Você está na página 1de 17

As memórias do Shtetl

no Brasil e
nos Estados Unidos
ETHEL V. KOSMINSKY
ETHEL V. KOSMINSKY é professora de Sociologia
da Unesp – campus de
Marília – e diretora-
primeira secretária do
Ceru–USP.

A MEMÓRIA COLETIVA JUDAICA Embora à primeira vista a memória pa-


reça ser um fenômeno individual, ela deve
ser entendida também como um fenômeno
coletivo e social, conforme Halbwachs cons-

O
inevitável desaparecimen- tatou já nos anos 20. A memória, quer indi-
to da geração de imigran- vidual quer coletiva, é constituída por acon-
tes judeus procedentes da tecimentos vividos pessoalmente e, em se-
Europa Oriental no Brasil gundo lugar, por acontecimentos expe-
e nos Estados Unidos, pa- renciados pelo grupo ou pela coletividade
íses onde se fixaram entre à qual a pessoa pertence.
1911 e 1948 e entre 1905 e
1922, respectivamente, leva-nos a uma in- “São acontecimentos dos quais a pessoa
dagação: o que as filhas desses imigrantes nem sempre participou mas que, no imagi-
conservam na memória das narrativas con- nário, tomaram tamanho relevo que, no fim
tadas pelos pais sobre a vida nos shtetln? das contas, é quase impossível que ela con-
Como as pequenas cidades são lembradas, siga saber se participou ou não. Se formos
mais de meio século depois do Holocausto, mais longe, a esses acontecimentos vividos
pela segunda geração de mulheres cuja por tabela vêm se juntar todos os eventos
experiência de vida foi construída nas ci- que não se situam dentro do espaço-tempo
Uma versão preliminar deste tra- dades de Nova York e de São Paulo? Em de uma pessoa ou de um grupo. É perfeita-
balho foi apresentada no 23o En-
contro Anual da Anpocs, no GT caso positivo, como essa memória é pre- mente possível que, por meio da socializa-
Migrações Internacionais, em ou-
tubro de 1999, e é parte da pes-
servada e institucionalizada? Em caso ne- ção política, ou da socialização histórica,
quisa “A Segunda Geração de gativo, quais as razões para o não cultivo ocorra um fenômeno de projeção ou de iden-
Mulheres Judias no Brasil e nos
Estados Unidos”. A coleta dos dessas recordações? São essas questões tificação com determinado passado, tão for-
dados foi possível graças à bolsa que procuraremos responder ao longo des- te que podemos falar numa memória quase
de pesquisa no exterior da Fapesp,
em 1998. te trabalho. herdada” (Pollack, 1992, p. 201).

74 REVISTA USP, São Paulo, n.47, p. 74-90, setembro/novembro 2000


A memória do Holocausto é o melhor em que ela é um fator importante na constru-
exemplo de um acontecimento que atingiu ção do indivíduo e do grupo social. No caso
com tal intensidade o povo judeu que mes- do grupo étnico judeu a memória do passa-
mo aqueles que não viveram esse trágico do, da origem comum desempenha um pa-
acontecimento ou que não tiveram alguma pel fundamental na sua preservação (1).
perda direta dele decorrente carregam con- Baseando-se também em Halbwachs,
sigo essas marcas. A memória do genocídio Yerushalmi afirma que a memória indivi-
passou a fazer parte da memória coletiva dual é estruturada através de quadros soci-
judaica. Essa memória é mantida e preser- ais e que a memória coletiva não é uma
vada através do processo de socialização metáfora mas uma realidade social trans-
que solidifica a manutenção dos laços que mitida e sustentada por meio de esforços
unem os membros do grupo. conscientes e das instituições do grupo.
A memória da vida nos shtetln, que os Somente o grupo ou a coletividade pode
filhos de imigrantes judeus – cujos pais pro- herdar e transmitir a linguagem e a memó-
cedem da Europa Oriental – carregam con- ria transpessoal (cf. Yerushalmi, 1996, p.
sigo em países tão distantes quanto o Brasil xxxiv-xxxv).
e os Estados Unidos, pode muitas vezes se As memórias coletivas do povo judeu
transformar em um sentimento de perten- formaram-se em função da fé compartilha-
cimento ao grupo e ao local de origem. da, da coesão e do próprio desejo do grupo
Como diz Pollack, locais distantes “fora do de transmitir e de recriar o seu passado atra-
espaço-tempo da vida de uma pessoa po- vés de um complexo inteiro de instituições
dem constituir lugar importante para a sociais e religiosas inter-relacionadas, que
memória do grupo, e por conseguinte da funcionaram organicamente com esse ob-
própria pessoa, seja por tabela, seja por jetivo (idem, ibidem, p. 94). Essas memó-
pertencimento a esse grupo” (idem, ibidem, rias, transmitidas de geração a geração,
p. 202). foram e são carregadas durante o exílio,
A memória é seletiva, nem tudo fica onde quer que os judeus se encontrem.
registrado. Outras vezes, apesar de grava- Como diz Harold Bloom, no prefácio do
do, a compreensão do acontecimento ob- referido livro de Yerushalmi, os judeus não
servado só vai ocorrer muito mais tarde. escrevem poesias sobre o seu ambiente; eles
Ele fica como que depositado até que al- escrevem poesias sobre o desejo de ser di-
gum novo fato o faça emergir à superfície ferente, o desejo de estar em qualquer lugar
(Halbwachs, 1990). A memória é em parte (cf. Bloom, in Yerushalmi, 1996, p. xxiv).
herdada, como já vimos, não se restringin- Ou como diz Marjorie Agosín, no título do
do portanto à vida física da pessoa e está livro a respeito da memória do seu pai, ju-
também sujeita às alterações decorrentes deu e chileno, “sempre de um lugar qual-
do presente. Dessa forma, a memória é quer” (Agosín, 1998).
construída, tanto conscientemente, quanto Essas memórias coletivas judaicas com-
inconscientemente. “O que a memória in- preendem, além da crença em um passado
dividual grava, recalca, exclui, relembra, é comum, as várias lembranças das diásporas,
evidentemente o resultado de um verda- ou seja, dos deslocamentos populacionais.
deiro trabalho de organização” (idem, As memórias das migrações constituem um
ibidem, p. 204). dos elementos da identidade étnica do gru-
A memória é pois um fenômeno po judeu e que possibilita a sua persistên-
construído social e individualmente e, quan- cia. Como o processo migratório é cole-
do se trata da memória herdada, podemos tivista, no sentido de compreender uma tro- 1 Por grupo étnico entendo, no
sentido apontado por Weber,
dizer que há uma ligação muito estreita entre ca continuada entre grupos e instituições os grupos sociais baseados em
a memória e o sentimento de identidade. que fazem parte de um sistema extenso e costumes comuns, em lembran-
ças de migração, em uma cren-
“A memória é um elemento constituinte do unificado, o que significa a manutenção de ça subjetiva em uma procedên-
sentimento de identidade, tanto individual contatos estreitos entre aqueles que parti- cia comum e que compartilham
da mesma religião e da mes-
como coletiva” (idem, ibidem) na medida ram e os que ficaram (Morawska, 1990), ma língua (Weber, 1964).

