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13/12/2021 10:47 Revista Educação Pública - Os contos de fadas no Ensino Fundamental: uma proposta piagetiana

ISSN: 1984-6290
B3 em ensino - Qualis, Capes
DOI: 10.18264/REP

Os contos de fadas no Ensino Fundamental: uma proposta piagetiana

Isabel Cristina Weisz


Licenciada e mestra em Língua Portuguesa (PUC-SP), pedagoga com múltiplas especializações, pós-graduanda em Psicologia do Desenvolvimento e da
Aprendizagem

Pedagogos, professores alfabetizadores e da educação infantil já estão familiarizados com a importância lúdica e educacional dos contos de
fadas. Lidos por adultos, esses contos despertam grandemente o interesse dos pequenos. Muitos deles, de tanto pedir para que os contos sejam
relidos, acabam aprendendo a declamá-los de memória. Várias dessas crianças têm muito prazer em recitar a história palavra por palavra, ao
mesmo tempo que alguém as lê a seu pedido. Essa prática é útil para a ampliação do vocabulário e para que a criança descubra e comece a
compreender as diferenças estruturais existentes entre a linguagem escrita e a linguagem falada. Nesse aspecto, estamos nos referindo a
questões semânticas, léxicas e outras afins que são pertinentes ao domínio e ao uso da língua materna em todas as suas variantes. Ademais, a
leitura desses contos para crianças é um estímulo para que elas se interessem pelo universo dos livros, pelo hábito da leitura como fonte de
entretenimento e de conhecimento.

Da mesma forma, muitos profissionais da Educação conhecem obras de autores que analisam os contos de fadas do ponto de vista da
psicanálise infantil. Embora também utilize o gênero contos de fadas como ferramenta, a proposta deste artigo é tratá-los sob outro viés: o
ensino de valores e princípios necessários para uma convivência harmônica nos grupos sociais nos quais a criança começa a tomar parte: a sala
de aula, a escola como um todo ou qualquer outro ambiente que pressuponha a interação entre os indivíduos presentes. Tal proposta se justifica
por acreditarmos que um quadro educativo eficiente não pode prescindir do uso de recursos objetivos e específicos para o desenvolvimento
moral e afetivo de nossas crianças. Essa prática, inclusive, faz parte do “currículo oculto” que é ensinado durante o ano letivo pelos profissionais
que são realmente comprometidos com a Educação no Brasil.

No mundo moderno as crianças começam a deixar o núcleo familiar já na primeira infância. A profissionalização da mulher e a importância do
seu trabalho na composição da renda familiar (quando, não raras vezes, encontramos a mulher como a única responsável pelo sustento de sua
prole) fazem com que os filhos sejam “institucionalizados” em berçários e creches ainda bebês. Logo, os professores e demais educadores
auxiliares tornam-se importantes “referências de mundo” cada vez mais cedo para as crianças. Essa realidade, se bem conduzida por pedagogos,
professores e profissionais acadêmicos de ensino, pode contribuir sobremaneira para o progresso da sociedade, pois, segundo Wallon (1968), o
ser humano é social geneticamente, ou seja, somente a vida em sociedade oferece a ele um pleno desabrochar de todas as suas potencialidades
e aptidões. Sendo assim, aprender a conviver em sociedade é uma necessidade que começa na mais tenra infância.

Além disso, sabemos que a infância contemporânea é partícipe de um cenário social que sofre profundas transformações. Instituições milenares,
como a religião e os modelos tradicionais de escola e de família, são constantemente questionados e colocados à prova no popularmente
chamado “politicamente correto”. Consequentemente, pais e educadores são estimulados a buscar paradigmas educacionais mais amplos e não
dogmatizantes, pois a criança objeto dessa “nova educação” terá que se desenvolver num mundo de referências múltiplas, pluralizadas, dentro
do qual ninguém pode se sentir discriminado, ignorado ou excluído. Somente a partir de reflexões como as que este artigo apresenta, nós,
educadores, podemos contribuir para a construção de uma sociedade sem sectarismos e que se norteie pelo respeito ao próximo e pela
solidariedade.

