta função vital deve corresponder aos mais essenciais equivalen-
tes psíquicos. Assim, tanto quanto o sentimento de pertença, a repre-
sentação do hábitat interior será conservada por cada membro da famí-
lia, mesmo quando vive separado. Graças a isso ele sentirá, como indi-
víduo, tudo o que se refere à família.

Funções do hábitat interior


Sintetizo agora estas linhas teóricas, me perguntando quais as fun-
ções do hábitat interior.
1. Uma função de contenção e de diferenciação entre o dentro e o fora.
Contém a identidade familiar. Esta função lembra o quadro que
abrigará os aspectos mais desorganizados da psique familiar, aque-
les que suscitam os temores de naufrágio, de dispersão, de confu-
são, marcados pela angústia dos limites. O hábitat interior se torna,
então, a garantia do onirismo, sua “casca”.
2. Uma função de identificação. Cada papel sexual, função e laço, são aí
INTERAÇÕES representados. O hábitat interior delimita, e mesmo, reforça as alian-
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JUL/DEZ 2000 ças, sublinha os conflitos entre pessoas e subgrupos, afia-os, talvez.
3. Uma função de continuidade histórica, que inclui as lembranças trau- 21
máticas. O hábitat interior contribui para ligar as diferentes experi-

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ências vividas entre os membros da família, ressoando nos pais com
as lembranças freqüentemente ligadas a seus lares de origem.
4. O hábitat interior teria uma função criadora. Ele “faz” o hábitat
exterior; o quarto e a cama seriam uma figuração do quarto e da
cama fantasmáticos. O que se deseja e que é projetado sobre o quarto,
sobre a cama, reais, permite a apropriação do espaço.
5. Uma função estética, enfim: a procura da beleza na harmonia das
formas, tirando daí o prazer de estar juntos.

O casal e a casa
Apresento um exemplo clínico ilustrando uma “posse acidentada”
do espaço habitável, que traduz mais precisamente as dificuldades des-
tes pacientes para existir enquanto grupo, para se representar como uma
unidade simbólica. Um casal em terapia me explica como sua história
foi marcada pela habitação, que traduz seus conflitos e suas vitórias.
Cada um tinha sido casado uma primeira vez, tinham filhos, e tinham
decidido viver juntos com os respectivos filhos, num grande aparta-
mento. Mas, cedo, algumas dificuldades apareceram entre os progeni-
tores respectivos. Dificuldades inimagináveis para eles até então, por-
que pensavam que a união e a generosidade seriam suficientes para que
todos se entendessem.
O marido, principalmente, começou a sentir uma espécie de claus-
trofobia: ele queria partir sempre, ir ao campo onde o ar lhe parecia
mais saudável, fazer também viagens para países distantes, onde ele
poderia praticar trekking e esportes de risco. Isso deu início a disputas
entre os esposos, suas atitudes esportivas separadas. A mulher, nessa
ocasião, começou a engordar. Uma outra fonte de conflitos rapidamen-
te substituiu esta última: o marido começou a achar o apartamento mui-
to desconfortável, as janelas muito pequenas, os armários velhos, as pa- INTERAÇÕES
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redes precárias. JUL/DEZ 2000
22 Amante da bricolage, ele decidiu mudar o que o incomodava, não
de uma só vez, mas, pouco a pouco, ao ponto em que durante meses e
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anos o apartamento se tornou um canteiro. A mulher o seguia em suas


