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O olfato como objeto de história: a estética dos cheiros

Palmira Margarida Ribeiro da Costa Ribeiro


pmargarida@ie.ufrj.br
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Programa de Pós-Graduação em História das
Ciências, das Técnicas e Epistemologia – HCTE/UFRJ

Nadja Paraense dos Santos


nadja@iq.ufrj.br
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Química

Resumo
Este trabalho tem como objetivo propor a historiografia dos cheiros, através das perspectivas
das sensibilidades e da História das Ciências e, nesta, para além a interação com o tema saúde.
O sentido olfativo como objeto de estudo é permeado por preconceitos e, muitos desses,
fomentados pela própria história e avanço do homem na era da razão. Os cheiros são tratados
como irrelevantes ou frivolidades e, por isso mesmo, de menor importância coletiva ou social.
Os cheiros exalam histórias e costuram narrativas e memórias, já que, de todos os sentidos, o
olfato é o que está relacionando diretamente e biologicamente à memória.
A re-negação do sentido olfativo nos estudos historiográficos e nas ciências (por um longo
período) levanta questões pertinentes sobre nossa cultura e comportamento no Brasil. Diante
do silenciamento dado aos aromas sua apresentação de forma material e menos sublimar faz-
se necessária. Aqui, uma tentativa de enfrascar ser tão etéreo a fim de analisar sua importância
que se faz, silenciosamente, presente em nossas vidas e concepções.

Palavras-Chave: olfato; sensibilidade; sensoridade; história; arte; emoções.

Introdução

O olfato foi marginalizado porque é percebido como ameaça ao regime abstrato e


impessoal da Modernidade, em virtude de sua radical interioridade, de sua propensão para a
transgressão de fronteiras e de sua potência emocional (CLASSEN, 1996, p.15).

No período do Iluminismo (século XVIII), o sentido olfativo foi subjugado, a fim de
assinalar mais uma distinção afirmativa da superioridade do homem sobre outros animais. O
sentido da visão foi celebrado como de maior importância ao homem racional, sendo o ato de
cheirar julgado como algo indigno de seres civilizados. A visão, a audição, o paladar e o tato
sobrepujaram-se, enquanto o olfato foi ocultado ao lugar do que é inferior, bestial, sem
cognição, não racional e não contribuinte para o processo civilizatório1.
De fato, o sentido olfativo é considerado o mais primitivo, já que ele possui ligação
direta com o hipotálamo, não tendo acesso ao tálamo, como todos os outros sentidos. O
tálamo, que é uma parte do sistema límbico, reorganiza todos os outros estímulos sensoriais,
transpondo-os para as suas devidas áreas corticais a fim de serem interpretados. Apenas os
sinais do olfato são enviados diretamente ao córtex cerebral sem que cheguem a ser
decodificados (filtrados) pelo tálamo. Ou seja, o que se cheira é o que se leva2 e tudo isso
ocorre em menos de um segundo, não há como fugir e não é possível escolher parar de
respirar.
Os sentidos da visão, do tato, do paladar e da audição são controláveis, o olfato não,
ele é fugaz. Se o cheiro não é “filtrado”, ele precisaria, diante de um processo civilizador que
se esforçava para conter e disciplinar as emoções, ser equilibrado ou silenciado. Até o final do
século XVIII, os perfumes e produtos corporais eram em maioria de base animal ou pujantes,
quentes, resinoides e raízes que exalavam aromas viscerais, herbáceos e telúricos junto aos
corpos humanos, já que, acreditava-se, esta junção de cheiros entéricos contribuía para o
vigor, a virilidade e a energia.
No entanto, o uso dos aromas com tonalidades animais/ entéricas passou a ser
reprovado junto ao crescimento dos debates higienistas e dos avanços da química, constatou-
se que a utilização de material orgânico nos corpos humanos era prejudicial à saúde. Algália3,
almíscar4, e âmbar cinzento5, aromas retirados de fezes e vísceras de animais, passaram a ser


