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Copyright © 2022 BIANCA BRIONES

Copyright © 2022 Bianca Briones

Capa: Lari Azevedo


Direitos de imagens adquiridos no shutterstock.
Diagramação especial para o e-book: Bianca Briones
Direitos de imagens adquiridos no shutterstock e canvapro.
Coordenação editorial: Bianca Briones

ESTA É UMA OBRA DE FICÇÃO.


Esta é uma obra de ficção, qualquer semelhança com nomes, pessoas,
fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.

Esta obra segue as regras do Novo Acordo Ortográfico.

Todos os direitos reservados. São proibidos o armazenamento e/ou a reprodução de


qualquer parte dessa obra, através de quaisquer meios – tangível ou intangível – sem o
consentimento escrito da autora.

A violação dos direitos autorais é crime estabelecido na lei nº 9.610/98


e punido pelo artigo 184 do Código Penal. 
Contents

Copyright
IMPORTANTE:
A SÉRIE:
PARA TE SITUAR:
CAPÍTULO 1
CAPÍTULO 2
CAPÍTULO 3
CAPÍTULO 4
CAPÍTULO 5
CAPÍTULO 6
CAPÍTULO 7
CAPÍTULO 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 28
Capítulo 29
Capítulo 30
Capítulo 31
Capítulo 32
Capítulo 33
Capítulo 34
Capítulo 35
Capítulo 36
Capítulo 37
Capítulo 38
Capítulo 39
Capítulo 40
Capítulo 41
Capítulo 42
Capítulo 43
Capítulo 44
Agradecimentos
Sobre a autora
Para todos que foram (ou ainda são) machucados
por aqueles que deveriam os proteger.
Lembrem-se de que família nem sempre tem a ver com laços
sanguíneos
e vocês merecem ser amados.
IMPORTANTE:

Se você é novo no universo Batidas Perdidas, seja bem-


vindo! Saiba que, apesar deste ser um livro de uma série, cada
volume é independente, porque a não ser os dois primeiros da série,
que são narrados pelos mesmos personagens, os outros são com
novos narradores. Então pode ler O Doce Encanto do Coração sem
se preocupar por não ter lido seus antecessores. Você não se sentirá
perdido na leitura e, se gostar, poderá ler os outros volumes depois.

Agora, se você me acompanha desde início, você sabe que o


personagem Lex foi nomeado em homenagem ao meu amigo/irmão.
Do Lex original, eu trouxe o gosto musical e a irmandade. Fora isso,
é ficção.

Assim como as outras, esta história foi escrita com muito


carinho.

Quando terminar de ler, me mande uma mensagem me


contando o que achou, ok?

Obrigada por tudo, sempre.

Beijo,

BIANCA BRIONES
A SÉRIE:

1 - As Batidas Perdidas do Coração


Protagonistas: Rafael Ferraz e Viviane Villa

2 - A Escolha Perfeita do Coração


Rafael Ferraz e Viviane Villa

2.1 - Conto: O Primeiro Natal


Rafael Ferraz e Viviane Villa

3 - O Descompasso Infinito do Coração


Bernardo Albuquerque e Clara Bertolazzo

4 - O Desapego Rebelde do Coração


Branca Albuquerque, Lex Rocha e Rodrigo Villa

4.1 - Conto – Entre o Último e o Primeiro Dia


Rafael Ferraz e Viviane Villa

5 - O Desejo Secreto do Coração


Lucas Ferraz e Fernanda Villa

6 – O Doce Encanto do Coração


Lex Rocha e Flávia Moraes

Batidas Perdidas #7 (previsão de lançamento: 2023)

Batidas Perdidas #8 (previsão de lançamento: 2024)

Batidas Perdidas #9 (previsão de lançamento: 2024)


Batidas Perdidas #10 (previsão de lançamento: 2025)
PARA TE SITUAR:

Lex Rocha (32)

Flávia Moraes (24)

Os Villa
Viviane (28) e Rodrigo (27) – irmãos. Eles têm dez meses de
diferença.
Vicente (34), Fernanda (28) e Thiago (26) – irmãos (e primos
de Vivi e Rodrigo)

Os Albuquerque
Branca (30) e Bernardo (27) – irmãos
Clara (30) – casada com Bernardo desde O Descompasso.

Os Ferraz
Rafael (32) e Lucas (28) – primos

OUTROS PERSONAGENS PRESENTES:

Mila (27) – amiga de infância da Viviane


Maurício (35) – ex-marido da Clara
Gigante (33) – amigo do Rafael e Lex
IDADE ATUAL DAS CRIANÇAS JÁ
CITADAS EM OUTROS LIVROS:
Os gêmeos Pedrinho e David – 11 anos – Filhos da Clara e do
Maurício
Athos – 1 ano e sete meses – Filho da Clara e do Bernardo
Felipe, 8 anos - João Pedro, recém-nascido – Filho da
Fernanda
Priscila, 6 anos – Giulia, 1 ano e quatro meses, Lorena – 5
meses – Filhas da Viviane e do Rafael
Anna, 4 anos. – Filha do Rodrigo
Bruno, 9 anos – Filho da Flávia
CAPÍTULO 1

Mesmo quando tudo pede


Um pouco mais de calma
Até quando o corpo pede
Um pouco mais de alma
A vida não para
Lenine - Paciência

Você já amou alguém e não foi amado de volta? Aprendi


desde cedo que nem todas as pessoas vão nos amar, mesmo se nos
esforçarmos muito. Aliás, nos esforçar para tentar fazer com que
alguém nos ame, é sinal de que algo está errado. Amor é simples, ou
pelo menos deveria ser.

Tenho mestrado e doutorado em relações tóxicas e abusivas.


A minha primeira professora me recebeu no útero. É... eu sei que
parece assustador pensar que as mães não são seres sagrados que
emanam amor naturalmente. Sei que parece coisa de filme ou de
livro, mas nem toda pessoa nasceu para ter uma criança e amá-la.
Minha mãe, mesmo sem desejo e capacidade para nos amar, teve
cinco filhos.

Não sei como meus meios-irmãos – não temos o mesmo pai –


lidam com nossa criação. Não somos próximos. Uma amiga
psicóloga me disse que a distância é comum entre filhos de mães
narcisistas. Há muita rivalidade. O que não é comum sou eu tendo
esses pensamentos sobre o assunto.
Não costumo pensar na minha infância. Foi horrível, mas
posso me considerar um cara de sorte porque boas pessoas
cruzaram o meu caminho e foram me ensinando que eu não era tão
difícil assim de ser amado.

Às vezes, família não tem nada a ver com o sangue. Eu era


criança quando percebi isso e foi muito confuso. Não sei o que minha
mãe disse aos meus meios-irmãos depois que fui embora, mas nas
poucas vezes que nos reencontramos, eles demonstraram desprezo
por mim. Eu não entendia por que era tão difícil para minha família
se importar comigo. Afinal como meu melhor amigo poderia me amar
e ser mais leal a mim do que meus meios-irmãos e minha mãe?

Foi ele que me ensinou que família tem muito mais a ver com
o modo como nos relacionamos e nos importamos com o outro do
que com código genético.

Esse amigo se chama Rafael Ferraz – o irmão que a vida me


deu. Quer dizer, quis o destino que nascêssemos em famílias
diferentes, mas nos encontramos ainda crianças. Ou nos
reencontramos, como dizia tia Rosalia – mãe do Rafael. Ela podia
jurar que fomos irmãos em vidas passadas e que nos encontramos
de novo, porque somos essenciais um para o outro. Ela dizia que
nos complementávamos, que funcionávamos melhor juntos.

Ela estava certa. Uma vez, eu literalmente tomei um tiro por


ele. Não foi algo que premeditei, por mais que eu o ame não dá para
escolher sair tomando tiros pelos outros. É arriscado demais e quase
fui dessa para melhor, apesar de que eu o faria de novo, se a vida
dele dependesse disso. O Rafael estava com problemas - de novo -
e lá estava eu pronto para o que fosse necessário. Éramos assim.
Ainda somos.

Na ocasião da minha quase morte, ele tinha se envolvido com


drogas. Não era sua primeira vez. Começou quando o pai dele
morreu, ainda na nossa adolescência, e piorou conforme os anos
passavam e outras tragédias aconteciam.
Desde pequenos, tínhamos um entendimento bacana sobre
quem éramos: na dor, eu implodo. Na dor, o Rafael explode. Ambos
nos machucávamos, mas o Rafa causava uma série de danos
colaterais.

É curioso que, apesar de todas as confusões em que nos


metemos ao longo da vida e, apesar daquelas em que a vida nos
meteu, continuamos tendo fé um no outro. Isso nos manteve firmes,
mesmo nos terrenos mais arenosos.

É fácil entender o Rafael. Ele é como um labrador bonzinho e


carinhoso, mas dentro dele mora um pinscher que quer atacar quem
machuca quem ele ama. Com o pinscher sob controle, garanto que
não há melhor pessoa no mundo. E todos podemos agradecer,
porque meu amigo lutou muito para conter seus monstros e está na
sua melhor fase. Sinto orgulho. Ele é um exemplo. Todos nós temos
monstros internos, não é?

Assim como ele sabia me resgatar, eu sabia como resgatá-lo.


Nessa última vez, era um resgate físico de um cativeiro. Sobrou para
todos que amavam o Rafael, custou bem caro, muito mais do que o
dinheiro pode pagar, mas foi a luz no fim do túnel. Foi o estalo que
meu amigo precisava para reagir. Como li uma vez, aprendemos pelo
amor ou pela dor.

Para a alegria e alívio de todos, ele se internou numa clínica


por doze meses e ele está limpo há mais de oito anos.

Quando me olho no espelho, a cicatriz do tiro me lembra de


agradecer por estarmos todos aqui. Quer dizer, nem todos,
perdemos muitos pelo caminho. Assim é a vida. Há outra coisa no
espelho, mas procuro não pensar muito nela. Falho, mas sigo
tentando.

Depois de tudo, o Rafael é minha família. Ele e aquele tanto


de gente barulhenta que ele traz junto. Para um cara solitário como
eu, às vezes é sufocante ver tanta gente por perto, mas cada um
deles tem um jeito único e encantador de se tornar imprescindível. E
eles também se tornaram a base de que meu amigo precisava para
ficar bem.

Acho que é por conviver entre tantas pessoas que esses


pensamentos sobre minha infância têm ficado mais fortes.

Para quem não me conhece, essa pequena narrativa pode


parecer melancólica. E é. É um traço da minha personalidade. Sendo
um artista – sou músico e compositor, nas horas vagas -, há boa
dose de melancolia em mim. Mas para entender quem somos e
como um moleque introvertido se tornou o melhor amigo da bomba
explosiva do bairro, é preciso voltar no tempo...
CAPÍTULO 2

I wanna start by letting you know this


Because of you my life has a purpose
You helped me be who I am today
I see myself in every word you say
Sometimes it feels like nobody gets me trapped in a world
Where everyone hates me
There's so much that I'm going through
I wouldn't be here if it wasn't for you[1]
Simple Plan – This song saved my life

22 ANOS ANTES

Eu era apenas um garoto franzino entre pessoas que não


que não me queriam. Meus pais se separaram quando eu era
pequeno e minha mãe nunca o perdoou por ter ido embora e nem a
mim por ser tão parecido com ele.

Enquanto morávamos na mesma cidade, eu conseguia ver


meu pai no fim de semana. Depois ele se mudou para São Paulo e
tudo ficou mais difícil.

Ele quis me levar para morar com ele e minha mãe não
deixou. Minha mãe adorava dizer que meu pai nunca mais me veria.
Eu achava que ela não entendia que, dessa forma, eu não o veria e
isso me fazia muito mal – com o tempo processei que ela entendia e
não se importava.

Sendo criança, eu não queria perder nenhum dos dois, mas


hoje sei que meu pai deveria ter lutado mais por mim. Quem deixa
uma criança com uma mãe que vivia dizendo que eu devia morrer?
Bom, o meu pai deixou e os meus primeiros anos me custaram
muito.

Aguentei a violência dos filhos do meu padrasto e a omissão


da minha mãe como pude, me refugiando em livros e música. E, olha
só, de novo, eu era igualzinho ao meu pai.

Ele me mandava livros, que chegavam à casa da minha vó


materna. Ela os entregava e me aconselhava a dizer para a minha
mãe que era um presente da vovó. Era horrível mentir. Eu me sentia
muito mal, mas um dia meu pai colocou um bilhete dentro do livro,
ela viu e... deixou os filhos do meu padrasto queimarem meus livros.

Depois disso, eu só lia quando dormia na casa da minha vó.


Ela foi meu exemplo materno durante muito tempo e até hoje sinto
sua falta. Não pensem que ela era perfeita, não era. Minha mãe e ela
não se davam bem. Havia muito rancor ali. Comigo, ela era boa. Boa
o suficiente e se esforçava para compensar o que eu vivia em casa.
Eu tinha onze anos quando ela morreu. Foi pouco antes de tudo
mudar.

Quando meu pai ligava, prometia que viria me buscar nas


férias. Minha mãe ameaçava dizendo que não me deixaria ir e meu
padrasto me dizia que eu iria e nunca mais voltaria.

Aquele tempo é confuso, solitário. Foi mais seguro me perder


nos livros.

Eu tinha acabado de completar 12 anos quando minha mãe


arrumou um novo namorado. Foi ele que me colocou em um ônibus
rumo a São Paulo, com uma passagem só de ida. Minha mãe não
tentou me levar de volta.
Para alguém tão novo, isso foi horrível. Eu sabia que não
queria voltar, mas não tinha muita noção de como era uma família.
Achava que todas as mães eram como a minha e queria ser amado
por ela. Eu sentia muita falta de ela. Demorei a assimilar que a falta
de amor não era culpa minha. Na verdade, nós só rompemos de vez
há quatro anos, quando finalmente encarei quem minha mãe era de
verdade.

Tenho poucas lembranças da viagem de ônibus. Lembro-me


do medo, da dor, de segurar as lágrimas porque não queria ser fraco,
como minha mãe e os filhos do meu padrasto diziam que eu era. E
me lembro do meu pai: alto, magro e um sorriso que escondia a
preocupação de como cuidar sozinho de um garoto de 12 anos.

No meu pai, eu estava seguro, alimentado, podia ler quantos


livros quisesse sem que fosse zoado por alguém e não precisava ter
medo de acordar e encontrar um dos meus livros na privada ou em
chamas no quintal. Não precisava mais ter medo de nada do que
conheci antes.

Nós não conversávamos muito. A casa era bem silenciosa.


Nós dois preferíamos livros à televisão. Ele não me batia, nem com
objetos nem com palavras. Foi um alívio.

Como estávamos no período de férias de verão quando


cheguei, ficava sozinho boa parte do dia, enquanto meu pai ia
trabalhar. Eu deixava a casa brilhando. Tinha medo de não fazer algo
e meu pai me mandar embora, mesmo que ele me dissesse que não
precisava limpar a casa daquele jeito, que eu devia sair e brincar
com os outros meninos da rua.

Ainda me lembro da crise de choro que tive quando me


esqueci de tirar o lixo. Eu tinha certeza que meu pai me expulsaria
de casa. Escondi o saco no meu quarto para esperar até o próximo
dia em que o caminhão do lixo passaria. Meu pai encontrou o saco e
me perguntou o que era aquilo. Eu mal conseguia falar em meio aos
soluços.
Ele ficou parado, à porta do meu quarto, sem saber como me
confortar. Acho que ele estava em choque por ver o quanto eu era
aterrorizado na casa da minha mãe. É claro que eu não entendia isso
na época.

— Filho, o lixo não deve ser guardado dentro de casa. Ele traz
mais coisas ruins que vão se acumular e tornar tudo pior. — Ele se
aproximou de mim e deu dois tapinhas no meu ombro. — Se o lixeiro
passou e você o perdeu, não tem problema. Você coloca no quintal e
tira no próximo dia. Só não precisa guardar com você. Nunca deixe o
lixo se acumular com você.

Pensei naquilo por muito tempo. Parecia que ele falava de


muito mais do que lixo físico. Consegui me acalmar, mas parte de
mim ficava em alerta para não fazer nada que o desagradasse. Se
ele me expulsasse, eu não teria para onde ir. Hoje eu sei que ele
jamais me expulsaria.

No primeiro domingo na casa dele, meu pai me disse para ir


brincar. Era um bairro tranquilo e ele queria que eu fizesse amigos.
Escondi um livro debaixo da blusa e caminhei até uma praça. Tinha
uma quadra e uns moleques estavam jogando bola. Olhei para eles
por dois minutos e me virei para sentar em um dos bancos para ler.
Não demorou muito e uma bola veio na minha direção,
batendo com tudo no meu livro e derrubando-o no chão.

— Ô magrelo, chuta aí. — Falou um garoto alto.

Joguei a bola de qualquer jeito e, para a minha desgraça, ela


caiu bem em cima de uma poça de água suja, molhando o moleque
que me fuzilou com o olhar e se aproximou, batendo os pés. Não foi
de propósito, eu era péssimo nos esportes.

— Qual é, idiota? Tá me zoando? — Ele veio pisando duro na


minha direção.

Eu não estava, mas não consegui pensar no que responder


para que ele não ficasse mais nervoso. Voltei a ler meu livro,
torcendo para que o menino voltasse para o jogo. Eu estava
morrendo de medo, mas os filhos do meu padrasto me mostraram
que deixar que o outro perceba seu medo é a pior situação possível.

Em segundos, ele se aproximou, arrancou o livro da minha


mão e jogou longe. Dei sorte, não caiu na poça. Ele ergueu a mão
fechada na minha direção. Estava pronto para reagir e pensando que
ia apanhar, porque ele era maior e tinha amigos, quando algo
surpreendente aconteceu:

— Recolhe as patinhas, Manuel. — Uma voz soou atrás de


mim. Mal tive tempo de entender que outro garoto pulou sobre o
banco e bateu com as duas mãos no peito do valentão.

O grupo de moleques começou a murmurar, preparados para


a briga. Manuel era mais velho, mas o menino que o encarava era
mais forte e tinha desafio brilhando no olhar, enquanto apertava as
mãos em punho ao lado do corpo.

— Não se mete, não, Rafa — Manuel falou, mas não tinha a


mesma raiva que usou comigo.

— Quem tá se metendo aqui? — O tal do Rafa ergueu o


queixo e deu um passo para frente, seu rosto quase se encostando
ao outro.

Entre eles, uma guerra fria imperava. Até a respiração era


sinal de perigo. Eu não sabia bem o que fazer. Apenas olhei
admirado para o garoto que me defendia. Isso era completamente
novo.

Quando pensei que o pior fosse acontecer, Manuel deu um


passo atrás e disse, rindo:

— Você é muito babaca, Rafa.

— Olha como ele xinga... babaca. Ah, seu cuzão. — Ele


devolveu, gargalhando.

— Você beija a tia Rosalia com essa boca suja? — Manuel


pegou a bola e foi se afastando em direção à quadra.

— Não mete minha mãezinha no assunto. — Rafa ergueu o


dedo do meio, fingindo braveza, mas o clima estava leve.

Ele foi até o meu livro, pegou-o da grama, limpou-o na


camiseta e me devolveu.

— E aí, vizinho? Te vi tirando o lixo outro dia, mas você nem


olhou para os lados. Achei corajoso.

Dei um sorriso, tentando ser simpático. Mal sabia ele que não
olhar para os lados era o oposto de coragem. Eu não fazia ideia de
que ele era meu vizinho, mas lhe devia uma pelo salvamento.

— Oi, meu nome é Lex. — Estendo a mão. — Alexandre, mas


gosto que me chamem de Lex.

— Como o Lex Luthor? — Ele aperta minha mão, admirado.


— Olha o vilão fodão.

— Ele é, eu nem tanto. — Dou de ombros.


— Que isso, cara? Cabeça pra cima — Ele coloca a mão no
meu queixo. — Postura. Minha mãe sempre diz: Você é o que quiser
ser. Postura. Tipo eu, sou o Rafael, mas pode me chamar de Dono
da Rua.

— Ué, mas essa aí não é a Mônica? — Eu provoquei.

— Ah, não. — Ele deu uma risada alta. — Ela é a Dona da


Rua de trás, mas ela eu não peito não, porque não gosto de levar
coelhada.

Foi assim que a nossa irmandade começou. Nós éramos


diferentes. Rafael me apresentou os esportes e eu apresentei os
livros a ele. E tínhamos algo em comum: o amor por música. Ao nos
conhecermos, eu era franzino e baixinho, enquanto Rafael treinava
judô, era forte e alto. Com o tempo fiquei mais alto, mas não sei se
diria que sou mais forte. Ele passou a amar musculação e eu sou
mais de correr.

Ele sabia quem era e que era amado. Sabia com quem contar.
Hoje eu sei a diferença que isso faz em alguém.

Eu morria de medo de ser quem era e não ser amado, mas


aprendi que podia contar com ele.

Com o Rafael, aprendi que família é a gente que escolhe. E


ele era a minha.
CAPÍTULO 3

I lit a fire with the love you left behind,


And it burned wild and crept up the mountainside.
I followed your ashes into outer space
I can't look out the window,
I can't look at this place[2]
Grace Potter & Nocturnals - Stars

DIAS ATUAIS

— Tio Lex, lê pra mim? — Priscila, me entrega um livro


que conta uma versão da história do Pinóquio.

— Leio, mas primeiro vamos colocar sua irmã no berço. —


Coloco um dedo sobre meus lábios para que a menina não faça
barulho.

A bebê Lorena, de cinco meses, dorme no meu braço. Eu


ajeito-a no berço e a cubro. Ligando a babá-eletrônica em seguida.
No berço ao lado dorme Giulia, de um ano e cinco meses. Rafael e
Viviane são basicamente uma máquina de produção de meninas ou,
como Rodrigo – irmão da Viviane – gosta de dizer: são coelhos.

Saio do quarto, deixando-o à meia-luz e encosto a porta, com


Priscila atrás de mim. Eu fico com elas uma vez por semana para
que Rafael e Viviane possam sair e se divertir como um casal. Eles
ganham um tempo sozinhos e eu ganho um tempo com elas. Todo
mundo fica feliz.

Pego o livro que Priscila me estende, batendo com a mão no


sofá para que ela se aproxime e começo a ler, mostrando as
imagens.

— É verdade que o nariz cresce se a gente contar mentira? —


Ela me interrompe.

Ouço a pergunta que ela tem feito com frequência, desde que
um amigo na escola contou a ela pela primeira vez a história de
Pinóquio.

— Não, não cresce. Essa parte é fantasia. É inventada. Vem


da imaginação. — Ela franze seus olhos claros, refletindo. — Mas a
parte da consequência da mentira é verdade. Quando Pinóquio
mente, ele prejudica e machuca as pessoas.

— A parte da Fada Azul é o quê?

— Acho que nós podemos acreditar que ela existe em algum


lugar. Nossa imaginação serve para nos levar para lugares e
pessoas incríveis. — Dou uma leve batida na testa. — O que pensa
sobre isso?

— Que é como o Papai Noel e a Fada dos Dentes. Eles ficam


fracos se as pessoas não acreditam. — Ela balança a cabeça,
decidida e cada rabo de cabelo, preso de um lado da cabeça,
balança.

— Faz sentido. Acho que podemos pensar assim.

— Eu estou certa, tio. — Ela ergue o queixo, do auge dos


seus seis anos. — Outro dia, eu estava pensando numa coisa.

— No quê?
Ela vira as páginas até chegar à ilustração da Fada Azul e
bate com o dedinho na página.

— Eu pedi para a Fada Azul te dar um filho.

Por um instante, fico sem saber o que dizer. Não é incomum.


Priscila está numa fase em que nos deixa sem palavras boa parte do
tempo.

— Por que pensou nisso? — Decido perguntar.

— Você vive sozinho igual o Gepeto. É triste.

— Eu não sou sozinho.

— Você não tem nem um bichinho de estimação – Ela mostra


o desenho do gatinho do Gepeto no livro.

— Isso é verdade, mas não sou sozinho.

— Não? — Ela coça a cabeça.

— É claro que não. Eu tenho vocês.

— Eu sou do papai e da mamãe. Não quer ter um filho só


seu? Eu ouvi o papai dizer que era uma ironia a tia Branca ter uma
família, quando ela nem queria, e você não. O que é ironia? É coisa
triste, né?

Decido ignorar parte do que ela diz, porque com certeza ouviu
conversa de adultos e essa família nunca vai perder a mania de falar
da vida uns dos outros.

— Eu quero ter um filho ou alguns, um dia. Não preciso ter


pressa, preciso?

— Acho que não. Mas eu vou continuar pedindo pra Fada


Azul te dar um filho. Espero que não seja de madeira.
— Já pensou se eu ganhar um filho de madeira? — Resolvo
levar na brincadeira, fazendo cócegas em sua barriga.

— Você vai amá-lo, não vai? Mesmo de madeira, mesmo que


ele apronte como o Pinóquio?

— Sim, eu vou amar meu filho do jeito que ele for.

— Eu sabia. — Ela se aconchega a mim e aponta para o livro


para que eu volte a ler. — Seu filho vai ser feliz como eu. A Fada
Azul acertou quando me trouxe para o papai e a mamãe.

Não digo nada sobre como ela veio para os pais, porque
acredito que esse é um assunto para Rafael e Viviane lidarem. Sinto-
me agraciado por poder partilhar o amor desta família.

Priscila não está errada. Desde pequeno, penso em ter uma


família grande, uma casa cheia de filhos. Estou com trinta e três
anos e não deu certo ainda. Não posso dizer que me sinto frustrado
por isso, afinal sabia que não seria simples.

Quero uma família estruturada. Quero que meus filhos nunca


precisem sentir o medo que senti enquanto crescia. Quero que eles
sintam que há um lugar para voltar e que são amados. Não dá para
ter algo assim de qualquer jeito.

Há alguns anos, vi um vislumbre disso. Cheguei a pensar que


seria o início da minha própria família, mas não deu certo.

Já fui casado e não deu certo.

Já encontrei o amor outra vez e ela tinha um filho, por quem


senti um amor imenso, mas eles se foram. Não sei para onde. Passei
um tempo os procurando e não os encontrei. Entendi que ela queria
ficar longe e aceitei.

Desde então não me abri outra vez para o amor. Tive alguns
casos, mas nada me tocou como o amor que senti por Flávia.
CAPÍTULO 4

Difícil é entender
Que isso tudo vai passar
Espelho meu
Acho que a gente precisa conversar
Me diz o que é que tem aí sem ser confusão
Há algo além do medo
Escondido em cada intenção
Mariana Nolasco – Transforma(dor)

Se você sempre viveu com medo, nada melhor do que


estar em um lugar em que conhece todas as pessoas. Foi assim que
vim parar em Quatro Estações, uma cidade bem pequenina no
interior de São Paulo.

O fato de todos se conhecerem se tornou meu escudo,


mesmo eu sendo muito mais introspectiva que todos eles. Ninguém
entra na cidade sem que o grupo do Facebook seja notificado. Eu
não sei como as pessoas faziam antes para cuidar das vidas alheias,
mas segundo me contaram, desde a fundação de Quatro Estações, a
cidade sabe de tudo.

É claro que para alguém que guarda segredos isso pode


assustar, mas aprendi que pessoas intrometidas não assustam tanto
quanto as pessoas do meu passado.
— Meu sobrinho virá me visitar no sábado, vocês deviam sair
para jantar. — D. Jussara me entrega um livro, tirando-me dos
pensamentos.

— Uma boa escolha — Observo a ilustração da capa do novo


romance que chegou à livraria. — Eu terminei a leitura ontem. Se
prepare para chorar.

— Ótimo. É pra isso que leio. — Ela sorri, abraçando o livro.


— Mas falando do meu sobrinho...

— Eu não vou sair com o seu sobrinho D. Jussara. Meu


homem está aqui ó — aponto para a capa do livro. — Um dia ele vai
ter que sair daí e assumir o que temos.

D. Jussara não cede e me segue pelos corredores da única


livraria de Quatro Estações. Entrego o exemplar a Rosalinda, a dona,
que está no caixa. Rosalinda pisca para mim e começa a conversar
com a mulher, distraindo-a, e volto para o corredor de suspense,
para terminar de arrumar a estante.

No dia em que precisei fugir da minha vida de novo, cheguei à


rodoviária sem saber para onde ir. Não tinha muito dinheiro e nem a
quem recorrer. Não sei dizer o que me guiou ao guichê em que
compraria a passagem. Quando a moça me perguntou para onde ia,
travei. Para onde ir quando nenhum lugar é seguro o bastante?

A voz de Bruno me vem à lembrança. “Casa” – ele apontou na


placa a cidade de Quatro Estações. Mesmo que eu lhe perguntasse,
ele não saberia me dizer o motivo da escolha. Nessa época, ele
estava com cinco anos, mas ele não falava muito. Escolhi aceitar à
menção da palavra “casa” como um sinal. Deus sabe que nós dois
estávamos precisando de uma...

Muitas e muitas horas depois, desembarcamos na cidade. Foi


uma caminhada até chegar a um local que parecia saído de um livro.

Ainda me lembro da sensação que tive ao me deparar com a


casa florida. A cerca branca baixa me despertou muita curiosidade.
O gramado bem aparado fez com que Bruno soltasse minha mão,
empurrasse a portinha de madeira – que estava destrancada – e
deitasse de barriga para cima.

— Que maravilha! Vocês chegaram. — Uma mulher idosa


desconhecida nos recebeu com alegria.

Atravessei o portão e me abaixei perto de Bruno, querendo


que ele se levantasse para irmos embora.

— Deixe-o brincar — ela continuou. — Minhas netas


costumavam ficar deitadas assim quando pequenas e meus bisnetos
ainda ficam. É um bom lugar.

— Peço desculpas. A porta estava aberta e meu filho entrou.


Eu acho que você está nos confundindo com outras pessoas. —
Tentei, em vão, fazer com que Bruno se levantasse. Isso me
surpreendeu muito, ele sabia a importância de estarmos sempre
prontos para fugir.

A mulher apertou os lábios e soltou um suspiro. Seu olhar


demonstrava empatia. Ela apertou as mãos antes de dizer:

— Vocês não vieram no último ônibus?

— Sim.

— E não vieram de muito longe?

— Sim.

— Não estão precisando de um lugar para ficar?

— Sim. — A cada afirmação eu entendia menos.

— Eu tenho um quarto vago para alugar e sei onde pode


conseguir trabalho. — Ela sorria como se isso explicasse tudo.
Observei-a. A pele preta enrugada. Os olhos doces. Os
cabelos acinzentados, presos em um coque. Para alguém que vivia
com medo, era estranho como eu me sentia perto dela. Era quase
confortável, mas estranho demais.

— Como sabe todas essas coisas a meu respeito? —


perguntei, desconfiada.

— A Rosalinda me disse que você chegaria. Ela sabe de tudo.

— E quem é Rosalinda?

— A vidente de Quatro Estações — Ela conta como se isso


explicasse tudo.

— Olha, a senhora parece amigável, mas eu pretendia ir ao


centro da cidade primeiro para ver se encontro trabalho e um lugar
para ficar.

A velha senhora assentiu.

— Tudo bem. Você deve ir. É importante que tome suas


próprias decisões. — Ela balançou o dedo. — Rosalinda me avisou
para não ser precipitada, mas eu já vivi demais para dar ouvido às
pessoas. — Ela franziu o cenho. — Posso pelo menos te oferecer
um lanche e suco? Eu trago aqui no jardim.

Bruno se sentou imediatamente e olhou para a senhora, não


para mim. Assenti para ela. Se meu estômago estava doendo, meu
filho devia estar faminto.

— Senta aqui — Bruno bateu com sua mãozinha marrom no


chão.

Obedeci sem parar de olhar à volta. O lugar era lindo. Flores,


árvores, pássaros. Dava vontade de deitar e cochilar. Mas antes de
me acomodar, precisava sondar o terreno. Em minha posição de
alguém que está há anos em fuga, desconfiar de todos é o mínimo.
— Aqui está. — A senhora me ofereceu uma bandeja, que
Bruno atacou antes mesmo que eu a colocasse sobre o gramado.
Isso era tão atípico para ele. — A propósito, meu nome é Lucinda.

Para resumir, naquele dia fui à cidade e descobri que vó


Lucinda, como eu viria a chamá-la, tinha de fato o único quarto
disponível naquele dia e que estavam precisando de uma atendente
na livraria.

Com o tempo, eu aprenderia que em Quatro Estações, além


de intrometidos, eles são acolhedores. E, por mais que eu seja bem
cética quanto a isso, com o passar dos anos, aprendi a relaxar pelo
menos um pouco.
CAPÍTULO 5

Just a little rush, babe


To feel dizzy, to derail the mind of me
Just a little hush, babe
Our veins are busy but my heart's in atrophy
Anyway to distract and sedate
Adding shadows to the walls of the cave[3]
Hozier – Sedated

Quatro anos se passaram desde que cheguei. A menina


desconfiada e perdida que eu era tornou-se apenas um pouco
desconfiada. Quatro Estações se tornou minha casa e sinto que
estamos seguros, mas parte disso se dá pela monitoração intensiva
da vida alheia que os próprios moradores fazem.

Balanço a cabeça ao ouvir a sineta da loja e a porta se


fechando atrás de D. Jussara. Por mais que eu precise dispensar
convites para jantar com sobrinhos, filhos e netos dos moradores, sei
que são pessoas boas.

— Não acha que seria bom sair para jantar? — Rosalinda me


pergunta, dando a volta no balcão e se aproximando da estante de
livros de suspense para me ajudar.

— Quer sair para jantar comigo mais tarde? — Coloco um


livro na estante.

— Eu adoraria, mas você me entendeu.


Rosalinda é uma mulher ruiva, na casa dos quarenta anos.
Como vó Lucinda disse, quando cheguei, além de dona da livraria,
ela é a vidente da cidade. Apesar de eu mal ouvir quando ela
começa a devanear, vi muitos casos surpreendentes em que suas
previsões acertam.

— Você está solteira há muito tempo, Rosalinda. Por que quer


me arrumar alguém?

— Você sabe por quê.

Sim, eu sabia. Rosalinda ainda amava um homem que


desapareceu, deixando-lhe a livraria.

— Eu sinto muito.

— Não sinta. Ele precisou ir para proteger os filhos.

Não entendo o que ela quer dizer e não me preocupo, porque


com Rosalinda é assim. Às vezes, ela está aqui e, às vezes, não
está. Mas entendo sobre alguém que precisa ir para proteger quem
ama. Foi o que fiz duas vezes.

— Ele vai voltar. Ou eu vou voltar, ainda não descobri essa


parte — afirma, com o semblante aéreo. — Eu cuido da livraria,
enquanto isso.

Uma vez, Rosalinda me contou que os dois nem chegaram a


contar aos filhos sobre o relacionamento, que ainda estavam
descobrindo o que sentiam, mas aí ele sofreu um acidente de carro
e, quando surpreendentemente acordou do coma, desapareceu. As
pessoas da cidade dizem que ele acordou louco e fugiu, mas
Rosalinda diz que ele teve que ir.

Assim como eu, Rosalinda foi mãe nova. Bem, não tanto
quanto eu. Ela foi mãe aos 18 e eu aos 15. O antigo e misterioso
dono da livraria não é o pai de Oz, filho de Rosalinda. Ela não fala
sobre o pai do filho e eu não pergunto, afinal não quero que façam
perguntas que não estou pronta para responder.

— Você precisa se abrir um pouco. — Ela diz e me


sobressalto.

— Eu não quero conhecer ninguém, Rosalinda.

— Aquele que tocou seu coração... Aquele é um bom homem,


Flávia. — Mordo o lábio, quando minha pulsação se acelera. Eu
nunca falei sobre isso com ninguém. — Como o universo vai
conseguir conectar o sinal de vocês, se você ergue tantas
proteções? Hum... que curioso. Acabei de ver uma luz azul rodeando
você.
CAPÍTULO 6

Por um instante minha vida


Se fez mais bonita
Quando você chegou
Lá onde as estrelas dormem
A gente tem sorte
De encontrar amor
Bryan Berh – A vida é boa com você

A noite está agradável na volta para casa. Caminho


devagar, aproveitando para me lembrar de respirar de forma
consciente. Vó Lucinda adora exercícios de respiração e descobri
que eles me ajudam.

Dizem que às vezes evoluímos tanto que as pessoas que nos


conheceram no passado, se nos reencontrarem, não nos
reconhecerão mais. Não sei dizer o quanto mudei, mas sei que ter
uma comunidade me apoiando – ainda que eles não saibam do meu
passado – me dá segurança.

Todo mundo devia ter pessoas com quem contar. Eu não


entendia muito bem como isso funcionava, porque aqueles com
quem eu devia contar foram os que mais me machucaram. Foi por
causa deles que passei anos fugindo com o Bruno.

Se eu analisar todo o meu passado, houve apenas um homem


que se aproximou de mim sem a intenção de me ferir ou abusar de
mim de alguma forma, mas precisei deixá-lo. Depois do que houve,
foi necessário. Minha fuga também o protegeu.

O perfume das flores me inebria e me ancora em Quatro


Estações. A cerca branca e baixa de casa aparece no meu campo de
visão.

Meu lar. Depois de um longo tempo, é o que significa a casa


que alugo, construída na parte de trás do terreno de vó Lucinda.

Rosalinda mora na casa ao lado e normalmente vem


caminhando comigo. Hoje ela decidiu ficar um pouco mais na livraria
para ver se os livros falam com ela. Nem tento entender. Já basta a
luz azul que ela afirma que está brilhando à minha volta.

Como sempre, Bruno está parado na varanda, subindo e


descendo nos calcanhares, esperando minha chegada. Ele me vê e
sorri, correndo até mim. Eu me aproximo e dou um beijo em seus
cabelos crespos.

— Como foi o dia?

— Bom. E o seu?

Sendo sincera, responderia “médio”. A conversa com


Rosalinda me trouxe lembranças com as quais não queria lidar, mas
respondo que foi bom e ele sorri, correndo para dentro da sala.

Limpo os pés antes de entrar e escuto vó Lucinda


conversando na cozinha. Atravesso a sala cercada de Funkos de
personagens de filmes, séries e livros, colecionados pela mulher
mais carinhosa que conheço e encontro-a mexendo numa panela
com a colher de pau.

— Hoje teremos carne de panela.

