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INSTITUTO DE ARTES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS
DESNUDAMENTO DO REAL:
PROCEDIMENTOS CÊNICOS ADOTADOS NAS CRIAÇÕES DE
TROUBLEYN E RIMINI PROTOKOLL
PORTO ALEGRE
2019
DESNUDAMENTO DO REAL:
Porto Alegre
2019
FOLHA DE APROVAÇÃO
DESNUDAMENTO DO REAL:
AGRADECIMENTOS
A todos aqueles que estiveram juntos a mim nesta jornada dentro do Programa
de pós-graduação em artes cênicas da Universidade Federal do Rio Grande do
Sul; aos professores Marta Isaacsson, Suzi Weber, Patrícia Fagundes, Vera
Lúcia Bertoni, Mônica Dantas e demais professores do corpo docente, discente
e funcionários.
Aos professores Bya Braga, Élcio Rossini, e Clóvis Dias Massa, por aceitarem o
convite para participar da banca de doutorado, tecendo comentários e sugestões
de fundamental importância.
A minha mãe, Vera Lúcia Pires, e todos aqueles que contribuíram de alguma
forma para esta escrita. Seja de forma intelectual, seja de forma afetiva.
RESUMO
No campo de estudo das práticas teatrais contemporâneas, esta tese traz como
questão central a tensão interposta entre as camadas do real e do ficcional do
acontecimento cênico, observada em algumas encenações. Problematiza-se o
diálogo entre teatralidade e performatividade, do ponto de vista dos
procedimentos técnicos empregados, à partir da análise de dois coletivos
artísticos europeus. O flamengo Troubleyn investe na performatividade intensa
ao colocar em evidência a materialidade dos corpos de seus praticantes. Ao
estruturar a cena como ciclos de atividades longas e repetitivas, o grupo
evidencia tanto as pulsões instintivas do homem como a sua realidade
fisiológica. A tese entende como uma performance biológica esse processo que
envolve corpos em desgaste, o qual o espectador experimenta por empatia. Por
outra via, o coletivo suíço-alemão Rimini Protokoll investe no real pelo conjunto
de procedimentos que vai desde a convocação à cena de não atores, e seus
relatos de vida, até a criação de espaços onde o espectador é convidado a
construir o acontecimento cênico. Ao se investir na potência do real em cena são
instaurados espaços para renegociação de acordos entre artistas e
espectadores, propondo zonas conviviais, e que podem resultar na mudança de
percepção em relação aos contratos estabelecidos na sociedade e na vida.
RÉSUMÉ
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .................................................................................................... 16
CAPÍTULO I
CAPÍTULO II
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CAPÍTULO III
3.1 A experiência formativa sobre si mesmo: o curso From act to acting ...... 120
3.1.1 Influências grotowskianas ........................................................................ 157
3.1.2 Meyerhold e a Machine House ................................................................. 160
CAPÍTULO IV
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BIBLIOGRAFIA................................................................................................. 275
ANEXOS
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INTRODUÇÃO
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Tradução minha para “L’instinct de transmuter des apparences offertes par la nature en
quelque chose d’autres ”.
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“Em princípio a teatralidade aparece como operação cognitiva e até mesmo fantasmática”
(FÉRAL, 2015, p.87).
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Minha imersão nessas duas poéticas se deu de forma que o meu olhar
tocou, confrontou-se com esses universos criativos. Um olhar de corpo e alma.
Desloco-me aos berços das duas companhias ora analisadas, e assim, adquiro
conhecimentos, através de conversas, entrevistas, diálogos informais, oficinas, e
espetáculos assistidos. Por exemplo, em Lyon, na França, participo do curso de
formação para performances constituído pelo treinamento do Troubleyn. Dessa
forma, assumo, que esta pesquisa tem inspirações tanto da etnografia quanto da
cartografia. Pois esta se constituiu, antes de mais nada, como um processo
vivido, experimentado na prática do “experienciar - fazer - refletir”. Penetrar na
tessitura das ações como possibilidade de conhecimento é concordar com
Salles que “vivendo os meandros da criação, quando em contato com a
materialidade desse processo, podemos conhecê-lo melhor” (2014, p.22).
Movimentaram, pela força comunicativa e poética, a ação necessária para
mergulhar no doutoramento na linha de pesquisa processos de criação cênica, a
fim de investigar algumas possibilidades na prática teatral contemporânea, como
a de confiscar a artificialidade própria da arte, deixando a descoberto o olho do
espectador.
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através de corpos que tensionam seus músculos e órgãos ao limite das suas
resistências, até ações brutais endereçadas uns aos outros.
No capítulo II a tese se debruça sobre a poética do artista Jan Fabre.
Para o exame qualificado das criações do artista, resgatam-se elementos
característicos do movimento artístico da chamada vague flamande no qual este
costuma ser inserido e que apresenta determinadas características de suas
produções. Também desenvolve painel crítico sobre sua poética no campo da
performance art que influenciou toda sua produção teatral, identificando as suas
bases criativas.
Em seguida, se desenvolve o conceito de performance biológica, onde a
luta de caráter eminentemente física do performer com ele mesmo desgasta seu
corpo e o aciona energeticamente, traduzindo-se em presença marcante em
cena. A seguir se realiza análise do espetáculo Mount Olympus com o objetivo
de perceber como o real é colocado em cena, tendo na performance biológica
seu princípio estruturante. Dessa forma, clarifica-se a prática desenvolvida pelo
grupo que aporta uma dimensão de real pelo viés fisiológico.
Em decorrência da oportunidade de participar dos procedimentos
formativos do grupo durante a pesquisa de campo, o capítulo III analisa o
treinamento do performer do Troubleyn a fim de identificar os procedimentos
corporais que compõem a performance biológica. Pela via de experiências
corporais internaliza um fazer que confere autonomia criativa para o performer a
partir de um alfabeto constituído para ser usado em cena. Possibilita-se
igualmente sistematizar as características processuais, perceber como o grupo
ativa as cenas, a partir de quais disparos criativos, jogos e exercícios. O
performer se apodera do que fez percorrendo o caminho da experimentação
para então manipular o que assimilou para si, preparando um artista
independente e criativo. A seguir, percebe-se esse treinamento colocado em
cena, através da identificação dos exercícios e jogos agindo no interior dos
quadros de Mount Olympus, entre o treinamento e a criação.
O capítulo IV avança aspectos fundamentais da poética do coletivo
Rimini Protokoll e os procedimentos cênicos utilizados para suspender a
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Tradução minha para “l’effort de représentation”.
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Idem “dimension d’altérité à laquelle il n’y a jamais d’accès direct”.
14
Idem “vues multiples, fragmentées, éclatées.
Idem “au seuil de la représentabilité”.
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Apresenta-se aqui exemplos recentes em contexto nacional, apesar de que o teatro de
mobilização social, tal qual apresenta a autora francesa, pode ser encontrado em contexto latino
muitas décadas antes. Basta retomarmos à estética do Teatro do Oprimido, de Augusto Boal
(1971), por exemplo.