1
Referência aos estudos de Norbert Elias sobre o processo civilizador dos modos e comportamentos na Europa.
ELIAS, Norbert. O processo civilizador: Uma história dos costumes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1994
2
Estudos recentes como do pesquisador Fábio Papes (UNICAMP) aponta que “A construção celular e molecular
do epitélio olfatório depende de instruções genéticas e também se altera conforme a experiência de
vida”.Retirado de http://revistapesquisa.fapesp.br/2017/05/23/variacoes-do-olfato/ acessado em 22/09/2017.
2
Estudos recentes como do pesquisador Fábio Papes (UNICAMP) aponta que “A construção celular e molecular
do epitélio olfatório depende de instruções genéticas e também se altera conforme a experiência de
vida”.Retirado de http://revistapesquisa.fapesp.br/2017/05/23/variacoes-do-olfato/ acessado em 22/09/2017.
3
Aroma retirado da urina do gato algália
4
Aroma de forte odor retirado da secreção de glândulas do cervo almiscarado.

condenados. No entanto, não era apenas a saúde que estava em jogo e a questão higiênica
servia mais como tempero ideológico. Não que o estamento da higienização não estivesse em
evidência, mas ele não vinha somente como salvaguarda da saúde, mas também da
moralidade, do comportamento civilizado e do silenciamento/controle das emoções, das
‘paixões’ (HUME, 1739), pois os cheiros de origem animal aguçavam, por ressonância, a
condição de bicho, as vísceras, fezes e sensações emocionais mais animalescas e primitivas. O
comportamento emocional e as sensibilidades passam a ser questão de civilidade e não
exatamente de saúde.
Era preciso separar em dois mundos: ócio - sujeira e higiene - moralidade. Era
necessário, por exemplo, ter o pudor com o corpo em relação ao toque da água e da
sublimidade sedutora dos aromas no corpo. Antes da domesticação do olfato fomentada pela
nova concepção de aromas através da industrialização (no último quartel do século XIX),
sentir os cheiros das fezes, dos corrimentos vaginais ou do hálito oferecia indícios da saúde do
intestino, do estômago e do órgão reprodutor feminino e, para além da saúde, reconhecer a
paixão ou dissabor por alguém através de seus cheiros.
Todavia, sentir cheiro de fezes6 e vísceras não cabia mais entre os modos do homem
moderno, sendo necessário padronizar os odores, catalogar quais representariam limpeza,
frescor ou beleza, tornando os odores animais e viscerais um universo fora da conduta
esperada de um cidadão civilizado e com o seu lado farejador completamente mudo e
domesticado.

A indústria da concepção olfativa e os aromas no Brasil

A partir do pós-Segunda Guerra, no Brasil, a industrialização do cheiro lançou mão de


estratégias para transformar o aroma natural do corpo em algo repugnante e motivo de
inaceitação social. Os aromas industriais, então impregnados nas casas e nos corpos, pelo
crescimento do consumo de produtos de limpeza e cosméticos, tornaram-se regra de
adequação social e boa conduta. A partir da década de 1950, as indústrias estrangeiras,


5
Aroma retirado de material viscoso do estômago das baleias.
6
Atualmente há inúmeros produtos químicos, com grande apelo publicitário e aceitação de público,que
neutralizam os odores de fezes. Eles são comercializados sob a forma líquida e devem ser borrifados pelo
indivíduo antes de fazer as necessidades básicas a fim de ‘’tapar’’ o cheiro das fezes.

conjuntamente, a um projeto de modernização e apoio publicitário, firmaram o consenso de
que exalar os odores naturais do corpo seria sinônimo de pobreza (KOBAYASHI, 2015),
sujeira e falta de higiene. Sentir o cheiro do corpo tornou-se, pela nova sensibilidade olfativa,
produzida socialmente junto às “sugestões” do processo industrial e modernizador, algo
imoral. Era preciso regrar os corpos, seus cheiros, os odores que vinham das vísceras, do
sexo, que saíam dos orifícios e suavam a pele. Os odores deveriam ser equilibrados,
escondidos, dissimulados, calados. Era urgente silenciar os narizes.
Nesse período, a limpeza com artefatos de fabricação caseira e natural, prática da
medicina popular brasileira7, ainda perdurava. Após a Segunda Guerra Mundial e
conjuntamente ao processo de modernização do país, os hábitos e costumes populares de
limpeza passariam a ter, como fomentado pelas publicidades das indústrias estrangeiras,
aspecto de atraso. Kobayashi e Gilberto Hochman (2015) apontam que as mudanças de
hábitos de limpeza corporal foram resultado de um processo social e cultural de
transformação de funções fisiológicas naturais, principalmente no referido período.
Em meio aos produtos naturais largamente utilizados, no Brasil, como práticas de
limpeza do organismo, destacam-se os sabões à base de carvão e gordura, águas e banhos de
ervas-aromáticas, uso este que não esboçava, contudo, a pretensão de ocultar processos
corpóreos, que jamais cessariam. Banhos diários mantinham a limpeza do corpo, mas não era
regra que o “perfume” natural do mesmo deveria ser exterminado. Pelo contrário, era avaliado
como condição natural, fazendo parte da preservação da saúde do organismo. Afinal, no
interior das práticas da medicina popular8, sentir e vigiar os cheiros originados nas vísceras do
corpo era uma forma de observar a sua boa funcionalidade, o conhecimento pessoal sobre o
corpo por meio do cheiro era fundamental para a percepção do bom funcionamento do
organismo.
Esse conhecimento pode ter sido prejudicado com a propagação de uma nova conduta
social onde cheirar-se não era mais permitido, somando-se a esse fato a perda de percepção


