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GÊNERO EM TECHNICOLOR: ANALISANDO REPRESENTAÇÕES DE

FEMINILIDADE E MASCULINIDADE NOS FILMES DE MARILYN


MONROE
Ana Elisa Carneiro 1

Resumo: Atualmente, como mestranda da linha de Educação e História Cultural, a pesquisa que estou
desenvolvendo pretende investigar como gênero constrói e é construido pela persona cinematográfica
de Marilyn Monroe (1936-1962) através de sua filmografia. Para tal tarefa, os filmes "Os Homens
preferem as loiras" (1953) dirigido por Howard Hawks e "Quanto mais quente melhor" (1959) de
Billy Wilder foram escolhidos como objetos privilegiados deste estudo. No entanto, como a pesquisa
ainda está em andamento, nesta apresentação meu foco será apenas o primeiro dos filmes
anteriormente mencionados. Em minha análise entendo que o filme, tal qual qualquer outra forma de
arte, não se trata de um retrato direto ou cópia da realidade, mas sim da expressão de uma perspectiva
desta construída discursivamente. O filme é consequentemente, como qualquer objeto cultural, um
produto de seu tempo e contexto, histórica e socialmente localizado. Por tanto, o que tentarei
compreender em meu texto é como gênero, em sua historicidade enquanto marcador social, opera a
obra de Howard Hawks, especificamente no que se refere a personagem principal, interpretada por
Monroe: Lorelei Lee - uma loira sensual que na busca por um marido rico se faz de burra para alcançar
seus objetivos.
Palavras chave: Gênero; Cinema; Hollywood;Marilyn Monroe

Introdução:

Neste texto iremos trazer uma breve revisão bibliográfica de alguma dentre as principais
análises do filme Os Homens preferem as Loiras (1953) do meio acadêmico que tiveram como foco
as questões de gênero e sexualidade da obra. Em seguida, visaremos propor uma diferente chave
interpretativa para pensar o filme protagonizado por Marilyn Monroe, para desta forma, dialogar com
a literatura sobre o tema, e simultaneamente trazer mais chave de leitura, complementar àquelas já
discutidas pela bibliografia. Trata-se de tornar a atenção da análise para os personagens homens da
trama e as representações de masculinidade neles contidas, uma vez que estas são instrumentais para
pensarmos o modo que as questões de gênero são abordadas pela obra cinematográfica.

1
Mestranda na Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas pela linha de Educação e História
Cultural, bolsista CAPES. Contato: analisamucoucah@gmail.com
1
Seminário Internacional Fazendo Gênero 12 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2021, ISSN 2179-510X
O filme dirigido por Hawks, trata-se de uma adaptação para as grandes telas do musical
homônimo performado anos antes nos palcos da Broadway em 1949, este por sua vez, também
baseado no livro de Anita Loo escrito em 1922 de mesmo título. De início, a versão cinematográfica
da história destaca-se de suas contra partes teatral e literária, uma vez que muda o cenário em que a
obra se passa. Enquanto no livro de Loo as aventuras de Dorothy e Lorelei são contemporâneas a
autora, enquanto a adaptação para os palcos optou por manter a história em 1920, transformando
assim sua peça em uma obra de época, o filme protagonizado por Monroe atualiza a história para sua
própria contemporaneidade, os anos de 1950. Existe também uma distinção de forma entre as três
obras; enquanto a fonte original trata-se de um produto objeto literário e a peça investe no teatro
musical, a adaptação cinematográfica de 1953 é um filme musical, escolhendo manter parte dos
números criados pela versão teatral, mas não a totalidade destes.

