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Mate do pastor.

Eu e Carla nos conhecemos há cerca de três anos no trabalho e uma amizade


improvável aconteceu. Nós éramos tão diferentes, discordávamos quase
sempre, desde opiniões sobre política até a marca da cerveja, a posição da
cadeira ou a puta-que-o-pariu. Essas nossas eternas discordâncias me tiravam
do sério, me davam uma agonia e às vezes uma vontade súbita de nunca mais
olhar pra cara dela, um sentimento que durava exatamente até o exato instante
de seu convite seguinte me chamando para fazer qualquer coisa.

Em geral íamos para a sua casa, tomávamos umas cervejas, com os mesmos
petiscos de sempre, enquanto falávamos sobre todo tipo de coisa, sempre
garantindo de contrariar uma a outra, com pequenas pausas para um silêncio
em que Carla matinha seus olhos fixos nos meus, com um sorriso de canto de
boca, que me desconcertava completamente, embora o desconcerto parecesse
ser todo dela. Então eu rapidamente fazia questão de acabar com aquele
momento fazendo alguma piada idiota para desviar daquele enigma na minha
frente.

Mas nesse sábado em que ela me convidou ir à sua casa, não repetimos nosso
ritual, apesar de termos cerveja, os petiscos que sempre comemos e de
estarmos sentadas uma de frente pra outra naquele mesmo sofá marrom que
nunca saiu do lugar, meio velho, meio novo, muito formal para sua casa, com
furos de cinza de cigarros de outras pessoas que ela também levava para se
sentar nele. Nesse sábado, Carla inventou de jogar xadrez. Isso mesmo, x-a-d-
r-e-z em um sábado à tarde.

Me sentei, como sempre me sento, meio de lado, desconfortável, mas esqueci,


logo em seguida, como esqueço todas as vezes, do desconforto de sentar
naquele sofá. O desconforto durava o tempo entre sentar e os primeiros goles
de cerveja, seguido de minha atenção voltada para as palavras que saem da
boca de Carla, que sempre fala mais do que eu. Não existia ideia pior em todo
o mundo do que jogar xadrez, mas assim como tantas outras ideias que ela
tinha de fazer coisas sem sentido pra mim, eu aceitei como quase sempre
acabava aceitando, porque havia algo de inevitável em aceitar convites sem
sentido de Carla. E o meu plano de apenas fazer uma visita, tomar uma cerveja
e conversar sobre coisas levianas, enquanto saboreava a sensação gostosa e
contraditória de me sentir bem perto dela, foi pelo ralo.

Eu não me considero uma pessoa competitiva e ela sabia disso melhor do que
eu, diferente dela, que já se senta e olha para o tabuleiro como se fosse me
devorar, como se traçasse um miniguerra rumo à revolução. Era uma azar
terrível, eu ser do outro bloco, sua inimiga.

Começamos a jogar. Minhas primeiras jogadas -com meu raciocínio ainda lento
e disperso- foram totalmente aleatórias. Mas aos poucos, olhando para seu
sorriso sarcástico, com seus lindos dentes separados, e seus olhos que me
atravessavam, e me deixavam sem fôlego, desarmada, expondo tudo de mais
intimo que guardo em mim, fez meu corpo despertar. Carla dominava
completamente o jogo e tudo indicava que em poucas jogadas ela venceria
sem grandes esforços. Aos poucos, meu corpo foi contraindo, e aquela voz,
rouca, que eu conseguia escutar mesmo quando ela não estava por perto,
agora me chamava à atenção dizendo: –“Vai, é a sua vez”, como se isso não
fosse óbvio e como se ela não soubesse que eu já tinha entregado há muito
tempo aquele jogo, onde minha derrota já havia sido declarada desde o início.

Não passava pela minha cabeça pegar aquele pião, que eu não sabia onde
botar, e jogá-lo pela sua janela, nem me incomodava saber que o jogo já
estava ganho ou a ideia ingênua de que eu poderia virá-lo. Na verdade, o que
eu certamente não queria era acabar com aquele jogo entre nós que já se
arrastava há tempo demais, não queria, de maneira nenhuma, perder o
controle e virar aquele tabuleiro para cima, com as pedras rolando para de
baixo do sofá, enquanto eu subitamente a beijaria e tiraria toda a sua roupa.

