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TRIBUTO AO PROFESSOR NILO BATISTA

O IMPRESSIONISTA DO SISTEMA PENAL *


R ENÉ A RIEL D OTTI **

Nilo Batista é o impressionista do sistema penal brasileiro. A ele


devemos, todos nós – de variados estilos das academias jurídicas, das
oficinas profissionais e das salas forenses – a luminosidade e as cores com as
quais são reproduzidos, em imagens vibrantes, os fatos e os seres humanos.
A essência e a circunstância dos objetos adquirem tonalidades próprias de
um observador que não se limita a reproduzir estereótipos.
Uma exposição aberta em 15 de abril de 1874, num antigo estúdio
fotográfico do Boulevard des Capucines, em Paris, iria revelar 30 artistas que
se reuniram em grupo sem a intervenção do Estado e sem a tutela de um
júri. Assim nasceu o impressionismo, uma corrente vanguardista e
revolucionária. As paisagens, cenas urbanas e temas da vida cotidiana eram
exibidos em tons luminosos e ambientes coloridos. Alguns desses quadros
tinham sido pintados diretamente no local de seu tema, na natureza.
“Tratava-se de um protesto contra o ‘pó’ de uma arte de atelier que ia
buscar os seus temas, exclusivamente, na história e na mitologia e que era,
muitas vezes, dominada por cores sombrias e terrosas, numa iluminação
artificial e constrangida. A pintura impressionista ficou como a época mais
fascinante e a mais querida do público. Prova disso é a impressionante série
de exposições dos últimos anos com Degas, Gauguin, Van Gogh, Manet,

* O presente texto foi originalmente publicado na Revista Chronos, nº 4, ano 2008, edição da
UNIRIO, de reduzida distribuição dirigida, justificando-se, assim, esta republicação.
** Advogado. Professor Titular de Direito Penal da Universidade Federal do Paraná. Membro de

Comissões de Reforma do Sistema Criminal Brasileiro, instituídas pelo Ministério da Justiça


(1979-2000). Corredator dos anteprojetos que se converteram na Lei nº 7.209/84 (nova Parte Geral
do Código Penal) e Lei nº 7.210/84 (Lei de Execução Penal). Detentor da Medalha Mérito
Legislativo da Câmara dos Deputados (2007).

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Monet ou Renoir e as verbas alcançadas na venda de quadros


impressionistas”1.
Nos anos que antecederam a Renascença, muitos pintores começaram
a reproduzir cenários não como eles eram conhecidos mas de um ponto de
vista particular, de maneira que um homem de perfil era mostrado com
apenas um olho e um homem em primeiro plano aparecia maior do que o
castelo ao fundo. Em suma, o público foi treinado para aceitar o uso da
perspectiva, uma convenção que veio a ser tão natural que os europeus
ficaram surpresos ao descobrir que para a população alheia à sua tradição a
pintura de uma mesa em perspectiva simplesmente parecia um desenho de
uma mesa torta. Segundo MARK POWELL-JONES, a grande conquista dos
impressionistas foi comparar a revolução que ocorreu na Renascença,
quanto à representação da forma, com a revolução na representação da cor.
Pela primeira vez na história da arte eles realizaram prolongados e
harmônicos esforços para pintar objetos não com a cor que nós sabemos que
eles têm, mas com a cor que nós os vemos2.
Nos mais diversificados textos doutrinários NILO BATISTA revela uma
compulsão vangoghiana para mostrar a realidade como ela é sem o disfarce
das teorias sibilinas e a máscara dos conceitos epidérmicos. O genial
Vincent, em carta ao irmão Theo, disse: “Há leis de proporção, de luz, de
sombra e de perspectiva, que é preciso conhecer para desenhar um motivo;
se essa ciência nos falta, arriscamos travar eternamente uma luta estéril e
não conseguimos nunca criar”.
Neste breve ensaio é impossível reproduzir o imenso número de
exemplos pelos quais o penalista mostra a visão impressionista. Seguem
alguns deles. Ao aludir à questão das Escolas Penais, ele denuncia o
“raquitismo proveniente dos esquemas”. Em certas passagens de sua crítica
lembra a vitalidade de MONET, o pintor da luz3, quando chegou à grande
descoberta: “Com o passar do tempo, abri meus olhos e, então, compreendi
verdadeiramente a natureza e aprendi a amá-la”. E investe com pinceladas
de luz e cor: “Na paixão enciclopedista pelas classificações, por este
curiosamente universalizado instrumento epistemológico de autolimitação
do saber, temos não só o (mau) hábito dos juristas de tentar conhecer pela

1
WALTER, Ingo F. A pintura impressionista, tradução do original alemão por Alice Milheiros e
outros, Singapura: Taschen, 2006, p. 7.
2
Impressionism. Phaidon Press Limited, London/New York/Singapore, 2002, p. 5.
3
O seu quadro Impressão, sol nascente (1872), foi o símbolo do movimento iniciado dois anos após.

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classificação, mas principalmente sua satisfação mental com sistemas


dogmáticos classificatórios, capazes de destrinçarem-se conceitualmente em
nível molecular, mas inapetentes para se perguntarem pelos papéis que
estão concretamente cumprindo no mundo histórico” (“No quarto de
despejo do penalismo ilustrado”, em Novas tendências do Direito Penal, p. 74).
A linha impressionista dos Discursos Sediciosos ficou bem clara no editorial
de seu primeiro número nas palavras do Diretor Nilo Batista: “(...) pretende
interessar na conjuntura criminológica nacional muitos e diferentes
olhares;” e interrogar “este complexo universo de problemas que o exercício
do poder penal apresenta, objeto de tantas dissimulações ideológicas, de
tantas manipulações cotidianas (...)”. A “Nota Prévia” lançada na Introdução
Crítica ao Direito Penal Brasileiro bem revela o marasmo da doutrina e “o
tratamento repetitivo e linear que os sedimentos básicos do estudo do
direito penal merecem da maior parte de nossos livros”. Com a tese que
obteve a titularidade de Direito Penal da UERJ, Matrizes ibéricas do sistema
penal brasileiro (I), o homenageado preenche um vazio que os escritores
geralmente omitem, passando da época de Justiniano, no Império Romano,
diretamente à Colônia brasileira. A pesquisa histórica lhe permitiu também
o conhecimento e a percepção de sistemas penais contra os servos, judeus,
hereges, índios, escravos e negros. Lembra, nessa investigação, a ansiedade
de PAUL CÉZANNE: “Quero conhecer para melhor sentir; e sentir para
melhor conhecer”.
As frases e as expressões contundentes acerca do homem, da vida e
do mundo que envolvem os textos de Nilo Batista são modeladas com
firmeza pela espátula que vai deixando na tela as impressões fortes de sua
verdade: “A dogmática é o mais prestigiado e eficaz método em uso na
ciência do direito, porém não a guardiã solitária das chaves epistemológicas
do reino” (Introdução, p.117); “A dogmática não é, por certo, uma leitura
pontilhada da lei” (Idem, p. 118); “camisa de força” (criticando a ortodoxia
no trato do problema das drogas); “o jurista tirou por um momento os olhos
da lei penal e se permitiu também olhar para o sistema penal, ou seja, um
conjunto coordenado de agências políticas – legislativas, judiciárias,
policiais, penitenciárias e, last but not least, de comunicação social” (“Os
sistemas penais brasileiros”, em Novas tendências, p. 103); “uma estúpida
quizila de constituintes denominou hediondos, um encarceramento
neutralizante” (Idem, ibidem, p. 114).
Enquanto o pintor mistura na paleta as tintas para obter as cores mais
impressivas, o penalista compõe na mente as ideias mais lúcidas.

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No conjunto de sua obra doutrinária, Nilo Batista demonstra clareza e


vigor contra o tecnicismo jurídico que “tende à compreensão e justificação
do direito penal vigente”4, para sustentar, com as imagens e as cores mais
aliciantes, que “a construção dos conceitos dogmáticos deve incorporar os
dados da realidade (ZAFFARONI) e a constatação de seus efeitos sociais
concretos” (Introdução, p. 121/122).
A transformação da pintura no final do Século XIX enquadrou-se
numa subversão dos valores acadêmicos. A concepção clássica estabelecia
uma divisão em gêneros superiores (história, religião, mitologia, alegoria) e
inferiores (cenas cotidianas, retratos, paisagens e naturezas-mortas). Pouco a
pouco o tema perdeu a sua antiga importância e tendeu a ser converter num
mero pretexto, pelo que os temas chamados inferiores superaram, em
quantidade e qualidade, os superiores. Além disso, a pintura tradicional
concedia um valor supremo à composição e ao desenho, relegando a cor e a
pincelada como elementos ínfimos e auxiliares que podiam ser exibidos nos
esboços ou estudos do natural, mas não no quadro acabado5.
A grande viragem da arte pictórica foi revelar que as pessoas, os
animais, os cenários e as coisas transportadas à tela pelos impressionistas
não eram simples reprodução visual como se faz com a fotografia. O
naturalismo da forma cedia diante do poder dos traços, das manchas e da
cor, os grandes protagonistas desse novo tempo de liberdade individual e
da força dos sentimentos.

FRAGOSO, HELENO. Lições de Direito Penal – Parte Geral, Rio de Janeiro: Forense, 1985, p. 13.
4

ÁNGELA M. PARAÍSO, O impressionismo, tradução do original espanhol (El Impressionismo), por


5

Marisa Costa, Lisboa: Editorial LIBSA, 2001, p. 18 e s.

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LOS ESTRAGOS DE LA LUCHA CONTRA LA
“CRIMINALIDAD ORGANIZADA” EN EL
SISTEMA PENAL: EL CASO COLOMBIANO *
J UAN O BERTO S OTOMAYOR A COSTA **

Resumo: A diferencia del debate europeo, en Colombia no se


puede partir del Estado de Derecho (y por ende del derecho
penal) y la democracia como datos consolidados, pues estos
más que una realidad son proyectos en construcción. Es posible
que en los países centrales el modelo penal de excepción o
emergencia que se propone en la lucha contra la criminalidad
organizada no suponga un riesgo mayor para el Estado de
Derecho, cuya existencia y funcionamiento suele mantenerse al
margen de este tipo de discusiones y por lo general constituye
su marco. En la compleja realidad colombiana no sucede de la
misma manera por cuanto es el Estado de Derecho mismo el
que está por construir, y por ello con demasiada frecuencia las
propuestas de excepción a los derechos y garantías
fundamentales esconden pretensiones de institucionalización
autoritaria.

Palavras-Chave: Política criminal. Combate ao crime organizado.


Direito Penal colombiano.

1 – I NTRODUCCIÓN
Hace algunos años, al estudiar los orígenes de la criminología en
América Latina, ROSA DEL OLMO resaltaba la relación dialéctica existente
entre los cambios en el sistema social general y las transformaciones del

*
Este trabajo fue realizado durante la estancia de investigación del autor en el Área de Derecho
penal de la Universidad de Málaga, financiada por el Ministerio de Educación y Ciencia de
España (Programa de Estancias de Profesores e Investigadores Extranjeros en régimen de año
sabático en España).
** Universidad EAFIT (Medellín, Colombia).

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aparato de control social, con la consiguiente reformulación de los hechos


que deben ser objeto de control, así como de la forma en que éste debe
implementarse1. En este sentido, argumentaba que las preocupaciones
iniciales de la criminología se centraron en las “clases peligrosas” internas,
producto de la primera revolución industrial, las cuales fueron ampliándose
de manera paulatina a medida que el problema de la seguridad se extendía
también a consideraciones de orden externo, ante el surgimiento de la
violencia y el terrorismo, coincidiendo todo ello con los desarrollos iniciales
del capitalismo transnacional: “El nuevo orden mundial exige que la
ideología punitiva adquiera una dimensión distinta. Tiene que ser
transnacional y ocuparse simultáneamente de los problemas internos en las
sociedades del capitalismo avanzado, así como de los problemas que
pueden surgir en la periferia como amenazas a ese capitalismo”2.
Dos aspectos se quieren destacar de lo anterior: en primer lugar, esta
circunstancia explica en alguna medida la importación de modelos
normativos que ha caracterizado los sistemas jurídicos latinoamericanos,
especialmente visible en el campo jurídico penal3, sin bien hoy dicha
imitación no siempre es atribuible a la dependencia cultural y ni siquiera a
la transnacionalización de las instituciones de control social que durante los
primeros desarrollos de la criminología tuvo lugar por cuenta de los
congresos, encuentros y demás actividades de las asociaciones de
criminólogos y juristas4. En la actualidad, es innegable que un número cada
vez más creciente de decisiones no solo económicas sino también políticas
(y por supuesto también político-criminales) se producen en los países
centrales, desde donde se orientan o se imponen a los países periféricos, en
consonancia con la concentración de poder político general y económico de

1 DEL OLMO, R., América Latina y su criminología, México, Siglo XXI, 19842, p. 109.
2 DEL OLMO, R., América Latina y su criminología, p. 117; en general, pp. 108-121. Esto también es
resaltado por ZAFFARONI, E. R., Criminología (aproximación desde un margen), Bogotá, Temis, 1988.
3 Al respecto, con carácter general, GARZÓN VALDÉS, E., “Las funciones del derecho en América

Latina”, en Derecho, ética y política, Madrid, Centro de Estudios Constitucionales, 1993; y LÓPEZ
MEDINA, D. E., Teoría impura del derecho. La transformación de la cultura jurídica latinoamericana,
Bogotá, Legis, 2004, pp. 1 a 69. En el ámbito penal, HURTADO POZO, J., La ley importada, Lima,
Cedys, 1979; para el caso colombiano, VELÁSQUEZ, F., “El derecho penal colombiano y la ley
importada”, en NFP, 1988 (38); SOTOMAYOR ACOSTA, J. O., “Garantismo y derecho penal”, en JD,
1999 (35), pp. 92 y 93; y ARIAS HOLGUÍN, D. P. y SOTOMAYOR ACOSTA, J. O., “Consideraciones
críticas sobre la recepción en Colombia de la ‘teoría de los delitos de infracción del deber’”, en
DPCRI, 2006 (15), pp. 193 y ss.
4 Ver DEL OLMO, R., América Latina y su criminología, pp. 81 y ss.

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los primeros5. Situación que está dando lugar al fenómeno de la


internacionalización del derecho penal, que se refleja entre otros aspectos en
la creciente tendencia a la unificación legislativa6, que no sólo se manifiesta
en los países pertenecientes a un mismo bloque económico y político (como
es el caso de los países pertenecientes a la Unión Europea), sino que se
extiende a toda su área de influencia.
En segundo término, resulta bastante obvio concluir que la aplicación
de dichos modelos a realidades tan diversas de aquellas donde han surgido,
lleva a consecuencias no necesariamente coincidentes con las que se
producen en los sitios de origen, pues dicha unificación legislativa tiene
lugar a partir de realidades muy diferentes y unas relaciones de poder
claramente desiguales entre los países7.
Uno de los temas que mejor refleja en la actualidad esta situación, en
el caso colombiano, es el de la lucha contra la llamada criminalidad
organizada.

5 Cfr. SANTOS, B. DE S., La globalización del Derecho. Los nuevos caminos de la regulación y la
emancipación, Bogotá, Universidad Nacional-ILSA, 1998, pp. 37-67 y 80-85; CAPELLA HERNÁNDEZ,
J. R., “Estado y derecho ante la mundialización: aspectos y problemáticas generales”, en CAPELLA
HERNÁNDEZ, J. R. (Coordinador), Transformaciones del derecho en la mundialización, Madrid, Consejo
General del Poder Judicial, 1999, pp. 85-121, en particular, 119-121; TERRADILLOS, J., “El derecho
penal de la globalización: luces y sombras”, en CAPELLA HERNÁNDEZ, J. R. (Coordinador),
Transformaciones del derecho…, p. 204.
6 En general, cfr. MERCADO, P., “El proceso de globalización, el Estado y el Derecho”, en PORTILLA
CONTRERAS, G., Mutaciones del Leviatán. Legitimación de los nuevos modelos penales, Madrid,
Universidad Internacional de Andalucía – Akal, 2005, pp. 133-138. Sobre los aspectos
estrictamente penales, TERRADILLOS, J., “El derecho penal de la globalización…, pp. 185-217;
DONINI, M., “Escenarios del Derecho penal en Europa a principios del siglo XXI”, en MIR PUIG, S.
y CORCOY BIDASOLO, M. (Directores) – GÓMEZ MARTÍN, V. (Coordinador), La política criminal en
Europa, Atelier, Barcelona, 2004, pp. 43 y 44; SILVA SÁNCHEZ, J. M., La expansión del derecho penal.
Aspectos de la política criminal en las sociedades postindustriales, 2ª edición, Madrid, Civitas, 2001, pp.
81 y ss.; y ARIAS HOLGUÍN, D. P., A propósito de la discusión sobre el derecho penal “moderno” y la
sociedad del riesgo, Cuaderno de Investigación, nº 42, Medellín, Universidad EAFIT, 2006, pp. 22-
28.
7 Cfr. TERRADILLOS, J., “El derecho penal en la globalización…”, p. 185 a 216, en especial, pp. 203-
210; y ARIAS HOLGUÍN, D. P., A propósito de la discusión…, p. 27. Sobre ello han llamado la atención
algunos estudios latinoamericanos: GARZÓN VALDÉS, E., “Las funciones del derecho en América
Latina”, p. 204; en igual sentido, BUSTOS RAMÍREZ, J., “Estructura jurídica y Estado en América
Latina”, en RUSCHE, G. y KIRCHHEIMER, O., Pena y estructura social, Bogotá, Temis, 1984, pp. L a
LV; GARCÍA MÉNDEZ, E., Autoritarismo y control social (Argentina-Uruguay-Chile), Buenos Aires,
Hammurabi, 1987, pp. 231 a 243; SOTOMAYOR ACOSTA, J. O., “Garantismo y derecho penal”, pp. 92
y 93. Recientemente se ha ocupado de analizar este fenómeno con profundidad, LÓPEZ MEDINA,
D. E., Teoría impura del derecho..., pp. 1 a 69.

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2 – L A L UCHA C ONTRA L A C RIMINALIDAD O RGANIZADA : E L


M ODELO D IFERENCIADO Y S US R IESGOS
La “lucha contra la criminalidad organizada” se ha convertido en
objetivo prioritario de los sistemas penales de los países desarrollados8, que
por medio de muy diversos mecanismos la han ido extendiendo a los países
de su área de influencia. Luego, con demasiada frecuencia se escuchan
voces desde lugares muy diversos, y especialmente del mundo de la política
y los medios masivos de comunicación social, que alertan sobre los peligros
del “crimen organizado” y la necesidad de una respuesta penal “adecuada”
a la gravedad del fenómeno.
De esta manera la noción de “crimen organizado” ha llegado al
discurso criminológico y jurídico penal convertida en una especie de
fantasma, esto es, algo contra lo cual se precisa luchar aunque no se tenga
del todo claro lo que es. Parece que el hecho de tratarse de un término
surgido principalmente de la retórica de los políticos y del sensacionalismo
de los medios de comunicación ha tornado su trasvase a categoría jurídica
en una tarea compleja y no siempre lograda, dada su vaguedad y falta de
rigor científico: “A pesar de sus numerosas definiciones que se ofrecen, la
criminalidad organizada no deja de ser sino una imagen, una expresión
aplicada a diversas realidades que se producen en diferentes momentos y
lugares”9.

8 Al respecto, MEDINA ARIZA, J. J., “Una introducción al estudio criminológico del crimen
organizado”, en FERRÉ OLIVÉ, J. C. y ANARTE BORRALLO, E. (Eds.), Delincuencia organizada. Aspectos
penales, procesales y criminológicos, Huelva, Universidad de Huelva, 1999, pp. 109-134; SÁNCHEZ
GARCÍA DE PAZ, I., La criminalidad organizada. Aspectos penales, procesales, administrativos y policiales,
Madrid, Dykinson, 2005, pp. 42 y ss.; y GARRIDO, V., STANGELAND, P. y REDONDO, S., Principios de
criminología, Valencia, Tirant lo blanch, 2006, pp. 751-776.
9 WEIGEND, T., “Los sistemas penales frente al reto del crimen organizado”, en RIDP, 1997 (68),
p.548. Sobre ello coincide de forma casi unánime la doctrina. Entre otros, BLAKESLEY, L., “El
sistema penal frente al reto del crimen organizado”, en RIDP, 1997 (69), p. 107: “A pesar de los
intentos por definirlo, el crimen organizado es un fenómeno escurridizo, complejo y con múltiples
facetas. Es una idea popular, aunque no jurídica, que la definición puede ser utilizada de una
manera tan genérica que la haga inútil”. Según ZAFFARONI, E. R., El crimen organizado. Una
categoría frustrada, Bogotá, Leyer, 1996, p. 40: “… se trata de una categoría frustrada, o sea de una
tentativa de categorización que acaba en una noción difusa”. En igual dirección, ANARTE
BORRALLO, E., “Conjeturas sobre la criminalidad organizada”, en FERRÉ OLIVÉ, J. C. y ANARTE
BORRALLO, E. (Eds.), Delincuencia organizada…, pp. 20-25; DE LA CUESTA ARZAMENDI, J. L., “El
derecho penal ante la criminalidad organizada: nuevos retos y límites”, en GUTIÉRREZ-ALVIZ
CONRADO, F. y VALCÁRCE LÓPEZ, M. (Directores), La cooperación internacional frente a la criminalidad
organizada, Sevilla, Universidad de Sevilla, 2001, pp. 87-94; FIANDACA, G., “Criminalità
organizzata e controllo penale”, en BASSIOUNI, M. C., LATAGLIATA, A., R. y STILE, A. M., (a cura
di), Studi in onore di Giuliano Vassalli. Evoluzione e riforma del diritto e della procedura penale (1945-

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En efecto, de “criminalidad organizada” se habla para referirse a un


sinnúmero de delitos de muy diversas características y en algunos casos con
muy poca relación entre sí, tales como el tráfico de drogas, tráfico y
explotación laboral y sexual de seres humanos, tráfico ilegal de armas,
falsificaciones, robo y tráfico ilegal de vehículos, delincuencia económica
(blanqueo de dinero, estafa, fraude fiscal y de subvenciones, contrabando),
corrupción, criminalidad informática, daños medioambientales, robo y
tráfico de obras de arte, etc., e inclusive se ha pretendido también incluir
fenómenos como el terrorismo y hasta el secuestro de personas10.
Pese a las dificultades, la noción se ha visto revalorizada a
consecuencia de la importancia adquirida por la llamada criminalidad
transnacional11 que se ha desarrollado a la par de los procesos de
globalización económica y progreso tecnológico de los últimos años, que ha
propiciado la aparición de nuevas modalidades de realización de los delitos
tradicionales, como también, al parecer, de nuevos intereses que proteger
frente a nuevas modalidades de ataque12. Revalorización a la que también
ha contribuido, en buen grado, la proliferación de tratados y convenios
internacionales, entre los que cabe destacar la Convención de las Naciones
Unidas contra la delincuencia organizada transnacional, del 15 de
noviembre de 2000, así como algunas medidas adoptadas en el seno de la
Unión Europea13. Se trata de una normatividad que sin duda ha legitimado

1990), Volumen II, Milano, Giuffrè, 1991, pp. 33-35; PAVARINI, M., “Lo sguardo artificiale sul
crimine organizzato”, en GIOSTRA, G. e INSOLERA, G. (a cura di), Lotta alla criminalità organizzata:
gli strumenti normativi, Milano, Giuffrè, 1995, p. 79; INSOLERA, G., “Nociones de criminalidad
organizada: concurso de personas y delitos asociativos”, en VIRGOLINI – SLOKAR (Coordinadores),
Nada personal… Ensayos sobre crimen organizado y sistema de justicia, Buenos Aires, Desalma, 2001,
pp. 95-105; ORSI, O. G., Sistema penal y crimen organizado. Estrategias de aprehensión y criminalización
del conflicto, Buenos Aires, Del Puerto, 2007, pp. 3 y ss.
10 Véase SÁNCHEZ GARCÍA DE PAZ, I., La criminalidad organizada…, pp. 46 y ss; y GARRIDO, V.,

STANGELAND, P. y REDONDO, S., Principios de criminología, pp. 751-776. Muy crítico, ZAFFARONI, E.
R., “En torno al concepto de ‘crimen organizado’”, en VIRGOLINI – SLOKAR (Coordinadores), Nada
personal…, p. 10, quien señala, con razón, que “no hay un concepto que abarque todo eso…
Fenómenos tan heterogéneos deben ser combatidos con medidas particularizadas, adecuadas a
las características de cada uno; de lo contrario, todos los intentos nacen destinados al fracaso…
Nada se gana con pretender tratar del mismo modo el secuestro y la sobrefacturación”.
11 ALBRECHT, H. J., Criminalidad transnacional, comercio de narcóticos y lavado de dinero, Bogotá,

Universidad Externado de Colombia, 2001, pp. 11 y ss.; y CERVINI, R., “Los filtros sistémicos del
crimen organizado en materia económica y financiera”, en YACOBUCCI, G. (Coordinador), El
crimen organizado. Desafíos y perspectivas en el marco de la globalización, Buenos Aires, Abaco de
Rodolfo Depalma, 2005, p. 403.
12 Cfr. SILVA SÁNCHEZ, J. M., La expansión del derecho penal…, p. 86.
13 Cfr. SÁNCHEZ GARCÍA DE PAZ, I., La criminalidad organizada…, pp. 83-98.

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el uso de la expresión, pese a que al momento de la delimitación del


fenómeno se recurre a nociones que siguen adoleciendo de las mismas
falencias de indeterminación y heterogeneidad que desde antes se
denunciaba.
Con razón se ha dicho que la expresión criminalidad organizada no es
descriptiva sino valorativa, pues se trata ante todo de una idea “elaborada
con criterios de naturaleza comunicativa y simbólica que sirven para
brindar los fundamentos de una política de ‘lucha’ con caracteres de
excepcionalidad o emergencia”14. Excepcionalidad a la que se acude ahora
en razón de una presunción de peligrosidad de ciertos comportamientos15 y
de las dificultades, especialmente probatorias, que conlleva la prevención y
represión de los mismos, sobre todo en relación con la criminalidad
transnacional, por la disociación que se produce entre el resultado y la
acción de los más importantes agentes dentro de la organización criminal16.
De ahí que la lucha contra el crimen organizado esté derivando en un
modelo diferenciado de derecho penal: por un lado, el sistema clásico de
derecho penal y por otro, el excepcional de lucha contra la criminalidad
organizada, caracterizado fundamentalmente por la restricción de algunos
principios y garantías, así como por la flexibilización de algunas de las
reglas de imputación de la responsabilidad penal, todo en aras de facilitar la
prevención y represión de los delitos17.

14 YACOBUCCI, G., “Política criminal y delincuencia organizada”, en YACOBUCCI, G. (Coordinador),


El crimen organizado…, p. 69. En igual sentido, ZAFFARONI, E. R., “En torno al concepto de ‘crimen
organizado’”, pp. 9-15; PAVARINI, M., “Lo sguardo artificiale…”, p. 77; INSOLERA, G., “Nociones
de criminalidad organizada…”, p. 102; ORSI, O. G., Sistema penal y crimen organizado…, p. 198.
15 Tal como pone de presente PAVARINI, M., “Lucha contra la criminalidad organizada y

‘negociación’ de la pena”, en VIRGOLINI – SLOKAR (Coordinadores), Nada personal…, p. 22.


16 En tal sentido, SILVA SÁNCHEZ, J. M., La expansión del derecho penal…, p. 87.
17 Ver ZAFFARONI, E. R., “Globalización y crimen organizado”, Conferencia de clausura de la

Primera Conferencia Mundial de Derecho Penal, organizada por la Asociación Internacional de


Derecho Pneal (AIDP), Guadalajara (Mexico), 22 de noviembre de 2007, p. 9, disponible en
www.cienciaspenales.net; MOCCIA, S., La perenne emergenza. Tendenze autoritarie nel sistema penale,
2ª ed., Napoli, Edizioni Scientifiche Italiane, 1997, pp. 53-97; INSOLERA, G., “Nociones de
criminalidad organizada…”, p. 102. En igual sentido, ZAFFARONI, E. R., El crimen organizado…, p.
4; DONINI, M., Il volto attuale dell’illecito penale. La democrazia penale tra differenziazione e sussidiarietà,
Milano, Giuffrè, 2004, pp. 53-59; YACOBUCCI, G., “Política criminal y delincuencia organizada”, p.
69; CHOCLÁN MONTALVO, J. A. “Criminalidad organizada. Concepto. La asociación ilícita.
Problemas de autoría y participación”, en GRANADOS PÉREZ, C. (Director), La criminalidad
organizada. Aspectos sustantivos, procesales y orgánicos, Madrid, Consejo General del Poder Judicial,
2001, p. 219; GÓMEZ DE LIAÑO FONSECA-HERRERO, M., Criminalidad organizada y medios
extraordinarios de investigación, Madrid, Colex, 2004, p 45; SILVA SÁNCHEZ, J. M., La expansión del

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Ello es lo que está conduciendo a la ampliación o agravación de tipos


tradicionales como el de asociación para delinquir, la punición de actos
preparatorios, la no diferenciación entre actos de tentativa y de
consumación, entre autoría y participación, así como a plantear la
responsabilidad penal de las personas jurídicas, los beneficios por
colaboración con la justicia y la extensión de la aplicación extraterritorial de
la ley nacional18. Así mismo, desde el punto de vista procesal, a la
prolongación de la detención preventiva y la incomunicación de los
procesados, la admisión de nuevos medios de investigación proactivos y
encubiertos, testigos ocultos, inversión de la carga de la prueba, órganos
judiciales especializados, etc19. En el campo penitenciario, la excepción se
manifiesta, principalmente, por la exclusión de algunos beneficios
penitenciarios20.
No obstante, un importante sector de la doctrina penal ha destacado
que la adopción de este modelo diferenciado no está exenta de riesgos, entre
los que cabe destacar algunos de especial relevancia:
a. La contaminación del sistema: los riesgos de generalización del modelo
penal de excepción a todo el sistema penal. Dado que la estrategia de las
recompensas, los beneficios por colaboración, etc., han funcionado en
algunos casos, un sistema penal que privilegia los criterios de utilidad
difícilmente puede resistir la tentación de extender dicho modelo a todo el
sistema penal. En palabras de Pavarini, no se puede ocultar que en la lógica
maquiavélica del “fin que justifica los medios” la estrategia podría ser útil:
tanto “que la tentación de exportarla a otros sectores de la justicia penal
parece difícilmente refrenable. Entreveo, en otras palabras, el grave peligro

derecho penal…, pp. 159 y ss.; DÍEZ RIPOLLÉS, J. L., La política criminal en la encrucijada, Montevideo-
Buenos Aires, BdeF, 2007, pp. 147-200.
18 Véase, entre otros, a ZAFFARONI, E. R., “Globalización y crimen organizado”, pp. 9-11; SÁNCHEZ

GARCÍA DE PAZ, I., La criminalidad organizada…, pp. 103-215; DE LA CUESTA ARZAMENDI, J. L., “El
derecho penal ante la criminalidad organizada…”, pp. 97-124; CHOCLÁN MONTALVO, J. A.,
“Criminalidad organizada…”, pp. 219-223; ZÚÑIGA RODRÍGUEZ, L., “Criminalidad de empresa,
criminalidad organizada y modelos de imputación penal”, en FERRÉ OLIVÉ, J. C. y ANARTE
BORRALLO, E. (Eds.), Delincuencia organizada…, pp. 199-235.
19 Al respecto, SÁNCHEZ GARCÍA DE PAZ, I., La criminalidad organizada…, pp. 217-286; GÓMEZ DE

LIAÑO FONSECA-HERRERO, M., Criminalidad organizada…, pp. 71 y ss.


20 Véase, PAVARINI, M., “Lucha contra la criminalidad organizada…”, pp. 17-36. Para el caso

español, FARALDO CABANA, P., “Medidas premiales durante la ejecución de condenas por
terrorismo y delincuencia organizada: consolidación de un subsistema penitenciario de
excepción”, en CANCIO MELIÁ – GÓMEZ-JARA DÍEZ (Coordinadores), Derecho penal de enemigo. El
discurso penal de la exclusión, vol. 1, Madrid-Buenos Aires-Montevideo, Edisofer-BdeF, 2006, pp.
757-798.

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de que de la ‘pena negociada’ – como instrumento excepcional en la lucha


contra la criminalidad organizada únicamente – pronto se pueda pasar a un
‘derecho penal negociante’ siempre y en todas las circunstancias”21.
b. Subordinación del derecho penal a los intereses procesales. Como explica
DONINI, “En ningún otro ámbito como el de la lucha, los instrumentos
jurídicos parecen destinados a ceder su lugar a reglas instrumentales. El
instrumento prevalece sobre las normas de justicia. En este papel, es típico
el uso instrumental del proceso a fines de lucha en lugar de investigación.
Al proceso penal le incumbe en mucha mayor medida que al Derecho penal
sustancial la tarea de gestionar la lucha contra posibles enemigos. Es a
través de las investigaciones que aquella lucha se desarrolla en sus formas
más evidentes: perquesizioni, secuestros, interceptaciones, confiscación
preventiva de bienes, medidas de prevención, medidas cautelares
personales, aceleración de los tiempos procesales, atenuación de las
garantías probatorias, mecanismos de presión-compensación frente a
formas de colaboración, utilización procesal de instituciones materiales (por
ejemplo los delitos de asociación ilícita), etiquetamientos personales con
consecuencias ejecutivas, penitenciarias, etc., en relación al tipo de
procedimientos y de delitos (en realidad son etiquetas de autor): todos éstos
son instrumentos de lucha que integran respecto de los bienes agredidos
por el proceso (trabajo, familia, honor, patrimonio, salud física y psíquica,
libertad de desplazamiento, libertad personal, secretos, ámbitos reservados,
etc.) formas de lesión o de puesta en peligro justificadas”22.
Por consiguiente, es posible que la proliferación de las figuras de la
recompensa y los beneficios por colaboración terminen convirtiendo los
intereses procesales en el objetivo principal de la intervención penal, a los
cuales quedaría subordinado el derecho sustancial, en lo que podría
constituir una clara transformación del tradicional papel de ambos, por
cuanto el derecho penal sustantivo, a través de la amenaza penal, se

21 PAVARINI, M., “Lucha contra la criminalidad organizada…”, p. 24. En igual sentido se manifiesta
WEIGEND, T., “Los sistemas penales frente al reto del crimen organizado”, p. 548: “Deberíamos
además ser conscientes del hecho de que las nuevas y más eficaces armas que podamos
desarrollar, podrán y serán usadas a largo plazo no sólo contra los capos de la droga y las
personas que difunden material pornográfico infantil, sino también – y probablemente con mayor
frecuencia – en la vida penal cotidiana”. Ampliamente, MOCCIA, S., La perenne emergenza…, pássim.
22 DONINI, M., “El derecho penal frente al ‘enemigo’”, en CANCIO MELIÁ – GÓMEZ-JARA DÍEZ

(Coordinadores), Derecho penal del enemigo…, pp. 651-652. Sobre el tema véase también, del mismo
autor, “Non puniblità e idea negoziale”, en DONINI, M., Alla ricerca de un disegno. Scritti sulle
riforme penali in Italia, Padova, CEDAM, 2003, pp. 370-375.

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convierte en el medio más fácil de lograr la colaboración o confesión del


procesado23 y en última instancia su condena. En igual medida, “en el
tratamiento de los riesgos del mundo moderno con la ayuda del derecho
penal, el éxito o finalidad del procedimiento resulta absolutamente
prioritario, mientras que el procedimiento en sí mismo y su evaluación
desde una óptica distinta del criterio funcional, incluyendo la dimensión del
Estado de derecho, pasa ahora en segundo plano”24.
c. Transformación de los fines de la pena. Lo anterior supone a su vez una
transformación de los fines tradicionales de la pena, pues “la entidad
adicional de sufrimiento (la detención en una cárcel de máxima seguridad,
con prescindencia de cualquier evaluación de peligrosidad judicialmente
establecida) por la no colaboración, abre a tal punto el abanico de la
diferenciación que transforma el sistema carcelario en un instrumento de
presión al cual difícilmente se puede resistir durante mucho tiempo. El
sistema carcelario se convierte, por consiguiente, en un instrumento
inquisitorio para favorecer la colaboración, no diferente en esencia de los
premodernos”25.
d. Posibilidades de instrumentalización política. También la experiencia
italiana destaca el hecho de que un sistema como éste no esté exento de los
riesgos de manipulación con fines estrictamente políticos, dado que este
tipo de colaboración procesal se presta a ser instrumentalizada con objetivos
extrajudiciales, que nada tienen que ver con la verificación de la verdad26.

3 – L A L UCHA C ONTRA L A C RIMINALIDAD O RGANIZADA EN


C OLOMBIA : E L C ONTEXTO 27
Si la realidad de cada país condiciona los contenidos y orienta la
aplicación de las normas jurídicas en general, ello es especialmente evidente

23 Cfr. MOCCIA, S., La perenne emergenza…, pp. 143-199, en especial pp. 190-193; MUSCO, E., “Los
colaboradores de la justicia entre el ‘pentitismo’ y la calumnia: problemas y perspectivas”, en RP,
1998 (2), p. 44; PAVARINI, M., “Lucha contra la criminalidad organizada…”, pp. 25-36; DONINI, M.,
“Non puniblità e idea negoziale”, pp. 370-375.
24 ALBRECHT, H. J., Criminalidad transnacional…, p. 43. Igual, ORSI, O. G., Sistema penal y crimen

organizado…, pp. 224-226.


25 PAVARINI, M., “Lucha contra la criminalidad organizada…”, pp. 17-36; y FARALDO CABANA, P.,

“Medidas premiales durante la ejecución de condenas…”, pp. 757-798.


26 MUSCO, E., “Los colaboradores de la justicia…”, p. 39.
27 En adelante se sigue, en lo fundamental, el análisis realizado en SOTOMAYOR ACOSTA, J. O., “Las

recientes reformas penales en Colombia: un ejemplo de irracionalidad legislativa”, en DÍEZ


RIPOLLÉS, J. L. – GARCÍA PÉREZ, O. (Coordinadores), La política legislativa penal iberoamericana,
Madrid-Montevideo-Buenos Aires, Edisofer-BdeF, 2008 (en prensa).