— Humm... meu preferido. Estamos comemorando algo? —


Ando até o outro canto, onde folhas e gizes de cera estão
espalhados.
Bruno vem até nós e pega os talheres na gaveta, colocando-
os na mesa. Os dois se entreolham, cheios de mistério.

— Que suspense é esse, meu Deus? — pergunto me


abaixando e sorrindo para o meu pequeno, que estende os braços.

— O Samuel aprendeu a escrever o próprio nome!

— É sério, meu amor? — pergunto ao menino de três anos,


que dá uma gargalhada no meu colo, escondendo o rosto no meu
pescoço. — Mas você é tão pequenininho!

Bruno me mostra o desenho e o nome. Pego a folha e sorrio,


olhando para Bruno, Samuel e vó Lucinda. Se eu tivesse tempo de
planejar a vida, quando mais nova, não sei se esse seria o plano,
mas sou grata a Deus por ter me trazido para esse lugar que posso
chamar de lar.
CAPÍTULO 7

Faz tempo que eu não vejo o sol


Faz tempo que eu ando só
Faz tempo que eu não sou seu namorado amor
Tô sem saber o que fazer
Queria ficar com você
Se for pra enlouquecer que seja do seu lado
(Outra noite sem dormir)
Saulo part. Ana Gabriela – Outra vez

— Fechamos muito bem o mês — Ouço Rodrigo dizer,


enquanto folheio o relatório das baladas que temos juntos. Uma no
Rio de Janeiro e duas em São Paulo.

Alongo o pescoço, analisando o longo suspiro que Rafael dá,


antes de dizer:

— Foi bom mesmo, mas tô cansado da vida na noite.

— Ah, pronto, falou o senhor de idade. — Rodrigo caçoa.

— É assim que me sinto de manhã, quando as meninas


querem brincar e eu estou esgotado, precisando dormir. — Rafael
passa a mão pelos cabelos. — Acaba pesando mais para a Vivi e
não quero que seja assim.
O rosto de Rodrigo expressa conflito por apenas um segundo.
Viviane é sua irmã.

— Quer vender sua parte? — Ele é direto.

Essa é a parte boa de trabalhar com Rodrigo. Não tem tempo


ruim. Se há um problema, ele procura a solução. A parte ruim é que
se não tiver uma solução, ele nem esquenta. Funciona para ele, mas
deixa o resto de nós maluco.

— Quero.

Eu sabia que o Rafa ia sair. Na verdade, o papo surgiu


quando mencionei meu desejo de deixar a sociedade. Por mais que
eu não esteja cansado de trabalhar em horários loucos, ando
sentindo que preciso dar um novo rumo a minha vida.

— Vou sair também. — Aviso e Rodrigo me lança um olhar,


assimilando. — Mas primeiro a gente cuida da parte do Rafa, quando
isso estiver certo, vemos minha saída.

— É uma debandada, seus putos! — Rodrigo brinca, fechando


os relatórios. — Fiquem tranquilos, vovôs. Não vai ser difícil vender
com esses números, mas não quero fazer nada precipitado. De
repente, posso até vender a minha parte e analisar um investimento
que renda mais ainda.

— Que bonitinho... — Rafael provoca. — Todo responsável.

— Cala boca, Rafa. — Rodrigo ergue o dedo do meio para


ele, rindo.

Quando conhecemos Rodrigo, através de Lucas, primo do


Rafael, ele era apenas um moleque, que não pensava em nada além
de bagunça. Hoje ele é mais responsável, principalmente com o que
ele chama de “coisas de adulto”, mas mantém a alma de menino leve
e brincalhão, o que – preciso dizer – é um alívio.
— Tudo certo para o churras na sua casa? — Ele pergunta ao
Rafael.

— Sim. Vai levar a ex do Lex? — Rafa volta a tentar provocá-


lo, mesmo sabendo que não vai dar certo. Pensando bem, ele está
tentando provocar a nós dois.

— Opa! — É apenas o que Rodrigo diz.

— Qualquer hora a Branca vai te acertar nas bolas por essas


brincadeiras, Rafa. — Menciono minha ex e atual de Rodrigo.

— Vai nada. Ela sabe que estou só tentando irritar vocês. —


ele dá uma gargalhada.

É, eu sei... Não são todos que conseguem entender nossa


família. Não é comum ver ex e atuais convivendo tão bem. Para mim,
sempre foi tranquilo. Sou mais calado, fico na minha e não frequento
todos os eventos sociais. Para a Branca, não foi tão simples assim,
mas tudo acabou se encaixando.

Há amor e respeito genuínos entre nós. Ainda bem.

— Tô enchendo vocês — Rafael se levanta e ajeita a cadeira.


— Só me certificando de que não ficou um clima pesado agora que
nossa sociedade vai acabar.

Percebo que ele está um pouco tenso ao olhar para o


Rodrigo.

— Nada a ver, cara. — Rodrigo se levanta e aponta à volta. —


O que é uma sociedade perto da família? Você está certo e até me
fez pensar...

— Por essa eu não esperava. Temos um milagre. — O


comentário provoca uma gargalhada coletiva.

Rodrigo ergue as mãos, ciente do quanto já agiu sem pensar


e de todas as confusões que se meteu por isso. Em seguida, Rafael
o puxa para um abraço.

Mais um problema resolvido com sucesso.

Agora preciso descobrir com o que vou trabalhar quando sair


daqui.
CAPÍTULO 8

A seguir de fato
O caminho exato
Da delicadeza
E ter a certeza
De viver no afeto
Só viver no afeto
Lenine – Leve e Suave

Acordo com a risadinha dos meninos, mas não abro os


olhos. Sei que quando estão rindo desse jeito é porque querem me
surpreender. Capricho na respiração para que pensem que continuo
dormindo.

Acompanho os sons dos movimentos e percebo que


colocaram algo sobre minha mesa de cabeceira. Meu nariz começa a
coçar, mas resisto. Só mais um instante e...

— Mãe, mãe — eles dizem baixinho.

Bruno faz carinho nos meus cabelos e Samuel sobe na cama,


deitando a cabeça na minha barriga.

— Olha só isso, enviaram os príncipes mais bonitos do reino


para me acordar — puxo Bruno para cima da cama, enquanto eles
gargalham. — Que honra é essa que me fez ganhar café na cama?
— pergunto ao observar a bandeja com suco de laranja e torradas
com geleia de morango.
Samuel passa as mãos melecadas no meu rosto. Com certeza
sobrou geleia por aí. Basta um olhar para ver meu lençol manchado
em dois lugares.

— Alguém se esqueceu de lavar as mãos... — Sento-me na


cama.

— Eu avisei — Bruno coloca as mãos na cintura.

— Está tudo bem. Você vai lavar agora e ouvir seu irmão na
próxima vez, não vai? — Não quero que fiquem tristes por causa de
algo que sai com água e sabão. Puxo os dois para um abraço. —
Qual o motivo do café na cama?

— A gente viu num filme com a vó Lucinda. — Bruno explica.

— Deixa as pessoas felizes! — Samuel ergueu as mãos para


o alto.

— Funciona mesmo, porque estou muito feliz. — Beijo cada


um dos meus filhos e dividimos as guloseimas que prepararam.

Observo Samuel balançando o corpo, dançando, e Bruno olha


para ele rindo, imitando-o. Levou bastante tempo para que Bruno
florescesse assim. Depois de tudo o que passamos, da sua
concepção aos anos fora de Quatro Estações, ele se tornou um
menino retraído. Fecho os olhos e agradeço a Deus por Samuel não
ter vivido o horror que Bruno e eu vivemos e por termos nossa
chance de felicidade e paz.
Os meninos estão brincando no gramado e estou sentada na
cadeira de balanço, observando-os. Eles dão risada enquanto
posicionam os bonequinhos para simular a aventura.

— O tempo voa, não é mesmo? — Vó Lucinda pergunta e me


sobressalto de leve. Velhos hábitos são difíceis de eliminar.

— Muito — respondo enquanto ela se senta ao meu lado. —


Às vezes eu queria ter o poder de congelar esses momentos.

— É uma pena que não possamos. Só nos resta viver


intensamente. — Ela dá um longo suspiro. — Minhas netas e meus
bisnetos vêm almoçar aqui amanhã.

— Que ótimo. Quer que eu vá ao mercado?

— Já fiz uma lista. — Ela sorri, apertando meu nariz, antes de


vasculhar o bolso do vestido.

Guardo o papel no bolso da bermuda. Vó Lucinda e eu


funcionamos muito bem juntas. Antes dela, nunca tive uma parceria
assim. Nós nos ajudamos e nos cuidamos. Ela se tornou tão especial
que sinto como se fosse minha família. A única que importa.

Ela acomoda a cabeça no meu ombro e segura minha mão.


Inspiro seu perfume. Ela cheira a jasmim, bolo de chocolate e casa.
Sorrio e agradeço pela energia que me guiou até ela.
— Eles crescem tão rápido... — ela murmura. — Com minhas
meninas, eu pisquei e elas se tornaram adultas. — Refere-se às
netas. — Elas sofreram muito quando o pai as abandonou. Meu
marido também me abandonou com minha filha. Nunca mais me
casei. É horrível o pensamento que me ocorreu agora: eu tive sorte.

— Por que pensa assim?

— Porque ele apenas se cansou e foi embora, assim como o


marido da minha filha fez depois. Eles não se tornaram violentos. É
um pensamento horrível, não é? Agradecer por ter sido abandonada
e não ter apanhado.

— Não é um pensamento horrível, cada um acredita naquilo


que faz com que se sinta melhor. — Repito as palavras ouvi um dia.
— Você não ter apanhado não faz de você menos vítima. Ele não
podia simplesmente ir embora sem olhar para trás e te deixar com
sua filha. Nem toda agressão é física.

— Você tem razão, mas reafirmo que é um alívio eu não ter


precisado fugir. Eu sofreria muito se tivesse que deixar esse lugar.

Fico em silêncio e me permito me perder no som da


gargalhada dos meninos rolando na grama.

— Você acha que um dia vai parar de fugir? — Essa é a vó


Lucinda. Se você não entrar na conversa por meio das indiretas, ela
será direta.

— Eu ainda estou fugindo? — pergunto e respiro


profundamente, diante do seu olhar acolhedor. — Eu me sinto segura
aqui, mas sei que ajuda o fato de estar numa cidade pequena, com
um índice de violência minúsculo e que é monitorada por um grupo
de idosos curiosos pelo Facebook.

— Eles são mais do que curiosos. Você pode chamá-los como


realmente são, querida: enxeridos. — Vó Lucinda me faz rir.
— Eles têm muito tempo livre, diferente da senhora que
mantém a mente ocupada com livros, séries e meus meninos.

— Isso é ótimo, sabia? Depois que Letícia e o marido se


mudaram da cidade, fiquei muito solitária. Quando vocês
apareceram, eu estava quase pedindo para entrar no grupo
Guardiães de Quatro Estações no Facebook. Aí você e Bruno
chegaram e eu tive duas novas vidas para cuidar de perto. E qual foi
a minha surpresa quando percebemos que haveria mais um? Sou
muito grata por vocês, Flávia.

— E nós por vocês, vó Lucinda. Eu não tive uma figura


materna para me inspirar antes da senhora, sabia?

— Eu não tinha certeza, mas imaginava. E paterna?

Estremeço.

— Minha casa não era um lugar seguro. Eu tinha dez anos


quando fugi pela primeira vez, mas me trouxeram de volta. Depois
definitivamente aos 19. Demorou um pouco, mas por um tempo
achei que ficaria feliz morando com meus tios. No fim, não deu certo
e acabei aqui. Isso parece que deu certo, até agora, mas ainda
preciso...

— Vigiar.

— Eu não quero que meus filhos precisem fugir. Quero que


eles tenham um lugar seguro.

— Eles têm. Você tem.

Forço um sorriso. Não quero parecer ingrata. Estamos mais


seguros aqui do que estivemos em qualquer lugar. Eu tenho uma
rede de apoio real e acolhedora. Posso chamar Quatro Estações de
lar. A menos, é claro, que lar também seja uma pessoa. Se for,
estarei sempre perdida.
Capítulo 9

Família ê
Família ah
Família, yeah
Família ê
Família ah
Família, oh yeah, yeah yeah
Titãs – Família

— Ah, se não fosse o tio Bô, não é mesmo? — Rodrigo


coloca as mãos na cintura e pisca para as crianças ao apontar a
piscina sem a lona e limpa.

— Onde tem lustra-móveis nessa casa? O Rodrigo está


precisando lustrar a fuça. — Jogo na água a boia de unicórnio que
acabei de encher.

— Mas não fui eu que liguei a cachoeira? — Ele me provoca,


apontando para uma pequena queda de água que o Sr. Fernando
tinha mandado instalar.

— Chamando todas as crianças, chamando todas as crianças!


— Rafael entra com um megafone na área da piscina, seguido de
Bernardo. Os dois logo são rodeados por crianças empolgadas. —
Formem filas agora mesmo. Bernardo e Lucas são os tios do protetor
solar; Rodrigo e eu seremos os tios das boias de braço hoje. Como
sempre, será uma honra servi-los.

— Mas, papai, eu já sei nadar! — Priscila reclama, franzindo a


testa e cruzando os braços. — Eu me nego. — Ela ergue o queixo,
uma cópia perfeita da mãe.

Nós, os adultos, precisamos apertar os lábios para não cair


em gargalhada. Aos seis anos, Priscila parece conter toda a
personalidade dominante dos Villa.

— É claro que você sabe, meu anjo. — Rafael intervém. —


Mas ainda precisa da supervisão de um adulto dentro da água,
lembra? Você também poderia me ajudar sendo um exemplo para os
mais novos. O que acha?

— Ser um exemplo é uma droga. — Ela diz, mas abaixa os


braços, cedendo.

— Eu sei bem disso, princesa. — Rodrigo bagunça seus


cabelos. — Exigem tanto de nós.

Agora nós rimos. Qualquer um que o conheça, ri. Rodrigo foi


por muitos anos exemplo do que não fazer.

— Posso saber o que as mulheres dessa casa estão fazendo?


— Ele pergunta, antes de assoprar uma boia de gatinho.

— Que que você quer saber, moleque? — Branca aparece na


sacada e eleva a voz, mesmo sabendo que ele está brincando.

— Nada, não, amorzinho. Nada não. Continuem descansando


enquanto nós fazemos todo o trabalho. — Rodrigo manda um beijo,
enquanto Branca observa se alguma criança está olhando antes de
levantar o dedo do meio para ele. — Também te amo, minha rainha.
Seguirei servindo e protegendo as crianças para que vocês possam
descansar.
Dou uma olhada na área da churrasqueira e confiro se está
tudo pronto para acender. Estou acomodando o carvão quando
Rafael aparece. Rodrigo e Lucas entram na piscina com as crianças
e Priscila imediatamente quer tirar boia. Seu amado tio Bô a atende
sem pestanejar.

— Vó Lorena e tia Monique estão preparando saladas.


Bernardo foi ajudar. Acho que vai fazer um pouco de arroz para as
crianças.

— Eu como arroz com churrasco, Rafael. — Respondo à


provocação.

— Pois é, foi o que eu disse, bebezinho. — Ele aperta minha


bochecha, dou-lhe uma cotovelada de leve e ele finge que foi um
golpe forte.

— Idiota.

Ele abre a geladeira e escolhe o que vamos assar primeiro.

— Quer uma Coca com gelo até o topo e limão?

— Quero.

Rafael é um viciado em drogas e álcool em recuperação. Ele


está limpo há muitos anos, mas quando estou com ele, evito beber,
em consideração. Nem é um sacrifício nem nada. Acho bom pelas
crianças. Sem álcool na presença delas.

Nós sabemos que Rafael é forte o suficiente para resistir, ele


tem nos mostrado isso, mesmo nos momentos mais difíceis. Mas se
podemos deixar o ambiente melhor para ele e para as crianças, por
que não fazer?

O pensamento me tira um sorriso, porque meu amigo sempre


me zoa por eu gostar de comer arroz com churrasco, quando ele diz
que arroz se come em casa, se você não for criança. Obviamente,
ele não fala isso para o Sr. Fernando e seu prato bem servido de
arroz.

— Quando você vai se amarrar, meu rapaz? — Falando em


Sr. Fernando, olha ele aparatando atrás de mim com seu poder
supremo de Mestre dos Magos.

— Ah, pronto — Rafael ri.

— É uma pergunta muito séria. Minha bisneta veio me


perguntar se tenho contato com a Fada Azul para que ela possa
ajudar o tio Lex. Vocês sabem que tenho muitos contatos
importantes na minha agenda, mas esse está indisponível. Então
pensei, por que não eu mesmo fazer o papel da fada e resolver o
problema da Priscila?

— Não precisa se preocupar, Sr. Fernando. — Devo ser o


único aqui que não o chama de vô. — É uma fase da Pri por causa
do Pinóquio. Vai passar. Ela vai ficar bem.

— Eu não tenho dúvidas de que minha bisneta ficará bem,


afinal ela é uma Villa e um Villa é resiliente. — Seu tom se enche de
orgulho.

— Ela é parte Ferraz também. — Rafael intervém, estreitando


os olhos. Ele não gosta quando Fernando Villa age como se só o
sangue Villa corresse nas veias de seus familiares. Ele mesmo tem
parte de outros, mas nunca fala sobre isso.

Nessa família de fofoqueiros, o segredo mais bem guardado é


sobre o passado de Fernando Villa.

— Ser parte Ferraz a torna ainda mais forte. — Sr. Fernando


responde, sincero, e faz Rafael sorrir. — Você sabe que realmente
penso dessa forma, não é, meu filho? — Ele toca o ombro do meu
amigo. — Esse meu jeito de falar é porque...

Tanto Rafael quanto eu ficamos em silêncio, esperando. O


olhar do Sr. Fernando fica perdido por alguns segundos, sua
expressão parece se transformar e quase podemos ver o menino
que foi um dia, mas quando ele volta a falar, isso se dissipa.

— Houve um tempo em que tudo o que eu tinha era esse


nome. Tudo o que eu tinha era Villa.

— Eu entendo. — Rafael dá um toque de leve no ombro do


avô de sua esposa. — Mas agora você tem a nós. Não se esqueça
disso. — Os dois trocam um olhar amigável e assentem, depois
Rafael pisca um olho e diz: — Agora conta pra gente como é que vai
funcionar o projeto Fada Azul.

— Não existe projeto Fada Azul — Afirmo e bebo um gole do


copo de Coca-Cola que Rafael me deu.

— Se você diz... — Vô Fernando responde, dando de ombros


e piscando para o meu amigo bem na minha cara. — Não existe
projeto Fada Azul.
Capítulo 10

Música Instrumental
Adam Clayton e Larry Mullen Jr.
– Mission Impossible Theme

Os últimos dias se passam bem rápido. Apesar de ainda


ser primavera, o calor do verão vem batendo à porta da cidade.
Famílias fazem piqueniques no parque. Os mais jovens nadam no
lago. Os mais novos se refrescam na mangueira, o que deixa o
prefeito da cidade maluco.

Por mais que eu adore cada estação passada aqui, é um


alívio entrar na livraria e sentir o ar-condicionado geladinho. É quase
como um abraço de frescor.

— Eu adoro essa sensação. — Ouço a voz de Rosalinda


enquanto aprecio o momento de olhos fechados.

— Lá fora está bom para quem pode se molhar. — Respondo


enquanto guardo minha bolsa na estante de madeira atrás do caixa.

Um encantamento percorre meu corpo toda vez que entro na


livraria. Não sei explicar de onde vem. O lugar por si parece
encantado. É diferente de todas as livrarias que conheci. Para
começar, ela parece muito maior quando estamos dentro, o que
sempre me lembra de Harry Potter. Há um labirinto de estantes,
propositalmente deixadas assim. Vira e mexe alguém se perde.
Quando isso acontece, tudo o que a pessoa pode fazer é relaxar e
escolher um livro para ler. No momento certo, alguém aparecerá e a
saída estará ali bem na cara, como se estivesse ali o tempo todo.

Os moradores acreditam que a livraria é tão encantada quanto


o resto da cidade. Já ouvi as histórias mais malucas sobre essas
estantes. Eu não sei se há magia. O que sei é que é possível que
haja um encanto poderoso entre as páginas de um livro. Quantas
vezes me senti perdida e ao ler uma história me reencontrei?
Quantas vezes me senti triste e ao ler uma história meu coração foi
curado e dei um sorriso sincero? Quantas vezes senti que não havia
mais saída, mas a encontrei entre as páginas de um livro? Se isso
não é magia, não sei o que é.

Imprimo as vendas da última semana e confiro o que preciso


pedir reposição e o que tenho no estoque. Pego uma pilha do
lançamento de uma saga de fantasia e me distraio entre caminhar e
ler a sinopse. Meu celular começa a vibrar loucamente no bolso da
calça jeans e quase tropeço em uma garotinha.

— Nossa, me desculpe. — Equilibro a pilha e evito que os


livros caiam.

— Você quase derrubou tudo — A menina ri. — Me desculpe.


— Ela se corrige rápido, como se se lembrasse de que é o que deve
fazer.

Coloco os livros sobre a estante mais próxima e paro para


observá-la melhor. Não é incomum encontrar crianças pela livraria.
Elas adoram o lugar. Mas eu nunca tinha visto essa menina. Ela está
usando uma regata e um shorts tão azuis quanto as asas que ela
tem pendurada nas costas. Eu me abaixo na altura dela e me deparo
com dois olhos claros brilhantes, um nariz franzido enquanto ela me
encara com curiosidade e duas marias-chiquinhas presas com
lacinhos azuis.

— Você realmente gosta de azul. — Digo, sorrindo.


— Eu gosto muito e estou em uma missão secreta e essas
são as cores da minha superiora. — Ela sussurra, como se de fato
me contasse um segredo.

Meu celular volta a vibrar e o pego para ver se está tudo bem
com os meninos e vó Lucinda. Um calafrio passa por meu peito
quando vejo que é do grupo dos guardiães da cidade. Leio as
mensagens. Alguns estranhos chegaram. Vou lendo, vou lendo.
Calma... é só uma família, como tantas que visitam a cidade,
principalmente, nos dias quentes. Meu Deus, esses velhinhos são
muito enxeridos, tem até foto. O foco não está muito bom, mas
reconheço a menininha de azul. Minha internet deve estar com delay.

— Então, para quem você trabalha, mocinha? — Volto minha


atenção para a menina, que coloca a mão sobre a boca e se
aproxima do meu ouvido para me dizer baixinho:

— Fada Azul. — Sussurra, conspiratória.

— Mas que porra dos infernos, tô perdido! — Escuto um


homem esbravejar e me sobressalto.

— Ai, ai, deixa a mamãe ouvir você, papai — A menina ergue


e balança o dedo.

O olhar do estranho se transforma em pura doçura ao avistar


a menina.

— Se você não contar a ela, eu não conto que fugiu de mim


correndo pelos corredores da livraria. — Ele negocia.

A menina tem um olhar travesso, antes de erguer o dedo


mindinho para ele apertar com o dele.

— Combinado.

— É sério, Pri. Não pode correr na frente.


— E você não pode falar palavrão, papai. — Ela se defende
sem dar muita atenção a ele e voltando a olhar para mim.

O estranho passa as mãos pelos cabelos escuros meio


perdido por não saber como reagir ao ser vencido no argumento por
uma criança, depois olha para mim. Ele estava tão focado na
pequena, que ainda não tinha me visto. No susto que tomei, dei um
pulo para o lado e fiquei parcialmente escondida pela estante. O pai
me fita e desvia o olhar bem rápido, abaixando-se para abraçar a
menina e vejo que ele também está usando asas de fada azuis.
Sorrio. É gostoso ver um familiar embarcando nas aventuras da
imaginação de uma criança.

— Vocês não sabem o que aconteceu? — Ouço uma voz


atrás de mim e me deparo com um senhor de idade, usando uma
boina e, obviamente, asas azuis de fada. — Fiquei perdido e
encontrei um livro que li na adolescência, no meu idioma natal. Que
coincidência incrível! Esse lugar é encantador. Preciso trazer a
Lorena.

— A bisa ou a Lolô, biso? — Priscila dá pulinhos ao citar a


irmãzinha também chamada Lorena.

— Ambas. Como eu não conhecia esse lugar antes? — Ele


está encantado como toda pessoa que entra na livraria. — Olá,
minha jovem. Fernando Villa, ao seu dispor. — Ele me estende a
mão, galante. — Você é a dona desse lugar mágico?

— Não, a dona é a Rosalinda. Vocês devem tê-la visto quando


entraram. Eu trabalho aqui. Sou a Flávia. — Não digo meu
sobrenome, mas aperto sua mão.

— Eu sou a Priscila e ele é o papai — A menina toca a cintura


do pai.

— Rafael. — Ele diz, apertando minha mão. De novo, sinto-o


me olhar e logo desviar a cabeça. Ele tem um rosto familiar, mas
tenho certeza de que nunca o vi antes.
Priscila começa a tagarelar sobre os livros que quer que o pai
compre e ele a escuta, fazendo perguntas. O avô participa dando
sugestões. Procuro ser discreta, mas continuo observando-os
interagir. Então essa é a família que está na cidade. Eles são
adoráveis. Pelo menos não preciso me preocupar.
Capítulo 11

Por onde quer que eu ande


Aonde quer que eu olhe
Nada afasta essa lembrança de você
Tem vezes que eu canto
Pra ver se você volta
É impossível
Eu não consigo esquecer
ANAVITÓRIA – Te procuro

— Você sabe para onde ele foi? — Pergunto para Viviane,


enquanto a ajudo a dobrar as peças de roupas das meninas.

Passei aqui para trazer uns salgados congelados que compro


no meu bairro e a Priscila adora.

— Não sei. Estou até curiosa. — Ela me responde, dobrando


um macacãozinho amarelo e olhando para o forno onde assa
algumas esfihas. — Eles disseram que passariam na casa do vovô e
iriam para uma missão secreta.

— Missão secreta com o seu avô envolvido? — Isso nunca é


algo simples.

— Nem me fala — Ela ri. — E o pilantra ainda envolveu o


Rafa e a Pri. Meu avô é imparável.
— Você sabe que isso tem a ver com um de vocês, não sabe?
Seu avô está sempre querendo consertar o que ele acha que está
errado. — Não sei por que estou preocupado.

— Pode ser sobre qualquer um. Aprendi a não me estressar


com os planos do vovô. Ele vai colocá-los em prática eu me
estressando ou não. Nem sempre ele está certo, nem sempre o
plano em si dá certo, mas faz bem a ele acreditar que só está
fazendo o melhor por nós.

A conversa sobre o projeto Fada Azul foi há mais de quinze


dias e depois disso ninguém tocou no assunto. Não é possível que
seja sobre mim. Passo a mão pelos cabelos, mantendo a calma.
Repasso mentalmente quem da família pode estar com problemas
que motivem o Sr. Fernando a agir. Até onde sei todos estão bem.

— Você está bem? — Viviane me pergunta, séria, colocando


as roupas dobradas de volta no cesto. — Ficou pálido de repente.

— Você acha que pode ser sobre mim?

— Como eu disse, pode ser sobre qualquer um. Por que acha
que seria sobre você?

Ela me examina atentamente, procurando algum sinal de que


eu não esteja bem. Eu estou. Ando mais quieto e não tenho saído
com ninguém, mas isso não é um problema. Gosto da minha própria
companhia.

— O Rafa anda preocupado comigo. — Digo o que ela com


certeza já sabe.

— Ele tem motivo para se preocupar?

— Não, eu estou bem.

— Posso fazer uma pergunta bem pessoal? — Viviane puxa a


cadeira para mais perto da mesa.
— Estou surpreso por você me perguntar se pode.

— Engraçadinho — ela balança a mão. — É verdade que


você não amou mais ninguém depois da Flávia? — Assinto,
desviando o olhar. — Quatro anos são bastante tempo.

— Isso não quer dizer que eu não saia com alguém. — Cruzo
os braços e ela continua me olhando. Certeza que sacou que estou
na defensiva.

— E você tem saído com alguém?

— O Rafa não te conta? — Tento ganhar tempo e não


responder que não saio com ninguém há quase dois anos.

— Sobre você não. — Viviane se levanta e abre o forno,


conferindo se as esfihas que colocou para assar estão prontas. —
Ele te protege, você sabe.

É, eu sei. Eu a observo pegar a assadeira com um pano e


colocar sobre pia. Por mais que vivamos em uma família intrometida,
eu imaginava que Rafael daria um jeito de não contar tudo sobre
mim. Nunca cheguei a perguntar a ele o quanto contava das nossas
conversas para Viviane e sei que o corriqueiro ele fala, mas me sinto
grato por ele não contar cada detalhe.

— Às vezes, as pessoas se concentram nos problemas dos


outros para não olhar para os seus próprios conflitos. — Ela coloca
as esfihas em um prato e o traz para a mesa.

— Você e o Rafa estão com problemas?

— Até onde eu sei, não, mas ele anda agitado sobre o que
fará agora que vai sair da sociedade das baladas.

— Ele não gosta de mudanças. — Dou uma mordida na esfiha


que perfumou a cozinha toda. — Mesmo querendo sair da
sociedade, acho que ele está um pouco perdido sobre o próximo
passo, mas vai dar conta.

— Tem o Gigante também...

Agora sei que Viviane está sondando o terreno. Gigante se


chama Mateus, mas ele deixou de usar o nome próprio há muito
tempo. Rafael e eu o conhecemos, depois nossos caminhos se
distanciaram. Quando Rafael se voltou para as drogas, os dois se
reaproximaram. Se não fosse pelo Gigante, todos nós estaríamos
mortos. Há uns anos ele foi preso e o Rafa se culpa por não ter feito
mais para tirá-lo das coisas com que estava envolvido. É complicado
porque se tem alguém orgulhoso e que rejeita todo tipo de ajuda,
esse alguém é o Gigante.

— Não se preocupe, Vivi. Está tudo bem. — Tranquilizo-a. Os


dois passaram por uma grande tempestade antes de tudo se
acalmar. É natural que ela se preocupe, mas não é necessário. — A
situação do Gigante vai se resolver. — Nesse caso, estou sendo
otimista demais, mas também preciso acreditar nisso. — Quanto ao
Rafa, só precisamos dar um tempo para que ele resolva suas coisas.

— O tempo que ele não dá para você?

Dou risada, quase engasgando.

— É como você disse: resolver o que ele acha ser um


problema meu é mais fácil do que olhar para seus próprios conflitos.
— Dou um gole na limonada que ela colocou na minha frente. — Se
focar em mim o ajuda, tudo bem, deixe-o focar.

— Temos muita sorte de ter você. — Ela segura minha mão


por um instante. — Você sabe que quando o Rafa foca assim há
chances de que ele faça uma revolução, não é?

— Eu sei. Desde que ele se recuperou das drogas, essa


revolução é barulhenta, mas normalmente é só ele tentando salvar o
mundo de alguém. Deixa ele, eu dou conta do que quer que ele
esteja aprontando com seu avô.
Percebo agora o que ela fez. Enquanto eu a ajudava a dobrar
as roupas, ela deu um jeito de cuidar do que eu ia comer. Nós
fazemos isso uns com os outros. Cuidado é uma forma de
demonstrar amor. Diferente da minha infância, hoje sou exposto a
amor em abundância.

— Você parece ter certeza de que é sobre você.

— É uma intuição. Tia Rosalia dizia que devemos estar


atentos ao que nosso sexto sentido nos mostra. — Cito a mãe do
Rafael, lembrando-me das pessoas que amamos e perdemos para a
morte. — Eu só não entendo por que seu avô está metido nisso. Não
sou um Villa.

— Todos que o vovô ama se tornam Villa.

— Seu avô me ama? — Franzo a testa, surpreso.

— Por que não amaria, Lex?

Não sei como responder a essa pergunta. Sr. Fernando


demonstra amor se envolvendo na vida da pessoa e virando tudo de
cabeça para baixo, mas ele é um homem bom. Quando ele cruzou
meu caminho e do Rafa, nós tínhamos perdido tanto... E ele agiu
como um pai – às vezes um pai puto da vida e muito controlador,
mas um pai. A Viviane conta que ele se tornou assim depois da
morte do pai dela – único filho dele. Ele tem uma filha também, a
mãe da Fernanda, mas eu mesmo a vi pouquíssimas vezes. Ela não
tem interesse em fazer parte da família nem da vida dos pais nem da
dos filhos, o que me lembra da minha mãe.

Dá para dizer que, para o Sr. Fernando, seus filhos somos


todos nós. Dos netos aos bisnetos e aos agregados à família, como
eu – pelo que parece.

— Eu não sou próximo dele. — As palavras saem sem que eu


perceba.
— Você é mais do tipo caladão. Na maior parte do tempo, é
bem quieto com quase todos nós, mas está sempre presente.

— Sou mais ouvinte que falante. E não tenho o gene da fofoca


como todos vocês. — Eu a provoco e ela dá uma gargalhada.

— O Rafa também não tinha. Agora lá está ele, envolvido em


algo secreto com o vovô.

— E ainda levaram a Pri. Você concordou?

— Eu não sei o que eles foram fazer, mas duvido que a


coloquem em perigo. Ela está adorando estar em uma missão
secreta. Precisava ver como eles saíram fofos daqui com aquelas
asinhas de fada azuis.

Se eu tinha algum resquício de dúvida, ele se esvai. O plano


secreto de Fernando Villa e Rafael Ferraz é sobre mim.

Mais uma hora se passa até que Rafael entre carregando


Priscila adormecida nos braços. É cedo ainda, não são nem 17h. Ele
coloca um dedo sobre a boca, pedindo silêncio. Vai até o quarto dela
e retorna.
— Onde estão as meninas? — Ele pergunta das outras filhas
ao entrar na sala.

— Com minha mãe e minha vó. Elas vão trazê-las já já. —


Viviane explica, apertando os dedos.

Ela está curiosa para saber o que está havendo, mas antes
que possa perguntar, Rafael começa a andar de um lado para o
outro, antes de se sentar, se levantar e se sentar de novo.

— Cara, tenho algo pra te contar. — Ergue as mãos,


demonstrando ser algo grande.

Não digo nada. Nem saberia o que dizer.

— Fala logo, Rafa! — Viviane exige, entre curiosa e aflita.

— Encontramos a sua mulher. — Ele aponta a mão para mim.

Viviane, que normalmente corrigiria Rafael sobre usar um


pronome possessivo para falar de uma mulher que evidentemente
não é minha, está boquiaberta.

— Explica — É minha única palavra.

— Que mundo doido, que mundo doido, que mundo doido! —


Rafael está agitado. Seja lá o que descobriu está mexendo muito
com ele. — Sua mulher, cara. Ela está em Quatro Estações.

— Ela não é mulher dele, Rafael. — Agora Viviane não se


aguenta e o corrige. Não posso dizer que esteja errada. — A
cidadezinha da vó da Luiza? — Pergunta, mencionando a namorada
de um amigo nosso de longa data. André foi dono do bar em que
Rafa e eu trabalhamos há muitos anos e hoje é o paisagista oficial da
família.

— Sim, mas não é só isso. Ela mora na casa da avó da Luiza!


— Como assim? — Viviane exclama, puxando o ar. Esse povo
adora mesmo uma fofoca. É quase como se ela estivesse assistindo
a uma novela de que gosta muito. Eu nem preciso fazer perguntas.

— Assim, desse jeitinho, mulher. Não é doido?

— É muita coincidência.

— Ou destino. Acredito que foi o destino. Aquela parada das


batidas perdidas do coração, sabe? Eles precisavam se reencontrar
para o coração entrar em compasso outra vez.

— Estou bem aqui. — Aviso, porque parece que os dois se


esqueceram disso.

— Foi assim que vocês a encontraram? — Viviane me ignora.

Os dois seguem falando sobre a minha vida, como se fosse


algo comum e da conta de toda a nação. Nessa família esse negócio
de cem anos de sigilo não duraria dez minutos!

— Ah, não. Isso eu só descobri quando estava em Quatro


Estações.

— E como a encontraram?

Rafael franze os olhos por um segundo e depois tenta parecer


tranquilo. Eu o conheço bem o suficiente para saber que fez algo
errado. O problema é que sua mulher o conhece tão bem quanto eu.

— Olha, Vivi, não fica brava. — Meu amigo balança as mãos


devagar. O rosto de Viviane está coberto por uma máscara de
irritação. — Relaxa. — Ele diz enquanto Viviane automaticamente
fica brava e nada relaxada.

— O que você fez? — Ela se levanta e cruza os braços.

— Foi o seu avô, mas eu estava junto. Não vou arregar não,
mesmo sob esse seu olhar aterrorizante me dizendo que estou
lascado. Eu apoiei o velho. Era o certo a se fazer e não estou
arrependido não.

— O que vocês fizeram?

— Depois de contratar um detetive e não dar em nada, seu


avô decidiu dar um passo além. Você não vai gostar. Entenda, era
necessário. — Ele ergue as mãos e se levanta devagar, sem se
aproximar dela.

— Que passo?

— Demos um incentivo a um agente do governo para


encontrá-la através do endereço do Imposto de Renda. — Ele fala
tão rápido que quase não compreendo.

Estou boquiaberto. Eu sei que ele me ama e acredita que eu


merecia reencontrar a Flávia, mas ele não devia cometer um crime.

— O quê?! — A voz de Viviane sai esganiçada e agradeço por


Priscila estar dormindo e as outras meninas estarem com a avó.

— Mulher, não tinha mais o que fazer. Deu um trabalhão. Você


não tem noção de quantas mulheres com o mesmo nome e
sobrenome existem. Foi bem caro e seu avô não me deixou pagar, o
que me deixou puto e ainda estou tentando aceitar. Não é porque ele
nada numa piscina de dinheiro, como o Tio Patinhas, que ele pode
sair pagando tudo. Eu dou conta de sustentar a minha família.

Faço uma nota mental para me lembrar de conversar com o


Rafael sobre isso. Os Villa serem podres de ricos nunca foi um
assunto fácil para o meu amigo.

— Vocês subornaram um agente do governo para encontrar


uma mulher que não queria ser encontrada? — Viviane ergue as
mãos e aperta a testa.

Ela sempre se preocupou com outras mulheres, mas depois


que começou a trabalhar na Villa Encantada – ONG que sua família
administra -, se tornou ainda mais protetora. E, confesso que eu
mesmo parei de procurar a Flávia porque não achei justo ficar atrás
de uma mulher que queria ficar longe de mim.

— Não coloca assim que fica pior, meu amor. E não a


procuramos para fazer mal algum, pelo contrário. Se me deixar
explicar, vai ver que meu instinto estava certinho em me atormentar
para encontrá-la.