REVISTA USP, São Paulo, n.47, p. 74-90, setembro/novembro 2000 75


supõe-se que os imigrantes judeus que fo- de imigrantes, ou seja, a segunda geração
ram tanto para os Estados Unidos como nascida nos Estados Unidos, o número de
para o Brasil mantiveram uma rede de tro- trabalhos é pequeno, sobressaindo-se a obra
cas e de intercâmbios com os seus parentes de Markowitz (1993) (2). Outras obras, po-
e amigos que haviam ficado na terra natal. rém, embora não tratem especificamente de
É sobre a imigração de judeus da Euro- mulheres imigrantes e nem de suas filhas,
pa Oriental para os Estados Unidos no pe- fazem referências à segunda geração, tais
ríodo de 1905 a 1922, e para o Brasil, entre como as de Moore (1981) e de Morawska
os anos de 1911 e 1948, que trataremos (1996). No Brasil, o tema da segunda gera-
aqui, focalizando especificamente as lem- ção, quer de homens quer de mulheres, ain-
branças dos shtetln vistas desses países da não foi especificamente tratado.
pela segunda geração, que não viveu es- Este trabalho pretende contribuir para o
sas experiências, mas que as ouviu dos conhecimento das recordações do shtetl,
seus pais; e de como essas lembranças de como essas lembranças são organizadas
foram mantidas e atualizadas, persistindo e mantidas pelas mulheres da segunda ge-
até os dias de hoje. ração, desse modo contribuindo para os
estudos de gênero na área de migrações e
também para as pesquisas sobre a segunda
geração.
A LITERATURA SOBRE A
SEGUNDA GERAÇÃO DE MULHERES
O MÉTODO COMPARATIVO
IMIGRANTES
A abordagem escolhida é a comparati-
Esta pesquisa sobre a segunda geração va, isto é, pretendemos comparar as me-
de imigrantes judeus compreende exclu- mórias da segunda geração de mulheres,
sivamente as mulheres, isto é, as filhas filhas de imigrantes judeus da Europa Ori-
desses imigrantes. Assim, as memórias do ental, estabelecidos na cidade de Nova
shtetl serão vistas da perspectiva de gêne- York, Estados Unidos, no período de 1905
ro. Essa escolha deve-se ao fato de que a a 1922, e na cidade de São Paulo, Brasil,
maior parte dos estudos de imigração es- entre os anos de 1911 e 1948. Estaremos
tão centrados na figura masculina, esque- assim lidando com o mesmo grupo étnico,
cendo que foram as mulheres que suporta- variável constante, e com duas varíaveis de
ram o esforço do processo de desloca- controle, o lugar e o tempo. As cidades
mento e de fixação no Novo Mundo (Ewen, foram escolhidas em razão de concentra-
1985). rem o maior número de descendentes de
Todavia, nos Estados Unidos, nos últi- imigrantes judeus. Quanto ao período de
mos anos, tem-se procurado reverter essa tempo não se tratou de uma escolha a priori
posição, através da publicação de vários da pesquisa e sim decorrente das histórias
trabalhos sobre mulheres imigrantes, entre de vida coletadas. Os dados históricos, que
os quais citamos, a título de exemplo, os de citaremos mais adiante, mostram que a
autoria de Ewen (1985), Yans-McLaughlin imigração judaica para os Estados Unidos
(1990), Friedman-Kasaba (1996), Gabaccia é muito mais antiga do que para o Brasil.
(1994), Glenn (1993). No Brasil, no entan- Uma outra variável importante que precisa
to, os estudos imigratórios começaram com ser considerada diz respeito à diferença de
bastante atraso (Fausto, 1991) e, no que diz tamanho do número de imigrantes, muito
respeito aos trabalhos sobre mulheres, o maior nos Estados Unidos do que no Bra-
2 O livro organizado por
Alejandro Portes refere-se aos seu número é bastante reduzido, destacan- sil, como veremos a seguir. Assim, fica claro
filhos dos novos imigrantes es- do-se apenas o de Lerner (1996) e de Sakurai que as seis histórias de vida de mulheres,
tabelecidos nos Estados Unidos
(1996). (1993). Quanto aos estudos sobre as filhas que desenvolveremos quanto ao tema da

76 REVISTA USP, São Paulo, n.47, p. 74-90, setembro/novembro 2000


memória, somente poderão ser entendidas A narração de histórias é central na
a partir da sua moldura histórica. cultura judaica da Europa Oriental por uma
Qual a vantagem do método compara- série de razões. Em primeiro lugar porque
tivo nos estudos de imigração? Achamos essa sociedade valoriza histórias, conside-
que a primeira é acabar com o provin- rando-as importantes e ainda porque o con-
cianismo decorrente do fato de o pesquisa- tador de história aparece com freqüência
dor encontrar-se imerso na sua própria cul- nessa cultura, o que ocorre desde tempos
tura, o que o levaria de um lado a conside- remotos, pois, afinal, qualquer um pode
rar a imigração para o seu país como ex- contar histórias. Não há um contador pro-
cepcional ou, então, a não percebê-la em fissional de histórias contratado para esse
toda a sua riqueza justamente pelo fato de fim e as histórias podem ser contadas a
fazer parte deste país (Baily, 1990). O qualquer tempo, em qualquer lugar,
método comparativo implica um movimen- freqüentemente, como ilustração de assun-
to dialético de aproximação-afastamento: tos de conversas, permeando a interação
o pesquisador, ao se afastar da sua própria social (cf. idem, ibidem).
cultura para conhecer como ocorreu o pro- Certamente que as memórias dos pais
cesso imigratório em uma outra sociedade, imigrantes puderam surgir à superfície
passará a ter uma outra visão sobre a imi- devido ao procedimento adotado nessa
gração para o seu próprio país. pesquisa. O retrato de vida de pessoas co-
muns, em culturas e contextos algumas
vezes distantes daquele a que o pesquisa-
dor pertence, realizado com cuidadosa per-
HISTÓRIAS DE VIDA E NARRATIVAS cepção e detalhe, leva à transformação de
um estranho, que o pesquisador poderia ter
As histórias de vida possibilitam o co- encontrado na sua própria vida pessoal, num
nhecimento das relações sociais das socie- amigo. Trabalhando com a história de vida,
dades focalizadas, o funcionamento des- o pesquisador transmite as experiências de
tas, a atuação do indivíduo e a sua tomada outras pessoas. É o sentido de sua própria
de decisão. As histórias de vida podem vida que faz o pesquisador acreditar que
mostrar como cada indivíduo reage sob pode entender a vida de outros (Langness e
condições sociais e/ou étnicas adversas e, Frank, 1981). Quando o pesquisador faz
ao mesmo tempo, permitem verificar como parte do grupo que está estudando, como é
surgem e se desenrolam os processos soci- o meu caso, o envolvimento com a pesqui-
ais (Martins, 1998, cap. 5). Assim, as his- sa torna-se pessoal, como aponta
tórias de vida configuram-se como o pro- Yerushalmi (1996, p. 93), criando uma
cedimento por excelência nos estudos de aproximação, uma intimidade com o grupo
imigração em geral e nas pesquisas de imi- que de outra forma dificilmente ocorreria.
gração judaica em particular. A partir da escolha da primeira entre-
Embora as filhas dos imigrantes não vistada, a coleta das demais histórias de
tenham compartilhado das experiências de vida foi realizada fazendo-se uso da técni-
vida dos seus pais na Europa, elas carre- ca da bola de neve, isto é, as demais entre-
gam consigo essas memórias, memórias de vistadas indicaram as seguintes. Os crité-
uma vida anterior vivenciada através das rios que definiram a escolha das mulheres
lembranças transmitidas. O fato de as his- foram ascendência e local de moradia.
tórias contadas por seus pais terem sido Assim, foram pesquisadas algumas filhas
preservadas parece indicar que a narrativa de imigrantes judeus procedentes da Euro-
desempenhou um papel cultural central na pa Oriental que, na época do trabalho, es-
sociedade judaica da Europa Oriental (cf. tavam residindo nas cidades de Nova York
Kirshenblatt-Gimblett, 1974), tendo acom- e de São Paulo. A coleta das histórias de
panhado os imigrantes na sua fixação no vida na cidade de Nova York teve início
Novo Mundo. com a entrevista de Roberta, voluntária do

REVISTA USP, São Paulo, n.47, p. 74-90, setembro/novembro 2000 77


Yivo (Institute for Jewish Research), e ões de origem dos imigrantes. Pode-se su-
quando lá nos encontrávamos duas outras por que a maior parte dos judeus russos que
pessoas se interessaram em narrar as suas emigraram partiram das regiões mais po-
histórias de vida, a Bea, também voluntária pulosas e mais pobres. Entretanto, não há
no Yivo, e a Jane, diretora de Desenvolvi- dados que corroborem essa hipótese (cf.
mento da instituição. Essas mulheres se Kuznets, 1975, pp. 116-7). Estima-se que,
encontravam na faixa dos 58 aos 75 anos entre 1881 e 1922, mais de dois milhões de
de idade, em 1998. judeus da Europa Oriental imigraram para
Na cidade de São Paulo, coletei a história os Estados Unidos (Gittleman, 1978, p.
de vida de Célia, secretária do Centro de 123). A população judaica neste país é es-
Estudos Judaicos da Universidade de São timada em 5.840.000 para o total da popu-
Paulo. Célia, por sua vez, indicou-me lação de 255.082.000, em 1993 (Kosmin e
Amélia, voluntária em instituições Scheckner, 1994, p. 210).
assistenciais judaicas. E Annie, a terceira A bibliografia aponta para a introdução
entrevistada, nossa conhecida há muitos dos judeus procedentes da Europa Oriental
anos, preenchia os requisitos determinados nas camadas médias da população brasilei-
pela pesquisa. As entrevistadas se encon- ra. No Brasil, “os principais contingentes
travam na faixa dos 51 aos 68 anos de ida- imigratórios judeus, entre 1920 e 1940, di-
de, em 1997-98. rigindo-se para São Paulo e Rio de Janeiro,
ingressaram na sociedade brasileira, em seus
setores mais dinâmicos e desenvolvidos, em
plena fase de expansão”. Em alguns anos, os
IMIGRAÇÃO E INSERÇÃO imigrantes passaram de vendedores ambu-
lantes e de artesãos a lojistas e proprietários
DE JUDEUS NOS ESTADOS UNIDOS de fábricas (Rattner, 1970, p. 57).
A cidade de São Paulo foi o maior cen-
E NO BRASIL: O CASO DAS tro receptor de imigrantes. A maior parte
dos judeus do Brasil se concentra nessa
ENTREVISTADAS cidade. A princípio, habitaram em maior
número o bairro do Bom Retiro e, em me-
Os pais das entrevistadas estabeleceram- nor quantidade, o Brás e o Cambuci. De-
se no Brasil entre 1911 e 1948 e nos Estados pois, à medida que foram ascendendo soci-
Unidos entre 1905 e 1922. A maioria desses almente, mudaram-se para Higienópolis,
imigrantes, tanto do Brasil quanto dos Esta- um bairro de classe média, e os de maior
dos Unidos, é procedente da Polônia, segui- poder aquisitivo para os Jardins (Febrot,
da da Ucrânia, Bessarábia e Lituânia. Essas 1990, pp. 215-23). Infelizmente, não dispo-
informações estão de acordo com os dados mos de dados estatísticos atualizados sobre
estatísticos coletados por Jeffrey Lesser o número de judeus que habitam a cidade e
(1995). Segundo este, o maior fluxo de ju- muito menos ainda a sua distribuição por
deus, 49.947 pessoas, imigrou para o Bra- bairros. Os dados do Censo de 1940 mos-
sil entre 1926 e 1942, procedente da tram que São Paulo congregava a maior
Polônia e dos demais países da Europa parte da população judaica do país, 20.379
Oriental. As estimativas indicam o núme- pessoas (Lesser, 1995, p. 315). Os dados do
ro de 100.000 judeus para o total da popu- Censo de 1950 confirmaram essa liderança.
lação do Brasil de 121.547.000, em 1982 A inserção dos imigrantes judeus da
(DellaPergola, 1987, p. 91). Europa Oriental nos Estados Unidos seguiu
Os dados referentes à imigração judai- um processo diferente. A sociedade norte-
ca da Europa Oriental para os Estados americana industrializada, moderna, neces-
Unidos dizem respeito a três países: o Im- sitava de mão-de-obra para suas fábricas,
pério Russo, a Áustria-Hungria e a cujos empresários descendiam dos antigos
România. Não há dados relativos às regi- colonizadores ingleses. Os irlandeses que