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cuando se trata de conceptos tan vagos e instrumentalizables como el de


criminalidad organizada. No debe sorprender, por tanto, que el inciso 2 del
art. 340 del CP colombiano agrave la figura del “concierto para delinquir”
con penas que pueden llegar hasta los dieciocho años de prisión, cuando
“sea para cometer delitos de genocidio, desaparición forzada de personas,
tortura, desplazamiento forzado, homicidio, terrorismo, tráfico de drogas
tóxicas, estupefacientes o sustancias sicotrópicas, secuestro, secuestro
extorsivo, extorsión, enriquecimiento ilícito, lavado de activos o testaferrato
y conexos, o financiamiento del terrorismo y administración de recursos
relacionados con actividades terroristas”. Como tampoco que el delito de
lavado de activos (art. 323 CP) se configure cuando se trata de bienes
vinculados a la realización de ciertos delitos, entre los cuales cabe destacar,
junto a los usuales tráfico de drogas, de migrantes o de armas y otros más,
delitos como la rebelión, la extorsión, el secuestro y por supuesto el
terrorismo, ilícitos cuya inclusión en esta modalidad delictiva se explica
fundamentalmente por las particularidades de la realidad colombiana.
Como puede apreciarse, mientras en Europa la lucha contra la
criminalidad organizada parece concentrase de forma prioritaria en el
control del tráfico de drogas, el tráfico de personas, el blanqueo de capitales
y en general en la criminalidad económica transnacional28, en países como
Colombia el énfasis se extiende a formas delictivas más tradicionales, tales
como el secuestro, la extorsión, la rebelión, el terrorismo y demás
manifestaciones de la conflictividad interna.
Ello, por supuesto, no debe sorprender, pues Colombia vive un
conflicto armado de muchísimos años, que si bien no ha impedido la
existencia y cierto grado de funcionamiento de las instituciones
democráticas y del Estado de Derecho, sí ha creado un contexto de extrema
complejidad para el derecho y muy particularmente para el derecho penal,
por cuanto no siempre resulta fácil diferenciarlo de la guerra. Unas veces se
le utiliza como instrumento de guerra, pero también en otras se le reivindica
como herramienta de paz, la cual, en estas circunstancias, deviene más un
objetivo a alcanzar por el derecho que un presupuesto de su

28 Cfr. BOTTKE, W., “Mercado, criminalidad organizada y blanqueo de dinero en Alemania”, en RP,
1998 (2), pp. 1 y ss; ALBRECHT, H. J., Criminalidad transnacional…, pp. 11 y ss.; ZÚÑIGA RODRÍGUEZ,
L., “Criminalidad de empresa, criminalidad organizada…”, pp. 199 y ss.; SÁNCHEZ GARCÍA DE
PAZ, I., La criminalidad organizada…, pp. 46-57; FOFFANI, L., “Criminalidad organizada y
criminalidad económica”, en RP, 2001 (7), pp. 55 y ss.

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funcionamiento29. Producto de ello es la permanente sensación de “crisis”


del sistema penal, que parece moverse más a los vaivenes propios del
conflicto que de los objetivos constitucionales.
Esta conflictividad se ve agravada por la existencia de una
criminalidad especialmente violenta relacionada con el tráfico de drogas y
por el hecho de que en los últimos años algunos grupos insurgentes
recurren a este medio para financiar sus actividades; cosa que también ha
ocurrido con los grupos paramilitares de extrema derecha, cuando no es
que simples traficantes de drogas terminan conformando grupos
paramilitares, quizás con la pretensión de lograr un estatus político que les
permita establecer diálogos y negociaciones y obtener luego un tratamiento
privilegiado, como se evidenció con la llamada “ley de justicia y paz”.
Los resultados saltan a la vista: aunque se ha presentado un descenso
en los últimos años, durante 2006 la policía nacional registró un total de
17.479 muertes intencionales, cifra equivalente a una tasa de 38 muertes por
cada cien mil habitantes, que aunque lejos de la tasa de 62 alcanzada en
2002 sigue siendo escandalosa, sobre todo si se tiene en cuenta que entre los
años 2000 a 2006 los registros oficiales dieron cuenta de 162.497 muertes
violentas.
Igual valoración cabe realizar respecto de las cifras referidas al
secuestro y la desaparición forzada de personas, pues pese a que también se
ha registrado un importante descenso en los últimos años, siguen siendo
datos alarmantes. En el período 2002-2006 se supo de 7.630 secuestros según
cifras oficiales, y entre 2000-2004 la asociación de familiares de personas
desaparecidas (ASFADDES) contabiliza 5.075 casos.
La dramática realidad de la violencia en Colombia queda igualmente
retratada en las cifras de desplazamiento forzado interno. Según ACNUR,
“El problema de los desplazados internos en Colombia es una de las
situaciones más graves del mundo. El Gobierno de Colombia estima que
hay entre 2,5 y 3 millones de Desplazados Internos en el país, siendo
1.796.508 los registrados en el Sistema Único de Registro (SUR), hasta el 30
de abril de 2006. Según datos de la Consultoría para los Derechos Humanos
y el Desplazamiento (CODHES) 3.662.842 personas han sido desplazadas

29 Véase el completo análisis realizado por APONTE, A., Guerra y derecho penal de enemigo.
Reflexión crítica sobre el eficientismo penal de enemigo, Bogotá, Ibáñez, 2006.

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por la violencia hasta el 25 de octubre de 2005 y día a día esta cifra aumenta
producto de la violencia política asociada al conflicto armado interno”30.
Como puede apreciarse y así lo señalan algunos analistas, estas cifras
corresponden a las de un país en guerra31, cualquiera sea el nombre que se le
quiera dar. Y aunque es cierto que en estricto sentido gran parte de la
violencia actual no puede atribuirse directamente al conflicto armado,
también lo es que en la situación colombiana actual resulta muy difícil
trazar una frontera entre la violencia política y aquella que no lo es, por lo
que se puede estimar, con PECAUT32, que la violencia puesta en obra por los
protagonistas organizados constituye por lo menos el marco de la violencia
generalizada existente.
Esta problemática se torna aún más grave cuando se tiene en cuenta la
calidad de la respuesta institucional y muy particularmente de la justicia
penal, caracterizada por los elevados índices de impunidad, inclusive en los
casos graves como los reseñados. Pese a las dificultades que hacen que hoy
sea casi imposible saber la verdadera magnitud de la impunidad en
Colombia33, los analistas coinciden en que esta no sólo es muy alta sino
persistente34. Para el caso del homicidio, según RUBIO, “La probabilidad de
que un homicidio sea condenado, del 11% en los sesentas apenas sobrepasa
en la actualidad el 4%”35. Como es de suponer, la situación no es más

30 Véase, http://www.acnur.org/crisis/colombia, donde se pueden consultar, además, cifras e


importantes documentos sobre el problema del desplazamiento interno en el país, entre ellos una
importante sentencia de la Corte Constitucional (T-025/2004), en la cual declara la situación de los
desplazados como un “estado de cosas inconstitucional”.
31 RUBIO, M., “Crimen con misterio. La calidad de la información sobre criminalidad y violencia en

Colombia”, Bogotá, CEDE, Universidad de los Andes, 1998 (consultado en:


http://economia.uniandes.edu.co), p. 31.
32 PECAUT, D., “Presente, pasado y futuro de la violencia”, en AP, 1997 (30), p. 1.
33 RESTREPO, E. M. y MARTÍNEZ CUÉLLAR, M., “Impunidad penal: mitos y realidades”, Documento

CEDE 2004-4, Bogotá, Universidad de los Andes, 2004 (consultado en


http://economia.uniandes.edu.co); UPRIMNY, R., “La justicia colombiana en la encrucijada”, p. 2,
en http://www.djs.org.co (consultado el 21/06/2007).
34 En general sobre el tema y desde distintos puntos de vista, entre otros, PECAUT, D., “Presente,

pasado y futuro…”, pp. 34-36; RESTREPO, E. M. y MARTÍNEZ CUÉLLAR, M., “Impunidad penal…”,
pássim; UPRIMNY R., “La justicia colombiana…”, p. 2; RUBIO, M, “Crimen sin sumario. Análisis
económico de la justicia penal colombiana”, Bogotá, CEDE, Universidad de los Andes, 1998, en
http://economia.uniandes.edu.co (consultado el 27/06/2007), pp. 11 y ss.; RODRÍGUEZ, C.,
UPRIMNY, R. y GARCÍA VILLEGAS, M., “Entre el protagonismo y la rutina: análisis sociojurídico de
la justicia en Colombia”, pp. 44-49, en http://www.djs.org.co (consultado 21/06/2007); GAITÁN
DAZA, F., “Multicausalidad, impunidad y violencia: una visión alternativa”, en REI, 2001 (5), pp.
78-105.
35 RUBIO, M., “Crimen sin sumario…”, p. 40.

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alentadora cuando se mira hacia el secuestro, la desaparición forzada y


otros hechos de similar gravedad36.
Lo anterior ha derivado en una profunda crisis del sistema de justicia
penal en Colombia, que por tal motivo se ha visto sometido a permanentes
reformas de muy diferentes signos, como lo refleja con claridad la profusa
producción legislativa de carácter penal de los últimos años.
Al no reconocerse la naturaleza del conflicto, de forma equivocada se
ha buscado una solución jurídico-penal al problema de la guerra, con todas
las consecuencias negativas que ello representa, tanto desde el punto de
vista del conflicto como de la justicia penal, pues por supuesto el primero
no se resuelve por la vía penal y la segunda se ve instrumentalizada como
arma de guerra.
Aunque los problemas son múltiples, destaca la falta de capacidad
investigativa de la justicia penal, pues un número importante de delitos no
logran siquiera superar la fase de investigación previa, inclusive tratándose
del homicidio, dado que la policía se muestra inoperante en su función
principal de prevención y control de la criminalidad, porque preparados
para la lucha contrainsurgente y la persecución de las grandes mafias del
narcotráfico, los órganos de investigación policial resultan muy poco
eficaces en la protección de los ciudadanos y en la investigación y
persecución penal37.
Tal situación está produciendo lo que con carácter general algunos
denominan proceso de trivialización del sistema judicial colombiano38, que
en el caso de la justicia penal se concreta en que ésta sólo parece funcionar

36 Cfr. RESTREPO, E. M., SÁNCHEZ TORRES, F. y MARTÍNEZ, M., “¿Impunidad o castigo? Análisis e
implicaciones de la investigación penal en secuestro, terrorismo y peculado”, Bogotá, Documento
CEDE 2004-09, Universidad de los Andes, 2004, pp. 1-39, en http://economia.uniandes.edu.co
(consultado el 27.06.2007); CCJ, “Colombia: 2002-2006: situación de derechos humanos y derecho
humanitario”, (consultado en http://www.coljuristas.org), pp. 1-13; ACNUDHC, “Informe de la
Alta Comisionada de las Naciones Unidas para los Derechos Humanos sobre la situación de los
derechos humanos en Colombia”, 2006 (consultado en http://www.hchr.org.co), pp. 5-27.
37 Al respecto, APONTE, A., Guerra y derecho penal de enemigo…pp. 486-519. Destaca la

militarización y deficiencias de la policía colombiana, GUERRERO PERALTA, O. J., “La policía en el


Estado de Derecho latinoamericano: el caso Colombia”, en AMBOS, K., Gómez Colomer, J. L. y
VOGLER, R. (editores), La policía en los estados de derecho latinoamericanos: un proyecto
internacional de investigación, Bogotá, Gustavo Ibáñez, 2003, pp. 195-237; también, GORDON
ATEHORTÚA, L. y KURY, H., “Victimización como hecho cotidiano. Un estudio victimológico en
Colombia”, en RDPC, 2006 (18), pp. 403-407.
38 RODRÍGUEZ, C., UPRIMNY, R. y GARCÍA VILLEGAS, M., “Entre el protagonismo y la rutina…”, pp.

48-49.

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en aquellos casos de muy pocas exigencias probatorias (tal como sucede en


los casos de flagrancia y del pequeño comercio callejero de drogas, lesiones
y homicidios en accidentes de tránsito, etc.), o de cierta clase de delitos en
los que el imputado es identificado desde un comienzo (como sucede en la
inasistencia alimentaria, violencia intrafamiliar, etc.). Por el contrario, los
casos delincuenciales en los que se desconoce al posible autor difícilmente
llegan a ser resueltos, independientemente de la gravedad del delito.
Lo más grave es que también en el plano formal el sistema se ha ido
acomodando a esta situación y poco a poco se han comenzado a introducir
mecanismos legales que intentan compensar el déficit de investigación
existente con beneficios por confesión, sentencia anticipada (o aceptación de
cargos), negociación de penas, al tiempo que crece la utilización
indiscriminada del sistema de las recompensas. De esta manera se ha ido
institucionalizando un sistema procesal penal de corte eficientista, que a su
vez está generando una negativa influencia en el derecho penal sustantivo y
a lo que mucho parecen estar contribuyendo las recientes reformas
procesales.

4 – C ONSECUENCIAS DE L A L UCHA C ONTRA LA


C RIMINALIDAD O RGANIZADA EN EL S ISTEMA P ENAL
C OLOMBIANO
Una situación tan problemática como la descrita por supuesto
repercute de manera directa en el aparato de justicia penal, por lo que no es
de extrañar que en el sistema penal colombiano se hagan realidad muchos
de los que en otros contextos se denuncian como meros riesgos del modelo
de la excepción en la lucha contra la criminalidad organizada.
A. La Legislación Penal Colombiana: de La Excepción a La Regla
En el contexto ya expuesto resultaba difícil que un Estado sumido en
una “crisis” permanente, con una justicia penal con un bajísimo nivel de
eficacia, resistiera la tentación de extender de manera paulatina el modelo
de lucha contra el crimen organizado a todo el sistema penal. Una somera
mirada a la evolución de la legislación penal resulta suficiente para
comprobar que unas normas en su momento previstas como medidas
especiales en la lucha contra los carteles de la droga pasaron, primero, de
legislación temporal del antiguo régimen de estado de sitio conforme a la
Constitución de 1886, a legislación permanente de acuerdo con la
Constitución de 1991, como fue el caso de los muy relevantes decretos 180

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de 1988 y 2790 de 199039. Así mismo, con la aprobación de la amplia reforma


penal de 2000, que incluyó la expedición de un nuevo código penal (ley 599
de 2000) y un nuevo código de procedimiento penal (ley 600 de 2000), a
iniciativa del fiscal general de la nación de aquel entonces, tuvo lugar a su
vez la conversión en legislación ordinaria, de la gran mayoría de normas
aprobadas como excepcionales, al fragor de la lucha contra el terrorismo y
el tráfico de drogas. Entre ellas las referidas a los beneficios por
colaboración con la justicia, inicialmente previstos en el art. 63 del decreto
2790 de 1990 sólo para los delitos de competencia de la denominada en
aquel entonces “justicia regional” (antes “de orden público” y hoy
“especializada”), y que el nuevo CPP convirtió en regla general aplicable a
todos los delitos y en todo momento, los cuales se agregaron a las ya
extendidas rebajas de pena por sentencia anticipada (art. 40 CPP) y
confesión (art. 283).
Esta generalización de los beneficios por colaboración se vio
confirmada y ampliada mediante la expedición de la ley 906 de 2004 que
instauró en Colombia el proceso penal acusatorio, puesto que el nuevo
estatuto no sólo consagró la rebaja de pena (hasta la mitad) por aceptación
de cargos (art. 351), sino también la posibilidad de celebrar acuerdos y
negociaciones entre la fiscalía y el imputado o acusado (art. 350); así mismo,
consagró el principio de oportunidad, entre otros eventos, “Cuando el
imputado colabore eficazmente para evitar que continúe el delito o se
realicen otros, o aporte información esencial para la desarticulación de
bandas de delincuencia organizada” (art. 324-5). Llama la atención, no
obstante, que el parágrafo 3 de este mismo artículo excluye la aplicación del
principio de oportunidad si se trata, entre algunos otros, de los delitos de
narcotráfico y terrorismo. La paradoja no podría ser mayor: medidas
premiales que en Colombia surgieron como excepcionales herramientas de
lucha contra la criminalidad violenta generada por el narcotráfico,
terminaron reconociéndose de forma general para todos los delitos, salvo
para aquellos que en su momento se alegaron como motivos para su
creación. Paradoja que quizás se explique por el hecho que en Colombia, en
realidad, las dificultades de investigación y esclarecimiento de los delitos no
se circunscriben a la delincuencia organizada transnacional, sino que, por
las razones atrás comentadas, se extienden prácticamente a todo tipo de
criminalidad, por lo que la generalización resultaba más que previsible en

39 Con amplitud, APONTE, A., Guerra y derecho penal de enemigo…, pp. 292 y ss.

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tales circunstancias. El hecho de que luego hayan terminado excluidos de


dichos beneficios algunos de los destinatarios originarios de los mismos,
quizás tenga que ver con la más reciente política gubernamental de
suprimir todo tratamiento que de manera directa o indirecta pudiera
beneficiar a los movimientos insurgentes. Por tanto, la utilización (y no
utilización) de la justicia “premial”, se encuentra condicionada más por la
lógica de la confrontación interna, que por el control efectivo de formas de
criminalidad transnacional.
B. Subordinación del Derecho Penal Sustantivo al Proceso: La Creciente
Autonomía del Proceso Penal Como Mecanismo de Control Social
Uno de los rasgos más característicos de la evolución reciente del
sistema penal colombiano es el de la creciente autonomía del proceso penal
como mecanismo de control social, frente al cual el derecho penal sustancial
deviene ahora un simple medio. A dicha inversión de las funciones
tradicionales del proceso mucho ha contribuido el rol asumido desde su
creación por la fiscalía general de la nación, pues, en medio de una notable
precariedad investigativa estatal, la fiscalía surge como respuesta a los
desafíos de las mafias del narcotráfico, lo cual implicó desde las reformas de
1991 una desmedida acumulación de poderes, hasta el extremo que su
actividad se convirtió en eje de la justicia penal y generadora de una
ideología que trasciende el ámbito estrictamente judicial. En efecto, de la
mano de un manejo ligero e irresponsable de los asuntos atinentes a la
criminalidad por parte de los medios de comunicación, una fiscalía que
también cumplía funciones jurisdiccionales como la de ordenar capturas,
allanamientos, detenciones, entre otras, terminó asumiendo un rol casi
policivo de “lucha contra la criminalidad”, lo cual no sólo al interior de la
institución misma sino en el imaginario social, terminó reduciendo la
justicia penal a la actuación de su ente investigador; luego, una detención
comenzó a ser vista como la satisfacción del objetivo penal y una libertad
provisional (es decir, sin levantamiento de los cargos) pasó a ser percibida
como sinónimo de fracaso e impunidad40.
Y si bien la instauración del sistema acusatorio (ley 906 de 2004)
despojó a la fiscalía de los poderes jurisdiccionales de que antes disponía
(entre ellos los de decretar allanamientos, capturas y detenciones),

40 Sobre el particular, GROSSO GARCÍA, M. S., La reforma del sistema penal colombiano, Bogotá, Gustavo
Ibáñez, 1999.

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recientemente se expidió la ley 1142 de 2007 con la única pretensión de


facilitar la detención en el sistema acusatorio, quizás como reacción a la
posición un poco más estricta (al menos en comparación con la que tenían
los propios fiscales conforme al sistema anterior) que al respecto han
asumido algunos jueces de garantías, de conformidad con las exigencias de
la jurisprudencia constitucional. Pero no se crea que se trata de un objetivo
oculto o algo por el estilo; todo lo contrario, la propuesta presentada
conjuntamente por el ministro del interior y el fiscal general de la nación
reivindica abiertamente tal ideología, hasta el extremo de calificar como
“impunidad” la no imposición de la detención preventiva:
“(…) el presente Proyecto tiene como finalidad brindar
herramientas político criminales para luchar de manera eficaz
contra las conductas punibles que afectan de manera notoria la
convivencia y seguridad ciudadana, evitando con ello que se
cercene la confianza de los ciudadanos en la administración de
justicia. Así, en aras de combatir la impunidad, se hace necesario
que las personas que cometan delitos que atentan contra la
seguridad y tranquilidad ciudadana sean recluidas en centros
carcelarios; que respondan con sus bienes por los perjuicios que
ocasionan a las víctimas y que en caso de condena cumplan la
totalidad de la pena. Por ello, también se reforman algunos
artículos de la ley 599 de 2000 (Código Penal) para aumentar las
penas de manera que pueda imponerse como medida de
aseguramiento la de detención preventiva”41.
Como es apreciable, todo esto demuestra el protagonismo casi
absoluto de la detención preventiva como objetivo concreto de la
persecución penal, que la está convirtiendo en un equivalente funcional de
las medidas de seguridad predelictuales, con un claro predominio de las
nociones de peligrosidad y defensa social42.
A su vez, este predominio de la detención preventiva está
propiciando de manera indirecta un generalizado y desmesurado
incremento del mínimo de las penas, toda vez que los dos códigos de

41 Véase la exposición de motivos de los autores de la iniciativa, el ministro del interior y el fiscal
general de la nación, en GC, 2006 (250) (consultada en: http://www.secretariasenado.gov.co).
42 Cfr. HERNÁNDEZ, T., La ideologización del delito y de la pena, Caracas, Universidad Central de

Venezuela, 1977; TERRADILLOS, J., Peligrosidad social y Estado de Derecho, Madrid, Akal, 1981; y
SOTOMAYOR ACOSTA, J. O., Inimputabilidad y sistema penal, Bogotá, Temis, 1996, pp. 119-129.

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procedimiento penal vigentes (leyes 600/2001 y 906/2004), hacen depender


la procedencia de la detención preventiva de que el delito imputado tenga
una pena mínima igual o superior a los 4 años de prisión; cosa parecida
ocurre con la detención domiciliaria, que sólo procede por delitos
sancionados con una pena mínima de 5 años. Pues bien, para obligar a la
detención preventiva (o evitar la procedencia de la detención domiciliaria)
en desarrollo de la tendencia legislativa que se comenta, el legislador penal
colombiano ha optado por el camino más fácil: ha aumentado la pena
mínima de los delitos hasta el tope exigido por la ley procesal para imponer
la medida cautelar. El resultado: un inimaginable endurecimiento punitivo
con fines exclusivamente procesales.
Las consecuencias de esta política es bastante previsible: según datos
del INPEC43 a mayo de 2007 (los cuales no reflejan todavía los efectos de la
ley 1142 de 2007) había un total de 60.139 reclusos en Colombia, de los
cuales 43.657 tienen la calidad de detenidos, es decir, el 72,59%; además, los
altos índices de hacinamiento carcelario han empezado ya a disparar las
alarmas de los organismos internacionales de defensa de los derechos
humanos y de algunas instituciones estatales44.
Claro que el amplio número de detenidos no es ninguna novedad en
los sistemas penales latinoamericanos45 y muchos menos en el colombiano46.
Lo nuevo está en que en los últimos años las normas penales sustantivas
colombianas se han ido acomodando a esta realidad, hasta el punto que hoy
en día la fijación de la pena abstracta de una figura delictiva por parte del
legislador, no se hace con base en los tradicionales criterios del

43 Dichas cifras se pueden consultar en http://www.inpec.go.co, aunque debe aclararse que el


INPEC manipula las cifras al presentar diferenciados el número de sindicados, condenados en
primera instancia y condenados en segunda instancia, cuando sólo los últimos tienen la calidad
de condenados.
44 Consultar los informes de la ACNUDHC, “Centros de reclusión en Colombia: un estado de cosas

inconstitucional y de flagrante violación de derechos humanos”, informe del 31 de octubre de


2001 (disponible en: http://www.hchr.org.co); DEFENSORÍA DEL PUEBLO, “Análisis sobre el actual
hacinamiento carcelario y penitenciario en Colombia”, Bogotá, 2003, consultado en
http://www.defensoria.org.co; y PROCURADURÍA GENERAL DE LA NACIÓN, “El sistema de
prisiones colombiano opera bajo niveles de presión crecientes; los derechos humanos de las
personas privadas de libertad en riesgo”, en http://www.procuraduria.gov.co (consultado
16/07/2007).
45 Cfr. CARRANZA, E. y otros, El preso sin condena en América Latina y el Caribe, San José, ILANUD,

1998.
46 Al respecto la sentencia T-153/1998, en la cual la Corte Constitucional declaró la situación de las

cárceles colombianas como un “estado de cosas inconstitucional”.

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merecimiento y necesidad de pena sino en atención a su repercusión sobre


los presupuestos de la detención preventiva o la libertad provisional, o
inclusive la detención domiciliaria, de conformidad con las normas
procesales vigentes.
C. Transformación de Los Fines de La Pena: La Condena Sin Proceso
Lo anterior supone, como ya se ha dicho, una clara transformación de
los tradicionales fines de la pena, pues la amenaza penal no pretende ya
disuadir o persuadir a la colectividad de que se abstenga de delinquir, y
mucho menos las penas se calculan o imponen de conformidad con las
exigencias de una pena orientada al tratamiento. Se trata sólo de que el
procesado confiese o colabore con la justicia, tal como sucedió con algunos
delitos contra la administración de justicia (entre ellos el falso testimonio),
cuyas penas mínimas se incrementaron a los 4 o 6 años con la sola finalidad
de hacer posible la detención preventiva o de excluir la libertad provisional
o la detención domiciliaria (ley 890/2004). En esta misma línea se deben
mencionar la ley 813/2003 en relación con el hurto de automotores, que con
ese fin pasó de considerarse un supuesto de hurto agravado (art. 241-6) a
convertirse en un caso de hurto calificado (o robo); la ley 1028/2006, que
incluyó el delito autónomo de hurto de hidrocarburos en el CP (antes
incluido en la temporal ley 782/2002); un aumento de penas en el mismo
sentido se hizo mediante la ley 1032/2006 para algunos delitos como la
prestación, acceso o uso ilegal de los servicios de comunicaciones (art. 257),
violación de derechos patrimoniales de autor y otros (art. 271) y usurpación
de derechos de propiedad industrial y de obtentores de variedades
vegetales (art. 306).
Lo mismo sucede con la más amplia y reciente ley 1142/2007, cuyo
solo nombre es indicativo de la ideología que inspira su contenido: “Ley de
convivencia y seguridad ciudadana”. Entre los muchos aspectos
retrógrados de esta ley hay dos especialmente destacables: la reforma de
algunos tipos y en especial el aumento considerable de la pena mínima
(entre los 4 y los 6 años), con el objetivo ya indicado, en delitos como la
inasistencia alimentaria, hurto calificado, hurto agravado, receptación,
delitos electorales, porte de armas y otros más. Por otro lado, con idéntica
finalidad se reforma el CPP en cuanto a los criterios a tener en cuenta para
imponer la detención preventiva; y aunque el Congreso finalmente no
aprobó la propuesta original de establecer un catálogo de delitos en los

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cuales “se presume el peligro para la comunidad” (art. 20 del proyecto


original), de todas maneras la reforma reduce los poderes del juez de
garantías y sobre todo exime a la fiscalía del deber de acreditar ante el juez
los presupuestos materiales que justifican su solicitud de detención
preventiva.
De todas maneras, la expedición de la ley 890 de 2004 es la que mejor
retrata la mencionada transformación de los fines de la pena en Colombia,
ya que mediante esta ley se aumentó la pena de prisión hasta un máximo de
60 años en caso de concurso de delitos y hasta los 50 para delitos en
particular (arts. 1 y 2). Pero lo verdaderamente increíble fue el aumento
generalizado de penas previsto en el art. 14, que ordenó para todos los
delitos un incremento de la pena mínima en una tercera parte y del máximo
en la mitad. Si un aumento generalizado de penas como este es en sí mismo
cuestionable en un país cuyo sistema de penas no se caracteriza
precisamente por su moderación, el asunto raya en lo demencial cuando se
conocen los motivos tenidos en cuenta para proponer y aprobar dicho
incremento: la negociación y preacuerdos de pena entre la fiscalía y el
procesado, tal como se reconoce en exposición de motivos y se recoge en la
ponencia primer debate en el senado de la república:
“La razón que sustenta tales incrementos está ligada con la
adopción de un sistema de rebaja de penas (materia regulada en el
Código de Procedimiento Penal) que surge como resultado de la
implementación de mecanismos de ‘colaboración’ con la justicia
que permitan el desarrollo eficaz de las investigaciones en contra
de grupos de delincuencia organizada y, al mismo tiempo,
aseguren la imposición de sanciones proporcionales a la naturaleza
de los delitos que se castigan”47.
Se trataba simple y llanamente de “aceitar” de manera adecuada la
máquina eficientista de producción de condenas en que desde un comienzo
se ha querido convertir el proceso acusatorio, para lo cual se requería
entonces disponer de unas penas lo suficientemente altas para constreñir al
imputado a negociar o a la aceptación de cargos. O simplemente con el

47 “Exposición de motivos”, en GC, 2003 (345) (consultada en:


http://www.secretariasenado.gov.co).

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argumento de que al finalizar las rebajas la pena siga siendo de alguna


manera proporcional al delito cometido48.
Todo indica, además, que la estrategia ha sido exitosa, como parecen
corroborarlo los primeros datos que se conocen sobre el funcionamiento del
sistema acusatorio, tanto en su fase I (Bogotá y eje cafetero) como en la fase
II (Medellín, Valle y otros), según se puede apreciar en las siguientes
gráficas49.
Gráfica 1: Porcentaje de sentencias condenatorias – Fuente:CEJOSPA

Fuente: CEJOSPA

48Véase la intervención en tal sentido del representante Navas Talero, ponente del proyecto, en la
plenaria de la Cámara de Representantes, en GC, 2004 (391), (consultada en
http://www.secretariasenado.gov.co). Pese a la irracionalidad tanto de las medidas adoptadas
como de los argumentos, la ley ha superado en términos generales las evaluaciones de la Corte
Constitucional (sentencias C-193/2005, C-194/2005, C-823/2005, entre otras). Con una agravante
adicional: la ley 890/2004, a diferencia de lo ocurrido con el sistema acusatorio (ley 906/2004)
cuya implementación ha sido gradual, entró a regir de inmediato en todo el país, con lo cual las
penas se aumentaron para todos los delitos y en todo el territorio, aun cuando los hechos fueran
juzgados conforme a la ley 600/2000, que no prevé posibilidad de negociación entre fiscalía y
defensa y que consagra para la sentencia anticipada una rebaja de pena menor a la del nuevo
CPP; situación que ha dado lugar a graves problemas de aplicación práctica, por la evidente
desigualdad punitiva entre las personas juzgadas conforme al “viejo” y el “nuevo” sistema
procesal. Cfr. CSJ, Sentencias de 14/12/2005 y 7/02/2006.
49 Tomadas de CEJ, “Observatorio ciudadano del sistema acusatorio”, p. 45 y 54, en

http://www.cej.org.co.

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Fuente: CEJOSPA

Según estos datos, el nuevo sistema penal acusatorio ha comenzado a


funcionar como una máquina de producción de condenas, con lo cual, en
razón del alto porcentaje de sentencias con aceptación de cargos (como
puede apreciarse en la gráfica 2), el sistema está cumpliendo a cabalidad
con el objetivo para el que al parecer fue creado: producir condenas sin
proceso50.
No obstante, si el objetivo de extender la justicia “premial” a todos los
delitos era mejorar los índices de eficiencia del sistema, y en especial en lo
atinente a la criminalidad más grave, se puede anticipar un nuevo fracaso,
pues como el problema de la justicia penal colombiana es estructural y no
de las formas del proceso o de configuración formal de la ley sustantiva, lo
que parece estar sucediendo es simplemente la acomodación del nuevo
sistema acusatorio a la realidad existente. No ha habido cambios en los
resultados pues al igual que el “viejo sistema” en la práctica el sistema
acusatorio sólo está funcionando para los casos de flagrancia o con
imputado conocido, es decir, para los casos más fáciles de resolver desde el

50 Así por lo demás lo expresa la gran impulsora e ideóloga de la reforma, la Corporación Excelencia
en la Justicia, en CEJ, “Observatorio ciudadano…”, p. 46: “El 80%, aproximadamente, de
sentencias con aceptación de cargos representa un gran avance en comparación con la proporción
de sentencias anticipadas en el sistema anterior que sólo alcanzaba el 29%. Este resultado indica que
el modelo se está desarrollando de la manera en que fue concebido pues se esperaba que un alto número de
procesos concluyera de esta manera” (cursivas fuera de texto).

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punto de vista investigativo, como puede apreciarse en los datos que


suministra el Consejo Superior de la Judicatura:
Tabla 4: Delitos ingresados (sistema acusatorio) Enero 2005 – Agosto
2006
Delito % CASOS
Hurto 36,90% 23.017
Lesiones Personales 12,10% 7.548
Fabricación, importación y tráfico de
armas 11,80% 7.361
Tráfico y consumo de estupefacientes 6,00% 3.743
Homicidio 4,60% 2.869
Falsedad 4,30% 2.682
Receptación 3,40% 2.121
Sexuales 2,60% 1.622
Defraudación derechos autor 1,80% 1.123
Estafa 1,39% 867
Fabricación, tráfico, porte e prendas
uso FFMM 1,32% 823
Daño bien ajeno 1,23% 767
Inasistencia alimentaria 1,10% 686
Extorsión 0,80% 499
Violencia intrafamiliar 0,75% 468
Secuestro 0,70% 437
Concierto para delinquir 0,69% 430
Violencia contra servidor público 0,54% 337
Otras 7,98% 4.978

Total 100,00% 62.378

Fuente: Consejo Superior de la Judicatura.

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En otras palabras, el sistema se muestra especialmente eficiente con la


criminalidad de bagatela51, frente a la cual la verdad es que todos los
sistemas penales suelen funcionar demasiado bien. Por el contrario, el
problema de fondo, es decir, la debilidad investigativa generalizada y muy
particularmente frente a las manifestaciones más graves de la criminalidad
se mantiene intacta. No es de extrañar, en consecuencia, que a menos de dos
años de su puesta en vigencia el sistema ya presente importantes signos de
congestión en la fase de indagación52, tal como sucedía en el sistema
anterior. Por ello es de temer que el afán eficientista por mostrar resultados
inmediatos ponga en riesgo algunos evidentes logros del sistema en materia
de garantías procesales, cuya realización efectiva presupone la existencia de
proceso, que es lo que casi no hay todavía.
A esta máquina eficientista hay que sumarle el nuevo motor que en
tal sentido puede significar el principio de oportunidad (arts. 321 a 330), que
pese a su todavía escasa aplicación53 amenaza con aumentar aún más la
selectividad del sistema penal colombiano, con el riesgo adicional que un
mecanismo como este supone en un país en el que la utilización (y no
utilización) estatal del derecho penal con fines políticos no es ninguna
novedad54.
D. Instrumentalización Política
La anterior no es la única selectividad apreciable del sistema penal
colombiano, pues se presenta otra por lo menos igual de odiosa, que refleja
muy bien el uso político que puede hacerse de algunos de los mecanismos
surgidos en la lucha contra la criminalidad organizada. Se trata de la
expedición de la conocida como “ley de justicia y paz”. Esta ley fue
producto del proceso de negociación del gobierno del presidente Uribe
Vélez con algunos grupos paramilitares y pese a que la Corte
Constitucional, mediante la sentencia C-306/2006, declaró la
inconstitucionalidad (o la constitucionalidad condicionada) de algunas de
sus disposiciones más polémicas, se teme que genere la impunidad de
graves violaciones a los derechos humanos, dado que con el procedimiento

51 Así lo corroboran los datos del CONSEJO SUPERIOR DE LA JUDICATURA, “Sistema penal acusatorio. 2
años de expedición del código de procedimiento penal”, Documento SA-0101, pp. 13-14
(disponible en www.ramajudicial.gov.co).
52 Como informa la CEJ, “Observatorio ciudadano…”, p. 52.
53 Según los datos de CEJ, “Observatorio ciudadano…”, p. 40, entre enero de 2005 y junio de 2006, se

ha dado aplicación al principio de oportunidad en 904 ocasiones.


54 Llama la atención sobre este aspecto, CALLE CALDERÓN, A. L., “Acerca de la reforma procesal

penal. Una primera aproximación”, en NFP, 2005 (67), pp. 162-165.

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previsto será prácticamente imposible llevar a cabo una investigación que


vaya más allá de los hechos que las personas involucradas hayan querido
confesar. En efecto, ya se comentó que la debilidad investigativa del Estado
colombiano constituye uno de los mayores problemas de su aparato de
justicia penal, por el gran número de delitos graves que no alcanza a
superar la fase de investigación previa; pues si eso es así en el campo de la
justicia ordinaria, no se puede esperar que en un lapso de tiempo mucho
más breve y sin recursos técnicos ni humanos se puedan esclarecer
dolorosos episodios que no han podido investigarse durante años55, la
mayoría de las veces ocurridos en regiones muy apartadas de las ciudades
donde se realizan los “juicios”.
Que de un trámite casi administrativo como el previsto en la ley
puedan derivarse amnistías e indultos para quienes no tengan procesos
judiciales abiertos o condenas, o para quienes sólo puedan ser acusados de
delitos políticos (rebelión, sedición y asonada), concierto para delinquir,
utilización ilegal de uniformes e insignias, instigación a delinquir, o
fabricación, tráfico y porte de armas y municiones (art. 69), parece más
propio del tipo de leyes de “perdón y olvido”. Pero además, el hecho de que
algunos de los más graves crímenes cometidos por los grupos paramilitares
puedan terminar con una pena máxima de 7 años de prisión no deja de
entrañar una gravísima desigualdad y desproporcionalidad, cuando al
tiempo que el gobierno impulsaba la aprobación de esta ley, presentaba al
Congreso las ya mencionadas leyes de incrementos punitivos56, entre ellas la
ley 890/2004 que aumentó los mínimos y máximos de las penas para todos
los delitos y después la ley 1142/2007, que entre otras disposiciones
aumenta la pena del hurto calificado por la violencia contra las personas, de
8 a 16 años de prisión (art. 37). Que un ladronzuelo que realiza un hurto
callejero con intimidación pueda recibir más del doble de pena que los
autores de algunos de los hechos más dolorosos de la reciente historia
nacional (homicidios colectivos, la mayoría de ellos en condiciones de

55 En este sentido, GONZÁLEZ ZAPATA, J., “Verdad, justicia, paz y reparación en la mitología penal. A
propósito de la ley 975 de 2005”, en EP, 2005 (27), p. 50; así también lo han manifestado, HRW,
“Colombia: librando a los paramilitares de sus responsabilidades”, enero de 2005 (disponible en
http://www.hrw.org); Amnistía Internacional, “Colombia: la Ley de Justicia y Paz garantizará la
impunidad para los autores de abusos contra los derechos humanos”, abril 26 de 2005 (disponible
en http://www.amnesty.org); ACNUDHC, “Consideraciones sobre la ley de ‘Justicia y Paz’”,
junio 27 de 2005; CCJ, “Sin paz y sin justicia”, Boletín nº 6, junio 29 de 2005; CIDH, “La CIDH se
pronuncia frente a la aprobación de la ley de justicia y paz en Colombia”, julio 15 de 2005 (los tres
últimos documentos están disponibles en http://www.coljuristas.org).
56 Este hecho también lo resalta GONZÁLEZ ZAPATA, J., “Verdad, justicia, paz…”, p. 58.

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indefensión de la víctima, desmembración de cuerpos, desapariciones de


personas y un largo etcétera) es algo tan desproporcionado que
jurídicamente resulta muy difícil de justificar.
Si el logro de la paz legitima o no este tipo de leyes es un interrogante
realmente complejo, que no puede tener una respuesta sin matices. El
problema de la ley 975/2005 es que ella ni siquiera supone el logro de la
paz, pues “se trata de una ley que se expide no al final sino en medio de la
guerra”57, a lo cual habría que agregar el hecho de no implicar ni siquiera el
desmonte real y efectivo de las estructuras paramilitares, dado que permite
la desmovilización individual, sin que ella signifique ningún compromiso
respecto de las organizaciones armadas respectivas58.
Todo parece indicar que esta ley constituye más bien un nuevo uso de
la legislación penal como mecanismo de guerra, porque cabe recordar que
ello se puede dar por la utilización por parte del Estado tanto de
mecanismos positivos como negativos; vale decir, tanto cuando se usa la ley
para golpear directamente al adversario, como también cuando a través de
la ley se crean mecanismos que aseguran inmunidad frente al sistema penal
institucional, bien de los propios agentes estatales o de sus aliados, a través
de instrumentos tales como la justicia penal militar, la obediencia debida o
leyes especiales como la 975/2005.