Por este motivo a cena de abertura do filme é a performance de A little gril from Little Rock,
que nos introduz as duas protagonistas: Dorothy Shaw (Jane Russell) e Lorelei Lee (Marilyn Monroe).
As personagens são showgirls, dançam e cantam em figurinos extravagantes e cenários vibrantes para
entreter a plateia. Os momentos iniciais do filme são importantes para a caracterização das duas
personagens principais, sua dinâmica de relação e seus desejos. As duas são a um só tempo melhores
amigas e opostos complementares: enquanto Lorelei é loira, aérea e desconhece princípios básicos do
senso comum, Dorothy, morena, é esperta e pragmática. A personagem interpretada por Monroe é
ambiciosa as vezes ao ponto de se iludir, já a de Russell é mais pé no chão. Lorelei se importa muito
com as aparências e com a forma que ela é percebida socialmente, principalmente pelos homens,
enquanto Dorothy pode ser brutalmente honesta e sempre tem um comentário sarcástico a fazer. Outro
aspecto fundamental da dicotomia das duas protagonistas é a forma como elas entendem
relacionamentos amorosos: enquanto Lorelei quer se casar com um homem rico que lhe garanta
conforto e estabilidade, Dorothy se atrai por homens baseado em sua beleza e quer viver um amor
intenso. De fato, a única coisa que as protagonistas têm em comum além da amizade mútua, é o fato
de serem entendidas como muito bonitas e frequentemente serem o centro das atenções masculinas.

Somos apresentados a premissa da narrativa de fato quando conhecemos, Gus Esmond, o


milionário apaixonado que quer se casar com Lorelei à revelia de seu pai. Para tanto, ele e a
personagem de Monroe planejam se casar em segredo em Paris, mas precisam viajar até lá
separadamente. Lorelei decide ir de Cruzeiro para encontrar o noivo na Europa, trazendo Dorothy
2
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como sua acompanhante. Contudo, o que ninguém desconfia é que abordo do navio estará o detetive
particular Ernie Malone, contratado pelo Sr, Esmond, pai de Gus, para vigiar de perto a pretendente
de seu filho. O que nem o Malone poderia prever é que, ao aproximar-se disfarçado da dupla para
investigá-las, ele se envolveria romanticamente com Dorothy. A situação se agrava ainda mais
quando Lorelei, desavisadamente, fica interessada no já idoso Piggy, dono de uma mina de pedras
preciosas na Africa do Sul, que pode lhe garantir uma tiara de diamantes.

Ao final da obra nossa percepção inicial das personagens é colocada em questão, não
completamente subvertida, mas desafiada. A aparente “burrice” de Lorelei cai por terra no momento
que a obra demonstra como a personagem maneja a forma como é percebida pelos demais a partir de
seus próprios interesses, transparecendo maior ou menor inteligência na medida que isso se mostra
vantajoso para ela. De fato, a protagonista interpretada por Monroe molda seu comportamento de
acordo com a situação social, agrada aos homens de sua volta para que eles em troca, lhe concedam
aquilo que ela deseja. Trata-se de uma racionalização ao extremo das relações com os personagens
masculinos, elas lhes oferecem a beleza e uma pressuposta disponibilidade e recebe em troca a
estabilidade financeira e obediência destes homens milionários. Dorothy, em compensação, mostra-
se a mais emotiva dentre as protagonistas, contrariando uma possível primeira impressão, ela não
calca seus movimentos na razão da mesma que Lorelei, e não enxerga sua relação com os homens
sob a mesma lógica mercantil. Suas motivações são sempre afetivas, suas ações se explicam ou pelo
sentimento de atração e paixão pelo detetive Malone, ou pela relação de companheirismo e lealdade
que cultiva com Lorelei. Em suma, uma das chaves possíveis de leitura para o filme de Hawks está
na relação estre a essa expectativa que criamos sobre as personagens, e a forma que o filme as
questiona – ora reafirmando-as, ora subvertendo-as.

Os teóricos também preferem as loiras?

Desde sua estreia nos cinemas em 1953, além do sucesso comercial, Os Homens Preferem as
loiras conquistou notoriedade em meio a discussões acadêmicas tanto entre os especialistas em
cinema quanto nos estudos de gênero. O debate acerca do filme concerne desde autoras clássicas

3
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como Laura Mulvey, passando pelas feministas americanas Lucy Arbuthnot, Gail Seneca e Maureen
Turim até pesquisadores mais contemporâneos como Tássio Santos e Maria de Fatima Ferreira.