78 REVISTA USP, São Paulo, n.47, p. 74-90, setembro/novembro 2000


haviam imigrado, em meados do século pas- se aposentar. Após o falecimento do pri-
sado, constituíam então uma força podero- meiro marido, casou-se novamente. Hoje é
sa na política e na educação (cf. Gittleman, voluntária no Yivo e no Jewish Museum e
1978, p. 128). A imigração judaica, poste- ainda estuda ídiche. Jane, como já foi dito,
rior à irlandesa, encontrou, pois, uma soci- na época da entrevista exercia o cargo de
edade capitalista desenvolvida e competi- diretora de Desenvolvimento do Yivo. É
tiva. A grande maioria dos imigrantes ju- divorciada. O marido de Bea, já falecido,
deus se fixou, inicialmente, no Lower East era contador, tendo a sua própria empresa.
Side, na cidade de Nova York, indo traba- Bea trabalhou como auxiliar de adminis-
lhar na indústria de confecções (idem, tração em um hospital. Atualmente apo-
ibidem, p. 123). sentada, é voluntária no Yivo.
Em 1920, 1.640.000 judeus viviam na As informações sobre as condições de
cidade de Nova York, compreendendo 29% vida dos pais-imigrantes, estabelecidos em
do total da população da cidade, 5.620.000 Nova York, indicam que os pais de Roberta
pessoas; em 1940, 1.950.000 judeus repre- e, também, a mãe de Jane ocupavam um
sentavam 26% do total da população de status social mais elevado. A comparação
7.460.000 pessoas. Embora a maioria dos entre a situação dos pais-imigrantes e a de
imigrantes judeus estivesse concentrada no suas filhas mostra que, apesar de todas as
Lower East Side, já no início deste século, dificuldades enfrentadas, houve uma níti-
uma parte dos judeus começou a se mudar da ascensão social da parte da segunda
para o Brooklin e o Bronx, à medida que as geração.
suas condições econômicas melhoraram Os pais das três entrevistadas, no Bra-
(cf. Moore, 1981, pp. 20 e 21). sil, passaram por diferentes situações. O
Os pais das entrevistadas passaram por pai de Célia passou de peddler (mascate) a
muitas dificuldades nos Estados Unidos. comerciante de posses em poucos anos. A
Mesmo assim, a mãe da Roberta conseguiu mãe de Célia, sempre dona de casa, nunca
ter algum estudo que lhe permitiu trabalhar trabalhou fora. A família morava nos Jar-
como guarda-livros até casar-se. Viveram dins, um bairro de classe média-alta da ci-
no Bronx. O seu pai teve várias ocupações, dade de São Paulo. Os pais de Amélia eram
entre as quais a de gerente de restaurante pobres, o pai vendia à prestação e a mãe era
em uma loja de departamentos. Jane e a dona de casa. A família morava no Bom
mãe, divorciada, moraram com os avós Retiro, o bairro imigrante de São Paulo que
maternos, no Brooklin. Segundo as pala- congregava italianos, judeus e luso-brasi-
vras de Jane, “éramos pobres”. O segundo leiros. O pai de Annie ascendeu de peddler,
casamento da mãe acarretou a melhoria das que oferecia os seus serviços de relojoeiro,
condições de vida de ambas. A mãe de Jane a proprietário de oficina de consertos de
sempre trabalhou e nos últimos anos tor- relógios, onde também vendia jóias bara-
nou-se uma stockbroker, tendo mesmo fei- tas. A sua mãe nunca trabalhou fora.
to faculdade. Os pais de Bea tinham uma Das três entrevistadas, apenas Annie se
loja no Lower East Side, onde também vi- formou em curso superior, Célia e Amélia
viam. Bea começou a trabalhar com os pais fizeram curso de secretariado. Annie aban-
com a idade de seis anos. “As condições de donou a profissão de enfermeira e tornou-
vida eram muito ruins, nós vivíamos em se uma bem-sucedida empresária, proprie-
tenements”, disse Bea. tária de loja de embalagens. Célia traba-
Roberta e Jane têm curso superior. So- lhou até se aposentar como secretária de
mente muitos anos depois de casada, foi uma faculdade. O seu marido, já falecido,
que Bea fez um curso de auxiliar de admi- era representante comercial. Célia ainda
nistração hospitalar. Roberta trabalhou para trabalha como secretária do Centro de Es-
o Labor Department, ascendendo na car- tudos Judaicos. Amélia trabalhou, até ca-
reira até chegar à posição de diretora de sar-se, como secretária de um escritório de
Recursos Humanos, sempre no Estado, até advocacia. Hoje, viúva de um advogado

REVISTA USP, São Paulo, n.47, p. 74-90, setembro/novembro 2000 79


rico, é voluntária em uma instituição para, principalmente, se esquecer. Mas eu
assistencial judaica. sei que eles eram muito pobres. Ela falou
As informações sobre as condições de de mulheres que trabalhavam, trazendo
vida dos pais das entrevistadas parecem produtos para o mercado enquanto os ho-
indicar que os pais de Célia ocupavam uma mens estudavam. Era uma família extre-
posição social muito mais elevada do que mamente pobre e as coisas não melhora-
a dos demais. Em seguida, em ordem de- ram tanto quando eles aqui chegaram”.
crescente, encontram-se os pais de Annie e Essa recusa da mãe de Roberta em rela-
na posição inferior da escala social os pais tar as suas lembranças da infância em Nowy
de Amélia. Comparando-se a situação dos Sacz pode ter a ver com o fato de ter imigra-
pais com a das filhas podemos observar do ainda criança e de ter freqüentado esco-
que houve uma ascensão social da parte da la assim que chegou – “ela falava sem ne-
segunda geração, tendo o processo ocorri- nhum sotaque”. A socialização do imigrante
do de modo mais suave do que nos Estados ainda criança leva-nos a repensar a sua clas-
Unidos. sificação enquanto primeira geração. O me-
Comparando-se os casos estudados de lhor critério seria, talvez, considerá-lo como
ambos os países podemos observar que há uma geração intermediária, entre a primei-
uma concordância entre as condições de ra e a segunda geração.
vida dos pais-imigrantes e a bibliografica O pai de Roberta nasceu em Londres,
consultada, indicando que a ascensão soci- em 1900, e imigrou com a família para os
al dos imigrantes judeus foi mais rápida e Estados Unidos, em 1914. Os seus pais
menos sofrida no Brasil do que nos Estados vieram da pequena vila de Trzebos, na
Unidos. Polônia, situada a 62 km, a noroeste da
cidade de Przemysl (Mokotoff e Sack,
1991).
Foi de “Dasak, uma pequena cidade,
MEMÓRIAS DOS PAIS-IMIGRANTES na Ucrânia, perto de Kiev”, que veio a mãe
de Jane, em 1922, com 9 anos de idade. Ela
NOS ESTADOS UNIDOS contava que o seu pai havia sido “um bem-
sucedido dono de moinho […] e de como
As lembranças que as filhas conservam as empregadas tomavam conta dela qando
das pequenas cidadezinhas da Europa Ori- ela era pequena”. Infelizmente, o comunis-
ental foram construídas a partir dos relatos mo não acabou com os pogroms, como a
que ouviram ao longo de sua convivência família esperava e, num deles, “ela quase
com os seus pais. São histórias narradas foi morta”. Sobre o pai de Jane, a única
pelos imigrantes ao longo do seu processo informação é que ele teria vindo da Polônia.
de adaptação no Brasil e nos Estados Uni- Os pais de Bea “vieram ambos de um
dos. As filhas ao relatar as histórias vividas pequeno shtetl na Ucrânia, chamado
por seus pais o fazem com os olhos de hoje, Horchiv […]. Eu acho que é Gorochiv em
isto é, a partir da sua inserção atual na ucraniano”. Tudo indica que ela se refere à
sociedade. Vários fatores entram, dessa pequena cidade de Gorokhov (em ídiche,
forma, na construção das memórias sobre Horchov), situada a 88 km a nordeste da
os shtetln. cidade de Lvov, na Ucrânia (cf. Mokotoff
A mãe de Roberta chegou aos Estados e Sack, 1991). O pai de Bea “veio primeiro
Unidos, em 1905, aos 10 anos de idade, para a América, antes da Primeira Guerra
procedente de Nowy Sacz, Polônia. Ape- Mundial estourar, para escapar do serviço
sar de a mãe de Roberta ter chegado aos militar obrigatório […], a minha mãe veio
Estados Unidos, já com essa idade, ela depois da guerra, provavelmente em 1920”.
contou “muito pouco” sobre a vida em Embora os seus pais tenham imigrado adul-
Nowy Sacz (em polonês, e Niesandz, em tos, já casados, as informações sobre a vida
ídiche). Segundo Roberta, “era uma coisa em Gorokhov são escassas: “Meu pai era,