5 – A M ANERA DE C ONCLUSIÓN : L OS D ESAFÍOS DEL


D ERECHO EN C OLOMBIA
El caso colombiano parece pues una buena prueba de la
inconveniencia de asumir “cruzadas” de lucha contra la delincuencia con
carácter general, como si pudiera hablarse del mismo fenómeno en todas
partes. Como parece que resulta claro de la situación colombiana, aunque
las normas e instrumentos de lucha contra la denominada criminalidad
organizada sean las mismas, eso no significa la protección de intereses
comunes a los diferentes países. Bien se sabe que la mundialización
económica no ha sido un proceso al cual acceden todos los países en
condiciones de igualdad, y que más bien su consecuencia más notoria está

57 GONZÁLEZ ZAPATA, J., “Verdad, justicia, paz…”, p. 45.


58 Como lo manifestaron en su momento, entre otros, la ACNUDHC, junio 27 de 2005, p. 2 y la CCJ,
“Sin paz y sin justicia”, p. 2. De hecho ya se informa del surgimiento de “nuevos” grupos
paramilitares, en http://www.elespectador.com, “El vuelo de las águilas negras”, 27 de enero de
2007; http://www.eltiempo.com, “Grupos criminales ligados a narcotráfico y paramilitarismo
tienen copada media Colombia de nuevo”, julio 16 de 2007.

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constituida por la concentración de poder en torno a tres polos (Europa,


Estados Unidos y Japón)59. Luego, como bien explica TERRADILLOS, “un
proceso de criminalización que es ejercicio de poder, desigualmente
distribuido en los diversos mercados, no puede responder a pautas únicas,
ni puede aceptarse como ‘natural’, sino como fruto de una decisión artificial
en que se manifiesta la desigual distribución del poder de definición”60.
En países como Colombia lo anterior se torna especialmente complejo,
por cuanto se trata de un país que, como ha dicho APONTE, vive de manera
simultánea en varios siglos de historia: por un lado, le toca enfrentar los
dilemas del presente y enfrentar los retos que plantea el desarrollo
tecnológico y la globalización económica. Pero, al mismo tiempo, le
corresponde resolver los problemas propios de construcción del Estado, por
lo tanto más cercanos a los vividos en Europa durante los siglos XVI y
XVII61. El desafío está en que le toca abordar la construcción del Estado en
un contexto muy distinto al que permitió la construcción de los Estados
nacionales en la Europa de los siglos XVI y siguientes: “La cultura de los
derechos humanos, tanto a nivel nacional como internacional, así como las
demandas de los movimientos sociales y democráticos, impiden –
afortunadamente – que la construcción del Estado nacional en Colombia se
haga desconociendo los principios del Estado de derecho, bloqueando la
participación democrática u olvidando la justicia social. Colombia debe
alcanzar un orden público interno en un marco ideológico, normativo y
social que hace que las fórmulas absolutistas sean hoy insostenibles,
ilegítimas, e incluso contraproducentes en términos puramente
pacificadores”62.
Por lo anterior, no son trasladables de manera automática ni las
normas ni modelos de intervención surgidos en realidades tan diferentes
como la de los países desarrollados. Entre otras razones por cuanto a
diferencia del debate europeo, en Colombia no se puede partir del Estado
de Derecho (y por ende del derecho penal) y la democracia como datos
consolidados, pues estos más que una realidad son proyectos en

59 Cfr. SANTOS, B. DE S., La globalización del Derecho…, p. 40.


60 TERRADILLOS, J., “El derecho penal de la globalización…”, p. 204.
61 APONTE, A. D., “Derecho penal de enemigo vs. derecho penal del ciudadano. El derecho penal de

emergencia en Colombia: entre la paz y la guerra”, en DE GIORGI, R. (a curi di), Il Diritto e la


differenza. Scritti in onore di Alessandro Baratta, 2003, p. 257; y PÉREZ TORO, W. F., “Guerra y delito
en Colombia”, en EP, 2000 (16), p. 14.
62 RODRÍGUEZ, C., UPRIMNY, R. y GARCÍA VILLEGAS, M., “Entre el protagonismo y la rutina…”, p. 50;

en términos semejantes, APONTE, A., Guerra y derecho penal de enemigo…, pp. 640-649.

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construcción. Es posible que en los países centrales el modelo penal de


excepción o emergencia que se propone en la lucha contra la criminalidad
organizada no suponga un riesgo mayor para el Estado de Derecho, cuya
existencia y funcionamiento suele mantenerse al margen de este tipo de
discusiones y por lo general constituye su marco63. En la compleja realidad
colombiana no sucede de la misma manera por cuanto es el Estado de
Derecho mismo el que está por construir, y por ello con demasiada
frecuencia las propuestas de excepción a los derechos y garantías
fundamentales esconden pretensiones de institucionalización autoritaria.
He aquí, pues, la paradoja del derecho y muy particularmente del
Derecho penal en Colombia: es un arma de guerra – y en tal sentido es un
derecho ilegítimo – que, como todas, se utiliza para aniquilar o en todo caso
vencer al adversario; pero, también, al mismo tiempo, es una herramienta
necesaria en la construcción de un proyecto de ciudadanía, en cuanto
mecanismo de protección de los derechos del individuo. Y precisamente
esta ambivalencia es la que lo convierte en una herramienta demasiado
peligrosa, por los riesgos ciertos y latentes de manipulación política, pues
en un contexto de guerra o confrontación interna se tiende a presentar como
derecho legítimo a su mera utilización como instrumento bélico.

ABREVIATURAS
ACNUR – Alto Comisionado de las Naciones Unidas para los
Refugiados.
CNUDHC – Alta Comisionada de las Naciones Unidas para los
Derechos Humanos en Colombia
AP – Análisis Político
ASFADDES – Asociación de Familiares de Detenidos Desaparecidos
CCJ – Comisión Colombiana de Juristas
CEJ – Corporación Excelencia en la Justicia

63 No obstante el deterioro de la cultura de las garantías y del Estado de Derecho apreciable en el


último tiempo y que ya ha empezado a aparecer en el propio discurso penal, como ya alertan
algunos: ARNOLD, J., “La superación del pasado de la RDA ante las barreras del derecho penal del
Estado de Derecho”, en INSTITUTO DE CIENCIAS CRIMINALES DE FRANKFURT (ed.), La insostenible
situación del Derecho penal, edición española a cargo del Área de Derecho penal de la Universidad
Pompeu Fabra, Granada, Comares, 2000, pp. 310-312; ZAFFARONI, E. R., “Globalización y crimen
organizado”, cit., pp. 11-15; SOTOMAYOR ACOSTA, J. O., “¿El derecho penal garantista en
retirada?”, en RP, 2008 (21), pp. 148-154.

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CEJOSPA – Corporación Excelencia en la Justicia Observatorio del


Sistema Penal Acusatorio
CIDH – Comisión Interamericana de Derechos Humanos
CP – Código penal
CPP – Código de procedimiento penal
CSJ – Corte Suprema de Justicia
DPCRI – Derecho Penal Contemporáneo. Revista Internacional
EP – Estudios Políticos
GC – Gaceta del Congreso
HRW – Human Rights Watch
INPEC – Instituto Nacional Penitenciario y Carcelario
JD – Jueces para la Democracia
NFP – Nuevo Foro Penal
RC – Revista Criminalidad
RDPC – Revista de Derecho Penal y Criminología (Madrid)
REI – Revista de Economía Institucional
RIDP – Revue Internationale de Droit Pénal
RP – Revista Penal

145
BULLYING, CRIMINOLOGIA E A
CONTRIBUIÇÃO DE ALBERT BANDURA *
L ÉLIO B RAGA C ALHAU **

Resumo: O fenômeno bullying é estudado pela Criminologia


como um fator concorrente para o incremento da criminalidade.
A teoria do psicólogo ALBERT BANDURA preconiza que os seres
humanos aprendem comportamentos violentos pela simples
observação. Cabe ao profissional do Direito estar aberto para
uma abordagem interdisciplinar do fenômeno bullying, para
que resultados mais efetivos possam ser alcançados com a
inibição desse padrão destrutivo de comportamento.

Palavras-chave: Criminologia. Bullying. Violência. Gangues.


Criminalidade.

Sumário: 1 – Notas introdutórias; 2 – A caracterização do


bullying; 3 – Criminologia: uma visão interdisciplinar; 4 –
Bullying: raízes da violência e a contribuição de ALBERT
BANDURA; 5 – Reprodução do bullying na vida cotidiana; 6 –
bullying e gangues: algumas semelhanças; 7 – Considerações
finais; 8 – Referências bibliográficas.

1 – N OTAS I NTRODUTÓRIAS
É notório que o Brasil passa um grave problema de aumento da
criminalidade. Esse fato fica bem demonstrado quando analisamos as
estatísticas criminais e a situação do sistema penitenciário brasileiro.

* Palestra proferida no I Fórum Paraibano de Combate ao Bullying e incentivo à cultura de paz. João
Pessoa (PB), dia 28.03.2008. Este evento foi organizado pelo MP-PB.
** Promotor de Justiça (criminal) do Ministério Público do Estado de Minas Gerais. Pós-Graduado

em Direito Penal pela Universidade de Salamanca (Espanha). Mestre em Direito do Estado e


Cidadania pela Universidade Gama Filho (RJ). Professor de Direito Penal da Universidade Vale
do Rio Doce (UNIVALE). 2º Diretor Secretário do ICP – Instituto de Ciências Penais de Minas
Gerais. Autor do livro “Resumo de Criminologia”, 3ª ed., Impetus, RJ, 2008.

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Embora a população carcerária tenha crescido muito e de forma rápida nos


últimos quinze anos, não houve uma redução significativa nos índices de
criminalidade.
A criminalidade aumentou nas grandes cidades e, agora, avança
rumo às cidades médias. A população está assustada. Muitos afirmam que
estão presos dentro de suas próprias casas. O Sistema da Justiça (Poder
Judiciário, Ministério Público, Polícias e Administração Penitenciária) é
acusado de não funcionar corretamente e não garantir a proteção desejada
pela sociedade civil.
O Direito Penal é acusado de ser desigual: grave para os mais
humildes e demasiadamente benevolente para os infratores das classes
média e alta. A Criminologia busca, com seu conhecimento sistematizado,
reverter essa situação. Cabe à Criminologia coletar, organizar e interpretar a
ocorrência dos crimes, possibilitando uma estruturação e compreensão
adequada da criminalidade. Essa tarefa não é realizada pelo Direito Penal;
ele apenas age após a ocorrência dos crimes. A Criminologia busca
antecipar a ocorrência dos crimes e intervir para que os mesmo não
ocorram.
A Criminologia busca, então, prevenir os crimes. Para tanto é
necessário que o criminólogo pesquise e estude os fatores que originam a
criminalidade. Já está superado há muito o pensamento que defendia a
ocorrência de crimes por força de apenas um elemento (biológico,
sociológico ou psicológico, etc.). Hoje, trabalhamos com fatores
concorrentes. Não há uma motivação única, mas fatores que concorrem
para a ocorrência de crimes.
O bullying, neste contexto, é uma situação que, não sendo controlada,
propicia a ocorrência de situações-problema e a sua posterior reprodução
no meio social, de forma que a tolerância e o respeito sejam abandonados
em detrimento de uma linha de relação pessoal interpessoal onde seja
aplicada a exploração do mais fraco pelo mais forte. A sensibilização da
Criminologia, na sua missão de prevenir a ocorrência de crimes, é trazer a
lume essa prejudicial relação dinâmica entre protagonistas, expectadores e
vítimas no bullying1.

1 Outro fator que diferencia a Criminologia do Direito Penal é a sua preocupação inata com as
vítimas criminais, tratadas com muita pouca importância no sistema da Justiça Criminal
ordinária. É o objeto de estudo da Criminologia moderna: o delito, delinquente, controle social e a

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2 – C RIMINOLOGIA : U MA V ISÃO I NTERDISCIPLINAR


O Direito Penal trabalha com o método dedutivo. Ele dá a norma e
estuda a sua interpretação e aplicação. Partimos do geral para o específico.
A Criminologia faz a operação inversa, ela trabalha com o método indutivo,
parte do estudo dos casos e induz para a regra geral.
Outra grande contribuição da Criminologia para o estudo do bullying
(e do resto dos crimes) é a utilização da abordagem interdisciplinar (dizem
alguns autores também do método transdisciplinar).
A interdisciplinaridade, como metodologia de aquisição de
conhecimentos, como processo de transmissão de conhecimentos e como
suporte de ações tem motivações e dinâmicas com uma autonomia relativa2.
O profissional do direito (juiz, promotor, delegado, advogado,
defensor público etc.), regra geral, sente dificuldades em manejar o
conhecimento de outras áreas. É comum o profissional do Direito encarar o
Direito como o topo do modelo arquitetônico do saber, uma espécie de
conhecimento superior, em detrimento às demais áreas do saber. Isso é
refletido na postura de alguns desses profissionais. SALO DE CARVALHO
chama esse processo de hierarquização do saber.
SALO DE CARVALHO registra que o modelo oficial das ciências
criminais vislumbra os demais saberes como servis, permitindo apenas que
forneçam subsídios para a disciplina mestra do Direito Penal. A arrogância
do direito penal, aliada à subserviência das áreas do conhecimento que são
submetidas e se submetem a este modelo, obtém como resultados o reforço
do dogmatismo, o isolamento científico e o natural distanciamento dos reais
problemas da vida3. A Criminologia não admite essa visão monofocal, ela
busca integrar todas as formas possíveis de conhecimento, para a melhor
compreensão do fenômeno criminal.
A Criminologia é a ciência que estuda o fenômeno criminal e, em
resumo, busca o seu diagnóstico, prevenção e seu controle. Para tanto, ela
utiliza uma abordagem interdisciplinar e se vale de conhecimento específico
de outros setores como sociologia, psicologia, biologia, psiquiatria, etc., para

vítima. O estudo da vítima (Vitimologia) cresceu tanto na Criminologia que alguns doutrinadores
defendem a sua independência.
2 PIMENTA, Carlos. Apontamentos sobre a complexidade e epistemologia nas ciências sociais. In: CANCELLI,

Elizabeth; GAUER, Ruth M. Chittó. Sobre a interdisciplinaridade. Caxias do Sul, Educs, 2005, p. 12-13.
3 CARVALHO, Salo de. Antimanual de Criminologia. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2008, p. 22.

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lançar um novo foco, com a busca de uma visão integrada sobre o fenômeno
criminal.
A Criminologia busca mais que a multidisciplinaridade. Essa ocorre
quando os saberes parciais trabalham lado a lado em distintas visões sobre
um determinado problema. Já a interdisciplinaridade existe quando os
saberes parciais se integram e cooperam entre si.
Toda vez que a Criminologia tentou identificar um fator isolado como
causador da criminalidade ela cometeu um grande erro. Hoje, o que
sabemos é que a criminalidade possui inúmeras motivações e fatores (uns
internos e outros externos) concorrentes e que de uma forma ou outra
facilitam o surgimento dos crimes.

3 – A C ARACTERIZAÇÃO DO BULLYING
Existem alguns critérios básicos, que foram estabelecidos pelo
pesquisador DAN OLWEUS, da Universidade de Bergen, Noruega (1978 a
1993), para identificar as condutas de bullying e diferenciá-las de outras
formas de violência e das brincadeiras próprias da idade. Os critérios
estabelecidos são: ações repetitivas contra a mesma vítima num período
prolongado de tempo; desequilíbrio de poder, o que dificulta a defesa da
vítima; ausência de motivos que justifiquem os ataques. Acrescentamos
ainda que devem levar em consideração os sentimentos negativos
mobilizados e as sequelas emocionais, vivenciados pelas vítimas de
bullying4.
Para CLEO FANTE, o bullying é uma palavra de origem inglesa adotada
em muitos países para definir o desejo consciente e deliberado de maltratar
uma outra pessoa e colocá-la sob tensão; termo que conceitua os
comportamentos agressivos e antissociais, utilizado pela literatura
psicológica anglo-saxônica nos estudos sobre a violência escolar5. Não se
tratam aqui de pequenas brincadeiras próprias da infância, mas de casos de
violência, em muitos casos de forma velada praticadas por agressores
contra vítimas. Elas podem ocorrer dentro de salas de aulas, corredores,
pátios de escolas ou até nos arredores. Elas são, na maioria das vezes,
realizadas de forma repetitiva e com desequilíbrio de poder. Essas agressões

4 FANTE, Cleo; PEDRA, José Augusto. Bullying escolar: perguntas e respostas. Porto Alegre, Artmed,
2008, p. 39.
5 FANTE, Cleo. Fenômeno bullying: como prevenir a violência nas escolas e educar para a paz. Campinas,
Verus, 2005, p. 27.

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morais ou até físicas podem causar danos psicológicos para a criança e o


adolescente facilitando posteriormente a entrada dos mesmos no mundo do
crime.
Para a Associação Brasileira Multiprofissional de Proteção à Infância e
à Adolescência (ABRAPIA), por não existir uma palavra na língua
portuguesa capaz de expressar todas as situações de bullying, as ações que
podem estar presentes no bullying são: colocar apelidos, ofender, zoar,
gozar, encarnar, sacanear, humilhar, fazer sofrer, discriminar, excluir, isolar,
ignorar, intimidar, perseguir, assediar, aterrorizar, amedrontar, tiranizar,
dominar, agredir, bater, chutar, empurra, ferir, roubar e quebrar pertences6.

4 – BULLYING : R AÍZES DA V IOLÊNCIA E A C ONTRIBUIÇÃO DE


A LBERT B ANDURA
A questão da infância e da juventude é ponto nuclear para
compreendermos alguns dos (inúmeros) fatores que podem influenciar
efetivamente a prática dos delitos. O que ocorre em nossa infância vai
refletir em nossa vida adulta. A Criminologia tem buscado junto à
Psicologia entender como esses fatores influenciam o ser humano em
desenvolvimento, propiciando situações que o predisponham ao
envolvimento futuro com crimes, em especial, os praticados com violência
ou grave ameaça.
Mas o que o fenômeno bullying pode ter com relação direta à violência
e a criminalidade no Brasil. Pouco estudado ainda no Brasil e quase que
totalmente desconhecido pela comunidade jurídica, o bullying começa a
ganhar espaço nos estudos desenvolvidos por pedagogos e psicólogos que
lidam com o meio escolar.
Para simplificarmos de forma objetiva a questão da reprodução da
violência no ambiente escolar, poderíamos falar de dezenas de abordagens,
o que foge do caráter sintético deste trabalho. De forma exemplificativa,
apresento o trabalho do psicólogo ALBERT BANDURA e sua teoria da
aprendizagem social no experimento conhecido como “Bobo Doll
Experiment”. O experimento de BANDURA demonstra como a observação de
comportamentos agressivos (como o bullying) influi no comportamento das
pessoas.

6 ABRAPIA – Associação Brasileira Multiprofissional de Proteção à Infância e à Adolescência.


Disponível na internet: http://www.bullying.com.br/BConceituacao21.htm#OqueE.

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BANDURA e seus colegas conduziram uma série de estudos, hoje


bastantes conhecidos sobre a aprendizagem observacional de
comportamentos agressivos em crianças. Nesses estudos, as crianças
assistiam a um filme que mostrava um adulto tendo comportamento
agressivo com um palhaço de plástico inflável – socando, batendo, dando
pontapés e marteladas no boneco João Bobo. As crianças que assistiam às
cenas de comportamento agressivo eram mais propensas a comportar-se
agressivamente quando depois lhes era permitido brincar com o boneco.
Além disso, quando as crianças viam o adulto ser recompensado pela
agressão também tendiam a comportar-se de modo agressivo, em
comparação com aquelas que estavam no grupo de controle em que o
adulto não era recompensado nem punido. Contrariamente, as crianças que
assistiam à punição do adulto eram menos propensas a comportar-se de
modo agressivo do que as do grupo de controle. Porém, ver um
comportamento agressivo ser recompensado não era necessário para
induzir o aumento da agressão. As crianças que não viam o comportamento
agressivo ser recompensado eram mais agressivas posteriormente do que as
que viam o mesmo modelo adulto ter comportamentos neutros (e também
não recompensados). A aprendizagem observacional não exigia a
observação de recompensas; apenas o ato de ver o próprio comportamento
agressivo era suficiente para ensiná-lo às crianças7.

7 FRIEDMAN, Howard S; SCHUSTACK, Miriam W. Teorias da personalidade: da teoria clássica à pesquisa


moderna. 2ª ed. Tradução de Beth Honorato. São Paulo, Pearson/Prentice Hall, 2004, p. 248-249.

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Foto 1: Experimento de ALBERT BANDURA – “João Bobo/Bobo Doll


Experiment”8.
Vários experimentos subsequentes demonstraram que as pessoas
aprendem uma variedade de reações novas só de percebê-las em outras.
Isso é preocupante porque as pessoas estão assistindo a uma quantidade
cada vez maior de filmes e programas de televisão bastante violentos.
BANDURA afirmou que os indivíduos podem reunir informações
provenientes de várias observações distintas, de modo que novos modelos
de comportamento um tanto quanto diferentes de qualquer outro antes
estudado podem ser desenvolvidos9.
A capacidade de dar respostas novas observadas algum tempo antes,
mas nunca realmente praticadas, é possível devido às habilidades
cognitivas humanas. Os estímulos oferecidos pelo modelo são
transformados em imagens daquilo que o modelo fez ou disse ou parecia e,
ainda mais importante, são transformados em símbolos verbais que mais
tarde podem ser lembrados. Essas habilidades cognitivas, simbólicas,
também permitem aos indivíduos transformar aquilo que aprenderam ou
combinar o que observaram em diferentes modelos em novos padrões de
comportamento. Assim, ao observar os outros, podemos desenvolver
soluções novas, e não simplesmente imitações obedientes10.
BANDURA sugere que a exposição a modelos, além de levar à
aquisição de novos comportamentos, tem outros dois tipos de efeito.
Primeiro, o comportamento de um modelo pode simplesmente servir para
provocar o desempenho de respostas semelhantes já existentes no
repertório do observador. Esse efeito facilitador é especialmente provável
quando o comportamento é de natureza socialmente aceitável. A segunda
maneira como um modelo pode influenciar um observador ocorre quando
um modelo está apresentando um comportamento socialmente proscrito ou
desviante. As inibições do observador com relação a ter aquele
comportamento podem ser reforçadas ou enfraquecidas ao observar o
modelo, dependendo de o comportamento do modelo ter sido punido ou
recompensado11.

8 Reprodução autorizada pelo Prof. Dr. ALBERT BANDURA.


9 FRIEDMAN, Howard S; SCHUSTACK, Miriam, op. cit, p. 249.
10 HALL, Calvin S; LINDZEY, Gardner; CAMPBELL, John B. Teorias da personalidade. 4ª ed. Tradução de

Maria Adriana Veríssimo Veronese. Porto Alegre, Artmed, 2000, p. 466.


11 HALL, Calvin S; LINDZEY, Gardner; CAMPBELL, John B. Teorias da personalidade. 4ª ed.

Tradução de Maria Adriana Veríssimo Veronese. Porto Alegre, Artmed, 2000, p. 466.

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Vítimas e espectadores, submetidos a atos de bullying,


comportamento social desviante (podendo até ser criminoso quando
envolvem adultos), adquirem um novo modelo de comportamento pela
observação do comportamento de outros. Esse modelo de comportamento
do bullying não necessita ser reforçado. Elas passam a internalizar que tal
conduta é “permitida”, mesmo sendo efetivamente desviante, e que tais
ações de exploração do mais fraco, do diferente, do deficiente físico são
válidas para o seu grupo12.
Os seres humanos aprendem observando. Essa é a resposta simples
que Bandura propôs. Intuitivamente, ela é óbvia. Contudo, a aprendizagem
pela observação viola o pressuposto tradicional da teoria da aprendizagem
– segundo o qual a aprendizagem só ocorre se existir reforço. BANDURA
afirmou que é possível distinguir entre a aprendizagem e o desempenho. O
reforço fornece os incentivos necessários para o desempenho, mas não é
imprescindível para a aprendizagem13.
O experimento de BANDURA nos demonstra a capacidade que as
crianças (e todos os seres humanos) possuem de aprender comportamentos
agressivos apenas com a mera observação dos mesmos. Essa situação, no
caso do bullying, se aplica a todos os envolvidos (inclusive espectadores e
vítimas), que acabam internalizando esse padrão de comportamento (uso da
violência) em suas vidas.

5 – R EPRODUÇÃO DO BULLYING NA V IDA C OTIDIANA


É comum entre os alunos de uma classe a existência de diversos
conflitos e tensões. Há ainda inúmeras outras interações agressivas, ás vezes
como diversão ou como forma de auto-afirmação e para se comprovarem as
relações de força que os alunos estabelecem entre si. Caso exista na classe
um agressor em potencial ou vários deles, seu comportamento agressivo
influenciará nas atividades dos alunos, promovendo interações ásperas,
veementes e violentas. Devido ao temperamento irritadiço do agressor e à
sua acentuada necessidade de ameaçar, dominar e subjugar os outros de
forma impositiva pelo uso de força, as adversidades e as frustrações

12 Não é preciso ir fundo na análise de tais condutas serem reproduzidas numa sociedade capitalista
como a nossa, onde o sucesso, a competição e o lucro são fontes de desejos e obsessões de um
número cada vez maior de pessoas. São comuns as expressões “o mundo é dos espertos”, que
refletem um terreno propício para a reprodução do bullying.
13 CLONINGER, Susan C. Teorias da personalidade. Tradução de Cláudia Berliner. São Paulo, Martins

Fontes, 1999, p. 394.

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menores que surgem acabam por provocar reações intensas. Às vezes, essas
reações assumem caráter agressivo em razão da tendência do agressor a
empregar meios violentos nas situações de conflitos. Em virtude de sua
força física, seus ataques violentos mostram-se desagradáveis e dolorosos
para os demais. Geralmente o agressor prefere atacar os mais frágeis, pois
tem certeza de dominá-los, porém não teme brigar com outros alunos da
classe: sente-se forte e confiante14.
Quanto aos demais alunos, acabam se tornando testemunhas, vítimas
e coagressores dessa cruel dinâmica. Se não participarem do bullying,
podem ser as próximas vítimas. Não denunciam e se acostumam com essa
prática violenta, podendo até encará-la como normal dentro do ambiente
escolar (e um dia até no ambiente de trabalho). O bullying acaba criando um
ciclo vicioso, arrastando os envolvidos cada vez mais para o seu centro.
Para romper aos poucos com o ciclo vicioso, cada parte deve
examinar sua própria contribuição involuntária para o padrão e fazer algo
diferente que tenha mais chances de reduzir o problema exteriorizado. É
necessário que abandonem essa postura de culpar uma à outra e caminhem
em direção a uma compreensão mais profunda do problema que há entre
elas15.
Lecionam FANTE e PEDRA que os espectadores representam a maioria
dos alunos de uma escola. Eles não sofrem e nem praticam bullying, mas
sofrem as suas consequências, por presenciarem constantemente as
situações de constrangimento vivenciadas pelas vítimas. Muitos
espectadores repudiam as ações dos agressores, mas nada fazem para
intervir. Outros as apoiam e incentivam dando risadas, consentindo com
agressões. Outros fingem se divertir com o sofrimento das vítimas, como
estratégia de defesa. Esse comportamento é adotado como forma de
proteção, pois temem tornar-se as próximas vítimas16.
O sofrimento emocional e moral (até físico eventualmente) da vítima
são patentes. É comum que a vítima mantenha a lei do silêncio, pois, na
maioria das vezes, as agressões são apenas morais e não deixam vestígios.

14 FANTE, Cleo. Fenômeno bullying: como prevenir a violência nas escolas e educar para a paz. Campinas,
Verus, 2005, p. 47-48.
15 BEAUDOIN, Marie-Nathalie; TAYLOR, Maureen. Bullying e desrespeito: como acabar com essa cultura na

escola. Tradução de Sandra Regina Netz. Porto Alegre, Artmed, 2006, p. 82.
16 FANTE, Cleo; PEDRA, José Augusto. Bullying escolar: perguntas e respostas. Porto Alegre, Artmed,

2008, p. 61.

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Compreender a dinâmica desse fenômeno é importante para controlá-


lo. Será que o conselheiro tutelar, assistente social, membro do Ministério
Público ou Poder Judiciário saberá lidar de forma efetiva e adequada com
essa situação? Estamos preparados para dar uma resposta efetiva para
reduzir o bullying? Sem procurar entender as origens do problema e seu
funcionamento a resposta dos agentes do Estado pode mais agravar do que
resolver a situação. O motivo: imposições externas tendem a não ser
seguidas a médio e longo prazo pelos jovens e adolescentes (nem com
adultos) quando não partem de um consenso com o grupo envolvido.

6 – BULLYING E G ANGUES : A LGUMAS S EMELHANÇAS


O fenômeno bullying estimula a delinquência e induz a outras formas
de violência explícita, produzindo, em larga escala, cidadãos estressados,
deprimidos, com baixa autoestima, capacidade de autoaceitação e
resistência à frustração, reduzida capacidade de autoafirmação e de auto-
expressão, além de propiciar o desenvolvimento de sintomatologias de
estresse, de doenças psicossomáticas, de transtornos mentais e de
psicopatologias graves. Tem, como agravante, interferência drástica no
processo de aprendizagem e de socialização, que estende suas
consequências para o resto da vida podendo chegar a um desfecho trágico17.
Em situações de ataques mais violentos, contínuos e que causem graves
danos emocionais, a vítima pode até cometer suicídio ou praticar atos de
extrema violência.
Registro a grande similaridade do funcionamento do bullying e o das
gangues como forma de perpetuação do grupo. Há um movimento
forçando de fora para o centro todos os agentes (provocadores,
expectadores e vítimas) de que forma que o bullying e as gangues sempre se
perpetuem. A “norma interna” é não se envolver, não interromper o
movimento (sob pena de se tornar uma vítima) e nunca denunciar os
agressores.
Pais e professores têm, então, no grupo de colegas da mesma idade
rivais muito fortes, que podem influenciar emocionalmente seus filhos e
alunos muito mais do que eles mesmos conseguiriam fazer e com os quais,
de todo modo, é preciso aprender a colaborar18.

17 PEDRA, José Augusto em prefácio da obra constante na nota três de Cleo Fante (2005), p. 9-10.
18 COSTANTINI, Alessandro. Bullying: como combatê-lo? Tradução de Eugênio Vinci de Moraes. São
Paulo, 2004, Itália Nova, p. 51.

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Se frustrações, insultos ou modelos agressivos aumentam as


tendências de pessoas isoladas, então esses fatores têm probabilidade de
inspirar as mesmas reações em grupos. Ao começar um tumulto, os atos
agressivos, por exemplo, muitas vezes espalham-se rapidamente após o
início de um processo agressivo de uma pessoa antagônica. Ao verem
saqueadores pegando livremente aparelhos de tevê, espectadores normais,
que respeitam as leis, podem abandonar sua inibição moral e imitá-los19. Os
jovens, muitas vezes, se envolvem em atos de violência e/ou contrários à lei
por influência de grupos de amigos, situações que dificilmente ocorreriam,
se o jovem fosse atuar de forma isolada. A influência de grupos traz pesadas
consequências em alguns casos.
Se para o jovem adulto envolvido com gangues é difícil romper esse
ciclo vicioso, mesmo tendo pouca participação, o que se esperar de
pequenas crianças dentro de uma sala ou escola? Elas, mais do que os
adultos, tendem a não querer atritos (esquiva) com os colegas do grupo.
Não só as vítimas do bullying querem o seu fim. Os espectadores, em
grande número dos casos, não concordam com o andamento do bullying (ou
dos rumos da gangue), mas, por medo de se tornarem alvos, passam a agir
de forma omissa e não se intrometem nos rumos do pensamento decidido
pelo grupo (que ao final são poucos que dominam um grande número de
pessoas).

7 – C ONSIDERAÇÕES F INAIS
A Criminologia busca a prevenção dos crimes. Ele estuda os
fenômenos que aumentam a probabilidade do surgimento dos crimes. O
estudo do bullying se faz necessário, nesse contexto, para romper com um
modelo de resolução de conflitos que cultua a exploração dos mais fracos ou
os diferentes e que tem como motor a intolerância com o próximo.
É preciso buscar um diagnóstico do bullying naquela realidade escolar
local. O esclarecimento pode, em muitos casos, facilitar o controle dessas
situações. Para que isso possa ser conseguido é necessário que haja um
diálogo franco entre os envolvidos. Isso evitará que os envolvidos tenham
uma mensagem da sociedade de que os problemas devem ser resolvidos
com violência ou com a anulação moral dos mais fracos.

19 MYERS, David G. Psicologia social, 6ª ed. Tradução de A. B. Pinheiro de Lemos. Rio de Janeiro, LTC,
2000,p. 227.

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O experimento de ALBERT BANDURA nos demonstra a capacidade que


os seres humanos possuem de aprender comportamentos agressivos apenas
com a mera observação Essa situação, no caso do bullying, se aplica para
todos os envolvidos (inclusive espectadores e vítimas), que acabam
internalizando esse padrão de comportamento (uso da violência) em suas
vidas.
Há ainda o problema da formação de grupos até gangues pela ação
do agressor, que podem futuramente partir para a prática de atos de
delinquência. A atuação preventiva nesses casos é a melhor saída. Devemos
coibir essas práticas e propagar, em vez da violência, a tolerância e a
solidariedade. Agindo assim contribuiremos para reduzir a prática futura
de crimes violentos decorrentes das situações de bullying, porquanto esses
comportamentos são observados, aprendidos, internalizados e podem ser
reproduzidos na vida futura cotidiana pelos envolvidos em práticas de
bullying, gerando conflitos graves para outras pessoas.
Há necessidade de se dialogar com a direção da escola a capacitação
dos funcionários e professores para lidar com o tema e buscar o máximo
possível manter um diálogo aberto e franco com as crianças e adolescentes
envolvidos, com o intuito de se procurar uma solução que seja aceita pelo
grupo e que seja internalizada e duradoura para aquele ambiente escolar.
O profissional do Direito (juiz de direito, promotor de justiça,
advogado ou delegado de polícia), ao se deparar com um problema de
bullying, deve ter estar aberto a todas alternativas possíveis que possam ser
colocadas para a solução do problema. Não é o princípio de autoridade por
si só que poderá acabar com essas ocorrências num determinado ambiente
escolar. Mente aberta para todas as possibilidades de solução do conflito e
interação com os alunos do meio escolar. Sem a participação efetiva dos
estudantes na reconstrução da situação problemática a resposta imposta
pode ser temporária e não resolver o problema das vítimas. Uma resposta
imposta do meio externo tende a não ser aceita pelos estudantes em médio
prazo.

8 – R EFERÊNCIAS B IBLIOGRÁFICAS
ABRAPIA – Associação Brasileira Multiprofissional de Proteção à Infância e à
Adolescência. Disponível na Internet:
<http://www.bullying.com.br/BConceituacao21.htm#OqueE>.
BEAUDOIN, Marie-Nathalie; TAYLOR, Maureen. Bullying e desrespeito: como acabar com essa
cultura na escola. Tradução de Sandra Regina Netz. Porto Alegre, Artmed, 2006.

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CALHAU, Lélio Braga. Resumo de Criminologia, 3ª ed. Rio de Janeiro, Impetus, 2008.
CALHAU, _________. Criminalidade, infância e a Psicologia. Jornal Hoje em Dia, Belo
Horizonte, Minas Gerais, 01.12.06, página 02. Também disponível no site
www.novacriminologia.com.br.
CARVALHO, Salo de. Antimanual de Criminologia. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2008.
CLONINGER, Susan C. Teorias da personalidade. Tradução de Cláudia Berliner. São Paulo,
Martins Fontes, 1999.
COSTANTINI, Alessandro. Bullying: como combatê-lo? Tradução de Eugênio Vinci de
Moraes. São Paulo, 2004, Itália Nova.
FANTE, Cleo. Fenômeno bullying: como prevenir a violência nas escolas e educar para a paz.
Campinas, Verus, 2005.
FANTE, Cleo; PEDRA, José Augusto. Bullying escolar: perguntas e respostas. Porto Alegre,
Artmed, 2008.
FRIEDMAN, Howard S; SCHUSTACK, Miriam W. Teorias da personalidade: da teoria clássica à
pesquisa moderna. 2ª ed. Tradução de Beth Honorato. São Paulo, Pearson/Prentice Hall,
2004.
HALL, Calvin S; LINDZEY, Gardner; CAMPBELL, John B. Teorias da personalidade. 4ª ed.
Tradução de Maria Adriana Veríssimo Veronese. Porto Alegre, Artmed, 2000.
MYERS, David G. Psicologia social, 6ª ed. Tradução de A.B.Pinheiro de Lemos. Rio de
Janeiro, LTC, 2000.
PEDRA, José Augusto em prefácio da obra constante na nota 03 de Cleo Fante (2005), p. 9-
10.
PIMENTA, Carlos. Apontamentos sobre a complexidade e epistemologia nas ciências
sociais. In: CANCELLI, Elizabeth; GAUER, Ruth M. Chittó. Sobre a interdisciplinaridade.
Caxias do Sul, Educs, 2005.

25
BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE A
REVALORIZAÇÃO DA VÍTIMA E A
REPARAÇÃO DO DANO NO
PROCESSO PENAL BRASILEIRO
R ENATA J ARDIM DA C UNHA R IEGER *
R ODRIGO O LIVEIRA DE C AMARGO **

Resumo: O estudo visa a discutir a revalorização da vítima e a


reparação do dano no Processo Penal Brasileiro. Inicialmente,
demonstrou-se a preocupação com o ofendido em âmbito
internacional e nas reformas processuais penais ocorridas em
2008. Logo depois, estudou-se o ressarcimento da vítima no
Direito Brasileiro e analisou-se, detidamente, a nova redação do
art. 387, IV, do CPP e os seus principais problemas práticos.
Concluiu-se que são totalmente inadequadas a apuração e a
determinação de danos materiais e/ou morais no bojo de um
processo penal e que o artigo deveria ser expurgado do CPP. E
isso não ocorrendo, urge, ao menos, que sejam observadas as
premissas do sistema acusatório, em especial a inércia judicial.

Palavras-chave: Revalorização da vítima. Reparação do dano.


Reformas processuais penais. Art. 387, IV, do CPP. Sistema
Acusatório. Inércia Judicial.

I – A S R EFORMAS P ROCESSUAIS P ENAIS E A R EVALORIZAÇÃO DA


V ÍTIMA
A problemática da vítima ocupa um papel de destaque no Direito
Penal e na Política Criminal. Encontram-se, nos mais diversos países,

* Advogada criminalista. Mestranda em Ciências Criminais (PUCRS). Especialista em Direito Penal


e Processual Penal (Faculdade IDC).
** Advogado criminalista. Mestrando em Ciências Criminais (PUCRS). Membro da Comissão Sobral

Pinto de Direitos Humanos da OAB/RS.