Se por um lado todos os autores mencionados assumem o feminismo como a lente através da
qual tratam da obra, o que cada um destes entende por realizar uma leitura feminista do filme varia
bastante, bem como as interpretações sobre o mesmo e consequente os sentidos que lhe são
conferidos. Santos e Ferreira trazem uma das perspectivas mais favoráveis à obra, advogando que não
apenas o filme de Hawks, mas as personagens femininas interpretadas por Monroe de modo geral
representavam naquele contexto histórico uma ruptura com os papeis socialmente impostos às
mulheres. Neste sentido, os autores advogam que o papel ativo que as personagens Lorelei e Dorothy
exercem na narrativa ao usarem de sua condição enquanto mulheres atraentes dentro dos padrões
daquela sociedade patriarcal para conquistarem aquilo que desejam é por si só uma forma de desafiar
esta mesma sociedade - que estaria representada na figura do pai do noivo de Lorelei – uma vez que
isto significaria um ataque direto aquilo que conforme os autores é um dos pilares das construções
sociais que oprimem mulheres, o silenciamento do desejo feminino.2

Sob um olhar menos otimista, Maureen Turim (1990) evidencia as relações entre a espetáculo
glamourizado presente tanto nas personagens quanto nos elementos estéticos do filme de Hawks com
o momento do capitalismo dos anos de 1950, no artigo intitulado “Gentlemen Consume the
Blondes”. 3 Para a autora, as duas personagens centrais simbolizam o papeis modelares da mulher
naquela sociedade capitalista e patriarcal dos Estados Unidos; Lorelei encarna a mulher enquanto
forma de mercadoria que desde o princípio da narrativa entende o seu valor de troca enquanto tal. Já
Dorothy representa o processo de domesticação da mulher moderna, uma vez que no desfecho da
trama ela teria se “rendido” ao matrimonio e ao amor romântico, o que divergia do seu desejo inicial
de satisfação sexual.4 Aquilo que Ferreira e Santos veem como subversivo, o papel ativo das duas
mulheres nas dinâmicas de poder e sedução, Turim entende como um alívio cômico, não uma crítica
satírica, mas uma situação tão absurda que provoca risos da audiência.5

2
SANTOS, Tássio; FERREIRA, Maria de Fátima. Análise da ruptura da submissão feminina no cinema da década de
cinquenta, incorporadas nas personagens de Marilyn Monroe. Encontro Nacional de História e Mídia UFOP, 2013, p.10
3
Trata -se de um trocadilho como o título original do filme, uma vez que o título do artigo de Maureen Turim se traduz
livremente para “Os Homens consomem as loiras”
4
TURIM, Maureen. Gentlemen consume blondes. Issues in Feminist Film Criticism, 1990, p. 373
5
C.f. Mureen TURIM. Issues in Feminist criticism Op, Cit.1990 p. 370
4
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A autora também se ocupa de pensar os processos de objetificação pelos quais as personagens
– e consequentemente as atrizes Monroe e Russell – são submetidas tanto na diegese do filme quanto
fora desta, que são, para ela, inerentes ao processo de adaptar o livro de Anita Loo à mídias visuais
como o musical e a super produção hollywoodiana – na qual este fenômeno pode ser observado em
seu ápice. Isto está presente na obra em dois momentos que a autora elege como as mais
significativas da narrativa fílmica; primeiramente a abertura, quando as duas protagonistas
performam Little Rock dentro de uma casa noturna em que trabalham e, depois, próximo ao desfecho
do filme, no número de Lorelei/Monroe Diamonds are a Girl’s Best Friends em que a personagem
se apresenta nos palcos de Paris. Nas cenas selecionadas existe uma dupla performance, ao passo
que Russell e Monroe interpretam showgirls que dançam, cantam e insinuam-se sensualmente para
entreter a seduzir os espectadores que pagaram para assistir os espetáculos em que performam, elas
próprias, as atrizes envolvidas, fazem o mesmo para entreter e seduzir aqueles que assistem ao
filme. Segundo Turim, a audiência do filme que carrega um olhar masculino é convidada a uma
prática voyer e objetificante na qual adquiri prazer visual ao assistir estas duas mulheres provocando
o prazer visual dos homens que as assistem dentro da narrativa fílmica. 6

Na contramão de Turim, Gail Seneca e Lucy Arbuthnot oferecem uma diferente perspectiva,
propondo mudar a chave interpretativa da obra; não mais pensar no olhar masculino, mas sim em
como ela afeta e dialoga com sua audiência feminina. Desta forma os elementos que inserem o
glamour, a beleza das personagens, as cores vibrantes, as piadas e os números musicais extravagantes
teriam como função proporcionar sim um prazer visual, mas este seria um fator necessário para que
fosse gerado algum tipo de identificação entre Lorelei e Dorothy e as mulheres que as assistem.