decisões, até o dia em que ela sentiu que era demais e que não queria
mais o seguir. Mas o marido não parou, apesar disso. Ele achou, em
seguida que o banheiro era mal disposto, que a cozinha não estava no
seu lugar, e, com argumentos de apoio, começou a modificar tudo.
Quando eles começaram a me falar do problema, as coisas eram
apresentadas sob a forma de reclamações velhas, de muitos anos: o ma-
rido se lembrava ainda que sua mulher não tinha achado suficiente-
mente bonita uma pintura... “Este apartamento é, em tudo, mal feito”,
gostava ele de dizer. Depois, pouco a pouco os conflitos se tornam pre-
cisos. O homem acabou deixando o apartamento; a partir daí o casal
viveu separado, mas sempre junto. Ele encontrou uma outra casa onde
colocou seus inumeráveis objetos pessoais, e continuou a se dedicar à
paixão pela bricolage e à construção, com entusiasmo.
Somente o casal não compreendeu o deslocamento para o hábitat,
de seu conflito de base: aquele que existia entre suas duas famílias reu-
nidas sob o mesmo teto, que no fundo não estavam. A ideologia do
agrupamento, impedia o casal de aceitar o peso do ciúme, certamente
fomentada pela preocupação exagerada com o bem-estar das crianças,
que deveria passar através do bem estar do casal.
A união do casal não estava consolidada, o hábitat recolheu todas as
suas dissociações. As paredes sofreram os golpes de serra e de martelo
dos seus desentendimentos. Me foi muito útil lembrá-los dessa dimen-
são no momento da construção das interpretações: havia aí um lado
muito ilustrativo para o qual eles tinham sido rapidamente sensíveis, na
medida em que o problema da habitação os inquietava, sem que eles
pudessem explicá-lo.
No nível da defesa, nós observamos um contra investimento para o
excesso: ternura em excesso oferecida às crianças, esforços esportivos em
INTERAÇÕES excesso, alimento demais, viagens de mais e mudanças demais na casa.
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JUL/DEZ 2000 No nível da fantasmatização, o casal, não tendo consolidado seu hábitat
interno – apoio narcísico como o sono, não conseguia sonhar. No nível 23
de sua estrutura, o investimento narcísico e objetal do outro parecia

A apropriação do espaço da casa


insuficiente. Os parceiros não davam, ele o “pênis”, ela a “vagina”. Eles
se castravam, eles não se “davam” o lugar de objeto sedutor. Talvez, seu
amor estivesse em outro lugar.
Progressivamente esses parceiros puderam abordar melhor o de-
senvolvimento do vínculo e tomar consciência do lugar considerável
que sua progenitura ocupava para eles. Hoje eles decidiram viver jun-
tos na casa do esposo, com um certo prazer, eu creio.

Obser vações finais


Observações
Para concluir, assinalo a importância de pensarmos o hábitat do
ponto de vista teórico, para uma melhor compreensão da família funci-
onal e disfuncional: sua aplicação ao desenvolvimento de um trabalho a
domicílio, como colaboração para o trabalho do arquiteto e para a tera-
pia familiar.
A imagem corporal é resultado de um longo trabalho psíquico, ela
não é organizada de uma só vez, mas, uma vez constituída, contribui
para a organização de nossa inserção no meio ambiente. As “imagens”
individuais configuram uma representação comum, o hábitat interior.
A partir dessa estruturação, o onirismo familiar se torna possível. So-
nhamos a propósito da casa, a partir da casa, o sonhar nutre-a... As
paredes, os armários e os objetos guardam nossos segredos e nossas in-
completudes. Eles servem tanto para defender os nossos segredos como
para estabelecer comunicação com eles. Reservatório do inconsciente
familiar? Tesouro sagrado dos significantes de nossa parentalidade? Um
nova perspectiva prática se abre para o terapeuta que se preocupa com as
metáforas espaciais – o hábitat interior é uma delas, pois “as coisas” não
são simples e rudimentares prolegomenos das palavras: elas têm todos
os ingredientes de nossa riqueza íntima.
A casa possibilita a ligação dos momentos emocionalmente inten- INTERAÇÕES
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sos. Tudo isso para a nossa grande felicidade. Voltar para a casa repre- JUL/DEZ 2000
24 senta o encontro de uma atmosfera única, um lugar onde existimos de
maneira relaxada.
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WINNICOTT D. (1960). “Distorsion du moi em fonction du vrai et du faux self”.


Trad. fr. Processus de maturation chez l”enfant, Paris: Payot, 1970.

ALBERTO EIGUER
E-mail: albertoeiguer@voila.fr

Recebido em outubro/2000

INTERAÇÕES
Vol. 5 — Nº 10 — pp. 11-24
JUL/DEZ 2000

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