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importantes discussões de temas como o apoio psicológico e material à


vítima1.
Em conformidade com esta tendência internacional, as reformas do
Código de Processo Penal brasileiro, ocorridas em 2008, consagraram uma
revalorização do ofendido no âmbito do processo criminal. Estabeleceu-se,
por exemplo, que este deve ser ouvido sempre que for possível (art. 201) e
que deve ser intimado de diversos atos processuais (art. 201, § 3º).
Estabeleceu-se, também, que, se o juiz entender necessário, deve
encaminhar a vítima a atendimento multidisciplinar, especialmente nas
áreas psicossocial, de assistência e de saúde, a expensas do ofensor e do
Estado (art. 201, § 5º). Ainda a título exemplificativo da revalorização do
ofendido, insta referir que se determinou que devem ser tomadas as
medidas necessárias à preservação de sua intimidade, vida privada, honra e
imagem, determinando-se, inclusive, o segredo de justiça em relação a
dados, depoimentos e outras informações constantes nos autos a seu
respeito (art. 201, § 6º).
Neste trabalho, interessa, especialmente, a nova redação do art. 387,
IV, do Código de Processo Penal. Este dispositivo consagrou mais uma
vantagem para o ofendido, visando-se à “concertação entre agente-vítima”2

1 Sobre a preocupação dos órgãos oficiais com a vitimação, interessante lembrar que, a partir da
década de 70, o Conselho da Europa investiu na problemática, visando a uma melhor salvaguarda
dos direitos e interesses das vítimas no interior dos vários Estados Membros. Dentre os
instrumentos internacionais, destacam-se os seguintes: 1) “Resolução ( 77) 27, de 28 de setembro
de 1977”, tratando da indenização às vítimas dos processos criminais; 2) “Recomendação nº R (83)
7, de 23 junho de 1983”, prevendo a participação do público na elaboração e na aplicação da
Política Criminal e destacando as reações penais não detentivas e o apoio à vítima; 3) “Convenção
Européia, de 24 de novembro de 1983”, abordando a indenização pelo Estado às vítimas de crimes
violentos; 4) “Recomendação nº R (85) 11, de 28 de junho de 1985”, discutindo a posição da vítima
no ordenamento penal e processual penal; 5) “Recomendação nº R (87) 21, de 9 de setembro de
1987, prevendo assistência às vítimas de crimes e prevenção da vitimação. Também a Assembléia
Geral das Nações Unidas tem se debruçado nos últimos anos sobre esta problemática, tendo
adotado, em 29 de novembro de 1985, a Resolução A/RES/40/34, a “Declaração dos princípios
fundamentais de justiça relativos às vítimas de criminalidade e às vítimas do abuso do poder”:
OLIVEIRA, Odete Maria de Oliveira. Problemática da Vítima de Crimes. Reflexos no Sistema Jurídico
Português. Lisboa: Rei dos Livros, 1994, p. 27-52.
2 O termo é utilizado por JORGE DE FIGUEIREDO DIAS. O autor português constata que se refere, cada

vez com maior insistência, como uma nova e autônoma finalidade da pena o propósito de com ela
se operar a possível concertação entre agente e vítima, através da reparação dos danos. DIAS,
Jorge de Figueiredo. Direito Penal. Parte Geral. Tomo I. Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 56.
Esta parece ser a posição de CLAUS ROXIN, para quem faz parte da função social do Direito Penal a
inclusão da vítima. O autor salienta a importância da reparação voluntária, seja em dinheiro ou
em força de trabalho, e a possibilidade de conciliação entre autor e ofendido. Mais, para Roxin,

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através da facilitação da reparação de danos. Parece que o legislador


identificou como um “problema” a demora que a vítima enfrentava para
que lhe fosse alcançada a indenização, agravada, ainda, pela demora de um
processo de liquidação, dado o caráter “ilíquido” da sentença criminal3.
Antes deste estudo, far-se-á breve análise do ressarcimento do
ofendido no processo penal. Demonstrar-se-á que as leis brasileiras cuidam,
há algum tempo e com especial zelo, da reparação do dano da vítima,
buscando, sempre que possível, incentivá-la.

II – A R EPARAÇÃO DO D ANO DA V ÍTIMA NO D IREITO


B RASILEIRO
Conforme referido, neste item analisar-se-ão, de forma meramente
exemplificativa, normas da legislação brasileira4 que versam sobre o
ressarcimento da vítima, a começar pelos dispositivos do Código Penal. O
art. 91, I, deste Diploma estabelece como efeito da condenação a obrigação
de reparar o dano. A sentença penal condenatória faz, portanto, coisa
julgada no cível5.

uma compensação do autor à vítima, que satisfaça esta, ou uma reparação pode restabelecer
consideravelmente a paz jurídica para delitos leves, prescindindo-se, até mesmo, da pena. No que
tange aos crimes graves, o autor alemão sugere a concessão de uma suspensão condicional da
pena ou, quando menos, sua atenuação substancial. ROXIN, Claus. Problemas atuais de política
criminal. In Revista Ibero-Americana de Ciências Penais. Ano 2, n° 4, set/dez 2001, p. 11-18, p. 17-18.
Entre nós, em sentido semelhante: SANTANA, Selma Pereira. A reparação como sanção autônoma
e o direito penal secundário. In Direito Penal Secundário. Estudos sobre crimes econômicos, ambientais,
informáticos e outras questões. Fábio Roberto D’Avila e Paulo Vinícius Sporleder de Souza (coord.).
São Paulo: Editora Revista dos Tribunais: Coimbra, 2006, p. 469-506.
3 BALTAZAR JÚNIOR, José Paulo. A Sentença Penal de Acordo com as Leis de Reforma. In: NUCCI,
Guilherme de Souza (org). Reformas do Processo Penal. Porto Alegre: Editora Verbo Jurídico, 2008,
p. 255.
4 A análise restará limitada à legislação brasileira, mas, conforme referido, a preocupação faz-se
presente nos ordenamentos dos mais diversos países. O Direito Penal Português, por exemplo, dá
relevo à problemática em diversos dispositivos: considera a reparação do dano como condição de
legitimidade de aplicação de certas “penas de substituição” (art. 51 – 1) ou como condição da
“dispensa de pena” (art. 74 – 1b) e admite que o lesado postule a reparação no próprio processo
penal (arts. 71 e ss. e 82-A do CPP. DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal. Parte Geral. Tomo I.
Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 57.
5 A sentença absolutória, por sua vez, não impede a propositura da competente ação indenizatória
no juízo cível, salvo se o fundamento da absolvição for o reconhecimento da inexistência material
do fato ou, ainda, de que o acusado não foi o autor do delito ou de que agiu sob o manto de
excludente da criminalidade. Não é demais lembrar que a ocorrência de prescrição ou de
qualquer outra causa extintiva da punibilidade não afasta a obrigação de reparar o dano.
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal. V.1. 13.ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 691-
692.

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O art. 16, por sua vez, prevê o arrependimento posterior. Trata-se,


como se sabe, de uma causa de redução de pena (de um a dois terços)
àquele que, antes do recebimento da denúncia ou da queixa, por ato
voluntário, repare o dano ou restitua a coisa6. E, não é demais referir, se a
reparação do dano ocorrer depois do recebimento da denúncia e antes da
prolação da sentença, aplica-se a atenuante genérica do art. 65, III, b7.
O Código Penal incentiva, ainda, a reparação para a substituição das
condições genéricas por condições específicas na suspensão da pena. No
prazo da suspensão que é concedido ao condenado, ele deverá prestar
serviços à comunidade (art. 46) ou submeter-se à limitação de fim de
semana (art. 48). A exceção fica por conta dos casos de reparação do dano
causado ao ofendido, tendo em vista que o § 2° do art. 78 estabelece que,
sendo favoráveis as circunstâncias judiciais do art. 59, poderá o juiz
substituir as exigências de prestação de serviço à comunidade ou de
limitação de fim de semana pela aplicação, cumulativa, de outras
circunstâncias menos gravosas ao acusado, a saber: a) proibição de
frequentar determinados lugares, b) proibição de, sem autorização do juiz,
ausentar-se da comarca onde reside e c) comparecimento mensal ao juízo a
fim de justificar suas atividades.

6 No que tange ao delito de fraude no pagamento por meio de cheque (art. 171, § 2º, VI, CP), o
Supremo Tribunal Federal firmou entendimento de que, pago o cheque antes do oferecimento da
denúncia, descaracterizado estará o crime. Sobre o assunto, o Egrégio Tribunal emitiu a Súmula
554, a qual tem a seguinte redação: “O pagamento de cheque emitido sem suficiente provisão de
fundos, após o recebimento da denúncia, não obsta ao prosseguimento da ação penal.”,
significando que, antes da propositura, o pagamento retira a justa causa da ação penal. Trata-se,
portanto, de exceção ao art. 16 do Código Penal. Sobre o assunto, conferir: DELMANTO, Celso.
Código Penal Comentado. 6.ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 29.
7 Interessante referir que, no que concerne ao delito de estelionato (art. 171, caput, CP), o Tribunal de

Justiça do Estado do Rio Grande do Sul já considerou a reparação do dano – mesmo que posterior
ao recebimento da denúncia – causa extintiva da punibilidade, aplicando analogicamente a norma
expressa no § 2º do art. 9º da Lei 10.684/03. Este dispositivo, vale lembrar, determina a extinção
da punibilidade quando efetuado o pagamento integral de tributo ou contribuição social. Na
decisão, referiu-se que “o Estado, enquanto lei penal, quando trata diferente ao infrator pobre em
relação ao delinqüente de colarinho branco, estabelece uma diferenciação pelo tipo de agente que
pratica o crime, fato que atinge frontalmente aos princípios constitucionais. O poder estatal impõe
ao estelionatário que comete crime contra cidadão pena privativa de liberdade mesmo se este
ressarcir a vítima antes da sentença, mas não pune o ‘estelionatário’ que comete crime contra o
patrimônio do Estado, em situação idêntica. Em ambos os casos há crime patrimonial, logo não há
como tratar diferentemente os criminosos por ter escolhido como vítima o Estado ou cidadão. Ao
restituir os valores integrais ao patrimônio da vítima, mesmo depois do recebimento da denúncia,
mas antes da sentença, em caso de crimes patrimoniais cometidos sem violência ou grave ameaça,
deve ser aplicada – analogicamente – a regra da § 2º do art. 9º da Lei 10.684/03”. TJRS, RSE nº
70021561105, 5ª Câmara Criminal, Rel. Aramis Nassif, j. em 09/01/2008.

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Mais, o art. 83, IV, estabelece a reparação do dano enquanto condição


para a concessão do livramento condicional, salvo a efetiva impossibilidade
de fazê-lo8. E, por derradeiro, no art. 312, § 3º, permite a extinção da
punibilidade no crime de peculato culposo quando a reparação do dano
der-se antes da sentença irrecorrível. Sendo depois desta, é prevista a
redução pela metade da pena imposta.
Também o Código de Processo Penal regula a reparação do dano. No
Título IV, do Livro I, proporciona meios eficazes para a vítima buscar o seu
ressarcimento. Além disso, garante a utilização das medidas assecuratórias,
quais sejam: a) sequestro (art. 125); b) hipoteca legal (art. 134); c) arresto de
imóvel (art. 136) e d) arresto de bens móveis suscetíveis de penhora (art.
137)9.
Com efeito, não é excessivo referir que quaisquer dos procedimentos
acima arrolados podem ser requeridos e decretados em qualquer fase do
procedimento criminal, antes do oferecimento da denúncia ou queixa e, até
mesmo, após decisão final do processo, desde que ainda passível de recurso
(art. 127 do CPP).
Transitada em julgada a sentença penal – obrigatoriamente
condenatória –, serão os autos do pedido de medidas assecuratórias (os
quais são autuados em separado) remetidos ao Juízo Cível, conforme impõe
a regra prevista no art. 143, para os fins de que seja promovida a execução
através de uma ação civil própria.
Insta, ainda, lembrar a Lei 9.099/95, a qual introduziu o chamado
modelo consensual de Justiça. Essa lei priorizou a indenização do dano em
detrimento, até mesmo, da punição do infrator.
O art. 62 deste diploma legal prevê que, sempre que possível, deve
ocorrer a reparação dos danos sofridos pela vítima. O art. 72 e seguintes,
por sua vez, regulam a conciliação e composição de danos. E, ressalta-se, o
acordo homologado implica a renúncia ao direito de queixa e de
representação.
A Lei 9.099/95 instituiu, ainda, a suspensão do processo. Estabelece o
art. 89 que, nos crimes com pena inferior a 1 (um) ano, é possível a

8 A impossibilidade de reparar o dano origina-se das condições financeiras do preso ou, dentre
outros motivos, do paradeiro desconhecido da vítima, do perdão, da prescrição ou novação da
dívida. DELMANTO, Celso. Código Penal Comentado. 6.ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 165.
9 Não é demais lembrar que a Lei 9.613/98, Lei de Lavagem de Dinheiro, incrementa o sequestro de

bens, valores ou direitos, oriundos dos crimes que deram origem à lavagem (art. 8˚).

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suspensão do feito por de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, desde que o acusado se


submeta a algumas condições. E uma delas é justamente a reparação do
dano, salvo impossibilidade de fazê-lo (art. 89, § 1º, I)10. Vale dizer que o
não-cumprimento desse requisito implica a revogação da suspensão (art. 89,
§ 3º).
Também a Lei 9.503/98, que instituiu o Código de Trânsito, mostrou
preocupação com a vítima e com o dano, prevendo a penalidade de multa
reparatória. O art. 297 estabelece que essa penalidade consiste no
pagamento, mediante depósito judicial em favor da vítima ou de seus
sucessores, de quantia calculada com base no § 1º do art. 49 do Código
Penal, sempre que o crime gerar prejuízo material.
Ainda a título demonstrativo, cita-se a Lei 9.605/98, que dispõe sobre
sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas
ao meio ambiente. Essa lei apropriou-se do viés reparatório do princípio do
Poluidor-Pagador11, exigindo, em diversos momentos, a reparação.
O art. 17, por exemplo, estabelece, enquanto condição à concessão de
sursis especial, o laudo comprobatório da reparação do dano ambiental. O
art. 27, a seu turno, prevê enquanto condição à transação a composição do
dano, salvo em caso de comprovada impossibilidade.
Lembra-se, ainda, o art. 20, que consagra previsão bastante
semelhante à nova redação do art. 387, IV, pois determina que “a sentença
condenatória, sempre que possível, fixará o valor mínimo para a reparação
dos danos causados pela infração, considerando os prejuízos sofridos pelo
ofendido e pelo meio ambiente”. No parágrafo único desse dispositivo,
prevê-se que, transitada em julgado a sentença, a execução poder efetuar-se

10 Não é demais trazer as lições de AURY LOPES JÚNIOR, no sentido de que “o dever de reparar o
dano não se confunde com a obrigação de aceitar uma exigência abusiva ou virar um instrumento
de coação e excessos por parte da vítima. Se existe uma ação de cunho indenizatório tramitando,
onde se discute a responsabilidade civil e/ou o valor devido, não há obstáculo algum a que se
considere cumprida a suspensão condicional do processo” (LOPES JÚNIOR, Aury. Direito Processual
Penal e sua Conformidade Constitucional. Volume II. 1.ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2009,
p. 237).
11 Este princípio determina, em síntese, que aquele que empreende uma atividade potencialmente

poluidora tem que incorporar nos custos de produção os custos de prevenção e reparação de
eventual dano ambiental. Sobre o assunto, conferir: BENJAMIN, Antonio Herman de Vasconcellos
e. O princípio poluidor-pagador e a reparação do dano ambiental. In: _____. Dano ambiental:
prevenção, reparação e repressão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993. p. 226-236, p. 03-04, e
MACHADO, Paulo Affonso Leme Machado. Direito Ambiental Brasileiro. 14.ed. São Paulo: Malheiros
Editores, 2006, p.59-61 e 83-84.

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nos termos do caput, sem prejuízo de liquidação para apuração do dano


efetivamente sofrido.
A preocupação com a reparação do dano está, também, na pena a ser
imposta: o art. 9º estabelece que a prestação de serviços à comunidade
consiste, no caso de dano a coisa particular, na restauração desta, se
possível. O art. 14, por sua vez, considera circunstância que sempre atenua a
pena o arrependimento do infrator, manifestado pela espontânea reparação
ou, ainda, limitação significativa da degradação ambiental causada12.
Por derradeiro, no que tange aos crimes contra a Ordem Tributária
(Lei 8.137/90), interessante a observação de BALTAZAR JÚNIOR no sentido de
não haver necessidade da fixação do valor mínimo a título de indenização.
Isso porque o oferecimento de denúncia contra delitos dessa natureza exige
conclusão de procedimento administrativo-fiscal tributário e, via de
consequência, pressupõe a existência de liquidez do valor da obrigação,
elemento essencial para posterior inscrição em dívida ativa da União13.

III – A N OVA R EDAÇÃO DO A RT . 387, IV, DO C ÓDIGO DE


P ROCESSO P ENAL
EUGÊNIO PACELLI DE OLIVEIRA explica que, quando a repercussão da
infração penal atinge também o campo da responsabilidade civil, terá lugar
a chamada ação civil ex delicto, prevista no art. 63 e seguintes do CPP, que
consiste no procedimento judicial voltado à recomposição civil do dano
causado pelo crime, previamente reconhecido pelo juízo criminal. O autor
aborda, ainda, que há vários e diferentes sistemas processuais
regulamentando a matéria, ora permitindo o ajuizamento simultâneo dos
pedidos (penal e cível) em um só juízo, ora prevendo a separação de
instâncias, com maior ou menor grau de separação entre elas14.
No Brasil, adota-se o sistema de independência relativa, pois existe,
muitas vezes, subordinação da temática civil à criminal. Conforme referido,
o art. 91, I, do Código Penal prevê que a obrigação de reparar o dano é

12 Também no que tange ao meio ambiente, vale lembrar a Lei 6.938/ 81, que dispõe sobre a Política
Nacional do Meio Ambiente. Esta lei prevê, no art. 14, § 1°, que, sem obstar outras penalidades, é
“o poluidor obrigado, independentemente da existência de culpa, a indenizar ou reparar os danos
causados ao meio ambiente e a terceiros, afetados por sua atividade”.
13 BALTAZAR JÚNIOR, José Paulo. A Sentença Penal de Acordo com as Leis de Reforma. In: NUCCI,

Guilherme de Souza (org). Reformas do Processo Penal. Porto Alegre: Editora Verbo Jurídico, 2008,
p. 258.
14 OLIVEIRA, Eugênio Pacelli. Curso de Processo Penal. 10.ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 165.

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efeito genérico da sentença penal condenatória. Mais, o art. 935 do Código


Civil estabelece que não mais se discutirá no cível a decisão criminal que
reconheça a existência do fato ou sobre quem seja o seu autor.
Antes da reforma, a vítima aguardava o trânsito em julgado da
decisão penal e ingressava na esfera cível em busca de seu ressarcimento.
Tratava-se de um título ilíquido e fazia-se necessária a liquidação por
artigos, com produção de provas do dano.
A nova redação do art. 387, IV, trazida pela Lei 11.719/08, mudou
esta concepção e tornou o título líquido (ao menos em parte), na medida em
que previu a possibilidade de o juiz fixar um valor “mínimo” para a
reparação dos danos causados pela infração. Esse posicionamento é
reforçado pelo parágrafo único do art. 63, também inserido pela Lei
11.719/08, o qual prevê que “transitada em julgado a sentença
condenatória, a execução poderá ser efetuada pelo valor fixado nos termos
do inciso IV do caput art. 387 deste Código sem prejuízo da liquidação para
a apuração do dano efetivamente sofrido”.
Assim, permite-se, atualmente, que a vítima ingresse no Juízo Cível
com um valor pré-fixado pelo juiz criminal15. Esta previsão, contudo, não
obsta o ajuizamento de ação civil ex delicto pelo ofendido ou seus sucessores
ou, ainda, da liquidação pela diferença a ser pleiteada16,17.
Essa alteração, sabe-se, foi trazida pelo anteprojeto da “Comissão
Pelegrini”18 e está em plena conformidade com a tendência internacional de
revalorização da vítima e com a já analisada preocupação do legislador

15 SILVA, Ivan Luís Marques da. A reforma processual penal de 2008: Lei 11.719, procedimentos
penais: Lei 11.690/2008, provas: Lei 11.689/2008, júri: comentadas artigo por artigo. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 2008, p. 15.
16 Neste sentido, conferir: FERRARI, Eduardo Reale. Código de processo penal: comentários ao projeto de

reforma legislativa. Campinas, SP: Millennium, 2003, p. 149; OLIVEIRA, Eugênio Pacelli. Curso de
Processo Penal. 10.ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 165.
17 Ressalva-se o entendimento de GUILHERME NUCCI, no sentido de que o juiz pode fixar a

indenização de maneira ampla e definitiva. Nesta situação, o autor entende que seria indevida a
liquidação na órbita do juízo cível. NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de processo penal e execução
penal. 5.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 236.
18 A redação elaborada pela Comissão Pellegrini foi enviada para o Congresso Nacional, onde foi

mantido o trecho e foram acrescentados os demais tópicos do art. 387. Ainda no Senado, foi
apresentada emenda visando à inserção, no § 1˚, do art. 387, da possibilidade de execução da
reparação nos mesmos autos. Na justificativa, o Senador Demóstenes Torres discorreu sobre o
ajustamento do Código de Processo Penal às demandas sociais e sobre a preocupação com a
vítima. A emenda, contudo, não foi aprovada, e a execução deve dar-se no Juízo Cível. CHOUKR,
Fauzi Hassan. Código de Processo Penal. Comentários Consolidados e Crítica Jurisprudencial. 3.ed. Rio
de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2009, p. 619.

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brasileiro com a reparação do dano. Isso porque torna mais célere, para o
ofendido, a reparação dos prejuízos experimentados pelo ato ilícito, pois
não mais haverá necessidade, estando o patamar mínimo do dano
estabelecido, de processo civil de liquidação19.
Vale referir que o Anteprojeto do Código de Processo Penal20 também
trata da questão. Prevê a possibilidade de o juiz arbitrar indenização pelo
dano moral causado pela infração penal, sem prejuízo da ação civil contra o
acusado e contra o eventual responsável civil pelos danos materiais
existentes.
Na exposição de motivos, consta que “a opção pelos danos morais se
apresentou como a mais adequada, para o fim de se preservar a celeridade
da instrução criminal, impedindo o emperramento do processo, inevitável a
partir de possíveis demandas probatórias de natureza civil”. Consta, ainda,
que, “nesse ponto, o anteprojeto vai além do modelo trazido pela Lei nº
11.719, de 20 de junho de 2008, que permitiu a condenação do réu ao
pagamento apenas de parcela mínima dos danos causados pela infração,
considerando os prejuízos efetivamente comprovados”21.

19 Para BALTAZAR JÚNIOR “parece claro, então, que o sentido da regra é tornar mais ágil reparação,
mas sem atrasar o andamento da ação penal. Em outras palavras, havendo dados nos autos da
ação penal que permitam a fixação do valor mínimo do dano, assim se fará”. BALTAZAR JÚNIOR,
José Paulo. A Sentença Penal de Acordo com as Leis de Reforma. In: NUCCI, Guilherme de Souza (org).
Reformas do Processo Penal. Porto Alegre: Editora Verbo Jurídico, 2008, p. 258.
20 O anteprojeto foi elaborado por ANTÔNIO CORRÊA, ANTONIO MAGALHÃES GOMES FILHO, EUGÊNIO

PACELLI DE OLIVEIRA (RELATOR), FABIANO AUGUSTO MARTINS SILVEIRA, FELIX VALOIS COELHO
JÚNIOR, HAMILTON CARVALHIDO (COORDENADOR), JACINTO NELSON DE MIRANDA COUTINHO,
SANDRO TORRES AVELAR e TITO SOUZA DO AMARAL. Anteprojeto/Comissão de Juristas
responsável pela elaboração de anteprojeto de reforma do Código de Processo Penal. — Brasília:
Senado Federal, 2009, 133 p.
21 Apenas a título ilustrativo, colacionam-se os dispositivos do Anteprojeto que tratam da “parte

civil” (na exposição de motivos, explica-se que a vítima, enquanto parte civil, poderá ingressar no
processo, não só como assistente da acusação, mas também, ou apenas, como parte processual a
ser contemplada na sentença penal condenatória): “Art. 79. A vítima, ou, no caso de sua ausência
ou morte, as pessoas legitimadas a ingressar como assistentes, sem ampliar a matéria de fato
constante da denúncia, poderá, no prazo de 10 (dez) dias, requerer a recomposição civil do dano
moral causado pela infração, nos termos e nos limites da imputação penal, para o que será
notificado após o oferecimento da inicial acusatória. § 1º. O arbitramento do dano moral será
fixado na sentença condenatória e individualizado por pessoa, no caso de ausência ou morte da
vítima e de pluralidade de sucessores habilitados nos autos. § 2º. Se a vítima não puder constituir
advogado, circunstância que deverá constar da notificação, ser-lhe-á nomeado um pelo juiz, ainda
que apenas para o ato de adesão civil à ação penal, caso em que o advogado poderá requerer a
extensão do prazo por mais 10 dias improrrogáveis. § 3º. A condenação do acusado implicará,
ainda, a condenação em honorários, observadas as regras da Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973
– Código de Processo Civil, devidos ao advogado constituído pela parte civil ou nomeado pelo

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Neste trabalho, não serão analisados os dispositivos do Anteprojeto,


mas, tão-somente, algumas questões acerca do 387, IV, cuja vagueza traz
mais questionamentos que respostas.

III.1 Aplicação da Lei no Tempo


Um dos primeiros problemas surgidos logo após a entrada em vigor
da norma processual penal diz respeito à aplicação da lei no tempo,
justamente porque se discute a natureza22 do art. 387, IV, do CPP. Nos
primeiros julgados sobre esta problemática, o Tribunal de Justiça do Estado

juiz.” “Art. 80. A parte civil terá as mesmas faculdades e os mesmos deveres processuais do
assistente, além de autonomia recursal quanto à matéria tratada na adesão, garantindo-se ao
acusado o exercício da ampla defesa.
Parágrafo único. Quando o arbitramento do dano moral depender da prova de fatos ou
circunstâncias não contidas na peça acusatória ou a sua comprovação puder causar transtornos ao
regular desenvolvimento do processo penal, a questão deverá ser remetida ao juízo cível, sem
prejuízo do disposto no art. 475-N, II, da Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973 – Código de
Processo Civil.” “Art. 81. A adesão de que cuida este Capítulo não impede a propositura de ação
civil contra as pessoas que por lei ou contrato tenham responsabilidade civil pelos danos morais e
materiais causados pela infração. Se a ação for proposta no juízo cível contra o acusado, incluindo
pedido de reparação de dano moral, estará prejudicada a adesão na ação penal, sem prejuízo da
execução da sentença penal condenatória, na forma do disposto no art. 82. § 1º. A reparação dos
danos morais arbitrada na sentença penal condenatória deverá ser considerada no juízo cível,
quando da fixação do valor total da indenização devida pelos danos causados pelo ilícito. § 2º. No
caso de precedência no julgamento da ação civil contra o acusado e/ou os responsáveis civis
pelos danos, o valor arbitrado na sentença penal para a reparação do dano moral não poderá
exceder àquele fixado no juízo cível para tal finalidade. § 3º. A decisão judicial que, no curso do
inquérito policial ou da ação penal, reconhecer a extinção da punibilidade ou a absolvição por
atipicidade ou por ausência de provas, não impedirá a propositura de ação civil. “Art. 82.
Transitada em julgado a sentença penal condenatória, e sem prejuízo da propositura da ação de
indenização, poderão promover-lhe a execução, no cível (art. 475-N, II, Lei nº 5.869, de 11 de
janeiro de 1973 – Código de Processo Civil), as pessoas mencionadas no art. 75. Parágrafo único.
O juiz da ação civil poderá suspender o curso do processo, até o julgamento final da ação penal já
instaurada, nos termos e nos limites da legislação processual civil pertinente.” Na parte da
sentença, destaca-se o seguinte dispositivo: “Art. 412. O juiz, ao proferir sentença condenatória:
[...] IV – arbitrará o valor da condenação civil pelo dano moral, se for o caso. [...]”
22 Como é cediço, a doutrina tradicional distingue as leis em penais, processuais penais puras e

mistas. Neste trabalho, interessa analisar, ainda que sucintamente, as duas últimas. Entende-se
que a lei processual penal pura regula o início, o desenvolvimento ou o fim do processo, bem
como os diferentes institutos processais. A ela, é aplicável o princípio da imediatidade. A lei
mista, por sua vez, é aquela que possui caracteres penais e processuais penais. A esta, aplica-se a
regra de direito intertemporal do Direito Penal: a lei mais benéfica retroage e a mais gravosa não.
Não é demais referir que a doutrina moderna já rechaça esta distinção. Observa-se que, à luz da
Constituição, a garantia da irretroatividade da lei penal mais gravosa deve ser aplicada, também,
às leis processuais, sendo frágil e artificial a distinção entre leis puras e leis mistas: LOPES JÚNIOR,
Aury. Direito Processual Penal e sua Conformidade Constitucional. Volume 1. 3.ed. Rio de Janeiro:
Editora Lumen Juris, 2008, p. 201- 206.

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do Rio Grande do Sul firmou, acertadamente, entendimento de que a norma


possui evidente natureza substantiva, já que importa sanção a ser
imediatamente executada pela vítima, quando do trânsito em julgado. Em
outras palavras, para o Tribunal, o preceito tem carga penal e isso impede a
sua incidência imediata, sob pena de fazer retroagir lei prejudicial ao
acusado.
Afora isso, o Tribunal gaúcho abordou que, se fosse possível a
aplicação do instituto aos processos em andamento, “estar-se-ia retirando
do acusado a possibilidade de debater a questão, no curso do processo,
violando frontalmente os princípios constitucionais do contraditório e da
ampla defesa, vendo-se condenado à indenização, sem que tivesse chance
de rebatê-la”23.
As decisões aqui citadas parecem acertadas e encaminham-se de
extremada prudência24, pois se trata de aplicação da regra em processos que
estavam em andamento. Contudo, isso, evidentemente, não encerra a
problemática trazida à discussão.

III.2 Necessidade de Pedido Expresso


ANDREY BORGES DE MENDONÇA entende que a fixação do quantum
pelo magistrado independe de pedido expresso da parte. Fundamenta que é
efeito automático de toda a sentença penal condenatória transitada em
julgado a obrigação de indenizar o dano causado e que o mesmo raciocínio
se aplica ao valor da indenização: é automático, sem que seja necessário
pedido expresso de quem quer que seja.
Mais, o citado autor aborda que existe um verdadeiro comando ao
magistrado de fixar o montante mínimo. E, em não tendo elementos para
tanto, o juiz deverá mencionar tal impossibilidade, expondo os motivos

23 TJRS, Apelação Crime nº 70027798511, 8ª Câmara Criminal, Relatora: Fabianne Breton Baisch,
julgado em 18/02/09. Também: TJRS, 70027575414, 8ª Câmara Criminal, rel.: Isabel de Borba
Lucas, julgado em 01/4/09; TJRS, Apelação Crime nº 70027659226, 8ª Câmara Criminal, Relator:
Isabel de Borba Lucas, julgado em 28/01/09; TJRS, Apelação Crime nº 70027594563, 8ª Câmara
Criminal, Relator: Danúbio Edon Franco, julgado em 17/12/08; TJRS, Apelação Crime nº
70027241017, 8ª Câmara Criminal, Relator: Fabianne Breton Baisch, j. em 17/12/08; TJRS,
Apelação Crime nº 70027069822, 8ª Câmara Criminal, Relator: Isabel de Borba Lucas, julgado em
17/12/08.
24 Ressalva-se o entendimento de ANDREY BORGES DE MENDONÇA, para quem o art. 387, IV, tem
apenas caráter processual penal e, por isso, deve ser aplicado imediatamente. MENDONÇA,
Andrey Borges de. Nova Reforma do Código de Processo Penal: comentada artigo por artigo. São Paulo:
Método, 2008, p. 245.

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pelos quais assim decide. Acrescenta, ainda, que, na hipótese de simples


omissão da autoridade judicial, será cabível a oposição de embargos de
declaração25.
O entendimento é reforçado pelo coro de JOSÉ PAULO DE BALTAZAR
JÚNIOR, para quem inexiste necessidade de requerimento da vítima.
Argumenta que, não raro, o ofendido desconhece o seu direito à
indenização ou, por algum motivo qualquer, teme exercê-lo. Esse autor
assevera, também, que, a teor da lei, pode o magistrado determinar a
fixação do valor mínimo de ofício26.
Essa orientação foi acolhida em recentíssimo julgado da Terceira
Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, quando do
julgamento da Apelação n° 7002821594527. Contudo, não parece adequada.
Os autores e os magistrados desconsideraram importantes premissas do
sistema acusatório, bem como o princípio da correlação.
AURY LOPES JÚNIOR propõe, acertadamente, uma leitura da ação
processual (penal) dentro da “estruturação de conceitos dentro de
características próprias”28 e, neste contexto, apresenta o princípio da
correlação29 (ou congruência). Esse princípio consiste na ideia de

25 MENDONÇA, Andrey Borges de. Nova Reforma do Código de Processo Penal: comentada artigo
por artigo. São Paulo: Método, 2008, p. 240-242.
26 BALTAZAR JÚNIOR, José Paulo. A Sentença Penal de Acordo com as Leis de Reforma. In: NUCCI,

Guilherme de Souza (org). Reformas do Processo Penal. Porto Alegre: Editora Verbo Jurídico, 2008,
p. 258.
27 A fundamentação limita-se ao Parecer do Procurador de Justiça: “[...] Quanto à indenização

concedida na sentença, andou bem o insigne Promotor de Justiça Dr. Roberto Bayard Fernandes
Figueiró, ao salientar que ‘compete ao julgador, ao proferir a sentença condenatória, nos termos
do art. 387, inc. IV, do Código de Processo Penal, fixar o valor mínimo para reparação dos danos
causados pela infração, independente de pedido explícito’. E, quanto ao valor, em caso de
eventual impossibilidade de pagamento, deverá ser decidido pelo juízo executório, o
competente”. TJRS, Apelação Crime nº 70028215945, 3ª Câmara Criminal, Rel. José Antônio Hirt
Preiss, julgado em 16/04/09.
28 LOPES JÚNIOR, Aury. (Re)Pensando as condições da ação processual. In: GAUER. Ruth Maria Chittó

(org.) Criminologia e Sistemas Jurídicos Penais Contemporâneos. Porto Alegre: Edipucrs, 2008, p.
280.
29 “O exercício da pretensão acusatória (com todos os seus elementos) é a acusação, fundamental

para aferir-se se é a sentença (in)congruente no processo penal, pois é ela quem demarca os
limites da decisão jurisdicional. O objeto do processo penal é a pretensão acusatória, vista como a
faculdade de solicitar a tutela jurisdicional, afirmando a existência de um delito, para ver ao final
concretizado o poder punitivo estatal pelo juiz através de uma pena ou medida de segurança. […]
A compreensão da complexa estrutura do objeto do processo penal é fundamental para o estudo
do princípio ou regra da correlação, como também o é para a compreensão dos limites do poder
acusatório” (LOPES JÚNIOR, Aury. Direito Processual Penal e sua Conformidade Constitucional. Volume
II. 1.ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2009, p. 346.)

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imutabilidade absoluta de objeto no processo penal, o qual está


umbilicalmente ligado à imputação formulada na “pretensão processual
penal”.
Essa rigidez advém da própria estrutura do sistema acusatório, em
que o magistrado deve ser considerado mero espectador do processo, sem
poderes de gestão sobre a prova e sem a possibilidade de incursão ao
elemento objetivo da pretensão acusatória, seja para ampliá-la ou restringi-
la30. Deve, assim, haver necessariamente uma identidade entre a deliberação
do magistrado e aquilo que, sob o crivo do contraditório, foi produzido no
processo, não sendo possível permitir decisão à parte da matéria que foi
objeto de discussão no feito.
Neste contexto, para que possa o juiz aplicar a norma prevista no art.
387, IV do CPP, deve haver a necessária correlação entre o pedido
formulado na denúncia ou queixa e a decisão, sem prejuízo, ainda, de toda a
formação da prova a ser feita na fase instrutória do processo penal. Em
outras palavras, para que seja aplicada a reparação do dano tal qual
estabelece o dispositivo processual, deve a peça inicial estabelecer, ainda
que aproximadamente, o quantum indenizável a título de reparação de
dano. Mais, no decorrer do processo, a parte interessada deve fazer a prova
necessária e indispensável que venha a embasar sua pretensão e eventual
condenação à reparação do dano.
Quando do julgamento da Apelação Criminal 7002944413031, a 6ª
Câmara do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul manifestou-

30 Sobre o assunto, conferir o trabalho da advogada Natalie Pletsch, ao analisar a formação da prova
no jogo processual penal. A advogada destaca, acertadamente, a necessidade de o juiz manter-se
inerte, imparcial, no decorrer do processo penal. Refere que, para assegurar a imparcialidade, é
preciso proibir o magistrado de se movimentar. Acrescenta que há apenas dois cursos a seguir
(tese defensiva e tese acusatória), e pender em direção a qualquer deles é romper com a
equidistância. Por este motivo, ao lembrar a antiga redação do art. 156 do CPP, Natalie Pletsch
refere que, “dentre tantos, o meio mais grave, porém mais corrente, da quebra desta simetria é
identificado durante a instrução probatória, quando o juiz, apoiado na legislação processual penal
brasileira, diligencia de ofício”. PLETSCH, Natalie Ribeiro. Formação da prova no jogo processual penal:
o atuar dos sujeitos e a construção da sentença. São Paulo: IBCCRIM, 2007, p. 67-73.
31 TJRS, Apelação Criminal 70029444130, 6ª Câmara Criminal, Rel. Aymoré Roque Pottes de Mello, j.

em 30 de abril de 2009. Em idêntico sentido: TJRS, Apelação Crime nº 70028776599, 6ª Câmara


Criminal, rel.: Aymoré Roque Pottes de Mello, j. em 26/3/09. Interessante referir que, nesta
decisão, o Tribunal trouxe outra problemática, qual seja, a situação econômica do réu. Referiu
que, no caso, a imposição de indenização também violava o princípio constitucional da
intranscendência, segundo o qual a pena não pode ultrapassar a pessoa do agente. Isso porque,
tratando-se de réu pobre, é certo que o pagamento das verbas indenizatórias comprometeria o
sustento da sua família.