Breve histórico do gênero contos de fadas


O francês Charles Perrault (1628-1703) deu origem ao gênero literário que ficou conhecido como contos de fadas com a publicação da obra
Histórias ou contos dos tempos passados (Histoires ou contes du temps passé) no ano de 1697. Perrault era advogado por formação, mas trabalhou
como encarregado das construções reais, e isso o aproximou do rei Luís XIV. Tendo se tornado conhecida pelo subtítulo de Histórias de Mamãe
Gansa, sua obra magna é uma seleção e adaptação de contos populares e destinava-se à diversão de damas e cavalheiros que frequentavam a
corte de Versalhes. Por conseguinte, a temática dos nove contos que compõem essa primeira edição é adulta. Escrita em um tom que mescla
comicidade com advertência, em sua obra o autor convida os leitores a reflexões sobre os problemas e perigos da época. Motes como
infertilidade (A bela adormecida), incesto (Pele de Asno), feminicídio (O Barba Azul) e a mentira/sagacidade como meios de se vencer na vida (O
gato mestre) estão presentes nessa compilação.

O notável sucesso dessa publicação ímpar repercutiu pela Europa no decorrer de mais de um século e motivou os irmãos alemães Jacob (1785-
1863) e Wilhelm (1786-1859) Grimm, linguistas e escritores, a percorrer povoados de seu país coletando e transcrevendo histórias folclóricas.
Esses relatos foram adaptados à realidade infantil e o resultado final desse trabalho são os contos de fadas tradicionais, com o conteúdo e o
formato que atualmente conhecemos. Os contos de Grimm (Kinder - und Husmärchen) foram publicados pela primeira vez em forma de coleção
entre os anos de 1812 a 1822.

O trabalho da dupla foi um divisor de águas. Na época da formação acadêmica de ambos (século XIX), a criança deixava de ser vista como um
“adulto em miniatura”. As necessidades específicas dessa fase da vida passaram a ser compreendidas por mais pessoas, e Os contos de Grimm é
o primeiro registro de uma literatura voltada ao entretenimento infantil.

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Originalmente foram publicadas 100 histórias, porém relativamente poucas delas são conhecidas atualmente. O motivo disso são as mudanças
sociais que o mundo viveu nos últimos duzentos anos. A título de exemplo, citamos os contos de fadas que contêm elementos religiosos (como
A protegida de Nossa Senhora). Eles não são conhecidos do grande público porque há muito deixaram de ser publicados nas reedições da obra,
visto que teriam um apelo muito limitado no mundo atual: tais contos trazem articulações que não são mais aceitas unanimemente.

Nesse contexto, é pertinente questionar: o que fez com que algumas dessas histórias se tornassem tão bem aceitas durante esses dois séculos, a
ponto de serem conhecidas por praticamente todas as pessoas do Ocidente? Oferecemos uma resposta a essa inquirição partindo dos estudos
de Bettelheim.

Bruno Bettelheim (1903-1990) foi um psicólogo infantil e autor de A psicanálise dos contos de fadas (2004). Segundo seus minuciosos estudos,
para que uma história possa de fato ser considerada um autêntico conto de fadas, deve conter quatro características básicas: fantasia, escape,
recuperação e consolo. Na prática, a história deve ter um conflito bem marcado que force a personagem protagonista a “lutar” de alguma forma
para manter sua integridade física e/ou emocional. Em sua luta interior, ela persevera no bem e finalmente consegue vencer suas dificuldades.
Esse processo lhe traz uma grande aprendizagem e sua superação é coroada por um “final feliz” que a situa a em um status (social, financeiro,
sentimental) muito superior àquele em que ela se encontrava no início da trama.

Nesse viés, mesmo as crianças menores conseguem identificar facilmente o modus operandi das principais personagens, torcendo sempre para
as personagens centrais de cada conto, pois

as figuras nos contos de fadas não são ambivalentes – não são boas e más ao mesmo tempo, como somos todos na realidade. Mas, dado que a
polarização domina a mente da criança, também domina os contos de fadas. Uma pessoa é boa ou má sem meio termo. Um irmão é tolo, o outro
é esperto. Uma irmã é virtuosa e trabalhadora, as outras são vis e preguiçosas. Uma é linda, as outras são feias. Um dos pais é todo bondade, o
outro é malvado (Bettelheim, 2004, p. 17).