80 REVISTA USP, São Paulo, n.47, p. 74-90, setembro/novembro 2000


na realidade, um aluno do meu avô mater- de grupos de genealogia ou ainda pagam
no. Ele não tinha um ofício” (3). Bea afir- pesquisadores para fazerem o levantamen-
ma que “ele sempre gostou de escrever e eu to em cartórios e registros civis dos países
tenho algumas das histórias que ele escre- da Europa Oriental.
veu. Mas, infelizmente, elas estão em ídiche Bea mostra como a ligação dela com o
e eu não leio ídiche, assim, eu apenas as Yivo passa pela sua origem: “Eu sou vo-
tenho. Talvez, algum dia, alguém as leia e luntária aqui duas vezes por semana, às
as traduza”. Chegando aos Estados Uni- terças e quintas, à tarde. Eu escolhi esta
dos, o seu pai tinha que sobreviver e, então, organização porque quando eu quis desco-
“ele aprendeu a a trabalhar como pintor de brir mais sobre o shtetl dos meus pais, eu
parede”. vim até o Yivo e consegui algumas infor-
A filósofa Hannah Arendt explica a ra- mações e fiz, então, uma viagem ao shtetl
zão do ódio violento das populações da dos meus pais a partir das informações que
Polônia e da România contra os judeus, pelo consegui aqui no Yivo. Eu senti que devia
papel de intermediário exercido por estes alguma coisa para eles e eu pensei que essa
entre os grandes proprietários de terra e as é uma boa organização. Por isso eu escolhi
classes sem propriedade (Arendt, 1979, pp. esse lugar”.
28 e 29). No entanto, esse padrão de atitude A ligação dos pais com o local de origem
nem sempre se verificou. É o que mostra a aparece na criação de Landsmanschaften,
narrativa de Bea: “O meu marido também associações de imigrantes procedentes do
nasceu na América, de pais europeus, que mesmo lugar. As Landsmanshaften se tor-
vieram de Lemberg (Lvov, na Galícia po- naram a forma mais popular de organiza-
lonesa) e a minha sogra era de uma família ção dos imigrantes da Europa Oriental nos
de Cracóvia ou de uma pequena vila, lá Estados Unidos, no final do século XIX e
perto. De fato, eu fui visitar o primo do meu nos primeiros anos do século XX, da qual
marido, o filho da irmã da minha sogra, que participavam milhares de pessoas. Somente
durante a guerra de algum modo conseguiu a cidade de Nova York contava com cerca
escapar de ser enviado para os campos de de 3.000 Landsmanshaften no final da dé-
concentração. Parece que a minha sogra cada de 1930. Conforme os seus objetivos,
partiu, deixando duas irmãs e elas casaram- elas se organizavam em sociedades de aju-
se, ambas, com poloneses não-judeus, po- da mútua, em congregações religiosas e em
liciais, e por isso elas conseguiram sobre- lojas fraternas. Elas refletiam uma varieda-
viver. Mas eu penso que um dos maridos de de orientações religiosas e políticas e
foi morto e que eles tinham um filho men- proporcionavam aos seus membros bene-
talmente doente e que teve de ser institucio- fícios materiais, servindo também como
nalizado. O outro eu visitei quando eu fui local de interação social formal e informal
para Cracóvia, acho que ele é jornalista”. (cf. Soyer, 1997, pp. 1 e 2).
Essa ligação grande com a localidade Apesar de não ser esse o seu objetivo, as
de origem dos pais e, ao mesmo tempo, o Landsmanshaften funcionaram também
desejo de saber das suas raízes e das comu- como uma instituição que facilitava a adap-
nidades que desapareceram aparece em tação do imigrante à nova sociedade atra-
grande parte das entrevistas com as judias vés da incorporação de elementos do Novo
norte-americanas. Mesmo quando as infor- Mundo às práticas do Velho Mundo. A
mações são escassas, as entrevistadas sa- narrativa de Bea mostra a junção desses
bem pelo menos os nomes das pequenas dois aspectos da vida do imigrante. “Havia
cidades. Essa ligação com as comunidades uma Landsmanschaft muito ativa aqui e
de origem não se restringe unicamente ao meus pais eram ambos ativos nela e eles
caso das entrevistadas. Ao contrário, ela estavam sempre falando do velho país e 3 A dedicação ao estudo, quer
sagrado, quer secular, é o
parece ser muito grande entre os judeus sempre encontrando os velhos amigos, objetivo fundamental do ho-
norte-americanos. Haja vista o número de landsman, eles se encontravam regularmen- mem. “O sábio – diz o Talmude
– tem precedência sobre o rei”
pessoas que estudam ídiche e participam te. Eles tinham mesmo uma organização. (Rosten, 1972, p. 327).