Este é, para elas, o ponto central do texto: o filme é para e sobre o olhar feminino, e este
sistema de identificação é construído de diversas maneiras cinematograficamente segundo as
autoras. Através de elementos como a inversão de papeis na qual as personagens femininas são as
detentoras do olhar desejante sobre os homens,7 a corporificação das atrizes em cena - principalmente
Russel – sempre altiva, comunicando confiança e assertividade gestualmente,8 o uso do espaço em
cena que confere sempre a centralidade as personagens de Monroe e Russel,9 a forma como a câmera

6
C.f. Mureen TURIM. I ssues in Feminist criticism Op, Cit.1990 p. 370
7
ARBUTHNOT, Lucy; SENECA, Gail. Pre-Text and Text in Gentlemen Prefer Blondes. Culture & New Media
Seminars, 1990, p 78
8
C.f. Lucy ARBUTHNOT; Gail SENECA. Culture & New Media Seminars. Op. Cit.1990, p. 79
9
C.f. Lucy ARBUTHNOT; Gail SENECA. Culture & New Media Seminars. Op. Cit.1990, p. 79
5
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e a iluminação dão preferência à planos americanos que mostram as atrizes apenas do ombro para
cima ao invés de optarem por enfatizar suas curvas filmando-as de perfil,10 ou mesmo o figurino que
apesar de sensual raramente expunha muito do corpo das artistas.11

Outro ponto apontado por Seneca e Arbuthnot como central para obra é a conexão entre
Lorelei e Dorothy, que está presente não só nos aspectos narrativos da película cinematográfica como
o roteiro e os diálogos mas como também naquilo que é produzido pela visualidade e pela linguagem
do cinema. São exemplos disto o fato de as personagens raramente compartilharem seus planos com
outros personagens,12 os olhares e toques das personagens são também comummente dirigidos uma
a outra.13 Por fim, as próprias convenções do gênero Musical passam subversões para enfatizar a
importância da amizade das duas. Enquanto em musicais tradicionais os duetos são reservados para
o “mocinho” e para a “mocinha” simbolizando seu envolvimento um com o outro, em Os Homens
Preferem as Loiras os duetos são compartilhados entre as duas protagonistas que cantam e
harmonizam, simbolizando, consequentemente, que a conexão existente ali é entre elas.14

O que as autoras concluem é que a chave para a interpretação do filme está na relação entre
texto e pré-texto, que nesse caso trariam propositalmente elementos contraditórios, sem nunca
eclipsar um ao outro. O texto é, conforme o artigo, aquilo que a obra comunica, enquanto o pre-texto
é aquilo que é necessário para que esta comunicação ocorra. No caso da película de Haward Hanks,
a dissonância reside no fato do pré-texto se tratar de uma tradicional história de comedia romântica
que resulta no matrimonio heterossexual enquanto a ênfase do texto reside na relação entre as
protagonistas e as formas pelas quais elas resistem a objetificação masculina.15

Laura Mulvey (1996), referência feminista nos estudos de cinema e gênero, também aponta
para o caráter contraditório da obra. Se por um lado, Lorelei e Dorothy seriam embaixadoras do
glamour americano, trazendo-o a uma Europa devastada pela guerra, e encarnando representações
arquetípicas do cinema hollywoodiano ao ponto de não existir distinção entre as personagens e as
artistas que a interpretam – principalmente no caso de Monroe. Por outro, para a autora, o filme “vira