Além disso, ainda segundo Bettelheim (2004), o gênero conto de fadas interpreta o mundo e tudo o que nele acontece sob a perspectiva do
herói, que é alguém em desenvolvimento físico e emocional, portanto frágil. Essa característica de fragilidade é reforçada pelo fato de que, no
tempo dos contos de fadas clássicos, os reis, rainhas, príncipes etc. eram tão raros quanto hoje (ou quanto são os mandatários atuais), mas
nessas histórias eles aparecem em abundância porque representam poder exatamente como os pais dos ouvintes dos contos representam.

Ainda com relação aos fatores que concorreram para a popularização dos contos de fadas clássicos no Ocidente, Bettelheim (2004) aponta que,
nas versões de Grimm, nem a madrasta da Branca de Neve nem a fada malvada da Bela Adormecida receberam punição. Isso não acontece em
versões mais antigas. A madrasta, por exemplo, teve que dançar calçando sapatos em brasa até morrer. Na versão atual (a dos irmãos Grimm),
ela é totalmente ignorada por Branca de Neve, que se casa com o príncipe e vive “feliz para sempre”. Vemos assim que o desejo de vingança
ante um mal recebido foi suprimido e substituído pela busca de viver uma realidade feliz. Dessa maneira, fica evidenciada a principal
característica de um autêntico conto de fadas: o consolo final que ele apresenta. Por essa razão, histórias como A menina dos fósforos e
Soldadinho de chumbo não podem ser considerados autênticos contos de fadas.

Porém, se um “final feliz” e cheio de consolo espera pelo herói ou heroína que durante todo o conto mostrou sentimentos e atitudes nobres, o
mesmo não acontece com as personagens antagonistas que agiram com ódio e maldade no desenrolar da história. Muitas vezes elas recebem as
consequências de seus excessos, como é o caso do gigante em João e o pé de feijão e da bruxa em João e Maria.

Nesse aspecto, Bettelheim (2004) afirma que as crianças dessa fase de desenvolvimento amam naturalmente a justiça; contudo, elas ainda
desconhecem os conceitos de perdão e clemência, que os adultos tanto valorizam. Elas ainda não possuem maturidade suficiente para isso.

Por essa razão, elas gostam quando um malvado recebe aquilo que merece. Aos poucos, devemos mostrar que a justiça, para ser “realmente
justa”, não pode ser despótica.

Essa análise nos permite inferir, em linhas mais gerais, que os contos de fadas presentes na obra dos irmãos Grimm que não sucumbiram no
decorrer desses dois séculos são aqueles que ilustram situações atemporais, sempre presentes na história humana, independentemente de
questões religiosas, políticas ou culturais e que trazem um final feliz como forma de consolo a todos que enfrentam situações semelhantes às
vencidas por suas personagens protagonistas. Por essa concepção, o conto de fadas, além de arte literária, é para as crianças uma fonte de
esperança no futuro. Todos nós fomos crianças um dia; daí a explicação da perene fascinação que esse gênero exerce em nós.

Neste ponto de nossa exposição, é pertinente pontuar que o gênero conto de fadas é representado por um texto que é elaborado em torno da
presença de algum elemento mágico ou fantástico; um gigante que devora criancinhas, um lobo que tem lábia suficiente para convencer uma
menina a se desviar do caminho da casa da vovó etc. – e não necessariamente uma fada (Corso; Corso, 2011). É interessante notar que,
etimologicamente, a palavra “fada” é proveniente do latim fatum, que deu origem à palavra “fatalidade”, um acontecimento totalmente
imprevisto do qual não há como fugir. Um destino aparentemente inelutável é exatamente o que ocorre com a personagem protagonista e faz
com que ela tenha que buscar outra forma de viver.

Difundidos em livros e nas belas produções cinematográficas de Walt Disney, os contos de fadas seguem atuais de geração a geração porque
têm como cerne a transmissão de valores por meio dos sentimentos e conflitos comuns aos seres humanos, conforme dissemos.