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Carioca Dicró, na Penha. Do Sul do Brasil, cito o coletivo DAS FLOR, de Porto
Alegre, que estabelece diálogos e vivências artísticas para diferentes contextos
sociais gerando performances pela mobilização das comunidades periféricas em
que se desenvolve, como a apresentação do espetáculo Lombay (2014), criado
e apresentado no bairro Lomba do Pinheiro. Saison utiliza o termo effraction,
para caracterizar essa mobilização do teatro em direção a parcelas sociais
excluídas, e que poderia equivaler-se a difração, invasão, arrombamento do
teatro em direção a um real múltiplo, contribuindo para a “irredutível pluralidade
de versões de mundo” (SAISON, 1998, p.39)17.
O evento emblemático para reflexão de Saison sob os “teatros do real” foi
um ato de protesto realizado no mês de julho de 1995, na França, durante o
Festival europeu de Avignon, onde uma greve de fome18, realizada por artistas
de teatro, expande-se para uma ação exterior ao campo artístico. Esse
engajamento concreto dos artistas no terreno da realidade levantou
desconfiança à época se era de fato uma greve de fome real. Pode-se dizer que
a ação efetiva, que colocava em risco a integridade física dos participantes, foi
“denegada” durante certo tempo, demonstrando a potência do olhar teatralizante
do observador, a qual invade o cotidiano, os espaços, investindo de teatralidade
ao menor indício de que ali há teatro.
17
Tradução minha para “l’irréductible pluralité des versions du monde”.
18
Como ato de protesto contra a “limpeza étnica” que ocorria na Bósnia durante a guerra que
assolou o país entre os anos de 1992 a 1995.
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imagem presente e um objeto ausente, uma valendo pelo outro – traça toda a
teoria do signo do pensamento clássico, e serve de modelo de um mundo total e
coerente. Não é à toa que “os historiadores constantemente recorreram à
metáfora do drama, das tragédias e da comédia para descrever o sentido e a
unidade interna dos processos históricos” (LEHMANN, 2007, p. 61). É desse
Real no campo das artes da cena ao qual se quer distanciar, “fazer luto” nas
palavras de Saison, (1998); é esse Real que se rasga em pedaços (NANCY,
1993) na pós-modernidade.
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Do latim authenticus, que se refere a originais, particularmente documentos originais (GARDE;
MUMFORD, 2016).
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Tradução minha para “It is a paradoxical term that, by referring to the artifice of theatrical
techniques, points to the complex nature of authenticity both on and off stage”.
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Para exemplo mais evidente dessa tensão, a autora analisa determinados espetáculos do
italiano Romeo Castelluci, onde ele utiliza-se de atores com corporalidades “fora da norma”, de
maneira que eles se sobressaiam aos personagens que intepretam.
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“O teatro de ilusão é uma realização perversa da denegação” (UBERSFELD, 2013, p.23).
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palco do teatro, ou no local original, ou que faça referência ao local original onde
o documento foi gerado, ou onde se passou o acontecimento investigado? Os
documentos autênticos estão puros ou misturados a elementos ficcionais?
Possibilidades múltiplas de agenciamento que aparecem nos “modos
renovados de teatro documentário” (FERNANDES, 2013, p.1) e que interferem
na maneira na qual são percebidos esses materiais. A forma em que o teatro
“submete os fatos à perícia” (WEISS, 1967, p. 11) e transforma os documentos
em uma peça teatral para evidenciar as ideias do autor é processo central no
teatro documentário. Como exemplo, cito a própria dramaturgia de Peter Weiss,
O interrogatório. Dirigida pelo autor mesmo, estreiou simultaneamente em 14
teatros entre Alemanha e Inglaterra, no ano de 1965, em um evento teatral
único. Os autos testemunhais do processo de Frankfurt contra os criminosos
nazistas de Auschwitz serviram de base para comprovar sua tese de que os
campos de concentração seriam uma consequência do modo de organização
capitalista da sociedade. Weiss acompanhou o julgamento desse processo real
muito midiatizado na época, tomou notas para depois utilizar na composição
textual. A noção de “documento” e a forma como o autor se utiliza dela tem
como característica a seleção e edição desses depoimentos reais, que se
transforma numa contrução de um sujeito coletivo que testemunha com
objetividade em cena25.
Em termos de encenação - sob o subtítulo de “oratório em 11 cantos”26 -
se distancia completamente da reconstrução espacial do tribunal original,
retomando a disposição espacial de um gênero musical. O tribunal de Weiss faz
ver uma realidade de outra ordem que não a da justiça jurídica, necessária para
aprofundar a discussão sobre a natureza do nazismo, ainda tabu à época. O
texto se revela uma montagem dos testemunhos juntamente com produção
textual fictícia interpretada por atores, que têm na voz o documento. É na voz do
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Weiss também elimina os autos de acusação e defesa do processo e retira todo o conteúdo
emocional do acontecimento original.
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Oratório é um gênero de composição musical cantada e de conteúdo narrativo em que
solistas, coro e orquestras interveem, às vezes, como um narrador.
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Série de repetições fotográficas reais de acidentes de carro fatais, e de celebridades já
falecidas à época, como Marilyn Monroe e Jackeline Onassis.
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No começo dos anos 60, Lacan estava preocupado em definir o real em termos do trauma.
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fragmentos, irrompe aos pedaços, sempre um real que nunca se torna capaz de
concretizar-se em sua inteireza.
Por isso o realismo traumático é deixar tocar-se por um real que vai
contra a “domesticação da imagem”, no sentido de uma ausência da “reserva
cultural” (FOSTER, 1996, p.170) que permite olhar para o mundo com
segurança:
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condições se rompem, o retorno desse real violento pode fazer a morte desse
animal se intensificar31.
Pensar o teatro em um retorno lacaniano ao real, pelos princípios
colocados, bem pode apresentar em cena elementos a partir de um estado
anterior às significações, multiplicando possibilidades do olhar pela experiência.
Nesse sentido, a representação é interrompida, fornecendo acesso ao real como
algo que acontece, que não se fixa, mas que irrompe no tecido da cena. Como
os espetáculos do Teatro da Vertigem, onde Fernandes identifica “momentos de
intensa fisicalidade e auto-exposição” onde “a representação parecia entrar em
colapso, interceptada pelos circuitos reais de energia desses vários sujeitos”
(FERNANDES, 2009, p. 45)32.
Ora, se esses “circuitos reais de energia” dos performers não se
aproximam do teatro de energias como descrito por Lyotard:
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Como a exposição proibida no centro Pompidou do franco-chinês Huang Young Ping onde ele
expôs um viveiro, denominado de O teatro do mundo (1994), com insetos vivos presos em uma
redoma de vidro que se comiam entre si. Segundo Féral, a violência da obra vem do fato de ser
apresentada como arte, como se tivesse um valor de representação, um valor simbólico em um
lugar onde a morte e a violência impera (Féral, 2012).
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Como o espetáculo Apocalipse 1,11 que abordou o episódio do massacre no presídio de
Carandiru em São Paulo e a queima de um índio pataxó em Brasília.
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Tradução minha para Prometheus Landscape.
