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Einstein,

SILVIO R. A. SALINAS

o atomismo
e a teoria
do movimento
browniano
SILVIO R. A.
SALINAS é professor do
Departamento de Física
Geral do Instituto de Física
da USP.

O
mundo microscópico das partículas (áto-

mos, moléculas) em perene movimento e

as leis visíveis do universo macroscópico


da termodinâmica. Tanto na tese quanto

no artigo sobre o movimento browniano

há propostas para a determinação do

ano miraculoso de Eins- número de Avogadro, grandeza paradig-

tein é principalmente mática do novo atomismo, equivalente ao

lembrado pelas ruptu- número de moléculas existentes em um

ras da teoria da relativi- mol (molécula-grama) de qualquer subs-

dade e do “quantum de tância. Na realidade, todos os trabalhos

luz”. No entanto, a tese de doutoramento, de Einstein de 1905 compartilham uma

terminada em abril e aceita pela Univer- engenhosidade característica, ancorada na

sidade de Zurique em julho de 1905, e realidade profunda dos sistemas físicos.

o primeiro artigo sobre o movimento

browniano, recebido para publicação nos

Annalen der Physik em maio, são traba-


lhos de alta qualidade, que teriam sido

suficientes para estabelecer a reputação do

jovem Einstein. O tema desses trabalhos

é uma questão central da ciência no final

do século XIX, o relacionamento entre o


As grandes vertentes da física no final do e T a temperatura absoluta). Na segunda
século XIX eram a mecânica newtoniana, metade do século XIX, já se conhecia que
aplicada a pontos materiais e meios contí- essa lei fenomenológica, independente de
nuos, amplamente formalizada e desen- quaisquer hipóteses sobre a constituição da
volvida desde a publicação dos Principia matéria, poderia igualmente ser deduzida
no século XVII, o eletromagnetismo max- a partir do modelo de um gás formado por
welliano, que havia acabado de englobar partículas microscópicas, em perene movi-
a óptica, mostrando que as ondas de luz mento, obedecendo às leis da mecânica. A
são propagações de campos eletromagné- pressão do gás seria causada pelo impacto
ticos no espaço preenchido pelo éter, e a das partículas (moléculas) nas paredes do
termodinâmica, um pouco mais recente, recipiente. Maxwell foi mais adiante, pro-
lidando com o calor e a temperatura. As pondo que as velocidades das moléculas
leis da termodinâmica, que impressio- do gás se distribuiriam ao acaso, de acordo
navam Einstein pela sua generalidade, com a “lei dos erros” de Gauss e Laplace;
foram resumidas numa frase magistral de nessa teoria cinético-molecular dos gases,
Rudolph Clausius: “a energia do universo o calor seria a energia mecânica contida
é constante; a entropia do universo tende no movimento desordenado das partículas
a um valor máximo”. O grande químico microscópicas. Nas décadas finais do século
Lavoisier, contemporâneo da Revolução XIX, em Viena, Ludwig Boltzmann vinha
Francesa, ainda relacionava o calórico, desenvolvendo um programa de pesquisa
fluido imponderável que transita de corpos que consistia na tentativa de obter a forma
mais quentes para corpos mais frios, entre e o comportamento da função entropia
os seus “elementos”. No século XIX, foi no contexto desse modelo de um gás de
aos poucos sendo abandonada a idéia do partículas, que obedecia às leis da mecânica
calórico, percebendo-se que o calor é apenas clássica, mas que deveria ser analisado
uma forma de energia, que temperatura e a partir da teoria das probabilidades. Em
calor são grandezas distintas, e que a ener- dois trabalhos anteriores a 1905, o próprio
gia total (incluindo a energia mecânica) é Einstein utilizou fartamente a definição
conservada em processos e sistemas fecha- estatística de entropia, que ele denominava
dos. A nova função entropia, característica “princípio de Boltzmann”, para obter rela-
singular da termodinâmica, foi introduzida ções que seriam depois utilizadas em boa
por Clausius a fim de compatibilizar a idéia parte da sua obra.
de conservação da energia com a teoria de No início do século XX, tanto o pro-
Sadi Carnot sobre o rendimento das má- grama de Boltzmann quanto os resultados
quinas térmicas. da teoria cinético-molecular dos gases eram
A termodinâmica é uma ciência feno- vistos com suspeita, talvez como simples
menológica que reúne e sistematiza as leis artifícios matemáticos, distantes da reali-
empíricas sobre o comportamento térmico. dade dos sistemas físicos. Apesar do vigor
A termodinâmica refere-se a variáveis de propostas sobre a existência do átomo
visíveis, macroscópicas, como a tempera- químico, apesar das primeiras estimativas
tura, o volume ou a pressão, prescindindo do número de Avogadro e de dimensões
de qualquer hipótese sobre a constituição moleculares, as suspeitas eram persis-
íntima da matéria. Uma das expressões tentes. De qualquer forma, naquela época,
típicas da termodinâmica, resultado de mesmo se existissem, moléculas e átomos
experimentações desde o século XVII, é não poderiam mesmo ser observados! De
a “lei dos gases perfeitos”, estabelecendo acordo com os energeticistas, opositores da
que o produto da pressão pelo volume de nova teoria molecular, a termodinâmica,
um gás (suficientemente diluído) é uma macroscópica e fenomenológica, que pres-
função apenas da temperatura (na linguagem cindia de qualquer modelo microscópico
moderna, pV=nRT, onde n é o número de de constituição da matéria, seria o modelo
moles, R é a constante universal dos gases, preferencial de ciência. Para esses energeti-