Essa transmissão é eficaz porque se realiza de maneira implícita, sem imposições de dogmatização, pois, diferentemente da fábula, que
invariavelmente apresenta uma moral no final da narrativa (que funciona como ''chave'' para a interpretação pretendida pelo autor), o conto de
fadas nunca diz claramente o que devemos fazer diante de uma situação conflituosa, porém a escolha da personagem protagonista ajuda-nos a
despertar o apreço pelo caminho do bem e pelos princípios mais elevados da moral.

Os contos de fadas no desenvolvimento socioemocional da criança


Segundo Wallon (1968), em cada idade a criança constitui um conjunto indissociável e original. Neste tópico analisaremos os estágios de
desenvolvimento da criança e a aptidão delas em cada uma dessas fases para a compreensão e interpretação dos contos de fadas.

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Período Pré-Operatório (dos 2 aos 7 anos de idade)


Para fins pedagógicos práticos desta proposta de trabalho, necessitamos saber: a partir de que idade a criança é capaz de captar os conteúdos
conceituais (morais) primordiais de uma história e, por extensão, de um conto de fadas? Para responder satisfatoriamente a esse
questionamento, debruçamo-nos sobre o extenso trabalho de Piaget que deu origem à sua Epistemologia Genética.

Partindo da detalhada observação de seus filhos Jacqueline, Lucienne e Laurent e de muitas outras crianças, Piaget realizou um rico trabalho por
meio do qual nos apresenta quatro fases do desenvolvimento físico e cognitivo de crianças e pré-adolescentes. Nesse trabalho ele aponta que, a
partir de dois anos de idade, a criança está saindo da primeira fase do desenvolvimento (chamada Período Sensório-Motor) e entrando na
seguinte, o Período Pré-Operatório, que se estende até os sete anos. Assim, aos dois anos e seis meses de idade a criança já possui um
repertório vocabular que lhe permite elaborar perguntas sobre pessoas e objetos que não estão em sua presença (Piaget, 2010). Começa então a
conhecida fase do “o que é que?” e “por que é que?”. Indagar sobre tudo pode parecer um ato simples e corriqueiro, porém é a manifestação de
um grande avanço maturacional da estrutura mental da primeira infância, uma vez que pressupõe:

1. O uso da palavra como símbolo de representação de pessoas, animais, objetos e conceitos (Piaget, 2010);
2. Uma memória que esteja desenvolvida o suficiente para conservar e recuperar a existência de seres (animados ou não) que não estão
envolvidos em alguma atividade que a criança esteja praticando naquele dado momento ou relacionados a alguma de suas necessidades
fisiológicas (fome, sede) ou emocionais imediatas, como desejar o colo da mãe (Piaget, 2002).

Do ponto de vista prático, verifica-se que nessa fase a criança inaugura o “pensamento simbólico”. Nele, o raciocínio se dá por meio de imagens
que representam o mundo concreto no qual ela vive. Esse raciocínio não é lógico e a criança ainda não é capaz de elaborar ideias abstratas. Ela
maneja as imagens em sua mente e não consegue distinguir aquilo que imaginou daquilo que de fato praticou. Dessa forma, é muito comum a
criança relatar que tenha visitado algum lugar (zoológico, praia etc.) que conheça apenas por meio de fotos ou vídeos.

No que tange à conceituação de coisas imateriais, ela reconhece/nomeia apenas as emoções e sentimentos que tem maturidade para vivenciar.
Alegria, tristeza, raiva, medo e frustração são as emoções que surgem primeiro (de zero aos três anos de idade) e estão entre as mais frequentes,
pois, diferentemente da sensação de vergonha, elas não precisam da aprovação/reprovação social para aflorar.