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se sobre a questão, referindo que o instituto jamais poderá ser aplicado ex


oficio pelo juiz. Fundamentou que:
“[...] sua incidência repudia a unilateralidade e requisita
observância, antes de tudo e sobretudo, aos princípios norteadores
dos direitos e garantias fundamentais individuais (constitucionais
e infraconstitucionais), dentre os quais se inscrevem os da
imputação, da correlação, do contraditório e da ampla defesa,
dentre outros não menos importantes, no devido processo penal
legal aplicável à espécie sub judice”.
Por derradeiro, interessante citar o entendimento de NEREU
GIACOMOLLI, no sentido de que a vítima pode expressar seu interesse de
que não seja estabelecido o valor da indenização na sentença criminal. O
autor destaca, acertadamente, que a reparação está no âmbito de
disponibilidade do interessado, motivo por que, diante de manifestação
contrária da vítima, não pode o magistrado fixar qualquer valor. Conclui
abordando que, aqui, se aplica o princípio dispositivo, o qual comporta
renúncia e transação32.

III.3 Legitimidade e Interesse Recursal


Questão de especial relevo para compreensão do instituto diz
respeito, ainda, à impugnação da decisão que determina, ou não, ao
acusado o pagamento à vítima de reparação do dano sofrido pelo ato ilícito.
A doutrina e os tribunais discutirão, provavelmente, a problemática através
dos institutos da legitimidade e do interesse recursal.
O art. 577 do Código de Processo Penal legitima aos recursos penais
as partes (Ministério Público ou querelante, como sujeitos ativos da ação, e
o réu, como sujeito passivo). Os arts. 584, § 1°, e 598, a seu turno, legitimam
à interposição de apelação e de recurso em sentido estrito o ofendido e seus
sucessores, ainda que não se tenham habilitado como assistentes33. Nesse
contexto, conclui-se que esses têm pertinência subjetiva para recorrer.

32 GIACOMOLLI, Nereu José. Reformas (?) do Processo Penal. Considerações Críticas. Rio de Janeiro:
Editora Lumen Juris, 2008, p. 110-111.
33 GRINOVER, Ada Pellegrini; GOMES FILHO, Antônio Magalhães; FERNANDES, Antônio Scarance.

Recursos no processo penal: teoria geral dos recursos, recursos em espécie, ações de impugnação, reclamação
aos tribunais. 4.ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005, 78 e ss.

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Passa-se, então, a analisar quais desses têm interesse recursal. No que


tange ao réu, não restam dúvidas, eis que a decisão que fixa valor de
indenização atinge frontalmente seus interesses.
O assistente de acusação e o querelante também têm interesse
recursal, pois visam à satisfação integral de seu dano. Contudo, parece que
o processo penal não é o foro adequado para este tipo de embate.
Assim, considerando a vítima ser de pequena monta o valor
“mínimo” fixado pelo magistrado quando da sentença penal, deve postular
no Juízo Cível um valor maior. O seu interesse econômico pode e deve ser
satisfeito com plenitude, mas em seara distinta do processo penal.
No que concerne ao Ministério Público, é necessário reconhecer que
não possui, em regra, interesse recursal sobre a questão: apenas ao ofendido
e ao acusado incube decidir sobre quantum da reparação. Isso porque se
trata de um bem disponível e cabe apenas às partes decidir acerca da
disposição, ou não, desse direito e acerca da busca dos meios de tutela que
lhe são assegurados. Ademais, no processo penal, a função do Ministério
Público encontra-se estreitamente ligada à tutela do bem jurídico protegido
pela conduta tipificada, e não aos eventuais interesses econômicos da vítima
em ser indenizada.
No entanto, em uma situação, parece que o Parquet tem interesse
recursal: quando o órgão tem legitimidade para intentar a ação civil ex
delicto, nos termos do art. 68 do Código de Processo Penal34. E, ressalta-se,
essa atribuição só existe em estados que ainda não organizaram a
Defensoria Pública, constitucionalmente incumbida da orientação e defesa
dos necessitados, na forma dos art. 5°, LXXIV, e 13435. Vale, também aqui, a
ressalva de que o ideal seria satisfazer o interesse econômico da vítima na
seara cível.

IV – C ONCLUSÕES
À guisa de conclusão, interessa retomar, sucintamente, os principais
pontos abordados no curso do trabalho. Na parte inicial, demonstrou-se que
a problemática da vítima ocupa um papel de destaque no Direito Penal e na
Política Criminal dos mais diversos países. Destacou-se, ainda, que as

34 MENDONÇA, Andrey Borges de. Nova Reforma do Código de Processo Penal: comentada artigo
por artigo. São Paulo: Método, 2008, p. 244.
35 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de Processo Penal. 11.ed. São Paulo: Editora Saraiva,

2009, 229-230.

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reformas processuais penais – ocorridas em 2008 – consagraram uma


revalorização do ofendido no âmbito do processo penal.
Iniciou-se, então, a discussão sobre os objetos centrais desse trabalho,
quais sejam, a questão da reparação do dano no Direito Processual Penal
Brasileiro e a nova redação do art. 387, IV, da Lei Adjetiva Penal. No que
tange àquela questão, demonstrou-se que as leis brasileiras cuidam, há
algum tempo e com especial zelo, da reparação do dano do ofendido,
buscando, sempre que possível, incentivá-la. Foram, então, analisados,
doutrinária e jurisprudencialmente, os principais dispositivos legais sobre o
assunto.
No que tange à nova redação do art. 387, IV, do Código de Processo
Penal, mostrou-se que a inovação está na fixação do quantum a ser reparado
no bojo do processo penal. Antes da reforma, a vítima aguardava o trânsito
em julgado da decisão penal e ingressava na esfera cível em busca de seu
ressarcimento. Tratava-se de um título ilíquido e fazia-se necessária a
liquidação por artigos, com produção de provas do dano.
A nova redação do art. 387, IV, mudou essa concepção e tornou o
título líquido (ao menos em parte), na medida em que previu a
possibilidade de o juiz fixar um valor mínimo para a reparação dos danos
causados pela infração. Contudo, a vagueza desse dispositivo trouxe mais
questionamentos do que respostas aos juristas, fazendo-se imprescindível a
análise dos principais problemas práticos, sob a ótica dos princípios
constitucionais que norteiam o processo penal.
O primeiro deles consiste na aplicação da lei no tempo. Concluiu-se
que o dispositivo tem evidente carga penal e que isso impede a sua
imediata incidência, sob pena de fazer retroagir lei prejudicial ao réu. Afora
isso, se fosse possível a aplicação do instituto aos processos em andamento,
“estar-se-ia retirando do acusado a possibilidade de debater a questão, no
curso do processo, violando frontalmente os princípios constitucionais do
contraditório e da ampla defesa, vendo-se condenado à indenização, sem
que tivesse chance de rebatê-la”36.

36 TJRS, Apelação Crime nº 70027798511, 8ª Câmara Criminal, Relatora: Fabianne Breton Baisch,
julgado em 18/02/09. Também: TJRS, Apelação Crime nº 70027659226, 8ª Câmara Criminal,
Relator: Isabel de Borba Lucas, julgado em 28/01/09; TJRS, Apelação Crime nº 70027594563, 8ª
Câmara Criminal, Relator: Danúbio Edon Franco, julgado em 17/12/08; TJRS, Apelação Crime nº
70027241017, 8ª Câmara Criminal, Relator: Fabianne Breton Baisch, j. em 17/12/08; TJRS,
Apelação Crime nº 70027069822, 8ª Câmara Criminal, Relator: Isabel de Borba Lucas, julgado em
17/12/08.

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Outro problema, quiçá o mais grave, reside na necessidade, ou não,


de pedido pela parte interessada na inicial acusatória. Demonstrou-se que
as premissas do sistema acusatório e o princípio da correlação impõem que
haja pedido expresso e, ainda, a correlação entre o pedido formulado na
denúncia ou queixa e a decisão, sem prejuízo de toda a formação da prova a
ser feita na fase instrutória do processo penal.
Discutiu-se, ainda, a legitimidade e o interesse recursal das partes e
do ofendido para recorrer da decisão que fixar, ou não, o quantum a ser
indenizado. Entendeu-se que têm legitimidade o réu, o Ministério Público, o
assistente de acusação e o querelante. No que tange ao Parquet, demonstrou-
se que falta, em regra, interesse recursal, por se tratar de questão
patrimonial e, portanto, disponível.
Ressaltou-se, no curso do trabalho, que o ideal é que a discussão
acerca da reparação do dano não seja travada no processo penal, mas sim
em ação civil. Isso porque trazer esta discussão representa uma violação de
princípios básicos do processo penal e de toda e qualquer lógica jurídica.
“Desvirtua o processo penal para buscar a satisfação de uma pretensão que
é completamente alheia a essa função, estrutura e princípios
informadores”37.
Enfim, parecem totalmente inadequadas a apuração e a determinação
de danos materiais e/ou morais no bojo de um processo criminal. Ao trazer
tal possibilidade, o legislador incrementou o polo acusador e fragilizou o
defensivo. Isso porque, como bem observa NEREU GIACOMOLLI, a Acusação
terá interesse em produzir provas para a fixação da indenização, enquanto a
Defesa terá mais uma preocupação, além de demonstrar a necessidade de
absolvição38.
O dispositivo deveria, então, ser expurgado do Código de Processo
Penal para que a indenização fosse discutida, tão-somente, no âmbito cível.
Isso, provavelmente, não ocorrerá, até porque o Anteprojeto traz, ainda
mais, a discussão para o processo penal. Diante disso, urge, ao menos, que
sejam observadas as premissas do sistema acusatório, em especial a inércia
judicial.

37 LOPES JÚNIOR, Aury. Direito Processual Penal e sua Conformidade Constitucional. Volume 1. 3.ed. Rio
de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2008, p. 97.
38 GIACOMOLLI, Nereu José. Reformas (?) do Processo Penal. Considerações Críticas. Rio de Janeiro:

Editora Lumen Juris, 2008, p. 110.

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TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de Processo Penal. 11.ed. São Paulo: Editora
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45
DIREITO PENAL, LITERATURA E
REPRESENTAÇÕES
F ABIO R OBERTO D’A VILA *

E pelo pé de minha vontade retornei para a prisão. Dentro e fora, já eu


era conhecido de todos, presos e guardas. Sou irmão legítimo dos que
não têm família. Eles sempre me dedicaram amizades, autenticadas
com provas. Me traziam revistas com fotografias de mulher branca.
Eu antes me divertia com uma dessas fotografias, o corpo dessa mulher
me era muito manual. Mas me cansei de imaginadelas. Ultimamente o
que fazia? Punha a fotografia dessa mulher em cima do armário e lhe
rezava. Faz conta era Nossa Senhora dos Qualqueres. Eu ficava assim,
joelhado, com vontade de pedir, o pedido me vinha à boca mas eu
engolia como se fosse só saliva. E fiz tanto isso que me esqueceu todos
os pedidos que eu queria comendar (MIA COUTO. Contos do Nascer da
Terra, p.29).
À margem do pretensioso tecnicismo característico de alguns espaços
de juridicidade, a literatura continua a dar vida a mundos imaginários, a
parir realidades fantásticas, em que o Direito é constantemente
(re)inventado, (re)estruturado, (re)fundamentado. O ato de escrever é, em
seu seio, sem dúvida, expressão da mais intensa e humana liberdade. De
uma liberdade tal que, alheia às objeções científicas do nosso tempo, é capaz
de inventar a si própria e, consigo, figuras tão humanas que, em sua
realidade ficcional, são capazes, muitas vezes, de arrastar toda a
compreensão civilizacional de um tempo. A literatura inventa mundos,
inventa sóis e luas, dias e noites, e inventa também homens que, consigo,
carregam as imperfeições de sua indissociável humanidade.
Nenhum lugar, nem tempo, poderia ser melhor para compreender a
complexidade do homem em sua vivência individual e social do que o não

* Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais da PUCRS. Doutor em Ciências


Criminais pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Pós-Doutor em Ciências
Criminais pela Universidade de Frankfurt am Main. Advogado Criminal.

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lugar e o não tempo únicos do gesto criativo e, sob alguma perspectiva,


descomprometido, da narrativa literária. Esse, por certo, é o espaço ideal
para recolocar, incessantemente, as questões perenes do Direito Penal, sem,
todavia, a necessidade de um arranjo técnico-científico de ideias, sem a
exigência de um discurso lógico e não contraditório, sem a pretensão, já, de
partida sabidamente inalcançável, de justiça, completude e resolução. À
literatura, em seu lúdico espaço inventivo, são permitidos o desencontro, a
contradição, a contingência, e, em sua inerente imperfeição, se faz mais
próxima do modo de ser humano e, descomprometida com respostas, se
faz, igualmente, arte de descrever a humanidade dos homens.
Talvez seja, de fato, o mundo literário – como tantos assim o querem –
nada mais que um espaço de fuga, um lugar fantástico, desprendido da
realidade nua sobre a qual se debruça o Direito em sua vontade de ciência,
de verdade e de justiça. Contudo, mesmo esse mundo desencantado,
embrutecido e, por que não, muitas vezes desumanizado, não percorre
caminho diverso daquele já marcado pelos sulcos da inventiva literária. É
também ele invariavelmente construído por representações, não raramente
fantásticas, do homem, em sua inalcançável tarefa de compreender a si
próprio e ao mundo que como tal reconhece. E o faz, de forma
acintosamente fragmentária, ao reconhecer validade não naquilo que se vê,
mas na forma através da qual se olha, construindo, arbitrariamente, olhares
legítimos e ilegítimos, constitutivo de mundos possíveis e impossíveis.
Por vezes, o Direito e seus intérpretes, com a insalubre missão de nos
desvelar o mundo, são, tal qual o guia do cego Estrelinho, Gigito Efraim,
aqueles que nos tomam pela mão, conduzindo-nos, “desvisitados”, “por
tempos e idades”. Contudo, diferente de Gigito, esquecendo de inventar o
que não existe, fá-lo, na forma de sua irmã Infelizmina, “sem sabedoria de
inventar”, na crueza do por nós denominado “senso e realidade”1. “E era
como se Estrelinho, por segunda vez, perdesse a visão”. “Aquele mundo a
que o cego se habituara agora se desiluminava. Estrelinho perdia os brilhos
da fantasia. Deixou de comer, deixou de pedir, deixou de queixar”2. Gigito,
por sua conta, “o que descrevia era o que não havia. O mundo que ele
minuciava eram fantasias e rendilhados. A imaginação do guia era a mais
profícua que papaeira. O cego enchia a boca de águas: – Que maravilhação
esse mundo. Me conte tudo, Gigito!”3.

1 COUTO, Mia. Estórias Abensonhadas. Contos, 7. ed., Lisboa: Caminho, p.32.


2 COUTO, Mia. Estórias Abensonhadas, p.32
3 COUTO, Mia. Estórias Abensonhadas, p.29.

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E nessa vertigem de uma realidade exangue, a que se impõe o Direito,


vertigem de uma única e verdadeira realidade, compete, muitas vezes, a
nós, “desvisitados”, em nossa cegueira, tomar o nosso guia pela mão,
reinventando a humanidade dos homens e seu mundo. E isso antes que a
nossa própria guia, Infelizmina, pelas perdas que a sua própria realidade
lhe impõe, desapeteça-se de viver.
“A partir dessa morte ela só tristonhava, definhada. E assim
ficou sem competência para reviver. Até que a ela se chebou o cebo
e lhe conduziu para a varanda da casa. Então, iniciou de descrever
o mundo, indo além dos vários firmamentos. Aos poucos foi
despontando um sorriso: a menina se sarava da alma. Estrelinho
miraginava terras e territórios. Sim, a moça, se concordava. Tinha
sido em tais paisagens que ela dormira antes de ter nascido.
Olhava aquele homem e pensava: ele esteve em meus braços antes
da minha actual vida. E quando já havia desenvencilhado da
tristeza ela lhe arriscou de perguntar: – Isso tudo, Estrelinho? Isso
tudo existe aonde? E o cego, em decisão de passo e estrada, lhe
respondeu: – Venha, eu vou-lhe mostrar o caminho!4”
É nessa dimensão fantástica, nessa profunda e, ao olhar técnico,
inapreensível dimensão do homem, que parece deitar o ser o mais íntimo da
sua existência. Diríamos aqui, com STEIN, que o problema do ser jamais será
determinado objetivamente, permitindo apenas a vigia da sua manifestação
inesgotável5. Mas diríamos também, a acompanhar FERNANDO PESSOA, que
é exatamente nessa dimensão noturna do homem, na sua face mais lunar,
onde reside o sutil, porém constante, chamado da poesia, pela voz,
encharcada de simbolismo, do próprio diabo. O poeta, diz Mefisto, é aquele
que é por ele tocado.
“A música, o luar e os sonhos são as minhas armas mágicas.
Mas por música não deve entender-se só aquela que se toca, se não
também aquela que fica eternamente por tocar. Por luar, ainda,
não se deve supor que se fala só do que vem da lua e faz as árvores
grandes perfis; há outro luar, que o mesmo sol não exclui, e
obscurece em pleno dia o que as coisas fingem ser. Só os sonhos

4 COUTO, Mia. Estórias Abensonhadas, p.33.


5 STEIN, Ernildo. Uma Breve Introdução à Filosofia, Ijuí: Ed. Unijuí, 2002, p.22.

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são sempre o que são. É o lado de nós em que nascemos e em que


somos sempre naturais e nossos”6.
“Desde o princípio do mundo que me insultam e me caluniam.
Os mesmos poetas – por natureza meus amigos – que me
defendem, me não têm defendido bem. Um – um inglês chamado
Milton – fez-me perder, com parceiros meus, uma batalha
indefinida que nunca se travou. Outro – um alemão chamado
Goethe – deu-me um papel de alcoviteiro numa tragédia de aldeia.
Mas eu não sou o que pensam. As Igrejas abominam-me. Os
crentes tremem do meu nome. Mas tenho, quer queiram quer não,
um papel no mundo. Nem sou revoltado contra Deus, nem o
espírito que nega. Sou o Deus da imaginação, perdido porque não
crio. É por mim que, quando criança, sonhaste aqueles sonhos que
são brinquedos; é por mim que, quando mulher já, tiveste a
abraçar-te de noite os príncipes e os dominadores que dormem no
fundo desses sonhos. Sou o Espírito que cria sem criar, cuja voz é
um fumo e cuja alma é um erro. Deus criou-me para que eu o
imitasse de noite. Ele é o Sol, eu sou a Lua. Minha luz paira sobre
tudo quanto é fútil ou findo, fogo-fátuo, margens de rio, pântanos
e sombras”7.
A essa sensível inapreensão da plenitude do que somos segue-se,
pois, uma incompleta e imperfeita representação de nós próprios.
Percebemo-nos no estreito fragmento do nosso existir. Há, por isso, que se
dar razão a Nietzsche, ao afirmar que, em que pese a nossa crença em saber
algo sobre as coisas, quando nos referimos a árvores, cores, neve e flores,
em verdade “nada possuímos senão metáforas das coisas, que não
correspondem, em absoluto, às essencialidades originais”8.
Essencialidades estas, porém, que, conquanto inalcançáveis, se abrem
às curiosas e constantes visitações de uma inventiva literária, a qual,
sabedora dos limites do seu olhar, imprime tal leveza e gentileza ao ato de
conhecer que termina, ao fim e ao cabo, por converter-se em convite à
própria revelação do ser. Em uma espécie de diálogo silencioso, em uma
espécie de dança lúdica, as coisas, em sua essência, permitem-se

6 PESSOA, Fernando. A Hora do Diabo, edição de Teresa Rita Lopes, Lisboa: Assírio e Alvim, 1997,
p.18.
7 PESSOA, Fernando. A Hora do Diabo, p.30 s.
8 NIETZSCHE, apud, BARROS, Fernando de Moraes. Introdução, in: NIETZSCHE, F. Sobre a Verdade e a

Mentira, org. e tradução de Fernando de Moraes Barros, São Paulo: Hedra, 2008, p.15.

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brevemente visitar. Um acordo velado, todavia, nega-lhe cientificidade a


razões e fundamentos.
O esquecimento dessa condição substancial da vida e de seus atores
faz, de qualquer leitura que daí se ensaie, o esboço de um mundo tão
fantástico quanto o é aquele no qual se insinua e se diverte a manifestação
literária. O abandono da dimensão existencial das coisas e do pensar
reflexivo que lhe é ínsito faz do homem menos do que ele é e do mundo o
triste reflexo da sua incompreensão. Desumaniza-se o homem, desencanta-
se o mundo.
Não se pode, definitivamente, entregar-se a este mundo
desencantado. Não se pode admitir, de forma inerte, aquilo que denominou
HEIDEGGER de “fuga aos pensamentos”9. Abandonar-se a um mundo
técnico, à hegemonia de um pensamento que calcula, à indiferença para
com a reflexão, converter-nos-ia em um homem que “teria renegado e
rejeitado aquilo que tem de mais próprio, ou seja, o facto de ser um ser que
reflecte. Por isso o importante é salvar a essência do homem. Por isso o
importante é manter desperta a reflexão”10.
Entregarmo-nos à insipidez de um pensar que, afastado da essência,
se estabelece nas ideias de função, eficácia e utilidade, como bem quer o
pensamento que a tudo funcionaliza, é possibilitar a construção de uma
ordem jurídica e de um Direito penal, no qual os homens valem na medida
em que são úteis, no qual os homens se tornam o resultado do cálculo de
sua utilidade social. Um mundo no qual reconheceríamos razão a
Raskólnikov ao matar a imprestável usurária Aliona Ivánovna. Um mundo
ao qual não se nega lugar à seletividade e à higienização social,
lamentavelmente, tão caras à nossa história recente.
“– Permite que te faça uma pergunta séria? – disse o estudante,
ainda um pouco exaltado. – É claro que, há pouco, eu falava de
brincadeira, mas olha: de um lado uma velha estúpida, imbecil,
inútil, má, doente, que não é útil a ninguém e que até, pelo
contrário, a todos prejudica; que nem ela mesma sabe para que
vive e que amanhã acabará por morrer fatalmente... Compreendes?
Compreendes?

9 HEIDEGGER, Martin. Serenidade, trad. de Maria Madalena Andrade e Olga Santos, Lisboa: Piaget,
p.12.
10 HEIDEGGER, Martin. Serenidade, p.26.

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– Sim, compreendo – respondeu o oficial olhando atentamente


para o seu acalorado companheiro.
– Pois então continua a me escutar. Do outro lado, energias
jovens, frescas, que se gastam em vão, sem apoio, e isso aos
milhares e em toda a parte. Mil obras e boas iniciativas se
poderiam fazer com o dinheiro que essa velha vai deixar ao
mosteiro. Centenas, talvez milhares de existências conduzidas ao
bom caminho; dezenas de famílias salvas da miséria, da
dissolução, da ruína, da corrupção, dos hospitais de doenças
venéreas. E tudo isso com o seu dinheiro. Matá-la, tirar esse
dinheiro dela, para com ele dedicar depois ao serviço de toda a
humanidade e ao bem geral. Que te parece? A mancha de um só
crime não ficaria apagada, insignificante, com milhares de boas
ações? Por uma vida... mil vidas salvas da miséria e da ruína! Uma
morte, mas, em troca, mil vidas... É uma questão de aritmética. E o
que pesa nas balanças vulgares da vida essa velhota tísica,
estúpida e má? Não mais que a vida de um piolho, de uma barata,
e pode ser que ainda menos, já que se trata de uma velha má. Ela
se alimenta da vida alheia, é má; não faz muito tempo que mordeu
de raiva um dedo de Lisavieta; por pouco não o arrancou.
– Com certeza que não merece viver – observou o oficial –, mas
a natureza é assim.
– Ah, meu amigo, sim; mas pode-se melhorar a natureza e
dirigi-la, e sem isso nós afundaríamos em preconceitos! Sem isso
não teria nascido nem um só grande homem...”11.
Representações que se abrem a homens diversos, a seres, de um lado,
vulgares, de outro extraordinários.
“... A diferença é que eu nem de longe afirmava que os homens
extraordinários sejam obrigados ou tenham infalivelmente de
cometer todo o gênero de atos desonestos, segundo o senhor diz.
Parece-me até que a censura não o teria deixado passar. Eu me
limitava simplesmente a insinuar que os indivíduos
extraordinários tinham direito – claro que não um direito oficial –
a autorizar a sua consciência a saltar por cima de certos obstáculos,
e unicamente nos casos em que a execução do seu desígnio (às
vezes salvador, talvez, para a humanidade) assim o exigisse. O

11 DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Crime e Castigo, trad. de Natália Nunes, Porto Alegre: L&PM, 2007, p.79.

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senhor entendeu por bem me dizer que o meu artigo não estava
claro; eu estou disposto a explicá-lo até onde puder. É provável
que eu não me engane supondo que esse é o seu desejo. A meu
ver, se as descobertas de Kepler e de Newton, em conseqüência de
certos acontecimentos, não tivessem chegado ao conhecimento dos
homens de outra maneira senão mediante o sacrifício da vida de
um, dez, cem ou mais homens que se opusessem a essa descoberta
ou se atravessassem no seu caminho como obstáculos, Newton,
então, teria tido o direito, e até o dever... de eliminar esses dez ou
esses cem homens, a fim de que as suas descobertas chegassem ao
conhecimento de toda a humanidade. Disso não se conclui, no
entanto, de maneira alguma, que Newton tivesse qualquer direito
de assassinar quem muito bem lhe parecesse, à toa, nem de ir
todos os dias roubar em praça pública. (...) Eu só tenho fé na minha
teoria essencial, que é aquela que diz concretamente que os
indivíduos se dividem, segundo a lei da natureza, em duas
categorias: a inferior (a dos vulgares), isto é, se me permite a
expressão, a material, que unicamente é proveitosa para a
procriação da espécie, e a dos indivíduos que possuem o dom ou a
inteligência para dizerem no seu meio uma palavra nova. (...) A
meu ver eles têm a obrigação de ser obedientes, por ser esse o seu
destino e por não ter, de maneira nenhuma, para eles, nada de
humilhante. A segunda categoria é composta por aqueles que
infringem as leis, os destruidores e os propensos a isso, a julgar
pelas suas qualidades. Os crimes destes são, naturalmente,
relativos e muito diferentes; na sua maior parte exigem, segundo
os mais diversos métodos, a destruição do presente em nome de
qualquer coisa melhor. Mas se necessitarem, para bem da sua
teoria, saltar ainda que seja por cima de um cadáver, por cima do
sangue, então, no seu íntimo, na sua consciência, eles podem, em
minha opinião, conceder a si próprios a autorização para saltarem
por cima do sangue, atendendo unicamente à teoria e ao seu
conteúdo, repare bem. (...)”12.
A essa precisa forma de ver o mundo corresponde, bem se sabe, uma
igual forma de ver as coisas do Direito e as coisas do Direito Penal, e contra
isso, contra essa forma de instrumentalizar a tudo e a todos, muito já se tem

12 DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Crime e Castigo, p.285 ss.

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dito e insistentemente reiterado: o homem e o mundo são mais do que a sua


estreita utilidade, e o Direito, mais do que uma ordem de otimização das
vivências de um mundo funcionalizado.
E isso conquanto a não raramente redutora lente da cientificidade, em
pouca prudência, insista em representações ainda mais desumanizadas do
próprio homem. Sem qualquer cerimônia, concede azo a um novo
Menschenbild, sob o respaldo, pretensamente incontestável respaldo, da
“verdade” advinda das ciências naturais. Sob as vestes da neurociência,
propõe-se o fim do livre-arbítrio. O livre-arbítrio não existiria e nunca teria
existido. Tratar-se-ia de uma mera ilusão, agora revelada pela pesquisa
neurobiológica13. As nossas ações, relata-nos WILLASCHEK, não passariam de
“produtos de processos e fatores naturais: nosso patrimônio, nossa
educação e socialização, bem como os complexos processos neurológicos
em nosso cérebro”14. E a partir desse entendimento, a tradicional
compreensão do homem responsável por sua ações, do homem que, diante
de razões e contrarrazões, é capaz de decidir-se livremente, deve ser
substituída por uma imagem de homem alheia a conceitos de
responsabilidade, merecimento e culpabilidade15.
Ora, como é por todos sabido, a isso não resistem as noções mais
elementares de responsabilização criminal ou mesmo civil. A isso não
resiste o próprio Direito. E as relações em sociedade são inapelavelmente
lançadas em um limbo cinza, onde nada vale ou desvale. Tudo é o que é,
sem direito a valor ou desvalor. Vertemo-nos na insipidez dos processos de
um mundo mecanizado, pois o desencantamento nunca parece suficiente. É
preciso, para o nosso dissabor, atingir níveis de cinza ainda mais intensos.
Representações e propostas que, todavia, se bem vemos, não são de
todo o mal. Pois “só podemos ficar surdos pelo facto de ouvirmos e
envelhecer pelo facto de termos sido jovens, só podemos tornarmo-nos
pobres-em-pensamentos ou mesmo sem-pensamentos em virtude de o
homem possuir, no fundo (Grund) da sua essência, a capacidade de pensar,
‘o espírito e a razão’, em virtude de estar destinado a pensar. Só podemos
perder ou, melhor, deixar de ter aquilo que, consciente ou
inconscientemente, possuímos”16. E a literatura será aqui, sempre, “not light,

13 WILLASCHEK, Marcus. “Der freie Wille. Eine Tatsache des praktischen Lebens“, Forschung
Frankfurt, 4 (2005), p.51.
14 WILLASCHEK, Marcus. “Der freie Wille“, p.51.
15 WILLASCHEK, Marcus. “Der freie Wille“, p.51.
16 HEIDEGGER, Martin. Serenidade, p.12.

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but rather darkness visible”, na singular e forte tradução de PESSOA: “mas


essas chamas lançam, não luz, mas sim treva visível”17.
Por bem, sempre haverá quem, como o avô, levar-nos-á a ver os
panos brancos da outra margem, em meio à névoa do tempo e da história,
permitindo avistações de mundos hoje a poucos visíveis. Mundos cuja
compreensão exige olhos que se abrem para dentro, para dentro de nós, de
nossa mais própria e íntima humanidade. Olhos de sonhos. Olhos lunares.
“Nessa noite, ele me explicou suas escondidas razões. Meus
ouvidos se arregalavam para lhe decifrar a voz rouca. Nem tudo
entendi. No mais ou menos, ele falou assim: nós temos olhos que
se abrem para dentro, esses que usamos para ver os sonhos. O que
acontece, meu filho, é que quase todos estão cegos, deixaram de
ver esses outros que nos visitam. Os outros? Sim, esses que nos
acenam da outra margem. E assim lhes causamos uma total
tristeza. Eu levo-lhe lá nos pântanos para que você aprenda a ver.
Não posso ser o último a ser visitado pelos panos”18.
E sempre haverá quem no homem veja também a semente do sonho; e
no sonhar, a eterna gravidez da sua humanidade. E ainda que ao sonho seja
relegado apenas o não lugar e o não tempo ficcionais da narrativa literária,
este inventivo território, não se pretendendo verdadeiro, tornar-se-á
permanente lugar de refúgio, de descanso, de recomeço, onde pode o
homem abandonar a mais íntima semente de si, na certeza de que, mesmo
após o mais longo e rigoroso inverno da guerra, alguém em algum lugar
estará a aguardar ventos de primavera.
“Depois da guerra, pensava eu, restavam apenas cinzas,
destroços sem íntimo. Tudo pesando, definitivo e sem reparo.
Hoje sei que não é verdade. Onde restou o homem sobreviveu a
semente, sonho a engravidar o tempo. Esse sonho se ocultou no
mais inacessível de nós, lá onde a violência não podia golpear, lá
onde a barbárie não tinha acesso. Em todo este tempo, a terra
guardou, inteiras, as suas vozes. Quando se lhes impôs o silêncio
elas mudaram de mundo. No escuro permaneceram lunares.
Estas estórias falam desse território onde nos vamos refazendo
e vamos molhando de esperança o rosto da chuva, água

17 PESSOA, Fernando. A Hora do Diabo, p.13 (epígrafe).


18 COUTO, Mia. Estórias Abensonhadas, p.16.

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abensonhada. Desse território onde todo homem é igual, assim:


fingindo que está, sonhando que vai, inventando que volta.”19

19 COUTO, Mia. Estórias Abensonhadas, p.7.

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A SEMI-IMPUTABILIDADE SOB O ENFOQUE
DA NEUROCIÊNCIA COGNITIVA
S ILVIO J OSÉ L EMOS V ASCONCELLOS *
R OBERTA S ALVADOR S ILVA **
R OSSANA A NDRIOLA P EREIRA ***
K ARLA R AFAELA H AACK ****
G ABRIEL J OSÉ C HITTÓ G AUER *****

Resumo: A psicopatia refere-se a um transtorno do


desenvolvimento associado a disfunções emocionais e
comportamento antissocial. Estudos demonstram que
indivíduos com psicopatia experimentam emoções de um modo
diferente, demonstrando diferenças tanto qualitativas como
quantitativas no que se refere à habilidade para ter experiências
emocionais e processar manifestações afetivas no contexto
social. Os autores examinaram esse transtorno na esfera do
Direito Penal. Pesquisas recentes no campo da Neurociência
Cognitiva e as implicações legais das diferentes deficiências em
termos de cognição social verificadas em psicopatas são
discutidas ao longo deste trabalho. Pode-se arguir que prejuízos
funcionais associados ao quadro podem diminuir o nível de
responsabilidade dos mesmos.

Abstract: The psychopathy is a developmental disorder


associated with specific forms of emotional disfunction and
antisocial behavior. Several researches has demonstrated that
psychopathic individuals experience emotions differently,
showing qualitative and quantitative differences in their ability

* Professor do Pós-Graduação em Ciências Penais da PUCRS e do curso de Psicologia das


Faculdades Integradas de Taquara.
** Acadêmica do curso de Psicologia das Faculdades Integradas de Taquara.
*** Acadêmica do curso de Psicologia das Faculdades Integradas de Taquara
**** Acadêmica do curso de Psicologia das Faculdades Integradas de Taquara.
***** Professor do Programa de Pós-Graduação de Psicologia da PUCRS

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to experience emotion and process affective manifestations in


social context. The authors examined this disorder in the Penal
Law. Recent researches in cognitive neuroscience and the legal
implications of the social cognitive deficits are discussed in this
work. It can be argued that the functional impairments
associated with this disorder can diminish the responsibility.

I NTRODUÇÃO
O termo psicopatia refere-se a uma síndrome cujos principais
sintomas envolvem uma baixa responsividade emocional, bem como a
manifestação, em diferentes níveis, de comportamentos antissociais. Na
esfera do Direito Penal, qualquer alusão a essa categoria nosológica
específica está longe de gerar consenso sobre a possibilidade de imputação
total ou parcial de culpa diante de qualquer ato antijurídico que possa estar
relacionado ao quadro. Recorrentes atribuições de semi-imputabilidade ou
mesmo de imputabilidade ao psicopata têm gerado inúmeras controvérsias,
demonstrando que o diálogo entre as ciências da mente e o Direito Penal
ainda depende de avanços significativos referentes a essa mesma questão.
O presente trabalho tem por objetivo tecer considerações sobre o
estado atual de conhecimento a respeito do assunto como forma de melhor
instrumentalizar os pensadores e operadores do Direito quanto ao
problema da semi-imputabilidade atribuída aos psicopatas. Mostrar-se-á,
com base em uma revisão da literatura científica publicada nas últimas
décadas, que a psicopatia está associada a disfunções cerebrais específicas.
Tais achados sugerem que essas mesmas disfunções podem, de diferentes
maneiras, afetar a capacidade de um indivíduo orientar suas ações, ainda
que se mantenha capaz de compreender a ilicitude das mesmas. Em termos
gerais, uma parte significativa desses trabalhos insere-se no programa de
pesquisa da Neurociência Cognitiva que tem como uma das suas propostas,
examinar a funcionalidade cerebral considerando o processamento de
informações que o cérebro é capaz de executar.
Por outro lado, os autores também elucidam o fato de que tais
achados não corroboram qualquer tipo de determinismo genético. Nesses
termos, o trabalho também se mostra capaz de explicar melhor algumas
questões relativas à etiologia desse transtorno de personalidade. Assinala,
dessa forma, que uma perspectiva biopsicossocial sobre o problema é capaz
de oferecer explanações mais promissoras, ainda que não se mostre

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suficiente para esgotar as controvérsias sobre a imputabilidade parcial ou


total de culpa a indivíduos com psicopatia.
Como forma de melhor encadear os principais postulados
apresentados, este artigo abarca, inicialmente, uma breve análise da
evolução do conceito de psicopatia, discorrendo, na sequência, sobre
algumas premissas relativas à semi-imputabilidade e sua aplicabilidade no
âmbito do Direito Penal. Uma síntese sobre achados científicos envolvendo
diferentes tipos de disfuncionalidade cerebral associados à psicopatia
também faz parte deste trabalho. Na parte final, é apresentado um exame
das implicações mais diretas dos trabalhos analisados diante do problema
que está sendo enfocado.
Pode-se dizer que este estudo procura agregar informações que se
revelam de fundamental importância para o debate, permitindo também
que os operadores e pensadores do Direito e pesquisadores de áreas afins
possam aprofundar um olhar crítico sobre um tema verdadeiramente
polêmico. Desse modo, como forma de preservar o caráter interdisciplinar
desse diálogo, os autores acrescem alguns comentários subsequentes diante
de qualquer terminologia mais específica utilizada, aludindo também
algumas particularidades ou implicações diretas dos dados mencionados.

C ONCEITUAÇÃO E A VALIAÇÃO DA P SICOPATIA


Atribui-se a R. Pichard a primeira utilização do termo “loucura
moral” para caracterizar indivíduos que se mostravam indiferentes aos
sentimentos alheios, sem, no entanto, apresentarem sintomatologia
condizente com outros quadros de “loucura” (GAUER e VASCONCELLOS,
2003). A partir da classificação das doenças mentais elaboradas por
Kraepelin em 1904, o termo personalidade psicopática é introduzido,
fazendo uma alusão mais direta a um distúrbio de personalidade.
Entretanto, é somente a partir do trabalho de Cleckley, publicado em 1964,
que o transtorno passa a ser compreendido a partir de critérios diagnósticos
mais precisos (GAUER e VASCONCELLOS, 2003).
Na atualidade, a palavra psicopatia não consta no Manual
Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais (DSM-IV-TR). O referido
manual descreve, de outro modo, o Transtorno de Personalidade Anti-
Social (TPAS) cuja característica essencial é um padrão invasivo de
desrespeito e violação aos direitos dos outros, que inicia na infância ou na
adolescência e continua na idade adulta. Na classificação dos transtornos

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mentais e do comportamento da CID-10 é possível encontrar ainda o termo


Transtorno Dissocial para descrever uma síndrome equivalente (GAUER e
VASCONCELLOS, 2003).
Determinados estudos apontam, de outro modo, que a psicopatia não
se caracterizaria a partir de uma total equivalência com o TPAS, ainda que
exista uma significativa sobreposição no que se refere às delimitações de
cada uma dessas duas categorias. Embora os critérios diagnósticos do TPAS
também acabem por contemplar os dois grandes agrupamentos de sintomas
que caracterizam a psicopatia, trabalhos mais recentes sugerem que o
conceito de psicopatia é um pouco mais amplo (BLAIR, 2003). Aspectos mais
diretamente ligados a manifestações comportamentais na esfera
interpessoal, tais como superestima, arrogância e afeto superficial são
considerados para a avaliação da psicopatia, ainda que não sejam
diretamente mencionados como critérios diagnósticos para o TPAS.
O Psychopathy Checklist – Revised (PCL-R) e sua versão para jovens,
o Psychopathy Checklist: Youth Version (PCL:YV) constituem-se como
instrumentos internacionalmente usados para avaliar esse transtorno,
apresentando bons índices de confiabilidade para tanto (FORTH, KOSSON e
HARE, 2003). O uso de uma escala como essa, a partir do início dos anos
oitenta, gerou avanços não apenas na forma de diagnosticar, como também
de mensurar a psicopatia. Nesse sentido, faz-se necessário destacar uma
observação inicial sobre o próprio conceito, que acaba por ter implicações
diretas para as análises propostas neste trabalho. Ou seja, com base nos
estudos decorrentes desse instrumento, a psicopatia passou a ser
compreendida também como uma variável contínua. O que significa dizer
que há níveis distintos e quantificáveis referentes à presença de
comportamentos antissociais e ausência de determinadas respostas afetivas
que podem variar de um sujeito para outro, ainda que ambos apresentem o
mesmo diagnóstico. Mais do que ter ou não um transtorno dessa natureza, a
ciência passou a considerar também os diferentes graus em que os sintomas
que o perfazem estão presentes.