Eu devia intervir. O assunto me envolve, mas sei que agora é


impossível. Os dois precisam se revolver para que eu possa fazer as
perguntas necessárias.

— O seu avô diz que vale tudo para ajudar a família e eu


concordo. O Lex é minha família também. — Rafael cruza os braços.
— Não estou arrependido.

— Agora você e meu avô são comparsas nas artimanhas? —


Apesar de Viviane estar de boa com isso até o Rafael chegar, ela
não hesita em jogar na cara dele.

— Não fala assim, Vivi. “Comparsas”, “artimanhas” — ele faz


aspas com as mãos. — Que pesado. Só estamos tentando ajudar.

— Cometendo um ato ilegal? E se te descobrirem? E se você


for preso? Eu não vou criar três filhas sozinha, Rafael! Me jogo no
primeiro motoqueiro tatuado que passar na minha frente.

— Mulher, que crueldade. — Rafael coloca a mão no peito. —


Vou relevar essa besteira aí que você disse. — Ele ergue o dedo
indicador. — Na verdade, vou relevar nada. Mais tarde, vou te
mostrar umas coisinhas para entender que não é qualquer
motoqueiro tatuado que sabe como cuidar de você. — Reviro os
olhos enquanto ele se aproxima dela, cautelosamente. Ele toca seus
braços e a faz olhar em seus olhos. Há amor ali. Amor e medo.
Esses dois brigam só para fazer as pazes. — Eu sei que você está
brava, mas devia saber que ninguém vai ser preso. Seu avô tem
privilégios e sabe bem como usá-los. Eu não vou reclamar, se isso
ajudar o cara que tomou um tiro por mim.

“Apelão”, eu penso.

— Droga...

— Não tem mais argumento, né? — Ele dá um sorrisinho.

— Não, nenhum. — Ela fecha a cara. — Mas ainda estou


brava. — Não, não está mais não. Não quer dar o braço a torcer,
mas ele jogou o coringa na mesa.

— Eu devia ter usado isso desde o início.

— Teria poupado tempo, sim, idiota.

— Eu sou, mas sou o seu motoqueiro tatuado idiota. Se vier


com essa graça de se jogar em outro de novo... — Ele fala baixo,
antes de beijá-la.

— Você a assustou? Muitas mulheres, quando desaparecem,


estão com medo. — Ela afirma, se afastando do beijo, ainda
ressabiada.

— Fomos cuidadosos. Por isso levamos a Pri. Eu queria


mostrar que era seguro. Nós não somos maus. Poxa, nós usávamos
asinhas de Fada Azul. Que tipo de bandido faria isso?

— Seria um tipo de bandido bem fofo, preciso reconhecer. —


Ela sorri e ele dá de ombros.

Ele a beija e aguardo, enquanto meu amigo, sempre tão


passional, se afasta devagar de sua mulher e diz:

— Será que agora posso contar ao amigo, que tomou um tiro


por mim — ele frisa —, que eu encontrei a mulher dele?
— Pode, mas não se refira a ela assim, a menos que ela
queira. Mulheres não são propriedades dos homens.

— Mas você é minha mulher. — Rafael acaricia uma mecha


de cabelo de Viviane.

— Eu sou, mas você se tornou meu homem primeiro. Aí tudo


bem. É uma troca justa.

— Ok, ok. Desculpa. Agora — ele se vira para mim —, meu


amigo ainda bem que você está sentado.

Quando percebo que vou descobri o que Rafael aprontou


pelas minhas costas, não aguento e solto o ar, antes de responder:

— Finalmente.
Capítulo 12

Amigo, estou aqui!


Amigo, estou aqui!
Os seus problemas são meus também
E isso eu faço por você e mais ninguém
O que eu quero é ver o seu bem
Amigo, estou aqui!
Amigo, estou aqui!
Zé da Viola – Amigo estou aqui

Algumas horas antes...

— É ela, certo? — Vô Fernando me pergunta, depois de


tomar um gole de seu café, enquanto Priscila saboreia seu caldo de
cana.

— É.

Confiro a foto que Lex me enviou há muitos anos, mais uma


vez. Não vou negar – agora que estou aqui – bateu um pouco de
medo de assustar a Flávia e mais ainda de chatear meu amigo. Sei
que o motivo da sua fuga não pode ter sido nada que o Lex fez, mas,
porra, contra todas as dificuldades, nós a achamos.

— Como o senhor lida com a sensação de estar se


intrometendo onde não deveria? — pergunto ao homem que mais se
mete no B.O. dos outros que conheço.
— Não sei. Jamais senti tal coisa. — Sua sinceridade me faz
rir. — Por que eu sentiria que estou me intrometendo quando estou
fazendo o que tenho que fazer para que todos fiquem bem?

— É isso que o senhor dizia para si mesmo quando criou


aquele maldito plano B, que quase me separou da mulher da minha
vida? — Refiro-me a quando comecei a namorar Viviane e seu avô
quase me deixou maluco de ciúme ao tentar juntá-la com seu amigo
Bernardo.

— Eu não quase separei vocês. Não seja dramático. — Vô


Fernando balança a mão como se repreendesse uma criança de
cinco anos. — Fiz o que tinha que fazer. — Ele olha para a Priscila e
dá um sorriso. — Você deixaria sua filha namorar um cara como
você era quando começou a namorar a minha neta?

— Que pergunta mais absurda de se fazer. — Me nego a


responder.

— Seja homem e me responda. — O avô me pressiona.

— Mulheres não sabem responder? — Priscila pergunta com


a boca cheia de pastel, me salvando. Ela está com o mesmo olhar de
Viviane quando dou uma bola fora.

— Claro que sim, cariño. — Vô Fernando toca seu queixo. —


Uma mulher já teria respondido, aliás. Elas não são covardes como
certos homens. — Ele me dá uma longa encarada.

Velho filho da puta! Às vezes me tira do sério. Eu nem sei


como fui me apaixonar por ele também. Malditos Villa e seu poder de
seduzir pessoas carentes. Nunca admitirei isso em voz alta.

— Então... — Ele insiste enquanto Priscila se distrai com um


gato passando.

— Apesar de eu ser um cara muito gente boa, quando conheci


sua neta, assumo que eu era problemático. — Falar sobre me faz
pensar em quem fui. — Ah, não, definitivamente não. Se alguém
como eu era se aproximar da minha filha, o senhor vai ter que criar
um plano B que funcione!

Não consigo nem imaginar o que eu faria se minha filha for


salvar o namorado das mãos de um bandido e passar tudo o que a
mãe dela passou. Meu Deus, eu tenho sorte. Tudo poderia ter dado
ainda mais errado do que deu na época.

— Por que voc ê acha que estou te ensinando tudo o que sei?
Não estarei aqui para sempre para continuar salvando vocês das
suas escolhas.

— Isso é muito controlador. — Fecho a cara.

— Nunca neguei que fosse. Às vezes, passo um pouco do


limite, mas tenho certeza de que agora você me entende. — Ele
limpa a boca suja de pastel da Priscila.

Meu coração se acelera ao pensar no quanto fiz mal a quem


amava. Aprendi a me perdoar e não sou mais aquela pessoa, mas a
culpa consegue me alcançar de vez em quando.

— Você é bom, rapaz. — Ele coloca a mão no meu ombro e


me olha com ternura. — Eu demorei a ver a verdade sobre você,
porque temia por meus netos, mas não pense que não valorizo a sua
luta. Você é bom. Em sua defesa, meu eu jovem também era difícil.
Você nem imagina o quanto. Foi quando comecei a pensar em quem
fui que passei a entender quem você era. E, repito, você é bom. —
Sinto as lágrimas se preparando para sair. Caralho, como sou
emotivo. — Tenho muito orgulho de você ser um Villa. — Ele me dá
uma piscadinha, deixando o clima leve.

— Eu não sou um Villa. A Viviane que é uma Ferraz.

— Não me provoque, garoto. Não me faça arrumar um contato


no cartório e mudar seu sobrenome.

— Você não ousaria!


Vô Fernando ergue a sobrancelha e eu tenho plena
consciência de que ele ousaria, sim. Ousaria muito.

— Por que o senhor não vai controlar a vida dos seus netos?
Só as netas, seus maridos e os amigos deles que contam?

— Porque meus netos não deixam. Rodrigo só faz o que quer.


Nem sei sobre a vida de Vicente e Thiago. Uma tristeza sem
tamanho. — Resmunga e me seguro para não o chamar de
dramático.

— E nós deixamos? Desde quando conseguimos que não se


envolva em nossas vidas?

— Vocês são mais maleáveis. Reclamam, mas cedem. Sabem


que estou certo. — Ele fala como se fosse sério, mas duvido que
seja tão simples assim para nós. — Aqueles lá herdaram meu gênio
e eu ainda não aprendi a controlar a mim mesmo, mas vou aprender
antes de morrer. Sou teimoso e insistente.

— Nesse ponto concordamos. — Pisco e ele disfarça um


sorriso.

Priscila correndo atrás de um gato em volta da mesa, com


suas asas azuis balançando me traz de volta ao que viemos fazer.

— Vamos abordá-la? — Vô Fernando pergunta, afastando a


xícara e fazendo sinal para a garçonete. Parece que ele se deu conta
do mesmo que eu. — Não quer mesmo nada?

Balanço a cabeça em negativa. Não conseguiria comer nem


beber nada. Estou tenso, pensando em como explicar para minha
mulher o que estamos prestes a fazer. Ela vai me matar.

— Bom, então vamos lá. — Eu me levanto, pegando o cartão


para pagar o que eles beberam e sendo interrompido por Fernando
Villa. Nem sei por que tento.
— Lá aonde, papai? — Minha pequena dá o último gole no
caldo de cana e lambe os lábios, suspirando.

— Concluir a missão, meu anjo.

Alguns minutos depois, nós três estamos parados em frente


ao portão branco de madeira. Escuto a gargalhada de crianças, mas
não vejo ninguém. Quando estou prestes a bater palmas, uma
senhora abre a porta da sala e cruza os braços, ao nos encarar. Eita,
encontramos a versão mulher da braveza do vô Fernando.

— Pois não? — Sua testa franzida não me passa


despercebida.

— Oi! Estamos em missão da Fada Azul! — Priscila mostra


suas asas. Seu bisavó e eu deixamos as nossas no carro. Eu tenho
limites.

A senhora deixa escapar um sorriso para ela, depois me


encara, voltando a ficar séria.

— Deixa o papai explicar, Pri. — Toco o ombro da minha filha.

— Nós viemos em paz — Vô Fernando me interrompe,


tomando a frente. Ai, esse velho teimoso. — Meu nome é Fernando
Villa.
Quem vai acreditar em um europeu que se aproxima desse
jeito? Dá última vez que um nativo do Brasil acreditou nisso deu
muito, muito, muito errado.

— Eu sei. — Ela responde, sem se mover.

— Sabe? — Ele e eu perguntamos juntos. Está aí algo que


não esperávamos.

— Eu pesquisei sobre você, depois que a Margareth passou


seu cartão na primeira compra que fez na cidade.

Não sei quem é Margareth, mas seria bom um teste de DNA


para saber se ela não é uma Villa perdida. A rádio fofoca dessa
cidade consegue ser mais rápida que nossos próprios esquemas.

— Por que faria isso? — Vô Fernando contém a indignação e


eu preciso conter minha vontade de rir ao vê-lo confuso. — Vocês
investigam todas as pessoas que visitam a cidade?

— Essa é uma cidade pequena e nós cuidamos dos nossos.


Mais cedo, você perguntou sobre uma de nós na sorveteria.
Tínhamos que saber mais sobre você, Fernando Villa. O que um
homem como você quer aqui?

Não faço ideia se esse “como você” é bom ou ruim.

— Nós também cuidamos dos nossos — ele se defende.

— Por que você tá brava? — Priscila se apoia no portão para


perguntar. A senhora sorri outra vez. — É por que somos estranhos?
Papai e mamãe dizem para eu não falar com estranhos, mas nós
somos estranhos bonzinhos. — Vou ter que explicar a ela, que no
caso de um adulto abordando uma criança, não existe isso de
estranhos bonzinhos. — Viemos em nome da Fada Azul.

Em vez de ignorá-la, a senhora desceu os degraus da sacada,


aproximou-se do portão e abaixou-se em frente à Priscila.
— Você pode me contar por que a Fada Azul os enviou, minha
doce menina?

— Pra ajudar o tio Lex. Eu pedi pra ela ajudá-lo, queria que
ela desse um Pinóquio para ele, sem a parte de mentir, e ouvi o
papai e o biso conversando sobre algo que o tio Lex perdeu e pode
estar aqui. Procurei por meninos sem pai e ainda não vi nenhum. A
senhora sabe de algum perdido? O tio Lex vai ser um bom pai para
ele, mesmo se ele for de madeira. Ele anda triste, sabe? Ele diz que
não, mas tá, sim. Eu sinto aqui ó — Fico emocionado ao ver Priscila
levar sua mãozinha ao peito.

— Eu não sei, meu anjo. Você será a primeira saber, se eu


souber de algo.

No momento em que a senhora se levanta, uma viatura de


polícia encosta do outro lado da rua. Automaticamente, coloco minha
filha e vô Fernando atrás de mim. Ele me ignora e se coloca à minha
frente como se eu precisasse ser protegido por um idoso.

— Eu não sei bem o que vocês estão fazendo aqui, mas essa
jovenzinha — a senhora aponta para Priscila — parece ser alguém
de confiança. Vocês podem entrar e conversar com a Flávia, afinal,
vieram de longe para isso. Mas se ela decidir que vocês devem ir
embora, vocês irão. Entendido?

Apesar de não saber o quanto ela sabe, eu concordo e


observo a mulher de idade abrir o portão de madeira, depois de
assentir para as duas policiais do outro lado da rua. Ela ergue o
queixo ao ouvir meu “entendido” e estreita os olhos para o vô
Fernando, desafiando-o a discordar. Se o momento não fosse tão
tenso, eu riria. Ela é baixinha e de aparência frágil, mas não duvido
nada de que daria um jeito de derrubar a nós dois, caso sentisse que
quem ama está em perigo.

Ela nos guia até a sala e nos diz para sentar no sofá. Os olhos
de Priscila brilham ao ver a decoração repleta de livros e
bonequinhos de enfeite – parece a casa do Lex e isso é muito
curioso. Eu peço para ela se sentar ao meu lado e ela o faz, mas
sem deixar de balançar os pezinhos para lá e para cá, como se
tivesse formiga na bunda. Está doida para sair e explorar.

— Vó Lucinda, a minha mãe está vindo... — Um garoto para


abruptamente ao nos ver e dá um passo para trás, assustado. Isso
me aperta o coração. Nenhuma criança deveria sentir tanto medo
assim.

Ao ver outra criança, Priscila salta do sofá e corre em direção


a ele, parando a dois passos de distância.

— Como é seu nome? — Ela pergunta.

— Bruno. — Ele responde, sem se mover, nos olhando de


canto de olho, mas curioso sobre a menina que o encara.

— Quer brincar?

Vó Lucinda assente para ele, que sorri para Priscila e balança


a mão para que ela o siga.

Eu me levanto do sofá ao vê-la sair da minha vista.

— Não se preocupe. Eu vou passar um café e ficarei de olho


nas crianças pela janela da cozinha. Vocês podem conversar quando
a Flávia chegar. Eu escuto de lá. — Ela acrescenta, sem pudores.

Antes que eu possa dizer qualquer coisa, Flávia aparece. Sua


expressão confusa – talvez por ter visto minha filha – fica tensa ao
nos reconhecer de mais cedo e não entender o que fazemos em sua
casa. Ela pega o celular no bolso, lê alguma coisa e abaixa a
cabeça, sentando-se ereta na poltrona. Seu rosto está lívido e – mais
uma vez – me sinto culpado por aparecer assim. Mas o que eu
poderia fazer? Depois de tudo o que descobrimos, não poderia
deixar de vir. Lex merece saber a verdade. Se eles não se
entenderem, pelo menos ele pode seguir em frente em paz.
— Quem são vocês? — Ela pergunta e é interrompida por
outra criança que vem pulando, seguido da minha filha e do outro
garoto.

— Mãe, mãe, olha, tenho asas! — O menino mostra as asas


azuis.

O ar falta no meu peito e meus olhos lacrimejam. Não sei se


chego a fazer algum barulho, mas o menino me olha fixamente. Meu
coração dispara, minhas mãos tremem. Sua pele é preta, um tom
mais claro do que a da sua mãe e irmão; e seus traços, até mesmo
seu jeito tímido e curioso de olhar são iguaizinhos ao Lex quando
criança. É quase como voltar no tempo.

Eu vim para esse lugar para encontrar a mulher que meu


amigo perdeu e lhe dar a chance de se entender com o passado – de
um jeito ou de outro -, mas parece que encontrei muito mais do que
procurava.
Capítulo 13

Olha, ainda estou aqui


Perto, nunca te esqueci
Forte, com a cabeça no lugar
Livre, livre para amar
Sofro, como qualquer um
Rio, quando estou feliz
Homem, dessa mulher
Paulo Miklos – Vou te encontrar

Encaro Rafael em silêncio. Se não bastasse a surpresa que


tive ao saber que encontrou Flávia, preciso assimilar a notícia de que
é possível que eu tenha um filho.

— Você tem certeza de que era filho dela? — Confirmo,


tentando processar as informações.

— Ele veio a chamando de “mãe” e ela congelou quando viu


meu olhar. Era impossível não ver as semelhanças com você.

Viviane olha de um para o outro com os lábios apertados. Ela


está preocupada. Eu tento processar as informações o mais calmo
que posso, mas admito que está difícil. Nem em meus sonhos
poderia imaginar algo assim.

— Você chegou a perguntar diretamente? — Insisto.


— Ela não deu abertura. Depois que vi o menino, a conversa
foi bem rápida. Expliquei que era seu amigo, que você não sabia da
nossa busca, que a princípio começou com uma brincadeira de
criança, que no fim a encontramos e que eu achava que ela lhe devia
uma conversa, pelo menos, ainda mais depois do que vi.

— E ela?

— Disse que eu estava certo, que era tempo.

— Me passa o endereço. — Eu me levanto, procurando a


chave da moto no bolso da calça.

— Quer ir lá agora?

— Quero. Por mais que eu tenha sentido falta da Flávia,


entendi que era seu direito partir. Eu respeito isso. Mas preciso saber
se esse menino é meu. Um filho, cara... — Coloco a mão na nuca e
fecho os olhos por alguns instantes. — E o Bruno, como está?

— Parecia bem. Seus olhos brilharam quando me ouviu a Pri


dizer que estava procurando um filho para você.

Isso me acalma, de certa forma. Quando namorei Flávia, me


apeguei muito a ele. Se tivéssemos continuado juntos, não tenho
dúvidas de que eu faria o que pudesse para ser um bom pai para ele.

— Que loucura... — Abro os olhos.

Viviane e Rafael também se levantaram.

— Eu vou te levar. — Ele afirma. — Não vou te deixar dirigir


depois dessa avalanche de informações.
Por volta das 20h, estacionamos em frente a uma casa tão
colorida que parece ter saído de um filme da Disney. Rafael me avisa
que vai dar uma caminhada. A noite está fresca e ele não vai
conseguir ficar parado no carro esperando.

Eu o observo se afastando, enquanto estou parado no portão.


Está difícil evitar que as batidas do coração se acelerem.

O que se diz ao reencontrar uma pessoa que você nunca


esqueceu? E como se lida com o fato de que ela pode ter escondido
seu filho?
Capítulo 14

Na bruma leve das paixões que vêm de dentro


Tu vens chegando pra brincar no meu quintal
No teu cavalo, peito nu, cabelo ao vento
E o Sol quarando nossas roupas no varal
Tu vens, tu vens
Eu já escuto os teus sinais
Alceu Valença – Anunciação

Ainda estou tremendo quando os amigos do Lex vão


embora. Vó Lucinda me traz um copo com água e se senta na
poltrona ao meu lado, em silêncio.

— Toda noite eu penso em procurá-lo, mas tem tanta coisa


envolvida. Tanta coisa em que não quero mexer. Há explicações que
não vou conseguir dar.

— Se você não quer, não mexa no pacote todo, Flávia. Mas


não dá para usar isso para todas as coisas não resolvidas entre
vocês. Uma ou outra será preciso mexer. Comece pela que for mais
tranquila para você e resolva um problema por vez.

— E se nem todos os problemas forem possíveis de resolver?

— Aí vocês terão que aprender a lidar com isso, ou não. O


tempo dirá.
Eu não cheguei a contar tudo sobre mim para Vó Lucinda. Ela
sabe que há alguém no meu coração e sabe que precisei fugir, mas
não por culpa do Lex.

— Como eles me acharam?

— Não sei ao certo, mas aquele senhor Fernando Villa é muito


influente. Dei um Google sobre ele e foi surpreendente. — Sua
expressão de espanto e saber o quanto isso deve ter despertado sua
curiosidade me tira um sorriso. — Sabe o que descobri? O André
trabalha para a família deles. — Ela refere-se ao namorado da neta e
fico tentando entender. — O escritório em que a Luiza trabalha é do
padrinho da mulher desse rapaz tatuado que veio aqui.

— Como a senhora sabe tudo isso?

— Eu fui pesquisando e aí, de link em link, fui descobrindo e


perguntei para o André para confirmar. Sabe a ONG que cuida de
mulheres e crianças em situação de risco, que o André nos mostrou
as fotos do jardim que fez?

— Sei. — Não entendo aonde ela quer chegar.

— É administrada pela neta desse senhor. Fernanda Villa é o


nome dela. Eu não sei se você vai se lembrar, mas ela apareceu no
jornal quando o ex-marido tentou matá-la. Lembra que eu acendia
vela para aquele rapaz que foi baleado? É primo desse moço que
veio aqui.

Infelizmente, são tantos casos de tentativa e feminicídio de


fato que seria impossível me recordar de todas as vítimas, mas essa,
em especial, me marcou por causa das velas que Vó Lucinda
acendia.

— Como a senhora sabe disso tudo?

— Internet, meu anjo. Internet. Eu tinha que saber se eles


eram boas pessoas. Parece que são. Minha neta garantiu que sim. É
um alívio. Eles podiam ser malucos.
— Acho que eles são um pouco malucos. — Aliso a saia do
meu vestido, procurando aliviar a tensão.

— Todos nós somos um pouco. Que trio, hein?

Dou uma risada nervosa. Por mais cuidadosa que seja, nunca
imaginei que teria que me preocupar com um trio usando asinhas
azuis.

Como me prometeu, Rafael me avisou por mensagem que ele


e Lex estavam a caminho. Por mais que o trajeto não dure nem duas
horas, tempo nenhum seria suficiente para me acalmar. Em minutos,
minha cutícula está sangrando. Meu Deus, que nervoso!

Parte de mim pensou em fugir outra vez, mas não seria justo
com os meninos nem com vó Lucinda, que os acolhera tão
carinhosamente. Muito menos com Lex.

Eu tive um motivo para fugir. Um motivo justo, mas não sei


como contar isso para ele.

Vó Lucinda leva os meninos para dar um passeio perto do


horário que Lex chegaria. Eu fico sentada no sofá, com o coração
aos solavancos cada vez que passa um carro na rua. Quando
estacionam em frente, olho por entre a cortina e vejo Lex saindo do
carro.

Ele fica parado, olhando a casa. Eu fico parada, olhando para


ele. Meus pés estão congelados no chão. Ele está o mesmo de
quatro anos atrás, apenas os cabelos estão mais curtos, mas os
cachos ainda caem até os ombros. Ele está usando uma calça jeans
e uma camiseta preta. Tão alto quanto me lembrava, tão lindo quanto
me lembrava.

Observo-o passar as mãos pelo rosto e estremeço,


emocionada. Um arrepio percorre meu corpo. Ele está aflito. Nunca o
vi assim. Ele sempre foi tão sereno. Sinto culpa. Sei que sou a causa
dessa aflição. Eu machuquei alguém que não fez nada além de me
amar.

— Foi necessário. — Repito o que venho dizendo ao longo


dos anos e me afasto da janela.

Caminho decidida para a porta e a abro, parando na soleira. A


brisa se choca contra meu corpo e balança a saia do meu vestido
amarelo.

Quando nossos olhares se cruzam, seu rosto se traduz em


emoções conflitantes. Nunca me iludi pensando em um reencontro,
mas gostaria de poder mudar a situação e reencontrá-lo em um
mundo que não me obrigasse a esconder a verdade dele.

Não dizemos nada por uns instantes até que ele quebra o
silêncio:

— Você está linda.

Eu me surpreendo e dou um sorriso tímido. Outro poderia me


xingar por desaparecer com seu possível filho, mas não o Lex. Não
importa o quanto o momento seja difícil, se ele puder resolver o
problema com serenidade, ele resolverá.
Meu coração dá um solavanco ao recordar que foi essa paz
que emana de Lex que fez com que eu me apaixonasse por ele.
Capítulo 15

There's no home
No home like the one I found in you
Now you're running away[4]
Futere Island – Haunted by you

Quando a porta se abre, ainda não estou preparado para


vê-la. Não digo nada ao trocarmos olhares. Absorvo os detalhes que
mudaram em sua aparência. Ela parece mais saudável, mais
cuidada, mais dona de si mesmo, como se não estivesse disposta a
deixar que a machucassem.

Há quatro anos, ela parecia frágil, mesmo demostrando ser


mais forte que a maioria de nós. Uma jovem mãe solteira, que faria o
necessário por seu filho.

Não sei o que sentir sobre todas as descobertas do dia, então


deixo que meus lábios digam o que está no meu coração:

— Você está linda.

— Obrigada. — Ela parece surpresa. Será que ela pensou


que eu chegaria aqui derrubando o portão? — Você não mudou
nada.

Isso é porque ela ainda não me viu de perto. Ganhei umas


rugas de preocupação depois que ela sumiu e uns bons fios
grisalhos. Sobrevivi ileso às provações que passamos com o Rafael
e não aguentei um coração partido. Que ironia.

— Você mudou bastante. Gostei do cabelo. — Aponto para as


ondas que caem até quase sua cintura.

— Eu sigo uma influencer preta. Aprendi a como cuidar e


valorizar os cabelos. Eu os prendia muito. Não sei se lembra. — Ela
responde rápido e me pergunto por que nós dois estamos falando de
amenidades. É claro que me lembro. Adorava quando ela os soltava
e se mostrava livre. — Desculpe. — Acrescenta, sem jeito,
parecendo se dar conta do mesmo que eu: estamos enrolando. —
Quer entrar?

Abro o portão de madeira e entro no quintal, caminhando até a


varanda, onde ela está parada. Estamos a um passo um do outro.
Seu perfume é fresco, delicado, como se a primavera morasse em
sua pele. A eletricidade no ar é palpável. Cada partícula sente nossa
inquietação.

— Entre. — Ela aponta para dentro.

— Depois de você.

— O eterno bom moço. — Ela dá um sorriso discreto.

Não respondo e a observo entrar, seguindo-a e fechando a


porta. Ela se senta no sofá e me sento em uma poltrona, em frente a
ela. Pensei em me sentar a seu lado, mas acredito que se continuar
perto demais posso não conseguir falar o que preciso.

— Eu fiz algo que te assustou? — Sou direto.

— Não, claro que não. — Ela responde sem pensar, mas ao


levantar os olhos entende que me refiro ao passado. — Não, não fez.

Flávia está tensa, apertando os dedos, como se procurasse a


palavra certa para dizer e não a encontrasse.
— Eu peço desculpa se meu amigo foi invasivo ao te procurar,
mas depois do que ele me disse, me sinto agradecido. — Inspiro.
Expiro. Solto as palavras: — Ele é meu filho?

Um longo silêncio se segue. Posso ver que Flávia está


tremendo. Quero acolhê-la e protegê-la, mas não consigo me mexer.
Estou entre a dúvida e a confirmação. Eu sei que vai doer de
qualquer jeito: se não for ou se for. Caso seja, não acredito que perdi
tanto tempo de sua vida. Se não for, pode ser que o que tivemos há
quatro anos foi importante apenas para mim.

— Eu não sei. — Flávia pisca várias vezes e percebo que está


tentando evitar as lágrimas. — Eu não sei. Esse foi um dos motivos
que me fez não te procurar antes.

— Foi por isso que fugiu?

— Não. Não.

— Entendo. — Eu digo, mas estou mentindo. Não entendo


nada. — Pode me explicar melhor?

— Eu não traí você se é o que está pensando — Ela está na


defensiva.

— Não imaginei que tivesse traído.

— Não?

— Não. Eu teria que estar muito enganado sobre o que


sentíamos um pelo outro para ser esse o caso.

Ela pisca várias vezes e engole seco.

— Você não estava enganado sobre meus sentimentos. O que


acha que houve, então? — Mais uma vez, ela parece surpresa
comigo.

— Eu esperava que você me dissesse.


Ela se levanta e começa a andar de um lado para o outro. Eu
permaneço sentado. Ela está aflita e eu sou enorme. Talvez ela se
sinta melhor se eu continuar parecendo menor do que ela.

— Preciso de tempo.

— Ok. Eu posso esperar pela explicação. Ele pode ser meu?


Isso eu preciso saber.

Meu coração está em disparada.

— Pode.

Meu coração dá um solavanco.

— Certo.

— Eu não quis te magoar. Não sabia que estava grávida


quando saí do Rio.

Meu coração se contrai.

— Eu acredito, mas magoou.

— Desculpe.

— Preciso de um teste de DNA. — Não dá para pensar sobre


desculpas nesse momento. — Não quero te ofender de nenhuma
forma. Por mim, eu teria adotado o Bruno e agora o... Como é o
nome dele? Rafael ficou tão chocado que se esqueceu de perguntar.

— Samuel.

— Samuel — Repito, sentindo o som do nome em meus


lábios. Será que estou me enganando por acreditar que ele é meu
filho? Ou será que quero acreditar porque isso me daria uma chance
de me reaproximar da mulher que nunca deixei de amar? — Não
quero que ninguém saia mais magoado do que já está. Acho que o
DNA é o melhor caminho. O que você acha?

— Eu concordo.

— Eu queria conhecê-lo e ver o Bruno. — Mais uma vez,


surpresa. Não sei o que houve com Flávia, mas ela se tornou mais
desconfiada do que era.

— Se você quiser esperar o DNA para ter contato, eu vou


entender. Talvez seja melhor. — Ela dá um passo para trás,
encostando-se a parede oposta a mim.

— Que tipo de homem você pensa que eu sou, Flávia? —


Meu tom é baixo, cheio de tristeza.

Ela abre e fecha os lábios várias vezes, como se fosse um


peixinho fora da água. Não dá tempo de se recuperar, porque a porta
se abre e escuto os meninos.

Eu me levanto e me viro devagar bem a tempo de ouvir o


Bruno dizendo meu nome e correndo para abraçar minha cintura.
Tento controlar a emoção, mas essa recepção, somada ao modo
como Samuel me olha com curiosidade, é demais para mim. Meus
olhos ardem e me abaixo para corresponder ao abraço de Bruno.
Afundo a cabeça em seu pescoço, antes de levantar outra vez e
olhar para Samuel.

— Você está triste? — Ele pergunta, dando um passo para


mais perto de mim, mas parando ao lado da poltrona.

— Pelo contrário. Estou feliz. — Respondo, agora me


abaixando para ficar na sua altura.

— Por que está chorando?

— São lágrimas de felicidade. — Estendo a mão e ele a


aperta.
Samuel estreita os olhos, tentando assimilar que é possível
chorar se estiver feliz, depois sorri, convencido.

— Que diferente. — Ele ri. — Você é amigo do meu irmão e


da minha mãe?

— Sou. Posso ser seu amigo também, se quiser.

— Você sabe jogar bola?

— Ele é meio ruim de bola — Bruno dá uma risada, sem me


soltar. Está tão feliz. — Mas é ótimo nadando, no videogame e com
Lego.

— Legal. Quer que eu te ensine a jogar bola?

— Eu quero. — Minha voz está embargada.

A senhora que entrou com eles nos observa calada e Flávia


dá um soluço atrás de mim, saindo da sala.
Capítulo 16

Sei que aí dentro ainda mora um pedacinho de mim


Um grande amor não se acaba assim
Feito espumas ao vento
Não é coisa de momento, raiva passageira
Mania que dá e passa, feito brincadeira
O amor deixa marcas que não dá pra apagar
Fagner – Espumas ao vento

Mal chego ao meu quarto e estou aos prantos. Toda a


emoção que eu estava contendo descarrilha, como um trem que
carregava peso demais. Ver os três juntos e sentir a bondade do Lex,
mesmo depois de eu ter sumido sem uma explicação faz com que eu
me sinta ainda mais culpada.

Vó Lucinda aparece com um copo de água e se senta ao meu


lado na cama. Essa senhora passou o dia todo com um copo atrás
de mim. Dou dois goles na água, coloco ao lado, na mesa de
cabeceira e a abraço. Será que o mundo perfeito que construí
nesses últimos anos irá ruir? De um jeito ou de outro, Lex nunca vai
me perdoar.

Eu choro até parecer que as lágrimas se esgotaram, enquanto


vó Lucinda acaricia minhas costas. Dou um último suspiro e me
levanto para lavar o rosto.

— Ele é um cara tão bom.


— Me pareceu isso mesmo pela forma que ele não conteve a
emoção ao ver seus filhos.

— Não sei o que fazer.

— Por que não decidem juntos?

— Acho que devo isso a ele.

— Menina, você não deve nada a ninguém. Nem eu sei a tudo


a que você teve que sobreviver. Seja lá os segredos que esconde,
você precisou deles para proteger seus filhos, não é?

— Sim.

— Ninguém pode culpar uma mãe por proteger os filhos.

— Tomara que essa situação tenha conserto.

— Minha filha, só não tem conserto para a morte. Vocês vão


resolver isso. Agora vamos lá porque eu vi o rapaz tatuado pela
cidade e alguém tem que falar para ele não falar palavrão na frente
das crianças. Onde já se viu!

Ao voltarmos, Rafael está na sala, contando algo que faz com


que os meninos olhem para ele com os olhos vidrados de
encantamento. Ele é expressivo. Uma explosão de intensidade. O
oposto da serenidade e tranquilidade ao falar do Lex. Uma dupla que
se completa, talvez.

Lex voltou a se sentar na poltrona e está calado, observando-


os. Eu me aproximo para ouvir.

— A gente pode ir? — Bruno pergunta.

— Claro! Nós vamos no próximo feriado. Sua mãe e sua vó


podem ir também.

— Ir aonde? — pergunto, preocupada com a velocidade que


decisões estão sendo tomadas.

— Na viagem de família para a casa de praia no feriado. —


Rafael explica. — Vamos buscar vocês aqui.

— Rafa... — Lex tenta interceder.

— Sem essa de Rafa. Você precisa de tempo com seu... com


seu sofá que fica na praia. E precisa relaxar e curtir seu sofá na praia
depois de anos sem ter essa chance — Ele se corrige antes de dizer
algo que não deve na frente das crianças, me olhando esperançoso
e um pouco desafiador.

— Acho uma boa ideia. — Vó Lucinda completa e fico ainda


mais perdida. — Apesar de não sabermos se o sofá é do rapaz, não
fará mal passar um tempo juntos, não é mesmo? Mas isso se a
Flávia quiser. — Ela ergue o queixo, enfrentando Rafael.

— Na verdade — Lex se levanta e se aproxima de mim —,


como temos que resolver a... titularidade do sofá em questão, pensei
que você poderia passar os próximos dias em SP, no meu
apartamento.

— O quê?
— Eu posso vir para cá, se for te atrapalhar, mas gostaria de
ter esse tempo com vocês. É o tempo que precisaremos, olha — Ele
me mostra a página de uma clínica que faz testes de DNA. O
resultado sai em aproximadamente quinze dias.

Quero dizer que não, mas não posso negar isso a ele. Não
depois de ter lhe negado tanto.

— Minhas férias estão para vencer... — Estou cedendo. — E


perder uns dias de aula não prejudicará o Bruno. Ele está bem
adiantado e nunca falta.

— Maravilha! — Rafael exclama, erguendo a mão para os


meninos baterem e encerrando o assunto antes que eu possa mudar
de ideia.
Capítulo 17

I'm not saying you have to come back


To me
All I'm saying
Is if you ever do
I'd forget every heartbreaking truth
To re-fall-in-love with you[5]
Anna Graceman – Heartbreak Truth

— Você sabe que o vô Fernando consegue um exame


de DNA com resultado de um dia para o outro, não sabe? —
Rafael me pergunta quando entramos no carro para ir embora.

— Sim, eu sei. — Fico pensando o que aquele homem não


consegue. — Eu lembro que ele conseguiu quando o Rodrigo
precisou, mas não quero que seja rápido. Quero um tempo com os
meninos. Você sabe que um teste significa pouco para mim. Aquele
menino é meu filho, assim como Bruno se tornou meu filho em
instantes quando o conheci. Você tinha razão. O Samuel se parece
muito comigo quando era criança.

— Não é? Uma cópia! Viu aquele jeito de olhar franzindo os


olhos como se estivesse lendo a pessoa? Você todinho!

— Parece mesmo, né? — Procuro validação.


— Porra, é como se a Flávia fosse uma máquina de xérox,
cara. Saiu você igualzinho, mas aí Deus pintou com uma cor mais
bonita. Ainda bem, porque você parece aquele vampiro que a Vivi
gosta. A única diferença é que você não brilha, mas, ó, branquelão.

— Trouxa. — Xingo, mas estou rindo. Sinto esperança pela


primeira vez em muito tempo. Será possível ter minha família de
volta?

Repasso com Rafael as poucas informações que Flávia me


deu. Sinto um pouco de angústia por não saber a história toda, mas
acredito que se ela se sentir confortável me contará. Preciso
acreditar nisso.

Foi difícil me despedir. Trocamos celulares e eu disse que


voltaria para buscá-la em dois dias – tempo que ela precisa para
resolver as férias.

De um segundo para o outro, minha vida virou de ponta


cabeça e eu não sei o que esperar. Logo eu que sempre estou no
controle de tudo o que acontece comigo. Felizmente, sou um cara
paciente ou seria insuportável viver os próximos dias.

Trazê-los para mais perto envolve muita coisa, principalmente


conectá-los a essa família maluca a que pertenço.