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FIGURA 4 - Jan Lowers/Needcompany - O quarto de Isabela e Ivo van Hove - Hedda Gabler.
Crédito: Site dos artistas
Na revista belga Théâtre Public (2014), o pesquisador Luck van den Dries
enumera fatores que promoveram o desenvolvimento da vague flamande, entre
eles: a tendência histórica da região em não compactuar com referências
tradicionais do passado, devido à ausência de artistas clássicos das artes da
cena na região favorecendo, por conseguinte, uma expressão mais livre e
individual de seus artistas; abertura para a produção artística que se passava
fora do país, recebendo sistematicamente artistas da vanguarda estrangeira,
entre eles, Robert Wilson, Peter Brook, Pina Baush e Tadeuz Kantor; apoio à
comunidade flamenga recebida de produtores autônomos, possibilitando que
artistas e grupos se desenvolvessem de forma independente em termos de
estrutura, organização e linguagem. Fatores esses que propiciaram um clima
teatral particularmente fecundo.
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seja pela linguagem da performance art. Suas experiências no campo das artes
presenciais se inicia aos dezenove anos, quando se expõe durante longo
período de tempo em vitrine de loja, vestido com roupas confeccionadas com
páginas de jornais, para criticar os mecanismos do poder do comércio, através
da performance Ilusão do dia34, de 1977. No ano seguinte, realiza a performance
privada Meu corpo, meu sangue, minha paisagem35, utilizando o próprio sangue
como matéria-prima para experimentação visual.
A impossibilidade de representar a morte e o desaparecimento do corpo
em sua totalidade faz o real retornar através de um elemento de forte poder
simbólico: o sangue - em vez de ser representado pela tinta - irrompe em sua
concretude no espaço da pintura de Fabre.
FIGURA 6 - Delusion of the Day e Mon Corps, mon sang, mon paysage
Créditos: Revista Beaux Arts
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Tradução minha para “Delusion of the day”.
Idem “Mon Corps, mon sang, mon paysage”.
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“Pintura instantânea, que é realizada como espetáculo na frente de uma audiência” (COHEN,
1996, p. 39)
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Tradução minha para “sur l’être humain qui a oublié qu’il est une espèce animale, a été une
riche source d’inspiration, au même titre que la célèbre citation de Nietzche qui dit que l’homme
est un animal malade”.
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Idem “Stigmata: Actions et performances (1976-2016)”.
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influências para Fabre criar uma expressão teatral típica: a metamorfose física
como centro do acontecimento cênico: “um corpo real, biológico, físico, mas
também corpo coletivo, mítico e espiritual” (VAN DEN DRIES, 2014, p.13)46.
FIGURA 14 - Cenas dos espetáculos Papagaios e cobaias (2002) e Anjo da morte (2003).
Crédito: Wonge Bergmann
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Tradução minha para “un corps réel, biologique, physique, mais aussi un corps collectif,
mythique et spirituel”.
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Serão citados noções acerca da biologia humana e seus sistemas de funcionamento para o
entendimento dos processos do corpo e da cena em Fabre, de forma objetiva ou metafórica. Não
pretendendo apresentar um compêndio sobre o funcionamento biológico do corpo.
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Escola Internacional de Antropologia Teatral, dirigido por Eugenio Barba.
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Tudo o que Decroux propõe em sua arte acaba, assim, por ressoar um
elogio ao exercício material da ação, ou seja, o fazer da ação mediado
pela experiência corporal. Por consequência, há um elogio seu ao corpo
humano e à biologia criadora (BRAGA, 2011, p.13).
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Nesses momentos não há interrupção total do espetáculo entre os grupos de quadros. Pois os
perfomers dormem em cena, ou seguem realizando ações em “câmera lenta”. O total de
intervalos performáticos é de 3 horas e dez minutos.
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Informação coletada em conversa informal realizada com o produtor do grupo, Marck Gueden,
em setembro de 2017 na cidade da Antuérpia.
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Tradução minha para “Menège de Clytemnestre et Iphigénie autour d’Agamemnon”.
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A composição do quadro mistura elementos conectados ao teatro e a performance
concomitantemente. No centro do palco um performer representando o personagem Agamenon
imóvel, enquanto duas performers, no papel de Hifigênia e Hipólita, realizam piruetas em volta
do herói até o cansaço e a desorientação provocados pelos giros, fazendo com que elas
tropecem e tombem constantemente, perdendo a trajetória espacial e formalização corporal
originalmente proposta. Depois de 30 minutos, a performer no papel de Hipólita começa seu
monólogo colérico contra Agamenon.
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Para mais informações sobre esse procedimento, ver artigo “A tragédia de uma amizade, de
Jan Fabre, uma variação coreográfica do grito”, de Chloé Larmet. Disponível em
http://www.seer.unirio.br/index.php/opercevejoonline/article/viewFile/4995/4626 .
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Para Deleuze, “o coração é o órgão amoroso da repetição - É verdade que a repetição
concerne também à cabeça, mas precisamente porque ela é seu terror ou seu paradoxo”
(DELUZE, 2018, p.11).
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sujeito com ele mesmo, faz emergir seus líquidos - suor, lágrimas,
sangue, urina e saliva - e desnudar a verdade fisiológica da existência
e as pulsões do animal-homem (BELLOTTO; ISAACSSON, 2019, p.16,
no prelo).
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Por outro lado, observam-se ações como vestir ou despir roupas, pintar o
corpo ou colar elementos nele, muitas vezes, esvaziando o caráter de
espetacularidade (quando envoltos em atmosfera de tranquilidade que remete a
princípios do zen-budismo)61. Como as inúmeras sequências de limpeza de
corações e fígados de animais em Mount Olympus62. Características que
imprimem para a ação uma temporalidade específica (fincada no presente da
cena), que em termos de recepção, pode se interessar pelo que se passa no
palco, “mergulhando” em cada detalhe dos corpos e suas estruturas, ou, ao
contrário, entediar-se com esse tempo em comum63. Segundo Lehmann, essa
temporalidade estabelecida faz do palco o lugar de uma reflexão sobre o ato de
ver dos espectadores:
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2.4.3 Animalização
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Tradução minha para “Le maquillage des créatures”.
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Idem “Chien de rue et vautour sur le champ de bataille abandonné”.
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Tradução minha para “Sleeping bag wardance”.
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[...] uma espécie de eficácia por meio dos afetos, que pertencem à
economia libidinal [...] Os signos não são mais vistos na sua dimensão
representativa [...] eles permitem “ações”, atuam como
transformadores, alimentados por energias naturais e sociais, a fim de
produzir afetos de uma intensidade muito elevada (LYOTARD, 1984, p.
92).
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“o real físico se manifesta quando algo se faz com esse corpo” (BAUDRILLARD,
2015, p.54). Conclui-se que esse investimento investigativo revela uma
produção de presença amplificada que os objetos e performers adquirem
quando explorados em seu potencial semântico, espacial e interacional.
Presença singular que mobiliza o espaço.
