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Título O Homem e a Natureza no Renascimento

Autor Allen G. Debus


Tradução Fernando Magalhães
Coordenação da Colecção Ana Simões e Henrique Leitão
Revisores Científicos Ana Simões e Henrique Leitão
Capa Eduardo Aires
Editora Porto Editora
Título original Man and Nature in the Renaissance
Edição original ISBN 0-521-21972-8
Editado pela primeira vez por
The Press Syndicate of the University of Cambridge
Copyright© Cambridge Univers,ty Press, 1978

© PORTO EDITORA, LDA - 2002


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2. A chave química

No final do Renascimento é visível um novo interesse pela química. No


período anterior a 1550 tinham sido publicados relativamente poucos livros
sobre química, mas durante o século seguinte apareceu uma verdadeira tor-
rente de livros sobre química e química médica. Os autores destes livros ou os
editores de textos mais antigos insistiam na importância dos seus trabalhos.
Mencionavam o grande número dos que tinham abandonado os ensinamen-
tos dos Antigos para seguir as suas filosofias químicas e nomeavam com fre-
quência as autoridades químicas que os leitores podiam consultar para obte-
rem a verdade em filosofia e em medicina. Todos esperavam que as doutrinas
dos Antigos fossem derrubadas e que a "nova filosofia" da natureza triunfasse.
Do outro lado, cientistas tão proeminentes como Johannes Kepler e os pri-
meiros mecanicistas Marin Mersenne e Pierre Gassendi escreviam contra a
filosofia mística da natureza elaborada pelos químicos. Mas porque era a quí-
mica o centro do debate? A resposta imediata pode ser encontrada nos con-
troversos textos de Paracelso. Contudo, para compreender este autor, devemos
analisar, ainda que superficialmente, os fundamentos químicos do seu trabalho.

A química do Ocidente Latino

Os textos sobre química foram introduzidos na Europa Ocidental no


século XII juntamente com outros tesouros da ciência, da filosofia e da medi-
cina gregas por intermédio de traduções ou resumos (na maioria dos casos) do
árabe. As primeiras traduções já caracterizavam a química como uma arte
secreta, tão secreta que é frequentemente difícil ou mesmo impossível identi-
ficar os textos originais, a partir dos quais as traduções foram feitas. Mas
quando passamos além do confuso cenário do século XII, apercebemo-nos de
um interesse cada vez maior por este tema durante os dois séculos seguintes,
que antecedeu um declínio na quantidade - e na qualidade - de novos textos
no século XV. Existem numerosas referências à alegoria alquímica na literatura
medieval, e o Canon Yeoman's Tale, de Chaucer, do final do século XIV, conti-
nua a ser a melhor descrição do charlatão fazedor de ouro.
A alquimia medieval incorporou muita da doutrina aristotélica. Os quatro
elementos, terra, água, ar e fogo, tinham constituído a base da física aristotélica,
mas também o fundamento da teoria médica de Galeno, na forma dos quatro
humores conexos (sangue, fleuma, bilís branca e bilís negra). As qualidades
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associadas a estes elementos (quente, frio, húmido e seco) eram permutáveis e


permitiam assim a transmutação de um elemento noutro. Os estudiosos islâ-
micos tinham acrescentado uma nova teoria dos metais, no século VIII. Ensi-
navam que os m etais eram compostos de um mercúrio e um enxofre filoso-
fais hipotéticos (não reais). Quando estes dois elementos ocorriam em pro-
porção perfeita, o metal resultante seria o ouro.
A par da teoria aristotélica e da teoria islâmica dos elementos, a alquimia
transportava consigo uma aura de segredo e misticismo. Em parte, tal pode
provir da atmosfera na qual operaram os primeiros metalúrgicos no Egipto.
Uma segunda fonte pode ser a tradição secreta das religiões místicas do final
da Antiguidade. Os elementos gnósticos, neoplatónicos e neopitagóricos con-
tribuíram bastante para diferenciar estes alquimistas dos estudantes de óptica,
astronomia e matemática. As correntes religiosas também percorrem profun-
damente a literatura alquímica. A grande obra era vista como uma experiên-
cia religiosa e os processos e as substâncias eram frequentemente explicados
em termos de alma, corpo e espírito.
A par destas alegorias e do misticismo, o alquimista dava uma nova ênfase
à evidência observacional. Já vimos o apelo de Paracelso para que o praticante
aprendesse pela ex-periência e não pelos livros, mas a mesma mensagem é evi-
dente em literatura anterior. Bonus de Ferrara, um alquimista do século XIV,
observou que:

"Se deseja saber que a pimenta é picante e o vinagre é refrescante, que


o colocinto e o absinto são amargos, que o m el é doce e que o acónito
é venenoso; que o íman atrai o aço, o arsénico branqueia o latão e que
o óxido de zinco lhe confere uma cor alaranjada terá de, em cada um
dos casos, verifica r a asserção pela experiência. O mesmo acontece na
geometria, na astronomia, na música, na perspectiva e noutras ciências
com finalidades e objectivos práticos. Uma tal regra aplica-se com uma
força dupla na alquimia que se propõe transmutar metais básicos em
ouro e prata... A verdade e a justeza desta pretensão, tal como de todas
as outras afirmações de natureza prática, devem ser demonstradas pela
experimentação prática, não o podendo satisfatoriamente ser de outro
modo."