10
C.f. Lucy ARBUTHNOT; Gail SENECA. Culture & New Media Seminars. Op. Cit.1990, p. 80
11
C.f. Lucy ARBUTHNOT; Gail SENECA. Culture & New Media Seminars. Op. Cit.1990, p. 80
12
C.f. Lucy ARBUTHNOT; Gail SENECA. Culture & New Media Seminars. Op. Cit.1990, p. 79
13
C.f. Lucy ARBUTHNOT; Gail SENECA. Culture & New Media Seminars. Op. Cit.1990, p. 81
14
C.f. Lucy ARBUTHNOT; Gail SENECA. Culture & New Media Seminars. Op. Cit.1990, p. 83
15
C.f. Lucy ARBUTHNOT; Gail SENECA. Culture & New Media Seminars. Op. Cit.1990, p. 78
6
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o olhar masculino de cabeça para baixo”,16 transformando aquilo que tradicionalmente serve como
uma ferramenta para que os homens exerçam poder sobre a imagem e o corpo feminino no ponto
fraco de suas personagens masculinas que é explorado pela protagonista. Lorelei subverte a dinâmica
da dominação masculina porque entende o seu valor enquanto mercadoria nas relações de troca
afetiva e ousa usar disto para submeter os homens a mesma economia. Mulvey entende que esta
dualidade transmitida pelo filme se explica pela relação da obra com seu material original, o livro de
Anita Loos – um material extremamente progressista e representativo das dinâmicas e questões da
década de 1920 aos olhos da autora – e a forma de construção fílmica típica da Hollywood dos anos
de 1950 que privilegia o espetáculo, a sensualidade e o prazer visual do espectador, através do qual o
livro foi adaptado às telas.17

Esta breve revisão bibliográfica nos permite verificar que Os Homens preferem as loiras não
só foi tema de debate acadêmico como também possibilita várias leituras acerca das questões de
gênero. Os esforços para construir uma crítica feminista ao filme foram múltiplos e apontam para
diversos caminhos, os textos muitas vezes dialogam e disputam entre si a respeito do sentido do filme
de Hawks. A presente pesquisa não visa chegar a uma resposta desta questão ou mesmo a um
consenso, o interesse aqui reside justamente no caráter dubio da película cinematográfica. Mais do
que desvelar uma interpretação única e Verdadeira do filme, este estudo pretende compreender a
partir dos elementos internos a obra como leituras tão distintas são possíveis, entendendo-a enquanto
um produto cultural multifacetado, em que as contradições e dualidades são produtoras de sentido.

Masculinidades em Os homens preferem as loiras

Conforme é possível observar, embora a bibliografia se ocupe de pensar diversos aspectos


diferentes da obra, grande parte das análises está centrada na figura das personagens femininas,
principalmente as duas protagonistas, o que se justifica pela centralidade da dupla na narrativa. De
fato, como já foi salientado na literatura, Dorothy e Lorelei detém não só todas as músicas do filme,
o que é significativo dentro de um musical hollywoodiano, mas como também possuem maior tempo

16
C.f. Laura MULVEY. Cinema e sexualidade. Op. Cit. 1996, p. 137
17
C.f. Laura MULVEY. Cinema e sexualidade. Op. Cit. 1996, p.138
7
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de tela e são principais agentes motoras da trama. 18 No entanto, no presente trabalho entendemos a
categoria gênero segundo a definição de Joan Scott, como uma serie de relações socialmente
construídas entre corpos sexuados também em parâmetros sociais, desta forma as categorias de
feminilidade e masculinidade devem ser pensadas em dialogo, como polos simbólicos que
complementares. 19

Por este motivo, entendemos que uma análise de gênero enquanto uma categoria histórica e
social não pode restringir-se apenas ao estudo da história e da experiencia das mulheres. E se as
noções de masculinidade e feminilidade se constroem de modo dialético e historicamente localizado,
o estudo de uma destas categorias é sempre uma ferramenta interessante para o entendimento da outra.
Em outras palavras, a análise das representações de feminilidade é enriquecida se pensarmos também
sobre a representação masculina, que no caso do filme de Hawks está contida nos personagens
homens.

É importante para tanto ter em mente de que os sujeitos masculinos não são universais, mas
sim constituídos através do marcador social da masculinidade, que por sua vez, possui historicidade.
Desta forma aquilo que se entende por “masculino” varia drasticamente de acordo com a sociedade
na qual essa identidade está inserida.20 Pedro Paulo de Oliveira aponta que o ideal social de
masculinidade hegemônico da década de 1950 reside na relação do homem com sua capacidade de
prover; ele deveria fornecer o sustento e a estabilidade para sua família; seu valor está relacionado
também por seu sucesso financeiro. De forma que, o gênero masculino estava profundamente
relacionado a ideia exercer uma função profissional, a identidade homem relacionava-se até naquele
contexto com a capacidade de trabalhar, uma vez que esta atestaria o seu poder de ação, sua
objetividade e pensamento prático. Como detentor da premissa do trabalho21, sendo assim, ainda que
a família enquanto aquela que deve ser provida pelo homem cumpra uma função importante na
construção da identidade masculina do período, a paternidade em si torna-se secundária.