— Ah! — Rafael levanta uma mão, tirando-a do volante,


rapidamente. — Posso pedir o teste em 24 horas só para eu saber?
Eu te conto depois de 15 dias. É que, porra, como é que minha
ansiedade vai lidar com a espera?

Meu amigo tem uma cara de súplica tão sincera que me faz
dar uma gargalhada alta, liberando emoções contidas. Ele dá um
largo sorriso, feliz por me dar um momento de alívio. Depois, aperta
meu ombro, mostrando que está comigo para o que der e vier. Sou
grato. Com tudo o que está acontecendo, sua presença na minha
vida é ainda mais valiosa.

— Obrigado, cara — relaxo no banco.


— De nada, mas eu estava falando sério: posso ter acesso ao
resultado em 24h?
Capítulo 18

Tenho fragmentos de uma vida com você


E tantos intervalos só
De longe, mas querendo crer
Tudo no seu tempo
Tão veloz por dentro
Em mim passa devagar
A me acertar
Sandy e Lucas Lima – Areia

É madrugada. Ainda não consegui dormir. Estou deitada,


olhando para o teto iluminado pela luz da lua que entra pela janela.
Os meninos ficaram agitados depois que Lex saiu. Bruno falou dele
por horas. Contou do tempo que passamos juntos, antes de
mudarmos para cá. Samuel ouvia a tudo encantado.

Eles não estão acostumados com homens na minha vida. O


máximo que veem são os parceiros das netas de vó Lucinda. No dia
a dia, somos apenas nós. Eu sei que Bruno sente falta do Lex. Eu
sempre soube, apesar de sair do assunto toda vez que ele tentava
falar. Ainda me lembro do quanto ele chorou ao perceber que
esqueceu seu videogame portátil – presente do Lex – no Rio de
Janeiro. Com o passar dos anos, ele parou de falar. Cheguei a
pensar que ele pudesse ter esquecido. Eu me enganei.

Ouço um barulho vindo do quarto dos meninos e me sento na


cama, acendendo a luminária que fica na cabeceira. Bruno está
parado à porta, seu rosto está molhado.
— O que houve, meu amor? — Estendo os braços e ele corre
para a cama, me abraçando. — Teve um pesadelo?

— Estou com medo de dormir. — Ele funga.

— Por quê?

— Não quero acordar amanhã e ter sido um sonho que o Lex


veio aqui.

Sinto um vácuo no peito, como se o ar fosse extraído de mim.


Eu o abraço mais forte e faço movimentos circulares em suas costas,
antes de dizer:

— Você pode dormir e, quando acordar, ainda será verdade.

— Estava quase esquecendo como era o rosto dele. Será que


dessa vez podemos ficar com ele, mãe?

— Eu não sei o que vai acontecer, meu filho, mas posso


prometer que não vamos fugir mais, pode ser?

— Era dele que a gente fugia? Ele é um dos maus? — Meu


peito se aperta e lágrimas intrusas escorrem por meu rosto.

— Não, não era. Ele é bom.

Reflito sobre o que se passa na cabeça de Bruno sobre as


fugas que precisamos fazer ao longo de sua curta vida e todos os
homens maus que tivemos de enfrentar. O que isso fará com ele com
o passar dos anos?

— O Samuel gostou dele. Vó Lucinda também.

— Todo mundo gosta do Lex. — Ele se aconchega no meu


peito e o deito no meu travesseiro, sem me afastar.

— Vai ser bom ficar com ele.


— Vai, mas...

— O quê?

— É que não quero que você se machuque. Não sabemos o


quanto ele fará parte das nossas vidas.

— Posso contar um segredo?

— Claro.

— Eu queria que ele fosse meu pai.


Capítulo 19

Me deixe só aproximar
E deixe o tempo melhorar
A gente vai se acostumar
e se perder
OUTROEU e Ana Gabriela – Se Perder

Dois dias depois, aqui estou em frente à casa colorida


outra vez. Vó Lucinda decidiu que não iria conosco. Eu a ouvi
dizendo que precisávamos ter um tempo em família.

Eu não disse nada. Por mais que eu queira resolver tudo isso
de uma forma que todos fiquem bem, estou machucado. Quando a
euforia da surpresa passou, fiquei remoendo o que pode ter
acontecido. Não entendo ainda e vou dar espaço para que Flávia se
sinta à vontade para me contar, mas não posso dizer que é uma
situação fácil.

Os meninos correm para mim assim que me avistam. Samuel


estende a mão. Ele ainda não confia o suficiente para me dar um
abraço. Eu o noto me espiando por trás dos móveis. Já Bruno está
empolgado. Ele não conhece São Paulo e nunca fez uma viagem de
férias. Isso me gera um incômodo e me lembra do quanto não sei da
vida de Flávia antes e depois de mim, mas posso apostar que não foi
nada fácil.
Começamos a carregar o porta-malas do carro. Serão quinze
dias comigo. Dez em São Paulo, ficando no meu apartamento, e
cinco na casa da praia dos Villa com a nossa multidão de pessoas
curiosas e intrometidas.

Pedi à Viviane e ao seu avô que não contassem a ninguém


sobre o que eu estou vivendo, por enquanto. Sei que não é
necessário dizer isso ao Rafael, porque ele me protege acima de
tudo.

Ainda não sei o que direi a todos. Samuel, como Rafael


adiantou, é muito parecido comigo e eles sabem fazer contas. Mas
não quero o falatório e conspiração que eles fazem sobre qualquer
relacionamento na família. Flávia e eu temos muito a acertar. Nem
sei se nós dois conseguiremos nos entender de novo, mas sei que
independente do que aconteça, quero fazer parte da vida dos
meninos. Não quero abandoná-los, não importa o que diga o DNA.
Essa é uma decisão tomada.

— O que temos aqui? — Uma mulher de cabelos vermelhos,


na faixa dos quarenta anos, sai da casa ao lado. — O menino que
escapou da bruxa má.

Olho para trás para ver com quem ela está falando, mas ao
encará-la outra vez, percebo que seu olhar está pousado em mim.
Do que ela está falando?

— Essa é a Rosalinda — Flávia nos apresenta. — Ela é a


dona da livraria em que trabalho. Ele é o Lex, um amigo. — Explica
sem saber o que dizer. Não julgo. Eu ainda não sei como vou
apresentá-la aos meus amigos.

— Ela é a vidente de Quatro Estações. — Dona Lucinda


completa, com um sorriso misterioso.

— Hum... sua aura está turva. — Rosalinda se aproxima de


mim, passando a mão a minha volta. — O que acha de passar na
livraria antes de deixar a cidade? Você gosta de livros, não gosta?
— Quem não gosta de livros? — Dou um sorriso educado.

— Infelizmente muitas pessoas. Há uma cegueira no mundo.


Uma pena. — Ela coloca os óculos para me observar melhor. —
Hum... o que estava perdido foi encontrado. Interessante. Decisões
importantes a serem tomadas. Bom, vamos à livraria? — Ela balança
a cabeça como se se libertasse de um transe.

Por mais que essa mulher pareça falar coisas que não fazem
sentido, há algo nela que transpira bondade. Já conheci pessoas que
pareciam perdidas em seus mundos. Uma escritora amiga do
Bernardo, inclusive. Eva Montenegro. Ela jura que pode ver e ouvir
seus personagens. Quem sou eu para questionar o que os outros
acreditam? Acho que não fará mal conhecer onde a Flávia trabalha.
Talvez isso me dê mais pistas sobre o que ela ainda não consegue
me contar.
Capítulo 20

Sem saber
Você já tava me ganhando e despertando um querer
Querer
Eu fiz de verso tua conversa, assim eu pude entender
Te ver
Mariana Nolasco e Pedro Pascual – Me sinto eu

— Você tem que me mandar fotos todos os dias. — Vó


Lucinda beija meu rosto uma última vez, antes que Lex dê a partida
no carro e sigamos rumo à livraria. — Cuidem-se bem.

Parte de mim não sabe o que está fazendo e a outra parte tem
certeza de que tomei a decisão certa. Não sei como nós quatro
estaremos ao final dos quinze dias, mas não podia negar a Lex – e a
mim mesma – a chance de saber a verdade sobre Samuel.

Como tudo é perto em Quatro Estações, em poucos minutos,


estamos parados em frente à livraria, que está fechada. Rosalinda se
aproxima da porta de madeira grossa, pintada de vermelho, para
abrir, o sino tilinta e entramos. Eu me viro para Lex. Adoro ver a
reação das pessoas ao entrar.

Suas pupilas se dilatam ao mesmo tempo em que um sorriso


encantado surge ao observar a livraria, cujo interior parece um
pequeno castelo de três andares. Apesar de termos energia elétrica
e internet, entrar nesse espaço é algo mágico, como se nos
transportássemos para um reino distante e encantado.

— Uau... — Ele leva a mão aos lábios. — Não é à toa que a


Pri não para de falar desse lugar.

— Vem ver Camelot! — Bruno o guia para a área infantil em


que um castelo de madeira está construído para que as crianças
possam brincar.

— Há uma passagem secreta para Camelot? — Lex pergunta,


demonstrando espanto e divertindo os meninos. — Eu amo histórias
sobre o Rei Arthur!

— Há muitos segredos guardados nessas paredes —


Rosalinda diz baixo, às suas costas.

— Entre essas paredes? — pergunto.

— Sim, sim, isso também. — Ela pisca. — Ele é um bom


homem. — Vira-se e toca meus ombros.

— É, sim. Por que quis que ele viesse aqui?

— Porque a livraria estava com saudade.

— Saudade dele? Ele veio aqui antes de eu me mudar?

— Ah, não, ele nunca esteve aqui antes. — Ela balança a


mão. — Saudade de sentir o amor transbordar entre essas paredes.
Quem sabe assim ela possa me mostrar o caminho de volta para
casa.

Decido não continuar a fazer perguntas. Não sei por que ela
precisa que alguém lhe mostre o caminho de casa, mas não posso
negar que há amor transbordando entre essas paredes nesse
momento. Preciso ser mais discreta.
Antes de chegarmos ao apartamento de Lex, paramos para
comer. Ele me perguntou se os meninos têm alguma restrição
alimentar e, quando neguei, nos levou a uma hamburgueria temática
de videogame.

Os meninos ficam extasiados e correm para o espaço de


jogos, enquanto a comida não chega. Lex e eu nos sentamos à
mesa, um em frente ao outro. Levo alguns segundos para criar
coragem e olhar para ele. Não me surpreendo ao encontrá-lo me
olhando de volta.

— Eu estava pensando sobre como isso vai funcionar. — Ele


diz, esticando o pescoço para ver onde os meninos estão.

— E o que pensou?

— Nós temos assuntos inacabados, mas não quero que isso


fique pesando entre nós. Quero passar meu tempo com vocês com
leveza.

— Eu não estou pronta para falar.

— Imaginei que não estivesse. Pensei o seguinte: amanhã


vamos fazer o teste de DNA. Ele deve ficar pronto nos últimos dias
que estivermos na praia. Você terá seu tempo para me contar o que
aconteceu, mas, caso não tenha contado ainda, contará antes de
lermos o resultado do teste.
Por mais que eu queira me opor ao fato de contar em
qualquer momento que seja, respondo:

— É justo.

— Eu não estou esperando nada de você em relação a mim.


— Dá para sentir em seu tom que ele está magoado. — Mas quero
permanecer na vida dos meninos, independente do resultado.

— Tem certeza disso?

O simples pensamento de Lex convivendo conosco com


frequência faz um arrepio subir pelo meu peito.

— Tenho. — Ele responde. — Você sabe que Bruno e eu nos


conectamos quando nos conhecemos. Eu senti muita falta de vocês.
Não posso ficar entrando e saindo da vida dele. Isso causa danos
demais. E, sendo honesto, acredito que Samuel é meu filho. — Sua
voz embarga. — E se, por um acaso o DNA não bater, gostaria de
estar por perto. Eu fui um garoto solitário. Passei um tempo longe do
meu pai. Isso me deixou um buraco. Uma frustração que ainda me
deixa triste, às vezes. Não quero que eles passem por isso, mas
você é a mãe. Não quero invadir seu espaço nem deixá-la
desconfortável. Não quero ser o motivo de uma nova fuga.

— Não haverá mais fugas. Prometi ao Bruno.

— Se não tivesse prometido, você fugiria? — Ele não


consegue esconder a tristeza.

— Quero dizer que não, mas não tenho certeza. Eu vivo


alerta. É como se o mal estivesse à espreita. E ele está... — Desvio
o olhar. — Mas decidi não fugir mais. Não posso fazer isso com os
meninos. Eles precisam de estabilidade e tenho isso em Quatro
Estações.

— Achei a cidade bem pitoresca e acolhedora.


— Ela é especial. Não quero me mudar de lá, mas você é
bem-vindo na nossa vida, se quiser.

— Obrigado. Tem mais uma coisa.

— O quê?

— Rafael, Priscila e o Sr. Fernando são apenas a ponta do


iceberg. Minha família é barulhenta, fofoqueira e espaçosa, mas
garanto a você que não conhecerá pessoas mais leais e amorosas.

— Você fala de sua mãe e irmãos? — Pergunto. Não sei muito


sobre eles. Sei que Lex não é próximo deles, sei que ele tinha uma
boa relação com o pai, antes de sua morte.

— Não. Essas pessoas nunca foram minha família. Estou


falando do Rafael e do Lucas, que conheço desde criança, e das
pessoas que vieram com a Viviane, esposa do Rafael, como o avô
dela o Sr. Fernando.

— Ele é um homem muito peculiar. Nunca tive contato com


um homem que cuidasse tanto da família.

— Essa família tem pais muito presentes. Ela toda é muito


presente. É gostoso ver as crianças podendo ser apenas crianças,
como tem de ser.

O garçom traz nossas bebidas e dou um gole no suco de


acerola. Os meninos vêm correndo, bebem um pouco de suco, que
ambos amam, e voltam correndo para os jogos, dizendo que
retornarão quando os lanches chegarem.

— Sobre os outros — retomo a conversa —, o André e a Luiza


estiveram lá em casa ontem e contaram um pouco sobre a sua
família, então imagino.

— Ah, você não imagina. — Pela primeira vez, ele dá uma


risada para mim. — Acho que vai gostar deles, mas sinta-se à
vontade para não os deixar se intrometer demais. Eles são teimosos
com limites, mas eventualmente acabam aceitando.

— Ninguém da sua família tem seu sangue. — Não sei por


que o comentário sai. Acho que estou refletindo sobre minha própria
situação.

— Família é muito mais do que sangue.

— Entendo bem. Vó Lucinda é nossa família.

— Ela é adorável. Me pareceu tão superprotetora quanto o Sr.


Fernando.

— Você acredita que ela o pesquisou na internet. Montou


quase um dossiê.

Dessa vez ele dá uma gargalhada.

— Sr. Fernando que se cuide ou será superado.


Capítulo 21

Você meu amigo de fé, meu irmão camarada


Amigo de tantos caminhos e tantas jornadas
Cabeça de homem mas o coração de menino
Aquele que está do meu lado em qualquer caminhada
Me lembro de todas as lutas, meu bom companheiro
Você tantas vezes provou que é um grande guerreiro
O seu coração é uma casa de portas abertas
Amigo você é o mais certo das horas incertas
Roberto Carlos – Amigo

RAFAEL:
E aí, cara? Não me faça ir na sua casa.
(É a Vivi que está curiosa. Eu tô de boa.)

Balanço a cabeça ao ler a mensagem do Rafael. Confesso


que estou surpreso por ele não estar aqui na porta, quando
chegamos.

Estou sentado no sofá da sala, que será minha cama pelos


próximos dias. Flávia tentou argumentar que não era necessário que
eu cedesse meu quarto para eles, mas é necessário, sim. Eles vão
dormir confortáveis na minha cama king size, onde os dois meninos
estão pulando agora, enquanto ela tenta impedi-los.
LEX:
Toma vergonha, cara.
Se você quer a fofoca, então assuma.

RAFAEL:
EU QUERO A FOFOCA, PORRA!

LEX:
hehehe
Tá tudo bem.
Nós conversamos
e estabelecemos alguns pontos.

RAFAEL:
Aquilo sobre ela te contar antes do resultado,
que a Vivi falou?

LEX:
Isso mesmo.
Por mais que eu seja tranquilo,
não dá para não saber.
Essa situação marcou e determinou a minha vida.
Ele pode ser meu filho
e perdi três anos e meio de sua vida.
Acho que tenho o direito de saber, né?

RAFAEL:
Por que você está se explicando para mim?
Tá tentando se convencer de algo?
LEX:
A Vivi tá lendo as mensagens, né?

RAFAEL:
Eu entendo de psicologia, rapaz.

LEX:
A Vivi já falou algo assim pra você, certo?

RAFAEL:
Eu não devia responder, mas sim.
Agora desembucha.

LEX:
Acho que me sinto culpado
por acabar pressionando a Flávia
sobre algo que ela não quer contar.

RAFAEL:
Você não tem que se culpar
por querer saber.
É natural.
Se fosse meu filho,
eu estaria doido já.
LEX:
Eu sei, mas me sinto mal mesmo assim.

RAFAEL:
Porque você sempre quer ser o cara bom.
O cara que não machuca ninguém.
Todo mundo machuca alguém.
Você não está fazendo isso de propósito.
Você tem o direito de saber.

LEX:
É, acho que sim.

RAFAEL:
Sem essa porra de acho, caralho.
Não dá pra passar por algo foda
como você tá passando
e ainda querer carregar culpa
por precisar saber por que
seu filho foi tirado de você.

LEX:
Você também acha que ele é meu, né?

Rafael:
Eu tenho certeza, porra!
Não falei que ele é sua cópia?
Ele tem até aquela sua
inclinadinha de cabeça desconfiada.
É filho do meu homem, com certeza!
Pode até cancelar o DNA.
Mentira.
Não cancela não que tem criança
chorando pra saber o resultado.
Mas é seu.
Vamos pegar o resultado pra emoldurar.
Vai estar escrito assim:
SAMUEL É FILHO
DO MELHOR CARA QUE
JÁ PISOU NESSE PLANETA!
Você vai pensar:
“Eita, será que é do Rafa?” hahaha
Mas, relaxa, o melhor cara é você.
Fico com o segundo lugar.

LEX:
Hehehe
Você é foda, cara.

RAFAEL:
Tá aí outra certeza.

LEX:
Aproveitando, logo vamos aí.
Só a gente.
Prefiro apresentá-los aos poucos
para o povo todo.

RAFAEL:
Eu concordo.
Viviane também.

LEX:
Beleza.
A gente se fala depois.

RAFAEL:
Te amo, irmão.
Vai dar tudo certo.
E se não der, eu dou um jeito até dar.

LEX:
Eu sei.
Também te amo, irmão.

RAFAEL:
Eu sempre posso subornar
um agente do governo pra v
Aí, cacete,
tomei um tapa da Vivi e
nem consegui completar a frase.
Ela tava lendo por trás de mim,
acredita?
Era zoeira
(estou sendo obrigado a escrever isso).
PS: se não tiver mais notícias minhas,
venha me salvar.

Deixo o celular sobre o tapete e me viro para dormir. Sinto-me


mais leve depois dessa conversa. Todo mundo devia ter um Rafael
na vida. Passamos por maus bocados juntos, mas os bons
momentos estão sempre em maior número.
Eu sei que voltarei a me sentir culpado muito em breve,
porque não gosto nada de fazer com que alguém se sinta mal,
mesmo indiretamente, assim como sei que Rafael estará pronto para
me resgatar se eu insistir em carregar um peso que não é meu.
Às vezes, tudo o que precisamos é de um amigo para nos
lembrar de quem somos.
Capítulo 22

Congela o teu olhar no meu


Esconde que já percebeu
Que todo meu amor é teu amor
Então vem cá
Que nós, até Caio escreveu
Parece que nos conheceu
Em mel e girassóis te peço, só te peço
Fica
ANAVITÓRIA part. Matheus e Kauan- Fica

Os meninos estão empolgados para ver o apartamento


de Lex, mas o cansaço do dia os vence rápido e eles dormem logo
que colocam a cabeça no travesseiro. Eu, ao contrário, estou com a
cabeça doendo. Droga, eu me esqueci de trazer remédio que não
fosse pediátrico.

Aproveito que ainda não coloquei a camisola e vou até a sala.


Se Lex estiver acordado, posso pedir algo para a dor.

Ele está deitado sobre o lençol branco que colocou no sofá


cinza chumbo. Os cabelos ainda úmidos do banho.

— Está tudo bem? — Ele se levanta de supetão quando me


vê.
Seus olhos escuros me fitam enquanto ele aguarda minha
resposta. Estar tão próxima é como voltar no tempo.

Quando nos conhecemos, eu trabalhava como cozinheira no


quiosque do meu tio, na praia de Copacabana. Lex tocava lá de vez
em quando. Por vários dias, eu o ouvia de longe, sem imaginar quem
ele era e que aquilo era um hobbie. Foi Bruno quem nos aproximou.
Meu menino se apaixonou pela música e ficou curioso pelo
funcionamento do violão. Lex foi tão gentil ao lhe mostrar alguns
acordes, que me surpreendeu. A gentileza dos homens era algo que
nunca havia cruzado o meu caminho.

— Você tem algo para a dor? — Aperto a testa.

— Tenho.

Eu o sigo até a cozinha e ele pega uma caixinha de remédio


no armário, me estende um comprimido e me serve um copo de
água. Tomo todo o líquido. Nem percebi que estava tão sedenta.

Enxugo o canto dos lábios com os dedos e entrego o copo,


agradecendo. Nossos dedos se tocam e me dou conta de que é
primeira vez que nos tocamos depois de quatro anos. Ele não se
afasta e meus dedos formigam.

Memórias que tentei esquecer se inflamam como lava quente


percorrendo as veias. Nossos olhares se cruzam como se o corpo se
acendesse pela lembrança, como se cada célula tivesse uma
memória especial sobre o nosso toque. Engulo seco e dou um passo
atrás, interrompendo o contato.

Lex se vira para colocar o copo na pia. Sua respiração é


pesada. Ele apoia as duas mãos no mármore e não volta a me olhar.

— Boa noite. — Saio o mais rápido que posso.

Nem ao menos sei se ele chegou a responder de volta. Corro


para o quarto e me troco, entrando debaixo dos lençóis. Acomodo a
cabeça no travesseiro e sinto o perfume de Lex.
O tecido foi trocado e está limpo, mas é inevitável sentir seu
perfume. Aperto o travesseiro e inspiro profundamente. Estremeço.

Uma felicidade atrevida desperta em minhas veias. Eu sei que


não a mereço depois de tudo o que fiz com ele, mas, meu Deus,
como eu queria merecer...
Capítulo 23

Ser amor pra quem anseia


Solidão de casa cheia
Dar a voz que incendeia
Ter um bom motivo para acreditar
Mais bonito, não há
Pode acreditar
Mais bonito, não há
Milton Nascimento e Tiago Iorc
– Mais bonito não há

Como Rodrigo comprou minha parte na sociedade das


baladas e encontrou alguém para me substituir, não preciso me
preocupar com trabalho nos próximos dias e posso me concentrar
em tornar o tempo da Flávia e os meninos comigo em algo bom.

Queria dizer que é superfácil lidar com isso, mas não é. Ainda
tenho sentimentos por ela e reencontrá-la é como colocar
combustível em uma fogueira que nunca chegou a se apagar.
Mesmo depois de ela contar que Samuel pode não ser meu filho – o
que quer dizer que ela ficou com alguém logo depois que precisei
viajar do Rio de Janeiro para São Paulo. Espero saber logo o que
aconteceu, mas prometi não a pressionar e é o que estou fazendo.

Quando finalmente consegui dormir, meus sonhos se


misturaram à lembrança e o caos foi instaurado. Acordei com todas
as partes de mim refletindo o furacão de emoções.
Depois de um banho gelado, saí para correr – um hábito que
desenvolvi justamente na época em que Flávia e eu nos
conhecemos. Pela primeira vez em muito tempo, precisei correr até
todos os músculos doerem, buscando me distrair. Não adiantou.

Na volta, passei na padaria e fiz uma compra para o café da


manhã. Retorno e espero conseguir tomar banho antes de preparar a
mesa. No banheiro, tiro a camiseta ainda molhada de suor e encaro
meu reflexo. A tatuagem da borboleta azul sobre o meu coração. A
memória do primeiro beijo que gravei na pele. A marca que Flávia
nunca chegou a ver, ao lado da cicatriz do tiro.

Bruno aparece na cozinha, coçando os olhos e bocejando.

— E aí, rapaz, dormiu bem? — Ele balança a cabeça em


afirmação. — Sua mãe e seu irmão acordaram?

— Sim, eles já vêm. Eu quis vir primeiro para saber se você


tinha acordado.

Sorrio e aponto uma das cadeiras para que ele se sente.


Melhor não contar a ele que não dormi bem.

— Você fez tudo sozinho? — Ele aponta para a mesa


composta com bolo, suco, leite, chá, pão, frutas e cerais.
— O pessoal da padaria fez. — Pisco. — Eu passei lá,
comprei e eu montei a mesa.

— Montou a mesa toda? Até o pé? — Ouço a voz de Samuel,


que aparece segurando a mão da mãe.

— Na verdade, montei até o pé da mesa, sim, mas quando ela


chegou. Hoje só coloquei a toalha e essas coisas gostosas.

Ele corre para se sentar ao lado do irmão, do outro lado da


mesa, pega o pão de queijo e enfia todo na boca.

— É gostoso mesmo! — Tenta responder com a boca cheia.

— Samuel, o que falamos sobre isso?

— Não posso responder — Ele fala ainda sem engolir e Bruno


dá risada. Assim que fica com a boca livre, continua. — Primeiro
engole e depois fala. — Ele imita o tom sério da mãe. — Desculpa,
errei a ordem.

— Está tudo bem, mas tente se lembrar da próxima vez. —


Flávia passa a mão carinhosamente em seus cabelos e dá a volta na
mesa para se sentar na cadeira que puxei. — Não precisava ter todo
esse trabalho. — Ela aponta para a mesa.

— Não foi trabalho. — Trocamos um breve olhar. Será que vai


ficar mais fácil para que lidemos um com o outro? — Aliás, acabei de
perceber que me esqueci do café.

— Eu faço. — Flávia se levanta no mesmo segundo, ficando


entre mim e o balcão. — Sente-se aí.

— Não, eu faço. — Coloco a mão em seu ombro e a sinto


estremecer, retraindo-se.

— Quero ajudar.
— Eu sei, mas olha — estendo o braço e ligo a cafeteira no
balcão.

Ela dá uma risada leve e, em segundos, o perfume do café


toma o ambiente.

— Por que não disse logo?

Seu ânimo se transformou e ela volta a se sentar,


perguntando aos filhos sobre o que querem beber. Por mais que eu
ame café e sei que ele opera milagres em nosso humor, sei que não
foi o que a fez se recuperar da reação anterior. Espero estar
enganado, mas vi medo em seus olhos.

Flávia insistiu em lavar a louça. Aproveito para ir ao meu


quarto para me trocar, antes de sairmos para o exame. É inevitável
olhar para a cama e pensar na família que dormiu nela.

Será que a situação teria sido diferente se eu não tivesse


viajado para São Paulo? Foram poucos dias e não dava para fugir
dos compromissos marcados. Cheguei a perguntar se ela queria vir
comigo, mas não quis. De toda forma, estávamos bem, nos
falávamos por telefone até que ela deixou de me responder. Sua
linha foi desativada e meu tormento começou.

Fiquei desesperado por meses. Voltei para o Rio, falei com o


único tio dela que eu conhecia e ele me disse para esquecê-la, que
ela vivia fugindo desde criança e que isso não ia mudar.

Parei de procurá-la depois de um tempo, mas não consegui


entender como ele podia estar tão despreocupado, como uma
criança que precisou fugir da própria família, eu sei que não se faz
isso por nada.

Meu estado era tão lastimável que procurei acolhimento no


único lugar que não deveria: na minha família de sangue. O
resultado foi que, finalmente, encarei o que me negava a ver, eles
não estavam nem aí para mim. Minha mãe me tolerava porque eu
era uma fonte de dinheiro constante. E eu, sedento por amor
maternal, fingia que não via.

A dor da constatação foi avassaladora, ainda mais por ter sido


na época em que Flávia desapareceu. Acho que essa conclusão
sobre minha mãe ajudou a desistir de procurar a mulher que eu
amava. Quando você cresce não recebendo amor da pessoa que
mais devia te amar, fica fácil acreditar que você não é tão importante
a ponto de fazer alguém ficar.

Passo pela sala e os meninos estão brincando com um jogo


de cartas. Fico surpreso com o fato do Samuel, aos três anos, saber
todos os números e até a escrever algumas palavras.

Há um copo sobre o móvel da televisão. Eu o pego e vou para


a cozinha. Posso ouvir Flávia cantarolando enquanto limpa a pia e
aprecio sua voz em silêncio, depois me aproximo para colocar o
copo na pia, tocando seu braço no processo.

Com o susto, ela dá um pulo e o copo escapa da minha mão.


Ele se choca contra a pia e quebra. Flávia sequer me olha enquanto
tenta resgatar o copo e corta a mão.

— Ei, ei... Deixa eu ver isso — Instintivamente pego sua mão,


mas ela se afasta para pegar uma folha de papel toalha e os
meninos entram na cozinha.

— Mãe, mãe, o que foi? — Eles se afligem quando a veem


segurando a folha de papel contra a mão.

— Não foi nada. — Ela apressa-se para tranquilizá-los. — Eu


me distraí e derrubei o copo, fui tentar pegar e me cortei. — Olha —
ela tira o papel. — Foi um corte pequeno.

— O Lex pode cuidar disso, não pode? — Bruno pergunta e


Samuel me olha, atento.

— Eu tenho uma caixa de primeiros socorros no gabinete do


banheiro do meu quarto. É vermelha e branca. Por que vocês dois
não vão buscar? Aí podemos todos cuidar da sua mãe.

Os dois correm para atender meu pedido e puxo uma cadeira


para que Flávia se sente.

— Me desculpe. — Dizemos juntos.

— Por que está pedindo desculpa? — Falamos juntos outra


vez.

Fico em silêncio e aceno com a cabeça para que ela fale


primeiro. Ela hesita, depois diz:

— Por me assustar e quebrar o copo. E você?


— Não sei se uma pessoa precisa se desculpar por levar um
susto. Eu te assustei, mesmo sem intenção, e você acabou se
cortando. Me desculpa.

Os meninos entram correndo. Bruno abraça a minha caixa de


primeiros socorros como se sua vida dependesse disso.

— Deixa eu ver se o corte não precisa mesmo de pontos. —


Peço e Flávia atende. Examino sua mão devagar, percorrendo a
palma com meu indicador. — É... Não precisa. Senhores, não há
motivo para preocupação. Dr. Lex informa que a mãe de vocês ficará
novinha em folha — Simulo um tom sério que os faz rir e abro a
caixinha.

O primeiro passo depois do curativo é fazer o exame de DNA.


Minha amiga Mila, que é pediatra, conseguiu agendar para o dia de
hoje. O teste é tranquilo. Samuel é tão curioso sobre tudo o que vê.
Dissemos que era um exame comum. Não sei o quanto ele
entenderia sobre isso assim tão novo. Bruno faz mais perguntas e
penso sobre como a situação irá impactá-lo.

Flávia aperta as mãos olhando aflita para os filhos. Eu me


sinto mal ao vê-la desse jeito, mas não sei como poderíamos
resolver a questão de outra forma.

— Eu sinto muito — Digo em voz baixa, quando estamos


descendo as escadas da clínica, apenas para que ela escute.
— Está tudo bem. Já era hora e você não tem culpa de nada.
Quanto antes lidarmos com tudo isso melhor. — Ela hesita por um
segundo. — Talvez você fique livre no fim. — Não consigo
reconhecer se seu tom é triste ou resignado.

Abro a boca para responder e sou interrompido por Bruno.


Desfranzo a testa e desvio o olhar de sua mãe para ele.

— O que vamos fazer agora? — Ele questiona.

— Vocês decidem. O que querem fazer? — pergunto, me


esquecendo de como são as crianças.

— Ir à lua! — Eles respondem rápido, como se tivessem


conversado muito sobre o assunto.

— Vou ficar devendo a lua, mas que tal irmos ao Planetário


depois do almoço?

A euforia deles é a resposta de que preciso. Lanço um olhar


para Flávia, percebendo que não a consultei antes. Mais uma vez me
sinto culpado e a sensação me incomoda. Ela assente, parecendo
tranquila. Diferente de mim, que estou intrigado com esse papo de
eu ficar livre de uma vez.

Terei que retomar o assunto depois.


Capítulo 24

Eu poderia encantar qualquer outro par de ouvidos


Não te ter mais aqui comigo
Mas eu não quero não
Eu não quero
ANAVITÓRIA – Porque eu te amo

Eu gostaria de dizer que sou boa em expressar meus


sentimentos, mas infelizmente não sou. Na saída do teste de DNA,
as palavras escaparam sem que eu conseguisse impedir. Vi a
confusão e a tristeza no olhar do Lex e agradeci em silêncio quando
Bruno nos interrompeu. Eu não saberia como continuar aquela
conversa.

Ao ver a reação da recepcionista ao olhar para ele, depois da


enfermeira que realizaria o teste, não pude deixar de pensar no
quanto empatei sua vida. Meu sumiço o impactou tão forte que o
impossibilitou de seguir em frente. Ele sequer notou como aquelas
mulheres o comiam com os olhos. Como não o fariam? Ele chama
atenção sem se esforçar. É alto, atlético, com um cabelo cacheado
caindo até os ombros, que apenas o deixa mais sexy.

Eu fujo dos homens e namoros em Quatro Estações. Faço


isso porque é mais seguro para mim e para os meninos. Ele faz por
estar preso ao que tivemos.
Depois do susto seguido de corte, pela manhã, meus receios
sobre estar aqui aumentaram. Desde que cheguei a Quatro Estações
e passei a morar com vó Lucinda, criei uma redoma à volta da minha
família. Os únicos homens com quem mantenho uma conversa
cordial são os parceiros das netas da vó Lucinda.

Agora estou exposta a um homem praticamente 24h. É difícil


porque esse homem foi o único que fez parte da minha vida e não
me fez mal de alguma forma. Ele não merece que eu tenha medo
dele. Ele não merece que eu me assuste com a sua presença. E,
ainda assim, eu me assusto.

Na expressão de Lex, é visível que ele sabe que algo está


errado. Eu era desconfiada quando nos conhecemos e fiquei pior. É
quase como se todo o progresso que fiz, nos anos que passamos
distantes, estivesse abalado. Por favor, Deus, me ajuda a passar por
isso, nos ajude para que nenhum de nós termine mais machucado
do que já está.

Penso em mandar uma mensagem para vó Lucinda e meu


celular vibra no bolso. Não consigo explicar como, mas sei que é ela.

VÓ LUCINDA:
Não se cobre tanto.

Sorrio e aperto o celular contra o peito. Lex tira o olhar da


direção por um momento e me olha, confuso.

— É a vó Lucinda — explico, antes de digitar uma resposta.


FLÁVIA:
Como sabe que estou sentindo?

VÓ LUCINDA:
É um dom que Deus dá as avós.

É incrível como ela faz com que eu pertença a um lugar, como


é capaz de acolher e acomodar meu coração em seus braços.

FLÁVIA:
Será que você pode perguntar a Deus
se Ele pode evitar que
nos machuquemos mais?

Ela me responde muito rápido.

Ó
VÓ LUCINDA:
Suas preocupações são sobre isso?
Fique tranquila.
Isso eu perguntei no dia em que
aquele trio maluquinho apareceu por aqui.
Deus me disse que
todos nós ficaremos bem.

Passamos a tarde no Planetário do Ibirapuera. Os meninos


quase vão à loucura. Lex ainda não sabia, mas esses dois são
completamente fascinados pelo espaço. Não preciso nem me
preocupar em fazer parte da conversa. Eles querem contar ao Lex
tudo o que descobriram em suas pesquisas na livraria e comigo na
internet.

Jantamos em um restaurante no próprio parque e me


preocupo com o Lex pagando por tudo. Está ficando evidente que
precisamos ter uma conversa e determinar alguns limites. Não quero
que os meninos estranhem como será depois desses quinze dias.

Não sei se posso contar ao Lex o que ele precisa saber, então
se Samuel não for filho dele, acho que será melhor manter distância.
Estou com medo e escondendo muito bem. Eu disse a ele que
poderia manter contato, mas isso não vai mantê-lo preso a algo que
pode nunca mais acontecer?
Os meninos chegam bocejando à casa do Lex e levo os dois
para o banho, apesar das reclamações. Eles desmaiam na cama
assim que colocam o pijama. Tomo banho e coloco um vestidinho
azul leve. Está calor e me esqueci de deixar uma garrafa de água no
quarto. Cogito beber da pia do banheiro e desisto – ficar doente é a
última coisa de que preciso agora.

Não é possível que eu seja tão covarde. Passarei mais


quatorze dias aqui e não posso me esconder dele em todos os
momentos.

Apesar das palavras motivacionais que digo para mim mesma,


abro a porta bem devagar, torcendo para que Lex esteja dormindo.
De novo, ele não está. Ele está deitado no sofá, olhando para o teto,
pensativo.

— Oi. — Falo tão baixo que não sei se ele vai escutar, mas
ele escuta e se vira na minha direção.

— Ah, oi! — Lex se senta rápido. De novo, ele está de banho


tomado, vestindo uma bermuda preta e uma camiseta branca.

— Não precisa se incomodar. Só vou pegar uma garrafa de


água e levar para o quarto.

— Você não me incomoda. — Ele aperta os lábios. — Eu


estava pensando em te chamar.

Droga.

— Vou pegar a água e volto.

Enrolo uns dois minutos na cozinha. Bebo água, encho a


garrafa, bebo mais. Até que suspiro e sigo de volta para a sala. Há
apenas um sofá de três lugares, então não tenho escolha a não ser
sentar ao lado de Lex.

— Sobre o que quer falar? — pergunto.


— Começou com uma pergunta difícil... Era sobre isso o que
eu estava pensando quando você apareceu para buscar água. São
tantas coisas para falar.

— Precisa dizer todas de uma vez?

Ele sorri.

— Normalmente eu sou o cara que diria algo assim.

— Eu sei. — Correspondo o sorriso. — Aprendi muito sobre


paciência e serenidade no tempo em que estivemos juntos.