Por estar apta a considerar o mundo somente a partir de suas vivências materiais e emocionais, a criança nessa fase de desenvolvimento não
consegue imaginar um mundo no qual não esteja presente. O resultado comportamental dessa concepção é o pensamento egocêntrico infantil,
que tem seu auge entre os três e os cinco anos. No egocentrismo, a criança acredita que tudo que existe no mundo (pessoas, seres, objetos) está
de alguma forma relacionado a ela (Rappaport, 2007). Por isso se frustra, se enraivece e tem crises disruptivas (tendo ataques violentos de birra,
jogando-se no chão aos gritos etc.) tão facilmente a cada vez que não é atendida em suas exigências ou que uma brincadeira não dá certo. É o
forte egocentrismo dessa fase que impossibilita a manifestação de uma socialização com alteridade; a criança não aceita emprestar seus
brinquedos para que outra criança possa se divertir sozinha em sua presença (em seu triciclo, balanço infantil etc.). Por exemplo, aos três anos de
idade, o egocentrismo da criança é tal que não se pode ter expectativas de que ela seja, de fato, sociável. O máximo que ela é capaz de fazer
socialmente é ter atitudes como cantar, dançar, tagarelar etc. para conseguir chamar a atenção dos adultos (Mira y Lopez, 1960).

Após esse período, entre os quatro e os seis anos de idade, a criança começa a conhecer alguns valores morais com base na repetição das
palavras “bom” / “mau” que ouve dos adultos. Ela já aprendeu que o “bom” é aquilo que se deve fazer e o “mau” é aquilo que não se deve fazer,
em função das consequências de seus atos. Por exemplo: é um mau ato gritar com as pessoas ou rabiscar as paredes da sala. A consequência
disso é que a mamãe irá ralhar. Em contrapartida, é um bom ato comer toda a refeição: mamãe irá elogiar.

Destarte, para a criança dessa fase, o bem e o mal possuem um valor utilitário porque ela ainda não conhece o juízo moral dos adultos. O bem
ou o mal são avaliados de acordo com as consequências que seus atos poderiam gerar para ela própria. Portanto, é a partir do conhecimento de
“isso pode” e “isso não pode” que se inicia para a criança a sua educação familiar.

Também no Período Pré-Operacional (entre os quatro e os seis anos de idade), a criança já começa o seu real processo de socialização. Na escola
ela tem contato social com pessoas fora de seu ambiente familiar. Surgem as primeiras amizades, e a criança é capaz de se organizar em grupos
cada vez maiores, com até seis ou sete crianças, para brincar e fazer algumas atividades escolares conduzidas pelo(a) professor(a).

Para o enfoque proposto por este estudo, é importante destacar que a partir de cerca de seis anos de idade a criança começa a apresentar um
“realismo moral” com base em tudo aquilo que lhe foi ensinado pelos adultos. Nesse “realismo moral” ela é capaz de discernir (dentro de uma
situação que não a envolva diretamente) quando alguém agiu corretamente ou quando deixou de fazê-lo. Essa habilidade surge entre os seis e
os oito anos, período no qual a criança já ingressou no Ensino Fundamental e, assim, considerando as limitações típicas da idade, dentre elas o
fato de não haver maturação neurológica suficiente para tornar a criança apta a prestar atenção em algo durante um tempo relativamente longo
(Mira y Lopez, 1960), podemos iniciar a leitura de alguns contos de fadas nos quais o contraste entre as atitudes boas e/ou más das personagens
centrais seja bem marcado por suas ações durante a narrativa. O conto Chapeuzinho Vermelho é um bom exemplo disso. Essas leituras devem
ser feitas pelo(a) professor(a) de maneira a evidenciar aqueles comportamentos que são socialmente desejáveis e aqueles que devem ser
evitados. No caso de Chapeuzinho Vermelho, devemos salientar que nunca devemos ser tão ingênuos a ponto de confiar em estranhos, pois não
há como saber, de imediato, quais são as reais intenções das pessoas: o lobo mau agiu de maneira desonesta ao enganar a Chapeuzinho,
fingindo-se de bonzinho e amigo. Essa atitude dele é totalmente reprovável: ninguém deve agir de má-fé, ludibriando os outros para conseguir
se dar bem.