Relacionado com esta ênfase na observação, encontrava-se o interesse do


alquimista em procedimentos laboratoriais. O período medieval assistiu a
grandes avanços nas técnicas de destilação. Construíram-se caldeiras bastante
mais eficientes do que as disponíveis anteriorm ente. Era agora possível, com
temperaturas mais elevadas e condensações melhoradas, acrescentar novos
ACHAVEQUlMICA l 19

reagentes ( em especial álcool e ácidos minerais) ao laboratório químico.


Geber, um autor latino (princípios do século XIV, um pseudónimo que se
refere a Jãbir ibn Hayyãn, do século VIII), produziu um trabalho marcante
sobre esta matéria descrevendo equipamento e processos químicos.
Geber fez poucas referências à medicina, mas esta viria a revelar-se um
importante aspecto da alquimia medieval. A procura de químicos de valor
farmacêutico aparece entre os autores islâmicos nos textos de al-RãzI (Rhazes)
(e. 854-925/926) e depois, frequentemente, entre os seus seguidores. No Oci-
dente, Roger Bacon notou no seu Opus tertium (1267) que, embora muitos
médicos utilizassem processos químicos para preparar os medicamentos,
muito poucos sabiam executar as operações que conduziam ao prolonga-
mento da vida. Arnaldo de Villanova (c. 1235-1311), o seu contemporâneo
mais novo, e João de Rupescissa, um escritor do século XIV, continuaram a
enfatizar o valor médico da química. Nos princípios do século XVI, este
género de literatura científica tinha dado origem aos numerosos livros sobre
destilação, tão característicos da época. Todos incluíam descrições do equipa-
mento químico necessário para a produção de óleos e álcoois a partir de subs-
tâncias vegetais de todos os géneros. Os benefícios destas "quintessências"
pareciam tão grandes que as edições do século XVI do antigo herbário de
Dioscórides incluíam um apêndice químico para o actualizar.
O conhecimento químico não era visto como um opositor da ciência aristo-
télica ou da medicina galénica. Certamente que alguns se queixavam do conser-
vadorismo das escolas, mas a alquimia tinha vindo para o Ocidente juntamente
com o restante conhecimento antigo. Tinha sido aperfeiçoada com a filosofia
clássica e a medicina no Próximo Oriente - e não se divorciaria imediatamente
desta união; nem há qualquer indicação de que a química fosse vista como uma
disciplina rival, perigosa, por médicos e filósofos naturais.
A tradução do Corpus hermeticum por Ficino, em 1463, acrescentou mais
um factor que viria a afectar a química renascentista. Apoiando-se em todos
os géneros de conhecimento oculto, a alquimia rapidamente mereceu a aten-
ção dos eruditos como uma área de estudo que não tinha merecido o devido
respeito no passado. Tanto Heinrich Cornelius Agrippa von Nettesheim
como Giovanni Baptista Porta apontaram a alquimia como uma ciência fun-
damental para o conhecimento da natureza. John Dee aplicou o "método
geométrico" com vinte e quatro teoremas à construção da sua "mónada hie-
roglífica", uma figura que se aproximava bastante do símbolo alquímico do
mercúrio. No decurso da sua construção, Dee sentiu que tinha repetido as
primeiras etapas da Criação. Prometeu ao leitor a compreensão de grandes
mistérios e que a totalidade do trabalho apareceria como uma representação
20 1 O HOMEM E A NATUREZA NO RENASCIMENTO

velada do próprio processo alquímico. Porém, a ênfase de Dee era claramente


posta na união com a matemática espiritual favorecida pelos pitagóricos
renascentistas que buscavam uma chave para a Criação no misticismo e na
análise numérica. As verdades da magia eram reconhecidas, enquanto que as
provas matemáticas, as técnicas laboratoriais químicas e as aplicações médicas
práticas, mais convencionais, tinham relativamente pouco interesse. Era deste
modo que Dee sentia que a alquimia poderia ser reconhecida como o assunto
essencial para o filósofo natural.
Quase meio século antes, Paracelso tinha encontrado na alquimia um
novo fundamento para a teoria médica. Por seu turno, este viria a ser desen-
volvido numa filosofia universal da natureza validada pelas correspondências
naturais ligando o homem e o mundo em redor. E se a alquimia "matemati-
zada" e mística de Dee teve pouco impacto para além de um círculo dedicado
de alquimistas, as perspectivas de Paracelso conduziriam a uma controvérsia
na Europa, no que se refere à medicina e à filosofia natural.