REVISTA USP, São Paulo, n.47, p. 74-90, setembro/novembro 2000 81


Eu sempre ouvia histórias de como tudo Ashkenazim (4) de crianças receberem o
era maravilhoso no velho país, exceto que nome de parentes já falecidos, o problema
se era muito maravilhoso por que eles qui- da americanização. Diz Bea: “Eu diminuí o
seram sair de lá? Mas a fruta era melhor, os meu nome para Bea. Eu não gosto do dimi-
morangos, você sabe, tudo era melhor. E nutivo Beattie, como os meus amigos cos-
eles também costumavam participar de uma tumavam me chamar quando criança, eu
porção de atividades sociais, teatro, en- nunca gostei desse nome. Mas quando a
contros, palestras. Eles tinham uma socie- minha mãe e o meu pai tinham uma loja de
dade beneficente. Era mesmo muito bom, confecções, eles a chamaram de Betty’s
aqui na cidade de Nova York”. Dress, eles deram o meu nome. Mas, na-
A Landsmanshaft se constituiu num quele tempo, eu tinha uma prima que se
ponto de apoio ao imigrante, fornecendo achava muito americanizada e ela
aos seus membros benefícios tais como infuenciou os meus pais para darem à loja
cuidados médicos, empréstimos e enterros, o nome de Betty”.
enfim, o apoio material e emocional neces- As lembranças de Bea, ao falar de seus
sário à sua adaptação. É o que se depreende pais, seguem um ir e vir do Velho Mundo
das palavras de Bea: “As Landsmanshaften para “a América” e vice-versa, movimento
providenciavam todos os tipos de ajuda. semelhante ao encontrado na fala das ou-
Elas providenciavam atendimento médico tras entrevistadas. Esse movimento da
porque eles tinham um doutor contratado memória decorre do procedimento de pes-
para cuidar de todas as necessidades médi- quisa empregado, no qual o entrevistado
cas, assim, se alguém ficasse doente, nós narra ou dialoga com o pesquisador, rela-
íamos ao dr. Grossman e ele vinha e cuida- tando as suas lembranças conforme as as-
va da gente. O dr. Grossman salvou a mi- sociações que elabora livremente. A análi-
nha vida e a do meu irmão porque ele teve se dos relatos tendo como base o movimen-
uma apendicite. Ele veio e diagnosticou to da memória da entrevistada e as suas
imediatamente e tudo isso fazia parte dos associações de lembranças leva à criação
benefícios da Landsmanshaft. Eles tinham de um trabalho mais rico e mais completo,
também uma associação que emprestava diferente da análise cronológica e temática
dinheiro sem juros, e se as pessoas precisa- das entrevistas, que conduz a um trabalho
vam de dinheiro, elas recebiam um emprés- pobre e fragmentado.
timo e elas pagavam de volta assim que
elas pudessem. Elas eram organizações
maravilhosas, maravilhosas […] Esse dou-
tor, eu penso que ele era um imigrante da MEMÓRIAS DOS PAIS-IMIGRANTES:
Rússia ou da Polônia e quando ele veio para
esse país, ele trabalhou numa fábrica e es- BRASIL
tudou à noite para se tornar médico e ele se
tornou um doutor. Quando uma criança Quanto às filhas de imigrantes da cida-
nascia, você tinha que lhe dar algum nome. de de São Paulo, chama a atenção o desco-
O meu nome veio de alguém chamado nhecimento de duas delas sobre a proce-
Boscha, assim minha mãe disse Bessie, mas dência dos seus pais. Célia informou, sem
ele disse ‘Oh, não, você tem que escolher muito interesse, que o pai veio da
um nome melhor’ e ele chamou-me Bessarábia e a mãe da Lituânia. Annie dis-
Beatrice, e quando a minha tia teve filhos, se que os seus pais haviam nascido na
ele escolheu os nomes de todos eles. Um Polônia, tentou recordar os nomes das lo-
dos meus primos foi chamado Efrem, de calidades, mas conseguiu apenas imitar com
4 De Ashkenaz, termo hebraico Froym, ele deu-lhe o nome de Efrem, o outro dificuldade as palavras ouvidas dos seus
para Alemanha. Diz-se do ju-
deu ou da tradição judaica ele chamou Gabriel”. pais. Durante a maior parte de sua vida
proveniente da Europa Central Por trás dessa questão do nome apare-
e Oriental (Rosten, 1972, p.
Annie aprendeu a não fazer perguntas aos
643). ce, além da tradição entre os judeus seus pais, sobreviventes do Holocausto.

82 REVISTA USP, São Paulo, n.47, p. 74-90, setembro/novembro 2000


Só recentemente a sua mãe começou a fa- trazido para cá”.
lar. Amélia foi a única que pronunciou de O Holocausto vai atingir Amélia a par-
forma correta o nome da localidade dos seus tir da notícia da eclosão da guerra: “Foi
pais, Opole, na Polônia. muito triste tudo porque eu me lembro essa
Em termos comparativos, as entrevis- cena do meu pai acenando, eu não enten-
tadas do Brasil têm uma ligação menor com dia, eu era pequeninha, acenando para mi-
o judaísmo da Europa Oriental do que aque- nha mãe que tinha estourado a guerra, é
las dos Estados Unidos. A proximidade com uma cena que sempre me vem na frente
o Estado de Israel é muito maior no caso porque a minha mãe começou a chorar tan-
das nascidas no Brasil. Assim, a única filha to e eu fiquei olhando assim e não entendia
de Annie mora em Israel, para onde ela se o grau, o que estava acontecendo. Eu tinha
dirige com freqüência. Tanto Amélia quan- mais ou menos uns 7 anos e não entendia o
to Célia afirmaram sentir-se próximas do que estava acontecendo, porque eles esta-
Estado de Israel. vam chorando tanto, eu me lembro do meu
Opole localiza-se a 82 km a sudoeste de pai acenando com o jornal assim para ela
Czestochowa, na Polônia. O relato de que a guerra tinha estourado e foi aquele
Amélia sobre a vida dos seus pais em Opole, silêncio e quando vieram as notícias, vie-
“uma vila bem pequeninha, perto de ram notícias muito tristes”.
Lublin”, é bastante elucidativo sobre a vida Como bem apontou Halbwachs ao se
dos judeus dessa localidade: pobreza e anti- referir à formação da memória coletiva,
semitismo constituíam o binômio que mar- muitas vezes a criança vê uma cena, um
cava os moradores de Opole. “Era tão difí- conflito, alguma manifestação de rua e a
cil a vida deles que, até hoje, a gente não sua compreensão do que viu, a fixação da
consegue entender como eles sobreviviam sua lembrança estará associada às atitudes
porque era um negocinho pequeninho, era dos pais ou de outros adultos quando do
uma lojinha […]”. O anti-semitismo era tal acontecimento (Halbwachs, 1950, pp. 63-
que, já em São Paulo, a mãe de Amélia 4). Assim, diz Amélia: “Então cresci, mui-
“andava na calçada e quando ela via al- ta tristeza nisso tudo, de repente todos se
guém vindo, ela descia da calçada com viram sem ninguém, e nossa família tão
medo de ser empurrada porque na Polônia, pequeninha, só nós, eu sou filha única, então
onde ela morava, sempre foi assim. Os ju- não tinha mais ninguém”.
deus tinham medo, era muito anti- Antes do Holocausto, a relação com a
semitismo […]”. localidade de origem prosseguia através da
Para os pais de Amélia deixar os paren- correspondência com os parentes que ha-
tes e imigrar para o Brasil foi como uma viam ficado e da ajuda prestada aos imi-
“despedida em vida” da família. Só mesmo grantes recém-chegados. Para Amélia, em
por uma questão de “sobrevivência” eles São Paulo, a presença de outros imigrantes
vieram. Essa foi a primeira ruptura que sempre foi vista como um fator positivo, a
enfrentaram. A segunda, muito mais dolo- sua casa era “o centro desses imigrantes
rosa, viria alguns anos mais tarde, com o que vinham dessa vilazinha (de Opole)
Holocausto: “A vida toda ela [a mãe] sem- […]”. Lá “eles tinham sempre um lugar
pre chorou essa família toda, tanto ela quan- para dormir, para passar uns dias, para de-
to o meu pai, essa família toda que ela per- pois poderem achar algum canto para mo-
deu e o meu avô por parte dela”. rar, algum canto para ficar. Eu, naquela
A luta dos pais de Amélia pela sobrevi- época, posso dizer até graças a Deus, que
vência iria continuar aqui. E junto com ela não sou mimada, não fui mimada porque
o sentimento de impotência por não terem eu, entre todos os imigrantes, era a única
conseguido trazer toda a família para o criança naquela época porque a maioria veio
Brasil, com exceção de um sobrinho, filho sozinha e depois traziam as mulheres”. De
de uma tia materna, “que casou logo e aca- forma semelhante à família de Amélia, mas,
bou não ajudando a família que poderia ter com resultados diversos, a família materna