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cistas (cientistas influentes, como Wilhelm atualmente aceito, 6,2 x 1023, em que a potên-
Ostwald e Ernst Mach, na Alemanha, e cia de 10 indica a excelente concordância
Pierre Duhem, na França), a teoria cinético- da ordem de grandeza) e a = 9,9 x 10-8cm
molecular do calor, baseada em entidades (da mesma ordem de grandeza dos valores
invisíveis, metafísicas, não deveria ter atuais). Resultados desse tipo, obtidos por
espaço na ciência. pesquisadores distintos a partir de técnicas
Einstein adotou desde cedo uma posição e métodos diferentes, acabaram contri-
realista, objetiva, sobre a existência de buindo para impor a realidade de átomos
átomos e moléculas. Na sua tese de douto- e moléculas. As resistências ao atomismo
ramento Einstein analisa o fenômeno da foram aos poucos sendo vencidas graças
difusão das moléculas do soluto numa em boa parte à concordância dos valores
solução diluída (açúcar dissolvido em obtidos por muitos pesquisadores.
água) a fim de obter estimativas para o O trabalho de Einstein sobre a teoria do
número de Avogadro e para o diâmetro movimento browniano, acompanhado pela
molecular do soluto. Na época, as pro- brilhante confirmação experimental de Jean
priedades termodinâmicas das soluções Perrin e colaboradores, na Universidade de
diluídas já tinham sido suficientemente Paris, alguns anos depois, foi decisivo para a
estabelecidas. Sabia-se, por exemplo, que aceitação da realidade de átomos e molécu-
a pressão osmótica, que é exercida pela las. Em trabalhos anteriores a 1905, Einstein
solução sobre uma membrana envoltória já tinha utilizado a definição estatística de
semipermeável impedindo a passagem do entropia, ou “princípio de Boltzmann”,
soluto, comporta-se de acordo com a lei para estudar as flutuações de energia de Einstein
dos gases perfeitos. Na parte inicial da tese, um sistema em contato térmico com outro
Einstein faz um cálculo hidrodinâmico, sistema muito maior (com um reservatório
na Califórnia,
razoavelmente envolvido, a fim de obter térmico, na linguagem moderna). A energia 1931
uma expressão para a viscosidade efetiva
do fluido na presença do soluto. No modelo
adotado, as moléculas do soluto eram esferas Reprodução

rígidas de raio a, não interagentes, e bem


maiores do que as moléculas do solvente.
A partir do resultado final (que mais tarde
foi corrigido!), Einstein obtém uma relação
envolvendo o raio a das moléculas do soluto
e o número de Avogadro N, em termos de
grandezas experimentalmente acessíveis.
Na parte final da tese, Einstein recorre a
um argumento engenhoso para obter uma
segunda relação, a fim de determinar a e
N independentemente. Esse argumento
se baseia no balanço molecular entre uma
força de resistência viscosa, dada pela lei de
Stokes, e uma força térmica, associada às
diferenças de pressão osmótica responsáveis
pela difusão do soluto. O resultado final é
uma das expressões conhecidas de Einstein,
envolvendo a dependência do coeficiente de
difusão com a temperatura e a viscosidade
do fluido. Utilizando os dados experimen-
tais disponíveis na época para soluções de
açúcar em água, Einstein obtém N = 2,1 x
1023 (que deve ser comparado com o valor