Paracelso: procura de uma vida inteira

Nascido perto de Zurique, na pequena cidade de Einsiedeln, em 1493,


Filipe Aurélio Teofrasto Bombasto von Hohenheim só mais tarde foi referido
como "Paracelso" ou "maior que Celso". Enquanto criança, foi exposto a
uma violenta mistura de pensamento renascentista. O pai era um médico de
província que se interessava por alquimia, e ele nunca viria a perder o inte-
resse pela medicina ou pelo laboratório químico. O jovem Paracelso estudaria
sob a orientação do afamado abade e alquimista Johannes Trithemius (1462-1516)
e aprenderia a ciência da mineração trabalhando como aprendiz nas minas
Fugger, em Villach, quando o seu pai para lá se mudou em 1500. Esta expe-
riência haveria de dar os seus frutos mais tarde nas suas especulações sobre o
crescimento dos metais e no seu livro sobre as doenças dos mineiros, o pri-
meiro a ser escrito sobre um problema de saúde ocupacional.
Com catorze anos, Paracelso saiu de casa para estudar e, durante um
período de mais de duas décadas, viajou bastante. Visitou muitas universida-
des e é possível que tenha obtido uma graduação médica em Ferrara, mas, se
foi o caso, estava disposto a trabalhar na posição bastante menos prestigiante
de cirurgião dos exércitos que se encontravam em movimentação constante
pela Europa. Na terceira década do século, as suas viagens tornaram-se mais
fáceis de seguir. A partir dos trinta anos, Paracelso restringiu as viagens à
Europa Central, deslocando-se constantemente de cidade em cidade, escrevendo e
oferecendo os seus préstimos como médico. Teve momentos ocasionais de glória,
A CHAVEQUÍMICA l 21

como aquando da sua nomeação como médico municipal em 1527, mas eram
de curta duração devido ao seu temperamento precipitado. Fazia um esforço
para disfarçar o seu desprezo pelas universidades e os seus árculos académicos.
Quanto aos médicos, quase não era necessário considerá-los:

"Não preciso de usar uma cota de malha ou um escudo contra vós,


porque não tendes instrução nem experiência suficientes para refutar
uma só palavra minha ... defendeis o vosso reino rastejando sobre a
barriga e bajulando. Quanto tempo pensais que isto poderá durar?...
Deixai que vos diga isto: cada pequeno cabelo do meu pescoço sabe
mais do que vós e os vossos copistas, as fivelas dos meus sapatos são
mais instruídas do que os vossos Galeno e Avicena, e a minha barba
tem mais experiência do que os vossos colégios universitários."
Estas violentas declarações faziam com que Paracelso perdesse emprego
atrás de emprego, uma vez que com elas ofendia até os que mais queriam
ajudá-lo. Em consequência, encontrava-se sempre em movimento; morreu
em Salzburgo em 1541, para onde apenas recentemente tinha sido chamado
pelo bispo sufragâneo Ernest de Wittelsbach.

A filosofia química paracelsista

Quando Paracelso morreu, havia poucos indícios de que o seu trabalho se


tornaria o ponto focal do debate entre os eruditos durante mais de um século.
É verdade que tinha sido uma figura controversa durante a sua vida, mas a
maioria dos seus volumosos escritos foi publicada após a sua morte. Apenas
mais tarde o fluxo de textos paracelsistas começou a sair das tipografias. A
lenda das suas curas quase milagrosas começou após 1550 e depressa se assistiu
a uma procura alargada dos seus manuscritos, que eram frequentemente
publicados com notas e comentários. Perto do final do século XVI, foram
impressas várias edições, com amplas colectâneas dos seus trabalhos, e toda
uma escola de paracelsistas batalhava contra aristotélicos e galenistas acerca do
rumo da filosofia e da medicina naturais.
Devido à publicação tardia dos textos, é tão apropriado falar da filosofia
dos paracelsistas como o é da de Paracelso. Mas, mesmo que façamos esta con-
cessão, é difícil reconstruir a filosofia química, em parte porque não foram
publicados compêndios simples e em parte porque as perspectivas destes
homens são estranhas às dos cientistas do século XX."

· N. do T.: Este livro foi publicado pela primeira vez em 1978.