— Acho que podemos começar sobre isso. — Ele diz e


empalideço. — Não sobre a concepção do Samuel. — Atento, ele
correu para acrescentar. — Sobre o que vivemos em si. Eu gostava
muito daquilo.

— Eu também.

Ele me olha por longos segundos. Sua mão ameaça se mexer


em minha direção, depois para.

— Você tem medo de mim agora? — Ele me surpreende.

— Eu tenho medo dos homens em geral. Racionalmente não


tenho medo de você, mas emocionalmente há situações em que não
consigo evitar e meu corpo reage, antes que eu consiga controlar. É
automático.

— Como quando você não me vê chegando e toco no seu


braço, como hoje mais cedo.

— É.

Uma sombra de raiva passa pelo rosto de Lex e percebo, por


sua respiração, que ele se esforça para sorrir e me mostrar que está
tudo bem. Algo que me diz que, se ele ainda não sabia, agora
desconfia ou tem certeza do que me aconteceu, mas ele não me
pergunta. Ele não me forçará a dizer.

— Eu vi muita coisa ruim nesse mundo. — Ele diz e tenho


certeza: Ele sabe. — Coisas que me traumatizaram e me deixaram
com problemas de confiança por muito tempo. — Eu o encaro. Isso é
novidade para mim.

Enquanto estivemos juntos, Lex e eu não falávamos sobre


passado nem sobre família. Quer dizer, ele ainda comentava
algumas coisas sobre quem o acolheu como família, mas nada sobre
aqueles com quem têm laços sanguíneos.

— Por isso eu sei que é difícil confiar e, às vezes, fazemos ou


falamos algo motivado por medo, para tentar nos proteger. Eu sou
livre. Saber ou não o resultado do teste não muda isso. Ser pai
biológico do Samuel não seria uma prisão para que o oposto seja a
liberdade. Eu poderia não ter ido até você, quando Rafael me contou
onde estava e sobre o Samuel. Eu poderia ter ido embora quando
você falou que o Samuel pode não ser meu. Eu não fui porque eu
não quis e não por estar preso, então não há motivo para você me
dizer que talvez eu fique livre com o resultado. — Ele estende a mão
e hesita, voltando a recolhê-la. — Eu sei que há uma lacuna entre o
que tivemos e o agora. Não quero ficar pisando em ovos com você e
nem que fique comigo. Pisar em ovos é uma situação que me faz
muito mal. Não quero que sejamos estranhos um para o outro.

— Eu também não quero, mas há reações que não controlo.


— Fico tão desconfortável por saber que, ao reagir, causo dor nele.

— Vamos lidar com as reações quando elas vierem, mas


prometo fazer o que puder para não ser um gatilho para você. Não
quero que minhas ações resultem em algo ruim para você.

— Obrigada.

Estamos perto um do outro e sei pela forma como ele move a


mão, de vez em quando, que seu instinto é me tocar e ele luta contra
isso para não me assustar mais.

— Seja lá qual for o resultado do teste, meus sentimentos por


você não mudaram, Flávia. Estarei aqui para o que decidir e, como
disse, espero fazer parte da vida dos meninos.

Não sei o que dizer. Como responder a isso quando nem sei
se um dia vou permitir que um homem me toque de novo?

— Você pode me dizer o que quer e o que não quer também.


— Ele sorri. Há algo no sorriso de Lex que inspira confiança. Sempre
achei isso bonito. — Por exemplo, agora que eu sei que não posso
mais me aproximar em silêncio quando você não estiver me vendo,
não farei isso. Gatilho evitado, entendeu?

— Bom, não é algo que me dê gatilho, mas eu não quero que


você fique pagando nossas refeições. Também não posso pagar toda
vez, então gostaria de não jantar fora todo dia. Eu sei cozinhar muito
bem. — Ele sorri outra vez, talvez pela simplicidade do meu pedido,
mas é um sorriso compreensivo não é como se ele zombasse de
mim ou menosprezasse o que sinto.

— Eu me lembro muito bem da sua comida e, por mim, a


comeria todo dia. — Lex diz, fica vermelho e fecha os olhos por um
segundo. Eu levo mais tempo para entender o duplo sentido das
suas palavras e sinto minhas bochechas queimarem. Ele retoma,
antes que fique pior. — Eu também sei cozinhar, você sabe. É que
eu queria mimar os meninos e estava difícil ficar em lugares
fechados com você quando nem me olha direito às vezes. Eu não
quero ser o cara que te causa medo.

— Você não é. Acho que vai levar um tempo para que meu
corpo assimile isso, mas você não é. Eu não queria ser um peso,
uma obrigação.

— Eu deixei claro nessa conversa que não é, certo? Meus


sentimentos por você não mudaram. E, mesmo que tivessem
mudado, eu não faria isso por caridade. Eu te respeito, Flávia.
— Eu sei, Lex. Obrigada.

— Se eu fizer algo que te incomodar, você fala. O mesmo vale


para mim.

De novo a sensação de voltar no tempo.

— É como era quando... — não consigo completar a frase.

— Quando estávamos juntos, eu sei. Era por ser desse jeito


que funcionava tão bem.

— Sim. É que agora foi tudo tão rápido. Um dia eu estava


sozinha com meus filhos e no outro chegou o exército da Fada Azul,
depois você e... é muita coisa para lidar.

— Eu conheço a sensação, mas agora é entre nós, o que quer


que seja não precisa ser rápido.

De novo, não sei o que dizer, então mudo o rumo da


conversa.

— O que vocês têm com a Fada Azul, afinal?

— Fada Azul é coisa da Priscila. Ela é a líder daquela gangue,


não se engane.

— Mas ela é só uma menininha.

— Ela é Priscila Villa Ferraz. Naquela “menininha” há parte


das pessoas mais superprotetoras que conheço. Ela decidiu que eu
estava triste e os outros dois fizeram o resto.

— Você estava?

— Estava solitário, um pouco melancólico. Para eles, pareceu


tristeza. Talvez fosse, um pouco. — Ele fica pensativo, como se
analisasse como se sentia.
— Foi um choque quando eles apareceram em Quatro
Estações, mas acho que foi bom. Era hora.

— Normalmente é assim quando eles se envolvem. É um


choque no início, mas tem grandes chances de ser bom. Eles são
cuidadores. Tem métodos nada ortodoxos e invasivos, mas são
cuidadores.

— Deve ser bom ter pessoas assim. Quando encontrei a vó


Lucinda, nem acreditei na minha sorte.

— É bom. E também é uma loucura.


Capítulo 25

Quero chorar o seu choro


Quero sorrir seu sorriso
Valeu por você existir, amigo
Fundo de Quintal – A Amizade

RAFAEL:
Você fez o quê?!
HAHAHAHAHAAHA

LEX:
Falei que
se pudesse a comeria todo dia.
Eu estava me referindo
à comida que ela faz,
mas na hora
caiu a ficha do duplo sentido.

RAFAEL:
HAHAHAHAHAHAHA
MANO DO CEÚ
HAHAHAHAHAHAHAHA

LEX:
Para de ser babaca, vai

Eu xingo, mas estou rindo do outro lado do celular. Faz meia


hora que a Flávia foi deitar. Contei ao Rafa que conversamos, mas
não dei detalhes. Aí quando ele pressionou para saber mais, acabei
contando isso para evitar os assuntos mais sérios.

RAFAEL:
Cara,
tô quase morrendo sufocado aqui
para segurar as risadas.
Acabei de dar
a mamadeira da Lorena.
Peguei todos os turnos da noite
pelos próximos 15 dias.
Não posso acordar as meninas.

LEX:
Peraí, tá de castigo? Hehehe

Agora sou eu que provoco.

RAFAEL:
O senhor pare agora.
Tô de castigo, sim.
Veja a ironia.
Minha excelentíssima esposa é
a favor da criação consciente,
então nada de castigo
para as minhas filhas,
o que eu concordo, né, cara?
Eu prefiro morrer
a castigar minhas princesas.
Maaaaaaaaaaas a ironia é que
eu sou castigado
por causa de um delito mínimo
que cometi por um cara
que tomou um tiro por mim.

LEX:
O tiro não te ajudou a
escapar do castigo, né?

RAFAEL:
Não.
Viviane entrou no modo tirana e
disse que ficaríamos
uma semana sem transar,
que era para o meu bem,
para eu aprender
a não fazer mais nada ilegal.
Depois de 3 dias de saco roxo,
eu fiz uma rebelião, meu jovem.
Nada de tirania nessa casa.

LEX:
O que você fez?

RAFAEL:
Deixei as crianças com a minha sogra
e preparei uma noite de SPA para ela.
Com direito a banho de espuma
e massagem.

Lex:
Com você dando o banho e fazendo massagem?

Pergunto, rindo outra vez.

RAFAEL:
Essas são as regras
da noite de SPA nessa casa.
E regras são regras.
Não é ela que é contra quebrar regras?
Quando ela viu que
não ia escapar do meu esquema,
porque a deixei daquele jeito
(vou te poupar dos detalhes
pra você não sofrer na sua vida casta)

LEX:
Obrigado, meu amigo!

RAFAEL:
Aí eu burlei o castigo.
Quer dizer, ela implorou por sexo,
e estou no turno da noite sozinho
pelos próximos 15 dias.
Bem agora que
os dentinhos da Lorena
estão nascendo.
Mas tá beleza.
Burlei a punição de novo.
Não dormir direito para cuidar
das minhas meninas não é castigo.

LEX:
Logo vamos para a praia.
Aí te rendo um pouco.

RAFAEL:
Estava contando com isso, meu parceiro.

LEX:
Conta sempre comigo.

RAFAEL:
Tá melhor?

LEX:
Tô.
RAFAEL:
Ótimo.
Vem com ela e os moleques
aqui na sexta, fim de tarde.
Vamos fazer um churras,
só nós e as crianças.

LEX:
Marcado.

RAFAEL:
Conta sempre comigo.
Ô Lex

Lá vem merda.

Lex:
Fala.

RAFAEL:
Boa sorte pra comer todo dia,
se possível.
hahaha

LEX:
Trouxa!

RAFAEL:
A Vivi vai morrer com isso.

LEX:
Alô, alô, patrulha da fofoca
Rafael está em serviço.

RAFAEL:
Trouxa.
As coisas sérias não vou contar, mas isso não dá.
Você tem sorte de eu não falar pra ela fazer um daqueles
memos.

LEX:
É meme, mané.

Rafael é avesso às redes sociais. Deve ser o único ser


humano que não tem um perfil sequer, mas nos churrascos
mostramos alguns memes para ele. Alguns ele fala que é justamente
por isso que ele não usa as redes sociais, mas outros os fazem rir
sem parar.
RAFAEL:
Vou lá saber o nome dessa porra?!
Mas que você merecia um, isso merecia.
Capítulo 26

They say home is the place where your heart is


Then I am home now though I am far away
For so long I’ve let deep forests guard it
And now it’s begging me to stay[6]
Moddi – House by the sea

Estou picando cebola para temperar o feijão enquanto Lex


mostra aos meninos os dois cômodos que eles ainda não conhecem:
a sala de música e a sala de leitura. Não me surpreendi quando vi
nem um nem outro. É claro que Lex moraria em um lugar assim.
Livros e música o representam bem.

Como não havia livros infantis na sala de leitura, além de


Harry Potter e Percy Jackson – que são para todas as idades e Lex
ama – é a sala de música que chama mais a atenção dos meninos.
Duas guitarras, um baixo e um violão pendurados na parede cinza-
claro. Uma bateria em um canto, um teclado e um piano em outro.
Lex disse que Rafael é quem mais toca a bateria.

Os meninos querem aprender mais sobre tocar. Como a porta


está aberta, consigo ouvi-los. Lex disse que o quarto tem proteção
acústica por causa dos vizinhos.

Termino com as cebolas e começo a descascar o alho


enquanto sons musicais chegam até mim. É reconfortante.
A sensação me tira um sorriso. Como seria bom se eu
conseguisse me deixar levar por essa atmosfera e me entregar a
essa vida.

Quando Lex disse que ainda tem sentimentos por mim, não
respondi que também tenho. Guardei a informação a sete chaves
dentro do coração, mas ele continua sendo o único homem que
amei.

Deixo os temperos de lado e desligo a panela de pressão que


cozinha o feijão. Lavo as mãos e vou dar uma espiada nos meninos.
Paro no corredor ao escutar a voz de Samuel:

— Podemos morar aqui para sempre? — Há uma pausa. —


Vó Lucinda pode vir também?

Bruno não diz nada e o imagino olhando atentamente para


Lex, esperando até que a voz soe:

— Ainda não sei como serão as coisas...

Escuto o “ah...” decepcionado de Samuel. Lex continua:

— Mas posso garantir que sempre haverá espaço para vocês.


Eu estava pensando em procurar um lugar maior para mais um
quarto e podermos montar para vocês dois. O que acham?

— É sério? — Ouço a voz de Bruno pela primeira vez.

Fico embaraçada por estar ouvindo escondido.

— Claro que é sério. — Lex responde.

— Aí a mamãe ia dormir onde? — Samuel pergunta.

— No meu quarto — Lex explica e acrescenta bem rápido — e


eu no sofá pra ela ficar à vontade.
— Mas aquela cama é grandona. Cabe nós quatro e a Vó
Lucinda. — Samuel continua falando e decido entrar antes que Lex
se sinta perdido.

— Como estão, meninos? Já já o almoço estará pronto. —


Engato logo, torcendo para que os dois se distraiam.

— Nossa, tô com uma fome grandona. — Bruno coloca a mão


na barriga.

— Eu também! — Samuel o imita. — Mas minha fome é mais


grandona ainda, do tamanho da cama do Lex. — Ele abre os braços
o máximo que pode.

Meu rosto começa a queimar e basta uma olhada do Lex para


perceber que ouvi a conversa. Ele sorri e pisca para mim. Meu
coração dispara. Fico perdida entre caminhos opostos: correr dele ou
para ele. Como sempre, opto pelo mais prudente e saio do cômodo.
Capítulo 27

Eu quero tanto, mas tanto


Quero te ver
Eu quero muito saber do teu mar
Fala da dor que eu te cuido
Fala do amor, diga tudo
Que eu viro o peito do avesso
ANAVITÓRIA – Cigarra

É a primeira vez que meu apartamento fica cheio de


vozes, cores e risadas. Aqui é pequeno para receber a tropa de
família e amigos que temos. Acabo indo mais ao Rafael e na casa
dos outros, mais raramente. O Rafa aparece quando precisa de um
pouco de silêncio.

Falando nele, estamos a caminho do churrasco. Flávia ficou


um pouco receosa quando a convidei. Eu disse que seria uma
decisão dela. Se não quisesse, tudo bem, eu entenderia. No fim, ela
concordou. Os meninos adoram a ideia de ver a Priscila de novo.

Estacionamos em frente à casa de Rafael e Viviane no fim da


tarde. Abro a porta para a Flávia e ajudo Samuel a sair da cadeirinha
e o coloco no chão, enquanto ela abre a porta para o Bruno.

Rafael sai da casa antes mesmo que eu toque a campainha,


efusivo.
— E aí, irmão?! — Ele me abraça e depois estende a mão
para Flávia e cumprimenta as crianças.

Mal temos tempo de entrar e o furacão Priscila nos interpela:

— Tio Lex! — Eu me abaixo um pouco para pegá-la, mas ela


já está no meio do pulo para o meu colo.

Não demora e Giulia aparece puxando seu cobertorzinho e


companheiro inseparável. Dou um beijo no rosto da Pri e a coloco no
chão para que fale com os meninos.

— Lequi, Lequi — Giulia estende os bracinhos e a pego no


colo, acariciando seus cabelos claros. Ela pisca os olhos azuis
lentamente, faz um carinho no meu rosto e encosta a cabeça no meu
ombro, os olhinhos pesando.

— Ela está cheia de sono, mas ouviu que você viria e não quis
tirar a soneca da tarde. — Rafael explica, mostrando o caminho para
que nós o sigamos para os fundos da casa, onde fica a
churrasqueira. — A Viviane está amamentando a Lorena e vai nos
encontrar logo.

— Você tem três meninas? — Flávia pergunta.

Percebo que ela ainda está receosa com Rafael, mas


sabendo da nossa ligação está abrindo espaço para que a interação
entre eles seja tranquila.

— Três meninas, acredita? — Rafael dá um largo sorriso. —


Quatro com a mãe delas. São a razão da minha existência.

— Vocês foram tentando para ver se saia um menino? — Ela


pergunta outra vez.

— Nada. A gente só foi... — Ele pensa um pouco. — Tentando


e as meninas foram nascendo. Nada muito planejado. Nós sempre
quisemos a casa cheia.
— Isso vocês têm até quando não querem. — Eu o faço dar
uma gargalhada.

— Família, né, irmão? Família...

Rafael aponta para os sofás para que possamos nos sentar e


Priscila pega o Pula-Pirata do armário de brinquedos, sentando-se
na grama com os meninos.

Ouço ressonar baixinho em meu colo e falo:

— Giulia apagou.

— Falei que ela estava esperando você chegar.

Eu a acomodo em um dos sofás. Há um travesseiro separado.


É sempre garantido que teremos uma ou duas crianças dormindo no
rolê. Cubro-a com seu cobertorzinho azul, que nunca se desbota
completamente, afinal Viviane tem uma porção deles no armário e
vai repondo-os quando as lavagens não o salvam mais. Isso foi ideia
do Rafael. Quando a Priscila era pequena, perdeu seu coelhinho de
pelúcia preferido. Ele tentou consolá-la de todas as formas, no fim,
acabaram chorando juntos e Priscila se distraiu ao consolar seu nada
dramático pai. No dia seguinte, Rafael foi à loja e voltou com o porta-
malas cheio até o máximo de coelhinhos lilases. Ainda tem alguns
trancados no armário.

— O que temos por aqui? — Viviane aparece carregando


Lorena. A bebê de quase seis meses se agita quando me vê. —
Calma, menina, seu dindo já vai te pegar.

Vivi me passa Lorena e a primeira coisa que faço é dar uma


longa fungada em sua cabeça. Deviam encapsular cheirinho de bebê
e usar em conjunto a outras terapias contra ansiedade.

Percebo que Flávia está me encarando e seus olhos brilham,


como se contivesse as lágrimas.
— Você deve ser a Flávia. — Viviane se aproxima dela, que
se levanta e a cumprimenta.

— Eu mesma. — Sua voz está embargada.

— Prazer, Viviane.

— O prazer é meu. — Flávia tenta sorrir.

Pelo jeito compreensivo que Viviane a olha, ela percebe o que


está acontecendo sem ter que perguntar, enquanto continuo confuso.

Lorena me olha com seus grandes olhos verdes como


esmeraldas e me pego pensando se ela consegue sentir minha
confusão. Não sei como dissipar o clima estranho, mas a bebê faz
isso ao dar uma grande golfada na minha camiseta.

Como sempre acontece, Viviane solta um “Ah, meu Deus”,


enquanto Rafael me joga uma fralda de pano, que dessa vez não
será suficiente, tendo em vista o tanto de leite que voltou.

— Vou subir para trocá-la e busco uma camiseta do Rafa pra


você. — Viviane avisa, pegando-a do meu colo e tirando o grosso do
leite com a fralda de pano. — Quer vir comigo, Flávia?

Jogo minha camiseta no cesto de roupa suja na lavanderia e


volto para a área da churrasqueira. Rafael está colocando a carne e
me oferece um copo de refrigerante assim que me vê.

— Como você está, cara? — Rafael me pergunta.

— Estou bem. As coisas estão mais tranquilas entre nós


depois daquela conversa. Só não sei bem o que aconteceu agora.

— Pois eu sei. — Balança a cabeça como se conhecesse


todos os segredos do universo.

— Então fala, rapaz. — Apoio as mãos no balcão.

— Ela te viu com as meninas, viu o quanto você teria sido um


pai foda para os filhos dela e sentiu culpa.

— Como é que você se ligou nisso antes de mim? — Eu me


surpreendo com o quanto a explicação dele faz sentido.

— Sou casado com uma psicóloga, cara. Eu aprendo alguma


coisa conversando com ela. — Ele me provoca, mas não consegue
sorrir. — É mentira. Foi assim que me senti quando vi Viviane com
um bebê pela primeira vez depois de tudo o que fiz e acabou
causando a perda do nosso bebê.

Passo a mão em suas costas, sem dizer nada, porque ele não
quer ouvir nada sobre não ser culpa dele. Em parte foi, mesmo
indiretamente, e ele assumiu a responsabilidade por isso. Ele se
perdoou, assim como ela o perdoou, mas a perda dói, não tem jeito.

Quando Rafael estava no auge dos problemas com drogas e


foi sequestrado, Viviane foi comigo resgatá-lo. O irmão dela e eu
fomos baleados e Viviane perdeu o bebê que nem sabia que
esperava.

— Estamos bem, Rafa. — Eu o lembro, ainda acariciando


suas costas. — Estamos bem.

— Obrigado, irmão. — Ele dá um longo gole no refrigerante,


esforçando-se para sorrir.
Priscila dá um gritinho de felicidade que ela dá quando uma
pessoa chega e corre em direção ao portão. Antes que possamos
vê-lo, nós ouvimos:

— Seu problema acabou. O Vira-Lata chegou!

E Rodrigo Villa surge em nossas vistas carregando Priscila em


um braço e uma pasta no outro.

— Puta merda. — Rafael diz.

— Não ia ser só a gente? — Franzo a testa, preocupado.

— Ia. O “puta merda” não deixou isso evidente?

Depois que Priscila apresenta seu maravilhoso tio Bô aos


meninos e lhe diz algo em seu ouvido, ao que ele responde com um
cumprimento de soquinho, ele vem até nós.

— E aí, seus pilantras, vim trazer os papéis da dissolução da


sociedade para o meu excelentíssimo cunhado assinar e pego meus
dois homens fazendo churras na surdina? O que é isso? Saíram da
sociedade e agora vão sair da minha vida?

Nós dois não dizemos nada. Ambos ganhando tempo e


pensando no que responder antes que a família toda fique sabendo
que há uma mulher na minha vida. Como se para nos provocar,
Rodrigo pega o celular.

— Não, não, não! — Rafa e eu falamos ao mesmo tempo,


tentando em vão pegar o celular.

Rodrigo dá uma grande gargalhada.

— HÁ! Pegadinha do Malandro! — Ele guarda o celular no


bolso. — O passarinho sapeca ali — ele aponta para Priscila com a
cabeça — me disse que estamos no meio de uma operação secreta.
E aí, cadê a mãe daqueles meninos e por que ninguém nunca me
disse que o Lex tem um filho?

— Você tem que prometer não contar a ninguém. — Rafael


avisa Rodrigo, depois de explicarmos sobre minha história com
Flávia e como Rafael a encontrou.

— Ok, ok, eu prometo. Tô chateado por não me chamarem


para a operação Fada Azul. Quando alguém gostoso — ele aponta
para si mesmo — como eu vai ter chance de desfilar com asinhas
azuis no dia a dia? E logo vocês que sabem que eu arraso na minha
performance da Anna de Frozen. Não contem comigo para mais
nada. Mentira. No próximo Ano Novo quero ser a Wandinha.

Balanço a cabeça, ouvindo para onde o raciocínio de Rodrigo


o leva.

— Tem que guardar segredo mesmo sabendo que a Branca


vai ficar puta depois. — Rafael acrescenta, olhando para a porta.
Viviane e Flávia podem aparecer a qualquer momento.

— Claro. — Rodrigo afirma. — Eu adoro quando a Branca fica


puta comigo. O sexo é incrível. — Ele fecha os olhos e suspira, como
se antecipasse a situação. — Então, relaxem. — Rafa e eu nos
entreolhamos. — É sério, eu estava quebrando a cabeça pensando
no que fazer para deixá-la puta o suficiente para querer me matar,
mas não grave para uma separação. Será um prazer guardar seu
segredo. Mas quando você contar, tem que ficar cristalino como água
que eu sabia e não contei, ok? — Ele esfrega uma mão na outra. —
Bora deixar aquela mulher louca.
Capítulo 28

Sabe, amor
Eu fui sem canto pra tua direção
'Tava sem voz, sem rumo, só coração
Nem sei onde é que a gente se perdeu
O vazio é difícil acostumar
Ainda bem que não hesitei em te abraçar
O nó afrouxa até a mão querer soltar
Mas da tua mão eu não larguei até voltar
Pra direção da tua calma, ah-ah-ah
Sandy e ANAVITÓRIA – Pra me refazer

Meu coração dá um solavanco ao voltar com Viviane. Lex


está sem camisa. Do jeito que andam as coisas, isso seria o
suficiente para mexer comigo, mas há uma tatuagem nova em seu
peito, além dos instrumentos musicais que tomam suas costas
inteiras. Eu conhecia a cicatriz do tiro, mas não sei quando ele deu a
ela uma companhia.

Uma borboleta azul está sobre o coração de Lex. A tatuagem


é tão realista que parece que ela vai voar a qualquer momento.

Por mais que eu resista, o passado me encontra...


Tínhamos acabado de sair do restaurante e entrar no carro
para que Lex me levasse para a casa em que eu morava, no mesmo
quintal do meu tio. Ficamos conversando um tempo no
estacionamento a céu aberto. Estávamos nos aproximando mais a
cada dia e, naquela noite, foi a primeira vez que Bruno não estava
conosco.

— Se pudesse ser um animal, qual seria? — Lex indaga.


Fizemos várias dessas perguntas, aparentemente bobas, para nos
conhecer mais.

Estávamos sentados virados um para o outro e eu respondi


sem hesitar.

— Uma borboleta azul. Morpho é o nome científico dela. Sabe


aquela revista chamada Seleções?

— Sei. — Minha vó tinha várias.

— Achei uma na rua quando eu era pequena. Algumas


páginas estavam rasgadas, mas consegui ler uma boa parte.
Antigamente, a borboleta morpho voava livre pelas cidades. Quanto
mais as cidades cresciam, menos borboletas sobreviviam até que
não restou nenhuma. Muita gente as matava e emoldurava. Agora
elas habitam apenas em áreas muito arborizadas e com menos ou
nenhuma pessoa. Tiveram que se esconder para sobreviver.

— Como você. — Ele parecia me desvendar.

— Ainda estou procurando meu lugar seguro no mundo, como


uma borboleta azul. Ela se tornou rara, mas em alguns lugares ela
pode existir em liberdade. — Não respondo de forma direta o que ele
disse, mas também não nego.

— Eu quero muito que você encontre um lugar em que possa


viver sem precisar se esconder. Esse lugar seguro que você saberá
quando encontrar. — Lex estendeu a mão e acariciou meu pescoço
devagar.
— Obrigada. Tomara que ele exista. — Nosso rosto estava
separado apenas pelo espaço entre os bancos do carro.

— Eu sei que não posso resolver todos os seus problemas,


porque isso não seria justo com nenhum de nós, mas aqui, neste
momento e em todos que você estiver comigo, você estará segura.

— Eu sei. — Respondo baixinho.

Lex se aproximou devagar, dando-me tempo para resistir.


Quando os lábios se encostaram, pelo menos naqueles poucos
instantes, eu me senti livre e segura.

Não consegui evitá-lo antes e preciso me forçar a parar de


encará-lo. Eu me viro dando a impressão para eles que minha
intenção é verificar as crianças, quando na verdade quero fugir.

— É eita atrás de eita, hein? — Eu me sobressalto ao ouvir


uma voz diferente e só aí reparo que há um homem que não
conheço, em pé ao lado da geladeira, de braços cruzados.

As horas que passamos com Rafael, Viviane e suas filhas são


muito agradáveis. Conheci rapidamente o irmão dela, que, antes de
ir embora, disse algo sobre precisar se preparar para momentos
intensos. Eu o achei divertido e tão efusivo quanto Priscila. É claro
que meus filhos o adoraram. Ainda mais com essa aura de alívio
cômico de contos de fadas.
Depois do meu primeiro contato e as apresentações, Rodrigo
pegou Lorena no colo e assoprou sua barriga, fazendo-a dar uma
gargalhada deliciosa.

Agora a pequena está com Lex, que a entretém com


brinquedos e conversas. Ela responde balbuciando e ele segue
falando, como se compreendesse os sons da bebê.

Meu coração se aperta mais uma vez ao ver o amor que as


crianças têm por Lex e o quanto ele retribui o sentimento. É difícil
não pensar em como teria sido se não tivéssemos nos separado.

— Lex te contou sobre a Villa Encantada? — Viviane me


pergunta.

— A ONG que sua família administra? Ele me contou algumas


coisas e me mostrou o site. É um projeto incrível.

— Os créditos são da Fernanda e do marido dela, o Lucas,


primo do Rafa. E, é claro, do vô Fernando. Não tem como projetos
desse tipo funcionarem bem sem muito dinheiro envolvido.

— Não seja modesta, Vivi. — Lex acomoda Lorena na outra


perna antes de continuar. — Você também faz parte disso.

— Eu assumi no começo do ano. Depois do que aconteceu


com o Lucas, a Fê precisava estar com ele durante o processo de
recuperação.

— Nem me lembra disso. — Rafael acrescenta e percebo


preocupação em sua voz. — Ele ainda precisa se cuidar. Vai precisar
sempre se cuidar. Aquele coração foi estraçalhado. — Sua voz está
emocionada.

Não pergunto nada. Sei, por Lex, que o coração de Lucas foi
estraçalhado de forma literal. É um milagre que ele esteja vivo. Foi
até reportagem no Fantástico. É tão curiosa essa ligação. Vó Lucinda
passou meses acendendo uma vela para “o moço da notícia” e ele
era amigo do Lex.

Rafael apoia as mãos no balcão ao lado da churrasqueira.


Viviane vai até ele e o abraça por trás, apoiando a cabeça nas costas
dele.

— Está tudo bem, amor. Lucas está bem. Ele está se


cuidando. O Vicente fez um bom trabalho e, agora que ele está
morando aqui, fica ainda mais fácil para acompanhar o Lucas.

— Eu sei. — Ele se vira e a beija nos lábios. — Vicente é o


primo mais velho da Viviane. — Ele me explica. Isso é muito
atencioso da parte dele, porque eu não esperava explicação alguma.
— Ele é cardiologista. Ele costumava ser um super-herói que viajava
pelo mundo salvando vidas, no Médico sem Fronteiras. Voltou a
morar no Brasil, depois daquilo tudo. Eu nunca vou esquecer que ele
salvou a vida do meu primo. Se o Vicente quiser a lua, eu dou um
jeito de buscar e entregar com um laço ainda.

Dando mais uma olhada no marido, que agora tira o pão de


alho da churrasqueira, Viviane volta a se sentar.

— Então, sobre a Villa Encantada... — Ela retoma o assunto


que acabou levando para a situação dramática. — A Clara está na
direção, por enquanto. Oficialmente, ela trabalha na agência do vô
Fernando, mas a Fernanda acabou de ter o João Pedro e estou
retomando aos poucos agora que a Lorena chegou aos seis meses.

— Eu já te falei que posso cuidar das meninas por tempo


integral, gata. Ainda não sei no que trabalhar e o dinheiro da venda
da sociedade nos mantém bem e sobra para investir em outra coisa.
— Rafael se aproxima com uma bandeja com pedaços de pão de
alho. — Molecada! — Ele fala alto, chamando as crianças, e olho
automaticamente para Giulia, que continua ressonando de forma
tranquila.
Meus filhos vêm correndo com Priscila. Eles estão rindo como
se fossem velhos amigos. Troco um olhar com Lex, que sorri. Viviane
tenta pegar Lorena e ele não deixa.

— Come, Vivi. Tô de boa com ela.

— Eu vou comer e depois vou buscar a cadeirinha com os


bibelôs dela. Já já Lorena acorda e esse colo será pequeno para
tantas crianças querendo ficar com o tio Lequi.

— Vou buscar a cadeirinha e pegar suco para as crianças na


geladeira da cozinha. Esqueci de trazer pra cá. — Rafael avisa e
desaparece antes que Viviane possa impedi-lo.

Dou uma mordida no pão de alho. É bonito ver como Rafael e


Lex, que é apenas o tio, assumem a responsabilidade pelas
crianças, não sobrecarregando Viviane. Com Samuel tive ajuda da
vó Lucinda, mas com Bruno... nossa, não quero nem lembrar.

— Quer ir à Villa Encantada comigo amanhã? — Viviane


pergunta ao mesmo tempo em que Rafael aparece com a cadeirinha
e uma jarra de suco. Ela pega a cadeirinha e ele dá suco para as
crianças. Antes de estender os braços para pegar a bebê do colo do
Lex, ela me olha.

— Claro. — Respondo com mais certeza do que sinto.

— Você é muito bonita. — Priscila fala, chamando minha


atenção.

— Obrigada. Você também é.

— Eu sei. Papai sempre diz que sou a mais bonita de todo o


multiverso. — Ela joga o cabelo para trás.

— Igual suas irmãs. — O pai acrescenta.

— Sou a mais velha, então sou a mais bonita por mais tempo.
— Ela dá de ombros. — Também sou a mais sabida. — Acrescenta
de novo olhando para mim.

— Ser sabida é muito importante. — Respondo sob o olhar


fixo da menina. — Mais importante até do que ser a mais bonita.

— Eu sei, eu sei. Mamãe e papai sempre dizem isso. — Ela


bate o dedo no queixo. — Posso fazer uma pergunta?

Rafael e Viviane se encaram rapidamente e voltam à atenção


para a conversa. Tenho filhos pequenos então é fácil reconhecer o
desespero dos dois. Nunca se sabe o que uma criança vai dizer.

— Pode. — Respondo, compartilhando o receio, mas não


posso ser grosseira com a menina.

— Que ótimo! — Ela fecha a mão e comemora, depois fica


bem séria. — Quais são suas intenções com meu tio?

Aperto os lábios. Sei que é coisa de criança, sei até que ela
pode nem saber direito o que isso significa. Pelo jeito que Viviane
está vermelha e Rafael cruzou os braços na minha direção é
evidente que ela os ouviu falando sobre isso.

É compreensível. Lex é muito amado. Eu sou uma estranha


que desapareceu por quatro anos e reapareceu com um filho que
pode ou não ser dele. Se houvesse um jeito da situação se inverter,
vó Lucinda e meus meninos, que também aguardam a resposta,
fariam o mesmo. Eu me rendo e respondo:

— As melhores possíveis.

Priscila franze os olhos.

— Isso é bom, mas um pouco... como é aquela palavra que


diz que falta alguma coisa na explicação? — Ela pergunta olhando
para o pai.

— Vago? Genérico? Uma saída pela tangente? Não o


suficiente? — Com certeza, a resposta de Rafael dá mais do que
apenas sinônimos para a filha.

— Eu não sei o que é genérico nem tangente, papai, mas


acho que não o suficiente serve, mas como diria o biso, “isso serve,
por enquanto”. — Ela pisca os dois olhos para mim e acrescenta,
sussurrando com uma das mãos ao redor da boca. — Eu não sei
piscar igual o biso, então você vai ter que imaginar. E agora vamos
brincar! — Ela dá um gritinho e sai correndo com meus filhos ao seu
encalço.

Quando ela se afasta, Rafael diz:

— Desculpa por isso. Sabe como são as crianças, né?

— Você está pedindo desculpa com sinceridade ou porque


sabe que tem culpa no cartório? — Viviane o questiona.

— Peraí, mulher! Você está querendo dizer que eu falei para a


Pri perguntar aquilo? — Ele puxa o ar fazendo barulho e coloca a
mão no peito, parecendo muito ofendido.

— Talvez indiretamente. — Viviane não desiste.

Por um instante, tenho medo de presenciar uma briga, mas é


só olhar para Lex e vê-lo sorrindo para deixar claro que é apenas
uma dinâmica do casal.

— Que calúnia! Ô Deus, como se não bastasse essa mulher


me deixar de castigo, agora me calunia. Vou ter que chamar minha
advogada, senhora?

Um resmungo nos chama a atenção e Giulia se senta


coçando o olho.

— Papai tá cagado?

Os três adultos contêm uma risada.


— É encrencado, meu anjo. Encrencado. — Para a criança
saber, acho que Rafael fica cagado com certa frequência. — O papai
estava imitando o biso. — Viviane explica, olhando para o marido,
incapaz de ficar zangada.
Capítulo 29

I wanna taste you again


Like a secret or a sin
Breathin' out breathin in
There is no one else for me
But you
Only you[7]
Matthew Perryman Jones - Only you

— Não querendo bancar o advogado do diabo — Eu


digo, assim que os meninos dormem no banco de trás do carro —, o
Rafael não pediu para a Pri falar aquilo. Por mais que ele esteja, de
fato, interessado em saber suas “intenções comigo” — solto uma
mão do volante para fazer aspas —, ele não usaria a filha.

— Eu imaginei que não. Meus meninos me fizeram passar


cada vergonha.

— Eu sei que o Rafa ter levado a Pri para a missão secreta da


Fada Azul, que era encontrar você, depõe contra ele, mas era algo
mais lúdico para ela. O Rafa achou que ajudaria você a não se
assustar com dois homens te procurando. Ela sequer sabe que você
e eu namoramos no passado.

— Do jeito que ela é boa em tirar informações, acho que


agora ela sabe. — Flávia aponta para os dorminhocos no banco de
trás. — Nossa, eles estão exaustos. Valeu pela dica de trazer uma
muda de roupa e dar outro banho neles lá antes de sairmos. Eu
ficaria com pena de acordá-los e ambos estavam grudentos de suor.

— Assim como a Pri. A Vivi me lembrou de te falar para levar


as roupas. Ela está acostumada. Todos eles fazem isso quando vão
à casa uns dos outros. Ajuda muito na volta para casa. E, às vezes,
as crianças querem ficar para dormir.

— Gostei muito de hoje. — Ela tem um sorriso leve ao dizer


as palavras.

— Fico muito feliz. Eu não intervim naquela hora, porque a


família é assim mesmo. Você viu o Rodrigo que não ficou cinco
minutos com você e já estava perguntando quanto tempo você ficaria
na cidade e se estava pretendendo morar comigo de vez. Não é por
mal.

— Você pode parar de defender sua família. Há um pouquinho


de inconveniência neles. Talvez mais que um pouco, mas acho que a
forma como todos vocês se amam e estão lá pelos outros compensa.
As crianças têm muita sorte.

— Todos temos. E vou te lembrar que me disse para parar de


defendê-los daqui uns dias, quando formos para a praia.

— Que Deus me ajude.