Pode-se, ainda perceber, a volta constante desses mesmos materiais ao
longo das vinte quatro horas de Mount Olympus e o desejo de resistência ao
“desaparecimento dos objetos”. Como se a insistência das imagens dessas
coisas em contextos e significados sempre renovados solicitasse deles uma
permanência maior em cena e, por consequência, uma sobrevida alongada
dentro do sistema de consumo dos objetos contemporâneos pautados pela
obsolescência programada. Em um mundo onde produtos para as mais diversas
funções se proliferam no ritmo acelerado das descobertas tecnológicas e de
fabricação em séries, a lógica capitalista faz com que o tempo entre nascimento
e morte de cada objeto manufaturado diminua para dar lugar a outro similar,
fazendo girar a roda econômica de produção e consumo, gerando cada vez mais
produtos descartáveis. Não se quer abrir espaço reflexivo sobre os objetos
pautados por uma polêmica sobre os efeitos colaterais do desenvolvimento
tecnológico e seu impacto no meio ambiente que daí decorre, mas, interessa
ressaltar que as transformações dos objetos em Mount Olympus acontecem
dentro de uma lógica de permanência dos mesmos, que voltam à cena
periodicamente para novamente serem alocados em novas proposições cênicas.
Os objetos sobrevivem, permanecem e continuam a existir e se fazerem
determinantes a cada aparecimento em cena, ressaltando sua materialidade
sensível, dentro de uma modernidade onde “a tendência atual, não é
absolutamente a de resolver tal incoerência [a da lógica de produção e
descarte], mas a de atender às necessidades sucessivas por meio de objetos
novos” (BAUDRILLARD, 2015, p.14). Os objetos em cena se potencializam pela
dispersão do seu uso e fazem nascer uma “linguagem dos objetos” que
colaboram para intensificar a performance biológica.
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lógica deste jogo (com os objetos) implica na imagem de uma estratégia geral
das relações humanas, de um projeto humano, de um modus vivendi [...]”
(BAUDRILLARD, 2015, p.33). Nessa perspectiva, a maneira que Fabre fricciona
os objetos com os corpos é sintomática do próprio comportamento que o
encenador estabelece com o elenco durante os processos de criação. Assim
como as diversas maneiras que os objetos são testados e explorados, os
performers também são testados e laboratoriados nas mãos do encenador,
como ele mesmo afirma: “Eu considero meus atores e dançarinos como cobaias
para todos os tipos de experiências e pesquisas” (FABRE apud VAN DEN
DRIES, 2005, p.336)73. Acrescento que não somente no momento de
apresentação dos espetáculos, mas no processo de feitura deles, que envolvem
duras etapas de preparação, condicionamento físico e introdução à sua
linguagem formal.
A corrente, como objeto que fixa, prende e impõe condições, em cena,
reflete uma visão de mundo ligado ao trágico grego e ao espaço artístico
fabriano concomitantemente. Essa radicalidade e o constante desafio imposto
ao performer, por vezes, transbordam do campo artístico, invadindo o cotidiano
e as relações profissionais estabelecidas entre elenco e encenador.
Recentemente, uma carta-protesto elaborada por 20 performers, que
participaram ou ainda participam das produções ao lado de Fabre, foi
comunicada à imprensa belga74. O conteúdo relata os exageros, as pressões
físicas e psicológicas que os participantes sofrem decorrente das relações
distorcidas entre encenador e performer, e que confundem arte e vida de forma
negativa: xingamentos, perseguições, humilhações e assédio constituem o teor
das acusações direcionadas ao encenador. Qual são os limites éticos em uma
aprendizagem para alto desempenho? Até que ponto se pode ir nos processos
73
Tradução minha para “je considère aussi mes acteurs et mes danseurs comme des cobayes
pour toutes sortes d’expériences et des recherches”.
74
Jan Fabre negou o conteúdo das acusações, mas alguns espetáculos do Troubleyn tiveram
suas apresentações canceladas durante o ano de 2018 em virtude do protesto gerado pelo
movimento #mee too. Acesso em https://www.rektoverso.be/artikel/open-letter-metoo-and-
troubleynjan-fabre . Último acesso 4 nov. 2018.
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criativos com humanos? Questões que acabam por interrogar o que se pode ou
não fazer em nome da arte e a qual preço.
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Tradução minha para “Homme portant trois femmes”.
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As relações entre a poética de Grotowski e Fabre serão retomadas no capítulo 3
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quais acentuam sua presença pelo acionamento de suas fisiologias com tal
intensidade que contaminam todo o resto. Determinados quadros de
animalização tomam tempo justamente no momento de metamorfose. A
passagem do homem ao animal, onde se acentua a performance biológica pela
visibilidade dos músculos e órgãos em configurações assimétricas não usuais,
coincide com a multiestabilidade perceptiva da qual nos fala Fischer-Lichte, pois
o que se vê é a passagem alongada do corpo fenomenal ao corpo simbólico,
momentos nos quais o corpo se apresenta como um amontoado de membros,
órgãos e músculos disformes.
A multiestabilidade perceptiva também se estende em termos espaciais,
acentuando as zonas liminais. Como os quadros denominados de Le rêve
(sonho), que voltam sistematicamente no espetáculo. (Relato que esses quadros
se iniciam, estrategicamente, durante a madrugada, quando a plateia começa a
dar sinais de cansaço, assim como os performers). Quadros compostos de
imagens de caráter onírico, que no contexto do universo trágico ganham
aspectos de pesadelos, como o quadro 1.4 - O sonho da viagem da peruca,
onde uma peruca vai passando lentamente de uma cabeça à outra, incitando
assassinatos, para atormentar o espectador que, entre o cochilo e a
contemplação de universo surreal trágico a sua frente, pode perder
momentaneamente suas referências temporais.
O palco invadido por fumaça, estende-se ao espaço da plateia,
provocando uma desorientação espacial, pois não se enxerga claramente e toda
a sala de espetáculo parece pertencer a um único lugar. O espectador se vê
dentro desse “sonho”. Após alguns minutos, ouve-se, em volume baixo, uma
música atmosférica (dream music77), composta por poucas notas graves, e um
performer sussurrando ao microfone palavras repetidas, descrevendo a imagem
de um corpo cansado que precisa dormir, quase como uma enunciação
hipnótica sugerindo que a plateia abandone seu corpo e “caia no sono”. Os
elementos de fumaça, música monocórdica, movimentos ralentados dos corpos
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Designação dada pelo compositor de Mount Olympus, Dag Taeldeman, em entrevista durante
o registro em DVD do espetáculo.
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“Meus espetáculos se situam no campo de tensão entre a liberdade e o determinismo. Meus
atores e dançarinos são os guerreiros da beleza que, no universo de minhas peças, tem a
coragem de viver perigosamente e de assumir o risco de falhar ou triunfar. Eles sondam os
limites de sua própria natureza, e ultrapassando esse limite, atingem um outro estado de
consciência” (FABRE, apud VAN DEN DRIES 2005, p.343). Tradução minha para “Mes
spetacles se situent dans le champ de tension entre la liberté et le déterminisme, mes acteurs et
mes danseurs sont des guerriers de la beauté qui, dans l’universe de mes pièces, ont le courage
de vivre dangereusement et de prendre le risque de faillir ou de triompher. Ils sondent les limites
de leur propre nature, les dépassent et accèdent à um autre état de conscience”.