22 I O HOMEM E A NATUREZA NO RENASCIMENTO

Na realidade, muito do trabalho dos paracelsistas evoca outros filósofos


naturais do Renascimento. Acima de tudo, procuravam derrubar o tradicio-
nal e dominante aristotelismo das universidades. Aristóteles era, para eles, um
autor pagão, cuja filosofia e sistema da natureza eram inconsistentes com a
Cristandade, um ponto de preocupação considerável durante a Reforma.
Afirmavam que a sua influência na medicina tinha sido catastrófica, porque
Galeno tinha aceitado acriticamente o seu trabalho e o sistema aristotélico-
-galenista se tinha subsequentemente tornado na base do ensino da medicina
na Europa. Segundo eles, as universidades estavam irremediavelmente mori-
bundas e inflexíveis na sua adesão à Antiguidade.
Os paracelsistas esperavam substituir tudo isto por uma filosofia cristã
neoplatónica e hermética, que explicasse a totalidade dos fenómenos naturais.
Argumentavam que o verdadeiro médico poderia encontrar a verdade em
dois livros divinos: o livro da revelação divina - a Escritura - e o livro da
Criação divina - a natureza (Figura 2.1.). Assim, os paracelsistas dedicavam-
-se eles próprios a um forma de exegese divina, por um lado, e ao apelo a uma
nova filosofia da natureza baseada na observação e na experimentação, por
outro. Um excelente exemplo pode ser encontrado no trabalho de um impor-
tante sistematizador inicial da colecção de textos paracelsistas, Peter Severinus
(1540-1602 ), médico do rei da Dinamarca, que disse aos seus leitores que
deveriam vender as propriedades, queimar os livros e começar a viajar, para
poderem efectuar e coligir observações de plantas, animais e minerais. Após
os seus Wanderjahren, deveriam "comprar carvão, construir fornos, observar
e operar com o fogo sem desvanecimento. Somente deste modo e de nenhum
outro chegareis ao conhecimento das coisas e das suas propriedades".
No trabalho destes homens sente-se uma forte confiança na observação e
na experiência, apesar de o conceito de experiência e de o propósito da
mesma serem bastante diferentes dos da actualidade. Ao mesmo tempo, nota-se
uma desconfiança subjacente na utilização da matemática no estudo da natu-
reza. Bem poderiam falar, como platonistas, das harmonias matemáticas divi-
nas do Universo. Para mais, Paracelso referia-se tenazmente à matemática
pura como a autêntica magia natural. Mas era mais usual os paracelsistas rea-
girem com desagrado ao método lógico, "geométrico", de raciocínio empre-
gue pelos aristotélicos e galenistas. Condenavam este "método matemático", a
par da tradicional ênfase escolástica na geometria, e atacavam muito especifi-
camente a abstracção matemática no estudo dos fenómenos naturais - em
particular o estudo do movimento local. A razão invocada era essencialmente
religiosa, e irritavam-se em especial com a Física de Aristóteles. Aí - através
A CHAVE QU[MICA 123

Figura 2.1. O verdadeiro filósofo químico aprende com a revelação divina e com os estudos quí-
micos. De Heinrich Khunrath, Amphitheatrum sapientiae (1609). Da colecção do autor.

do estudo do movimento - defendia-se que o Deus Criador deve encontrar-se


imóvel. Os químicos paracelsistas do período da Reforma defendiam veemen-
temente que qualquer raciocínio que impusesse uma tal restrição à Divindade
omnipotente não podia ser aceite - e por essa razão apenas, os textos dos
Antigos eram sacrílegos e deviam ser rejeitados. A filosofia química seria
uma nova ciência fortemente baseada na observação e na religião. Os que se
viravam para a quantificação recordavam-se possivelmente de que Deus tinha
criado "todas as coisas em número, peso e medida". Isto era interpretado
como um mandato para o médico, o químico e o farmacêutico - homens que
pesavam e mediam regularmente no decorrer do seu trabalho (Figura 2.2.).
24 I O HOMEM E A NATUREZA NO RENASCIMENTO

Figura 2.2. A primeira ilustração de uma balança analítica fechada pode ser encontrada nesta ima-
gem de um laboratório alquímico. De Theatrum Chemicum Britannicum, ed. Elias Ashmole ( 1652).
Cortesia do Department of Special Collections, Universidade de Chicago.
ACHAVEQU1MICA 125

Visto os paracelsistas rejeitarem o que denominavam método "lógico-


-matemático" das escolas, voltaram-se para a química com a convicção de
que esta ciência era a base de uma nova compreensão da natureza. Era uma
ciência observacional cujo propósito era universal. Tais pretensões eram
encontradas nos textos químicos tradicionais. A alquimia de Paracelso ofere-
cia uma "explicação adequada dos quatro elementos", o que significava, lite-
ralmente, que a alquimia e a química poderiam ser utilizadas como chaves
para entender o Cosmo, por experimentação directa ou por analogia. Para-
celso explicava a própria Criação como um desabrochar químico da natureza.
Os paracelsistas posteriores concordaram e amplificaram este assunto. Ger-
hard Dom (fl. 1565-1585) forneceu uma descrição pormenorizada dos dois
primeiros capítulos do Génesis em termos da nova física química, e Thomas
Tymme argumentou que a Criação não tinha sido mais do que uma "extrac-
ção alquímica, separação, sublimação e conjunção".
A interpretação química do Génesis ajudou a focalizar a atenção no pro-
blema dos elementos como o reclamado primeiro fruto da Criação. Apesar de
a tria prima paracelsista (sal, enxofre e mercúrio) ser uma modificação da
anterior teoria enxofre-mercúrio e de outras tríades de elementos, tem um
especial significado na ascensão da ciência moderna. Os elementos aristotéli-
cos (terra, água, ar e fogo) serviram de base ao sistema cosmológico aceite.
Eram utilizados pelos alquimistas como um meio de explicação da composi-
ção da matéria, pelos médicos (através dos humores) como um sistema para a
interpretação de doenças e pelos físicos como base para a correcta compreen-
são do movimento natural. A introdução de um novo sistema de elementos
corria, assim, o risco de colocar em questão o fundamento da medicina e da
filosofia natural antigas.
Se bem que os novos princípios possam ser adequadamente interpretados
como parte de um ataque à filosofia escolástica, é também claro que conduzi-
ram a uma considerável confusão. Paracelso não tinha definido claramente
estes princípios e, de facto, tiveram pouca importância no desenvolvimento
da química analítica moderna, visto serem descritos como diferindo qualitati-
vamente em diferentes materiais. Paracelso também não tinha apresentado
estes princípios especificamente como um substituto para os elementos aris-
totélicos. Ao invés, tinha usado ambos os sistemas - e, muitas vezes, de
maneira aparentemente contraditória. No último quartel do século XVI,
encontramos a teoria dos elementos num estado de mudança contínua, com
os químicos escolhendo a evidência observacional ou os textos paracelsistas
conforme consideravam adequado. Contudo, os textos deste período permi-
tem constatar que crescia o número de médicos químicos que se voltavam
26 I O HOMEM E A NATUREZA NO RENASCIMENTO