7
Para a bióloga Fátima Branquinho (2007, p.10), a medicina popular refere-se a um paradigma específico
e “uma visão de corpo – anatomia e fisiologia – e da natureza que lhes é própria e que não é possível de
ser abordada conceitualmente pela biologia”.
8
Antônio Carlos Diegues (1999) considera que medicina tradicional é parte da cultura de comunidades
tradicionais que podem ser quilombolas, indígenas, populações ribeirinhas, etc. Já a medicina popular
seria uma gama de transformações e junções de vários signos de medicinais tradicionais, praticada por
comunidades não necessariamente tradicionais como rurais, interioranas ou até mesmo urbanas
periféricas.

olfativa diante de um grupo de aromas artificiais presentes nos produtos industriais, que
destreinaram o olfato. A utilização dos produtos industriais, dotados de aromas artificiais,
silenciavam os odores fisiológicos passando o indivíduo a ter dificuldades para identificar o
mau funcionamento de algum órgão do corpo e a sensações negativas com o próprio
organismo como nojo das fezes, urina e suor acarretando, este comportamento, um
distanciamento do indivíduo com o próprio corpo e suas percepções sensoriais não só sobre
saúde, mas sobre o conhecimento da própria sensibilidade.
Neste aspecto, analisando a padronização dos corpos, Le Breton (2003), discerne
sobre o corpo como lugar acessório. Para esse autor, a existência corporal está infundida no
contexto sociocultural e é o canal por onde as relações sociais são concebidas e
experimentadas. Com isso, é possível investigar as representações e imaginários, tanto do
individual, como do coletivo, através das construções que os indivíduos apresentam acerca do
corpo e como este representa o homem na coletividade, já que "o processo de socialização da
experiência corporal é uma constante da condição social do homem" (LE BRETON, 2003: p.
8).
Para Corbin (1987), a sensibilidade olfativa modifica-se através do tempo e recebe
diversos formatos ou associações nos múltiplos segmentos da sociedade. Consequentemente,
todo este novo aparato aromático industrial viria a modificar as tonalidades e percepções
sociais olfativas dos indivíduos.

Considerações finais

O Brasil, segundo a Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial (ABDI), já é o


terceiro maior mercado consumidor da indústria de Higiene Pessoal, Perfumaria e Cosméticos
(HPPC)9 (China lidera o mercado por questão quantitativa). Na historiografia brasileira há
estudos sobre a introdução dos produtos industriais de higiene pessoal no país e de como esse

9
O Brasil manteve em 2013 o título de terceiro maior mercado consumidor do mundo. A venda de
produtos de HPPC no país somou US$ 43 bilhões neste ano, a preço praticado no varejo, conforme dados
do Instituto Euromonitor. O Brasil participa com 9% no consumo mundial de HPPC e com 54% na
América Latina. Somos também o primeiro mercado consumidor em desodorante e fragrâncias; o segundo
em banho, cabelos, depilatórios, infantis, masculino e proteção solar; o terceiro em maquiagem e higiene
oral; e o quinto em pele. Destaque para duas categorias de produtos, desodorante e condicionadores de
cabelo, ambos com cerca de 22% de participação no consumo mundial. Informação retirada do site da
ABDI: http://www.abdi.com.br/PublishingImages/HPPC/2014-NEWSLETTER%20PDS, acessado em 12
de outubro de 2015.