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Como consta no conteúdo programático do curso de formação de performers enviado aos
participantes.
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O cansaço pode trazer alguma coisa de real para o corpo - o real time
Nesse sentido as emoções que nascem durante esses momentos são
genuínas, pois surgem pelo movimento, como reações decorrentes das
ações. As ações são realizadas de maneira neutra, onde as emoções
nascem do movimento repetitivo delas (CÉDRIC, 2017).
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possíveis. Poderia solicitar-se que o nome da pessoa que estava ao lado fosse
dita rapidamente durante a improvisação: “Fabre repete insistentemente a
expressão comer o espaço, olhos em todas as direções, durante os ensaios”
(ANNABELLE, 2017)91. Percebe-se que a consciência espacial do performer é
desenvolvida pela imaginação e convocação dos instintos animais, ao passo que
a expressão “comer o espaço” revela uma metáfora onde o espaço adquire
expressividade ao se fisicalizar no corpo do performer. Não basta o corpo
ocupar o espaço onde a improvisação acontece, é necessário materializar esse
lugar através do corpo, sendo a referência do tigre (em sua dinâmica intensa,
agressiva, de instinto de bélico e conquista), a improvisação mais próxima para
experimentar o que se entenderia por fisicalizar o espaço.
91
Tradução minha para “eating the space, eyes in all directions”.
133
tigre, mesmo quando estou falando com você [...] Estude seu corpo,
seu peso, seu contato com o solo (ANNABELLE; CÉDRIC, 2017).
134
nos músculos dos braços e costas tornava o exercício muitas vezes um desafio
doloroso de resistência.
A noção de metamorfose está sempre presente nas proposições. Assim
como nos animais anteriores, a consciência dinâmica dos momentos de
passagem de um animal a outro era enfatizada. A transformação gradual das
formas, membro por membro, até encontrar a anatomia seguinte. Para Fabre,
experimentar os diferentes animais não está ligado à noção de “mudar de
personagem” ou figurino, mas de transformar o corpo em termos fisiológicos.
135
136
92
Referência a personagem presente em Macbeth, de William Shakespeare.
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138
Agora imagine que o chão está em chamas e que o fogo vai atacar
todo o seu sistema nervoso [...] Você corre como uma galinha sem
cabeça [...] Quando digo fogo, você é como um peixe vivo na grelha, eu
quero ver você receber esse ataque no sistema nervoso [...] Em
seguida, agir como se estivessem andando em papel de arroz. Então
fogo novamente. Faça com extrema precisão e atenção [...] Não se
repita, faça isso no aqui/agora (ANNABELLE; CÉDRIC, 2017).
139
Não seja tímido com a morte [...] Não foquem muito no relacionamento
com os outros, é algo que vem de si mesmo [...] Lembre-se, é uma
batalha contra a morte que o leva ao chão, uma luta contra a gravidade
[...] Explique fisicamente o fenômeno biológico da morte; câimbras,
respiração alterada, taquicardia, sangue subindo para a cabeça etc [...]
Como você faz o último suspiro? Vocês são performers, vocês querem
que as pessoas vejam isso [...] quanto mais intensa a vitalidade, mais
intensa será a morte. Devemos ver a luta pela vida. O espectador
acaba sentindo essa luta [...] Como performer, você faz isso sozinho,
para mostrar para si mesmo primeiro, antes dos outros [...] Eu não
quero ver alguém sincero. Não se preocupe com a noção de
sinceridade do performer; não procuramos o realismo (ANNABELLE;
CÉDRIC, 2017).
140
141
(dos pés à cabeça) era a expressão utilizada para traduzir a ideia de que algo
físico deve se manifestar no corpo anterior à sugestão mental. Era preciso “corte
seco” de uma emoção para outra, onde a diferença física para cada uma deveria
ser visível. Era solicitado criar relações com os demais exercícios, como o do
tigre por exemplo, para acionar emoções de raiva e medo, ou encontrar planos e
configurações físicas diferentes para cada emoção. No primeiro dia, iniciou-se
com 3 emoções (medo, aversão e alegria). Nos dias seguintes, foram
aumentando gradualmente até chegarem as 6 emoções em sequência, evitando
repetir a mesma forma a cada vez que a proposta era retomada.
Os princípios artísticos e a imaginação transitam entre as áreas criativas
distintas, em um ciclo constante de autorreferências, como a expressão utilizada
diversas vezes no curso – from the feet to the brain. Expressão que nomeia uma
instalação de Jan Fabre, de 2008, realizada para o museu de arte
contemporânea, situado em um edifício na cidade de Bregenz (Áustria). A obra
abrange 5 andares com esculturas que remetem, de forma direta ou metafórica,
a partes do corpo humano: pés, barriga, sexo, coração e cérebro. Os pés estão
dissociados do corpo e suspensos no teto da sala (a pele representa a mesma
matéria do cérebro), posição onde deveria estar a cabeça. From the feet to the
brain estimula e coloca à frente a materialidade do corpo e suas possibilidades
de movimentos, interrompendo, retardando ou relegando a atividade psicológica
ou subjetiva para segunda ordem. Inversão, metamorfose e independência dos
processos sensíveis do corpo são valorizadas como procedimento.
142
10 – The Old Man (O Homem Velho): Alinhados lado a lado, a partir da posição
Angel’s feet, iniciar caminhada lenta até a frente da sala, com duração de dez
minutos, como se o corpo fosse semelhante ao de um velho com 120 anos de
idade, portando a doença de parkinson. Exercício extremamente desgastante,
que solicita esforço constante do corpo. As caminhadas eram meticulosamente
observadas por Cédric e Annabelle, que tocavam nos músculos dos
participantes para ver se estavam contraídos suficientemente para senti-los
tremer internamente.
Em termos fisiológicos, para cada contração muscular do corpo humano é
previsto, em seguida, um relaxamento dessa fibra, ciclo denominado pelos
fisiologistas de “abalo” (SILVERTHORN, 2010, p. 419). Esse abalo é o gerador
da tensão muscular. Quando as fibras musculares não encontram tempo para
relaxar entre um abalo e outro, a pressão constante resulta em uma contração
mais vigorosa do corpo, processo denominado de “somação” (SILVERTHORN,
2010, p. 425). No exercício do old man, a ênfase é na contração de todos os
músculos do corpo em sua máxima potência somatória até fazê-los vibrar. Ao
longo dos dias, o tempo do exercício foi aumentando até chegar aos 30 minutos.
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[…] Meyerhold insiste que a forma não se encerra nela mesma, pois
graças ao que chama de princípio de excitabilidade, a execução do
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95
No funcionamento da célula, a informação parte tanto do núcleo em direção ao citoplasma,
como o seu movimento inverso, do citoplasma ao núcleo, ambas as direções influenciam na
síntese do material encontrado.