REVISTA USP, São Paulo, n.47, p. 74-90, setembro/novembro 2000 83


de Roberta, em Nova York, hospedava A formalização da associação dos imi-
outros imigrantes em casa. Isso significava grantes provenientes de Opole ocorreu em
um meio de aumentar a renda familiar, função do vínculo com os parentes que ti-
apesar dos prejuízos para a família, pois os nham ficado em Opole e em decorrência da
inquilinos se constituíam “num problema guerra. Antes disso, porém, as pessoas pro-
para as filhas, eles molestavam as garotas”. cedentes dessa vila se reuniam em caráter
Para a família materna de Roberta tra- informal, como relatou Amélia, ao se refe-
tou-se de uma transação comercial, de uma rir às discussões literárias e políticas, e às
prestação de serviço – ela emprega o termo reuniões festivas que ocorreram na sua casa.
inglês boarder, inquilino –, para Amélia e Ao contrário da experiência dos pais de Bea
seus pais, abrigar imigrantes em casa foi que participavam de uma Landsmanshaft
um gesto de solidariedade: “Todos eram mais antiga e institucionalizada.
muito solidários, acontecia qualquer coisa Nos Estados Unidos há muitos dados
e a casa dos meus pais era, durante muitos disponíveis sobre as Landsmanshaften e
anos, o centro de todo esse pessoal que várias pesquisas publicadas sobre o assun-
chegou dessa vila […]. Todos que vinham, to. No Brasil, contudo, os dados a respeito
que conversavam, noites interessantes, uma desse tipo de associação são bastante es-
conversa muito gostosa, muito interessan- cassos. Nenhum levantamento foi ainda
te, sempre sobre cultura, sobre política realizado, não há trabalho algum publica-
[…]”. Há ainda uma grande diferença: era do sobre o assunto. A referência mais anti-
a avó materna de Roberta quem mantinha ga que conseguimos obter consta do jornal
boarders em casa, quando a filha (a mãe de A Coluna, publicação em português da
Roberta) já era adolescente. Portanto, comunidade judaica do Rio de Janeiro. No
Roberta não vivenciou diretamente o fato, exemplar de 2 de fevereiro de 1917, nas
mas o seu peso foi tão grande que a sua páginas 40 e 41, sob o título “Balanço
memória preservou o relato de sua mãe. Annual do Comité de Socorros aos Israelitas
Amélia, ao contrário, experienciou uma “in- Víctimas da Guerra”, há uma relação de
fância dentro de um ambiente muito bom entidades que contribuíram. Além de três
[…] e alegre”, formado por seus pais e pelos sinagogas citadas, estão arroladas cinco
demais imigrantes da mesma origem. Landsmanshaften (5).
Das três entrevistadas de São Paulo Em 1977, em Israel, é publicado o
apenas Amélia se refere à Landsmanshaft Memorial Book de Opole, para o qual
da qual seus pais participavam. “Ele [o pai] Amélia contribuiu financeiramente e que
foi muito ativo sempre, no tempo da guer- contém uma foto dos seus pais, falecidos
ra, fizeram até... você entende alguma coi- na cidade de São Paulo nos anos 60. O Izker
sa ídiche? Opole Farain , que seria um agru- Buch Opole Lubelski foi escrito pelas Or-
pamento que, quando começou a guerra, ganizações dos Oriundos de Opole em Is-
então eles se reuniram, os que vieram pra rael e através do Mundo, em ídiche. Ele
cá de Opole e fizeram uma agremiação onde contém algumas informações referentes à
eles começaram a juntar dinheiro, pensan- Opole Farain situada em São Paulo (6). O
do que, quando terminasse a guerra, eles prefácio traz o seu objetivo principal:
teriam pra quem mandar o dinheiro. Mas,
infelizmente, a maioria morreu na cidade “O destino cruel que afetou o povo judeu
deles. Ajudaram os poucos que ficaram, na Polônia não poupou os nossos queridos
ajudaram essa moça, que lhe falei, a vir pra de Opole. Nós, os sobreviventes da cida-
cá, outros foram pra Israel, então, os dezinha, sobreviventes das câmaras de gás
pouquinhos que sobraram foram ajudados e das piras, assumimos a responsabilidade
5 Exemplares do jornal A Coluna
cedidos pelo prof. dr. por esse Opole Farain, onde o meu pai foi e o dever de cumprir a promessa às víti-
Nachman Falbel, da USP.
presidente. E com isso eles ajudaram essas mas do Holocausto nas noites escuras de
6 Tradução do ídiche da profa. poucas pessoas que sobraram e, infelizmen- temor e nos catres ante o temor dos dias
dra. Nancy Rozenchan, da
USP. te, da nossa família não sobrou ninguém.” por vir e nas horas terríveis de sua morte:

84 REVISTA USP, São Paulo, n.47, p. 74-90, setembro/novembro 2000


não perdoar, não esquecer. mílias na Polônia, Alemanha e Israel. Foi
Com temor sagrado propomo-nos a cum- também escolhido um comitê feminino.
prir a missão de publicar um livro sobre o Em uma reunião posterior foram enviados
nascimento, desenvolvimento e extermínio a Lodj três pacotes de mantimentos para os
trágico da comunidade em Opole. Fizemos nossos conterrâneos (sobreviventes) […].
de tudo para coletar o material necessário Mais tarde enviamos novamente pacotes
para um livro de memória, que seja uma para a Polônia. Foi também decidido envi-
espécie de espelho em que se reflitam a ar uma delegação para saudar a sobrevi-
vida comunitária, religiosa, cultural e polí- vente do inferno hitlerista, Reizl Korman,
tica de nossa cidadezinha e o seu que havia chegado ao Brasil e se estabele-
martirológio durante a Segunda Guerra cido em Santos. Reizl foi convidada para
Mundial”. um encontro com os conterrâneos em São
Paulo. Em palavras tocantes ela informou
A parte escrita pelos membros da sobre a morte dos judeus de Opole. As
Landsmanshaft de Opole no Brasil (São maiores matanças ocorreram de 15 a 23 de
Paulo) contém algumas informações sobre maio de 1942. Os últimos judeus foram
a sua criação: mortos em novembro do mesmo ano. Seu
relato emocionou a todos. Porém, foi para
“Os imigrantes de Opole que chegaram ao nós também uma certa satisfação e orgulho
Brasil durante o período entre a Primeira e que uma mulher de Opole houvesse per-
Segunda Guerras Mundiais consideraram tencido aos partisanos e se vingado dos
importante fundar uma organização pró- assassinos alemães pelo sangue judaico
pria com conselho, para auxílio mútuo, criar derramado” (p. 381).
trabalho para ajudar a dar os primeiros
passos no novo país. Mas, ao mesmo tem- Logo depois da guerra, os Memorial
po, não esquecer os pais, irmãs, irmãos e Books tornaram-se o maior objetivo cultu-
parentes que permaneceram no velho país, ral das Landsmanshaften, as sociedades de
cuidar de suas necessidades e lhes propor- ajuda mútua, dos judeus imigrantes das pe-
cionar ajuda fraterna. No geral, podemos quenas cidades da Europa Oriental viven-
nos dar por satisfeitos pelo cumprimento do nos Estados Unidos, em Israel, na Ar-
destas duas tarefas importantes. gentina e em outros lugares. Antes da guer-
Após a destruição, quando soubemos da ra, como já foi visto, as Landsmanshaften
grande desgraça que ocorreu com o nosso tinham sido o laço principal dos imigrantes
povo, incluindo a Opole judaica, nossa com a comunidade deixada para trás. As
primeira tarefa foi: ajudar os sobreviventes Landsmanshaften coletavam dinheiro e
conterrâneos, tanto os que retornaram à enviavam representantes para distribuir o
Polônia destruída, como aqueles que ainda auxílio às pessoas destituídas das peque-
se encontravam em solo alemão, e, antes de nas cidades. Depois da guerra, as
todos, aqueles concidadãos que imigraram Landsmanshaften continuaram ainda en-
para Israel. volvidas com o trabalho de auxílio, provi-
Mas relatemos inicialmente alguns deta- denciando fundos para a emigração e para
lhes de nossa atividade: no livro de pro- o assentamento dos sobreviventes e para o
tocolo da sociedade está registrada a data novo Estado de Israel (Kugelmass e
de reunião de criação, que ocorreu em 26 Boyarin, 1983). Esse foi o caso da Opole
de setembro de 1945, com a participação Farain, a associação a que o pai de Amélia
de 33 conterrâneos […]. Na reunião ocor- pertencia.
rida em 17 de outubro de 1945 foi decidido Embora a Opole Farain de São Paulo
enviar cartas aos judeus sobreviventes, não tenha contribuído para a confecção da
cujos nomes encontramos nas listas história de Opole relatada no Memorial
publicadas e coletar dinheiro em festas de Book, esse fato não diminui a importância
conterrâneos para as necessidades das fa- desse tipo de literatura como fonte de in-