— Eu acho que, quando o nosso pessoal se junta, Deus fica


olhando lá do céu e se pergunta “o que será que eles vão aprontar?”.
É o caos do amor.
Chegamos em casa depois de alguns minutos e estaciono o
carro ao lado da minha moto. Flávia também está sonolenta. Aprecio
a sensação que sinto ao observá-los tão confortáveis.

— Eu carrego o Bruno e você carrega o Samuel? — Pergunto


saindo do carro. Apoio o braço no teto e me abaixo para continuar:
— Se quiser, posso levar um, descer e pegar o outro.

— Não precisa. Eu levo o Samuel.

Bruno chega a acordar e reflito se ele vai reclamar por ser


carregado, afinal tem nove anos. Ele me lança um olhar cheio de
sono, encaixa a cabeça no meu ombro e me abraça forte. Tento não
deixar Flávia perceber o quanto isso me emociona. Eu cheguei a
pensar que nunca os veria de novo.

Em casa, puxo o lençol e o edredom com uma mão e


acomodo Bruno na cama.

— Eu desejo que todos os dias sejam assim, Fada Azul... —


Ele murmura antes de voltar a dormir. Eu tiro seus tênis e o cubro.

É... Priscila encontrou novos aliados. Flávia não diz nada


enquanto coloca Samuel sobre o colchão, apesar de ser impossível
que ela não tenha ouvido. Encosto a porta e saio.
Na sala, tiro a camiseta de Rafael e pego outra, que deixei
separada. A borboleta azul aparece e me lembro da surpresa no
olhar da Flávia. Pego a bermuda para ir me trocar no banheiro
quando me viro e quase trombo com ela.

— Eu vim te agradecer pelo dia e... — Sua mão para a poucos


centímetros da tatuagem. — Por quê? — Seu tom se transforma.
Diferente de mim há pouco, ela não consegue esconder a emoção.

— Eu acho que você sabe.

— Só vou saber se você contar. — Ela pousa os dedos numa


das asas da borboleta e as batidas sob eles se aceleram. Solto a
bermuda que estava segurando e ela cai no sofá.

— Eu não sabia onde você estava, mas queria que estivesse


livre e segura. Fiz a borboleta pousar onde você passou a habitar
quando nos conhecemos e mora até hoje.

— Quando eu pensava em você, imaginava que tivesse


seguido a vida, casado e construído a família que você queria. Eu
não sabia que ainda pensava em mim. Juro que pensei que você
tinha seguido em frente.

— Eu segui em frente, pelo menos pensava que sim. E sobre


o resto... eu não sabia que minha família estava em Quatro
Estações.

— Lex...

— Está tudo bem. Você encontrou seu lugar seguro e guardou


os meninos lá. — Por mais feliz que eu tenha ficado por encontrá-los
bem e felizes, eu me ressinto por não estar por perto ao longo dos
anos, por não ter tido a chance de ver Samuel crescer.

— Eu nunca quis te machucar.

— Eu sei. Você queria se proteger, não me magoar. E isso


torna a situação ainda mais triste, porque é justo que você queira se
sentir segura, mas...

— Eu também estaria segura com você.

— Estaria e sempre estará.

— Me desculpa. — Seus dedos acariciam a borboleta.

— Não se desculpe. Não é sua culpa. Ainda não sei de quem


é, mas sei aqui — coloco minha mão sobre a sua —, que você não
teria partido se pudesse evitar.

— Não teria. Eu jamais te deixaria.

Encosto minha testa na sua e uso a mão livre para deslizar


sobre seu ombro. Seu olhar está fixado no meu. Sua respiração se
mistura a minha por longos segundos. Resisto o quanto posso até
que pergunto:

— Posso?

Ela assente, calada.

— Você precisa dizer. Não quero que sinta que sou mais um a
te caçar. Eu sou aquele que vai te servir. Então, diga, Mor.

— Eu quero que você me beije, Lex.

Não espero mais nada e toco os lábios de Flávia com os


meus, apenas um resvalo, um carinho, seguido de outro com um
pouco mais de pressão. Sua mão se acomoda em minha cintura.
Seus dedos frios me revelam os medos ainda presentes. Inspiro
profundamente, lembrando-me de que não sou eu a quem ela teme e
dando-lhe tempo para processar o mesmo. Aguardo que me indique
que posso prosseguir para ajudá-la na jornada de se libertar outra
vez e não precisar mais temer.

Minha boca se abre para a sua e murmuro:


— Você é quem manda. Você decide a intensidade e o quanto
quer de mim, Mor.
Capítulo 30

Quantos encontros cabem numa vida?


Quantas vidas pra viver?
Quanto chão pra caminhar?
Quantos sóis nós vamos ver nascer?
Mundos vão ruir
Curas vão surgir
E nós dois aqui
ANAVITÓRIA - Selva

Ouvir Lex me chamar de “Mor” depois de tanto tempo


remexe minhas emoções como um farfalhar de asas dentro do peito.
Um voo tranquilo para casa, para o peito desse homem, como sua
representação em forma de tatuagem expõe. Se alguém o ouvisse,
além de mim, pensaria que ele está usando uma versão resumida de
“amor”, mas não é isso. “Mor” vem de Morpho, a borboleta azul.

O modo como ele me deixa livre para ir faz com que eu queira
ficar. A forma como ele espera minha ação para cada passo desperta
uma sensação de liberdade que me faz mover minha mão para suas
costas, trazendo-o mais para mim.

Seus lábios dançam com os meus pacientemente à espera.


Não resisto e deixo minha língua partir em busca da sua. Lex me
suga devagar como se apreciasse cada parte minha, como se
soubesse que tem todo tempo do mundo porque não vou a lugar
algum.
Minhas pernas tremem tanto que sinto medo de cair e me
agarro mais a ele. Lex percebe. Ele percebe tudo sobre mim. Ele dá
alguns passos para trás, sem me soltar, e se senta no sofá,
acomodando-me sobre ele, com um dos meus joelhos de cada lado
do seu colo.

As bocas não se desconectam. As línguas se buscam, se


esfregam, se acariciam. Elas se ressentem por terem sido separadas
por tanto tempo.

Eu quero mais, quero muito mais.

Sua ereção crescendo abaixo de mim faz com que eu


congele. Droga.

— Não. — suplico.

Lex para no mesmo segundo. Seus olhos estão inebriados de


desejo e ele não hesita em parar. É o suficiente para que minhas
lágrimas jorrem.

— Ei — Ele enxuga meu rosto e me puxa para ele, ajeitando-


me em seu colo até que meu corpo fique aninhado como ele faz com
as crianças, querendo me mostrar que não há perigo algum. —
Estou aqui, estou aqui.

Não há mais nem sinal da ereção e permito que meu corpo


amoleça, aconchegando-me a ele, antes de dizer:

— Me desculpa.

— Pelo que, Mor?

Ouvi-lo me chamar assim, depois do banho de água fria que


dei nele, enternece meu coração.

— Por não conseguir me entregar. Eu ainda te amo. — Meu


tom é enfático. Ele precisa saber. — Você é o único homem que
amei e, mesmo assim, não consigo...

— Comigo está tudo bem.

— Como pode estar?

— Porque está.

— Você sabe o que aconteceu, não é? — Não tenho coragem


de dizer.

— Eu imagino.

— Eu não queria. Tentei fugir, eu juro. — Não estou olhando


para ele. Mexo a cabeça para esconder mais meu rosto em seu
peito.

— Eu sei. Sinto muito por não estar lá. Sinto muito mesmo.
Vou passar a vida lutando para você ficar bem de novo.

— E se eu não ficar? Estou empatando a sua vida. Ainda mais


ficando aqui. — Digo porque preciso, mas a verdade é que não
quero ir.

— Eu sou livre para ir, lembra? E escolho estar com você.


Escolho ser paciente e te acolher como precisa. Escolho te ouvir, ler
seus sinais e entender como posso te ajudar. Escolho não desistir de
você. Você merece ficar bem. Vamos trabalhar nisso. — Ele acaricia
minhas costas durante toda a fala e não me força a olhar para ele.

— E se demorar muito? — Estou com medo.

— O amor é paciente. Eu sou paciente e amo você, Mor.

“E se o amor não for suficiente?”, as palavras ecoam em meus


pensamentos, mas não as reproduzo verbalmente. Isso o magoaria.
Fui partida, destruída, agredida, estuprada, ameaçada. Lex não sabe
e não quero contar que meu estuprador disse que o mataria. Eu não
poderia arriscar a vida do Lex.
Duas lágrimas pingam no dorso da minha mão. Não preciso
mexer a cabeça para saber que Lex está chorando comigo. Eu me
colo ainda mais a ele, protegida em seus braços. Sinto seu beijo em
meus cabelos em um pranto silencioso, torcendo para dar vazão à
dor e a afastar um pouco de mim, de nós.

O cheiro do perfume de Lex é a primeira coisa que sinto ao


acordar no meio da madrugada. Ele está acordado. O rosto vermelho
e inchado pelas lágrimas.

— Você deve estar todo dolorido. — Eu me movo para sair do


seu colo e ficar em pé.

— Um pouco, mas você vale cada segundo. — Ele se levanta


devagar, sua perna parece estar dormente.

— Por quanto tempo dormi?

— Não foi muito. Uma hora mais ou menos. — Lex se estica


todo. — Vou tomar um banho quente pra ver se o corpo relaxa. Você
deveria fazer o mesmo. No outro banheiro. — Acrescenta rápido.

— Farei isso. — Observo a borboleta em seu peito e meu


corpo estremece com a lembrança do que fizemos.
Antes de perder a coragem, fico na ponta dos pés e dou um
beijo rápido em seus lábios.

— Obrigada. — Não preciso entrar em detalhes. Ele sabe.

— Sempre aqui, Mor.


Capítulo 31

As long as you got me


And I got you
You know we got a lot to go around
I'll be your friend
Your other brother
Another love to come and comfort you[8]
Jason Mraz – Song for a friend

— Que barra, cara. — Rafael coloca a mão no meu


ombro, depois de me ouvir falar sobre a noite de ontem e do fato da
Flávia ter sido estuprada. — Vem cá, irmão. — Ele me puxa para um
abraço.

Estamos em pé, na sala da casa dele. Não consigo me sentar


e falar desse assunto como se fosse algo corriqueiro. Giulia e Lorena
estão dormindo. A Priscila foi com a Viviane, Flávia e os meninos à
Villa Encantada.

Pensei muito antes de contar ao Rafael. Sei que é direito da


Flávia decidir quem deve ou não saber disso, mas, quando ela
desapareceu compartilhei com ele meus receios sobre algo assim ter
acontecido. Sem contar que eu não estou sabendo como lidar com
essa certeza, sem contar a ela o que também escondo. Por ser o
único que conhece minha história na íntegra, Rafa pode me dar uma
luz.
Eu sei que da mesma forma que ele protege meus segredos,
protegerá os dela.

— Ela vai denunciá-lo? — Ele pergunta.

— Eu não perguntei, mas acho que não. Ela estava morrendo


de medo, Rafa.

— E se a gente fosse atrás do cara? — Meu amigo sugere. —


Podemos acabar com ele.

— Não podemos.

— Qual é? Qualquer um dos caras toparia. Até o mauricinho


do Bernardo. Cara, até a Branca.

— Não é porque não quero. Eu quero muito.

— Então, bora, mermão. Se combinar direitinho a gente vai e


volta antes da viagem para a praia. Você sabe que não parto pra
porrada com qualquer cara, mas esse merece. Em minha defesa,
todos em quem bati mereceram. — Sua expressão sombria me faz
lembrar nas noites que ele passou na cadeia por causa das duas
surras que deu no cara que causou o acidente que matou sua irmã,
os tios e o primo de dez anos.

— Tirando o Bernardo. — Acrescento porque sei que ele vai


ficar puto e nesse momento é melhor puto do que triste.

— Eu acho que o Bernardo mereceu. — Ele diz e eu o encaro


com as sobrancelhas erguidas. — Tá. É possível que ele não tenha
merecido, mas aí cabe interpretação dos fatos, mas o filho da puta
que fez aquilo com a Flávia merece.

— Merece, mas não sabemos quem é ele e não seria bom


para a Flávia que eu partisse para vingá-la. Eu nem sei se ela vai
superar, mas acho que um caminho para isso é que ela se sinta
segura. Se quando descobrir quem é o cara, ela quiser fazer algo, eu
vou.

— Faz sentido. Não farei nada.

— Vou considerar isso como a sua palavra, porque quando


você ficou sabendo do que o sobrinho da madrasta da Clara fez com
nossa amiga na adolescência, você descobriu onde o cara
trabalhava, foi até lá com o megafone, anunciando que ele era um
estuprador e desceu o cacete no cara em um escritório cheio de
gente, enquanto o Lucas e o Rodrigo pichavam o carro daquele
escroto. Foi preciso quatro seguranças para te segurar.

— Eu não me arrependo. Ele quase acabou com a vida da


Clara. Não lido bem com isso, você sabe.

Sim, eu sabia. E sei ao que ele se refere, mesmo que não


diga todas as palavras.

— Eu sei. Qualquer pessoa sã não lida bem com isso, mas


você só não se ferrou porque a Branca descobriu mais vítimas no
escritório dele, colou no cara dizendo que o colocaria na cadeia por
estupro e que ia acabar com a vida dele. Ele fugiu. Mudou de país.

— Eu aprendi a lição e agora só participo de brigas se minha


advogada estiver presente. Ninguém se feriu, além daquele maldito.
Mas fica tranquilo, não vou me envolver antes de saber o que Flávia
quer fazer.

— Obrigado.

— Não por isso, irmão.

Passo a mão pelos cabelos, bagunçando-os, impaciente. Não


consigo parar quieto.

— Tá foda, Rafa.

— Como você está com tudo isso?


— Sei lá, tô sentindo um monte de coisa misturada. O que ela
passou, o fato de eu não ter estado lá para impedir, o fato de ela
precisar que eu estivesse lá, porque um filho da puta decidiu que o
corpo da Flávia não era dela.

— Tudo isso acarretou em você ficando quatro anos longe da


sua família.

— Isso é pequeno perto do que ela passou.

— O que ela passou é incomparável, mas não estou falando


para comparar dores. Não é porque a dor da Flávia é sem tamanho,
que a sua não doa. Ainda mais, depois de tudo...

— Claro que dói em mim.

— De novo, a dor dela dói em você. Eu entendo. Não quero


nem pensar no que eu faria se fosse com a Vivi. Mas vamos focar na
sua dor agora.

— A Viviane está dizendo o que você precisa falar com um


ponto no ouvido?

— Ah, que gracinha. Tão comédia.

— Relaxa, Rafa. Eu entendo o que está dizendo. É que com


tudo isso que ela passou, como posso pensar em mim?

— Meu amigo, também pensar em você, apesar do que ela


passou, é a base de um relacionamento saudável. Ou você não se
lembra do Bernardo malzão porque não conseguia fazer a Clara
deixá-lo se aproximar emocionalmente por causa dos traumas que
ela passou.

Eu lembro. Inclusive, Bernardo e Clara foram os únicos que


conheceram a Flávia enquanto namorávamos, em uma das suas
viagens para o Rio de Janeiro.
— O que quer que eu faça?

— Sabe quando você me disse que eu tinha problema de


controle de raiva e você estava certo?

— Sei. — Não entendo aonde ele quer chegar.

— Agora é você que tem problema de controle de raiva.

— Como assim? — Eu sou o cara mais calmo que ele


conhece.

— Eu a deixava sair e explodia tudo ao redor. Você não a


deixa sair e explode tudo aí dentro. — Toca meu peito com dois
dedos. — Lembra como era quando éramos crianças?

— Esses dias eu pensei sobre nós dois e a comparação foi


exatamente essa. — Nossa ligação ainda me surpreende.

— Pensando em mim, é? Você sabe que sou casado, não


sabe?

— Você é muito babaca.

Ele dá risada antes de continuar.

— Continuando... — Rafael volta a falar. — Cara, você precisa


colocar para fora. Me xinga, briga comigo, se for o caso, mas não
guarda tudo pra você.

— Você quer que eu te bata?

— Essa é uma possibilidade, se te ajudar, mas se você deixar


sair o que está trancando aí, vai se sentir melhor do que se me bater.
— Ele me mostra a palma das mãos.

Rafael está certo, mas não sei bem como lidar com tudo isso,
então confesso:
— Eu tenho medo de deixar sair e não conseguir controlar.
Não vi meu filho crescer, Rafa. Se você não tivesse ido atrás, eu
nunca iria. Talvez eu nunca soubesse da existência do Samuel.

— É por isso que estou aqui, para fazer coisas que vocês
precisam, mas não sabem ou não podem fazer.

— Você tá ficando igualzinho ao Sr. Fernando.

— Você está falando isso porque quer que eu comece uma


briga, Lex? Minha advogada não está presente, não vai rolar.

— Quem está sendo engraçadinho agora? Qual é o seu


conselho?

— Vai para o estúdio, se fecha lá e deixa sair. Talvez, no meio


de tudo, você sinta raiva dela. Está tudo bem sentir raiva dela. Isso
não quer dizer que você a ame menos. Você não pode brigar com
ela, porque vai colocar mais culpa nela e ela não merece isso. Nós
sabemos que ela teve um motivo para partir, mas se você guardar a
raiva, um dia vai explodir e aí numa briga boba vai deixar sair e ela
ficará magoada, com razão, afinal vocês nunca tiveram a chance de
falar sobre.

— Cara, isso foi muito específico.

— É, meu amigo. Vida de casado precisa de muita conversa.


Agora vai lá para o estúdio. Vou ficar aqui com as meninas, mas se
precisar, me chama, que eu levo a babá eletrônica. Se fecha lá
dentro e se precisar gritar, grita. Eu fiz muito isso quando o Lucas
estava no hospital. E o Lucas usou antes para lidar com aquilo tudo
que o acabou levando para o hospital. Esse vai ser nosso quarto do
grito. Igual em Grey’s Anatomy.

— Você está assistindo a temporada nova sem mim, Rafael?

— Eu jamais cometeria uma traição dessas. — Ele se faz de


ofendido. — Para de desconversar e vai para o estúdio deixar o Hulk
sair.
Fecho a porta do estúdio de música do Rafael e acendo a luz.
O ar condicionado começa a funcionar. Olho para as quatro paredes
à volta. O lugar é parecido com o que tenho em casa, mas não há
um piano. No lugar dele, há um saco de areia. Rafael colocou um na
época em que o Lucas e a Fernanda se apaixonaram, mas não
podiam ficar juntos.

Passo o dedo sobre o prato da bateria e o som ressoa


baixinho. Eu me aproximo do saco e o toco com uma mão. Já vi o
Lucas e o Rafael descontarem seus problemas e frustrações nele.
Nunca me atraiu. Bater nas coisas não é a minha praia. Talvez
porque quando eu era criança fui o saco de pancadas antes de
conhecer o Rafa.

— Será que gritar resolverá alguma coisa? — Reflito. — Bom,


tentar não vai me matar.

Porém, tento e a voz não sai. Sinto vergonha. Lembro dos


gritos da minha mãe. Minha respiração está tranquila, inabalável.
Não deveria, certo? Eu não deveria ficar calmo ao me lembrar da
violência que sofri enquanto crescia.

Não gosto de me lembrar do que me aconteceu. Não gosto de


me lembrar das consequências. Não gosto de me lembrar do quanto
me senti sozinho e com medo.
Violência. Flávia. Sinto culpa por não estar lá. Eu sei que –
assim como eu – ela guarda segredos sobre a violência sofrida.

— Se eu estivesse lá, ela não teria sofrido. Se o homem que


a... — A palavra queima na minha garganta. — O homem que a
estuprou. — Eu grito, acertando o saco. Um grito repleto de raiva.
Uma raiva sanguinária. Eu o arrebentaria, se o encontrasse. Eu
poderia matá-lo.

Grito. Grito. E grito de novo. O ruído é grave, sai me rasgando


por dentro. Dou um murro no saco de areia. Mais outro. Grito.

Soco. Soco.

Grito.

Soco. Soco.

Raiva.

Soco. Grito.

Não sei quanto tempo se passa. Minha camiseta está


empapada de suor. Minhas mãos estão dormentes. Minha voz está
rouca. Tanta dor que poderia ter sido evitada.

Flávia não queria.

Eu não queria.

Era só uma criança.

Eu não estava lá quando ela era criança.

Eu não pude protegê-la assim como não pude proteger a mim


mesmo.

As lágrimas caem em um pranto forte. Soluços chacoalham


meu corpo. Não há mais voz para gritar. O peito dói assim como o
coração se acelera.

Preciso de ar.

Abro a porta, respirando de forma acelerada. Rafael está lá,


parado com a babá eletrônica nas mãos.

— Vem cá. — Ele diz enquanto se aproxima com os braços


abertos.

Ele me abraça como um urso, forte o suficiente para que meu


corpo pare de tremer. O Rafa conhece minha história. É o único que
a conhece. Ele fez dele o meu segredo. É por isso que eu sei que
posso contar com ele para tudo. Ele soube ainda menino e decidiu
que se eu não havia sido protegido até então, eu seria dali em
diante. Acho que é por isso que ele se envolve tanto. Somos adultos
agora e não preciso que me proteja, mas ele não vai parar.

Um dia seremos velhinhos e, se alguém me olhar torto, o


Rafael vai partir para cima do cara com sua bengala.

— Nós vamos resolver tudo, ok? — Ele me diz a frase que eu


já disse várias vezes para ele. — É foda e não deveria ter
acontecido, mas vamos dar um jeito. Lembra como nos chamavam
quando éramos moleques?

Eu interrompo o abraço e vejo os mesmos olhos sinceros que


vi há mais de vinte anos. Respondo:

— Os imbatíveis, mas era porque você batia nos caras antes


que eles nos acertassem primeiro. Aí éramos literalmente imbatíveis.

— Rapaz, me ajuda a te ajudar. Esquece o literalmente e foca


na essência. O que nós somos, Lex?

— Imbatíveis. — Meu tom de voz é baixo.

— O quê? Não ouvi nada. Cadê a convicção? Fala que nem a


Priscila defende que não é hora de dormir.
— Somos imbatíveis. — Digo, com firmeza.

— Isso aí! Somos imbatíveis, porra!

De algum jeito, isso me acalma. Enfrentamos tanta coisa e


conseguimos ficar bem. A respiração volta ao normal. Ainda sinto
raiva, mas ela não está mais me consumindo.

— Você estava certo. — Afirmo, enxugo o rosto.

— Ah, que novidade. — Ele franze a testa e me tira um


sorriso. — Mas em que parte?

— Babaca. — Provoco.

— Um babaca que estava certo. — Ele toca meu ombro e eu


o acompanho de volta para casa. — Vamos lá. A Giulia está
acordando. — Balança a babá eletrônica. — Lá se foi nossa
maratona de Grey’s.

Quando chegamos ao quarto das duas meninas mais novas,


Giulia está sentada na cama. Ela estica os bracinhos para o pai, que
a pega e beija sua bochecha.

— Minha pequena dormiu bem? — Pergunta.

— Sim, papai. — Ela mantém os olhos fixos em mim. — Fez


dodói?

— Fiz dodói, Gigi, mas já vai sarar. — Eu me aproximo para


acariciar seu rosto.

— Beijinho. — Giulia me puxa e beija minha testa, depois


ergue as mãozinhas e diz: — Meió? — Ela me pergunta se estou
melhor. Como fazemos com as crianças quando elas estão
brincando e acabam chorando, mas sem se machucar, de fato.
— Olha só. Estou melhor, Gigi. Você é encantada! — Minha
resposta gera uma risada gostosa.

Mas é Rafael que consegue me fazer acompanhar com um


sorriso ao dizer:

— Poxa, Gigi, se soubesse que um beijinho seu resolveria


todos os problemas, tinha te acordado.

— Eza, eza! — A pequena se agita.

— É, parece que vamos trocar Grey’s por Frozen. — Bagunço


os cabelos da pequena.

— Se houver alguma fada que cuida dos pais que assistem


desenhos em repeat com as filhas, essa é a hora de nos ajudar. —
Rafael finge desgosto.

— Não é você que vai ser pai em tempo integral? — Provoco.

— Ô Lex, dá uma olhada no negócio que caiu aqui atrás de


mim. — Ele aponta com a mão para trás das costas.

Nem sei por que levo a sério e vou ver. Lá está sua mão, com
o dedo do meio erguido.
Capítulo 32

Disfarça e segue em frente, todo dia, até cansar (uhu!)


E eis que de repente ela resolve então mudar
Vira a mesa, assume o jogo, faz questão de se cuidar (uhu!)
Nem serva, nem objeto, já não quer ser o outro, hoje ela é um
também (uhu!)
Pitty – Desconstruindo Amélia

Ao chegar à Villa Encantada, sou surpreendida por um


portão pintado com as cores do arco-íris. A ONG é tão colorida que,
a princípio pode-se sentir como se estivesse entrando em um conto
de fadas.

Viviane me explica que Fernanda e Lucas são os


responsáveis pelo design do projeto e que acrescentaram André,
namorado da neta da Vó Lucinda, para cuidar do paisagismo. Do
jardim que ele projetou e executou, eu havia visto fotos, mas ao vivo
é ainda mais exuberante. Há mulheres e crianças cuidando da horta.
André está de joelhos, mostrando a um garotinho a como replantar
uma muda. Ele se levanta assim que me vê.

— Quando imaginaríamos essa conexão? Lex e eu somos


grandes amigos há mais de uma década. — Ele limpa as mãos sujas
de terra no avental, antes de estender uma para mim. — Há coisas
que são para ser.
Nós trocamos mais algumas palavras e depois nos
despedimos para que possamos nos encontrar com Clara. Priscila e
os meninos pedem para ficar com ele e brincar no jardim. Até
voltarmos à vida de Lex, André era um dos poucos homens com
quem eles tinham contato mais frequente. Eles o adoram.

André é um homem muito educado, gentil e solícito. Vó


Lucinda me contou que ele reformou todo o jardim da casa, quando
começou a namorar sua neta. Ele se apaixonou pelo paisagismo de
Quatro Estações. Reconheço que a prefeita fiscaliza tudo com muito
esmero, mas o responsável por aquela beleza toda é Oz, filho de
Rosalinda.

— Que bom ver vocês. — Clara surge no pátio. Eu a vi uma


vez e percebo que ela me reconheceu pelo olhar, mas ela não
corrige Viviane quando esta nos apresenta.

— Oi, Clarinha! — Viviane a abraça.

Clara me guia pelos andares do prédio, explicando o que é


cada setor.

— Atualmente recebemos trinta e cinco pessoas que se


identificam como mulheres, além de seus filhos. Também temos as
portas abertas para jovens menores de idade que precisem de
proteção. É mais complexo, porque o conselho tutelar quer leva-las
para outros lugares, mas nosso responsável pela assistência social
cuida dessa parte. Ele é o Paulo. Você deve conhecer. É irmão da
Luiza. Outra coincidência do destino que a Villa Encantada nos
proporcionou.

Assinto e sigo elogiando o local. Se eu tivesse um lugar assim


para ir quando era criança, talvez tudo fosse diferente.

— Isso é incrível. Há tanto zelo em cada detalhe.

— Fernanda e Lucas foram muito cuidadosos. E a Villa


Encantada se tornou a menina dos olhos do vovô. — Viviane
acrescenta. — Ele comprou mais duas casas e o terreno vizinho,
porque quer expandir.

— Seu avô é parte fundamental do que fazemos. — Clara


acrescenta. — Sem o Sr. Fernando e os empresários que ele traz
para financiar o projeto, nada disso seria possível. Nós acolhemos
essas mulheres, ensinamos uma profissão, caso não tenham
nenhuma. Quando elas conseguem um emprego, encontramos um
lugar onde possam ficar em segurança e as acompanhamos de perto
por um tempo. Quando elas se recuperam e estão seguindo bem a
vida, aumentamos o intervalo, mas seguimos acompanhando.

— Isso é incrível. — Observo o dormitório. — Me deixa feliz


saber que essas mulheres têm a quem recorrer quando... — Fico em
silêncio, tendo dificuldade de completar a frase. Odeio me pegar
nesses momentos. Eles são mais recorrentes agora que me
reaproximei de Lex e preciso lidar com o passado.

Sem muito estardalhaço, Clara segura minha mão. Eu sei


sobre sua história, mas ela não sabe da minha. Lex me disse que
tudo o que ela sabia era que nós já namoramos. Então por que seu
olhar reflete acolhimento? É como se ela soubesse o que aconteceu
comigo.

Uma mulher passa, me olhando de soslaio, encolhida. Clara a


observa ir em direção à sala de artes.

— Jéssica chegou ontem. É difícil confiar quando quem


acreditamos nos amar nos machuca. — Clara fica reflexiva e depois
me olha outra vez. — Mas é possível, quando se tem uma ajuda
psicológica e uma rede de apoio, é possível.

Acho que compreendo melhor agora o seu jeito de olhar. Uma


mulher que foi ferida reconhece a outra.
Capítulo 33

Esta família é muito unida


E também muito ouriçada
Brigam por qualquer razão
Mas acabam pedindo perdão
Dudu Nobre – A grande família

É a noite anterior à viagem e lá vou eu para a conversa


mais constrangedora que já tive nessa família.

— Eu reuni vocês aqui hoje para informar que... — Peço ajuda


a todos os seres divinos ao ser observado por uma boa quantidade
de Villas, Albuquerques e agregados. — Eu vou levar minha
namorada na viagem. — Flávia e eu conversamos e decidimos que,
independente do que vá acontecer entre a gente, é melhor
apresentá-la assim ou eles fariam mais perguntas ainda.

— Que felicidade! — Vó Lorena diz, com a mão no peito.

— Olha só. — Bernardo sorri.

— Assim do dia pra noite? — Branca questiona.

— Nunca imaginei que esse dia chegaria. — O safado do Sr.


Fernando não engana ninguém ao fingir surpresa.
— Precisava reunir todo mundo pra isso? — Mila argumenta,
sonolenta, provavelmente veio direto de um plantão.

— Por que é que eu estou aqui? — Vicente reclama, ranzinza.


Eu poderia me fazer a mesma pergunta, afinal podemos classificá-lo
como o Villa mais discreto de todos.

— Lex disse que era para chamar toda a família. — Vô


Fernando se intromete, no mesmo tom de Vicente. — Você é da
família pelo que me lembro. Ou será que estou gagá?

— Eu poderia enumerar os motivos pelos quais o senhor


poderia se enquadrar em gagá, vô. — Vicente provoca. — Sabe que
eu não gosto desses dramas.

— Ah, mas do meu dinheiro todo mundo gosta. — O Sr.


Fernando é muito sensível quando a questão é drama.

— Eu não uso o seu dinheiro. — Vicente balança a cabeça


sem entender e se levanta. — Tem que falar isso para os seus outros
netos, que vivem de mesada.

Todos os netos começam a discutir, tentando provar que não


vivem do dinheiro do avô. É uma história complexa, porque apesar
de trabalharem, eles não gostam do estigma do privilégio. Quer dizer,
eles reconhecem seus privilégios, mas ficam putos quando alguém
joga na cara. É basicamente um white people problem.

Rafael dá um assobio alto e o único que permanece falando é


Rodrigo.

— Eu uso mesmo e não estou nem aí. — Dá de ombros. — E


digo o mais, se eu recebo dinheiro do meu avô é porque eu mereci.
— Ele imita o tom de voz da menina do meme, que tenta justificar
seus privilégios.

Reviro os olhos, mas agradeço. Rodrigo consegue acalmar os


ânimos.
— Posso ir embora? — Vicente pergunta. — Ainda tenho uma
cirurgia para fazer antes de poder viajar.

— Se ele pode ir, eu também posso. — Mila aproveita. — Dei


plantão, meu dia foi uma merda e meu chefe me persegue. — Ela
bufa.

— Eu não te persigo coisa nenhuma. Olha o tipo de merda


que você fala. — Vicente se defende. — Imagina se alguém do
hospital ouve isso.

— Está vendo alguém do hospital aqui? — Ela desdenha.

Ninguém está dizendo nada, porque é óbvio que todos estão


se concentrando na conversa. Mila e Vicente não se suportam.

— Você não pode falar comigo assim. Essa atitude é a prova


do por que não posso dar a você nenhum privilégio no hospital. —
Vicente olha para a Mila como se ela fosse uma criança reclamando.
Não é à toa que ela fica brava.

— Eu posso falar com você do jeito que eu quiser. O Vicente é


meu chefe aqui, vô Fernando?

— Não é, não. — O Sr. Fernando prontamente a defende. O


que apenas gera mais rusgas entre ele e o neto, mas o velho sempre
defende a Mila. Até se ela estiver errada, ele vai procurar um meio
de provar que ela está certa. — Aqui ele é meu neto.

— Ah, desisto. — Vicente levanta as mãos, irritado.

— Mas você vai para a casa de praia, não é, querido? — Vó


Lorena fala algo pela primeira vez.

— É claro, vó. — Vicente muda completamente o tom de voz.


Agora é puro carinho. — Devo chegar à noite porque preciso dormir
depois da cirurgia, mas vou. Te mando mensagem antes de pegar a
estrada. Agora vou indo. — Ele se vai.
— Vou dar cinco minutos aqui e depois saio para chamar o
uber. — Mila avisa. — Não estou em condição de dirigir e prefiro
evitar certos babacas.

Explico que Flávia vai com os filhos e eu agradeceria se


minha família não os assustasse.

— Nós não temos histórico de assustar crianças, Lex. —


Branca não entende. — Qual é o lance?

— Só evitem a pergunta que vai explodir na cabeça de vocês


quando os virem. — Ou seja, que Samuel é meu filho.

— Não se preocupe, meu querido. — Vó Lorena avisa,


olhando para os netos, de sangue ou não. — Todos vão se
comportar.

Nem um dos netos chega sequer argumentar. Com o Sr.


Fernando, eles argumentariam, porque como ele se mete na vida de
todos, é fácil rebater e argumentar. Mas com vó Lorena, não tem
como. Todos são devotados a ela.

Com vó Lorena, qualquer um faz o possível e o impossível


para não decepcioná-la. Tanto que eu – que resisti tanto – acabei por
ceder e chamá-la de vó. Não suportei o olhar de tristeza que ela fazia
quando eu a chamava de senhora.

Como vó Lorena nunca pede nada aos netos nem se


intromete em suas vidas, quando ela pede algo, é feito.

Sua palavra é lei.

Lei que ninguém ousa quebrar.


Capítulo 34

Can you hold me?


Can you hold me?
Can you hold me in your arms?
Just wrap me in your arms, in your arms
I don't wanna be nowhere else
Take me from the dark, from the dark
I ain't gonna make it myself[9]
Nf feat Britt Nicole – Can you hold me

Quando Lex retorna, estou sentada no sofá. Os meninos


estão dormindo. Samuel ainda não conhece o mar e ficou agitado
com a expetativa, antes de pegar no sono. Para Bruno, o mar
sempre foi uma lembrança de Lex, então está muito feliz por estarem
juntos outra vez.

— Ainda acordada? — Lex pergunta ao colocar a carteira e o


celular na mesa, depois se sentar, soltando o ar.

— Você está bem? Parece exausto.

— Sim. É cansaço. — Ele coloca a cabeça no encosto do sofá


e fecha os olhos.

— Vou te deixar descansar. — Faço menção de me levantar,


mas ele me impede.
— Fica. Preciso te contar uma coisa.

Ao reabrir seus olhos, posso ver tristeza em meio à


determinação. Sento-me outra vez e espero em silêncio. Seja o que
for, parece sério.

— Não sei tem jeito fácil de começar. Contei ao Rafael sobre o


que aconteceu com você. — Ele explica e eu o escuto em silêncio.
— Ele não vai contar a ninguém nem mesmo à Viviane. Eu precisava
falar com alguém ou enlouqueceria.

— Está tudo bem. Às vezes, eu queria gritar para todos.


Guardar machuca.

— Esse é o ponto. Esses dias o Rafael me falou que se


guardamos algo ruim por muito tempo, mais cedo ou mais tarde vai
explodir. — Lex leva a mão à testa e percebo que está tremendo. —
Não era algo que eu pretendia falar com você, mas seria hipocrisia
pedir que confie em mim e não confiar em você igualmente. Sabe por
que nunca perguntei da sua infância, dos seus pais ou de onde você
veio?

— Não. — Eu me aproximo um pouco mais, sentindo que ele


precisa de conforto.

— Porque se eu perguntasse, abriria uma porta para que você


perguntasse o mesmo sobre mim.

— É o motivo pelo qual nunca perguntei. Não queria que você


me perguntasse nada.

— Eu sei. — Diferente de mim, Lex não parece surpreso.

— Sabe?

— Sim. A princípio, pensei que você não me perguntava nada


porque estávamos no início do relacionamento, mas, depois,
comecei a me questionar se o seu motivo para não fazer isso era o
mesmo que o meu. Não foi difícil juntar as peças. Você sabe, eu
observo. Você engravidou do Bruno aos quatorze anos. É muito raro
uma garota de 14 anos engravidar se sua família é saudável. E é
mais raro ainda, que pais saudáveis abandonem uma criança
sozinha cuidando de outra. Vocês não estariam sozinhos no mundo,
se seus pais fossem boas pessoas. Nem você nem o Bruno falavam
sobre qualquer família, além do seu tio com quem vocês moravam
quando nos conhecemos. Bruno era arredio e você estava sempre
preocupada. Ele tinha que estar sob suas vistas o tempo todo.

Minha respiração começa a ficar irregular. Conhecendo Lex,


eu pensava que não falávamos sobre o passado por discrição. E
como eu não queria abrir essa porta, não fazia sentido perguntar.
Nunca pensei que ele soubesse mais sobre mim do que dizia.

— A q-que conclusão chegou sobre nós? — Gaguejo. Preciso


saber.

— Violência, abuso e fuga. — Seus olhos não se desviam dos


meus enquanto empalideço, confirmando suas palavras. — Eu quis
muito estar errado, então coloquei a constatação o mais fundo
possível em mim.

— Você é tão sensível ao ponto de ler meu passado sem que


te conte nada?

Lex toca meu rosto, encosta a testa na minha por um instante,


depois se afasta um pouco, sem desviar o olhar, cheio de lágrimas.

— Eu não sei se seria capaz de ler sua história tão facilmente,


se não fosse tão parecida com a minha.

— O quê? — Meu coração se contrai e aperto meu peito,


enquanto a outra mão procura a dele.