Nesse ponto de nossa explanação, gostaríamos de fazer notar que nos contos de fadas clássicos não são encontradas personagens irônicas ou
sarcásticas, por exemplo. Esses são comportamentos mais complexos, e a compreensão real deles só se dá no Período das Operações Formais
(que começa geralmente a partir dos doze anos de idade). Ao contrário disso, as personagens desse gênero textual geralmente não tentam
dissimular seus sentimentos negativos (quando são más) nem têm atitudes contraditórias (quando são boas). Tudo é muito claro e simples para
viabilizar a assimilação dos pequenos.

No Período Pré-Operatório (que recebe esse nome porque é entendido como fase preparatória para as “operações concretas”), a criança está
conhecendo o mundo e suas possiblidades e por essa razão todas as suposições e sugestões que lhe são apresentadas são aceitas como reais.
Situações do universo da fantasia, como um pé de feijão que cresce até as nuvens ou uma fada madrinha que aparece de maneira misteriosa
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para auxiliar uma jovem que está sendo maltratada pela madrasta, lhes parecem belas e ao mesmo tempo são entendidas como naturais. Outro
ponto pertinente a essa questão é que durante o Período Pré-Operatório a criança é animista, ou seja, atribui atividade orgânica, pensamentos e
sentimentos a objetos ou seres inanimados. Por isso, flores (e outros, como sóis, casas etc.) desenhadas com olhinhos e boquinhas sorrindo são
tão recorrentes na arte infantil.

É também nessa fase de desenvolvimento que as orientações e, principalmente, os exemplos dos adultos mais significativos para a criança (pais e
professores) irão ajudá-la a formatar seus princípios morais, pois ela ainda não possui discernimento suficiente para julgar, separar o “bom” do
“mau”, já que muitas coisas que, a priori, parecem trazer um prazer imediato têm consequências desastrosas a curto e médio prazo. Por isso as
crianças valorizam a obediência aos adultos: eles são sua única referência moral (Bock et al., 1993). Aqui uma vez mais ressaltamos a importância
dos contos de fadas como instrumento pedagógico.

Todas essas características de percepção da realidade se estendem até os sete anos, momento em que as estruturas cognitivas passam a
apresentar um grau de maturidade capaz de permitir à criança um pensamento lógico baseado em suas experiências pessoais mais concretas. Por
conseguinte, essa fase é chamada de “Período das Ações Concretas”. Isso não quer dizer que após essa etapa de desenvolvimento os contos
perderão sua eficácia em ensinar conteúdos morais à criança. Significa apenas que ela começa a ter condições de separar o “fantástico” do real.

Finalizamos este tópico reiterando o que dissemos no início dele: aos dois anos e seis meses de idade a criança já apresenta evolução cognitiva
suficiente para entender narrativas adequadas à sua realidade. À vista disso, assinalamos que é possível começar a leitura dos contos de fadas
clássicos com o objetivo de ensinar a ela questões de cidadania, empatia e respeito para com o próximo. Assim, ao final de cada leitura, devemos
perguntar à criança dessa fase de desenvolvimento se ela gostou e se entendeu a história. As perguntas surgirão espontaneamente e devemos
respondê-las pautando-nos apenas por aquilo que foi questionado, sem acrescentar informações que poderiam extrapolar o grau de
entendimento da criança, deixando-a confusa.

Período das Operações Concretas (dos 7 aos 12 anos de idade)


Iniciando-se efetivamente após os sete anos completos e expandindo-se até os onze, doze anos, o Período das Operações Concretas traz um
avanço marcante: a reversibilidade.

Após conhecer e assimilar a permanência dos seres e objetos concretos no mundo a ponto de “trabalhá-los” mentalmente a partir de imagens, a
criança dessa fase de desenvolvimento se torna capaz de manipulá-los concretamente. Absorvendo noções básicas de quantidade, distância,
tempo, espaço, ordem, seriação e de causa de determinados fenômenos, ela se torna apta a estabelecer relações e fazer abstrações, desde que
os objetos relacionados a tais noções estejam em sua presença. O exemplo clássico da compreensão da reversibilidade é quando a criança
entende que a quantidade de água que enche um copo longo e estreito continua a mesma quando vertida em um copo baixo e largo, ainda que
não chegue a preencher sequer a metade desse segundo recipiente. Portanto, se essa água for novamente vertida ao copo longo, voltará a
preenchê-lo como no início. A reversibilidade torna possível a compreensão de operações matemáticas opostas: adição/subtração e
multiplicação/divisão. Por conseguinte, a compreensão desse fenômeno estabelece o início do pensamento lógico e do raciocínio lógico-
matemático na criança.