Enquanto as mulheres são definidas socialmente pelo “ser mãe”, o exercer da paternidade
para o homem tem outro sentido; é permitido, inclusive incentivado socialmente, que os homens se

18
Através do meio de decupagem, proposta metodológica de Pierre Sorlin, pude verificar que dentre os 541 planos
presentes na obra, uma ou ambas as protagonistas estão presentes em 407 deles.
19
SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação & realidade, v. 20, n. 2, 1995.
20
DE OLIVEIRA, Pedro Paulo. Discursos sobre a masculinidade. Estudos Feministas, p. 91-112, 1998, p. 47
21
C.f. Pedro Paulo de Oliveira. Discursos sobre a masculinidade. Op. Cit. 1998, p. 52
8
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constituam como pais ausentes e seres humanos emocionalmente distantes. Ao pai, e, portanto, ao
homem, só cabe a posição de fiscalizar e disciplinar. Ao se relacionar com uma mulher
é hegemonicamente esperado do homem dos anos de 1950 assuma uma posição de ativo e
dominante, tanto no campo social, quanto no sexual e no econômico.22

Em breve análise dos personagens da obra é possível perceber, em uma primeira camada, que
Gus Esmond e Piggy não são de representações deste modelo de masculinidade hegemônica descrita
por Oliveira. Ainda que ambas as figuras se encontrem no ápice do sucesso financeiro, este mérito
pouco está condicionado a sua posição enquanto provedores ou mesmo trabalhadores. Nenhum dos
personagens é visto trabalhando ou tem sua identidade diretamente relacionada a seu êxito
profissional. No caso de Piggy, sua mina de diamantes na África do Sul é mencionada, mas sua
identidade está muito mais diretamente relacionada à sua posição social enquanto “Sir”, uma marca
de nobreza britânica, para além disto também fica implícito que parte da fortuna do personagem vem
de sua esposa, visto que é Lady Beekman que possui a tiara de diamantes como uma herança de
família. Piggy ainda relata a Lorelei não ser capaz de comprar outra. O caso de Gus Esmond é
semelhante, embora ele seja estabelecido como milionário, torna-se claro ao longo do filme que o
dinheiro é na verdade proveniente do trabalho de seu pai.

A inadequação dos dois personagens aos parâmetros da masculinidade hegemônica daquele


contexto tempo-espacial se evidencia ainda mais nas suas relações interpessoais. Tanto Gus quanto
Piggy assumem uma postura passiva na narrativa e nas suas interações com mulheres ou mesmo
outros homens. Piggy além de ser manipulado e convencido pelas bajulações de Lorelei a entregar-
lhe a tiara de diamantes da esposa, seu casamento com Lady Beekman também se trata de outra
relação na qual ele é dominado; ele tem medo dela, não a contraria, e por mais de uma vez tanto Piggy
quanto outros personagens a descrevem como alguém que o controla e intimida. O personagem de
Gus Esmond é ainda mais emblemático, pois por diversas ocasiões, é estabelecido que Lorelei domina
a relação, ele nunca lhe diz não e sempre faz o que ela quer, como as próprias falas da protagonista
deixam claro. Gus é também passivo na sua relação com outros homens, ele sempre tem de se
submeter ao seu pai por exemplo. Inclusive parte do caráter cômico do personagem se constrói a
partir da emasculação de Gus, da ideia de que um personagem masculino poderia ser tão passivo, e,

22 C.f. Pedro Paulo de Oliveira. Discursos sobre a masculinidade. Op. Cit. 1998, p. 52
9
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portanto, feminilizado, como é o caso da cena em que Gus Esmond manda um beijo para o motorista
Pierre.

No entanto, se existe um personagem que desde sua primeira menção é a representação


estereotípica de masculinidade hegemônica conforme apontado pelo autor. Trata-se do Sr. Esmond,
o pai de Gus, que é colocado como alguém a ser temido, uma grande autoridade, desde o princípio
do filme. Ele é o provedor, um homem de negócios responsável pela fortuna da família e seu
administrador e guardião. O personagem é também o modelo do pai que fiscaliza e disciplina, seu
objetivo durante todo o filme é impedir que o filho cumpra seu desejo de casar-se com Lorelei e os
modos que ele utiliza são autoritários – a proibição, a perseguição, a contratação de um detetive – e
a expressão de seu distanciamento emocional de Gus. Sua posição enquanto ativo e dominante nas
relações é ainda perfeitamente exemplificada na cena em que o vemos pela primeira vez: ele dá
ordens, interrompe falas, faz tudo de seu jeito e faz exigências.

