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Em geral íamos para a sua casa, tomávamos umas cervejas, com os mesmos
petiscos de sempre, enquanto falávamos sobre todo tipo de coisa, sempre
garantindo de contrariar uma a outra, com pequenas pausas para um silêncio
em que Carla matinha seus olhos fixos nos meus, com um sorriso de canto de
boca, que me desconcertava completamente, embora o desconcerto parecesse
ser todo dela. Então eu rapidamente fazia questão de acabar com aquele
momento fazendo alguma piada idiota para desviar daquele enigma na minha
frente.
Mas nesse sábado em que ela me convidou ir à sua casa, não repetimos nosso
ritual, apesar de termos cerveja, os petiscos que sempre comemos e de
estarmos sentadas uma de frente pra outra naquele mesmo sofá marrom que
nunca saiu do lugar, meio velho, meio novo, muito formal para sua casa, com
furos de cinza de cigarros de outras pessoas que ela também levava para se
sentar nele. Nesse sábado, Carla inventou de jogar xadrez. Isso mesmo, x-a-d-
r-e-z em um sábado à tarde.
Eu não me considero uma pessoa competitiva e ela sabia disso melhor do que
eu, diferente dela, que já se senta e olha para o tabuleiro como se fosse me
devorar, como se traçasse um miniguerra rumo à revolução. Era uma azar
terrível, eu ser do outro bloco, sua inimiga.
Começamos a jogar. Minhas primeiras jogadas -com meu raciocínio ainda lento
e disperso- foram totalmente aleatórias. Mas aos poucos, olhando para seu
sorriso sarcástico, com seus lindos dentes separados, e seus olhos que me
atravessavam, e me deixavam sem fôlego, desarmada, expondo tudo de mais
intimo que guardo em mim, fez meu corpo despertar. Carla dominava
completamente o jogo e tudo indicava que em poucas jogadas ela venceria
sem grandes esforços. Aos poucos, meu corpo foi contraindo, e aquela voz,
rouca, que eu conseguia escutar mesmo quando ela não estava por perto,
agora me chamava à atenção dizendo: –“Vai, é a sua vez”, como se isso não
fosse óbvio e como se ela não soubesse que eu já tinha entregado há muito
tempo aquele jogo, onde minha derrota já havia sido declarada desde o início.
Não passava pela minha cabeça pegar aquele pião, que eu não sabia onde
botar, e jogá-lo pela sua janela, nem me incomodava saber que o jogo já
estava ganho ou a ideia ingênua de que eu poderia virá-lo. Na verdade, o que
eu certamente não queria era acabar com aquele jogo entre nós que já se
arrastava há tempo demais, não queria, de maneira nenhuma, perder o
controle e virar aquele tabuleiro para cima, com as pedras rolando para de
baixo do sofá, enquanto eu subitamente a beijaria e tiraria toda a sua roupa.
No intervalo de tempo que me perdia nessas ideias que não passavam pela
minha cabeça, Carla dizia um sonoro “xeque-mate” e, felizmente, essas
palavras não tinham nada a ver com ela finalizar aquele jogo que parecia
nunca acabar, bem em cima de mim. Apenas tinha acabado o jogo e ainda
estávamos sentadas uma de frente pra outra em seu sofá marrom.
Agora eu precisava voltar para casa. Se eu soubesse que não restaria outra
saída, a não ser aquela porta que dava para fora do apartamento de Carla,
talvez tivesse feito um pouco mais de esforço para aquele jogo, que parecia
não ter fim, durar mais um pouco. Na despedida, Carla me estala um beijo na
boca, como se tivesse visto tudo que não havia passado pela minha cabeça
durante o jogo, com a maior normalidade do mundo, em mais uma despedida
corriqueira entre duas amigas, me fazendo duvidar se aquilo realmente havia
acontecido ou se era apenas consequência de minha embriaguez.
Volto para casa pensando naquele jogo ridículo e entediante que me fez perder
completamente o eixo, entre jogadas e as mãos de Carla que pareciam ser o
único motivo que me fazia acompanhar os movimentos das peças. Chegando
em casa, dou de cara com Eduardo. Ele me pergunta como foi o encontro com
Carla e eu respondo: -“foi como sempre”. Conversamos com palavras
mecânicas, como pareciam as primeiras jogadas de Carla para avançar
astutamente diante da minha fragilidade e dignidade, totalmente perdida
naquela desgraça de jogo, que ela me fez, com aquele seu jeitinho irritante que
tem de me convencer tão facilmente a jogar.
Entre minhas coxas, percebo que estou úmida, mas Eduardo não está ao meu
lado na cama. Pego o celular para ver a hora, tem uma mensagem de Carla.
Sem muito ânimo e coragem respiro e a abro. Não tem grandes surpresas. Ela,
de jeito meio superficial e formal diz que adorou a tarde e me convida para
mais uma partida de xadrez em sua casa em outro dia qualquer.
Mas, a única coisa que consegui escrever, foi: “claro, vamos jogar mais uma
partida de xadrez”.