Nesse período surge também a compreensão do conceito de seriação. A criança se torna capaz de entender que para fazer algumas coisas a
sequência das ações é indiferente enquanto para outras não é. Por exemplo: para vestir, podemos começar pelas meias ou pela camiseta, mas
para construir um castelo de areia temos que começar pela base e não pelo teto. Conhecendo a seriação, a criança pode demonstrar interesse
em aumentar o número de determinados objetos de que goste e possua (colecionismo). Agora os jogos que mais interessam são os intelectuais
(do tipo de tabuleiro), em detrimento aos jogos de movimento (esconde-esconde, brincadeira de roda etc.).

Da mesma forma, aos sete anos de idade a criança tem grande facilidade de aprendizagem psicomotora e já possui maturidade cerebral
suficiente para manter a atenção e desenvolver uma atividade por períodos de tempo relativamente mais longos. Sua estabilidade biológica
aumenta e isso incrementa o seu rendimento pessoal de maneira considerável (Mira y Lopez, 1960).

Outra mudança importante dessa fase é que, aos sete anos, a criança já amenizou consideravelmente o seu egocentrismo, tornando-se capaz de
colocar-se na perspectiva de outras pessoas que passam por alguma dificuldade. Ela já compreende, portanto, a essência do ditado “Não faça
aos outros aquilo o que você não gostaria que lhe fizessem”. Esse abrandamento do pensamento egocêntrico possibilita à criança entender e
aceitar pontos de vista diferentes do seu. Ela começa a manifestar alguns sentimentos, como gratidão, compaixão e simpatia. Assim, ela tem as
habilidades necessárias para trabalhar com autonomia em pequenos grupos em sala de aula (de quatro ou cinco alunos, no máximo) com um
objetivo comum – como confeccionar um cartaz.

Naquilo que tange a sentimentos e emoções humanas que começam a se manifestar nessa fase, destacamos que somente perto da puberdade
(ou seja, após a entrada da criança na fase de desenvolvimento seguinte, o Período das Operações Formais) o indivíduo se torna hábil para
entender algumas emoções por aquilo que elas realmente são e não pelo que elas nos levam a fazer. Por exemplo: uma criança pode externar
raiva agredindo outra física ou verbalmente por sentir ciúme dela sem saber que o que a moveu a isso é uma emoção ou sentimento, porque,
como já mencionamos neste trabalho, ela ainda não possui maturidade para ter discernimento suficiente de quando se trata de conceitos
referentes a coisas totalmente imateriais.

Para a criança desse período, agir moralmente continua sendo fazer as coisas de acordo com aquilo o que os adultos ensinaram. Não há ainda
um senso crítico interno sobre suas ações ou as de outrem. As regras que os adultos ensinaram devem ser observadas, e nessa obediência reside
o próprio “Bem” e a maneira correta de se conduzir. Esse “realismo moral” acarreta na criança a concepção de responsabilidades sobre suas
ações tendo ainda presentes as punições ou recompensas que poderão advir delas. Antes de completar doze anos de idade, a criança não possui
maturidade para fazer abstrações mais complexas; por isso ainda não é capaz de julgar ações a partir da motivação, da intenção ou do engano
que as motivaram.

Desse modo, dentro da proposta prática deste trabalho, encenações teatrais dos contos de fadas podem ser organizadas pelo(a) professor(a)
polivalente com o propósito de destacar e comentar (a posteriori) as boas ações das personagens e aquelas que devemos evitar para não
prejudicarmos o próximo. No desenvolvimento de atividades que envolvem conceitos abstratos (como afetividade, por exemplo), devemos

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responder apenas àquilo que a criança perguntar, sem trazer novos questionamentos, para evitar sobrecarregá-la com coisas para as quais ela
ainda não possui condições maturacionais de compreender.