No intervalo de tempo que me perdia nessas ideias que não passavam pela
minha cabeça, Carla dizia um sonoro “xeque-mate” e, felizmente, essas
palavras não tinham nada a ver com ela finalizar aquele jogo que parecia
nunca acabar, bem em cima de mim. Apenas tinha acabado o jogo e ainda
estávamos sentadas uma de frente pra outra em seu sofá marrom.
Agora eu precisava voltar para casa. Se eu soubesse que não restaria outra
saída, a não ser aquela porta que dava para fora do apartamento de Carla,
talvez tivesse feito um pouco mais de esforço para aquele jogo, que parecia
não ter fim, durar mais um pouco. Na despedida, Carla me estala um beijo na
boca, como se tivesse visto tudo que não havia passado pela minha cabeça
durante o jogo, com a maior normalidade do mundo, em mais uma despedida
corriqueira entre duas amigas, me fazendo duvidar se aquilo realmente havia
acontecido ou se era apenas consequência de minha embriaguez.

Volto para casa pensando naquele jogo ridículo e entediante que me fez perder
completamente o eixo, entre jogadas e as mãos de Carla que pareciam ser o
único motivo que me fazia acompanhar os movimentos das peças. Chegando
em casa, dou de cara com Eduardo. Ele me pergunta como foi o encontro com
Carla e eu respondo: -“foi como sempre”. Conversamos com palavras
mecânicas, como pareciam as primeiras jogadas de Carla para avançar
astutamente diante da minha fragilidade e dignidade, totalmente perdida
naquela desgraça de jogo, que ela me fez, com aquele seu jeitinho irritante que
tem de me convencer tão facilmente a jogar.

Vou para cama meio bêbada, adormeço e tenho um sonho esquisito.

De rependente, me vejo em pé, em frente a Eduardo, em cima do tabuleiro. Ele


começa o jogo de forma totalmente previsível quando segura a minha cabeça e
começa a passar sua língua pelo meu pescoço; o peão anda duas casas, e4.
Ficamos bem perto, um de frente para o outro; e5. Eu o afasto, encostando a
cabeça no ombro, enquanto um arrepio percorre o meu corpo; a rainha desliza
pelo tabuleiro, com a astúcia e timidez que prepara o espaço da presa de forma
silenciosa Dh5. Suas mãos tendenciosas em movimentos rápidos começam a
arrancar a minha roupa enquanto sua boca se aproxima de minha barriga;
cavalo pula para frente, Cc6. Eu já completamente nua, dou um passo para
trás até encostar a minhas coxas na cama; Bc4. Sou empurrada pra cama e ele
se posiciona por cima de mim, em uma previsibilidade patética de avanço
voraz, enquanto eu rio cinicamente por baixo; Cf6; Debochada; avanço com
qualquer pião. Ele goza; Dxf7.
Acordo num rompante, meio confusa e assustada, tentando entender onde eu
estava e discernir o que era real e o que era sonho, com a imagem viva da
última cena do sonho, quando olho de fora para o tabuleiro, e vejo o desenho
exato em que terminou meu jogo com Carla, um provável e óbvio mate do
pastor.

Entre minhas coxas, percebo que estou úmida, mas Eduardo não está ao meu
lado na cama. Pego o celular para ver a hora, tem uma mensagem de Carla.
Sem muito ânimo e coragem respiro e a abro. Não tem grandes surpresas. Ela,
de jeito meio superficial e formal diz que adorou a tarde e me convida para
mais uma partida de xadrez em sua casa em outro dia qualquer.

Eu penso em lhe contar a verdade. Penso em dizer nunca tive vontade ou


intenção de jogar seu peão pela janela, de virar seu tabuleiro de xadrez até que
as peças rolassem para de baixo daquele sofá em que eu não queria jogar
xadrez, ou sentar para conversar ou beijar sua boca e acabar tirando sua
roupa, talvez eu devesse contar que era uma grande mentira que eu tenha me
apaixonado por ela e que aquele beijo bobo que ela roubou, sem mais e sem
menos, que parecia quase sem querer, e que talvez tenha sido mesmo sem
querer, na nossa despedida, não era nada para mim e nem fazia agora o meu
corpo tremer.

Mas, a única coisa que consegui escrever, foi: “claro, vamos jogar mais uma
partida de xadrez”.

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