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171
não interpretar ela, mas realizar uma proposição física concreta ligada a uma
limitação dos sentidos e de funções básicas do corpo (a respiração igualmente
se torna problemática). Trabalhar pelo viés do corpo é trabalhar pelo viés de
proposições físicas não psicológicas ou representacionais. A não ser quando o
quadro muda seu registro em direção à interpretação. Pois como já visto, a
estética cênica em Fabre flerta com as duas linguagens no palco ao mesmo
tempo. Fazer passear de uma para a outra. Ainda que quando se desliza para o
reino da construção de um teatro ficcional, esse “deslize” nunca chega
plenamente ao seu termo. Os performers passeiam por essa zona indefinida
para retornar em seguida para os corpos em ebulição fisiológica. Pode-se dizer
que se substitui a mímese no sentido de representar algo a partir de uma
referência, por uma mimese energética acionada pelo corpo em movimento
abrupto.
98
Tradução minha para “Jocaste avec bébé enchaîné”.
172
lentamente, lhe conferindo uma presença intensa pelas qualidades físicas dos
movimentos “internos e externos” do corpo hiperventilado e cansado.
Capítulo 3, quadro 7, denominado Uma noite no exitante bosque dionisíaco99: O
encontro sensual entre os homens e a natureza dionisíaca (representada por
pinheiros reais trazidos à cena), apresenta elementos da Cena do Profano e
Sagrado (Scene Profane and Sacred) e a festa do diabo (Devil’s party). O
quadro se inicia com uma dança patética que simula o ritual de aproximação
entre o performer Kasper Van den Berghe e um pinheiro. Lentamente entram em
cena 8 performers que realizam uma orgia pansexual durante 30 minutos. A
proposição para todos é a mesma, mas cada um mantém sua “personalidade”
em relação à qualidade sexual dos movimentos.
FIGURA 48 - Uma noite no exitante bosque dionisíaco.
Crédito: Troubleyn/Divulgação
99
Tradução minha para “Une nuit dans les excitants bois dionysiens”.
173
174
100 Site do coletivo: https://www.rimini-protokoll.de/website/de/. Acesso em 2 maio 2019.
175
imbricadas, e que, por vezes, pode convocar o espectador a fazer parte da ação
cênica.
Na Alemanha, o Institute for Applied Theatre Studies at Giessen
University101 é conhecido por combinar teoria e prática teatral contemporânea,
incentivando a produção de teatro experimental desde os anos de 1980.
Inúmeros criadores que despontaram na cena nacional alemã102 frequentaram o
lugar à procura de caminhos teatrais alternativos. Nesse ambiente acadêmico é
comum os experimentos cênicos tencionarem os limites da representação e se
colocarem contra o teatro tradicional. Segundo a pesquisadora alemã Malzacher
(2008), foi lá, durante temporada de estudos no ano de 1997 que o diretor
Stefan Kaegi - que já tinha experiência como jornalista e estudos em artes
plásticas - assistiu ao Peter Heller fala sobre a criação de avicultura (1997), o
que pode ter sido o protótipo para o tipo de teatro o qual seria realizado pelo
futuro coletivo Rimini Protokoll: um experimento que consistia em um homem
falando cerca de uma hora sobre a criação de aves e passando slides
(DREYSSE; MALZACHER, 2008). A dúvida de que se tratava de um profissional
falando sobre seus conhecimentos, ou de um ator representando através de
estilo de atuação não usual, aliado à simplicidade da encenação, gerava uma
zona de tensão entre realidade e ficção ao ponto de confundir os alunos-
espectadores que lhe assistiam.
É nesse contexto criativo que Kaegi vai experimentar ações no campo da
performance art, enquanto escreve radio plays que ele mesmo performa ao vivo
nas rádios locais, distorcendo sua voz através de efeitos com um pedal de delay.
Em seguida ele funda, com um colega - Bernd Ernst -, o grupo Higiene Heute
(Higiene hoje), e juntos realizam produções artísticas utilizando-se em cena
somente de agentes externos ao universo teatral. Como a Conferência Fare
Dodgers (2000), na cidade de Hamburgo, onde reuniram 60 pessoas sem
101
Instituto de Estudos de Teatro Aplicado da Universidade de Giessen. “Concebido segundo o
modelo das drama schools norte-americanas, o ensino simultâneo teórico e prático acentua a
reflexão sobre o lugar do teatro em uma sociedade do espetáculo (FINTER, 2003, p.2).
102
Como os coletivos de performers She She Pop (1998), Showcase Beat Le Mot (1997), e o
dramaturgo e performer René Pollesch, representantes da cena underground alemã desde os
anos 90, e que seguem realizando espetáculos no país.
176
177
guarda relações com a noção de teatro mecânico, que segundo Pavis, “é uma
forma de teatro de marionetes ou de objetos onde os atores foram substituídos
por figuras animadas, autômatos ou máquinas” (2001, p.391). Nessa acepção o
teatro feito pela dupla era uma subversão do teatro mecânico, pois não
interessava “romper a presença viva em cena” (PAVIS, 2001, p.391), para
afirmar a habilidade técnica dos diretores, mas, sim, valorizar a performance das
máquinas e dos técnicos que as manipulavam concomitantemente.
Enquanto Kaegi experimentava animais em cena como metáfora para o
comportamento humano, produzia textos radiofônicos e escalava não atores,
Heug e Wetzel exploravam a teatralidade das máquinas e seus “especialistas”.
Ambas as tendências criativas se assemelham na medida em que suas
produções cênicas nunca prescindiram de artistas profissionais por um lado, e
por outro, empurraram as fronteiras teatrais em direção ao terreno híbrido das
linguagens artísticas. O primeiro encontro entre Higiene Heute e Ungunstraum
em trabalho colaborativo aconteceu em Berlim com a montagem de Palavras
cruzadas Pit Stop106, no ano de 2000. No palco, quatro senhoras octagenárias -
que moravam no asilo ao lado do teatro, onde foi apresentado o espetáculo -
falavam sobre suas vidas e perspectivas de morte. Sobreposta a essas
narrativas, o coletivo inseriu um plano ficcional e lúdico, onde as participantes
executavam diversas tarefas de modo a se prepararem para uma corrida de
Fórmula -1.
106
Tradução minha para “Crossword Pit Stop”.
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108
“O saber científico é uma espécie de discurso, um jogo de linguagem” (LYOTARD, 1988, p.3).
Tradução minha para “el mundo de las cosas […] tal como lo revela la ciencia”.
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modo. Essa informação, que no caso dos espetáculos do Rimini Protokoll vem
impressa no material parateatral distribuído antes dos espetáculos, auxilia a
evidenciar o caráter ready-made. O espectador que assiste à encenação ciente
que envolve especialistas do cotidiano, processa as informações de maneira
diferente daquela que faria frente a um espetáculo de pura ficção. Nesse
sentido, o fenômeno de effracion presente na cena precisa ser protocolado para
a audiência. O que demonstra o grau de importância que a relação com o
público ocupa nessas práticas contemporâneas.