REVISTA USP, São Paulo, n.47, p. 74-90, setembro/novembro 2000 85


formações sobre a vida dos judeus nas pe- jovem. Ela tinha 15 anos e ela, é como ela
quenas cidades da Europa Oriental. Apesar diz, eu acho que alguém tinha que sobrar
de a realidade retratada apresentar-se para contar a história porque senão não ia
distorcida pelo Holocausto, a voz coletiva sobrar ninguém de uma família tão grande.
dos seus atores tende a atenuar essa […] E a minha mãe ficou em Auschwitz
distorção, fornecendo detalhes ricos do todo o tempo. O meu pai não, estava em
cotidiano dessas localidades (Kugelmass e outro campo”.
Boyarin, 1983). A sobrevivência é explicada de modo
Muito embora os Memorial Books ti- “místico” como se tivesse sido uma “bên-
vessem começado a ser escritos logo de- ção”. Annie recorda a Mitzvá que a família
pois da guerra, veiculando dessa forma da sua mãe praticava: “A minha mãe lem-
informações sobre a vida nas cidadezinhas bra muito, ela era menina, ela era a caçula.
e a sua posterior destruição, o silêncio dos Então tinha uma senhora muito pobre nos
sobreviventes dos campos de concentração arredores de onde moravam e toda sexta-
predominou até recentemente. A pressão feira, todo o Shabbat, no caso seria a minha
para levar uma vida normal, para trabalhar avó, a mãe da minha mãe, preparava aquele
buscando esquecer e sobreviver e, ao mes- Shabbat todo, já preparava o Cholent (8),
mo tempo, tentar formar uma nova família deixava fazendo, não acendia o fogo. To-
não impediu o sentimento de culpa parti- das essas coisas eram realmente feitas ao
lhado por muitos dos sobreviventes, que pé da letra e com muito mais dificuldades
não conseguiam justificar para eles próprios que hoje, mas se fazia. E toda a sexta-feira,
o fato de terem sobrevivido ao assassinato à tarde, a mãe da minha mãe, a minha avó,
de suas famílias. Esse silêncio foi então preparava uma cesta tipo Chapeuzinho
eleito como uma condição necessária para Vermelho, uma cesta com frutas e Challah
a manutenção da comunicação com o am- e mais alguma coisa, dependendo do que
biente social, como bem observou Pollack ela cozinhava e a minha mãe é que tinha
(1986). que levar para essa senhora, para o Shabbat.
O silêncio dos seus pais foi entendido Porque essa senhora mal sobrevivia, so-
por Annie desde criança. “Quando a guerra brevivia de doações. Todo o Shabbat era
estourou, os dois foram aprisionados em religioso e a minha mãe ia todo o Shabbat,
campos de concentração. Eu evitei por chovesse, caísse neve, era sistemático. E a
muito tempo conversar com eles sobre a minha mãe conta que quando ela chegava
família. Eu percebia que era muito triste. lá... Ela estava sempre acamada, doente,
Agora, de uns anos para cá, a minha mãe ela quase não se mexia e então a minha mãe
tem contado coisas, interessante isso. Nos conta que, quando ia visitar, ela era meni-
últimos tempos, não sei se é porque houve na, então tinha louça suja, ela lavava, ela
essa manifestação em relação ao Spielberg, varria a casa para a velhinha, pelo menos
essa movimentação, e o pessoal tem trazi- para deixar a casa em ordem para o Shabbat,
do à tona esse assunto de sobrevivente, trocava uma toalha. Minha mãe sempre
então, acho que até ela tem feito mais, con- arrumava a casinha e a velha mal conse-
tado mais caso e da vida.” guia falar e a velha agradecia e era tudo
O relacionamento entre as pessoas do muito… Ela nem sabia quem eram as pes-
shtetl e a prática da Mitzvá (7) são vistos da soas que iam lá ajudar, era uma coisa, não
perspectiva da sobrevivente, em um relato sabia que fulana ia lá. Ela não sabia quem
em que a dor pela perda da família aparece estava indo lá. Ela sabia que iam umas
misturada com o sentimento de culpa por pessoas ajudar e toda vez que ela saía, ela
7 Preceito religioso que combina ter resistido e com a justificativa da própria agradecia, falava em ídiche, a minha mãe
a prática da caridade com jus-
tiça. sobrevivência. A mãe de Annie “era a ca- entendia e… ela falava obrigado e Shabbat
8 Um cozido de feijão, vegetais çula de uma família de nove filhos e so- Shalom, alguma coisa assim e ia embora.
e carne que se preparava na mente ela sobreviveu […]. A minha mãe Não era Shabbat Shalom, era a guit Shabes.
véspera e se comia no almoço
do Shabbat. teve uma vida muito dura. Ela era muito Shabbat Schalom é hebraico, ninguém fa-

86 REVISTA USP, São Paulo, n.47, p. 74-90, setembro/novembro 2000


lava hebraico. A guit Shabes (9) e ia embo- ceu completamente. Tanto quanto eu sei,
ra. Aí, quando foi umas das últimas vezes deve haver uma ou duas pessoas aqui nos
que a minha mãe foi porque logo a guerra Estados Unidos, mas a minha mãe nunca se
estourou, então, a minha mãe conta que ela manteve em contato com eles. Deve haver
não falou a mesma coisa. Ela não falou alguém em Israel. O meu avô (materno)
exatamente as mesmas palavras. Não falou costumava enviar dinheiro, mas eu não sei
a dank, obrigado, nem a guit Shabes, mas quem eles são e a minha mãe não tinha
chamou ela perto dela e deu um beijo e interesse em manter-se em contato com a
falou: ‘Que você tenha longos anos’. Foi a família. Eu tenho certeza que isso tinha
última vez que a minha mãe foi lá. É langue menos que ver com ser assimilada do que
yurn que se fala em ídiche, então a minha com personalidade”.
mãe diz que logo depois a guerra estourou,
a minha mãe nunca mais foi lá, nem sabe o
que aconteceu, então a minha mãe acha que
é como se fosse uma luz, que a velha (que- CONCLUSÃO
ria dar) uma bênção para ela e ela sobrevi-
veu à guerra. É uma história assim um pou- As memórias dos shtetln contêm tanto
co mística, mas que ela deve acreditar. Ela referências positivas quanto negativas: para
acreditou que, quando ela estava no cam- Bea, norte-americana, ficaram as boas lem-
po, ela sempre lembrava o que essa velha branças do relacionamento entre judeus e
falou, as últimas palavras que ela ouviu que não-judeus e de “uma terra onde tudo era
você tenha longos anos. Como se fosse uma melhor”; para Amélia, brasileira, as lembran-
bênção, realmente. Então, achei uma coisa ças são amargas, a pobreza e o anti-semitismo
realmente muito forte. Bom e tem milhões se completam. As Landsmanshaften apare-
de histórias sobre a guerra, sobre tudo o cem como canais de institucionalização das
que ela passou, as privações e sofrimentos, memórias dos shtetln, pela manutenção da
mas não importa, o que importa é que ela memória viva, através da forte ligação com
sobreviveu”. as pequenas cidadezinhas de origem, antes
A memória do shtetl vista da ótica do do Holocausto; e, depois, pela exortação ao
Holocausto não aparece nas histórias de não-esquecimento dos que haviam perecido
vida das mulheres entrevistadas nos Esta- e da vida que haviam deixado para trás, atra-
dos Unidos. Provavelmente isso se explica vés dos Memorial Books. Essas foram, res-
pela diferença do tempo da migração. Os pectivamente, as recordações auferidas das
pais das entrevistadas imigraram para os histórias de vida de Bea e de Amélia.
Estados Unidos entre 1905 e 1922 e, no O fato de os shtetln terem sido lembra-
caso do Brasil, entre 1911 e 1948. A idade dos da perspectiva do Holocausto, tratan-
na época da migração pode também expli- do-se portanto de recordações mais recen-
car essa diversidade. Os pais-imigrantes se tes no tempo, não significou porém uma
estabeleceram no Brasil já adultos e aque- aproximação maior com as pequenas cida-
les que se fixaram nos Estados Unidos, com dezinhas, muito pelo contrário, ao que tudo
exceção dos pais da Bea, eram crianças ou indica, a dor do Holocausto levou a uma
jovens adolescentes. Neste último caso, os ruptura completa: “Para que conhecer
efeitos da perda podem ter lhes parecido Opole? Se não tenho mais ninguém lá, se
distantes, como se depreende das palavras todos foram mortos?”, foram as palavras
de Roberta: “Nós temos uma árvore da fa- de Amélia.
mília do meu pai, que um dos tios do meu Apesar de a perspectiva do Holocausto
falecido avô, a sua filha tinha feito e a lista influenciar o relato sobre o shtetl, é possí-
de pessoas que morreram na Europa, é in- vel conhecer algumas das práticas dos seus
crível! Assim novamente a ligação com o antigos moradores, como mostra a narrati-
velho país desapareceu completamente. A va de Annie sobre o cumprimento da Mitzvá
9 Saudação utilizada na véspe-
família da minha avó (materna) desapare- pela sua mãe. ra do sábado.

REVISTA USP, São Paulo, n.47, p. 74-90, setembro/novembro 2000 87


sht
O fato de o Holocausto não ter afetado
etl

e te
diretamente as entrevistadas dos Estados
Unidos e mais a existência de instituições

t
que procuram preservar a língua e a cultura

l
ídiche nesse país podem ter levado ao cres-

sh
cente interesse pela vida na Europa Orien-

sht
t
tal antes do genocídio. Assim, Bea procu-

e
rou conhecer pessoalmente o shtetl e os

tl
parentes afastados da família, que ainda

s
vivem na região. Roberta demonstrou um

h
interesse intelectual muito grande: “Agora

t
eu estou em um momento da minha vida

e
em que eu trouxe o que estava para trás

t
sht l
para a frente, certamente que de um ponto

s
de vista distante, quase que olhando para

h
trás como uma estudante, mais do que da

t
perspectiva da minha própria família”.

e
Instituições tais como Yivo, Workmen’s
Circle, Jewish Genealogical Society exer-
cem o papel de instrumentos de atualiza-
ção da memória da vida e da cultura das

e
pequenas cidadezinhas onde viveram os
judeus da Europa Oriental. A isso se acres-
centa a grande produção cultural norte-
americana sobre o assunto, através de li-
vros de pesquisa e de literatura, publica-
ções de modo geral, existência de museus,
atuando como veículos de persistência da
memória. O acesso à informação, desse
modo, é muito mais amplo do que no Bra-
sht

sil, onde as instituições existentes têm um


reduzido alcance, não demonstrando uma
preocupação grande com a preservação de
s
origens que desapareceram há mais de meio
século. A memória coletiva judaica, nos
sht
etl

Estados Unidos, é pois constantemente


h
reatualizada no tempo, enquanto a memó-
ria coletiva judaica, no Brasil, parece ter
etl