O S P RESSUPOSTOS DA S EMI -I MPUTABILIDADE


A semi-imputabilidade refere-se a uma culpabilidade reduzida
devido à constatação de uma dificuldade mental, seja esta em razão de um
prejuízo da saúde mental ou por déficits no desenvolvimento mental do
indivíduo. O Código Penal prevê essa condição no parágrafo único do
artigo 26:

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“A pena pode ser reduzida de um a dois terços, se o agente, em


virtude de perturbação da saúde mental ou por desenvolvimento
mental incompleto ou retardado, não era capaz de entender o
caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse
entendimento”.
A semi-imputabilidade pode ser traduzida como uma imputabilidade
que se diferencia devido à circunstância em que se encontra o estado mental
do sujeito que praticou o ato ilícito. Diz-se em relação a esse, que não tem
discernimento suficiente para ter consciência dos seus atos, devido a um
desenvolvimento mental que acaba por ocorrer de forma mais precária
diante de um transtorno mental. Segundo TRINDADE (2009), o semi-
imputável obtém uma responsabilidade diminuída por não ter plena
compreensão e autodeterminação dos seus atos, os quais demandariam uma
condição que não possui inteiramente.
Conforme CAPEZ (2001), o agente semi-imputável é responsável por
se dar conta da ilegalidade de sua conduta, porém há uma subtração da
sanção normalmente regulamentada por ter agido com culpabilidade
diminuída em consequência de suas condições pessoais. A partir da
averiguação da incapacidade do praticante de resistir aos impulsos
passionais e sucumbir ao estímulo criminal, o juiz poderá reduzir sua pena
como cita o referido artigo 26 ou impor uma medida de segurança,
conforme propõe o artigo 98:
“Na hipótese do parágrafo único do art. 26 deste Código e
necessitando o condenado de especial tratamento curativo, a pena
privativa de liberdade pode ser substituída pela internação, ou
tratamento ambulatorial, pelo prazo mínimo de um a três anos,
nos termos do artigo anterior e respectivos §§ 1º e 4º”.
Essa medida de segurança não é estabelecida como caráter punitivo, e
sim curativo. Por conseguinte, deve primar pelo respeito à pessoa humana,
possibilitando ao indivíduo, que se encontra segregado, a reintegração na
sociedade (TRINDADE, 2009).
Dessa forma, sendo imposta a medida de segurança, ao semi-
imputável são aplicadas as mesmas condições que ao inimputável, ou seja, a
internação ou tratamento ambulatorial serão por tempo indeterminado, só
podendo ser revertidas mediante uma perícia médica, podendo envolver a
avaliação interdisciplinar para verificar se a periculosidade do indivíduo
está cessada.

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O C ÉREBRO DO P SICOPATA E A LGUMAS Q UESTÕES DE


P ROCESSAMENTO
Dizer apenas que o cérebro do psicopata é diferente do cérebro de
uma pessoa sem o transtorno demonstra ser uma afirmação aparentemente
reducionista e pouco elucidativa. Destacar tão-somente algumas diferenças
estruturais pode em nada contribuir para um diálogo, entre o Direito e as
ciências da mente, relativo ao problema da semi-imputabilidade. Afinal,
faz-se necessário considerar, como questão inicial, a possibilidade dessas
diferenças resultarem ou não em formas alteradas de interação social. Dito
de outro modo, mais do que qualquer diferença anatômica passível de ser
investigada, importa compreender, para esses fins, a existência ou a
inexistência de disfuncionalidades específicas que indiquem que psicopatas
são tão ou menos capazes de orientar seus atos do que as pessoas sem
qualquer transtorno mental. Estudos recentes indicam que essas mesmas
disfuncionalidades existem, podendo ser investigadas com base em estudos
contemplando a Neurociência Cognitiva.
Duas regiões cerebrais têm, em estudos recentes, sido apontadas
como os principais locus de alterações cerebrais em psicopatas quando
comparados a grupo controle formado por indivíduos sem esse mesmo
diagnóstico. Essas regiões dizem respeito ao córtex pré-frontal ventromedial
e a amígdala (GORDON, BAIR e END, 2004; BLAIR, 2006). A primeira está
situada na parte mais frontal do cérebro e exerce um papel chave na
capacidade de representar informações que são utilizadas no processo de
tomada de decisão (BLAIR, 2008). A segunda pode ser chamada de “porta de
entrada do sistema límbico” (RAMACHANDRAN e BLAKESLLE, 2002) e
desempenha importantes funções para o processamento de informações
com conteúdo emocional (BLAIR, 2008). A investigação de desempenhos
específicos relacionados à ativação dessas mesmas áreas cerebrais tem
gerado achados concordantes.
Como exemplo, pode-se citar estudos envolvendo a identificação de
emoções básicas, bem como os processos decisórios em psicopatas.
Dificuldades no que se refere à identificação de emoções negativas tais
como medo e tristeza expressas pela face tem sido encontradas em
psicopatas quando comparados a grupo controle (BLAIR, COLLEDGE,
MURRAY e MITCHEL, 2001; BLAIR et. Al., 2004). Alterações envolvendo
processos de tomada de decisão também encontram respaldo na literatura
científica (NEWMAN e KOSSON, 1986).

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Achados recentes indicam que dois processos cruciais para a


socialização revelam-se, dessa forma, deficitários em psicopatas. De um
lado, tais indivíduos mostram-se menos responsivos às emoções alheias,
uma vez que os principais substratos neurais que viabilizam tais respostas
encontram-se alterados. De outro, a própria capacidade de inibir e decidir
sobre a manifestação de comportamentos pró ou antissociais gerenciada por
estruturas cerebrais vinculadas também demonstra não ser a mesma do que
aquela que se pode observar em indivíduos sem o transtorno (BLAIR, 2008).
Isso significa dizer que algumas das alterações estruturais passíveis de
serem mapeadas a partir de estudos de neuroimagem envolvendo o cérebro
de psicopatas, podem ser igualmente inferidas a partir de testagens dos
seus correlatos cognitivos mais próximos (VASCONCELLOS, PICON, ÁVILA,
BORGES e GAUER, 2004). Já é possível, portanto, saber que a psicopatia
envolve algumas alterações cerebrais específicas.

O S D ETERMINISTAS T INHAM R AZÃO ?


Uma vez abordadas algumas especificidades relacionadas ao
funcionamento cerebral de indivíduos diagnosticados como psicopatas, é
possível pensar que achados recentes no campo da Neurociência acabariam
por sustentar certas concepções deterministas de outras épocas. Entretanto,
para responder se esses estudos corroboram uma visão determinista, é
necessário elucidar os tipos de determinismos mais e menos coerentes com
esses mesmos achados. Tais considerações permitem ainda melhor explorar
uma relativa incompletude do conceito de semi-imputabilidade e
reivindicar ainda uma compreensão biopsicossocial capaz de permitir
avanços nessa mesma discussão.
Em um primeiro momento, poder-se-ia pensar no fato de que
alterações comportamentais decorrentes de disfunções cerebrais sugerem-
nos um entendimento pautado exclusivamente pelo determinismo
neurobiológico. Resta, por outro lado, esclarecer o que, de fato, pode ser
entendido a partir da expressão determinismo neurobiológico.
Afirmar, por exemplo, que um comportamento é
neurobiologicamente determinado, não é o mesmo que afirmar que esse
mesmo comportamento seja geneticamente determinado. Com base na
primeira afirmação, infere-se que ocorrências cerebrais específicas geram,
por si só, comportamentos específicos. Mas, ao contrário do que pode
ocorrer diante da segunda afirmação, não se infere que ocorrências cerebrais
só possam ser geradas por uma cadeia de eventos genéticos. Em outras

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palavras, determinismo neurobiológico não é o mesmo que determinismo


genético e nem o mesmo que determinismo ambiental. A primeira
afirmação remete-nos ao fato de que tudo aquilo que acontece no cérebro é
condição necessária e presumivelmente suficiente para gerar um
comportamento. Independe, por sua vez, do próprio fato de que os
acontecimentos cerebrais tenham sido anteriormente determinados por
fatores genéticos e/ou ambientais. Constata-se apenas, com base nessas
considerações, que todo e qualquer comportamento é gerado no sistema
nervoso central e em nenhum outro lugar.
De outro modo, conforme salienta MICHAEL TOMASELLO, dentro dessa
perspectiva, “Não faz sentido opor natureza à educação, pois a educação é
uma das formas que a natureza pôde adotar” (TOMASELLO, p. 296, 2003).
Pode-se dizer “encontrou” para alcançar seus “propósitos” evolutivos,
favorecendo um certo nível de plasticidade cerebral capaz de receber
também interferências do meio. Nesses termos, encontrar, a partir das
pesquisas enfocadas, subsídios teóricos para postular o determinismo
neurobiológico não passaria de uma ilação, ainda que bastante plausível.
Em contrapartida, sustentar, a partir das mesmas pesquisas, qualquer tipo
de determinismo genético seria um erro de atribuição.
De forma mais peremptória, cabe destacar, portanto, que os achados
científicos apresentados não permitem concluir que psicopatas nasçam
psicopatas. Sugerem, de outra forma, que, tanto por influências genéticas,
como por influências ambientais, os indivíduos com esse transtorno
consolidam, ao longo de seu desenvolvimento, formas mais precárias de
processar e fazer uso das informações que fundamentam os processos de
interação social.

D IFERENTES G RAUS DE I MPUTABILIDADE ?


Constata-se que alguns operadores do Direito, em alguns casos,
orientam suas decisões considerando que determinados réus beneficiar-se-
iam de um possível diagnóstico de transtorno da personalidade tal como a
psicopatia. Postulam, em muitos casos, que os indivíduos passíveis de
serem incluídos nessa categoria nosológica teriam total condição de
compreender o caráter ilícito dos atos que praticam e de determinarem-se
de acordo com essa compreensão. Também é um fato que a condição de
semi-imputabilidade está prevista no Código Penal, independente das
controvérsias que é capaz de suscitar.

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Para evitar, portanto, qualquer tipo de subtração quanto às sanções


impostas pelo estado, argumenta-se que psicopatas são indivíduos
totalmente capazes no que se refere aos dois postulados básicos da
imputabilidade. Esse argumento atende ainda a necessidade de fazer com
que tais indivíduos não sejam direcionados para o ineficaz tratamento
curativo previsto nas medidas de segurança. Nesses casos, observa-se,
entretanto, um argumento falso diante de um problema real.
Se alguns indivíduos revelam-se mais indiferentes aos sentimentos
alheios, podendo também agir com um certo nível de descontrole
comportamental em suas interações sociais e se uma neuroconectividade
alterada entre duas regiões que são cruciais para esses dois processos
contribui para tanto, presume-se, por certo, uma capacidade de
autodeterminação diminuída nesses indivíduos. Não importa, nesse caso,
que os prejuízos nesses padrões de neuroconectividade encontrem na carga
genética desses indivíduos uma condição necessária, mas que não se
apresenta como uma condição suficiente para a sua ocorrência. Dito de
outro modo, o fato do ambiente também ter contribuído para que alguém
consolide suas tendências comportamentais não torna, por si só, esse
alguém mais ou menos responsável pelos seus atos. Em contrapartida, é
preciso considerar, para efeito da discussão proposta, o fato de que, tendo
por base o estado atual de conhecimento sobre o assunto, há elementos para
pensarmos que a condição cerebral do psicopata condiz com os critérios
especificados para a semi-imputabilidade.
Afirmar que a condição cerebral do psicopata condiz com os critérios
para a semi-imputabilidade não é o mesmo que postular a adequação das
medidas decorrentes da inclusão de um sentenciado nessa mesma categoria.
O que está sendo destacado neste trabalho é que a semi-imputabilidade, da
forma como está colocada no Código Penal, encontra, no caso desse
transtorno mental, respaldo em achados científicos atuais e não que a
manutenção das medidas que dela costumam decorrer resulte em benefícios
para a prática do Direito Penal.
O que fazer com os psicopatas? Essa é uma pergunta cuja resposta
parece ainda não ter sido encontrada por psiquiatras, psicólogos,
sociólogos, administradores públicos e pelos próprios pensadores e
operadores do Direito. Medidas mais focais capazes de abarcar intervenções
terapêuticas de longo prazo, sem descaracterizar as sanções necessárias,
porém justas para cada caso, poderiam ser um caminho. No entanto, como

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viabilizá-las no âmbito de um sistema prisional cujas mazelas encarregam-


se de agravar inúmeros comportamentos antissociais nos próprios
indivíduos que nele se inserem?

C ONSIDERAÇÕES F INAIS
Este trabalho procurou elucidar a psicopatia a partir de achados
recentes oriundos principalmente da Neurociência Cognitiva. Uma
abordagem que procura compreender o funcionamento cerebral levando
em consideração alguns dos seus desempenhos e capacidades específicas.
Entende-se que o exame de algumas disfunções relacionadas à psicopatia
mostra-se capaz de contribuir com o debate sobre a inserção desse quadro
na condição jurídica delimitada pelos critérios vigentes de semi-
imputabilidade.
A problemática relativa ao quão acertado é inserir o psicopata na
categoria dos semi-imputáveis esteve, na análise apresentada, pautada
exclusivamente em considerações sobre a capacidade de autodeterminação
desses indivíduos. Mostrou-se que tal capacidade existe de forma parcial,
uma vez que apresenta certas deficiências neurobiologicamente
sustentadas. Por outro lado, os prejuízos decorrentes da própria falta de
alternativas para impor penas diferenciadas e tratamentos minimamente
eficazes para os semi-imputáveis merecem ser considerados. Um enfoque
sobre os mesmos ultrapassa, no entanto, os objetivos deste trabalho.
Uma pergunta tal como o que há de errado com o cérebro do
psicopata poderia, sem prejuízo semântico aparente, ser substituída pelo
questionamento o que há de diferente com o cérebro do psicopata.
Entretanto, diferenças são características essencialmente humanas.
Conforme assinala a psicóloga Judith Harris, nos seus promissores esforços
para compreender o desenvolvimento da personalidade humana, “não há
dois iguais” (HARRIS, 2007). Sendo assim, a questão crucial parece ser
compreender se alterações semelhantes resultam em disfunções
semelhantes e esse parece ser o caso de indivíduos com psicopatia. Discutir
as implicações mais diretas dessas semelhanças é aprimorar o necessário
diálogo entre o Direito Penal e as ciências da mente.

R EFERÊNCIAS
AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION – Diagnostical and statistical manual of mental
disorder. 4th ed. Washington DC: American Psychiatric Association, 1994.

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BLAIR, R. J. R. The Cognitive Neuroscience of Psychopathy and implications for


Judgments of Responsibility. Neuroethics, 1: 149-157, 2008.
BLAIR, R. J. R. The emergence of psychopathy implications for the neuropsychological of
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7, 2003.
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processing of sad and fear expressions in children with psychopath tendencies. Journal
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CAPEZ, F. Curso de Direito Penal. Parte Geral. Volume 1. São Paulo: Editora Saraiva,
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GAUER G. J. C.; VASCONCELLOS, S. J. L. O Transtorno de Personalidade Anti-Social: Uma
Revisão das Características Clínicas, Epidemiologia e Tratamento. Revista de Estudos
Criminais, 12: 144-155, 2003.
GORDON, H. L.; BAIRD, A. A.; END, A. Functional differences among those hight and low
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NEWMAN, J. P.; KOSSON, D. S. Passive avoidance learning in psychopathic and
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SILVA, Renata Corrêa da. Inimputabilidade Penal. Disponível em:
www.ucpel.tche.br/direito/revista/vol5/11.doc. Acesso em: 27 de maio de 2009.
TOMASELLO, M. Origens Culturais da Aquisição do Conhecimento Humano. São Paulo:
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TRINDADE, Jorge. Manual de Psicologia Jurídica: para operadores do direito. 3ª ed. Porto
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VASCONCELLOS, S. J. L.; PICON, P.; ÁVILA, K. N.; BORGES, K. R.; GAUER, G. J. C. Aspectos
Cognitivos do Transtorno de Personalidade Anti-social. Jornal Brasileiro de
Psiquiatria, 53: 360-366, 2004.

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DIREITO E POLÍTICA NA EMERGÊNCIA
PENAL: UMA ANÁLISE CRÍTICA À
FLEXIBILIZAÇÃO DE DIREITOS
FUNDAMENTAIS NO DISCURSO DO
DIREITO PENAL DO INIMIGO *
F ELIPE D ANIEL A MORIM M ACHADO **

“Tome cuidado ao eleger seus inimigos, pois pode terminar


parecendo-se com eles” (Jorge Luis Borges).

Resumo: O presente texto aborda as relações entre direito e


política no atual estado de emergência penal vivido pelas
sociedades contemporâneas, analisando a alternativa do Direito
Penal do inimigo como instrumento hábil no combate à
criminalidade. A partir da flexibilização de direitos e garantias
fundamentais no combate ao inimigo, bem como face à perda
do status jurídico de pessoa por parte do respectivo inimigo,
formula-se uma crítica ao Direito Penal do inimigo como
ilegítimo de ser aplicado num Estado Democrático de Direito.
Conclui-se pelo desequilíbrio na relação entre direito e política
no Direito Penal do inimigo, pois neste a política ultrapassa os
limites que lhe são fixados pelo direito na Constituição através
dos direitos fundamentais.

Abstract: This paper addresses the relationship between Law


and Politics in the current state of criminal emergency lived by
contemporary societies, examining the alternative suggested by
the Criminal Law of the enemy to fight against crime. From the
flexibility of fundamentals rights and guarantees in the fight
against the enemy, and front the loss of the legal status of

*
Artigo dedicado à Profª Drª Flaviane de Magalhães Barros e ao Prof. Dr. Marcelo Cattoni pelo
incentivo à pesquisa e pela constante interlocução.
**
Graduado em Direito pela PUC Minas (2008). Membro do Conselho Deliberativo do Instituto de
Hermenêutica Jurídica (IHJ). Fundador e atual Diretor-Presidente do Instituto de Hermenêutica
Jurídica (IHJ). Advogado. E-mail: felipemachado100@gmail.com.

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person by the enemy, it made a criticism to the Criminal Law of


the enemy as illegitimate to be applied in a State of Law. It
concludes that there is an imbalance in the relationship between
Law and Politics in the Criminal Law of the enemy, because on
this, Politics goes beyond the limits which are set by Law in the
Constitution through the fundamental rights.

Palavras-Chave: Direito Penal do Inimigo. Direitos


Fundamentais. Constituição. Política.

Keywords: Law For Enemies. Fundamental Rights. Constitution.


Politics.

I NTRODUÇÃO
A discussão sobre a relação entre direito e política, especificamente
entre política criminal e garantias fundamentais, tem se destacado
sobremaneira no atual debate penal e político-criminal. A evolução das
sociedades contemporâneas, impulsionada pela globalização, que abriu as
fronteiras dos países não só a mercadorias, mas também a pessoas e
informações, experimenta novas modalidades de criminalidade que
ultrapassam as fronteiras dos Estados nacionais. O terrorismo, a ameaça do
tráfico de drogas, o tráfico de pessoas, crianças e órgãos e a lavagem de
capitais são espécies de crimes que surgiram nas legislações a partir da
segunda metade do século XX, intensificando-se na última década desse
mesmo século em um movimento denominado de “expansão do Direito
Penal” (SILVA SANCHEZ, 2002).
As atividades expostas, na era global, são impraticáveis sem a
utilização de redes logísticas e de comunicação, assim configurando
sofisticadas estruturas organizacionais. Disso conclui-se que, em um
contexto de globalização, algumas dessas quadrilhas voltadas à
criminalidade organizada gozam de maior poder que os próprios Estados,
ou que escapam ao seu controle político-jurídico, esquivando-se, por
consequência, à persecução e punição por seus crimes (MARTÍN, 2007, p.
129).
Diante da ineficiência da persecução estatal frente a estes tipos de
delitos, cresceu no corpo social o sentimento de medo e impunidade,
gerando perversão, rejeição e segregação àqueles que cometem tal tipo
conduta. Para resolver o problema instaurado pela emergência penal o

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Estado utiliza-se de medidas extraordinárias para dar uma pronta resposta


aos anseios punitivos da sociedade. Essas medidas geralmente são
caracterizadas pelo enrijecimento da legislação penal, consubstanciadas na
criminalização de um número maior de condutas e no aumento
desproporcional das penas cominadas, bem como no aumento dos poderes
investigatórios da polícia e na flexibilização das garantias processuais do
cidadão. Essas medidas caracterizam um movimento que ganha força no
discurso jurídico-político criminal denominado Direito Penal do inimigo
(Feindstrafrecht).
O Direito Penal do inimigo renuncia a algumas garantias materiais e
processuais, principalmente aqueles provenientes do Direito Penal liberal.
Afirma-se com LUIS GRACIA MARTÍN que “o Direito Penal do cidadão seria
um ordenamento de pacificação dos cidadãos, enquanto o Direito Penal do
inimigo seria um ordenamento de guerra contra inimigos”. Frente aos
inimigos é só coação (JAKOBS; CANCIO MELIÁ, 2007, p. 30). O inimigo é visto
como uma não pessoa, ou seja, lhe é retirado o status jurídico de persona
(JAKOBS, 2006a, p. 83). Mas, como se define quem é o inimigo? Quem possui
legitimidade para tanto? O Direito Penal do inimigo é legítimo em uma
sociedade democrática que deposita seu poder em um Estado Democrático
de Direito? É compatível com o Estado de Direito a flexibilização de
garantias materiais e formais de cidadãos em prol de políticas públicas?
As questões acima orientam a discussão do presente ensaio,
demonstrando-se logo no primeiro capítulo a correlação entre direito e
política, especificamente o entrelaçamento entre política criminal e direitos
fundamentais. Já no segundo capítulo, apresenta-se a solução sugerida por
parcela dos integrantes do discurso político-jurídico penal no combate à
emergência penal, qual seja, a criação de um Direito Penal para “inimigos”.
Criticar-se-á, no terceiro capítulo, a flexibilização dos direitos fundamentais
em prol de argumentos de defesa social, demonstrando a ilegitimidade do
Direito Penal do inimigo no Estado Democrático de Direito. Por fim, se
apresenta as conclusões do trabalho, incentivando, por outro lado, novas
reflexões sobre a emergência no processo penal e sobre o Direito Penal do
inimigo.

I – A C ONSTITUIÇÃO C OMO M EDIUM E NTRE O D IREITO E A


P OLÍTICA
No atual estágio do constitucionalismo democrático, a relação entre
direito e política se evidencia primordialmente, a partir do movimento de

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positivação do direito iniciado no período iluminista no séc. XVII (GRIM,


2006, p. 03-08). Com esse processo o direito passa a ser criado através de um
procedimento legiferante humano, afastando-se de suas concepções de
validade transcendentais. Agora o direito é produzido por decisões
humanas, decisões estas que não se encontram no mesmo plano do direito,
mas sim no da política (CARVALHO NETO, 2004, p. 30-33). O direito é
pensado e elaborado a partir de decisões políticas tomadas pelos atores do
discurso político, logo o direito se coloca como um instrumento do poder
político. Por sua vez, o exercício do poder político é limitado pelo direito.
“O direito constitui o poder político e vice-versa; isso cria entre
ambos um nexo que abre e perpetua a possibilidade latente de
uma instrumentalização do direito para o emprego estratégico do
poder. A idéia do Estado de direito exige em contrapartida uma
organização do poder público que obriga o poder político,
constituído conforme o direito, a se legitimar, por seu turno, pelo
direito legitimamente instituído” (HABERMAS, 2003, p. 211-212)
Assim, a política encontra seus limites impostos pelo próprio direito,
mas não pelo direito ordinário estabelecido, e sim por um direito dito
superior que, todavia, não pode ser válido como suprapositivo. A solução
para essa questão foi a criação das constituições, as quais eram,
diferentemente do direito natural, um direito positivo (GRIMM, 2006, p. 09).
Desse modo, no Estado de direito a constituição garante à política sua
autonomia na prescrição do direito sobre a sociedade, enquanto,
simultaneamente, a restringe em termos formais e materiais. Assim verifica-
se que a ideia de “Estado de Direito está associada à de contenção do Estado
pelo Direito” (MENDES; COELHO; BRANCO, 2008, p. 41).
Os limites formais impostos à política pelo direito através da
constituição agregaram mecanismos de produção legítima do direito, no
qual a definição de direitos passa obviamente por uma compreensão das
questões políticas que circunscrevem o tema, sendo, no caso específico do
processo penal de emergência, através de leis que definem medidas
específicas para o tratamento da macrocriminalidade. Já no aspecto
material, reúnem normas de conteúdo material representadas pelos direitos
fundamentais que também atuam como limite à atuação do poder político.
Nas constituições dos Estados modernos os limites formais impõem
um procedimento democrático, chamado de processo legislativo, para a
elaboração, aprovação e sanção das leis (CATTONI DE OLIVEIRA, 2006). Caso

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o procedimento viole alguma das etapas, carecerá de vício formal, devendo


ser declarada a inconstitucionalidade da lei dele originada. Já os limites
materiais, representados pelos direitos fundamentais, correspondem ao
núcleo de proteção da dignidade humana. Vale lembrar que eles têm seu
conteúdo modificado de acordo com o momento histórico de determinada
comunidade política (DWORKIN, 2002a). Eles estão dispostos no art. 5º da
CR/88, bem como em outros pontos da Constituição, não podendo ter sua
incidência diminuída por nenhuma ação do poder político1.
“No tocante aos direitos e garantias individuais, mudanças que
minimizem a sua proteção, ainda que topicamente, não são
admissíveis. Não poderia o constituinte derivado, por exemplo,
contra garantia expressa no rol das liberdades públicas, permitir
que, para determinada conduta [...], fosse possível retroagir a
norma incriminante” (MENDES; COELHO; BRANCO, 2008, p. 223).
Assim, a norma do art. 5º, § 1º, da CR/88, “gera, a toda evidência,
uma limitação das possibilidades de intervenção restritiva do legislador no
âmbito de proteção dos direitos fundamentais” (SARLET, 2007, p. 387).
Portanto, se reconhece a Constituição como a mediadora entre o direito e a
política, garantidora dos direitos fundamentais do indivíduo, impedindo
que argumentos políticos possam excluir direitos das minorias políticas
(HABERMAS, 2003).
“Assim, a Constituição do Estado Democrático de Direito deve
ser compreendida, fundamentalmente, da perspectiva de um
processo constituinte permanente de aprendizado social, de cunho
hermenêutico-crítico, que se dá ao longo do tempo histórico e que
atualiza, de geração em geração, o sentido performático do ato de
fundação da sociedade política, em que os membros do povo se
comprometem, uns com os outros, com o projeto, aberto ao futuro,
de construção de uma república de cidadãos livres e iguais. Tal
projeto deve ser levado adiante de forma reflexiva e por isso
envolve a defesa de um patriotismo constitucional. A Constituição
do Estado Democrático de Direito é, portanto, a interpretação
construtiva de um sistema de direitos fundamentais garantidores

1 A Constituição portuguesa, a exemplo da brasileira, pontua que os direitos fundamentais não


podem ser restringidos senão nos casos expressamente admitidos na Constituição (art. 18, §2º, da
Constituição de Portugal) e “mesmo quando constitucionalmente autorizada, a restrição só é
legítima se exigida pela salvaguarda de outro Direito Fundamental” (CANOTILHO; MOREIRA, 1991,
p.120-121).

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das autonomias pública e privada” (CATTONI DE OLIVEIRA, 2007, p.


43,44).
Fato é, que o panorama da relação entre direito e política que se
apresenta desde as últimas décadas do séc. XX até o presente momento
histórico desvirtua uma das principais características do constitucionalismo
democrático, qual seja, o reconhecimento dos direitos fundamentais
“como aquellos derechos fundamentales de la persona humana
– considerada tanto em su aspecto individual como comunitario –
que correponden a ésta por razón de su propia naturaleza (de
esencia, a un mismo tiempo, corpórea, espiritual y social), y que
deben ser reconocidos y respetados por todo Poder o autoridad y
toda norma jurídica positiva, cediendo, no obstante, en su ejercicio
ante las exigencias del bien común” (CASTAN TOBEÑAS, 1992, p.
15).
Esse retrocesso tem em suas origens o debate entre direitos
fundamentais versus defesa social. A sensação de insegurança, devido aos
altos índices de criminalidade, a percepção de que o Estado, em seus
moldes tradicionais, não é mais capaz de lidar com o problema da
segurança pública, somadas ao sentimento de impunidade, fixam um
estado de emergência penal, nunca visto pelas sociedades contemporâneas.
Essa sociedade do medo pressiona o Estado a tomar medidas imediatistas, a
fim de sanar o problema da criminalidade. Entretanto, a atual
criminalidade, da mesma forma que a própria sociedade, evoluiu de modo
que as antigas ferramentas utilizadas pelo Estado no seu combate já não
surtem mais efeito. Hoje a criminalidade organizada – empresarial, de
tráfico de drogas e pessoas, as redes terroristas – se mostra complexa e, em
alguns casos, transcende as fronteiras do próprio Estado, apresentando
redes cada vez mais sofisticadas de logística e comunicação.
Desde a Magna Charta Libertatum2 outorgada por João Sem Terra em
1215 na Inglaterra, com impulso maior na Revolução Francesa, o Direito
Penal tem assumido o papel de primeiro instrumento de tutela dos direitos
do cidadão. E seguindo essa tradição, a política criminal contemporânea
utiliza-se do Direito Penal, com seus instrumentos clássicos, no combate a

2 Em breves linhas, aduz que nenhum cidadão seria privado de sua liberdade e de seus bens sem o
devido processo, e que seria julgado por seus pares. Nesse contexto, o Direito Penal aparece como
garantia do cidadão (substantive due process of law), pois para um cidadão ser processado por um
crime deve haver lei anterior (princípio da legalidade – nullum crimen nulla poena sine lege) que o
defina, bem como uma prévia pena a ele cominada.

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essa nova onda de delitos, “submetendo-o a cargas que ele não pode
suportar” (CALLEGARI; MOTTA, 2007, p. 03).
A solução apresentada pela política criminal estatal tem sido a criação
de mais e mais tipos penais, bem como o aumento das penas, como se não
existissem outros mecanismos de controle social válidos (CALLEGARI;
MOTTA, 2007, p. 03). “A tendência do legislador atual é a de reagir com
‘firmeza’ dentro de uma gama de setores a serem regulados, no marco da
‘luta’ contra a criminalidade, isto é, com um incremento das penas
previstas” (JAKOBS; CANCIO MELIÁ, 2007, p. 62).
Assim, o Estado “Democrático de Direito”, no alargamento da
legislação penal, reclama a legitimidade para declarar uma verdadeira
“guerra contra a criminalidade” (War on terror3), podendo, para isso, dispor
de direitos e garantias do cidadão em prol de políticas de defesa social, de
modo a criar, na perspectiva proposta por JAKOBS (1997), dois tipos de
Direito Penal, um destinado aos cidadãos e outro destinado aos
delinquentes vistos pelo próprio Estado como “os inimigos”.

I I – E MERGÊNCIA P ENAL : A C URA P ELO D IREITO P ENAL DO


I NIMIGO
O caos instaurado nos sistemas de segurança pública contemporâneos
desemboca no aparecimento do estado de emergência penal. Emergência
esta que não se liga ao conceito de crise, mas sim a algo que repentinamente
surge, desestabilizando o status quo, desafiando os padrões normais de
comportamento e a manutenção das instituições sociais e políticas. Assim, a
emergência acarreta uma ideia de resposta imediata que deve permanecer
enquanto durar o estado emergencial (CHOUKR, 2005). Por sua vez,
FERRAJOLI (2002, p. 650) afirma a existência de duas espécies simultâneas de
emergência: a primeira se refere à legislação de exceção no tocante à
Constituição e às alterações legislativas dos procedimentos criminais; já a
segunda, de volta à jurisdição de exceção degradada face à legalidade
alterada.

3 Tal fato se percebe no discurso do ex-presidente dos EUA, George W. Bush, quando afirma: “My
fellow Americans, as we grieve together at our terrible loss, you should know that your
goverment will not be intimidated by this terrorists outrage. This is no time for business as usual;
it is a time for urgent action. I am asking Congress to declare a temporary state of emergency that
will enable us to take aggressive measures to prevent a second strike and seek a speedy return to
a normal life, with all our rights and freedoms intact” (ACKERMAN, 2006, p. 06).

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E a emergência penal4 não possui limites temporais e geográficos,


fugindo “dos padrões tradicionais de tratamento pelo sistema repressivo,
constituindo um subsistema de derrogação dos cânones culturais
empregados na normalidade” (CHOUKR, 2005).
“Num certo sentido a criminologia contemporânea dá guarida a
esse subsistema, colocando-o na escala mais elevada de gravidade
criminosa a justificar a adoção de mecanismos excepcionais a
combatê-la, embora sempre defenda o modelo de ‘estado
democrático e de direito’ como limite máximo da atividade
legiferante nessa seara. Basicamente, no caso pátrio, os graus de
criminalidade são definidos na própria Constituição de 1998, onde
se encontram as ‘infrações penais de menor potencial ofensivo’ e
os ‘crimes hediondos’, restando entre eles a criminalidade
‘normal’. No entanto, a dissonância de valores entre eles impede a
consolidação da cultura democrática do texto maior na prática
jurídica a justificar a indagação sobre quando o due process of law
não é embaraço ao sistema repressivo, na medida em que suas
regras, no direito brasileiro, são derrogadas em ambas
extremidades da repressão penal e, a muito custo, observadas no
quotidiano dessa mesma Justiça” (CHOUKR, 2005).
A presença do subsistema da emergência se revela na tomada de
medidas extraordinárias que mitigam garantias fundamentais do cidadão,
em prol de uma resposta imediata que combata crescente criminalidade.
Assim, no estado emergencial, o processo é mitigado, exaurindo suas
garantias em prol do efetivo combate à criminalidade. “En él ámbito del
proceso penal se advierte una tendencia general a la reducción de garantías
en aras de una mayor eficacia global en la persecución del delito”
(LASCANO, 2006, 211).
Em termos de Direito Penal, a emergência penal ganha uma
sofisticada roupagem em sua fundamentação teórica dada por GÜNTHER
JAKOBS (1997) na criação do Direito Penal do inimigo. A partir de uma

4 A emergência penal se difere da emergência constitucional dos Estados democráticos (CHOUKR,


2005). Com CHOUKR (2005) afirma-se que emergência constitucional caracteriza-se por: a) estar
prevista no texto das constituições modernas; b) possui limites temporais e geográficos, além
daqueles de índole material a regrar a exceção; e c) respeita os princípios da proporcionalidade e
da não discriminação. “Assim, pode-se afirmar que a exceção aqui tratada é um estado de direito,
no sentido da necessidade de sua decretação e da sua forma de atuação” (CHOUKR, 2005).

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tradição jusfilosófica, com representantes como ROUSSEAU, HOBBES e KANT5,


JAKOBS propõe uma teoria que defende a existência de um Direito Penal do
cidadão voltado aos sujeitos tidos como pessoa e de um Direito Penal do
inimigo destinado àqueles que não prestam uma segurança cognitiva
suficiente de um comportamento pessoal conforme ao direito (JAKOBS;
CANCIO MELIÁ, 2007)6.
ROUSSEAU (LIVRO II, CAP. V) defende que o cidadão ao infringir o
contrato social deixa de ser membro do Estado, estando em guerra contra
ele e, portanto, deve morrer.
Na mesma seara das ideias de ROUSSEAU, FICHTE afirma que “quem
abandona o contrato cidadão em um ponto em que no contrato se contava
com sua prudência [...] perde todos os seus direitos como cidadão e como
ser humano” (FICHTE, apud JAKOBS; CANCIO MELIÁ, 2007, p. 25).
JAKOBS nega a abstração da diferenciação entre cidadão e inimigo de
ROUSSEAU e de FICHTE, entretanto não se afasta da ideia de que ao sujeito
tido como inimigo deve-se retirar o status de pessoa, inviabilizando a
aplicação, inclusive de alguns dos – senão de todos – direitos do homem
(JAKOBS; CANCIO MELIÁ, 2007, p. 26). Prossegue JAKOBS na justificação de
sua proposta, buscando agora fundamentos nas teorias de HOBBES.
Segundo HOBBES (1988, p. 74) a “natureza fez os homens tão iguais,
quanto às faculdades do corpo e do espírito”, assim no estado de natureza
“todo homem tem direito a todas as coisas, incluindo os corpos dos outros”
(HOBBES, 1988, p. 78)7. Para colocar fim a este estado de natureza, na busca
por uma vida mais segura, os homens são influenciados por suas paixões
“que fazem os homens tender para a paz são o medo da morte, o desejo
daquelas coisas que são necessárias para uma vida confortável e a esperança
de consegui-las através do trabalho”, e pela sua razão “que sugere

5 LUIS GRACIA MARTÍN (2007, p. 95-119), em uma análise dos precedentes históricos do DPI encontra
suas bases já na sofística grega, apresentando seus elementos na teoria penal de Protágoras, e em
seguida no sofista do Anônimo de Jâmblico.
6 Distinção operada por JAKOBS (JAKOBS; CANCIO MELIÁ, 2007, p. 21) entre Direito Penal do cidadão

e Direito Penal do inimigo quer significar a configuração de dois tipos ideais que no plano da
realidade nunca se manifestam de modo puro. Tratam-se, em realidade, de dois polos de um só
mundo ou de duas tendências opostas presentes no mesmo contexto jurídico-penal.
7 Desse modo, conclui-se que o estado de natureza é, na verdade, um estado de guerra, em que

“todo homem é inimigo de todo homem” (HOBBES, 1988, p. 76). No estado de natureza o homem
busca preservar sua existência (HOBBES, 1988, p. 74-77), motivando-se sempre pela busca da
satisfação de seus desejos (HOBBES, 1988, p. 60-64), sendo o primeiro, segundo HOBBES, o
“perpétuo e irrequieto desejo de poder e mais poder, que cessa apenas com a morte”.