para os três princípios como meio de explicação. Alguns eram atraídos pela
analogia trinitária de corpo, mente e espírito, enquanto outros buscavam uma
alternativa aos humores. Para os químicos teóricos, representavam substân-
cias filosóficas que jamais poderiam ser isoladas na realidade, enquanto que
para o farmacêutico prático não eram mais do que produtos de destilação.
Não era fora do vulgar que uma erva medicinal produzisse uma fleuma
aquosa, um óleo inflamável e um sólido e sentia-se que estes indicavam, pelo
menos, a presença dos princípios básicos do mercúrio, do enxofre e do sal.
O conceito de universo químico ia além da interpretação química da Cria-
ção e dos problemas da teoria dos elementos. Os autores interessados em
meteorologia explicavam o trovão e o raio como uma combinação entre o
enxofre aéreo e o nitrato, em analogia com a explosão de enxofre e salitre na
pólvora. Similarmente, os autores paracelsistas foram os primeiros a fornecer
uma hipótese importante para o desenvolvimento da agricultura química.
Procurando uma causa dos efeitos benéficos do estrume na lavoura, postula-
ram, correctamente, que o mesmo fornecia sais solúveis essenciais ao solo.
De facto, os paracelsistas encaravam a terra como um vasto laboratório
químico, o que explicava a origem dos vulcões, das fontes termais, das fontes
de montanha e o crescimento dos metais. O velho conceito de fogo interior
era apresentado como explicação dos vulcões, que seriam erupções de matéria
derretida através de fissuras superficiais (Figura 2.3.). As correntes de monta-
nha eram explicadas de maneira análoga. Neste caso, argumentavam que
reservatórios de água subterrânea eram destilados pelo calor do fogo central.
Quando este vapor atingia a superfície, as montanhas serviam como alambi-
ques químicos e o resultado era uma corrente de montanha "destilada". Não
obstante, havia quem rejeitasse a possibilidade de tal fogo, argumentando que
o ar necessário para uma tal conflagração não existia no interior da terra.
Henri de Rochas (fl. 1620-1640) sugeriu que o calor de nascentes de água
mineral provinha da reacção do enxofre com um sal nitroso na terra. O
médico inglês Edward Jorden (1569-1632) ofereceu uma alternativa química
mais abrangente. Sendo um vitalista meticuloso, tal como a maioria dos quí-
micos da época, Jorden aceitou a noção do crescimento dos metais vulgar-
mente defendida na época, mas explicou-a de uma nova maneira. Socorreu-se
do processo alquímico da "fermentação", que definiu como uma reacção exo-
térmica que não requeria ar. Jorden argumentava que devia ser esta a causa
do crescimento inorgânico. Esta nova fonte de calor permitia compreender
vulcões e correntes de montanha sem a perturbadora noção do fogo central.
ACHAVE QU!MICA 127

Figura 2.3. Diagrama representando a relação ent re os vulcões e o fogo central. De Athanasius
Kircher, Mundus subterraneus (1678). Cortesia do Department ofSpecial Collections, Universidade
de Chicago.

O microcosmo e a teoria médica

A filosofia química paracelsista era considerada uma nova aproximação


observacional a toda a natureza, mas seduziu os médicos desde o início. Para-
celso insistiu em que fora Deus, e não as constelações, que o tinha criado
médico; os seus seguidores repetiram esta afirmação e acrescentaram que,
devido à sua origem divina, a medicina elevava-se acima das outras ciências.
Paracelso e os seus seguidores reflectiam o conceito do médico-padre do neo-
platonismo renascentista, sendo provável que a sua fonte inicial se encontre
em Eclesiástico 38: 1: "Honra o médico, por causa da necessidade, porque foi
o Altíssimo que o criou." De facto, para Paracelso, o papel do médico pode-
ria, com propriedade, ser comparado com o do verdadeiro mágico natural.
Paracelso e os seus seguidores iniciais acreditavam firmemente na analogia
macrocosmo-microcosmo. O homem seria uma pequen a réplica do grande
28 I O HOMEM E A NATUREZA NO RENASCIMENTO