fator está em consonância com o movimento de modernidade e o processo civilizatório
nacional. Todavia, há poucos trabalhos de historiografia inclinados, diretamente, à questão
dos odores, na mudança da sensitividade olfativa e de sua perda sensorial.
Cheiros ainda estão presos ao aspecto higiênico sendo preciso transpor essa barreira
no mundo acadêmico brasileiro. Linda B. Buck e Richard Axel ganharam o prêmio Nobel, em
2004, ao mostrarem que a cadeia de receptores olfatórios pertencem a uma família de genes
composta por oitocentos genes humanos, a maior até agora já estudada. Como um estudo de
tamanha importância ainda é apenas alocado à saúde quando o assunto é ciência?
Assim, esta pesquisa pretende analisar e compreender como o olfato industrializado
influenciou não apenas o aspecto modernizador nacional, mas também as questões inerentes
ao imaginário, aos modos e comportamentos, o que pode ser observado pelas transformações
nos hábitos que vão desde limpeza corporal até categorizações, por exemplo, sobre o corpo da
mulher10 ou a forma como lidamos com nossas fezes.
Essas questões de cunho sensível e inerentes ao cheiro podem ser investigadas junto à
arte e à literatura brasileira, como fontes para seguir o rastro dos aromas. Elas podem auxiliar
a esmiuçar como ocorreu a amplificação do mercado de consumo da indústria de perfumaria/
higiene de uma população que se tornou, no século XXI, um dos maiores mercados
consumidores do ramo. Usam demasiadamente produtos ‘’silenciadores’’ de cheiros do
banheiro, mas apresentam dificuldade em absorver obras como do artista Tunga que trazem à
tona o desejo e o extinto através da estética de matéria bruta, dentre elas, as fezes. Afinal,
nossos excrementos não são considerados civilizados e até os dias atuais, em franco processo
de desnaturalização dos cheiros do corpo humano, as experiências relacionadas à
manifestação, observação ou admissão desses aromas ganham um status de oposição aos
ideais de saúde e higiene, mas, principalmente de inadequação social e moral. Não é à toa que
obras artísticas e literárias que trazem a pungência do erotismo, dos excrementos e dos
instintos são barrados por nossos olhos, ouvidos e boca e retirados dos museus. O nariz
civilizado, tristemente, aceita.


10
Atualmente, a indústria de cosmética junto a um discurso sobre higiene criou um parâmetro de que a
vagina precisa ter cheiro de baunilha ou doces sintéticos. Há perfumes, sabonetes e lenços perfumados
exclusivos para a região, todos com cheiros sintéticos que lembram doces fomentando a ideia de que o
cheiro natural vaginal é ruim ou sujo e que para ser considerada limpa e saudável necessita exalar aromas
sintéticos.

Referências
BRANQUINHO, Fátima. O poder das ervas na sabedoria popular e no saber científico. Rio
de Janeiro: Mauad X, 2007.
CLASSEN, Constance; HOWES, Davis e SYNNOTT, Anthony. Aroma: a história cultural
dos odores. Trad. Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996.
CORBIN, Alain. Saberes e Odores: o olfato e o imaginário nos séculos dezoito e dezenove.
São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
DIEGUES, A. (org). Os saberes Tradicionais e a Biodiversidade no Brasil. IPHAN, São
Paulo, 1999.
ELIAS, Norbert. O processo civilizador: Uma história dos costumes. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Ed., 1994, v I.
HUME, D. Tratado da natureza humana. Trad. Déborah Danowski. São Paulo: Editora
UNESP/Imprensa Oficial do Estado, 2001.
KOBAYASHI, Elizabete, HOCHMAN, Gilberto. O "CC" e a patologização do natural:
higiene, publicidade e modernização no Brasil do pós-Segunda Guerra Mundial. An. mus.
paul. [online]. 2015, vol.23, n.1, pp. 67-89.ISSN 1982-0267.
LE BRETON, David. Antropologia do corpo e modernidade. Petrópolia, Ed. Vozes, 2011.
MALNIC, Bettina. O cheiro das coisas: o sentido do olfato: paladar, emoções e
comportamentos. Rio de Janeiro: Vieira &Lent, 2008. (Ciência no bolso).
TUNGA. Cooking Crystals Expanded. Museu de Inhotim, 2010.
VIGARELLO, Georges. O limpo e o sujo, uma história da higiene corporal. São Paulo:
Martins Fontes, 1996.
ZANARDI, Oscar José. O perfume em sua possibilidade de ser uma obra de arte. 2014. 168
p. Dissertação - UFSC. Orientador, Celso ReniBaida. 2014.

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