Com essa prática pedagógica, nós, educadores, devemos ter em mente que os contos de fadas clássicos não trarão resultados imediatos no
educando após a execução de uma atividade baseada neles. Suas lições ficarão em seu subconsciente. Essa é, portanto, uma aprendizagem que
vai sendo construída na infância e na adolescência. Ao final desse período de desenvolvimento, o educando já estará cursando a segunda fase
do Ensino Fundamental e entrando no Período das Operações Formais.

Período das Operações Formais (dos 12 anos de idade em diante)


Essa nova fase irá gradualmente habilitando o aluno a realizar abstrações cada vez mais sofisticadas. Ela passa a adentrar o padrão do
pensamento puramente simbólico a ponto de começar a compreender e realizar intrincadas inequações matemáticas.

Nessa fase, o educando identifica a responsabilidade objetiva das pessoas em cada situação e é capaz de tomar decisões apuradas discernindo
entre o “certo” e o “errado” em termos de conduta. Nesse aspecto, os contos de fadas clássicos, se trabalhados previamente nos períodos de
desenvolvimento anteriores, poderão oferecer subsídios morais que melhor o orientarão em suas escolhas e atitudes.

Considerações finais
Em suas práticas diárias em sala de aula, os professores da Educação Infantil e da primeira fase do Ensino Fundamental precisam saber adaptar
os interesses dos educandos às suas possibilidades de aprendizagem. Isso significa que as ferramentas pedagógicas utilizadas devem ser
interessantes e, ao mesmo tempo, que eles devem propor desafios compatíveis com o grau de desenvolvimento no qual a criança se encontra.

Nesse aspecto tão fundamental, os contos de fadas clássicos constituem para nós, professores, um rico material de ensino-aprendizagem que
mais uma vez comprova a eficácia da fantasia e do lúdico no desenvolvimento infantil, pois, além de atraentes, os contos de fadas aguçam a
imaginação e a memória. Por esse motivo, este trabalho propôs a utilização pedagógica dos contos de fada clássicos no ensino de valores de
cidadania e respeito ao próximo sob a abordagem da Psicogênese de Jean Piaget.

Em linhas gerais, Piaget destaca que o desenvolvimento cognitivo é um processo biológico ativo que interage com o meio social. É o ambiente
que oferece elementos diversos que devem ser compreendidos e integrados na esfera cognitiva de cada criança, de acordo com cada período
maturacional que ela atravessa. Quanto maior acesso a elementos adequados à sua cognição ela tiver, mais rapidamente formará um repertório
de conhecimentos. Logo, quanto mais rico e diversificado for o conjunto de estímulos apresentados a ela, maior o processamento cognitivo e,
consequentemente, mais ampla a bagagem intelectual na primeira e na segunda infâncias.

Dentro desse contexto, nós, como pedagogos alfabetizadores, apresentamos uma proposta de trabalho cuja eficácia foi e tem sido comprovada
em nosso trabalho realizado em escolas públicas e particulares do Estado de São Paulo: a utilização dos contos de fadas clássicos como
ferramenta de ensino de valores morais e de cidadania aos alunos da primeira fase do Ensino Fundamental.

Em face ao conteúdo exposto ao longo deste trabalho, demonstramos, fundamentados nos estudos de Piaget, que a fase que vai do Período
Pré-Operatório até o final do Período das Operações Concretas é a ideal para a aprendizagem de valores morais e afetivos positivos pela criança
por meio dos contos de fadas clássicos.

Concluímos este texto enfatizando que esta proposta de trabalho está inserida no chamado “currículo oculto”, que visa, de maneira particular, à
boa convivência escolar e, de maneira geral, ensinar valores essenciais de cidadania na formação do caráter do indivíduo. Essa é uma intervenção
eficiente que evidencia o papel dos professores na construção de uma sociedade mais humana.

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Publicado em 30 de março de 2021

Como citar este artigo (ABNT)


WEISZ, Isabel Cristina. Os contos de fadas no Ensino Fundamental: uma proposta piagetiana. Revista Educação Pública, v. 21, nº 11, 30 de março de 2021. Disponível em:
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