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adequadas normas de paz, em torno das quais os homens podem chegar a


acordo” (HOBBES, 1988, p. 77).
Assim, na busca pela paz – por sua própria conservação –, os homens
firmam um contrato social, pelo qual entregam todo o poder ao soberano8, o
qual não faz parte do contrato, eis que este é celebrado apenas entre os
súditos (HOBBES, 1988, p. 108)9. Visto que a soberania é o único poder capaz
de conter a guerra, ela não pode ser parcial, mas sim exercida em sua
plenitude, sendo o soberano “juiz tanto dos meios para a paz e a defesa
quanto de tudo o que possa perturbar ou dificultar estas últimas. E o de
fazer tudo o que considere necessário ser feito [...] para a preservação da
paz e da segurança” (HOBBES, 1988, p. 109).
HOBBES (1988, p. 103-106) repele qualquer resistência à vontade do
soberano, em razão dela reintroduzir o estado de natureza, no qual
prevalece a bellum omnium contra omnes. Assim, quem se opõe ao Estado
(soberano) comete um crime dito de laesae majestatis (HOBBES, 1988, p. 183-
184), não sendo apenado como um delinquente, mas sim combatido como
um inimigo10.
Assim, segundo HOBBES, um homem que cometa um crime, por mais
grave que seja, deve ser tratado com cidadão, estando, portanto, abarcado
pelo conceito de pessoa. Portanto, na análise de JAKOBS, ao contrário de
ROUSSEAU e de FICHTE, HOBBES (1988, p. 107-113) entende que o cidadão que
comete um crime não se torna inimigo do Estado, devendo permanecer
dentro do direito. Entretanto, caso um sujeito se oponha ao poder soberano
do Estado, deve ele ser tratado como inimigo.
“Por último, os danos infligidos a quem é um inimigo
declarado não podem ser classificados como penas. Dado que esse
inimigo ou nunca esteve sujeito à lei, e, portanto, não pode

8 “Uma pessoa de cujos atos uma grande multidão, mediante pactos recíprocos uns com os outros,
foi instituída por cada um como autora, de modo a ela poder usar a força e os recursos de todos,
da maneira que considerar conveniente, para assegurar a paz e a defesa comum. Àquele que é
portador dessa pessoa se chama soberano, e dele se diz que possui poder soberano. Todos os
restantes são súditos” (HOBBES, 1988, p. 106).
9 “O direito de representar a pessoa de todos é conferido ao que é tornado soberano mediante um

pacto celebrado apenas entre cada um e cada um, e não entre o soberano e cada um dos outros,
não pode haver quebra do pacto da parte do soberano, portanto nenhum dos súditos pode libetar-
se da sujeição, sob qualquer pretexto de infração” (HOBBES, 1988, p. 107).
10 Referindo-se àqueles que negam a autoridade do Estado, afirma HOBBES (1988, p. 190) que “a

natureza desta ofensa consiste na renúncia à sujeição, que é um regresso à condição de guerra a
que vulgarmente se chama rebelião, e os que assim ofendem não sofrem como súditos, mas como
inimigos”.

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transgredi-la, ou esteve sujeito a ela e professa não mais o estar,


negando em conseqüência que possa transgredi-la, todos os danos
que lhe possam ser causados devem ser tomados como atos de
hostilidade. E numa situação de hostilidade declarada é legítimo
infligir qualquer espécie de danos. De onde se segue que, se por
atos ou palavras, sabida e deliberadamente, um súdito negar a
autoridade do representante do Estado (seja qual for a penalidade
prevista para a traição), o representante pode legitimamente fazê-
lo sofrer o que bem entender. Porque ao negar a sujeição ele negou
as penas previstas pela lei, portanto deve sofrer como inimigo do
Estado, isto é, conforme a vontade do representante. Porque as
penas são estabelecidas pela lei para os súditos, não para os
inimigos, como é o caso daqueles que, tendo-se tornado súditos
por seus próprios atos, deliberadamente se revoltam e negam o
poder soberano” (HOBBES, 1988, p. 187-188).
Por sua vez, JAKOBS entende que em KANT (2006) também é possível
encontrar traços do Direito Penal do inimigo. Segundo KANT, ainda existem
povos que vivem no estado de natureza hobbesiano, consistindo eles em
uma ameaça que gera, por consequência, o direito de obrigá-los a integrar o
“contrato”, em prol da garantia da paz.
“Aceita-se comumente que uma parte pode hostilizar a outra
somente se o primeiro a lesionou de fato e considera-se, desta
forma, correto quando ambos vivem em um estado civil-legal. Pois,
pelo fato de ter ingressado neste estado, um proporciona ao outro
a segurança necessária (através da autoridade que possui o poder
sobre ambos). Contudo, um homem (ou um povo) no Estado
Natural priva-me desta segurança e já me está lesionando, ao estar
junto a mim neste estado, não, de fato, certamente, mas pela
carência de leis de seu estado (status iniusto), que é uma constante
ameaça para mim. Eu posso obrigá-lo a entrar em um estado
social-legal ou afastar-se do meu lado” (KANT, 2006, p. 65).
Como apresentado por JAKOBS, KANT, a exemplo de HOBBES,
reconhece o direito de opressão face àqueles que não estão inseridos no
Estado. Isso, pois, um homem no estado de natureza não me oferece
segurança, em razão de não estar submetido às leis que regem o Estado e,
desse modo, poderia ser encarado como um inimigo que representa uma
dupla ameaça. Primeiro uma ameaça à segurança do cidadão que se insere
no Estado, e, na segunda perspectiva, uma ameaça ao Estado, pois ataca a

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legitimidade de sua autoridade, lhe impondo o risco de regresso ao estado


de natureza.
“O estado de paz deve, portanto, ser instaurado, pois a omissão
de hostilidade não é ainda garantia de paz e, se um vizinho não dá
segurança ao outro (o que somente pode acontecer em um estado
legal), cada um pode considerar como inimigo o que lhe exigiu
esta segurança” (KANT, 2006, p. 65).
Reconstruindo as teses acima expostas, como solução à complexa
criminalidade das sociedades contemporâneas, JAKOBS (1997) apresenta a
proposta de um direito que “differs from other criminal law in that it
creates different legal standards for ‘enemies’ whatever that may be, and
even for potential ‘enemies’” (ECKERT, 2005, p. 12)11.
O Direito Penal do inimigo é um ordenamento que flexibiliza direitos
e garantias fundamentais, destinando-se àqueles que revelem um
distanciamento do direito, praticando condutas contrárias à ordem
fundamental do Estado. O Direito Penal do inimigo, ao contrário do Direito
Penal do cidadão, não visa a manter a vigência da norma, mas sim combater
perigos, ou seja, lutar contra o inimigo, sendo que a ele “é só coação física,
até chegar-se à guerra” (JAKOBS; CANCIO MELIÁ, 2007, p. 30). Na
contemporaneidade o inimigo é representado primordialmente pelo
terrorismo e pela criminalidade organizada como, por exemplo, o tráfico de
drogas, pessoas e órgãos, a falsificação de moeda, os crimes do colarinho
branco, dentre outros. JAKOBS, com base em KANT, afirma que o DPI não se
destina a “compensação do dano à vigência da norma, mas à eliminação de
um perigo”, de modo que a “punibilidade avança um grande trecho para o
âmbito da preparação, e a pena se dirige à segurança frente a fatos futuros,
não à sanção de fatos cometidos” (JAKOBS; CANCIO MELIÁ, p. 35-36).
Por outro lado, o Direito Penal do cidadão é posto como aquele que
respeita os direitos e garantias fundamentais, voltado aos cidadãos que
mesmo tendo cometido um crime, tal conduta não atenta aos princípios
básicos do Estado e nem é realizada de forma habitual/profissional. Nas
palavras de MARTÍN (2006, p. 92), o “Direito Penal do cidadão seria um
ordenamento de pacificação dos cidadãos, enquanto o Direito Penal do

11 Na perspectiva de SILVA SANCHEZ (2002), o DPC seria a 1ª velocidade do Direito Penal –


imposição de penas privativas de liberdade e estrito respeito às regras de imputação e aos
princípios processuais clássicos –, enquanto que o DPI seria a 3ª – coexistência de penas privativas
de liberdade com a flexibilização de princípios político-criminais e das regras de imputação.

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inimigo seria um ordenamento de guerra contra inimigos”, sendo que


cidadãos gozam de presunção de sua inocência já os inimigos sofrem a
suspeita de culpa.
Segundo JAKOBS, o Direito Penal do inimigo provoca uma antecipação
da punibilidade, de modo que os atos preparatórios passam a ser punidos,
dirigindo-se a pena, portanto, a fatos futuros; já o Direito Penal do cidadão
pune fatos já perpetrados, destinando a pena aos fatos pretéritos (JAKOBS;
CANCIO MELIÁ, p. 35-44). MARTÍN (2006, p. 87-91) aponta outras
características do Direito Penal do inimigo como: a) a desproporcionalidade
das penas; b) a influência na transformação da legislação penal em uma
legislação de guerra declarada contra a criminalidade; c) a restrição de
garantias processuais dos imputados; e d) a criação de medidas de direito
penitenciários que limitam os benefícios dos condenados, bem como a
ampliação dos requisitos para o livramento condicional. Ainda sobre
distinção afirma ECKERT (2005, p. 13) que “the law for enemies also differs
from ordinary criminal law in that it does not intend torehabilitate, reform
or even punish, but, above all, to banish”. Por fim, acrescentamos que o
Direito Penal do inimigo, ao contrário do Direito Penal do cidadão, também
mitiga o princípio da legalidade, ao descrever crimes e penas de “vague
manner that enables the concept to cover all sort of acts, including
association or even simple contact” (ECKERT, 2005, p. 04).
Entretanto, a distinção mais importante entre Direito Penal do
inimigo e Direito Penal do cidadão diz respeito aos seus respectivos
destinatários, que leva à discussão do conceito de pessoa no Direito Penal.
Em relação ao Direito Penal do cidadão, afirma JAKOBS haver pessoas que
eventualmente cometem crimes, mas que continuam a prestar “fidelidad al
ordenamiento con cierta fiabilidad” e assim “tiene derecho a ser tratado
como persona” (JAKOBS, 2006a, p. 83). Em outra passagem afirma JAKOBS
que “só é pessoa quem oferece uma garantia cognitiva suficiente de um
comportamento pessoal, e isso como consequência de idéia de que toda
normatividade necessita de uma cimentação cognitiva para poder ser real”
(JAKOBS; CANCIO MELIÁ, 2007, p. 45). Em suma, na perspectiva de JAKOBS,
aquele que comete um crime, desde que este não seja contra os princípios
básicos do Estado (como, por exemplo, os princípios dispostos nos incisos
do art. 1º da CR/88) deve ser tratado como cidadão. Também se aplica o
Direito Penal do cidadão ao criminoso que não integre nenhuma
organização criminosa e que não revele uma personalidade voltada para o
crime.

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De outro lado, existe “o outro”, ou seja, a “não-pessoa”, sendo ela


“quem por princípio se conduz de modo desviado, não oferece garantia de
um comportamento pessoal. Por isso, não pode ser tratado como cidadão,
mas ser combatido como inimigo” (JAKOBS; CANCIO MELIÁ, 2007, p. 49),
assim aplicando-lhe o Direito Penal do inimigo. Desse modo, nas palavras
de SILVA SANCHEZ, o inimigo pode ser caracterizado como
“aquel sujeto que ciertamente defrauda expectativas
normativas, pero que, además, no ofrece garantía cognitiva alguna
de no volver a hacerlo en el futuro: por ejemplo, el imputable
peligroso. […] Sería no-persona a los efectos de la inaplicación de
ciertos principios tuitivos, en particular, algunas garantías político-
criminales materiales y procesales” (SILVA SANCHEZ, 2002, p. 986).
Nas palavras do próprio JAKOBS, o inimigo é visto como aquele que
“se ha convertido a sí mismo en una parte de estructuras
criminales solidificadas, diluye la esperanza de que podrá
encontrarse un modus vivendi común a pesar de algunos hechos
criminales aislados, hasta convertirla en una mera ilusión, es decir,
precisamente, en una expectativa ‘infinitivamente contrafáctica’”
(JAKOBS, 2006b, p. 104).
Em suma, a proposta do DPI é tolher direitos e garantias
fundamentais do inimigo, a fim de otimizar o combate à
macrocriminalidade. “The denial of rights with the argument that a person
is ‘bad’ goes in some ways even further since it categorically denies those
esteemed to be ‘bad’ the right to have rights” (ECKERT, 2005, p. 11). Nessa
perspectiva, o DPI pode ser interpretado como a “cura”, como instrumento
no combate à emergência penal, em razão de oferecer rígidos mecanismos
de combate à criminalidade, mantendo, por outro lado, a aplicação da
legislação garantista ao cidadão e a inquisitória ao inimigo.

III – D IREITO P ENAL DO I NIMIGO : U MA J USTIFICAÇÃO


P OLÍTICA À N EGAÇÃO DE D IREITOS
A utilização do DPI, com o consequente recrudescimento da
legislação penal, tem sido a estratégia adotada pelos Estados modernos na
guerra contra a delinquência organizada12. No Brasil essa tendência é

12 Nos EUA destaca-se a Lei da Uniting and Strengthening America by Providing Tools Required to
Intercept and Obstruct Terrorism Act de 26 de outubro de 2001, mais conhecido como US Patriot Act.
Na Espanha, com a lei orgânica 15/2003, houve a elevação do limites das penas privativas de

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observada: a) no art. 44 da Lei nº 11.343/2006, em que se nega aos


envolvidos na prática de tráfico de drogas o usufruto de benefícios penais
como o sursis, o indulto, a liberdade provisória, dentre outros; b) na Lei nº
9.613/1998, que, em seu art. 4º, estabelece a inversão do ônus probatório em
desfavor do acusado; c) no art. 156 do Código de Processo Penal, com
redação dada pela Lei nº 11.690/2008, que permite ao juiz produzir provas
de ofício, mesmo antes de iniciada a ação penal; e d) no projeto de lei do
Senado (PLS 150/2006), dispondo sobre o crime organizado, o qual prevê a
criação do crime de participação em organização criminosa, a delação
premiada, a implementação da “ação controlada”13 e a possibilidade, em seu
art. 10, de acesso direto e permanente do juiz e do Ministério Público aos
bancos de dados de reservas e registros de viagens de qualquer cidadão.
Diante do atual cenário social, afirma-se com DIÉZ RIPOLLÉS (2007, p.
118-119) que a expansão do Direito Penal, trazida pelo DPI, não resolve o
problema da macrocriminalidade. Ao contrário, essa inflação legislativa traz
à tona o simbolismo penal (Direito Penal simbólico), que, no tocante ao DPI,
produz dois efeitos. O primeiro diz respeito à utilização de medidas
populistas, tanto da esquerda quanto da direita política (JAKOBS; CANCIO
MELIÁ, p. 60-62)14, que servem para aplacar o clamor público, mas que em
verdade não estabelecem nenhuma solução ao problema da criminalidade.
“Essa legislação constitui o capítulo mais triste da atualidade
latino-americana e o mais deplorável de toda a história da
legislação penal na região, em que políticos intimidados pela
ameaça de uma publicidade negativa provocam o maior caos legal
autoritário – incompreensível e irracional – da história de nossas
legislações penais desde a independência” (ZAFFARONI, 2007, p. 79 –
grifos do autor).

liberdade que passou para 40 anos (art. 76 do CP), bem como o aumento dos requisitos para a
concessão da liberdade condicional (art. 90.1., § 2º do CP).
13 Art. 7º, caput, do PLS 150/2006: “Consiste a ação controlada em retardar a intervenção policial

relativa à ação praticada por crime organizado ou a ele vinculado, desde que mantida sob
observação e acompanhamento para que a medida legal se concretize no momento mais eficaz à
formação de provas e obtenção de informações”.
14 Conforme aduz CANCIO MELIÁ “a esquerda política tem aprendido o quanto rentável pode

resultar o discurso da law and order, antes monopolizado pela direita política” (JAKOBS; CANCIO
MELIÁ, p. 62).

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Assim percebe-se o uso político do Direito Penal para fins eleitoreiros,


de modo que os fins populistas15 se sobrepõem aos objetivos de efetividade.
“La exigencia (a menudo instrumentalizada para fines políticos
y propagasdísticos-electorales) de una reacción, simbólica y
visiblemente eficaz, al sentido colectivo de inseguridad (sólo
agudizado por el terrorismo, pero, en realidad, dato estructural de
la posmodernidad), determinando un uso político del Derecho
penal, conduce a un peligroso deslizamiento hacia los principios
no liberales del Täterstrafrecht, sancionando una neta subjetivación
de las proprias normas incriminatorias, antes incluso de su
aplicación” (MANNA, 2006, p. 271).
O segundo efeito do Direito Penal simbólico, conforme aduz CANCIO
MELIÁ funciona como um mecanismo para a criação da identidade social,
criando, portanto, uma parcela do corpo social que será tida como
“inimigo”, levando a admissão, mais uma vez, do malfadado Direito Penal
do autor (JAKOBS; CANCIO MELIÁ, 2007, p. 57-65).
A antecipação da punibilidade aos atos preparatórios, com a
eliminação da diferenciação entre atos de preparação e tentativa, bem como
entre participação e autoria, faz com que retornemos ao Direito Penal do
autor. Essa teoria, no tocante ao crime organizado e ao terrorismo, admite a
punição do sujeito por “‘estar aí’ de algum modo, ‘fazer parte’ de alguma
maneira, ‘ser um deles’ ainda que só seja de espírito” (JAKOBS; CANCIO
MELIÁ, 2007, p. 81). Ou seja, o sujeito passa a ser punido por fazer parte de
algum grupo social, por suas crenças, e até mesmo por seus pensamentos,
violando, portanto, os princípios da lesividade e da culpabilidade.
Dessa postura surge, segundo LASCANO (2006), um processo de
intolerância contrário ao Estado de Direito intitulado “demonização” do
inimigo16. Demonização pode ser entendido como uma técnica retórica e
ideológica de afirmar determinada posição, através da estigmatização de
determinadas instituições políticas, étnicas, culturais e religiosas, como
nocivas e más à sociedade (LASCANO, 2006, p. 230). Nos casos mais
extremos o processo de demonização é uma forma de expressar e propagar
as convicções racistas de uma sociedade, colocando “o outro” – o inimigo –

15 “Esse discurso de cunho populista tem um efeito mágico na população que pugna por medidas
mais duras, olvidando-se, no futuro, que será a destinatária das mesmas” (CALLEGARI; MOTTA,
2007, p. 19).
16 Em seu livro “Direito Penal do Inimigo”, JAKOBS e CANCIO MELIÁ (2007, p. 42; p. 79) utilizam a

expressão “demonizar”.

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como um ser subumano como aconteceu, por exemplo, com os judeus no


nazismo alemão.
“Os regimes totalitários (geralmente criminosos) etiquetam e
estigmatizam precisamente como ‘inimigos’ os dissidentes e os
discrepantes; e como aqueles ditam leis nominalmente penais sem
qualquer conteúdo de justiça, estabelecem na verdade dispositivos
e mecanismos de ‘guerra’ contra os etiquetados como inimigos”
(MARTÍN, 2007, p. 78).
Portanto, visto o DPI como um Direito Penal do autor, é nítido que ele
não se vincula a fatos, mas a pessoas – inimigos –, submetendo-as a um
processo de exclusão de modo que a elas se “sataniza por lo que son y no
por lo que hacen” (LASCANO, 2006, p. 232).
“The construction of a normative community that is evident in
all the Manichaean and belligerent oppositions of civilization vs.
barbarism, freedom vs. hatred, ‘with us or against us’ etc.
condemns certain categories of people who are considered morally
not to be members of the normative community to the state of
outlaws. This exclusion, again, is not done according to the
activities or deeds of the persons concerned but according to their
religious or national background” (ECKERT, 2005, p. 12).
Assim, percebe-se que o processo de demonização acaba por criar
guetos, aos quais se aplica o DPI. A aplicação de normas diferenciadas não
em razão da conduta praticada, mas sim em virtude do sujeito que a realiza,
afronta um dos pilares do Estado de Direito que é o princípio da igualdade.
Essa legislação simbólica – de emergência – também representa a reinserção
nos ordenamentos jurídicos de medidas típicas do Estado de polícia17, o que
se apresenta como mais uma afronta ao Estado Democrático de Direito,
pois, com ZAFFARONI (2007, p.169), entende-se que uma das funções dos
Estados de Direito é justamente a “contenção dos Estados de polícia”.
“O direito penal de garantias é inerente ao Estado de direito
porque as garantias processuais penais e as garantias penais não
são mais do que o resultado da experiência de contenção
acumulada secularmente e constituem a essência da cápsula que

17 Limitação da liberdade de expressão; supervisão de operações financeiras; quebra de sigilo


telefônico e de dados; forte censura à produção intelectual e artística; investigações secretas;
prisões incomunicáveis; dentre outras.

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encerra o Estado de polícia, ou seja, são o próprio Estado de direito”


(ZAFFARONI, 2007, p. 173 – grifos do autor).
Ao flexibilizar direitos e garantias fundamentais do cidadão, a
legislação contaminada pelo discurso do DPI termina por mitigar a relação
entre direito e política, ao passo que suplanta um dos limites impostos pelo
direito à política que é o respeito aos direitos fundamentais do cidadão.
“A conservação dos limites impostos pelo estado de Direito,
quando do combate da criminalidade organizada, torna-se mais
fácil quanto mais esse combate for concentrado e possa ser
normativamente desobrigado. Os limites decorrem da esfera nuclear
dos direitos fundamentais indisponíveis, como também dos princípios
tradicionais e sustentadores de uma prevenção e da persecução dos crimes
orientados pelo Estado de Direito” (HASSEMER, 2007, p.144 – grifos
nossos).
Fato é, que a política, aproveitando a eficiência do discurso de
“guerra à criminalidade”, termina por disseminar o pensamento de que na
busca pela segurança social deve-se abdicar, enquanto durar o estado de
emergência, de algumas liberdades individuais. Entretanto, essas medidas,
ditas temporárias, aos poucos terminam por se infiltrar nos ordenamentos,
retirando as liberdades civis dos cidadãos sem que estes se deem conta.
Nessa esteira RONALD DWORKIN (2002) afirma que a incorporação da
política do terror, da guerra e da emergência nas práticas estatais degrada
instituições como o próprio Estado de Direito e a democracia. Citando o Ato
Patriótico, DWORKIN questiona os efeitos da nova legislação nos padrões de
justiça, decência e equidade da sociedade americana e adverte que os
direitos cedidos ao Estado nesse momento tornar-se-ão difíceis de serem
resgatados no futuro: “What we lose now, in our commitment to civil rights
and fair play, may be much harder later to regain” (DWORKIN, 2002b).
Na busca pela segurança social, as garantias fundamentais só
poderiam ser mitigadas nas hipóteses previstas pela própria Constituição,
ou seja, nos estado de sítio (art. 138 da CR/88) e de guerra (art. 136 da
CR/88). Isto, pois, nessas situações de emergência constitucional os limites
temporais e geográficos das medidas excepcionais são delimitados, de
modo que a constituição, como medium entre o direito e a política, continue
limitando a atuação desta dentro do limites impostos por aquele.
A reivindicação dos cidadãos por segurança é legítima, prevista
constitucionalmente (art. 144 da CR/88), e merece ser atendida pelo Estado,

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entretanto, sua busca não é pelo caminho da transgressão a outros direitos e


garantias. Nesse sentido, afirma MOCCIA
“La lucha eficaz contra tales actividades criminales comprende,
ciertamente, inmediatamente el momento de la represión directa,
pero siempre garantizando el mantenimiento de a legalidad, de las
libertades fundamentales, especialmente de aquellas que la
Constitución ha impuesto al sistema penal” (MOCCIA, 2006, p. 308).
Desse modo, o Direito Penal deve estar vinculado à Constituição,
servindo como uma garantia tanto ao cidadão, lhe protegendo do uso
imoderado do ius puniendi estatal, quanto à sociedade, eis que lhe permite
punir seus infratores, reafirmando, em consequência, a norma infligida, de
modo a realizar sua função de prevenção geral positiva.
“Non si può fare la ‘guerra’ alla mafia con il diritto penale, non
solo perché una guerra fatta con questo strumento sarebbe perduta
in partenza; ma anche perché il diritto penale non è uno strumento
di guerra, bensí uno strumento giuridico di regolazione di obblighi,
diritti e potestà che presiedono l’attribuzione di responsabilità a cittadini
e l’uso della reazione punitiva nei confronti degli infrattori dichiarati tali
secondo procedure stabilite” (BARATTA, 1993, p. 120 – grifos nossos).
Sendo o Direito Penal uma garantia ínsita ao Estado de Direito,
vinculado a uma constituição democrática, falar em DPC é um pleonasmo,
eis que todo Direito Penal é do cidadão. Por outro lado, falar-se de DPI é
uma contradição, pois se o Direito Penal é destinado ao cidadão, o que é
destinado ao inimigo pode ser qualquer coisa que não o Direito Penal
(JAKOBS; CANCIO MELIÁ, p. 72-76).
De outra ponta, com MARTÍN (2007, p. 158-171), o Direito Penal não
pode ser dividido entre pessoas e não-pessoas, eis que se destina ao homem
empírico, ou seja, à pessoa de carne e osso, desprezando-se, portanto, o
conceito jurídico de pessoa. Quem realiza as ações tuteladas pelo Direito
Penal é uma pessoa empírica (de carne e osso) e não uma pessoa normativa,
de forma que o indivíduo da imputação deve ser sempre um sujeito
humano.
“O Direito Penal não tem como destinatário a pessoa jurídica,
entendida esta como construção normativa, mas o homem,
entendido como indivíduo humano, então não será possível
fundamentar legitimamente nenhum ‘Direito Penal do inimigo’,

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isto é, nenhum ordenamento diferente e excepcional” (MARTÍN,


2007, p. 175).
O Direito Penal em uma sociedade democrática só pode ser
fundamentado com base em ações de homens responsáveis, não se
dirigindo a um conceito normativo de pessoa, mas a um substrato
ontológico de pessoa responsável, pois é esta responsabilidade que, em
última análise fundamenta o Direito Penal (MARTÍN, 2007, p. 170).
“O Direito Penal democrático e do estado de Direito deve tratar
todo homem como pessoa responsável, e não pode ser lícito
nenhum ordenamento que estabeleça regras e procedimentos de
negação objetiva da dignidade do ser humano. [...] Um
ordenamento que incluísse regras incompatíveis com a dignidade
do ser humano [...] seria injusto e acarretaria a desvinculação do
estado de Direito, dado que, como proclama o art. da CE, a justiça
é um valor superior do ordenamento jurídico do Estado de Direito.
Nem sequer o homem poderia dispor de sua dignidade, porque
esta é uma qualidade inseparável de seu substrato ontológico”
(MARTÍN, 2007, p. 176 – grifos do original).
Na esteira de PUFENDORF, MARTÍN (2007, p. 176) prossegue afirmando
que a estrutura ontológica do homem está constituída pelo conteúdo que
fundamenta o conceito de “dignidade humana”, sendo que esta não deriva
da essência racional abstrata do homem, mas sim de sua existência
enquanto sujeito empírico. No entanto, essa dignidade humana se
fundamenta na capacidade que possui o homem de ponderar e escolher, eis
que é um ser livre eticamente. Tal característica se apresenta em igual
medida a todos os seres humanos, o que impede que algum seja
considerado “menos pessoa” do que outro. Desse modo, se o Direito Penal é
fundamentado na responsabilidade, e esta decorre da inescapável condição
humana, sendo igual a todos os homens, logo, não se justifica um
tratamento desigual para pessoas de igual valor, assim refutando a hipótese
defendida pelo DPI.
Por fim, uma última crítica que se faz ao DPI, consiste na posição
defendida por LUIZ FLÁVIO GOMES (2004), segundo a qual, tratar o
delinquente como “criminoso de guerra” é dar-lhe a possibilidade de
questionar a própria legitimidade do sistema (processo antidemocrático,
desproporcionalidade das penas, flexibilização de garantias). Isso, pois, tal
medida mitiga o princípio da razoabilidade colocando em risco o Estado de

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Direito. Ou seja, no combate ao crime o Estado não pode comportar-se como


o próprio criminoso, flexibilizando as regras do jogo como acontece nos
regimes totalitários. Para se alcançar um processo penal realmente
democrático deve-se resguardar as garantias constitucionais, sabendo-se,
desde já, que isso poderá requerer sacrifícios.

C ONCLUSÃO
O equilíbrio entre o direito e a política nunca se fez tão importante
quanto nesse momento de emergência penal, em que se reclama ações
imediatistas do Estado no combate à criminalidade. A Constituição, vista
como intermediadora entre direito e política, é vilipendiada por esta, que
mitiga os limites materiais que lhe são impostos pelos direitos
fundamentais. Desse modo, o Estado, acreditando ser o Direito Penal o
instrumento hábil no combate ao crime organizado, utiliza-o
imoderadamente – Direito Penal simbólico –, terminando por flexibilizar os
direitos e garantias fundamentais na War on terror.
O discurso que permeia essa atuação estatal é fornecido pelo Direito
Penal do inimigo que pensado por JAKOBS, a partir das teorias de ROUSSEAU,
HOBBES e KANT, defende que existem sujeitos, rotulados como “inimigos”,
que são voltados à prática habitual de crimes, não oferecendo, portanto,
uma segurança de comportamento conforme ao direito, devendo ser
banidos da sociedade. A esses indivíduos deve-se aplicar o Direito Penal do
inimigo que é um bloco normativo diferenciado do Direito Penal do
cidadão, ao passo que lhe restringe o exercício de direitos e garantias
fundamentais. Já para o cidadão que eventualmente comete uma conduta
delituosa, aplica-se o Direito Penal nos moldes clássicos, eis que ele não
oferece um risco, devendo assim ser reintegrado à sociedade.
Critica-se o Direito Penal do inimigo, eis que num Estado de Direito,
no qual o direito vincula não só a sociedade, mas também o próprio Estado,
não pode este desrespeitar os direitos e garantias fundamentais do cidadão,
sob pena de um retorno ao Estado de Polícia. Assim, falar em Direito Penal
do cidadão é um pleonasmo, enquanto que dizer Direito penal do inimigo é
uma contradição em seus termos. O encrudelecimento da legislação penal,
através de um discurso populista que flexibiliza as garantias processuais do
cidadão, não resolve o problema da criminalidade, servindo apenas como
um alento ao caos social. A negação dos direitos fundamentais ao criminoso
serve como um motivo a mais para que ele negue a legitimidade do Estado,
pois se este desrespeita a Constituição, então o criminoso se vê ainda mais

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num estado de “limbo jurídico”, em que a única regra é a da sobrevivência


do mais forte.
O Direito Penal do inimigo, na verdade, se mostra um Direito Penal
do autor, eis que não criminaliza condutas, mas sim pertencimento a
determinados grupos culturais, pois se pune simplesmente por integrar um
grupo que, para o Estado, se coloca como um perigo em potencial. O rótulo
do inimigo acaba por “demonizar” grupos sociais, levando à exclusão
desses grupos nos moldes antissemitas do nazismo. O Direito Penal é
destinado ao homem empírico e não ao conceito jurídico de pessoa, pois
quem realiza as condutas protegidas pelo Direito Penal é uma pessoa de
carne e osso e não uma pessoa normativa, assim devendo o sujeito da
imputação ser sempre um sujeito humano, o que afasta a proposta de se ter
um Direito Penal para o cidadão e outro para o inimigo.
Acredita-se que uma melhora no problema da criminalidade só se dá
no plano do respeito ao Direito, através de sua legitimidade e racionalidade,
devendo o Estado dar o primeiro exemplo. A imposição do Direito pela
força desmedida acarreta na descrença da legalidade, funcionando como
um remédio às avessas. Desse modo, cabe o Estado se reafirmar como
“Democrático de Direito”, garantindo o exercício dos direitos e garantias
fundamentais aos seus cidadãos indistintamente, aplicando o Direito Penal
como garantia tanto do criminoso quanto da própria sociedade.

VI – B IBLIOGRAFIA
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Janeiro: Revan, 2007.

92
SEMINÁRIO DO GRUPO BRASILEIRO
DA ASSOCIAÇÃO INTERNACIONAL
DE DIREITO PENAL (AIDP-BRASIL)
“RECRUDESCIMENTO PUNITIVO E
SEGURANÇA JURÍDICA” (21 DE MAIO DE 2009,
HOTEL RENAISSANCE EM SÃO PAULO)
(S ECRETÁRIA DE MESA : D RA . D ENISE P ROVASI V AZ )

Secretariei o painel “A expansão das formas de preparação e de


participação: recrudescimento do Direito Penal”, em que foram palestrantes
os ilustres Doutores GUILHERME A. DE MORAES NOSTRE, FERNANDO A.
FERNANDES e FÁBIO TRAD.
O painel foi iniciado com a palestra do Dr. FÁBIO TRAD, que abordou
o alargamento da criminalização das condutas preparatórias e de
participação.
O Direito Penal brasileiro está deformado pela profusão de tipos
penais, especialmente em leis penais especiais. O Código Penal, que deveria
ser o núcleo fundamental da estrutura orgânica do Direito Penal positivado,
caminha para uma posição periférica e marginal de um conjunto de leis
especiais divorciadas da vocação sistêmica de uma legislação que se
pretenda minimamente inteligível.
O recrudescimento do Direito Penal é apoiado pela população e
alimenta instintos de vingança. Decorre da expansão de um discurso de que
o Direito Penal se legitima pela sua eficácia, de forma que, para alcançar a
otimização de seu funcionamento, justifica-se desconstruir toda a sua
vocação liberal, tutelar e garantista, convalidando o pensamento de que,
para se punir o inimigo, aceita-se relativizar garantias individuais e direitos
fundamentais constitucionalmente assegurados.
O Direito Penal é tratado como produto de mercado, de fácil
consumo, e encontra-se em sintonia com os modelos econômicos adotados.

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É preciso, porém, uma tomada de posição dos remanescentes da


tradição liberal, que procura imprimir um cunho garantista ao Direito
Penal. Tal não se dará sem conflitos, porque a minimização do Direito Penal
afronta interesses materiais do sistema econômico que se utiliza da lei penal
para controle social dos excluídos da sociedade de consumo. Assim
também, há tendência em se procurar fazer “Justiça Social”, por meio do
Direito Penal, verificando-se um recrudescimento da sanção por não ser o
acusado pobre.
Em seguida, proferiu palestra o Dr. GUILHERME A. DE MORAES
NOSTRE, que propôs uma reflexão de causa e efeito do recrudescimento do
Direito Penal em relação às formas de preparação e participação.
Como efeito, foi destacada a geração da insegurança jurídica, que não
atinge apenas criminosos e casos concretos. Trata-se de uma atuação
ilegítima e ineficaz, que ameaça a sociedade como um todo.
A expansão das formas de preparação e de participação é vendida
como medida contra a criminalidade, manipulando-se o Direito Penal,
como instrumento de amedrontamento e para acobertamento da
incompetência do Poder Público.
O recrudescimento do Direito Penal é gerado, assim, pela
manipulação de suas finalidades, levando a uma insegurança jurídica.
Entretanto, os atos preparatórios não têm idoneidade de ofender bem
jurídico, de modo que sua incriminação viola o princípio da ofensividade.
Do mesmo modo, as normas que criam ou ampliam formas de participação
para estender a responsabilidade criminal a condutas que não lesam
diretamente bens jurídicos – apenas porque se relacionam de alguma forma
com agentes de condutas mais graves – violam o princípio da lesividade.
Em ambos os casos, as normas não cumprem a missão do Direito
Penal, consistente na harmonização das relações sociais, possuindo, assim,
validade apenas formal, mas não material.
O painel foi encerrado com a palestra do Dr. FERNANDO FERNANDES,
que demonstrou a relação entre o recrudescimento do sistema penal e o
sistema econômico e social. Ilustrou com casos concretos o uso do Direito
Penal para o controle social e os objetivos econômicos.
Assim, relatou a realização de prisão em flagrante de moradores de
rua, no Rio de Janeiro, sob acusação de formação de quadrilha, pois se
encontrariam “nos mesmos moldes daqueles que pretendem cometer

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arrastões”. Defendeu-se, no caso, tratar-se de caso grave, que deveria ser


punido com rigor.
Referiu também a punição da contravenção penal de vadiagem e
mendicância, que foram incriminadas em um contexto posterior à libertação
dos escravos e de imigração de colonos brancos, em que se propagava o
discurso de que o trabalho engrandece o homem. Diante da falta de
trabalho suficiente para os ex-escravos, promovia-se sua prisão por
mendicância.
Por fim, o palestrante abordou o crime de tráfico de pessoas, que é
estabelecido como crime contra os costumes, em vez de crime contra a
pessoa, em evidente confusão de bens jurídicos. Pune-se o acolhimento de
quem venha exercer a prostituição. Consiste, assim, numa criminalização do
ir e vir internacional, visando à proteção do mercado internacional.
Conclui-se, portanto, pela concordância nas três palestras do painel
acerca da influência de objetivos econômicos e sociais, estranhos ao fim do
Direito Penal, na expansão das formas de preparação e participação,
levando a um indevido recrudescimento do Direito Penal, que acaba por
gerar insegurança jurídica e afetar os direitos e garantias fundamentais, em
afronta ao Estado Democrático de Direito.

P AINEL : A TOS PREPARATÓRIOS E O RGANIZAÇÃO C RIMINOSA


(P ROF . C EZAR B ITTENCOURT , P ROF . A NTONIO S ÉRGIO DE
M ORAES P ITOMBO E P ROF . L UCIANO F ELDENS
(S ECRETÁRIA DE MESA : D Rª M ARINA C OELHO )
O painel sobre “Atos preparatórios e organização criminosa” contou
com a participação de três professores: Prof. CEZAR BITTENCOURT (Porto
Alegre), Prof. ANTONIO SÉRGIO DE MORAES PITOMBO (São Paulo) e Prof.
LUCIANO FELDENS (Porto Alegre). Foi secretariado pela advogada MARINA
PINHÃO COELHO ARAÚJO.
Três enfoques diferentes foram utilizados para a exposição sobre o
tema.
O Professor CEZAR BITTENCOURT fez severas críticas sobre a
antecipação de tutela penal que representa a criminalização das
organizações criminosas e de atos preparatórios. Expôs o menosprezo à
ideia de bem jurídico que está permeando o processo legislativo após o
episódio de setembro de 2001 e descreveu a antecipação de tutela como um
elemento que contribui para a formação de sistemas totalitários.