Nos resta debater, entretanto, o personagem de Malone. O caso do detetive parece ser
particularmente interessante pois sua caracterização parece fugir um pouco deste parâmetro da
masculinidade hegemônica centrada na figura do provedor dentro da lógica da família nuclear do
capitalismo norte americano descrita por Oliveira. Uma explicação possível para isto está no texto de
Preciado 23
intitulado Pornotopia na qual o autor aponta o advento da revista Playboy – que teve
sua primeira edição lançada também em 1953 - e os anos de 1950 como determinantes para a
emergência de um novo modelo de masculinidade. Trata-se da figura do solteirão urbano, que se
contrapõe ao modelo de pai de família existente até então. Um ideal de homem independente que
ainda que aventureiro no amor consegue escapar das amarras do casamento, vive pelas próprias regras
e pelo próprio senso de honra. Torna-se bem-sucedido financeira e profissionalmente através da sua
sagacidade e esperteza, mas não tem uma família que precise sustentar ou disciplinar. Malone
aparenta, portanto, ser uma representação de homem em que coexistem dois modelos de
masculinidade; um hegemônico, o do provedor, e um emergente – o do solteirão ou garanhão. Isto
porque embora apresente todas as características do homem playboy descrito por Preciado, o detetive

23
O autor Paul Preciado foi designado como pertencente ao sexo feminino ao nascer, no entanto passou por um processo
de transição de gênero e passou a identificar-se com o gênero masculino, adotando o nome de Paul Preciado. Ainda que
a obra mencionada tenha sido publicada sob o nome de registro do autor, pensamos ser mais coerente com uma
epistemologia feminista tratá-lo no masculino, respeitando a identidade de gênero dele.

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Malone ainda é um personagem romântico e permite-se ser “fisgado” por Dorothy, algo que se tornará
evidente a partir da participação do personagem no julgamento de Lorelei.

Bibliografia

ARBUTHNOT, Lucy; SENECA, Gail. Pre-Text and Text in Gentlemen Prefer Blondes. Culture &
New Media Seminars, 1990.
DE OLIVEIRA, Pedro Paulo. Discursos sobre a masculinidade. Estudos Feministas, p. 91-112, 1998
MULVEY, Laura. Prazer visual e cinema narrativo (1975). In XAVIER, Ismail. A experiência do
cinema. Editora: Graal, Rio de Janeiro, 1983.
SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação & realidade, v. 20, n. 2,
1995
SANTOS, Tássio; FERREIRA, Maria de Fátima. Análise da ruptura da submissão feminina no
cinema da década de cinquenta, incorporadas nas personagens de Marilyn Monroe. Encontro
Nacional de História e Mídia UFOP, 2013
TURIM, Maureen. Gentlemen consume blondes. Issues in Feminist Film Criticism, 1990, p. 373

Gender in Technicolor: Analysing the representations of femininity and masculinity in Marilyn


Monroe’s movies

Abstract: Being currently in the process of getting my master’s degree, my scientific research intends
to investigate how gender was constructed and constitutive of Marilyn Monroe’s cinematographic
persona through the analysis of her filmography. For such task, the movies “Gentleman Prefer
Blondes” (1953), directed by Howard Hawks and “Some Like it Hot” (1959) by Billy Wilder were
chosen as the main objects of this study. However, because the research is still a work in progress,
for this presentation the focus will rest on the first of the aforementioned films. In my analysis, it is
understood that film, as any art form, is not a straightforward expression or copy of reality, but rather
a discursively constructed perspective of it and consequently, a product of its time and social context.
Therefore, what will be attempted in this paper is to comprehend how gender as a social marker
historically and culturally placed, plays into Hawk’s work, specifically in the construction of the
titular character, Monroe’s Lorelei Lee – a sexy blonde in the search for a rich husband, more than
willing to play dumb to get it.
Keywords: Gender; Cinema; Hollywood; Marilyn Monroe

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