Ele volta a encostar a cabeça no sofá e a fechar os olhos, mas


não me solta.
— Quando meu pai se separou da minha mãe, ela se casou
com um homem que trouxe dois filhos. Eles eram maiores que eu.
Eu tinha quatro anos e nossa relação foi turbulenta desde o início.
Conforme o tempo passava, minha mãe foi tendo outros filhos.
Parecia que não havia mais lugar para mim na família. Os filhos do
meu padrasto não me aceitavam e — as palavras saem amargas
como o fel — diziam que um dia eles me jogariam no lixo. Eu era
mais novo que o Bruno quando as torturas começaram. Eu achava
que minha mãe não percebia, mas soube depois que ela não se
importava.

Não consigo interrompê-lo. Ele segue falando de olhos


fechados, as lágrimas escapando pelos cantos.

— Se meu pai estivesse perto, ninguém me tratava mal, mas


meu tempo com ele era cada vez mais raro. E os outros tomavam o
cuidado para não deixar marcas em meu corpo. Eu tinha medo de
contar. Eles diziam que matariam meu pai. Aí quando eu tinha onze
anos, ele se mudou para São Paulo. Antes de morrer, meu pai me
contou que seu plano era ganhar dinheiro para dar a minha mãe em
troca da minha guarda. Ele sabia que ela era movida por dinheiro.
Ele não imagina o quanto sua ausência me custou. Depois de uns
meses sozinho, do nada, os filhos do meu padrasto começaram a me
tratar bem. Muito bem mesmo. Fiquei tão feliz que mal conseguia
acreditar. Era um plano. Eu sabia que minha mãe estava brigada
com do pai dos dois e tinha um namorado novo, que eu conheci, mas
como ela e meu padrasto se separavam e reatavam direto, não achei
que era nada definitivo.

Sua pausa me faz perguntar:

— O que houve?

— Tinha um galpão abandonado a um quilômetro de onde


morávamos. Era um lugar isolado. Eles me chamaram para ir.
Disseram que seria uma aventura inesquecível. Não foi uma
aventura, mas nunca consegui esquecer. — Ele aperta minha mão
com mais força. — Os dois entraram comigo e três dos nossos
meios-irmãos ficaram do lado de fora, vigiando. A princípio, não reagi
porque achei que fazia parte da brincadeira. Tudo mudou muito
rápido de um segundo para o outro, um me segurou e tapou minha
boca, enquanto o outro abaixou minhas calças.

— Ah, Lex... — Eu o abraço, apoiando minha cabeça em seu


ombro. — Eu não podia... nunca imaginaria algo assim.

— Acho que ninguém imagina. As pessoas não querem


sequer pensar que algo assim aconteça e, muitas vezes, fingem que
não acontece, que não viram, que não é real. É justamente por isso
que acontece tanto.

Continuo abraçando-o, esperando para ouvir, se ele precisar


falar e implorando para que não queira. Não preciso ouvir as
palavras para saber o que fizeram com ele. Não preciso dos detalhes
para sentir sua dor, mas se ele quiser falar, estarei aqui.

— Quem me encontrou foi o namorado novo da minha mãe.


Quando anoiteceu, ele desconfiou do sumiço e obrigou um dos meus
meios-irmãos a dizer onde eu estava. Não me lembro de muita coisa
a partir daí. Lembro do sangue, que eu não sabia de onde vinha,
mas imaginava pela dor que sentia. — As lágrimas escorrem por seu
rosto. — O namorado da minha mãe me encontrou, me colocou no
carro e me levou à casa de uma senhora. Acho que era sua mãe. Ela
me deu banho, me vestiu. Lembro que as roupas eram muito
maiores que eu e que eles discutiram. Não sei direito o motivo, mas
pensando nas palavras anos depois, cheguei a conclusão de que ela
queria chamar a polícia e ele queria me levar para a rodoviária.
Depois de adulto entendi que fazia sentido. Chamar a polícia poderia
até levar à prisão dos filhos do meu padrasto, que eram maiores de
idade, e minha mãe daria um jeito de me culpar e descontar em mim.

— Talvez ele estivesse certo.

— Ele estava. A melhor decisão foi a que ele tomou. Ele


conversou com o motorista do ônibus, pareciam amigos. O cara me
colocou no primeiro assento e me disse para não conversar com
ninguém estranho, que logo estaria em segurança. No momento em
que descobri o quanto as pessoas podiam ser más, encontrei
algumas boas dispostas a me ajudar. Viajei para São Paulo
morrendo de medo. Quando meu pai viu meus machucados, quis
saber o que houve e omiti a pior parte. Contei que meus irmãos me
batiam. Ele morreu sem saber do resto.

— Você guardou isso para você esse tempo todo?

— Contei ao Rafael, depois de uns meses que nos


conhecemos. — Saber disso torna ainda mais fácil entender por que
ele precisou contar o que houve comigo. Era muita informação
traumática para lidar sozinho. — O pai do Rafa acabou nos ouvindo.
Primeiro sem querer e depois continuou, preocupado comigo.
Quando o vi, entrei em pânico. Sua expressão demonstrava terror,
mas eu entendi aquilo como um sinal para correr e não como choque
pelo que passei. Eu me tranquei no banheiro da casa deles até que a
tia Rosalia, mãe do Rafa, conseguiu me convencer a sair. Quando a
conheci, achei que era um anjo esquecido na Terra por descuido de
alguém no céu. Não conseguia entender como ela podia ser uma
mãe tão carinhosa. Nem sabia que mães eram carinhosas. A minha,
por mais que tivesse seus preferidos, era horrível com todos.
Naquele dia, a família do Rafael se tornou a minha família. Eu dormia
mais ali do que na casa do meu pai, por isso ele construiu o estúdio
de música, para ficar mais perto de mim. Meu pai era um homem
bom. Limitado. Não sabia falar que me amava, mas demonstrava. Às
vezes, sinto vergonha por ter sofrido mais com a morte dos Ferraz do
que com a morte do meu pai. — Sua expressão se enche de culpa.

— Não sinta. Eles mereciam o seu amor.

— Mereciam. O Rafa sentiu como se fosse com ele. Foi


quando ele teve a primeira crise de ansiedade. Enquanto eu ficava
triste, ele sentia ódio. Não me deixava mais sozinho na rua e
ninguém podia sequer me olhar feio que ele partia para cima. Eu
sabia que isso daria problema mais cedo ou mais tarde.

— O que houve?
— Anos depois, meus... aqueles dois apareceram mortos.

— O Rafael? — Estou admirada, mas não surpresa. É notável


o amor que ele sente por Lex.

— Não. Não duvido que o Rafael quisesse, mas ele amava


muito os pais para magoá-los assim.

— Quem foi?

— Gigante. Ele cresceu com a gente. Mateus é o seu nome.


Ele gosta que o chamem de Gigante porque sua fama o precede. Ele
é enorme. Está preso atualmente. Já te falei sobre ele quando contei
sobre o sequestro do Rafael. Se o Gigante não tivesse invadido o
cativeiro atirando, todos nós estaríamos mortos. Sobre mim, preciso
ser sincero, apesar de ter brigado com o Rafael na época, eu parei
de ter pesadelos depois da morte deles.

— Um anjo da guarda.

— Podemos dizer que sim.

— Ele está preso por essas coisas?

— Não. Ele foi preso por um assalto. Como teve uma vítima, o
caso foi complicado. Não foi ele que atirou. Gigante se gaba de
nunca ter matado um inocente. — Lex aperta a cabeça com as
mãos, como se quisesse extrair as lembranças e nunca mais pensar
nelas. — Eu me culpei por um bom tempo, sabia? Rafa e eu
brigamos. Comecei a sentir culpa pela minha mãe e pelos que
restaram. Até entrei em contato com ela. Ela parecia estar diferente.
Achei que era pelo luto, mas era tipo. No fim, me pediu dinheiro e
quando não mandei, ela me chamou de ingrato e disse que nunca
mais queria me ver. Chorei igual criança. Rafa me viu, me abraçou
até eu me acalmar.

— A irmandade de vocês é muito bonita.


— A base da minha família.

— Apesar de tudo, era como se eu fosse cego para a verdade


e continuei de, tempos em tempos, entrando em contato com a
minha mãe e, algumas vezes, a visitei.

— Eu lembro que você foi para lá naquele fim de ano que


estávamos juntos.

— Fui. — Ele passa a mão pelos cabelos escuros. Há um ou


outro fio branco. — Eu queria tanto ser amado por ela. Tentei até ser
impossível continuar tentando. Quando você sumiu, fiquei perdido.
Era como se eu sentisse os mesmos sentimentos de quando era
criança.

— Desculpa, Lex.

— Não foi sua culpa. Eu precisava me libertar daquilo. Foi a


última vez que tive contato com eles. Não quero entrar no mérito do
que houve, mas descobri que minha mãe soube o que os filhos do
meu padrasto fizeram comigo e ocultou tudo, porque queria voltar
com ele.

As pausas entre as falas parecem carregar todos os


fantasmas do seu passado. Eu quero arrancar a dor que ele sente,
mas sei, por experiência própria, que não é assim que funciona.
Então, deixo-o continuar falando:

— Você foi a primeira a despertar a sensação de familiaridade


em mim, como se nossa história fosse escrita nas estrelas. É por
isso que vou proteger esse amor enquanto viver. Quero que você se
liberte e volte a sentir prazer com seu corpo, mas eu sei como é
difícil. Não teria conseguido sem a família do Rafael. Nem se falava
muito sobre terapia naquela época, mas eles me fizeram ir, além de
dedicar apenas amor para mim.

— Todo mundo precisa de uma rede de apoio para se sentir


bem e seguro no mundo. — Repito a frase que vó Lucinda me disse
uma vez.
Acaricio seu rosto com a ponta dos dedos. Ainda está
molhado. Ele teve muita coragem para se abrir. Não posso ocultar
mais nada. Começo a pensar que se tivéssemos contado tudo um
para o outro quando nos conhecemos, não teríamos nos separado.
Não o culpo e nem me culpo. Quem passa pelo que passamos
quase nunca consegue se recuperar.

Então conto tudo. Conto sobre como meu pai me molestava


desde os quatro anos, como minha mãe fingia não ver e como ela
me espancou quando engravidei, dez anos depois. Conto como
permaneci morando com eles, mesmo depois do Bruno nascer
porque não tinha para onde ir e minha mãe disse para parar de
frescura porque era assim mesmo: os pais eram donos dos filhos e
podiam fazer o que quisessem, que ela não reclamou e eu não tinha
o direito de reclamar. Conto que achei que o Bruno estava protegido
por ser menino, mas que um dia cheguei mais cedo do trabalho e
meu pai o estava molestando. Fui para cima dele como um animal
protegendo a cria. Ele me espancou, enquanto a minha mãe
segurava o Bruno, que se debatia ferozmente. Conto como fugi no
meio da noite e fui para o único lugar que conhecia além dali: a casa
do meu tio materno no Rio de Janeiro. Meu tio me recebeu e não fez
perguntas.

Isso foi um pouco antes do Lex aparecer. Bruno estava muito


traumatizado e não falava com homens até que um dia eu o vi
interessado no violão do Lex. Eu tive medo, não o conhecia e tive
muito medo. Medo que ele soube dissipar. Ao vê-lo tão atencioso
com meu filho e a forma com que Bruno se abria pela primeira vez,
passei a observá-lo com mais atenção e inevitavelmente me
apaixonei. Nós estávamos bem. Eu ousei sonhar e imaginar que me
casaria com o homem que amava e estaríamos em segurança.

Confesso o quanto me arrependi de não ter ido para São


Paulo com ele naquela viagem. Meu tio tinha me pedido para
trabalhar na minha folga no restaurante e, depois de tudo o que ele
fizera por nós, não pude dizer não.
Revelo o choque que senti quando, ao fecharmos o quiosque
sozinhos, como havíamos feito tantas vezes antes, meu tio me jogou
no estoque e tentou me estuprar. Eu resisti. Eu lutei. Rasguei seu
rosto com as unhas. Ele pegou uma faca, colocou no meu pescoço e
disse que se eu não ficasse quieta, ele me mataria e faria o mesmo
com o Bruno. Fiquei imóvel e não derramei uma lágrima. Fui para
outro lugar em minha cabeça, um lugar em que as mulheres não
precisam ter medo, um lugar que ainda não existe no mundo.

Ele terminou o serviço e me avisou que seria assim dali em


diante, que meu corpo era dele e que se eu me atrevesse a contar a
Lex, ele o mataria e continuaria dono do meu corpo como o pai dele
foi dono dele e da minha mãe.

Não respondi. Ele pensou que era fruto do choque. Quando


Bruno viu as marcas, ele começou a juntar suas coisas e me
perguntou se poderíamos esperar o Lex voltar. Não poderíamos. Ele
ia descobrir e eu não aguentaria ser responsável por sua morte.
Então, fugimos de novo, e acabamos em Quatro Estações. Vó
Lucinda não me perguntou sobre as marcas. Ela cuidou de nós e
descobri o que era amor de mãe, que, assim como Lex, eu não sabia
que existia. Apenas quando a menstruação não chegou foi que
pensei em pílula do dia seguinte. Acho que estava com tanto medo
que mantive o foco em fugir do meu tio, sem pensar nas
consequências.

Aos poucos, contei algumas coisas para vó Lucinda, não tudo.


Falei porque Bruno precisava ver que podíamos falar sobre aquilo,
que ele não tinha que guardar segredo como se tivesse feito algo
errado, que quem nos feriu é que estava errado. Bruno se abriu
muito mais e contou sobre Lex a ela. Não sei quando exatamente,
suas lembranças começaram a se confundir ou a se esconderem no
inconsciente, mas quando se referia a um pai, era sobre Lex que
falava. Aos nove anos, sua imaginação o guia para seu lugar seguro.

Termino de falar sobre o nosso passado quando não há mais


nada a ser dito. Lex não expressa surpresa em nenhum momento. A
raiva se alterna com o acolhimento de que ele sabe que preciso. Ele
chorou comigo o tempo todo. Por mim e por nós. Ele não diz
palavras corriqueiras nem que sente muito, porque é óbvio que ele
sente e que eu sinto.

— O Bruno se lembra de tudo? — Seu tom tenta conter a


raiva.

— Não, não sei mais do que ele se lembra, mas quando


alguém pergunta sobre nossa vida fora de Quatro Estações, ele só
fala de você. Ele acha que a primeira vez que foi à praia, você estava
conosco.

— Ele vai precisar de terapia. Todos precisamos.

— Eu sei. Mas ele fica melhor com você, ele resplandece. Ele
te ama como um filho ama um pai e ele tem muita sorte por você ser
um dos bons.

— Eu o amo muito. Amo vocês três. — Seu polegar acaricia a


palma da minha mão. — É triste, não é? Considerarmos uma criança
sortuda por não sofrer violência nem abuso.

— Sim, mas assim é o mundo, infelizmente. Há mais


denúncias hoje em dia, mas ele continua como sempre foi. Crianças
e mulheres são apenas objetos para muitos homens.

— Eu quero adotar os meninos. — Lex muda bruscamente de


assunto, decidido.

— Lex, eu não sei...

— Por que não? Eles me amam, eu os amo e amo a mãe


deles. Só não faz sentido se você não me amar e você já confirmou
isso.

— Eu amo demais, mas não sei se posso ser a mulher que


você quer. — Digo a frase que me rasga por dentro.
E, mais uma vez, estamos com o rosto bem próximo um do
outro. Com os acontecimentos do passado expostos, nos vemos
desnudos, revelando nossa fragilidade e nossa força, tão necessária
para que pudéssemos chegar a esse momento. Odeio que Lex tenha
passado por isso e não acredito que por ter passado, ele enxergou a
mim e ao Bruno.

— Uma vez eu disse a vó Lucinda que era boa e forte porque


a vida me fez assim. Ela respondeu que não era verdade, que eu sou
boa e forte porque essa é a minha natureza e que me mantive assim,
apesar do que a vida me fez. Falar algo diferente é dar crédito a
quem me feriu e eles não merecem nem meu pensamento.

— Faz sentido.

— Acredito que você nos notaria de qualquer jeito, porque é


bom e sensível. Você era assim antes de tudo. Você precisou ser
resiliente para sobreviver, mas sua parte boa não é por causa deles.
É toda sua.

— Você está certa.

— Me perdoa por ter fugido sem te procurar. — Beijo o dorso


de sua mão. — Estava com medo e...

— Quando estamos com medo, apenas reagimos. — Ele fala,


depois que não consigo continuar. — É o senso de sobrevivência.
Você estava se protegendo, ao Bruno e até mesmo a mim. É um
peso muito grande para carregar. Eu teria matado seu tio. Entendo o
Rafa mais do que nunca.

— Ou você teria morrido tentando ou o Rafa teria morrido.

— É... Ele tem a tendência a chegar berrando estuprador no


megafone e isso pode funcionar com o sobrinho playboy da
madrasta da Clara, mas não sei como seria com um homem como o
seu tio. Quando você sumiu, eu fui até ele. Ele foi tão dissimulado
comigo. Tão manipulador. Praticamente um psicopata.
— Não quero que o Samuel seja dele. Amo o Bruno, mas se
eu pudesse mudar meu passado, ele não seria filho do meu pai.

— Aquele homem não é um pai. Nem seu nem do Bruno. O


Bruno é seu, apenas seu. Assim como o Samuel, independente de
resultado de DNA. E, se me deixar, eles serão meus também. Eu
serei o único pai que eles conhecerão. Nós quatro. Nossa família.

— Não quero te deixar. — Digo a verdade.

— Se você não quer, não há nada nem ninguém que te tirará


de perto de mim. Leve o tempo que for, ainda que seja até a
eternidade, eu vou esperar por você. Não é o seu corpo que me faz
te amar, não é fazer amor com você que define a nossa relação. É
por isso que fui sincero sobre o que passei. Prefiro uma vida inteira
com você sem te tocar do que mil vidas tocando outra mulher. É
você, Mor. É você e mais nenhuma outra.

Seu rosto transborda emoção. Estamos tão próximos que sua


respiração se mistura a minha. Respeitoso, ele não se moverá mais
nenhum centímetro. Seu olhar transita entre meus olhos e minha
boca.

Durante mais tempo do que qualquer pessoa pode suportar, o


mundo não foi um bom lugar para nós. Não sei por que o destino
quis nos dar uma chance e nos colocou um na vida do outro, além de
nos aproximar de mais pessoas boas, porque sim, há bondade no
mundo.

Resisti quando o conheci, resisti quando o reencontrei e em


ambas as vezes sua paciência e amor me ganharam. Essa mistura
agradável dá a sua reserva um toque ainda mais especial. Seu doce
encanto do coração faz com que Lex veja pessoas que são invisíveis
para outras e faz com que ele se coloque em perigo por quem não
conhece e ainda mais por quem ama.

Este homem... De todos, encontrei o melhor, o mais especial.

Seu coração me cativa e me encoraja.


Em um impulso, encontro seus lábios e Lex se entrega. Ele
não assume o controle como sei que faz tão bem. Pelo contrário, ele
deixa com que eu o guie e não me puxa para o seu colo. Eu vou por
conta própria, apoiando meus joelhos no sofá, sentindo sua ereção
pressionar a calça jeans. Não consigo avançar mais do que isso
hoje, mas Lex não me assusta. Ele é o oposto disso. Ele me protege
de todo mal.

Nós nos beijamos por muito, muito tempo. Nada mais.


Capítulo 35

Aproveite todas as sensações


Sinta a chuva te molhar
E quando o sol chegar
Deixa esquentar
Tenha dentro do seu coração
Pureza e verdade
O que você transmitir
Volta com intensidade
Melim – Peça Felicidade

— Chegamos! — Aviso aos meninos, que não pararam de


perguntar o percurso todo se já tínhamos chegado. Tal qual o Burro
do Shrek.

Eles comemoram ansiosos para sair e ver todo mundo.

Ao descermos do carro, os dois exclamam juntos:

— Nossa! É um castelo!

Flávia está igualmente abismada. Ela começou a se


surpreender na entrada do condomínio. A segurança é tanta que até
a documentação dos meninos precisamos mostrar. O lugar é cercado
por mata atlântica. É como se estivéssemos em meio a uma floresta.
A temperatura é fresca e agradável.
As pedras que compõem o muro do carinhosamente chamado
Castelo dos Villa dão a ele o toque medieval necessário. Vô
Fernando o comprou depois que o ex-marido de Fernanda invadiu
sua antiga casa de praia para matar Fernanda e Lucas. Agora,
acredito que vô Fernando tem o controle de todos que entram no
condomínio. Ele paga o pessoal da segurança e da portaria, além do
valor cobrado pelo condomínio, para que sua família fique em
segurança.

Dá para ver um pouco do último andar da casa por trás dos


muros, mas eles não sabem o que os esperam.

As portas de madeira larga são abertas por dois homens


vestidos de cavaleiros medievais. Bruno e Samuel estão pulando de
empolgação.

— É sério isso? — Flávia aponta para eles. — O quanto


dinheiro essa família tem?

— Eu não faço ideia. O dono da casa mais próxima é ninguém


menos do que o Neymar. O Sr. Fernando não vai com a cara dele,
então não o mencione. Mas o espanhol teimoso diz que vale a pena
pela segurança. — Falo em voz baixa para Flávia que está
boquiaberta.

É melhor que os meninos não ouçam ou ficarão tão


desesperados para conhecê-lo quanto Rodrigo ficou, que tão
teimoso quanto o avô não só o conheceu, como o fez vir a um
churrasco dos Villa. Para o delírio das crianças que, por serem
novas, ainda não sabem que seria melhor se Neymar se
concentrasse no futebol e falasse menos de política. Felizmente,
sobre isso, Rodrigo concorda ou causaria o infarto de seu avô.

— O Sr. Fernando é tão influente assim?

— Mor, ele recebeu um convite pessoal do presidente para um


jantar e sequer respondeu. Quando chegou um novo pedido de
confirmação, ele respondeu que não se sentava à mesa de pessoas
com pensamentos fascistas e que só voltaria ao Planalto quando o
“estrupício” fosse chutado de lá. Palavras exatas do homem.

— Quer dizer que ele já esteve no Planalto?

— Algumas vezes. Ele viveu as consequências de um


governo fascista na Espanha e isso o trouxe para o Brasil. Ele ama o
país e tem interesse real em vê-lo progredir. Quanto aos cavaleiros,
são atrações para as crianças. Assim como o rei, que é o próprio Sr.
Fernando, a rainha, que é Vó Lorena, as fadas e os ogros, que são
atores contratados como os cavaleiros. — Falo ainda mais baixo
para não estragar a surpresa dos garotos, ao cruzarmos o portão e
os cavaleiros soarem a trombeta. — O Sr. Fernando gosta de um
espetáculo e gosta mais ainda de ver as crianças felizes.

— Foi-se o tempo que contratavam palhaços para animar


festas. — Ela ri, mas posso ver que seus olhos estão brilhando.
Entendo a sensação.

— Espere até ver Elza e Anna. Você vai reconhecê-las.

— Claro que vou, Lex. São Elza e Anna!

— Certamente são e falando na Elza...

— Lerigoooou, lerigooooou! — Rafael vem dançando e


agitando os braços enquanto Bernardo atira jatos de gelo seco nas
mãos dele.

— Vai devagar, cara. Isso é pesado. — Bernardo pede, se


movendo rápido para acompanhar seu ritmo.

— Elza, Elza! — Rodrigo aparece vestido de Anna. — Você


quer brincar na neve? Não quero mais casar. Era faniquito. Decidi ir
para a faculdade, me formar e me tornar uma CEO poderosa com
um quarto vermelho.

As crianças estão às gargalhadas.


— Rodrigo! — Viviane grita de longe. Brava pela menção do
quarto de um livro erótico famoso, que virou filme. — Para de graça.

— Eu não paro. — Ele continua, rodopiando. — Não quero me


casar. Opa! — Oi, gato. — Ele diz ao dar um beijo estalado na minha
bochecha. — Aaaaah! Eu menti, Elza, me perdoa. Quero casar, ter
filhinhos, mas ainda posso ser CEO e pintar o quarto da cor que eu
quiser, porque meninas podem tudo! E menines e meninos também.
— Ele pisca para Samuel e Bruno. — Desde que respeitem todo
mundo. — Ele joga beijos com as mãos, como se fosse uma miss em
um desfile na cidade que nasceu.

Um grito estridente o interrompe, mas ninguém se assusta. É


a Priscila, vestida de Olaf, correndo para abraçar os meninos. Ela vai
arrancar a fantasia em alguns minutos e querer ir para a piscina.

Flávia sorri de orelha a orelha. Olha para todos os lados, feliz,


como se pela primeira vez fosse seguro se sentir como uma criança.

É... essa família sabe criar confusões, mas também sabe


quebrar o gelo e tirar sorrisos como nenhuma outra.
Capítulo 36

Quando não houver esperança


Quando não restar nem ilusão
Ainda há de haver esperança
Em cada um de nós, algo de uma criança.
Titãs – Enquanto houver sol

O dia passa muito rápido de tão gostoso que é. Em um


momento ou outro, todos da família conversaram comigo. Parecia
até que havia uma escala entre eles e Lex disse que com certeza
Branca tem uma planilha sobre isso. Eles foram gentis conosco e,
principalmente, muito solícitos com meus filhos.

Fomos à praia, numa parte em que fica dentro do condomínio.


Uma praia privada. Apesar da ostentação evidente, eles são simples
à sua forma.

Clara e eu ficamos muito próximas e ela me apresentou à


Fernanda e seu bebê, João Pedro, de apenas dois meses. Lucas
veio nessa hora. Bruno adorou Felipe – o filho mais velho deles de
cara.

É uma família peculiar. Rodrigo, mais tarde, trocou de roupa,


vestiu-se de Olaf, como a sobrinha e fez uma apresentação da
história da família toda, como Olaf faz no segundo filme. A leveza
com que eles riam, apesar das mazelas que passaram na vida
encheu meu peito de esperança.
As relações da família são complexas. Como eles são
formados por laços de sangue e de amizade. Muitos dos que não
são parentes tiveram algum envolvimento. Estranhamente todos
levam numa boa. Por exemplo, mesmo a Branca sendo a ex-mulher
do Lex e agora namorada do Rodrigo não fica nenhum clima entre
eles. É como se ela e Lex nunca tivessem sido casados. Como ela
me disse, mais cedo, isso acontece porque a relação anterior não
era a pessoa por quem eles perdiam a batida do coração. Viviane me
falou sobre essa fala de seu pai. Eu gostaria de tê-lo conhecido.

O único momento tenso foi quando Rodrigo deixou escapar


que me conheceu antes dos outros. Branca ficou brava. Pelo menos
eu achei que tinha ficado, mas Lex me contou que tudo aquilo era
teatro dos dois, que amam viver como gato e rato. Cada um tem seu
jeito de amar, certo?

— No que está pensando, meu anjo? — Escuto a voz de vó


Lorena atrás de mim. Ela não precisou insistir muito para que eu a
chamasse assim. A matriarca da família é tão carinhosa que seria
bobagem não retribuir.

Estou debruçada na varanda, olhando a lua e sentindo a brisa


do mar.

— No amor. — Respondo, tranquila.

Seu jeito de cuidar me lembra de vó Lucinda – a quem contei


todos os detalhes da viagem antes de descer do quarto e ficar na
varanda.

— Sem amor, não há vida. A começar pelo amor que sentimos


por nós mesmos.

— É verdade. Obrigada pelo amor que vocês estão


demonstrando por mim e meus filhos. Eu me sinto como se fizesse
parte da família e muitos eu conheci hoje.
— É porque você faz. Nós amamos o Lex e, a partir do
momento que ele a ama e os dois estão felizes, nosso amor se
estende a você.

— Antes de conhecer a vó Lucinda e vocês, eu não tinha


encontrado pessoas em que o amor é mais forte que o ódio.

— Qualquer pessoa que não viva pelo amor é indigna de


caminhar nessa Terra. — Vó Lorena cruza o braço com o meu. — Me
conte mais sobre essa outra avó. Olha que coincidência, suas avós
tem a mesma inicial no nome.

Conto a vó Lorena como fui parar em Quatro Estações e como


vó Lucinda me mostrou como era o amor de uma mãe. Ela me ouve,
fazendo um ou outro comentário enquanto a lua quase cheia brilha
acima de nós.

Nossa conversa é serena como a noite agradável que nos


cerca.
Capítulo 37

Violão, aquele som de brincadeira


Chega perto pra eu te ter de outra maneira
Vem cá, me traz de volta isso aqui
Vem cá, se eu te sorrir, cê me sorri
Nina Fernandes – Sem Fim

Estou dividindo um quarto com Flávia e os meninos.


Apesar de haver uma cama de casal e duas de solteiros, opto,
obviamente por uma de solteiro. Os garotos adoram a ideia e Bruno
me pede para contar uma história antes de dormir, como eu fazia
quando namorava sua mãe. Eles dormem antes que eu acabe. É o
que acontece com crianças, praia e muita diversão. Eles apagam.

Saio do quarto para descer para a sala e cruzo com Flávia no


corredor.

— Tudo tranquilo, Mor? — Pergunto, perto o suficiente para


sentir seu cheiro, longe o suficiente para não a assustar.

— Sim, estava conversando um pouco com a vó Lorena. A


maioria foi dormir, mas vi o Maurício e Rafael lá embaixo. Seu amigo
parecia preocupado.

— Ele está. Vou descer um pouco e conversar com ele.


Depois subo para dormir.
— Tá bom. — Ela cobre um longo bocejo com a mão. — Acho
que vou desmaiar assim que deitar na cama.

— Descansa. — Toco seus ombros, correndo os dedos até


sua nuca. — Serão dias gostosos e com muito gasto de energia.

Flávia olha para trás, o corredor está vazio. Ela fica na ponta
dos pés e pressiona os lábios contra os meus. Eu saboreio o beijo
como se dela brotasse mel. Talvez eu também seja uma borboleta à
procura de néctar.

— Boa noite, Lex. — Ela se afasta devagar.

— Boa noite, Mor.

— Está com a cabeça no mundo da lua? — Pergunto a


Rafael, que está deitado na grama, olhando para o céu, antes de me
juntar a ele.

— Lembra quando a gente era criança e queria pegar um


foguete para a lua para fincar uma bandeira do Corinthians?

— Claro que lembro. No fim, não fomos e você casou com


uma mulher cuja família é toda palmeirense.
— A Vivi tinha que ter um defeito, né? — Ele tenta rir, mas há
algo ali. Uma tristeza oculta.

— O que está rolando?

— O Gigante. Ele que começou com essa história da lua,


lembra? — Está explicado. — Estou preocupado com ele.

— Aconteceu algo que eu não sei?

— A audiência da condicional está próxima e, sei lá, não estou


gostando muito da conversa do advogado dele.

— Não foi indicação do Túlio? — Menciono o pai de Branca e


Bernardo, dono de um escritório de advocacia bem influente em São
Paulo.

— Foi, mas esse pessoal não entende o Gigante. Eles só


veem um cara preto que cometeu um assalto, seguido de morte. Eles
não o conhecem como a gente.

— Nem sabem que ele não se envolvia em nada criminoso até


a polícia enquadrar seu irmão inocente e atirar nele pelas costas.

— Nem me lembra. Primeira vez que lidamos com a morte. O


Jota era um menino bom. Estava no lugar errado na hora errada e a
polícia tem uma cartela de cor para medir suspeitos.

— Isso é muito foda. Você também se sente mal por ter


percebido só com a morte do Jota, que somos tratados pela polícia
de forma diferente?

— Porra, me sinto um bosta. Aconteceu uma merda na minha


vida, mas eu era muito protegido quando criança. Meu pai não falava
sobre racismo, mesmo sendo preto. Minha mãe era branca. Nasci
branco com os olhos azuis e meu pai ficava todo feliz quando me
chamava de “meu branquinho”. Às vezes, me pergunto o quanto meu
pai sofreu sem compartilhar com a gente.
— E não quer que isso se repita com o Gigante. — Leio suas
entrelinhas.

— Não quero.

— Concordo, mas ele também precisa concordar. Ele odeia


sentir que precisa de ajuda. Odeia. Nós temos que respeitar os
limites das pessoas, Rafa.

— Eu sei, mas eu faria isso se fosse você lá. Ele é nosso


parceiro também.

— Sim, vamos oferecer ajuda. Você sabe que ele é muito


orgulhoso e se se sentir em posição de vítima fará merda.

— Ele é vítima agora. O advogado não o vê como uma


pessoa, ele é apenas um número.

— Ele pode ser vítima e orgulhoso ao mesmo tempo, amigo.


— É difícil controlar a ansiedade do Rafael quando ele entra na pilha
de algo e o Gigante segue sendo um ponto sensível. — Você lembra
quando o velho da vendinha do bairro, o acusou de roubar no
mercado e fomos defendê-lo?

— Ele ficou puto, parou de falar com a gente e depois roubou


mesmo o mercado. Tudo ficou pior para ele depois que o Jota
morreu.

Nós éramos tão novos. O Jota morreu um ano antes do


Gigante matar os filhos da minha mãe pelo que eles me fizeram. Ele
não teria sequer tido a ideia de me vingar se o irmão não tivesse sido
assassinado. Aquilo o mudou. Como não mudaria?

— Por que a gente não fala com o Maurício? — Sugiro. — Ele


está na sala, assistindo televisão. É o único que sobrou acordado. —
Refiro-me ao ex-marido de Clara, que é advogado criminal.

— Ele é um advogado do caralho. Tem até reportagem sobre


ele. Muita gente quer que ele se candidate a um cargo político.
— Então, ele é bom no que faz e influente, mas não a ponto
de se intrometer demais como o Sr. Fernando e deixar o Gigante a
ponto de querer brigar.

Levantamos e caminhamos para a sala. Chegamos bem a


tempo. Os créditos do filme estão subindo e Maurício apaga a
televisão.

— Estão sofrendo de insônia como eu? — Ele pergunta e dá


dois tapinhas no sofá para que nos sentemos.

— Pode se dizer que sim. — Rafael começa, ocupando o


lugar e me junto a ele. — Um amigo meu está com problema e isso
tem me tirado o sono.

— Posso ajudar? — Maurício é direto.

— Na verdade pode. Ele está preso. É o Gigante. Acho que


você deve ter ouvido falar dele.

— O cara que entourou o cativeiro e salvou vocês. A Clara me


contou a história.

— Isso.

— O advogado dele não entende a situação. A audiência da


condicional está próxima e quero meu amigo fora daquele lugar.
Espero que nunca volte.

— Você quer que eu converse com o advogado, Rafa, é isso?

— Não. Quero dispensar esse advogado e que você o


represente.

Maurício coça o queixo, parecendo ganhar tempo. Não sei se


é um bom sinal.
— Eu adoraria ajudar, mas vocês sabem que com meus casos
fica inviável me sobrecarregar mais. — Não é mentira. Atualmente
Maurício trabalha para Túlio Albuquerque e se especializou em
causa LGBTQIA+. — Você sabe que estou atolado de causas.
Muitos de nós estão injustamente na cadeia e quem foi para lá por
um crime cometido raramente consegue se ressocializar. Se aqui
fora nós somos perseguidos, ameaçados e mortos, se a pessoa não
se sujeitar às piores atrocidades, ela não fica viva. A violência vem
inclusive dos carcereiros. — Ele fica em silêncio por um instante e
aguardamos. Não dá para argumentar contra essa verdade. —
Represento exclusivamente pessoas LGBTQIA+ agora, mas...

— Oxi, mas o Gigante é bissexual. — Rafael o interrompe,


começando a ficar bravo. — Esse B aí da sigla é o quê? Branca?
Bernardo?

— Eu não fazia ideia de que o Gigante era bissexual. A forma


como vocês falam dele sempre me pareceu hétero.

— Ô, Lex, você fala do Gigante como se ele fosse hétero? —


Cruza os braços. A situação só piora.

— Eu falo do Gigante como se ele fosse o Gigante. No


máximo como se ele fosse o Mateus.

— Quem é Mateus? — Maurício vira as palmas da mão para


cima, confuso.

— O Gigante. — Agora não sei se o Rafael está se zangando


ou zoando com a cara do outro. — Ou você achou que ele se
chamava mesmo Gigante só porque é fortão igual o portão do
Castelo? — Agora eu sei pelo seu tom que ele está zoando, mas não
consigo perceber se Maurício sabe.

— Rafael, o cara salvou a vida de vocês. Se você não tivesse


me interrompido, eu teria dito que defenderia mesmo se fosse
hétero. Não tenho nada contra os héteros, até tenho amigos que são.
— Ele pisca e me tranquilizo por entender que ele pegou o tom do
Rafa.

— Obrigado. — Rafael respira aliviado. — Fico te devendo


uma.

— Não precisa, mas pode ser bom ter um cara como você me
devendo uma. Se alguém me ameaçar, posso dizer: “Retire o que
disse ou solto o Rafa em você!”.
Capítulo 38

Bolo de chuva
Acho que me molhou
Que coisa absurda
Alguém já ligou pro vô?
Sai de casa sempre assim que der
Mas sai sem esquecer
Que a sua casa é sempre aqui
OutroEu - Coisa de casa

Os dias são tão gostosos que passam voando. Estamos


na noite antes de receber o resultado do teste de DNA. Mila tentou
agilizar o processo durante o dia, mas sua amiga que trabalha na
clínica não mandou nada, então teremos que esperar até amanhã.

Mesmo em uma casa cheia de gente, Lex e eu estamos cada


dia mais íntimos. Não sexualmente ainda, mas emocionalmente.
Conhecer essa família enorme – a família dele – tão eloquente e
carinhosa fez com que eu me sentisse tranquila.

Não posso dizer que não me sobressalte se um deles se


aproximar de mim sem que eu veja. Isso ainda acontece, mas, em
geral, entendo que é a memória corporal e não um perigo real e
imediato.
— Que noite mais linda. — O Sr. Fernando sai da casa e
acomoda perto de mim, na varanda.

— Muito. Finalmente temos a lua cheia.

— Exuberante, não é mesmo?

Vó Lorena me contou que ele não me pediu para chamá-lo de


avô, porque não quer ser mais um homem a mandar em mim e às
vezes seus pedidos tendem a ser um pouquinho autoritários. Achei
muito cuidadoso da sua parte. Eu o observo bastante com os adultos
e com as crianças, sempre atento as suas necessidades.

— Seus filhos são adoráveis. Estou encantado. Você está


fazendo um bom trabalho.

— Obrigada.