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Neste contexto, a legislação suíça foi nomeada para exemplificar


ordenamentos que têm alçado o terrorismo e a criminalidade organizada
como uma criminalidade qualitativamente nova, com perigo social até então
desconhecido.
O Professor gaúcho serviu-se, em suas críticas, da posição do Prof.
WINFRIED HASSEMER e do Prof. SERGIO MOCCIA. O bem jurídico como
delimitação da tutela penal estaria, nestes casos, totalmente menosprezado,
e não haveria mais limites ao poder de punir do Estado, com a presunção de
periculosidade de condutas praticadas por grupos.
Parafraseando HASSEMER, o palestrante fez a distinção entre a
prevenção normativa – que estrutura os ordenamentos jurídicos até o
momento – e a prevenção técnica associada a medidas técnicas – que pode
auxiliar na prevenção de condutas com algum dinheiro e criatividade.
Essas medidas de prevenção técnicas seriam essenciais para
apresentar ao delito obstáculos fáticos e substituiriam o rigor normativo e a
quebra de garantias individuais pelo sistema jurídico-penal.
Assim sendo, a retórica proteção dos cidadãos de bem mediante a
antecipação da tutela penal faz com que o Estado coloque em risco a sua
própria credibilidade. O Estado necessita de prevalência moral perante os
cidadãos, não pode se utilizar das mesmas armas dos grupos criminosos.
Nesse discurso retórico de proteção, o princípio da presunção de
inocência valeria apenas para algumas pessoas. Os mafiosos da Itália, por
exemplo, não precisariam mais ser processados, bastaria que fossem
condenados e presos. O cidadão de bem não teria nada a temer. Isto é falso,
esses métodos dirigem-se não só contra suspeitos, mas também contra
pessoas não diretamente envolvidas.
Os governantes ainda insistem em considerar o Direito Penal como
panacéia de todos os problemas. No entanto, a luta pelas conquistas
históricas não pode sucumbir. O Direito Penal não pode ser o único
instrumento para a prevenção da criminalidade moderna, sob o risco de
tornar-se ineficiente.
O Professor ANTONIO SÉRGIO DE MORAES PITOMBO conclamou a
plateia a refletir sobre as organizações criminosas e atos preparatórios com
base na doutrina nacional desde os tempos do Império.
Declarou que a criminalização de atos preparatórios e a
criminalização de quadrilha ou bando é uma imposição atual muito forte da

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comunidade internacional (Convenção de Palermo). No entanto, o tema já


foi longamente tratado pela doutrina nacional desde os primórdios do
Estado brasileiro.
Atualmente a escolha do Estado pelo inimigo é a escolha pelos que
obtêm lucro em suas atividades. É a escolha dos ricos. Mas a história nos
mostra alguns nuances dessas escolhas.
O crime de quadrilha ou bando tem suas raízes nas ordenações
portuguesas. As bases para a conduta proscrita no Código Penal de 1940
está no Código do Império (1890), com a estrutura do ajuntamento ilícito.
Nessa época o país fervilhava em movimentos sociais, e era preciso
conter os grupos – Canudos –, contrários à proclamação da República.
Houve, assim, a importação do modelo do código napoleônico, onde
a associação dos malfeitores é o germe da quadrilha ou bando, é o germe da
organização criminosa. Todos os argumentos atuais já estavam no século
XIX descritos na França.
A Revolução Francesa teve como consequência póstuma a
criminalização dos grupos. Se antes os bandos eram vistos como românticos
e poéticos – Robin Hood e personagens dos irmãos Grimm – após a
Revolucão Francesa os bandos foram vistos como inoportunos e agressivos.
Napoleão pôs ordem na bagunça. Ele sabia que o exercício do poder
depende do controle da ordenação jurídica e, portanto, criou o modelo de
código – CODE – que até hoje irradia seus efeitos nas legislações modernas.
A ideia de periculosidade dos bandos/grupos foi consolidada com a
doutrina positivista. Pessoas unidas produzem crimes mais graves, o que
representa a origem da interpretação atual dos crimes associativos.
Em 1940, o Código de NELSON HUNGRIA tipificou a conduta quadrilha
ou bando (origem do crime) e consolidou a antecipação da tutela, ou seja, o
Estado age antes que haja execução de crimes. Uma criminalização do
perigo. A perspectiva positivista é muito evidente.
Para o Professor ANTONIO SÉRGIO PITOMBO, a quadrilha ou bando
nunca funcionou. A proposta era o Estado agir antes que o bando praticasse
o crime, para que não chegasse a efetivar o crime. Ações controladas,
interceptações telefônicas estão plenamente justificadas nos crimes de
organização criminosa para que não se chegasse à conduta criminosa.
Vamos adiantar a tutela!

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Simples: funcionou isto? Quando vemos a quadrilha ou bando?


Quando o crime já foi cometido. A antecipação não vinga no campo prático.
O crime de quadrilha ou bando é utilizado pelo Ministério Público para
fazer denúncia quando não se tem fato.
Assim, o Professor ANTONIO SÉRGIO PITOMBO convida a doutrina à
reflexão calcada nas informações históricas brasileiras para que se critique e
se rechace a ideia de antecipação de tutela para atos preparatórios e crimes
associativos.
Os brasileiros já sabiam desde 200 anos que os tipos associativos
merecem uma reflexão própria, para funcionarem bem.
Por fim, o Prof. LUCIANO FELDENS baseou sua explanação em um
raciocínio invertido, já partindo da premissa crítica de que as imprecisões
conceituais que cercam os delitos de quadrilha e organização criminosa
inviabilizam a aplicação prática dos dispositivos.
A inversão lógica praticada pelo expositor elegeu como marco
histórico o “efeito Marcola” no país como início de um processo valorativo
negativo em relação às condutas associativas. A Convenção de Palermo foi
pela primeira vez utilizada com concretude no que se refere ao conceito de
organização criminosa.
O mesmo evento serviu de base para o ato do Conselho Nacional que
criou as varas especializadas por todo o país. Sendo assim, dependendo de
como é feita a capitulação da conduta na polícia, escolhe-se o juiz da causa e
justificam-se várias medidas restritivas aos direitos individuais.
Já desde o início da investigação pode-se ter medidas graves
restritivas de direito. Adoção sem qualquer prova contundente. Buscas e
apreensões, interceptações telefônicas, entre outras, justificadas por uma
simples capitulação de organização criminosa ainda sem conceito
delimitado no direito brasileiro.
A imprecisão criminológica, segundo LUCIANO FELDENS, é o caldo de
cultura para a criminalização do que por algum juiz mais voluntarioso
possa ser considerado uma ilicitude em si. E é neste ponto que o autor
enxerga os maiores problemas, a partir do raciocínio invertido para análise
de problemas práticos.
A criminalização de atos de empresa. Se a empresa é uma
organização criminosa e o juiz está convencido disso, caso a empresa não
seja desmantelada, a condenação é certa. Como fazer para provar que a

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empresa não é organização criminosa se o mero fato de se constituir como


empresa já é a suposta prova de sua criminalidade. A suposta organização
criminosa muitas vezes tem se confundido com a própria estrutura da
empresa.
Evidencia-se, pois, a ausência da linha de corte entre empresa
constituída para fins lícitos e empresa constituída para fins ilícitos.
Decorrência evidente da imprecisão de conceitos que cerca este tema. Tal
fato, aliado a diretrizes administrativo-judiciais que especializaram as varas,
traz diversos problemas processuais.
Partindo da imprecisão conceitual, chegamos a algumas conclusões,
principalmente de que há criminalização da atividade empresarial. O lucro
é rechaçado. Tudo montado para presenciar um estado social a golpes de
sentença criminal.
O Estado de Direito, um Estado Democrático, não pode coadunar com
a criminalização de uma atividade lícita, da forma como vem sendo
interpretada a lei de organizações criminosas.
Das três explanações algumas conclusões são facilmente destacadas:
1. Dificuldade conceitual dos crimes associativos. Não há definição
clara a embasar as consequências processuais deste tipo de criminalidade;
2. A transferência da tutela penal para momento anterior à possível
lesão, com a criminalização dos bandos e de atos preparatórios, diminui – se
não extingue – a eficácia do bem jurídico como elemento limitador da
intervenção estatal;
3. A interpretação da quadrilha ou bando pela jurisprudência
nacional irradia luzes do positivismo italiano do século passado, o que deve
ser veementemente rebatido;
4. A utilização das convenções internacionais para o recrudescimento
da repressão penal a organizações criminosas leva à criminalização de
atividades lícitas no país, como a própria constituição de empresas e
estruturas empresariais.

P AINEL : INTERCEPTAÇÃO TELEFÔNICA E ABUSO DE


AUTORIDADE (S ECRETÁRIO DE MESA : DR. R ENATO
S TANZIOLA V IEIRA )
O painel contou com as intervenções de JULIANO BREDA (Mestre e
doutor em Direito Penal pela UFPR, Membro do Conselho de Direção do

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Grupo Brasileiro da AIDP, Conselheiro Estadual da OAB/PR, Advogado),


RENÉ ARIEL DOTTI (Professor Titular de Direito Penal da UFPR, Detentor da
Medalha Mérito Legislativo da Câmara dos Deputados, Corredator dos
anteprojetos que se converteram na Lei nº 7.209/84 – nova Parte Geral do
Código Penal e na Lei nº 7.210/84 – Lei de Execução Penal, Presidente do
Grupo Brasileiro da AIDP, advogado) e DORA CAVALCANTI CORDANI (Ex-
Presidente e Conselheira do Instituto de Defesa do Direito de Defesa –
IDDD, Conselheira da Ouvidoria da Defensoria Pública do Estado de São
Paulo, advogada).
O principal enfoque dado pelos três painelistas foi no sentido de tecer
apontamentos críticos à postura adotada pelos Tribunais brasileiros,
destacadamente do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de
Justiça, no tocante a aspectos pontuais e específicos da vigente Lei Federal
nº 9.296/96 (que rege a interceptação de comunicações telefônicas, de
qualquer natureza). Nos debates, comentou-se também o assunto à luz de
legislação estrangeira, com enfoque em previsões e dados estatísticos de
países como Itália, Alemanha, Austrália, Estados Unidos da América e
Inglaterra. O tema das interceptações telefônicas foi abordado, também, à
luz da Resolução nº 59, de 09 de setembro de 2008, adotada pelo Conselho
Nacional de Justiça.
Em sua intervenção, o advogado JULIANO BREDA criticou o que
chamou de beneplácito e atribuiu responsabilidade ao Supremo Tribunal
Federal no que considerou a anulação do alcance normativo dos princípios
e garantias fundamentais de privacidade, intimidade e liberdade de
comunicação da Constituição Federal de 1988. Segundo o painelista, nas
questões atinentes à Lei 9.696 os tribunais têm decidido a favor da
persecução penal contra os interesses do acusado.
Como principais pontos chaves que, ao ver do painelista, tornam a
utilização da Lei Federal 9.296/96 abusiva e excessiva, puderam ser
destacados três:
a) a utilização extrapenal dos dados colhidos em interceptações
telefônicas. Nesse sentido, foi utilizado o exemplo da votação majoritária do
Supremo Tribunal Federal ao apreciar o tema quando do julgamento do
Inquérito 2424 (vencido o Min. Marco Aurélio). Segundo o painelista, tal
uso fere o artigo 1º da lei de regência na medida em que ali se prevê a
utilização de tal meio de pesquisa de prova exclusivamente “para a prova
em investigação criminal e em instrução processual penal”. Pontuou-se,

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criticamente, neste caso, que países que regulamentaram a matéria vedam,


em absoluto, a utilização extrapenal de informações advindas de tal meio de
pesquisa de prova, como por exemplo Itália, Alemanha e Portugal;
b) a disseminação endêmica da interceptação telefônica, notadamente
a partir do que aqui se conhece por “conhecimentos fortuitos” e, em
Portugal, por “achados casuais”. De acordo com o painelista, ao julgar o
Habeas Corpus 83.515, o Supremo Tribunal Federal permitiu que toda a
prova colhida que não tenha conexão, isto é, relação objetiva ou subjetiva
com o fato investigado, e que tenha motivado a interceptação telefônica, não
é lícita. Isso viola a Lei Federal nº 9.296/96, uma vez que ali se exige que o
magistrado, ao deferir a medida, deva descrever “com clareza a situação
objeto da investigação” (art. 2º, parágrafo único). Tal previsão, como se
entendeu, preserva que os dados colhidos na interceptação telefônica se
restrinjam ao círculo de conhecimento do magistrado numa causa específica
e determinada, evitando assim que o meio de pesquisa de prova se
constitua em devassa contra o cidadão. Pelo precedente citado, permitiu-se,
até, que os dados advindos da interceptação telefônica se prestassem como
prova em investigação afeta a crime punido com detenção, o que é
expressamente vedado pela lei de regência, que só admite a específica
medida se a pena abstratamente prevista à infração for de reclusão (art. 2º,
III, Lei 9.296/96). Um ponto crítico ressaltado neste particular foi que, tanto
no projeto de medidas cautelares ora em tramitação no Congresso Nacional
(PL 4208/2001), quanto pelo Projeto de novo Código de Processo Penal (PLS
156/2009), legitimam-se os conhecimentos fortuitos sem estabelecer, ao
contrário de outros países, a necessidade de conexão objetiva ou subjetiva
com o crime para o qual a interceptação telefônica foi utilizada. Aludidas
previsões gerariam o risco de que milhões de pessoas se tornassem
potencialmente investigadas por interceptação;
c) o prazo de duração da medida de interceptação telefônica. De
acordo com o painelista, no mesmo Habeas Corpus 83.515, o Ministro Marco
Aurélio manifestou entendimento de que o prazo máximo seria de 30 dias
(15 dias, renováveis uma única vez por igual período, em leitura do artigo
5º, da Lei Federal 9.296/96). Como o entendimento de S. Exª foi vencido, o
Supremo Tribunal Federal chancelou o entendimento de que a renovação
pode ser, no limite, ad infinitum. Em abono do ponto de vista sustentado no
painel, lembrou-se que o Tribunal Europeu de Direitos Humanos condenou
diversos países exatamente por não fixarem em suas legislações o limite
máximo do prazo das interceptações telefônicas. O painelista se valeu de

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lições de WINFRIED HASSEMER para mencionar que se o prazo de duração da


medida passar de 06 meses, ou 01 ou 02 anos, o que se tem em vista não é
mais meio de prova de fato ocorrido no passado, mas única e
exclusivamente instrumento de vigilância e permanente monitoramento nos
passos do cidadão. Sobre a questão do prazo de duração da medida e de
fundamentação da decisão judicial para tal, assentou-se que cada renovação
demanda mais específica e motivada decisão judicial que as anteriores, haja
vista que quanto mais longa é a suspensão do direito individual, maior deve
ser o zelo do magistrado em a determinar.
Por conta do panorama verificado, entendeu-se existir uma crise de
“fraudes supostamente inocentes no processo penal” e que a grande fraude
é exatamente a gestão da prova na medida em que, colhida a medida, nem
juiz nem órgãos da acusação têm fiscalizado no Brasil a exatidão das
transcrições dos áudios que resultaram das interceptações, o que vai na
contramão de diretiva da Comunidade Europeia, de 1995, que demanda a
máxima exatidão dos dados e que os diálogos interceptados sejam fielmente
transcritos.
Ainda segundo o painelista, há uma “impostura intelectual” a
pretender justificar o meio de pesquisa de prova ante o argumento de que,
se não for utilizado, não se consegue investigar práticas criminosas. Nesse
enfoque, citou HANS-JÖRG ALBRECHT que, em capítulo inserto em livro em
homenagem a JORGE DE FIGUEIREDO DIAS (Vigilância das Telecomunicações.
Análise teórica e empírica da sua implementação e efeitos. In: Que Futuro
para o Direito Processual Penal? Simpósio em homenagem a Jorge de
Figueiredo Dias, por ocasião dos 20 anos do Código de Processo Penal
Português. Coord. Mário Ferreira Monte et al. Coimbra: Coimbra. 2009),
metade dos inquéritos contra arguidos em que existia vigilância de
telecomunicações foi arquivada na Alemanha, enquanto os resultados de
inquéritos conduziram a 1/3 de provas que servissem diretamente para a
prova do fato típico conhecido. Ainda de acordo com a pesquisa do
pesquisador alemão, majoritariamente a vigilância levaria à abertura de
novos inquéritos policiais, novos suspeitos e informações sobre contatos e
ligações entre as pessoas. Ainda de acordo com a pesquisa utilizada no
desenvolvimento da argumentação, em países como Alemanha, Austrália e
Estados Unidos da América, “quanto mais rara é a autorização de vigilância
de telecomunicações, mais alta é a taxa de condenações. Inversamente tal
também significa que quanto maior é o número de autorização de vigilância

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de telecomunicações, maior é a autorização através de acordo ou


absolvição”.
Além disso, verificou-se, à vista da análise tanto do Projeto de
Medidas Cautelares em tramitação no Congresso Nacional quanto do
Projeto de Código de Processo Penal, que em caso de crime permanente
seria admitida a duração da interceptação telefônica enquanto não cessasse
a permanência, algo tomado como “um dos maiores absurdos do processo
penal”, medida inexistente no direito comparado.
Por sua vez, o Professor RENÉ ARIEL DOTTI conclamou os presentes a
uma resistência civil em face do quadro por ele diagnosticado como de
direito penal do medo, difundido por métodos de um processo penal do
terror. Assim, quer a partir da aludida Resolução do Conselho Nacional de
Justiça, quer em vista da decisão do Superior Tribunal de Justiça no Habeas
Corpus 76.686 – que anulou ação penal em virtude da ilicitude da duração
de medida de interceptação telefônica por 02 anos, 01 mês e 14 dias –,
entendeu que, no assunto, o que existe é uma “catilinária” e uma
“sacralização da prova ilícita”, com o interesse, movido por arbítrio de
membros da Magistratura e da acusação, de tentar, argumentativamente,
“colocar a justiça contra o povo e a serviço do crime”.
Em sua exposição, foi divulgado e lido trecho do Manifesto em defesa
das liberdades de convicção e julgamento (documento impresso e constante do
site da AIDP: http://www.aidpbrasil.org.br/Manifesto%20para%
20Site.pdf), documento que se seguiu à entrevista concedida por membro
do Ministério Público Federal após o julgamento do aludido Habeas Corpus.
Além do problema específico da interceptação telefônica, o Professor
diagnosticou outros exemplos de abuso de poder no Brasil, a partir de
comportamentos de magistrados, destacadamente o exemplo de, por vezes,
haver, até no âmbito do Supremo Tribunal Federal, magistrado que,
peremptoriamente, não receba advogados, e, também, movimento iniciado
com o escopo de dificultar, no âmbito do Supremo Tribunal Federal, a
comunicação direta entre advogados e magistrados. Por exemplos como
esses, segundo o Professor, hoje o arbítrio, no Brasil, não parte de ditadores,
e sim de magistrados e acusadores.
Outros exemplos de arbítrios verificados no discurso do painelista
foram o de recente decisão prolatada por magistrada de 1º grau que
impingiu pena de 94 anos e 06 meses de reclusão à acusada de prática de
sonegações fiscais, algo que, segundo ele, beira ao surrealismo; a sucessão

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legislativa em matéria de organizações criminosas, notadamente as Leis


Federais nºs 9.034/95 e 10.217/2001, que não explicam conceitualmente seus
objetos; e até, quando do julgamento de medida liminar pelo Presidente do
Supremo Tribunal Federal no Habeas Corpus 95.009, o lançamento de
“repto” de Magistrado de 1º grau àquele Presidente do órgão de cúpula do
Poder Judiciário brasileiro.
De acordo com o Professor, diante do quadro de arbítrio no qual
atualmente se vive, não só na tormentosa questão da interceptação
telefônica, mas na forma com que se tratam os advogados, e na forma com
que se tiranizam as decisões judiciais e algumas manifestações de acusação,
deve-se encorajar os advogados – que antes de advogados são cidadãos e se
sensibilizam como tal diante de violações de direitos individuais – não mais
a seguirem doutrinas clássicas e tradicionais, mas sim a fazerem parte de
uma resistência civil, que nas palavras do professor, poderia ser, como
lembrado pela antiga Lei do Império, de nº 18: doutrina subversiva e
incendiária. Ao final, conclamou o espírito crítico dos presentes para o
seguirem nessa doutrina.
Por fim, a painelista DORA CAVALCANTI CORDANI, seguindo o
entendimento do Professor RENÉ ARIEL DOTTI, concordou quanto à
necessidade de se desenvolver resistência civil aos abusos praticados por
magistrados.
Dentre as estatísticas apresentadas, destacou-se o número, divulgado
pela Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) das Interceptações
Telefônicas, de que no ano de 2007 houve 265.900 interceptações telefônicas
deferidas, e, dentre elas, 365.643 prorrogações deferidas. Comparativamente
a esses números, segundo a painelista, no mesmo ano de 2007, nos Estados
Unidos da América, com exceção de quadros de terrorismo internacional,
houve não mais que 2.208 monitoramentos, enquanto que na Inglaterra e no
mesmo período o número era de 7.970. Na Itália, e no mesmo ano de 2007, a
relação de pessoas interceptadas para o contingente de 100 mil cidadãos era
de 76, enquanto no Brasil a mesma relação é de 215.
De acordo com a expositora, os projetos em tramitação no Congresso
Nacional não resolverão os crônicos problemas diagnosticados no painel e
melhor seria que, ao menos, fosse observada e respeitada a lei ainda vigente
que é, como se afirmou, “sistematicamente ignorada, desrespeitada, jogada
no lixo”.

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Além de também se referir ao precedente do Superior Tribunal de


Justiça (Habeas Corpus 76.686), a expositora trouxe ao discurso outra decisão,
proferida em 16.12.2008, pela C. 6ª Turma daquele tribunal, em Habeas
Corpus 116.375, na qual os Ministros, ao seu ver, respeitaram os ditames da
lei regente, a partir de refutações, sequencialmente, de cada falso argumento
para se obter a drástica medida. Foram citados, e rebatidos, da mesma
forma com que se faria se o caso fosse de medida cautelar de prisão
preventiva, os argumentos de porte da organização criminosa; gravidade dos
fatos e necessidade de punir responsáveis; complexidade dos fatos investigados.
O próprio sistema logístico-operacional utilizado no Brasil conhecido
como “Guardião”, teve sua constitucionalidade questionada na medida em
que se trata de sistema que, sozinho, memoriza telefones de pessoas que
não tinham sido alvos de interceptação telefônica. Além disso, a entrega de
“senhas” a agentes de polícia federal, sem controle posterior da abrangência
das diligências, coloca em xeque a idoneidade das medidas e sinaliza para o
risco potencial de todos os cidadãos serem, por isso, vítimas de
interceptações ilegais.
O aspecto da subsidiariedade da medida também foi destacado, na
medida em que a interceptação telefônica não pode ser medida desatrelada
de outras medidas prévias que indiquem concretamente a presença de
indícios razoáveis de autoria, e não pode ser realizada se não se passou,
antes, por outros meios de busca de prova menos ofensivos.
Com relação ao prazo de duração da medida, e em atenção aos
projetos que tramitam no Congresso Nacional (ora de 360 dias, ora de 180),
em qualquer caso, de acordo com a palestrante, a defesa fica fragilizada, e o
que se conhece por contraditório diferido fica inviabilizado por ser de
extrema dificuldade a análise da prova produzida.
Daí porque deveriam ser seguidos os requisitos básicos indicados na
precitada Resolução do CNJ, destacadamente: indicar número das linhas,
seus titulares, constar de cada determinação a vedação expressa de
interceptação de terceiros, nome das autoridades responsáveis pela
investigação, aqueles que terão acesso, decisão judicial sempre escrita,
fundamentada e assinada.
Por fim, cogitou-se de responsabilização daqueles que cometem atos
abusivos no âmbito do procedimento de interceptação telefônica e foi, a
propósito, lembrado de Projeto de Lei que traz nova previsão de hipótese de

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crime de abuso de autoridade, houve sugestão de indenização,


representação da autoridade ao CNJ e punição em âmbito disciplinar.

P AINEL : P RESUNÇÃO DE C ULPA , P RISÃO C AUTELAR E


D IREITOS H UMANOS (S ECRETÁRIO DE MESA : D R .
L EONARDO A VELAR M AGALHÃES )
O painel contou com a participação de MAURÍCIO ZANÓIDE DE
MORAES (Professor Livre-Docente Associado da Universidade de São Paulo,
Ex-Presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCCRIM e
Advogado Criminalista); MARCELO LEONARDO (Professor de Direito
Processual Penal da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG, Vice-
Presidente Regional do Estado de Minas Gerais do Grupo Brasileiro da
AIDP e Advogado Criminalista); e FLÁVIA RAHAL BRESSER PEREIRA (Mestre
em Processo Penal pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo
– USP, Presidente do Instituto de Defesa do Direito de Defesa – IDDD e
Advogada Criminalista).
O Professor MAURÍCIO ZANÓIDE DE MORAES criticou a legislação
nacional no que concerne à ausência de sistematização e base para o pleno
vigor do princípio da presunção de inocência.
Ainda alegou que o dispositivo constitucional que trata do tema é
uma presunção de inocência em sentido lato, e não no seu sentido estrito,
devendo ser interpretada de forma abrangente.
Em sua opinião, o Código de Processo Penal foi construído e
estruturado sob a base da presunção de culpa. Sendo que o alegado in dubio
pro reu previsto no Código de Processo Penal não significa presunção de
inocência, mas sim um dos seus aspectos, uma de suas variantes, o qual
apenas deve vigorar para o exame probatório.
Desta forma, o princípio do in dubio pro reu deveria ser utilizado não
apenas para se proferir uma sentença criminal, mas também em eventual
análise da necessidade de decretação da prisão cautelar.
Sobre esse aspecto, entende que a prisão preventiva somente deve ser
imposta se outras medidas cautelares pessoais se mostrarem inadequadas
ou insuficientes, o que depreende uma ideia da regra da proporcionalidade
que coloca a prisão cautelar como ultima ratio das medidas cautelares
pessoais.

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Durante sua explanação, destaca que o aspecto mais importante a ser


resolvido acerca da prisão cautelar é a subjetiva expressão “ordem pública”.
Em sua opinião, aludida questão vem sendo equivocadamente resolvida
por questões meramente materiais, tais como a periculosidade do agente,
gravidade do crime, clamor público e hipotética possibilidade de ser
reincidente na conduta delitiva.
Em sua opinião, a expressão “ordem pública” é e foi construída para
ser um conceito aberto. Dessa forma, essa questão não deve ser resolvida de
dentro para fora, ou seja, não se pode buscar solucionar uma expressão que
nasceu para ser aberta tentando conceituá-la de forma fechada. Afinal, o
conceito de ordem pública sofre alterações durante a evolução da sociedade
e deve ser aberta para que a legislação seja duradoura.
Dentro desse contexto, ressalta que a ordem pública deve ser
controlada de fora para dentro, mediante a criação de limites legais da
expressão ordem pública, ao mínimo necessário, dentro de um panorama
legislativo, com a utilização criteriosa do sistema constitucional e do
princípio da proporcionalidade para eventual utilização de medidas menos
restritivas.
Por fim, destaca que o conceito de ordem pública da forma que vem
sendo adotado é inconstitucional, na medida em que foi posta para ser uma
expressão aberta e sem controle. Sendo que, em um sistema de garantias
fundamentais, não se pode ter uma restrição a um direito fundamental –
liberdade – sem motivo.
Em sua intervenção, o Professor MARCELO LEONARDO inicia tratando
da importância da aplicação de determinados Tratados Internacionais para
a análise da necessidade da prisão cautelar, tais como a Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, Declaração Universal dos
Direitos do Homem de 1948, Pacto Internacional de Direitos Civis e
Políticos de 1966, Pacto de San Jose da Costa Rica de 1969.
Em continuidade, abarca a questão da prisão cautelar à luz da
sentença penal condenatória recorrível, destacando que há evidente conflito
entre o disposto no Código de Processo Penal e a Constituição Federal de
1988.
Com relação à prisão cautelar decorrente da sentença penal
condenatória recorrível faz breve análise crítica dos dispositivos do Código
de Processo Penal, em especial, ao que dispõem acerca da necessidade de se
recolher à prisão para apelar da sentença criminal.

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Ainda alerta sobre o equivocado entendimento do Egrégio Superior


Tribunal de Justiça quanto à análise sistemática do Código de Processo
Penal e a Constituição Federal com relação à prisão cautelar.
Em especial, criticou o teor das Súmulas 09 e 267 do Egrégio Superior
Tribunal de Justiça, as quais consideram inexistir ofensa ao princípio da
presunção de inocência decorrente de dois pontos: necessidade de se
recolher à prisão para apelação criminal e a impossibilidade de efeito
suspensivo em eventual recurso.
Ao final, enalteceu o teor do julgamento do Habeas Corpus nº 91676,
proferido no Plenário do Egrégio Supremo Tribunal Federal, o qual
assevera que a execução provisória da pena, sem a necessária justificativa
da necessidade da prisão cautelar, fere o princípio da presunção de
inocência.
Por sua vez, a advogada FLÁVIA RAHAL iniciou destacando que a
prisão cautelar não traz apenas violação à liberdade de determinada pessoa,
mas também à sua dignidade. Após, passou a fazer análise crítica com
relação à excessiva utilização da prisão cautelar temporária, em especial,
nas operações realizadas pelo Departamento da Polícia Federal.
Em sua opinião, a prisão cautelar deve ser a exceção e não a regra,
devendo ser decretada por decisão fundamentada, bem como devidamente
demonstrado que aludida medida é absolutamente essencial ao caso
concreto.
Ainda afirma que a prisão temporária vem sendo utilizada de forma
equivocada e excessiva, com base na Lei Federal nº 7.960/89, a qual foi
objeto de diversas ações diretas de inconstitucionalidade (ADIn), em razão
de ter sido criada mediante medida provisória, em evidente violação à
reserva do Poder Legislativo.
A finalidade teórica da prisão temporária é possibilitar, em curto
prazo, a colheita de prova e indícios ainda na fase investigatória. Entretanto,
de acordo com seu entendimento, o que vem se percebendo na prática é que
aludida finalidade está sendo desvirtuada, tendo como verdadeiro objetivo
criar obstáculos para o exercício do direito de defesa do investigado.
Ainda destacou o teor do julgamento do Habeas Corpus nº 95.099-4/SP
proferido pelo egrégio Supremo Tribunal Federal, no qual o Ministro
Relator Eros Grau reafirmou a necessidade de que o julgador que decreta a

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prisão temporária deve analisar a sua efetiva indispensabilidade, sem que


haja desvio de sua verdadeira finalidade.
Por fim, faz crítica direta ao uso da prisão temporária como forma de
compelir o investigado a prestar depoimento, fazer uma confissão ou
mesmo participar de delação premiada, sob a injusta ameaça de a prisão
temporária ser convertida em prisão preventiva.

P ALESTRA : G LOBALIZAÇÃO E D IREITO P ENAL (S ECRETÁRIA


DE MESA : D Rª M ARIANA R OCHA )

O tema proposto é amplo, o que conferiu aos palestrantes a


possibilidade de abordá-lo sob os mais diferentes aspectos, cruzando-se e
distanciando-se em alguns pontos.
De qualquer forma, partiram todos de um pressuposto comum: a
globalização é um fato irreversível. JOÃO MESTIERI destacou que “a
globalização não é nenhuma novidade. Portugal do século XVI praticava a
globalização”, buscando a dominação dos pontos de interesse comercial
espalhados pelo mundo. HELENA REGINA LOBO DA COSTA asseverou que a
globalização “se reflete num dado de realidade, num dado que não pode ser
negado, num fato que é amplo, que é verificado nos planos econômico,
político, social e cultural”.
Destacando a irreversibilidade do fenômeno, desse fato
inquestionável que é a globalização, ANDREI ZENKNER SCHMIDT apontou a
direção por onde pode evoluir a discussão sobre o tema: “a globalização é
um fato, a gente não tem mais como muito escapar disto. Agora as opções
políticas que se fazem a partir desse fato chamado globalização, estas sim
são mutáveis e sobre estas a gente pode contestar o dogmatismo que nos é
colocado”.
Nesse sentido, três pontos principais foram levantados pelos
palestrantes, que chamaram atenção para questões que vêm se tornando
problemas não resolvidos, ou mesmo potencializados pela globalização.
1. A globalização é um fenômeno de repercussões múltiplas. Mapeá-
las no campo do Direito Penal conduz, inevitavelmente, ao ramo do Direito
Penal Econômico, dada a ligação de dependência desse ramo do direito com
as políticas econômicas adotadas por um país.
Com efeito, no contexto das economias integradas pela globalização,
o Direito Penal Econômico pode ser utilizado como uma expressiva

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ferramenta de garantia e manutenção das políticas econômicas adotadas


pelos países. Conforme essas políticas vão se adaptando à ordem mundial,
as normas penais acompanham essa evolução, ainda que, na maior parte
das vezes, em um ritmo mais lento.
Por esse motivo, a compreensão do que venha a ser crime econômico
não pode estar dissociada da economia e, esta, por sua vez, está cada vez
mais vinculada à globalização. É impossível definir o Direito Penal
Econômico sem compreender as regras e os propósitos da economia
globalizada.
Todavia, em que pese a aplicação universal de regras de economia,
existe uma dificuldade em se definir um conceito universal de crime
econômico. Isso porque, como acentuou ANDREI ZENKNER SCHMIDT, “a
definição de crimes econômicos, ela está nitidamente arraigada a cada
legislação de cada país” de forma que “é absolutamente impossível
pretendermos uma definição de crimes econômicos que seja válida para
qualquer país em qualquer momento”.
Segundo ANDREI SCHMIDT, um exemplo disso é o fato de que no
Brasil uma fraude previdenciária, que teria tudo para ser tratada como
crime econômico, na falta de um tipo penal específico, é tratada como um
crime de estelionato, de dano, seguindo, portanto, a lógica da adequação
típica de uma conduta da criminalidade clássica.
Ou, ainda, o exemplo do crime de evasão de divisas, cuja conduta
tipificada existe paradoxalmente à inserção cada vez maior do Brasil na
lógica do mercado globalizado.
Portanto, ainda que a globalização repercuta de forma acentuada na
economia interna de um país, e as políticas econômicas nele fixadas estejam
intimamente ligadas ao que se tem por crime econômico, persiste existindo
uma clausura dogmática do Direito Penal (maior ou menor, dependendo da
legislação do país) que impede o alcance de um conceito global de crime
econômico.
2. Outra repercussão da globalização reflete-se no enfraquecimento
do poder dos Estados. HELENA REGINA LOBO DA COSTA descreveu diversos
espaços de poder que deixaram de pertencer ao Estado.
No âmbito econômico, o espaço de regulação dos mercados, os quais,
cada vez mais integrados, especializam-se e necessitam de regulamentações
específicas, vem sendo tomado por instâncias reguladoras do mercado

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global, como por exemplo a Organização para Cooperação e


Desenvolvimento Econômico (OCDE), a Organização Mundial do Comércio
(OMC), o Banco Internacional para a Reconstrução e o Desenvolvimento
(BIRD) o Fundo Monetário Internacional (FMI).
No âmbito do Judiciário, o Estado também perde espaço, na medida
em que as grandes companhias preferem vincular os seus grandes negócios
à arbitragem internacional, e não mais submetê-los ao Poder Judiciário
estatal, que vem se mostrando uma alternativa mais onerosa em diversos
aspectos.
Ressaltou-se, ainda, outro fator de grande impacto no
enfraquecimento do poder estatal que tem sido o surgimento e expansão de
conglomerados empresariais, cujos faturamentos muitas vezes são maiores
do que PIBs de países inteiros, o que lhes garante um gigantesco poderio
econômico em detrimento do poder dos Estados. Nos países periféricos,
acrescenta-se o fato de que os Estados se veem obrigados a ceder ainda mais
espaços de poder a fim de garantir que os conglomerados se instalem em
seu território e não no país vizinho.
Em que pese os conglomerados empresariais terem buscado socorro
junto ao Estado, com a recente crise econômica, na opinião da palestrante,
foram situações pontuais que não afastam a conclusão de que “esse dado da
perda de focos de poder do Estado é um dado irreversível – que é um dado
que não necessariamente é ruim, significa que outros focos de poder
surgiram e que o Estado se enfraquece”.
Acrescentou HELENA REGINA LOBO DA COSTA que “o grande
problema surge quando esse Estado enfraquecido, que não tem mais força,
não tem mais poder para regular setores da economia e também setores
sociais, começa a sofrer toda a influência que vem, sobretudo, da mídia que
tem o papel cada vez maior no sentido de pressionar esse Estado
enfraquecido a adotar medidas que talvez ele não tenha mais capacidade de
adotar”.
É nesse contexto que ganha relevo o chamado Direito Penal
Simbólico. Com efeito, por meio da promulgação de leis penais que
funcionam como uma resposta barata e de expressão, o Estado transmite a
mensagem de que está tomando medidas para resolver uma situação
problemática, a despeito da incapacidade estrutural da norma de produzir
um resultado instrumental.

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Como esclareceu a palestrante “quando o legislador cria essa norma


penal, ele não quer resultados instrumentais. Ele quer simplesmente passar
uma mensagem simbólica, por isso ele não se preocupa em desenvolver um
contexto, uma situação, um instrumento ou mecanismos pra que essa
norma consiga ser efetivamente aplicada na realidade”.
Portanto, além de essa norma penal não conseguir atingir a
efetividade, seu grande efeito contraprodutivo é desonerar outras instâncias
de responsabilidade da tarefa de buscar soluções efetivas, na medida em
que já foi dada uma resposta estatal ao problema, cujo efeito simbólico
acalma a sociedade.
A resposta a esse problema, segundo HELENA REGINA LOBO DA
COSTA, não está na busca de um Direito Penal Efetivo, em oposição ao
direito penal simbólico, mas sim na busca de alternativas no campo de
outras medidas estatais, ou outras estratégias sociais, inclusive, fora do
aparato jurídico.
A proposta de ANDREI ZENKNER SCHMIDT segue no sentindo de que o
Direito Administrativo deve prevalecer ao Direito Penal Econômico,
destacando-se neste a sua mera instrumentalidade: “a única forma de a
gente resgatar um pouquinho de segurança jurídica dentro desses tipos
penais é exatamente a partir da lógica das normas penais em branco. É
exatamente buscando no ilícito administrativo a resposta do ilícito penal.
Obviamente que o ilícito penal não sucumbindo por completo ao ilícito
administrativo. Um ilícito penal que resgata o ilícito administrativo e
impregna o injusto penal em cima desse ilícito administrativo, com todas as
garantias formais e materiais do Direito Penal”.
3. A globalização tem seus reflexos na economia, no Direito Penal
Econômico, no enfraquecimento do Estado, na expansão do Direito Penal
Simbólico e tudo isso, em última instância, toca aos seres humanos, em suas
relações. São eles os sujeitos sobre quem recaem todos os efeitos da
globalização, embora esse enfoque seja raramente aprofundado quando se
discute o tema.
JOÃO MESTIERI enfatizou que “a globalização é de homens e mulheres,
homens e mulheres pertenciam a uma determinada posição e, através de
aglutinações, em vários segmentos da vida de relação, elas vão se
aproximando ou sendo aproximadas para que se obtenha um resultado”.
E concluiu o palestrante: “essa falta de capacidade de interpretar a
globalização em relação ao ser humano é que vem a ser, a meu ver, o grande

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problema para se equacionar os fracassos da globalização, não os sucessos


da globalização”.
Focar a discussão sobre a globalização no ser humano pode parecer
uma redução de escala impraticável e sem sentido. Mas a verdade é que a
globalização, apesar de irreversível, não significará um efetivo progresso
enquanto seus efeitos não forem avaliados na esfera da vida individual do
ser humano, ou, ainda, no nível dos pequenos núcleos de seres humanos
que se relacionam e habitam o globo.

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