“parado no tempo”, talvez por falta de re-


cursos e de interesse.
sht

A explicação para atitudes tão diversas


estaria no fato da grande diferença numéri-
sht
t
ca da imigração para ambos os países. Mais
de dois milhões de judeus da Europa Ori-
ental se estabeleceram nos Estados Uni- etl
dos, a maior parte em Nova York, onde sht
e
formaram grandes concentrações em de-
corrência não só da sua quantidade como
e
também das condições sociais que encon-
traram (Rischin, 1977; Higham, 1993). Essa
maior coesão social e a existência de recur-

88 REVISTA USP, São Paulo, n.47, p. 74-90, setembro/novembro 2000


s
sos financeiros permitiram a elaboração de litou a sua integração mais rápida na soci-
uma significativa produção cultural, facili- edade e cultura luso-brasileira, e, de outro,
tando assim a organização e persistência levou a uma produção cultural pouco sig-
da memória coletiva judaica dos shtetln da nificativa, de reduzido impacto no próprio
Europa Oriental. grupo e na sociedade envolvente e à transi-
No Brasil, a imigração judaica ocorreu tória institucionalização da memória cole-
bem mais tarde e em número reduzido. A tiva judaica dos shtetln.
maioria dos imigrantes se fixou na cidade As entrevistadas de ambos os países
de São Paulo, em bairros onde entraram em expressam memórias coletivas baseadas,
contato com outras etnias. Apesar de rela- nos Estados Unidos (na cidade de Nova
tivamente concentrados por algumas pou- York), na preservação da cultura oriunda
cas décadas no bairro do Bom Retiro, o seu das pequenas cidades judias desaparecidas,
pequeno número, poucos recursos e as con- em uma memória portanto cultuada; e, no
dições sociais que encontraram não lhes caso do Brasil, expressam uma memória
possibilitaram a formação de um grupo negada, seja pelo desinteresse, seja pelas
socialmente coeso, o que de um lado faci- dores trazidas pelo Holocausto.

BIBLIOGRAFIA

AGOSÍN, Marjorie. Always from Somewhere Else. New York, Cuny, 1998.
ARENDT, Hannah. The Origins of Totalitarianism. San Diego, Harcourt Brace & Company, 1996.
BAILY, Samuel. “Cross-Cultural Comparison and the Writing of Migration History: Some Thoughts on How to Study
Italians in the Nova World’, in V. Yans-McLaughlin (org.), Immigration Reconsidered. New York, Oxford University
Press, 1990.
BALANÇO Annual do Comitê de Socorro aos Israelitas Victimas da Guerra. A Columna. Rio de Janeiro, 2 de fevereiro
de 1917, pp. 40-1. Jornal editado pela coletividade judaica do Rio de Janeiro.
EWEN, Elizabeth. Immigrant Women in the Land of Dollars: Life and Culture on the Lower East Side, 1890-1925.
New York, Monthly Review Press, 1985.
FAUSTO, Boris. Historiografia da Imigração para São Paulo. São Paulo, Sumaré, 1991.
FRIEDMAN-KASABA, Kathie. Memories of Migration: Gender, Ethnicity, and Work in the Lives of Jewish and Italian
Women in Nova York, 1870-1924. Albany, State University of New York Press, 1996.
FEBROT, L. I. “Cidade Judaica: Gênesis”, in C. Medina (org.), Paulicéia Prometida. São Paulo, CJE/ECA/USP, 1990.
GABACCIA, Donna. From the Other Side: Women, Gender & Immigrant Life in the U.S. 1820-1990. Bloomington,
Indiana University Press, 1994.
GLENN, Susan. Daughters of the Shtetl: Life and Labor in the Immigrant Generation. Ithaka, Cornell University Press,
1990.
GITTLEMAN, S. From Shtetl to Suburbia, The Family in Jewish Literary Imagination. Boston, Beacon Press, 1978.
GLAZIER, Ira A. (org.). Migration from the Russian Empire. Lists of Passengers arriving at U.S. Ports. Vol.5, June
1889 – July 1890. Baltimore, Genealogical Publishing Co., Inc., 1998.
HALBWACHS, M. A Memória Coletiva. São Paulo, Vértice, 1990.
KIRSHENBLATT-GIMBLET, B. “The Concept and Varieties of Narrative Performance in East European Jewish Culture”, in
Bauman & Sherzer (org.), Explorations in the Ethnography of Speaking. London, Cambridge University Press, 1974.
KOSMINSKY, E. “Family, Ethnic Group and Social Class in the Study of Eastern European Jewish Immigration to Brazil
and to the United States”, paper apresentado no congresso da LASA em Chicago, 1998.
________. “A Segunda Geração de Mulheres Judias no Brasil e nos Estados Unidos”. Projeto de pesquisa
etl apresentado à Fapesp em 1997.
________. “Judaísmo e Imigração: a História de uma Família. SP”. Relatório científico apresentado à Fundunesp,
mimeo., 1996.
KUGELMASS, J. e BOYARIN, J. From a Ruined Garden: The Memorial Books of Polish Jewry. NY, Schocken Books, 1983.
KUZNETS, S. “Immigration of Russian Jews to the United States: Background and Structure”, in Perspectives in

REVISTA USP, São Paulo, n.47, p. 74-90, setembro/novembro 2000 89


American History, vol. IX, Harvard University, 1975.
LANGNESS e FRANK. Lives: an Anthropological Approach to Biography. Novato, Chandler & Sharp Publishers, 1981.
LERNER, Katia. “Fragmentos do Passado: Histórias de Vida de Mulheres Imigrantes Judias”. Dissertação de Mestrado.
Rio de Janeiro – Escola de Comunicação, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1996.
LESSER, Jeffrey. O Brasil e a Questão Judaica: Imigração, Diplomacia e Preconceito. Rio de Janeiro, Imago, 1995.
MARKOWITZ, Ruth J. My Daughter, the Teacher: Jewish Teachers in the New York City Schools. New Brunswick,
Rutgers University Press, 1993.
MARTINS, J. de S. Florestan: Sociologia e Consciência Social no Brasil. São Paulo, Edusp, 1998.
MOKOTOFF, G. e SACK, S. A. Where Once We Walked: A Guide to the Jewish Communities destroyed in the
Holocaust. Teaneck, Avotaynu, 1991.
MORAWSKA, Ewa. Insecure Prosperity: Small-Town Jews in Industrial America, 1890-1940. Princeton, Princeton
University Press, 1996.
________. “The Sociology and Historiography of Immigration”, in v. Yans-McLaughlin (org.), Immigration
Reconsidered. New York, Oxford University Press, 1990.
MOORE, D. D. At Home in America: Second Generation Nova York Jews. New York, Columbia University, 1981.
ORGANIZAÇÕES dos Oriundos de Opole em Israel e através do Mundo. Izker Buch Opole Lubelski. Israel, David
Shtockfish, 1977.
POLLACK, Michael. “Memória e Identidade Social”, in Estudos Históricos. Rio de Janeiro, vol. 5, no 10, 1992.
________. “Memória, Esquecimento, Silêncio”, in Estudos Históricos, vol. 2, no 3, 1989.
________. “La Gestion de L’Indicible” in Actes de la Recherche en Sciences Sociales, no 62/63, juin. 1986.
PORTES, Alejandro (org.). The New Second Generation. New York, Russel Sage Foundation, 1996.
RATTNER, H. Tradição e Mudança, a Comunidade Judaica em São Paulo. São Paulo, Federação Israelita do Estado de
São Paulo e Instituto de Relações Humanas do Comitê Judaico Americano, 1970.
________. “Economic and Social Mobility of Jews in Brazil”, in J. L. Elkin e G. W. Merkx, The Jewish Presence in
Latin America. Boston, Allen & Unwin, 1987.
RISCHIN, M. The Promised City: Nova York’s Jews, 1870-1914. Cambridge, Harvard University Press, 1977.
ROSTEN, L. Treasury of Jewish Quotations. New York: McGraw-Hill, 1972.
SAKURAI, Célia. Romanceiro da Imigração Japonesa. São Paulo, Sumaré, 1993.
SOYER, D. Jewish Immigrant Associations and American Identity in Nova York, 1880-1939. Cambridge, Harvard,
1997.
THE ENCYCLOPEDIA JUDAICA. Jerusalem, Keter Publishingg House Ltd., 1971.
WEBER, M. Economia y Sociedad. 2a ed., México, Fondo de Cultura Economica, 1964, v. I, cap. IV.
YANS-MCLAUGHLIN, V. “Metaphors of Self in History: Subjectivity, Oral Narrative and Immigration Studies”, in idem
(org.), Immigration Reconsidered. New York, Oxford University Press, 1990.
YERUSHALMI, Y. H. Zakhor: Jewish History and Jewish Memory. Seattle, University of Washington Press, 1996.

90 REVISTA USP, São Paulo, n.47, p. 74-90, setembro/novembro 2000

Você também pode gostar