No âmbito do trabalho dos especialistas sobre a cena, existe ou elemento
fundamental que são as ações que eles realizam. Ações que reforçam a
dimensão de real não somente por serem feitas através de gestos
autorreferenciais, e por não estarem depuradas e/ou coreografadas. Mas essas
ações carregam consigo uma determinada concretude no sentido de que são
ações que precisam ser verdadeiramente executáveis em cena. Retomando o
primeiro espetáculo do coletivo, Palavras-cruzadas pit-stop, já citado, as
senhoras especialistas enquanto falavam de si realizavam atividades
preparatórias para uma corrida de Fórmula-1. Uma das atividades previa jogar
videogame de corrida de carros na frente do público. Também imagens delas
correndo em cadeiras de rodas pelos corredores do asilo, onde viviam, foram
filmadas e projetadas em cena. Da mesma forma, em espetáculo recente,
Estado - 4 (2018), os especialistas, em determinado momento jogam hóquei, no
palco transformado em uma arena de gelo.
Além da comicidade e poesia que guardam essas imagens, revelam um
procedimento estratégico do coletivo que aporta uma dimensão de real pela
qualidade performativa das atividades executadas em cena114. A realização de
ações como elemento que conecta o especialista à concretude de um fazer,
onde ele precisa agir de forma a compor a dramaturgia da cena. E nessa
dimensão do agir está prevista certa margem improvisacional e de
arbitrariedade, pois não há como retomar tais atividades em caráter de
114
“[...] quanto menos se leva em conta a representação, não assumindo a mímese, mais fala da
presença, do imediatismo do evento e de sua própria materialidade” (FÉRAL, 2015, p.93).
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Seja quando se expande para além dos limites do que se considera uma
manifestação teatral, seja quando invade a vida e dela se apropria por
mecanismos de anexação do real, parece evidente que o campo de
ação do teatro de hoje é amplo e informe (FERNANDES; ISAACSSON,
2016, p.1)
197
ele não nos obrigasse a definir a cada vez, em cada lugar e a cada
momento do mundo, o que entendemos por “teatro” (BIDENT, 2016,
p.51).
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Tradução minha para “Sin embargo, el propio mecanismo teatral, que sólo funciona según el
modo cómo es percibido por el espectador, hace que esta clasificación pueda ser problemática,
puesto que una representación que no se presenta como tal, una no-actuación, puede ser
recibida por el público de este modo, como actuación, o viceversa”.
120
Retomando os exemplos citados na introdução desta tese (p.16-26).
203
lugar no espectador sagaz de que o que ele vê pode ser uma grande encenação
ensaiada por atores profissionais.
A própria expressão especialista do cotidiano parece querer gerar um
efeito de “negação” da denegação. Querendo eximir o atuante de cena do
compromisso da ilusão, sinalizando que aquilo que ele fala ou faz não é
representação, mas, sim, realidade da vida. Contudo, a desconfiança de que
isso consista em artifício para gerar efeitos que causam a impressão de algo
espontâneo e não mediado, pode promover percepção contrária: provocando a
desconfiança no espectador que devolve como reação uma resistência maior em
creditar como verdade o que é apresentado. A estratégia de propor a realidade
da vida por um modelo que se aparenta ao cotidiano pode não suspender a
denegação. Pode-se inferir que seja um ator interpretando um não ator, ou
interpretando uma história “baseada em fatos reais”, o que constitui prática em
muitos teatros121. Por outro lado, a história do sujeito é outro procedimento, mas
ainda em condições de ser deslocado para o campo da artificialidade, ser
plenamente teatralizado.
Carol Martin alerta que “o teatro do real designa um aspecto amplo de
práticas e estilos teatrais que reciclam a realidade, seja essa realidade pessoal,
social ou histórica” (MARTIN, 2013, p.5). Tal reciclagem envolve a menção
explícita, citando, simulando e convocando o mundo de fora do teatro através de
uma variedade de meios como fotos documentais, filmes, gravações em áudio,
roupas ou objetos pessoais, e também “as pessoas reais para realizar suas
próprias narrativas de vida” (MARTIN, 2013, p.8). Embora a autora não descarte
a possibilidade de que a reciclagem explícita da realidade aconteça desde o
início do teatro ocidental, o que vai ao encontro ao pensamento de Pavis,
afirmando que “a dramaturgia nunca cria nada ex nihilo, mas recorre a fontes -
mitos, notícias, acontecimentos históricos” (2001, p.387).
Infere-se que é o movimento natural do teatro recorrer aos
acontecimentos da própria vida para se constituir, reciclando a realidade. Logo,
pode não bastar que os especialistas e os programas dos espetáculos vinculem
121
Como será visto em algumas montagens do teatro biodramático (p. 206-208).
204
205
Atuar é uma coisa que nós todos fazemos. Você atuando de científico
para mim e eu atuando de artista para você. Nós atuando para um
produtor conseguindo dinheiro, pessoas normais tentando conseguir
um trabalho, nos comportamos de certa forma para servir o contexto no
qual desejamos aparecer (KAEGI, 218).
206
argentino vivo. Pessoas que teriam sua biografia transformada em material para
cena, e que poderiam de alguma forma participar do espetáculo através de
contato direto, seja durante o processo, contribuindo para a produção
dramatúrgica, seja se presentificando diretamente em cena. Sem restrição do
ponto de vista estético, podendo cada diretor confrontar sua respectiva poética
com a proposta dada e criar livremente a partir da pessoa escolhida.
Dentro do gênero maior, o ciclo biodramático faz um recorte específico de
teatro contemporâneo, inspirado na vida de pessoas comuns, em interessante
contraponto às grandes narrativas heroicas. Para detectar a teatralidade
existente na vida de qualquer pessoa em relação ao seu cotidiano, a diretora
elaborou a noção de Umbral Mínimo de Ficção - UMF, que prevê identificar as
características das situações ou pessoas que possam ser entendidas como
teatro. Nesse sentido, o UMF se relaciona ao “processo de produção e
teatralização dirigido ao real” (FÉRAL, 2015, p. 82). A noção apresentada de
biodrama considera a possibilidade de que qualquer pessoa possui algo de
relevante para contar, na medida em que todo ser humano é um “arquivo vivo”
(TELLAS, 2003) de relações com o mundo. Opera na camada microscópica da
sociedade, do indivíduo que a forma. Cada biodrama exibido no ciclo
conformava uma realidade específica que, no conjunto de 13 peças aponta para
a percepção múltipla de realidades existentes. Desde a criação da dramaturgia a
partir dos escolhidos, o uso de atores que falavam sobre si mesmos, ou
representava a vida de outras pessoas, incluindo algumas vezes os próprios
biografados no palco. Destaca-se, dentro do projeto biodrama, a participação de
Stefan Kaegi, com o espetáculo ¡Senta-te!, um zoostituto (2003), que leva à
cena animais de estimação e seus donos de modo a vê-los interagindo entre si.
