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ISSN: 1413-2907
interacoes@smarcos.br
Universidade São Marcos
Brasil
Eiguer, Alberto
A apropriação do espaço da casa
Interações, vol. V, núm. 10, julho-dezembro, 2000, pp. 11-24
Universidade São Marcos
São Paulo, Brasil
Todas as moradias evocam em nosso espírito a casa natal (p. 33), verda-
deira, autêntica, ela nos habita, ela se refaz um pouco nos nossos sonhos.
pelo grupo familiar, pelo prazer que ele sente na troca com os outros,
com um temor consecutivo, eventual, de perda do sentimento de iden-
tidade. Pode mesmo se sentir enganado se depositou num outro mem-
bro da família (ou outros), a esperança de uma união sagrada, e mesmo,
exclusiva. Trata-se certamente de ciúme, mas o problema psicológico
dos membros da família é que eles têm uma tendência à uniformização,
seja ela o efeito de uma ilusão fusional, logo os desejos são por princípio
individuais. Cada encontro a dois lança a ilusão de comunhão, mas faz
reemergir seus limites, com tanto mais gravidade quanto mais o sujeito
espera da família.
Freud soube dar um novo sentido à intimidade, quando desco-
briu, em 1919, que a relação entre o íntimo familiar e o estranho inquie-
tante não é de exclusão, como parecia à primeira vista, mas, o que é
estranho e inquietante é a descoberta do que o familiar esconde do des-
conhecido. Se, por exemplo, eu encontro na rua alguém que se parece
comigo, eu vou viver esta proximidade de maneira chocante. Ou se eu
encontro na rua um amigo que perdi de vista há uns quinze anos, e se
eu o revejo no mesmo dia por três vezes, eu vou dizer que alguma coisa
de curiosa está se passando, que o diabo está se metendo, mesmo se eu
sou totalmente agnóstico. Um retorno do recalcado, diria Freud, que
faz renascer nossas crenças da infância (magia, fantasmas).
Em resumo, o íntimo seria o reflexo do verdadeiro self (D. Winni-
cott, 1960), o que é mais precioso de si, mas do que não temos uma
idéia precisa e que nós não conseguimos nos explicar, pois isto não foi
jamais vivido como uma experiência identificável, e em conseqüência
memorizada. Isto lembra o recalcamento primário que atrai todas as
representações, como a originária. Nossa psique arcaica, esta desconhe-
cida, jamais reconhecível, mistério jamais desvendado, e que é também
um vazio e o receptáculo de todo saber. Por trás da intimidade sentida,
nós encontramos o estranho inquietante, mais além, uma outra intimi-
dade trabalha, aquela do self verdadeiro. Igualmente, atrás de cada vín-
INTERAÇÕES culo, um não vínculo, estranho, ainda que próximo de nossa identidade
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JUL/DEZ 2000 primária, irreconhecível, ainda que vagamente representável, com ten-
dência a emergir face às crises. O verdadeiro self, diz Winnicott, não 19
procura transmitir uma significação, ele existe simplesmente. Eu acres-
Instabilidades
Sobre o hábitat real aparecem os testemunhos do passado, ele é
marcado, como se observa regularmente, pelos traços objetivos da his-
tória familiar, com seus momentos intensos e seus instantes de imobili-
dade: muros, organização da mobília e dos objetos, distribuição dos
quartos, que são plenos de vida e carregados de sentidos. Se os lugares
são sobredeterminados pelos pactos e as alianças, certos locais da casa
permanecem mudos, como se eles guardassem não ditos e segredos.
Ainda que todas as famílias tenham uma representação interna do
hábitat, em algumas esta pode ficar muito lábil, dependendo do apoio
permanente do hábitat real para a consolidação da unidade psíquica. É,
por ocasião das mudanças de casa, implicando uma decontinuidade no
hábitat real, que se poderá apreciar a solidez do hábitat interior. Quan-
do o psiquismo grupal está apoiado exclusivamente no hábitat exterior,
um mal-estar indo até a angústia de desmembramento pode se manifes- INTERAÇÕES
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tar em seguida às mudanças; os conflitos ou crises psicóticas num dos JUL/DEZ 2000
20 membros podem igualmente acontecer. É como se eles deixassem uma
parte da identidade familiar colada à antiga casa, sem conseguir cons-
A apropriação do espaço da casa
O casal e a casa
Apresento um exemplo clínico ilustrando uma “posse acidentada”
do espaço habitável, que traduz mais precisamente as dificuldades des-
tes pacientes para existir enquanto grupo, para se representar como uma
unidade simbólica. Um casal em terapia me explica como sua história
foi marcada pela habitação, que traduz seus conflitos e suas vitórias.
Cada um tinha sido casado uma primeira vez, tinham filhos, e tinham
decidido viver juntos com os respectivos filhos, num grande aparta-
mento. Mas, cedo, algumas dificuldades apareceram entre os progeni-
tores respectivos. Dificuldades inimagináveis para eles até então, por-
que pensavam que a união e a generosidade seriam suficientes para que
todos se entendessem.
O marido, principalmente, começou a sentir uma espécie de claus-
trofobia: ele queria partir sempre, ir ao campo onde o ar lhe parecia
mais saudável, fazer também viagens para países distantes, onde ele
poderia praticar trekking e esportes de risco. Isso deu início a disputas
entre os esposos, suas atitudes esportivas separadas. A mulher, nessa
ocasião, começou a engordar. Uma outra fonte de conflitos rapidamen-
te substituiu esta última: o marido começou a achar o apartamento mui-
to desconfortável, as janelas muito pequenas, os armários velhos, as pa- INTERAÇÕES
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redes precárias. JUL/DEZ 2000
22 Amante da bricolage, ele decidiu mudar o que o incomodava, não
de uma só vez, mas, pouco a pouco, ao ponto em que durante meses e
A apropriação do espaço da casa
Bibliografia
ANZIEU, D. (1975). Le groupe et l’inconscient. Paris: Dunod, 1984.
ALBERTO EIGUER
E-mail: albertoeiguer@voila.fr
Recebido em outubro/2000
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