mundo em seu redor, e em si estariam representadas todas as partes do Uni-


verso (Figura 2.4.). Era sempre proveitoso procurar correspondências entre o
mundo maior e o menor, sendo a teoria da simpatia e antipatia utilizada para
explicar a interacção universal. Em contraste com os aristotélicos, que insis-
tiam na acção por contacto, os paracelsistas não tinham dificuldade em acei-
tar a acção à distância. Percebe-se assim, facilmente, por que razão os herme-
tistas paracelsistas foram dos primeiros a defender a pesquisa experimental de
William Gilbert relativa ao iman. No campo médico, a cura controversa pelo
tratamento da causa, ao invés do da própria doença, assumia seguramente a
possibilidade de acção à distância.
Para os paracelsistas, a teoria dos humores da medicina galénica não era
adequada. A explicação tradicional da doença como um desequilíbrio interno
dos humores era rejeitada por Paracelso, que preferiu enfatizar maus funcio-
namentos localizados no interior do corpo, atribuídos a um dos três princí-
pios. Para ele, uma das principais causas da doença encontrava-se em factores
germinativos externos que eram introduzidos no corpo através do ar, da
comida ou da bebida. Estes factores instalavam-se e depois cresciam em
órgãos específicos. Podia aqui estabelecer-se uma analogia entre o macro-
cosmo e o microcosmo. Do mesmo modo que "sementes" metálicas na terra
resultariam no desenvolvimento de veios metálicos, "sementes" de doença
cresciam no interior do corpo enquanto combatiam a força vital local de um
órgão específico. Esta força vital separava a substância pura do desperdício, de
maneira análoga ao alquimista que, no seu laboratório, procurava quintessên-
cias puras a partir da totalidade da matéria.
A relação do macrocosmo com o homem tinha implicações químicas adi-
cionais. O paracelsista francês Joseph Duchesne ( c. 1544-1609) exemplificou a
procura contínua de analogias químicas entre os paracelsistas, quando falava
de doenças respiratórias através da mesma analogia com a destilação utilizada
por outros iatroquímicos (ou químicos médicos), quando explicavam a ori-
gem das correntes de montanha. Especial importância era atribuída ao ar,
reconhecido como essencial para a manutenção do fogo e da vida. Se o enxo-
fre aéreo e o nitrato se podiam combinar para causar o trovão e o relâmpago
no céu ou nascentes termais em terra, podiam reagir no interior do corpo,
quando inalados, para gerar doenças caracterizadas por elevada temperatura e
ardor (Figura 2.5.). Nos primórdios do século XVII, o nitrato aéreo tinha sido
associado com uma força vital necessária ao homem. De facto, esta força vital
era, ocasionalmente, identificada com o spiritus mundi. Postulava-se que, após
se ter separado do ar impuro nos pulmões, esta substância transformava-se em
A CHAVE QUÍMICA 129

Figura 2.4. O homem visto como o microcosmo unido ao seu criador pelas cadeias da natureza,
representada como uma jovem mulher. Observem-se os retratos de Hermes e Paracelso, para além
dos diagramas dos quatro elementos e dos três princípios. De Tobias Schütz, Harmonia macro-
cosmi cum microcosmi ( 1654). Cortesia do Department of Special Collections, Universidade de
Chicago.
30 1 O HOMEM E A NATUREZA NO RENASCIMENTO

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Figura 2.5. Homem sitiado no seu castelo de saúde. De Robert Fludd, Integrum Morborum
Mysterium (1631 ). Da colecção do autor.
A CHAVE QUlMICA j 31

