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I – Introdução
Não resta dúvida que Karl Marx está no panteão dos grandes pensadores da
humanidade, não apenas por ter desenhado um específico sistema filosófico
e provocado uma reviravolta na economia política, mas pelos efeitos
concretos na política real. Poucos pensadores tiveram e ainda têm a
capacidade de mobilizar a intervenção prática com a mesma intensidade que
Marx; talvez nenhum, bastando lembrar para tanto o específico tratamento
recebido pelos órgãos policiais (no sentido mais amplo possível que a
expressão policial pode carregar). Além de uma vigorosa construção em
termos de economia política, Marx é igualmente um pensador
interessantíssimo da natureza e da tecnologia. Nesse sentido, a filosofia da
natureza e a filosofia da tecnologia de Marx carregam alguns traços que
permitem aproximação a alguns dos autores contemporâneos como Jacques
Derrida e Bernard Stiegler. Nesse trabalho, procurarei explorar essas
conexões, em especial com a nova crítica da economia política que Stiegler,
buscando atualizar Marx, procura levar a cabo.
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Assim, por exemplo, MARX, 1985A, p. 50; MARX, 2008, p. 84, 113.
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Por exemplo, no que diz respeito aos animais, Derrida afirma sobre Descartes: “Ora, no que
diz respeito à relação com ‘o Animal’, essa herança cartesiana determina toda a
modernidade. A teoria cartesiana supõe, para a linguagem animal, um sistema de signos
sem resposta: reações, mas não resposta. (...) O conceito moderno de direito depende
maciçamente desse momento cartesiano do cogito, da subjetividade, da liberdade, da
soberania etc. O ‘texto’ cartesiano não é a causa, claro, dessa estrutura, mas ‘representa’
numa poderosa sistematicidade do sintoma” (2004, p. 84).
que procuram avançar o determinismo igualmente sobre o humano,
especialmente a partir das descobertas das neurociências.
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Diz Marx n’O Capital: “Uma aranha executa operações semelhantes às do tecelão, e a
abelha envergonha mais de um arquiteto humano com a construção dos favos de suas
colmeias. Mas o que distingue, de antemão, o pior arquiteto da melhor abelha é que ele
construiu o favo em sua cabeça, antes de construi-lo em cera” (1985a, p. 149).
Antes de Max Weber, Marx já identificava na ética protestante uma relação
de acoplamento perfeito com o sistema econômico capitalista. Afirmava que
“para uma sociedade de produtores de mercadorias, cuja relação social geral
de produção consiste em relacionar-se com seus produtoscomo mercadorias
portanto como valores, e nessa forma reificada relacionar mutuamente seus
trabalhos privados como trabalho humano igual, o cristianismo, com seu culto
ao homem abstrato, é a forma de religião mais adequada, notadamente em
seu desenvolvimento burguês, o protestantismo, o deísmo etc.” (1985a, p.
75). E, mais adiante, observa que o dinheiro transformou-se na res
sacrosanctae, apagando todas as diferenças qualitativas entre as
mercadorias. A “moderna sociedade” saúda assim no Graal de ouro
“resplandecente encarnação do seu mais autêntico princípio da vida” (p. 112).
Dessa forma, tratando do entesouramento, se “sacrifica ao fetiche do ouro os
seus prazeres da carne. Abraça com seriedade o evangelho da abstenção.
Por outro lado, somente pode substrair da circulação em dinheiro o que a ela
incorpora em mercadoria. Quando mais ele produz, tanto mais pode vender.
Laboriosidade, poupança e avareza são, portanto, virtudes cardeais, vender
muito e comprar pouco são o resumo da economia política” (p. 113)4. É o que
as análises de Weber e Foucault – cada um a seu modo – irão trazer como
“espírito do capitalismo”, entendido no primeiro como ética ascética do
trabalho e pelo segundo como sociedade disciplinar com o correspondente
adestramento de corpos5.
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A noção de história crítica da tecnologia permanece em Marx mais no sentido de que há
uma construção coletiva da tecnologia, com o que é impossível discordar, do que
propriamente uma rearticulação das categorias do natural e do artificial, do homem e da
máquina, em um sentido menos oposicional que composicional (STIEGLER, 2010, p. 15).
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Assim, conquanto Marx tenha visto – com sua base materialista – a importância do trabalho
na mediação entre homem e natureza, subestimou a relevância da ferramenta na
constituição do próprio “espírito” ou “inteligência” que produz. Citando Franklin, Marx
caracteriza o humano como um animal que faz ferramentas (1985a, p. 151), mas não
radicaliza a conclusão ao inverso: o quanto o humano é produzido por essas ferramentas
(STIEGLER, 2010, p. 36).
Türcke naturaliza ao extremo as ideias de espírito e inteligência a partir das
conexões neurológicas dos indivíduos em conexão com a natureza e com o
conceito psicanalítico de compulsão à repetição enquanto neutralização do
choque da natureza mediante uma permanente elaboração repetitiva do
evento (TÜRCKE, 2010a, pp. 140-141). Com isso, Türcke, na mesma linha
de Stiegler, detecta como a imagem fomentada pela publicidade e pelo
marketing – em uma versão radicalizada da ideia de sociedade do espetáculo
de Debord (TÜRCKE, 2010a, p. 10) – capta a atenção dos consumidores e
provoca gradualmente a destruição das conexões neurológicas traçadas
mediante um longo trabalho humano até chegar ao pensamento. Em Türcke,
contudo, é possível ainda ver uma herança da ideia de espírito clássica da
filosofia, à medida que o espírito é autorreferido, ainda que naturalizado e
historicizado. Mediante rituais que começam pelo sacrifício humano até
chegar-se ao pensamento o humano executa um trabalho interno que
gradualmente se exterioriza até retornar a si mesmo em forma de
pensamento8. E é essa esfera do pensamento que a sociedade do
espetáculo está destruindo mediante um curto-circuito cerebral em que a
maquinaria contemporânea “atalha” o caminho, destruindo o trabalho
neurológico necessário do espírito até chegar ao pensamento (TÜRCKE,
2010a, p. 292; 2010b, pp. 131-212).
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E, no final das contas, Türcke acaba percebendo a insuficiência tanto das explicações
neurocientíficas quanto da ideia de auto-organização. Como se chega a essa unidade
organizativa da consciência, para ele, é questão que não pode ser explicada – espécie de
“milagre” (2010a, pp. 130-131). O ponto fundamental de discordância está em 2010a, p. 291.
Farmácia de Platão – constituir uma interioridade pura, um “estado-da-alma”
desvinculado de uma escritura própria, ainda que esse espírito, como já
percebera Marx, seja eminentemente social (quer dizer, intersubjetivo)
(STIEGLER, 2010, p. 21).
DERRIDA, Jacques & ROUDINESCO, Elisabeth. De que amanhã… Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2004.
FROMM, Erich. Conceito Marxista do Homem. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1983.
STIEGLER, Bernard. For a New Critique of Political Economy. Cambrigde: Polity Press,
2010.
____. Technics and Time, 1: the faulf of Epimetheus. Stanford: Stanford California, 1998.