— Há pessoas que não gostam quando nos referimos à


maternidade e à paternidade como um trabalho. Não penso assim.
Comparar ao trabalho significa que temos responsabilidade e não
podemos negar que muitas vezes é trabalhoso de fato, e é muito
recompensador.

— Concordo.

— Uma mãe solo precisa se desdobrar ainda mais. Guardaria


um segredo meu?

— É claro.

— Você me lembra de mi madrecita. Ela fazia o impossível por


mi hermano, mi hermanita e por mim. Madrecita amava as noites de
lua cheia. Pena que não pôde aproveitá-las por muito tempo. A Villa
Encantada é para ela. Para mães que precisam de acolhimento e
proteção. Espero que ela esteja orgulhosa lá em cima. — Ele lança
um longo olhar para o céu.
Escuto-o com atenção. Lex não sabe nada sobre a
ascendência do Sr. Fernando. Os próprios netos sabem apenas que
ele tem um irmão, que mora na Espanha e às vezes os visita. Não
sei se sabem sobre essa irmã. Ele dá um profundo suspiro.

— Eu sei o que é precisar fugir para se proteger e proteger


quem se ama. Quero garantir a você que está segura entre nós. Não
precisa mais fugir.

— Obrigada.

— Não estou fazendo isso para que se sinta indefesa e frágil,


pelo contrário. Mi madre foi a mulher mais forte que já conheci, mas
sua vida teria sido mais fácil e mais longa, se alguém tivesse lhe
estendido a mão. É o que estou fazendo. — Ele vira suas palmas
para cima em um convite silencioso. Acomodo minhas mãos ali. —
Nos últimos dias, fiz algumas investigações e... — Ele hesita. —
Normalmente, ainda mais em um caso assim, eu não pergunto, eu
ajo. A família precisa ser protegida.

Por alguma razão que não entendo, eu estremeço.

— Quando Rafael me pediu para procurá-la, iniciei uma


investigação extensa e não parei quando a encontramos. Peço
sinceras desculpas por invadir algo tão pessoal e me sinto, devido
das descobertas, na obrigação de explicar o que me moveu: quando
nasci, minha mãe tinha treze anos. — O Sr. Fernando não precisa
dizer mais nada e mesmo assim continua. — Não contarei minha
história ainda, porque não chegou a hora, mas, como disse, eu sei o
que é precisar fugir e não ter com quem contar.

— Eu sinto muito.

— Não quero que Lex e Rafael se desentendam por uma


atitude minha. Rafael foi muito direto ao me pedir para parar de
investigar quando a encontramos, mas eu não pude. Mi madrecita e
mi hermanita não me perdoariam. Jurei, sobre o sangue de minha
mãe, que faria deste um mundo melhor para as mulheres.
Como posso ficar brava? É como se Bruno crescesse e se
tornasse superprotetor com outras pessoas por causa do que
passamos. O Sr. Fernando lida com a dor que ainda sente
protegendo quem ama.

— O Lex não vai brigar com o Rafael. — Eu sei que Lex


entende muito bem o amigo agora que ele sabe o que aconteceu
comigo. — Mas preciso que o senhor me conte o que fez.

— Nada ainda. Decidi perguntar a você antes de dar qualquer


passo.

— O que quer perguntar? — Estou tensa.

— Posso entregar à justiça aqueles que lhe fizeram mal?

— Por um instante pensei que o senhor me perguntaria se


poderia matá-los. — Não sei dizer se sinto alívio ou não.

— Não posso garantir que isso não acontecerá uma vez que
os outros presos saberão pelo que eles serão condenados. — Não
há piedade em seu olhar.

— Eu não quero ir ao julgamento, não posso fazer isso com


meu filho e... — Contenho as palavras e observo o horror passar
pelo rosto do Sr. Fernando, antes que ele neutralizasse a emoção.
Ele não sabia do Bruno.

— Vocês não irão a julgamento. Eu garanto. Há algo sobre


esse tipo de gente: eles não param em uma única vítima. Eles têm
prazer em causar dor. Acredito na ressocialização de detentos, mas
não quando eles cometem esse tipo de crime. Nesse caso, eles não
vão parar.

Cubro meu rosto, não quero chorar. Ao evitar pensar no que


vivi, deixei de pensar em algo importante: se eles fariam de novo.
Recomponho-me aos poucos e digo:
— O senhor pode entregá-los à justiça. É o certo a se fazer.

— Eu o farei. Agora tenho mais uma pergunta. — O Sr.


Fernando abre os braços. — Você gostaria de um abraço?

Há lágrimas em seus olhos e não sei por que me surpreendo.


O Sr. Fernando é muito mais do que um idoso intrometido. Ele é um
protetor. Entendo que seus netos se irritem com tantas artimanhas
para cuidar de suas vidas, mas quem foi uma criança sem proteção
entende a importância de haver pessoas como esse homem. Por
isso, não penso duas vezes e me encaixo em seu abraço, cedendo
ao choro.

Não é mais um choro triste como muitos que tive, é um choro


de alívio por ter sobrevivido, chegar até aqui e saber que há
felicidade em vez de dor.

— Há espaço para mim nesse abraço? — Ouço a voz de Vó


Lorena.

— Sua noção de tempo é impecável, mi coraçon. — O Sr.


Fernando dá um beijo no topo da minha cabeça, enxuga as lágrimas
e diz: — Cheguei ao seu momento de falar.

Com uma piscadinha travessa para o marido, vó Lorena me


mostra que eles planejaram ter uma conversa em conjunto comigo.

— Não vamos mais tomar seu tempo, meu anjo. — Ela avisa,
pegando uma das minhas mãos, virando a palma para cima e
colocando um molho de chaves. — Nós temos alguns apartamentos
para alugar aqui na praia e um deles está disponível. Estamos
oferecendo a você e Lex uma noite tranquila por lá. Para
conversarem, assistirem Netflix... — O Sr. Fernando me dá uma
piscada tão exagerada que não sei como consigo conter o riso. —
Para fazer o que quiserem. Amanhã será um dia muito importante
para vocês e acredito que gostariam de um pouco de privacidade.

— Não sei o que dizer. — Eu contei a ela sobre o teste de


DNA, mas não esperava nada disso.
— Diga sim! — Sr. Fernando exclama e Vó Lorena lhe dá um
discreto cutucão. — Está bem. Está bem. Diga o que quiser, Flávia.
Você decide. — Depois repete bem baixinho. — Diga sim, diga sim,
diga sim.

— Fernando... — Vó Lorena o repreende, mas seu olhar é


amoroso.

— O que foi? Vocês podem ouvir meus pensamentos? Por


Dios, sou mais poderoso do que pensei.

Meu sorriso se espalha, antes que eu responda sim e seja


esmagada pelo abraço dos dois.
Capítulo 39

Here is where we decide


By the setting sun and rising tide
If we stay and fade or test our reach
Darling won't you just come with me
Darling won't you just come with me[10]
The Sweeplings – Across the sea

Flávia abre a porta do apartamento e entro em seguida.


Coloco a mochila no sofá enquanto observo a mulher que amo se
encantar pelo ambiente estar iluminado à luz de velas.
— Como eles fizeram isso?
— Conhecendo-os bem como conheço, imagino que alguém
ficou de prontidão até entrarmos no prédio, acendeu tudo e saiu
correndo pelas escadas pouco antes de sairmos do elevador. Aposto
em Rafa, Rodrigo e Branca.
— Eles são umas figuras.
— Ô se são.
O ambiente está bonito, o ar-condicionado está ligado e há
uma cesta com pães, frutas e vinho. O apartamento na verdade é um
loft muito aconchegante. Estou feliz por Flávia ter aceitado a oferta
deles.
No caminho, Flávia me contou sobre a conversa com o Sr.
Fernando. Eu sabia que isso aconteceria quando o Rafael me
procurou no início da noite para me pedir desculpas e dizer que
pediu para o Sr. Fernando parar com as investigações, mas que
concordava que não dava para deixar aquelas pessoas à solta.
Meu amigo estava com tanto medo de brigarmos que se
surpreendeu quando o abracei. Não posso julgar seus atos ao me
proteger no passado quando tudo o que eu queria fazer era o mesmo
por Flávia e Bruno.
— O que quer fazer primeiro? — Eu me aproximo devagar,
mas não a toco. Não quero que pareça que estou pressionando para
que haja sexo.
É a primeira vez que estamos sozinhos, depois de quatro
anos separados. Nos beijos em casa, os meninos dormiam no quarto
e ela podia se refugiar lá. Estar aqui pode ser muita pressão.
— Não sei... — Seu olhar percorre o lugar. — É tão bonito. —
Ela diminui a distância entre nós. — Acho que um banho seria bom.
— Os olhos se voltam para mim.
Eu acho que é um convite, mas por via das dúvidas pergunto:
— Quer ir primeiro?
— Não. Quero que vá comigo. — Sua mão pousa em minha
cintura. — Não posso fazer nenhuma promessa de que o banho
significa que vamos... chegar ao fim, mas quero ver você. Eu me
lembro de gostar de ficar olhando como a água cai sobre seu corpo.
— Seu sorriso é travesso.
— Eu te puxava para dentro do box quando fazia isso.
— Eu lembro.
— Não vou puxar agora, ok?
É difícil, às vezes. Fico apavorado com a ideia de deixá-la
com medo.
— Você pode puxar, Lex. — Sua voz é calma. — Eu sei que
não me machucará.
— Sei que sabe, mas vamos aos poucos. — Beijo sua testa.
— Eu te amo por me respeitar assim. — Ela envolve meu
pescoço com os braços e nossas bocas se procuram e se deleitam
por longos instantes.
Ao se afastar, Flávia segura minha mão e me guia até o
banheiro, fechando a porta atrás de nós. Suas mãos encontram a
barra da minha camiseta e a puxa para cima, tirando-a e jogando-a
no chão. Ela beija a borboleta e não desvia os olhos dos meus ao
tirar minha bermuda.
Controlo a minha respiração. Procuro pensar em qualquer
coisa zen que me mantenha tranquilo o suficiente para conter a
ereção que domina meu corpo.
Observo-a dar um passo para trás, deixar seu vestido cair até
seus pés. A lingerie branca contrastando com sua cor maravilhosa. A
mulher mais bonita do mundo inteiro. Ela abre o chuveiro e por um
instante penso que tomaremos banho com as roupas de baixo, mas
isso só dura até que ela se volte para mim e retire o sutiã, depois a
calcinha.
Meu pau cresce, pressionando o tecido da minha boxer.
— Desculpa. — Murmuro. — Eu juro que não quero te
pressionar de nenhuma forma. — Fecho os olhos. — Eu só... não
dá... Não significa nada. — Reabro os olhos quando sinto suas mãos
puxando a cueca para baixo.
— Está tudo bem, meu amor. Tudo bem. — Pega minha mão
outra vez e me guia ao box, checando a temperatura da água,
enquanto fecho a porta. — Gosto de saber que ainda se sente assim
por mim, mesmo depois de tantos anos separados.
— Não tem como me sentir assim por mais ninguém.
— Eu não posso prometer satisfação plena, mas não posso te
impedir de sentir. Eu nunca te impediria de sentir.
A água do chuveiro nos molha e Flávia se torna ainda mais
irresistível.
— Quero te beijar, Mor.
— Me beija.
Aponto para a ereção.
— Se eu me aproximar mais,não dará para evitar o contato.
— Não quero que evite o contato. Quero senti-lo contra o meu
corpo, enquanto nos beijamos. Isso é ruim para você? Me tocar e...
Ah, será insuportável, sim. Longe de ser insuportável de uma
forma ruim, mas dolorosamente difícil de resistir. Mas eu a amo e
cada avanço que temos é um presente. Então me aproximo e ela se
cola a mim. Não se afastando nem um milímetro enquanto meu pau
lateja contra seu corpo. Nos beijamos debaixo da água por um longo
tempo.
— Posso dar um banho em você? — Pergunto, inseguro.
— Eu posso fazer o mesmo com você?
Despejo sabonete líquido em sua mão, faço o mesmo na
minha e começamos a trabalhar no corpo um do outro. Começo pelo
pescoço e ombro, ela me acompanha repetindo os movimentos em
mim. Assim seguimos por todo o corpo, menos o peito e entre as
pernas. Não sei como proceder em seguida. Antes, eu a banharia
inteira. Agora, é preciso de prudência.
Flávia responde minha pergunta muda ao tomar a frente,
pegar o frasco de sabonete, despejar sobre o meu peito e me lavar.
Meu pau dá um solavanco, chocando-se contra sua barriga. Ela sorri
e solto a respiração.
Toco seus seios com a mão cheia de sabonete. Meu coração
se enche de raiva ao pensar em quantas pessoas tiveram coragem
de feri-la. Meu olhar deve ter se turvado, porque ela diz:
— Eu sei. Também me sinto assim pelo que fizeram a você.
Puxo-a pelo pescoço e a beijo, o mais profundo que posso,
quero arrancar as marcas que não posso ver. Quero despejar amor
dentro dela como despejo sabonete por seu corpo.
Estamos ofegantes quando nos separamos. Estou pronto para
pedir desculpa, caso tenha a assustado, mas seus olhos estão
brilhantes e ela me beija outra vez, com a mesma intensidade.
Quando se afasta, não diz nada e começa a ensaboar meu
pau, que pulsa sob sua mão, desejando-a com intensidade.
— Agora você. — Ela diz bem baixinho, quando termina.
— Tem certeza?
— Sim.
Enquanto o sabonete cai sobre a palma da minha mão, eu me
ajoelho.
— Lex...
— Não se preocupe.
— Não estou preocupada, mas o que está fazendo? — Ela
pergunta enquanto meus dedos a tocam com cuidado e um gemido
lhe escapa.
— Fazendo a única coisa que um homem deveria fazer
perante seu corpo: venerando você, Mor. — Beijo seu abdômen.
— Meu Deus, Lex... — Quando termino meu trabalho, ela faz
com que eu me levante, procurando meus lábios. — Amar e ser
amada por você é uma dádiva.
Fecho o chuveiro e puxo uma toalha para secá-la, ela faz o
mesmo comigo.
Quando estamos secos, pergunto entre seus lábios:
— Eu quero te fazer gozar. Prometo não fazer nada além
disso e você não tem que fazer nada além de me deixar te fazer
gozar. Seu corpo merece sentir prazer outra vez.
— Você faz com que meu corpo sinta prazer o tempo todo. E,
sim, quero que me faça gozar.
Enrolo Flávia em uma toalha e a pego no colo, carregando-a
para a cama. Acomodo-a com carinho e volto a beijá-la.
Somos interrompidos pelo som dos celulares.
— Os dois juntos? — Estranho.
— Melhor a gente ver o que é. — Ela se senta na cama.
Pego os aparelhos no balcão que nos separa da cozinha.
Entrego o dela para ela, enquanto abro a mensagem no meu.
— É a Mila. — Digo, sentando-me ao lado de Flávia. — Ela
conseguiu o resultado do teste de DNA. Está no meu e-mail.
Capítulo 40

Compass points your home


Calling out from the east
Compass points you anywhere
Closer to me[11]
Zella Day - Compass

— Não precisamos abrir, se você não quiser. — Lex se


move para mais perto de mim. — Eu sou o pai do Bruno e do
Samuel. Nada muda isso.

Reflito por um momento. Evitei saber por quatro anos, porque


tive medo de não aguentar. Depois de tudo o que passei para ter o
Bruno, minha cabeça começou a fazer de conta que engravidei
sozinha, que ele era meu filho e de mais ninguém. Fugi desse
momento por tempo demais. Chega de fugir.

— Quero saber. Preciso saber.

— Certo. — Lex abre o e-mail e olha para mim antes de clicar


no arquivo e inserir a senha que recebemos no dia do exame.

Minha mão procura a sua, que a aperta enquanto tentamos


entender os números e porcentagens. Ele vai descendo o arquivo e
no final está claro. Começo a chorar, abraçando-me a Lex.

— O Samuel é seu filho. — Estou soluçando. — Seu filho.


— Você precisava disso para saber? — Dá para sentir o
sorriso na voz de Lex, quando ele solta o celular na cama. Ele beija
meus cabelos, minha testa, meus olhos, meu nariz e minha boca. —
Eu te disse: Os dois são meus filhos, Mor.

— O único pai que eu poderia querer para os meus filhos.


Nossos filhos.

Ajoelho-me na cama e busco os lábios do homem que amo.


Os lábios do pai dos meus filhos. Os lábios do homem de quem não
preciso ter medo.

— Lex... — Sussurro em seu ouvido.

— O quê?

— Faça amor comigo.

Lex me afasta, com carinho, para que possa ver meus olhos.
Ele me observa, em silêncio, ponderando. Querendo ter certeza de
que não estou fazendo nada por pressão do momento.

— Eu quero, quero muito, mas posso esperar o tempo que for


preciso.

— O tempo é agora. Quero você dentro de mim. Estou pronta.


— Levo sua mão ao meio das minhas pernas, ele me acaricia
devagar. Estou tão molhada quanto da última vez que estivemos
juntos, provavelmente quando engravidei de Samuel.

O pensamento leva um arrepio para todo meu corpo.


Engravidei do Lex. Do filho do Lex.

Aguardo sua resposta em silêncio, sem desviar o olhar e, por


fim, ele diz:

— O tempo é agora.
Lex se ajoelha em frente a mim e toma meus lábios enquanto
sua mão explora meu centro, arrancando meu gemido de prazer. Seu
pau se choca contra meu ventre. Rígido e imponente, ardendo por
mim. Sinto-me amolecer ao perceber que isso me excita e me faz
querer mais. Eu o toco, envolvendo, sentindo-o pulsar em minha mão
sem poder esperar mais.

— Preciso de você dentro de mim. Temos a vida toda para


nos amar aos pouquinhos, mas agora tenho urgência. Não consigo
esperar mais nem um segundo para te sentir. Quero-o pulsando-o
dentro de mim, quero que seja o único, que se derrame e mostre ao
meu corpo a quem ele jamais precisará temer.

Lex me puxa e se vira na cama, acomodando-me por cima


dele enquanto me beija com possessividade. Eu me apoio sobre os
joelhos, sentindo seu pau pressionar meu centro, louco para entrar.

Para este homem eu sou prioridade. Ele me colocou por cima,


para que eu tomasse cada decisão e ditasse o ritmo, para que eu
soubesse que tenho o controle. Nós nos encaramos, enquanto sento
sobre ele permitindo que seu pau me preencha.

Por um instante, meu coração se acelera de medo, mas a


memória é substituída pelas vezes que Lex e eu fizemos amor, seja
com delicadeza, seja com uma intensidade violenta a ponto de nos
fazer entrar em combustão, sem nunca machucar.

Meu corpo se lembra de Lex e o recebe como uma rainha


receberia seu rei.
Capítulo 41

Now I see you, I'm frozen in time


All your colors burst into life
I don't dare close my eyes
'Cause a love like this happens once in a lifetime[12]
Skillet – Watching a comet

Meu pau pulsa contra o interior quente de Flávia. O fogo


se alastra por todo meu corpo a cada movimento dela sobre mim.
Seguro sua cintura com as mãos e ergo meus quadris ao encontro
do dela.
O prazer refletido em seu rosto me estimula a continuar com
as estocadas. Ela aperta os seios e geme, transbordando
sensualidade. Eu a amo. Eu a amo com tanta intensidade que
mataria por ela. Faço o que for preciso para vê-la assim,
deslumbrante, livre, permitindo-se sentir prazer outra vez.
Estar dentro de Flávia envolvido por sua carne molhada
desperta uma emoção tão gostosa que faz com que esse momento
se pareça com muitos sonhos que tive ao longo desses anos. Mas é
real. Estamos juntos. Estamos conectados ao máximo. E ela quer
mais. Seu corpo demonstra que quer mais ao se afundar com mais
força, ao aumentar o tom dos gemidos, ao falar meu nome.
— Vou passar minha vida amando você. — Digo enquanto
meu polegar encontra seu clitóris e o massageia. — Você é livre,
minha Mor. Livre para voar para onde quiser.
— Lex... — Ela apoia as duas mãos no meu peito e rebola,
cada vez mais perto. Aumento a força do movimento o suficiente
para deixá-la à beira da combustão. — Escolho voar com você.
Quero voar com você!
Suas últimas palavras se perdem em murmúrios desconexos
enquanto seu interior contraí pressionando meu pau e me fazendo
voar com ela. Desbravo o caminho preenchendo-a, marcando-a
como ela me pediu para fazer.
Flávia se deita sobre mim e apoia a cabeça no meu peito,
sobre a tatuagem.
— Quero morar aqui. — Ela beija a borboleta.
— Você já mora. É seu lugar por direito.
— Eu te amo, Lex. Amo tanto. No tempo em que passamos
separados, todas as noites, eu pensava em você. Meu coração se
partia por imaginar que nunca mais me sentiria assim, perfeitamente
feliz em seus braços.
Acaricio suas costas e a abraço, querendo mantê-la ali. Seus
cabelos estão espalhados por meu rosto e eu os deixo ali, sentindo o
perfume.
— Seu coração está seguro agora, Mor. Assim como o meu.
Eu te amo. Não há nada em mim além de amor por você.
Eu reencontrei minha borboleta. Tão linda, forte e sensível.
Reencontrei minha família, a quem passarei a vida amando e
protegendo.
Não há mais nada que eu deseje, além de viver ao lado das
pessoas que amo e que abriram seu coração para me amar de volta.
Capítulo 42

Você surgiu
Iluminou a rotina
Me fez a sua menina
E quando a gente sorriu
O céu se abriu
Mariana Nolasco part. MAR ABERTO – Constelação

Estou lânguida nos braços de Lex. Seu coração bate


contra meu ouvido. Ouço suas batidas e suspiro, feliz por estar em
casa.

Nós dois fomos destruídos, mas o passado não nos controla


mais. A felicidade também é para nós.

Quando o Sr. Fernando conversou comigo, ele terminou de


me libertar. Ao saber que, com certeza, meus algozes nunca mais
poderiam me alcançar, meu coração se sentiu livre para voar para
onde quiser e ele escolheu voar, pousar e fazer ninho em Lex, sua
morada tranquila.

— Como vamos contar aos meninos? — Pergunto, enquanto


Lex acaricia minha nuca.

— Sobre o que exatamente? — A calma em sua voz alivia


qualquer tensão que estivesse para sentir.

— Sobre tudo. Quer dizer, não os detalhes.


— O que acha de, por enquanto, não contarmos nada além do
fato de que sou pai deles? Depois iremos todos para a terapia para
que possamos saber melhor como lidar, como contar e como apoiá-
los.

— É um bom plano. Vamos contar logo que você é o pai


deles? — Estou agitada.

— Quer fazer isso agora? Quer voltar?

— Não. Voltaremos amanhã, mas eles querem tanto que você


seja o pai deles. Já me pediram isso três vezes. — Rio baixinho.

— Eu ganhei. Eles me pedem todos os dias. — Sua risada se


junta a minha.

— Vamos deixá-los dormir tão felizes quanto você e eu


dormiremos hoje.

— É pra já!

Com carinho, Lex rola meu corpo para o lado e me beija,


antes de procurar onde o celular foi parar na cama.

— Vamos! Vamos! — Estou empolgada. — Quero que eles


saibam o quanto antes que eles têm o melhor pai do universo.

Lex ergue a mão e diz:

— Do multiverso.

— Nerd. — Provoco e sou punida com um beijo avassalador,


antes que Lex ligue para Rafael e peça para que ele chame nossos
filhos.

Enquanto aguardamos, eu me ajeito no meio das pernas de


Lex, encostando a cabeça contra seu peito.
— Oi, Lex! Oi, mãe! — Bruno está ofegante. Deve ter vindo
correndo.

Ao fundo, posso ouvir a voz de Samuel:

— Quero falar, quero falar!

— Bruno, coloca no viva voz que sua mãe e eu temos algo


para contar.

Ele nos atende e podemos ouvir os dois contando


empolgados que ajudaram o Lucas a preparar uma pizza. Nós
conversamos um pouco e Lex pergunta:

— Vocês estão sozinhos, meninos?

Bruno grita sim ao mesmo tempo em que Samuel grita não e


nem preciso me esforçar para imaginar o motivo.

— Eu saio por algumas horas e algum engraçadinho ensinou


meus filhos a mentir.

— Em minha defesa, não fui eu que fiz nada. — Rafael se


explica. — E como é essa última parte aí?

— Tecnicamente não é mentira quando eles estão na sala de


estar e nós estamos na sala de jantar. — Vô Fernando se defende.

— Os ambientes ficam no mesmo cômodo, vô. — Lex replica.

— Você me chamou de vô?

— Chamou, sim, vô. — Complemento.

— Vicente vem cá ver como está a minha pressão! — O Sr.


Fernando brinca.

— Eu não vou aí ficar ouvindo a conversa alheia com todos


vocês. — A voz de Vicente soa longe. Deve estar na varanda. — Seu
coração intrometido aguenta.

Lex e eu nos entreolhamos e murmuro:

— Todos estão lá?

— O que quer fazer? — Lex pergunta, deixando que eu


decida.

— Vamos contar. Você diz. Eles vão gostar de ouvir de você.

— Meninos — Lex começa, emocionado. —, sabem aquilo


que vocês me pedem todos os dias?

— Sorvete? — Samuel questiona.

— Pra ser nosso pai? — Bruno fala por cima e Samuel grita.

— Pra ser nosso pai? — Meu pequeno repete.

— Sim. — As lágrimas caem pelo rosto do homem mais


perfeito que conheço, antes que ele continue: — Sou seu pai.

Meus filhos começam a gritar e logo recebem um coro de


apoio, quando toda a família comemora.

— O Lex é nosso pai! — Bruno está quase rouco de tanto


gritar.

Aos poucos eles vão se acalmando e podemos ouvir a voz da


Priscila:

— Eu disse. A Fada Azul não mente. Ela trouxe dois meninos


em vez de um e eles nem são de madeira. — Priscila se gaba. —
Próximo missão: encontrar uma namorada para o tio Vicente.

— Vai arrumar namorada nenhuma pra mim, pirralha! — O tio


rebate.
— Pra tia Mila, então. — Priscila nem se abala.

— Meu anjinho, a tia Mila não quer homem não. — Mila


explica.

— Mulher então? — A menina insiste.

— Infelizmente não dá. Eu serei como a Elza, pode ser?

— Ok, é um bom plano.

— Ô, Priscila, se eles estão dispensando, eu quero um amor,


viu? — Maurício pede. — Toda ajuda é válida.

— Pode deixar, tio Maurício. Eu e os meninos começaremos


os planos hoje mesmo. Gosto quando meus serviços são apreciados.
— Ela imita o avô.

— Essa menina é meu orgulho. — Vô Fernando fica


orgulhoso.

— Muito bem, agora vão namorar. — Vó Lorena pega o


telefone. — Por aqui, teremos uma festa do pijama.

Quando encerramos a ligação, conto para vó Lucinda, que


responde com um simples “eu sabia, mas estou contente que agora
você também sabe.”. Avisamos que iremos para Quatro Estações na
semana que vem e ela também nos manda desligar a ligação e ir
namorar. Não podemos desobedecê-las, não é mesmo?

— Eu estou sentindo meu coração acelerado. — Levo a mão


do Lex ao meu peito. — É algo diferente. Uma felicidade intensa,
sabe? Acho que nunca fui feliz desse jeito antes. Os meninos estão
bem. Nós estamos bem. Todos estão felizes.

— É assim que nos sentimos quando estamos cercados de


amor. — O sorriso sereno de Lex torna tudo ainda melhor.

— Eu posso me acostumar com isso. — Suspiro.


— Acostume-se, Mor. É tudo o que terá daqui em diante.

Eu me viro e me sento em seu colo, envolvendo com minhas


pernas e tocando seu rosto, antes de pedir:

— Lex, faz amor comigo de novo?

— Isso é o tipo de coisa que você não precisa nem pedir. Não
está sentindo? — Ele pressiona o pau contra minha entrada. —
Estou sempre pronto para te servir.

— Ótimo, porque tenho outro pedido.

Eu o beijo, deliciando-me com a forma como ele suga minha


língua enquanto me acaricia entre as pernas.

— Peça e será atendida.

— Agora você vai por cima.

Aprecio o som da sua risada contra meus lábios e dou um


gritinho de prazer quando Lex vira meu corpo com um só impulso,
repetindo a frase que faz meu corpo arder por ele:

— Seu pedido é uma ordem, Mor.

Com certeza, vou me acostumar e adorar cada segundo


disso.
Capítulo 43

Pra você eu me desmonto


Eu quero que minha voz cante no teu ouvido
Você me lembra que não há nenhum perigo
No quarto escuro pra dormir
E agora eu durmo bem
ANAVITÓRIA – Explodir

Acordar nua, nos braços do homem que amo, é uma


sensação maravilhosa. Lex ainda está dormindo e me permito ouvir
seu ressonar baixinho, agradecendo pelo destino ter nos
reaproximado. Quer dizer, não sei se podemos chamar de destino
um senhor, um homem tatuado e uma menininha – os três usando
asinhas azuis.

Por falar em Rafael, daqui a pouco ele trará os meninos. Foi


uma boa ideia, assim podemos nos encontrar com eles antes de
voltar para o Castelo dos Villa, onde uma grande festa está sendo
preparada.

Lex e eu passamos a noite nos amando. Adormecemos


exaustos. Quando acordei, demorei a acreditar que não era um
sonho, que estou vivendo a vida real e que não mereço menos do
que estar feliz com meus filhos e com o homem que amo.

A longa puxada de ar contra meu pescoço, me indica que Lex


acordou. Ele desce a mão dos meus seios ao meu centro, que
rapidamente entra em chamas.

— Eu te amo, Mor. — Lex me massageia e fico lânguida


contra seu corpo.

— Eu te amo, Lex.

O porteiro avisa quando Rafael chega com as crianças e abro


a porta. Saio, abraço meus filhos e digo para entrarem. Quero que
tenham um momento a sós com seu pai.

Rafael e eu nos entreolhamos por uns segundos. Ele sorri de


orelha a orelha. Tão empolgado como um labrador. Bem que o Lex
disse.

— Obrigada. — Digo, estendendo a mão.

— Pelo quê? — Ele aperta a minha.

— Por conhecer o Lex tão bem, por cuidar dele, por ter me
procurado e me encontrado.

— Eu faria qualquer coisa pelo Lex. Ele é meu irmão. — Ele


responde como se nunca precisasse de agradecimentos por isso.
— Na história de vocês, as pessoas podem pensar que o Lex
cuida mais de você, mas não sei se elas imaginam o quanto você faz
por ele. Não sei se ele teria conseguido chegar à vida adulta se você
não tivesse cruzado o seu caminho.

Rafael sem palavras é novidade. Seus olhos azuis brilham e


ele pisca algumas vezes, enxugando as lágrimas até que finalmente
diz:

— Eu não teria sobrevivido à vida adulta se o Lex não tivesse


cruzado o meu caminho na infância. Estou feliz por você estar com
ele. Estou feliz pra porra por ele ter a família que sempre sonhou. Ele
é meu irmão. — Repete, abrindo os braços para mim. — E todos
vocês são minha família agora.

Por um instante observo esse homem forte e tatuado com um


coração gigante e me permito abraçá-lo. Ele pode ser humilde
quanto a tudo o que fez por Lex, mas serei eternamente grata por
esses dois terem se encontrado um dia.
Capítulo 44

Just know, that wherever you go


No, you're never alone
You will always get back home[13]
Jason Mraz – 93 Million Miles

Estou em pé, próximo ao sofá, quando Bruno e Samuel


entram. Meu coração bate tão rápido que me assusto. Aperto as
mãos e observo Flávia saindo do apartamento enquanto Bruno corre
para mim.

— Pai! — Ele grita enquanto me abaixo e ele gruda no meu


pescoço. — Eu sabia que você era meu pai. Eu sabia!

— Eu sou seu pai, Bruno. — Coloco uma mão em sua cabeça


e outra nas costas. — Sou seu pai.

Estou chorando e Bruno também. Talvez seja por isso que


Samuel está parado a um metro de nós, calado.

— Está tudo bem, meu filho? — Estendo a mão.

— Esse choro é de felicidade ou tristeza? — Ele pergunta,


dando um passinho incerto na minha direção.

— Felicidade! — Bruno e eu dissemos ao mesmo tempo.


Um sorriso surge e Samuel corre, pulando sobre mim. Caio
para trás com o peso dos dois, que dividem o espaço sobre o meu
peito.

— Pai. — Samuel passa a mãozinha por minhas lágrimas.

— Sim, eu sou seu pai.

— Você vai ficar pra sempre? — Ele pergunta, com os olhos


brilhando.

— Pra sempre. — Respondo, passando a mão por seu rosto.

— Não se preocupa, Samuel. — Bruno fala, erguendo a


cabeça para me olhar. — O nosso pai não mente. Ele é um dos
bons.

Eu sou um dos bons. As palavras reverberam. Sou um dos


bons. Com meu passado e minhas marcas, ninguém estranharia se
eu fosse um dos maus, mas sou um dos bons. Depois de tudo o que
passei, eu me tornei a pessoa de quem precisava na infância. Sou o
pai que meus filhos precisam e passarei a vida dando o meu melhor
para que eles possam ser livres e felizes.

Beijo os dois, choro, abraço, aperto, cheiro. Um desespero


bate e quero marcar esse momento, mas depois um alívio preenche
meu peito, me tranquilizando. Tenho todo tempo do mundo.

Quando Flávia e Rafael entram, ambos estão com lágrimas


nos olhos e elas aumentam ao nos encontrarem abraçados no chão.
Flávia vem até nós e a puxamos, para que se junte ao abraço.

Rafael limpa o rosto com o dorso das mãos e sorri para mim,
que retribuo, acenando. Não é preciso palavras. Eu sei. Ele sabe. Ele
é meu irmão e sabe o que estou sentindo, porque ele pode sentir
tanto minha tristeza quanto minha felicidade.

Em silêncio, Rafael sai e fecha a porta, deixando-me com a


família da qual ele sempre fará parte.
Não sei como todas as pessoas entendem o amor e a
amizade, mas a verdade sobre relacionamentos saudáveis é que
todos nós resgatamos uns aos outros. Ora um está melhor, ora outro
está pior. É maravilhoso quando os dois estão bem ao mesmo tempo
e é igualmente gratificante saber que se os dois estiverem mal ao
mesmo tempo, cada um fará tudo o que puder para ver o outro bem.
Como diria o Rafa, isso é amor, porra.
Agradecimentos

Aos personagens, que não me abandonam;


Aos leitores, que me apoiam e sempre querem novas
histórias;
Aos meus filhos, pela felicidade de estarmos juntos;
À minha família, cujos laços são maiores que o sangue,
a todos vocês, muito obrigada.
Sobre a autora

Bianca Briones cria histórias desde antes de saber escrever. Foi


uma menina sonhadora e manteve essa qualidade, o que a faz se
perder em pensamentos com frequência. O romantismo explodiu em
sua vida na adolescência, quando decidiu que seus filhos teriam
nome de heróis. E tiveram — Athos e Arthur são dois garotos
encantadores que a salvam todos os dias. Desde 2010, Bianca tem
como prioridade a escrita e está sempre trabalhando em um novo
projeto, enquanto outros personagens esperam pacientemente (ou
nem tanto) que ela também escreva suas histórias.

É autora da série Batidas Perdidas, Sonhos de Avalon, Em suas


Mãos, “As Fases da Lua”, de “Como se fosse magia” e "O coração
atrás da porta". Atualmente está trabalhando em um novo projeto,
enquanto outros personagens esperam pacientemente (nem tanto)
que ela também escreva suas histórias. Nas horas vagas, está
sempre acompanhada de um bom livro, seus filhos Athos e Arthur;
de seus gatos Merlin, Thibum e Messi, e de seu coelhinho e
Lancelot.

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[1] Eu quero começar deixando você saber/ Que por sua causa minha vida tem um
sentido/ Você me ajudou a ser quem eu sou hoje/ Eu me vejo em cada palavra que você diz/
As vezes parece que ninguém me entende, preso a um mundo/ Onde todos me odeiam/
Tem tanta coisa que eu tenho que passar/
Eu não estaria aqui se não fosse por você
[2] Acendi um fogo com o amor que você deixou para trás,/ E queimou selvagem e
rastejou até a montanha./ Eu segui as suas cinzas para o espaço sideral/ Eu não posso
olhar pela janela,/ Eu não posso olhar para este lugar
[3] Apenas um pouco de adrenalina, querida/ Para de me deixar tonto, para corromper a
minha mente/ Apenas um pouco de silêncio, querida/ Nossas veias estão ocupadas mas
meu coração está em atrofia/
Tudo que distraia e entorpeça.
[4] Não há nenhum lar/ nenhum lar como você./ E agora você está fugindo.
[5] Eu não estou te dizendo para voltar para mim/ Tudo o que estou dizendo/ é que se
você um dia voltar/ eu esquecerei cada coração partido/ para me reapaixonar por você
[6] Dizem que lar é o lugar onde seu coração está/ Então, eu estou em casa agora,
porém estou longe/
Por muito tempo, eu deixei florestas profundas guardá-lo/ E agora está me implorando
para ficar.
[7] Eu quero te provar de novo/ Como um segredo ou um pecado/ Expirando e
inspirando/ Não existe mais ninguém pra mim/ Além de você/ Só você
[8] Enquanto você me tiver/ E eu te tiver/ Você sabe que nós temos muito para
continuar/ Eu serei seu amigo/ Seu outro irmão/ Outro amor para vir e te confortar
[9] Você pode me segurar?/ Você pode me segurar?/ Você pode me abraçar?/ Apenas
me envolva no seu abraço, em seus braços./ Eu não quero estar em nenhum lugar além
daqui./ Tire-me da escuridão, da escuridão./ Eu não vou conseguir sozinho.
[10] Aqui é onde nós decidimos/ Pelo sol poente e pela maré crescente/ Se ficamos e
desaparecemos ou testamos nosso alcance/ Querida, você não vem comigo?/ Querida,
você não vem comigo?
[11] A bússola aponta sua casa/ Chamando do leste/ A bússola aponta você em
qualquer lugar/ Mais perto de mim
[12] Agora eu vejo você, eu estou congelado no tempo/ Todas as suas cores explodem
em vida/ Não ouso fechar os olhos/ Porque um amor como esse acontece uma vez na vida.
[13] Apenas saiba, onde quer que você vá/ Não, você nunca está sozinho/ Você sempre
voltará para casa.

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