sangue arterial. Visto apoiarem este conceito - ou modificações do mesmo -


não é de admirar que encontremos paracelsistas do século XVII a rejeitar a
prática comum da sangria, argumentando que esta operação diminuía a força
vital do paciente. Ao mesmo tempo, a rejeição da sangria servia para que os
paracelsistas exprimissem a sua oposição à patologia humoral tradicional.
Se a filosofia química paracelsista da natureza fornecia uma estrutura con-
ceptual para o iatroquímico, fornecia também uma base para o seu trabalho
prático. Devido à importância do calor e do fogo, tanto a nova análise quí-
mica da urina como a nova doutrina química das assinaturas deveriam ser
caracterizadas por processos de destilação. Similarmente, na procura dos
ingredientes das águas medicinais de estâncias t ermais, os paracelsistas
favoreceram o desenvolvimento da química analítica. Uma longa tradição
medieval neste campo tinha conduzido ao desenvolvimento não só de testes
isolados, mas também de verdadeiros procedimentos analíticos, sendo com-
preensível que os paracelsistas rapidamente adoptassem esta tradição e a
aumentassem. Em 1571, Leonard Thurneisser (c. 1530-1596) utilizaYa méto-
dos quantitativos, testes de solubilidade, evidência cristalográfica e testes pela
chama e, no princípio do século seguinte, Edward Jorden adYoga\·a a
mudança vermelho-azul do "tecido escarlate" como um teste regular para
aqueles líquidos que nós classificaríamos como ácidos e bases. O trabalho des-
tes homens forneceu, mais tarde, a informação básica necessária para a pes-
quisa analítica de Robert Boyle, ainda nesse século.
Os resultados das novas análises químicas foram aplicados na prática. Os
químicos podiam, agora, fornecer orientações para a preparação de águas
minerais artificiais a quem não pudesse deslocar-se às estâncias termais e, ao
mesmo tempo, esta informação analítica forneceu mais um argumento a favor
da utilização de medicamentos preparados quimicamente. Os paracelsistas
argumentavam apaixonadamente que a época que estavam a viver era nova e
violenta - tendo produzido numerosas doenças devastadoras desconhecidas
dos Antigos (as doenças venéreas aterravam-nos particularmente). Como resul-
tado, necessitavam de medicamentos novos, mais potentes do que os galénicos
tradicionais preparados a partir de ervas. O propósito dos paracelsistas era
claro: estes novos medicamentos eram metais e minerais quimicamente prepa-
rados, e nisto não eram inovadores. Contudo, como afirmou R. Bostocke,
em 1585, o verdadeiro paracelsista podia ser distinguido por meio da sua cuida-
dosa atenção à dosagem e ao uso da arte química para extrair apenas a essência
valiosa dos minerais perigosos. Mais, na defesa destes medicamentos (1603),
Duchesne contava com as análises da água das estâncias termais para demons-
trar que os minerais tinham efeitos medicinais benéficos.
32 I O HOMEM E A NATUREZA NO RENASCIMENTO

Os defensores dos materia medica tradicionais estavam longe de estar


satisfeitos com a apologia dos medicamentos químicos e, na verdade, o seu
receio das novas drogas tinha algum fundamento. Paracelso cortou com o
dito galénico "os contrários curam" e virou-se para a medicina rural alemã,
que insistia que "semelhante cura semelhante". Exigia-se que o médico inves-
tigasse os venenos e não misturas vegetais suaves. O veneno causador da
doença deveria agora - na formulação adequada - tornar-se a sua cura.
Embora os químicos procurassem remover as qualidades tóxicas, os médicos
não ficavam descansados com esta pretensão. Para eles, muitos dos propo-
nentes dos novos medicamentos eram charlatões ignorantes. Num texto galé-
nico, a própria designação "paracelsista" tem uma conotação duvidosa.
Tomás Erastus (1524-1583) acusou Paracelso de advogar o uso interno de
venenos mortais (1572). Na sua comparação entre as inovações de Copérnico
e de Paracelso, John Donne (1573- 1631) incluiu este último no círculo
interno do covil de Satanás enquanto "governador dos médicos homicidas".
Em resposta, os químicos falavam cada vez mais energicamente em defesa dos
seus remédios e métodos. No século XVII foi sugerido que várias centenas de
doentes pobres fossem levados dos hospitais e dos campos militares. Seriam
divididos em dois grupos, um dos quais seria tratado pelos galenistas e o
outro pelos químicos. O número de funerais determinaria se tinha sido a
medicina química ou a tradicional a triunfar. A experiência nunca foi efec-
tuada, mas o facto de ter sido proposta indica o calor da controvérsia.
Os novos medicamentos tornaram-se assunto de aceso debate a nível uni-
versitário nos inícios do século XVII. Os panfletos mais incendiários aparece-
ram em Paris na primeira década do século, mas depressa foram traduzidos e
publicados em outras regiões da Europa, havendo histórias do conflito escri-
tas em 1606. Em Londres, os membros do Royal College of Physicians planea-
vam, há já várias décadas, publicar uma farmacopeia oficial. O seu interesse
pelos novos químicos aumentou quando o médico químico francês Theodore
Turquet de Mayerne (1573-1655) se mudou para Londres como médico do
rei Jaime I. Quando a farmacopeia apareceu impressa em 1618, viu-se que se
tinha chegado a um compromisso cuidadoso. Se bem que a maior parte do
volume fosse dedicado às drogas galénicas tradicionais, diversas secções foram
reservadas para os novos remédios preparados quimicamente. O sanciona-
mento oficial era-lhes dado aí e no prefácio, que chamava a atenção para a sua
eficácia em doenças difíceis.
Podemos então, adequadamente, falar de uma crescente polarização entre
médicos herméticos e médicos galénicos. Ao mesmo tempo, porém, a posição
do London College of Physicians mostra a tendência para o compromisso na
ACHAVEQUIMICA 133