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Reprodução
do sistema de interesse flutua em torno de
um valor médio que é identificado com a
energia interna termodinâmica. Einstein
mostrou que o desvio quadrático da ener-
gia (em relação ao valor médio) depende
linearmente do número de partículas do
sistema. Portanto, a razão entre esses dois
valores, o desvio relativo, é inversamente
proporcional à raiz quadrada do número de
partículas. No caso de um fluido, esse núme-
ro de partículas microscópicas é enorme,
da mesma ordem de grandeza do número
de Avogadro; portanto, o desvio relativo
da energia torna-se absurdamente pequeno,
sem nenhuma chance de ser observado.
No movimento browniano, no entanto,
Einstein vislumbrava uma oportunidade
de observar essas flutuações estatísticas.
Nesse fenômeno, partículas muito pequenas
em suspensão num ambiente fluido, mas
muito maiores que as moléculas do fluido
puro, estão descrevendo um movimento
O físico em incessante, errático, de vai-e-vem, que po-
dia ser observado (e poderia ser medido)
foto de março
nos ultramicroscópios existentes na época.
de 1955 Esse comportamento foi sistematicamente
estudado pelo botânico Robert Brown, na
primeira metade do século XIX, que obser-
vou o movimento incessante de partículas de
pólen dissolvidas em água. O mesmo tipo
de movimento também foi observado em
partículas inorgânicas de cinza, convencendo
Brown sobre a natureza física do fenômeno.
Ao contrário das flutuações invisíveis das
moléculas de um gás, no movimento brow-
niano tornam-se visíveis no microscópio as
flutuações de posição das partículas bem
maiores em suspensão, incessantemente
bombardeadas pelas partículas microscopi-
camente menores do solvente fluido.
A teoria de Einstein do movimento
browniano é baseada na semelhança entre o
comportamento termodinâmico de soluções
e suspensões diluídas, na relação entre o
coeficiente de difusão e a viscosidade, que já
havia sido obtida na tese de doutoramento,
e numa dedução probabilística da equa-
ção da difusão, antecipando-se às teorias
modernas de cadeias markovianas. Através
desse raciocínio probabilístico, Einstein
obtém uma celebrada expressão para o

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percurso quadrático médio no movimento simplificada em trabalho publicado por
browniano, que é dado por duas vezes o Paul Langevin em 1908, recuperando to-
coeficiente de difusão multiplicado pelo dos os resultados de Einstein. A moderna
tempo de observação. De acordo com essa equação diferencial estocástica associada
fórmula, medindo distâncias e tempos, e à “dinâmica de Langevin” tem sido far-
utilizando valores experimentais para a tamente utilizada a fim de introduzir um
temperatura, a viscosidade e o raio das comportamento dinâmico no contexto de
partículas em suspensão, era possível obter sistemas estatísticos clássicos que não
uma estimativa para o número de Avoga- possuem nenhuma dinâmica intrínseca.
dro. Foi muito importante que Einstein Em geral, a dinâmica de Langevin é a
indicasse claramente a grandeza que deveria possibilidade mais simples na presença de
ser medida (isto é, distâncias ao invés de flutuações estocásticas, em problemas de
velocidades). Nas sua experiências, Jean física, química ou biologia. Recentemente
Perrin e os seus colaboradores utilizaram o um mecanismo de Langevin, na presença
microscópio para registrar as posições em de potenciais adequados, foi proposto para
função do tempo de um conjunto grande explicar o funcionamento dos motores mo-
de partículas em suspensão, cuja forma leculares, responsáveis pelo metabolismo
esférica podia ser muito bem controlada. biológico. Torna-se até irônico que durante
Essas experiências verificaram o compor- boa parte do século XX a interpretação
tamento ideal da pressão osmótica e a lei de estatística da física clássica, cabalmente
força de Stokes, ingredientes importantes da confirmada pela teoria do movimento
teoria de Einstein, além de produzirem nova browniano, tenha ficado em segundo plano
estimativa para o número de Avogadro. O frente ao sucesso da física estatística quân-
sucesso dos trabalhos de Perrin foi notável. tica. Neste início de século, no entanto, as
Os valores obtidos e a concordância com aplicações (no domínio das nanotecnologias
a teoria de Einstein representaram uma ou da “matéria mole”, por exemplo, inclu-
contribuição significativa para a aceitação indo polímeros, colóides, cristais líquidos
geral do atomismo. ou vidros) devem dar vida nova à teoria do
A teoria do movimento browniano foi movimento browniano.

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