difícil questão do uso interno dos novos medicamentos. Entre os próprios


médicos químicos, um número cada vez maior procurou manter a química
como base de uma nova filosofia da natureza, livrando-se dos aspectos mais
místicos e menos experimentais. Influentes iatroquímicos, tais como Daniel
Sennert (1572-1637) e Andreas Libavius (1540-1616), concordavam com
Paracelso em que a química constituía uma base adequada para a medicina e
era, assim, a ciência mais importante de todas. Mas não pretendiam ver os
trabalhos de Aristóteles, de Galeno e de Hipócrates abandonados e queimados
na praça pública. Ao invés de recorrer a polémicas, o verdadeiro clínico deve-
ria examinar a antiga e a nova medicinas e aceitar o melhor de ambas. Para
muitos iatroquímicos do século XVII, a filosofia química podia ser seguida
com segurança, porque parecia fornecer uma nova base observacional para as
ciências. Porém, muitos estavam tão incomodados como os galenistas - ou,
mais tarde, como os filósofos mecanicistas - com a cosmologia mística e
alquímica de alguns dos seus colegas. O leitor desta literatura encontrará,
assim, um espectro desconcertante de pontos de vista médicos e químicos.
Estes livros e panfletos abrangem tudo desde a alquimia alegórica tradicional
a farmacopeias químicas práticas. E, como veremos, o debate interessava bas-
tante aos médicos e aos cientistas até bem dentro do século XVII.
Podemos fazer uma pausa para reflectir no significado da química e dos
debates por ela desencadeados neste período do Renascimento Tardio. Que
tinham os paracelsistas conseguido? Como tinham influenciado a medicina e
a ciência neste período?
Acima de tudo, a medicina paracelsista representava uma reacção contra a
tradicional veneração pela Antiguidade. Os primeiros paracelsistas falavam
severamente de Aristóteles e de Galeno (e quase sempre de Hipócrates) e volta-
vam-se para os textos herméticos, alquímicos e neoplatónicos então recente-
mente traduzidos. Um universo vitalista fundado na analogia macrocosmo-
-microcosmo e na função divina do médico constituía a base para uma nova
compreensão cristã da natureza como um todo. No seu caminho para a
reforma, os paracelsistas pretendiam atacar as próprias fundações do sistema
anterior. Os elementos aristotélicos - nos quais se fundava a antiga cosmologia
- e os humores concomitantes - dos quais dependia a medicina galénica - eram
questionados. Os químicos viravam-se agora para os três princípios como um
meio explicativo, e os médicos paracelsistas falavam em pontos locais de doença
governados por archei internos e não em desequilíbrio de fluidos.
A melhor expressão da resposta paracelsista à Antiguidade encontrava-se na
ênfase posta na observação e na experimentação como uma nova base para o
estudo da natureza. Seguramente os paracelsistas não se encontravam sozinhos
34 I O HOMEM E A NATUREZA NO RENASCIMENTO

nesta argumentação, mas o seu interesse especial pela química como guia para o
estudo do Homem e do Universo distingue-os de outros filósofos renascentistas
da natureza. A sua ampla utilização de equipamento químico e a sua constante
referência a analogias químicas como meio de compreender a totalidade dos
fenómenos naturais coloca-os de direito na tradição hermético-alquímica.
A medicina dos paracelsistas era fortemente matizada pela química, mas
não pela matemática. Embora pudessem, cinicamente, prestar homenagem à
certeza da prova matemática, o seu conceito de quantificação encontrava-se
mais próximo do misticismo neopitagórico ou das pesagens práticas. Abstrac-
ções matemáticas dos fenómenos naturais ou provas geométricas sugeriam a
escolástica, que se devia manifestamente evitar. Suspeitava-se que a própria
lógica era um género de ciência e medicina "matemáticas" da Antiguidade.
A ciência médica dos paracelsistas tendia, assim, a constituir uma aproxima-
ção matematizada da natureza inferior à do passado.
As opiniões destes químicos médicos eram expostas com convicção, mas
frequentemente com pouco tacto. Desacreditavam a confiança excessiva
comum na Antiguidade. Apelavam a uma nova medicina e a uma nova filoso-
fia natural baseadas em observações e experiências quimicamente orientadas.
Exigiam reformas educativas, de modo que o seu conceito "cristão" da natu-
reza pudesse ser ensinado nas universidades. Nestes aspectos entravam em
conflito directo com a tradição. No entanto, discutiam entre eles próprios não
menos veementemente. Debatiam questões como o lugar da matemática na
formação da nova filosofia, a verdade dos elementos, a realidade da analogia
macrocosmo-microcosmo e o significado das emanações astrais. Avanços
específicos podem ser, evidentemente, creditados aos paracelsistas - o seu
conceito de doença ou o reconhecimento da importância da química para a
medicina (como base para a compreensão dos processos fisiológicos e como
uma nova fonte de preparação de remédios) servem como excelentes exem-
plos. Além disso, existem poucas dúvidas de que alguns dos conceitos
"modernos" do final do século XVII se enraízam nos conceitos "não moder-
nos" dos iatroquímicos do século anterior. Contudo, foi essencialmente por
definirem a visão de uma nova ciência baseada na observação e interpretada
através da química que participaram num debate que viria a influenciar a
definição de aspectos significativos da ciência moderna.

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