Para Cornago, o biodrama se constitui como um fenômeno que tem
implicações físicas, processuais e coletivas para o acontecimento teatral,
evidenciando por contraste suas fronteiras e limites, ao confrontar-se a
realidades outras que não a sua:
Fazendo o caminho de volta, quer dizer, dos efeitos dessa carga vital
sobre a cena, um dos aspectos mais reveladores do ciclo consiste em
207
123
Tradução minha para “Recorriendo el camino de vuelta, es decir, de los efectos de esa carga
vital sobre la escena, uno de los aspectos más reveladores del ciclo consiste en que tratando de
acercar el teatro a la realidad, en la mayoría de los casos hubo que hablar del teatro, es decir, de
la realidad del propio teatro, como si se tratase de un efecto boomerang. En la medida en que se
intentó empujar la escena hacia la vida no teatral, la propia escena hizo visible su realidad
específica. De alguna manera, el teatro no pudo hablar de una realidad exterior a él, sin hacer
primero visible su propio cuerpo, sin hablar al mismo tiempo de su materialidad física y sus
límites comunicacionales, sin hacer presente más que nunca al propio espectador, confuso ante
la naturaleza - ¿ficcional o real? - de lo que está viendo. El arte habla de la realidad exterior
refiriéndose a su misma realidad”.
208
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“Uma peça de vídeo para múltiplos jogadores” (tradução minha).
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O pesquisador participou de Home Visit: Brasil em casa em setembro de 2018, na cidade de
Porto Alegre.
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FIGURA 55 - Estado 1.
Crédito: Rimini Protokoll/Divulgação
218
133
A instalação cênica estava situada no 3º andar do centro Haus der Kulturen der Welt. O
pesquisador participou da sessão no dia 5 de março de 2018.
134
Podemos trazer como referência para o ambiente tecnológico proposto aqui, a estranha
inteligência artificial que interage com os homens, no filme de ficção científica, 2001 uma
Odisséia no espaço (1968), do diretor Stanley Kubric.
219
FIGURA 56 - Estado 3.
Crédito: Foto minha
Depois de Estado 1 - Top Secret International, sobre serviços de
inteligência global, Estado 3 - Sonhos Coletivos. Conduzindo Ovelhas, sobre a
importância do espaço digital para processos democráticos, em Estado 4 -
Davos, estado do mundo, lança olhar crítico sobre as decisões que ocorrem nas
reuniões privadas entre as influentes corporações internacionais. Os diretores
Helgard e Kaegi se baseiam no Fórum Econômico Mundial, em Davos, para
especular sobre o poder dos encontros globais, organizados para uma elite com
influência política e financeira para discutir sobre os destinos das nações e as
relações de propriedade e poder. Em um palco arena transformado em pista de
gelo, um médico, um sociólogo, um membro do conselho executivo de Davos, e
uma vice-presidente de ONG realizam diversas atividades enquanto discutem o
mundo como um modelo de negócios privados.
Os espectadores, espremidos em arquibancada entre o palco e uma
larga tela de projeção panorâmica, recebem uma pasta contendo profiles de
executivos de importantes corporações que frequentam Davos. Os espectadores
se colocam como participantes da reunião, enquanto os especialistas do
cotidiano revelam as estratégias políticas, econômicas e sociais empregadas
para defender interesses privados.
220
FIGURA 57 - Estado 4.
Crédito: Rimini Protokoll/Divulgação
4.3.1 Espetáculo Sociedade em Construção
135
Registro videográfico na versão original em alemão: https://vimeo.com/274536717. Acesso
em 4 maio de 2019.
136
O projeto Staat 1-4 faz parte do projeto 100 Years of Now, financiado pelo Governo Federal
da Alemanha. É uma cooperação entre cinco instituições artísticas, o Haus der Kulturen der
Welt, a Münchner Kammerspiele, a Düsseldorfer Schauspielhaus, a Staatsschauspiel Dresden, a
Schauspielhaus Zürich com o coletivo Rimini Protokoll.
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Tradução realizada diretamente do registro videográfico do espetáculo, gentilmente cedido
pelo diretor Stefan Kaegi para esta pesquisa.
235
no espaço, como uma imensa colônia de formigas sobre o chão. Ele explica
cientificamente a ação coletiva das formigas que supera o trabalho humano em
termos de construção de espaços organizados. Os desenhos e cartazes revelam
labirintos de corredores construídos pelas formigas, em relação ao espaço
labiríntico do dispositivo cênico do espetáculo. Ele desce para o andar inferior,
interage com as demais estações, interrompe o caminho dos outros
participantes, faz aproximações e distanciamentos em relação ao trabalho dos
insetos e dos homens.
236
nasceu e passou sua infância. Uma tranquila música oriental com sons de
pássaros acompanha a narrativa.
Em seguida, ela pede para abrirem os olhos e descreve a súbita
mudança, para a barulhenta e sufocante capital chinesa, Beijing, em busca de
emprego. O fundo sonoro como que lhe acompanha: os sons de pássaros dão
lugar a sons de carros, buzinas, máquinas e despertadores, compondo uma
paisagem sonora ruidosa típica das grandes metrópoles. Os participantes
precisam então se levantar, alongar-se e caminhar sozinhos, aleatoriamente,
pelo espaço durante 4 minutos, enquanto ela (a especialista) descreve a caótica
cidade com trabalhadores por todos os lados. O espectador é agora o migrante
que trabalha para engenheiros alemães na construção de um estádio de
esportes no gelo para a próxima olímpiada chinesa, onde se trabalha muito e se
ganha pouco (imagens do estádio construído são projetadas). Ao final do tour
descritivo, somos informados por ela sobre sua especialidade de coreógrafa que
investiga a corporalidade dos operários da construção civil. Ela ensina uma
partitura composta de 5 movimentos inspirados na utilização de instrumentos
ligados à área da construção civil (martelo, pá, britadeira e pincel), e o
espectador é convidado a repetir a sequência por inúmeras vezes, ao som de
música eletrônica oriental. A estação resgata os audiotours, traçando um diálogo
com seus próprios procedimentos já utilizados em outras ações artísticas,
reunidos agora em Sociedade em Construção.
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240
241
Na maior parte das vezes, trata-se de uma sala já existente que a obra
transforma, mas espaços externos também podem ser manipulados e
recriados pelo artista. A instalação, portanto, é uma arte do espaço
tridimensional. Como tal, está na linha de continuidade da escultura e da
arte objetual. Todavia, enquanto estas só permitem o trânsito do
receptor ao redor da área por elas ocupadas, nas instalações, o receptor
penetra no interior de um espaço, habita esse espaço participando nele
139
De fato, em breve mirada histórica se percebe que é a instalação que se aproxima, muitas
vezes, do teatro. Para Allan Kaprow, as instalações eram uma oportunidade de “dar expressão
dramática a soldadinhos de chumbo, histórias e estruturas musicais que um dia tentei incorporar
apenas à pintura” (KAPROW apud GOLDBERG, 2006, p.117).
242
243
140
Cita-se o happening pela sua qualidade de arte participativa e de rompimento da convenção
teatral entre palco e plateia e a postura ativa do espectador. Por outro lado, em Sociedade em
Construção se percebe o refinamento visual, o “aumento de esteticidade”, em uma produção
mais sofisticada em relação a esses eventos da contracultura dos anos 60 onde se situa o
happening, assim como não se dá como acontecimento único, apresentando-se em temporada.
244
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141
Como alguns espectadores que optavam ficar de fora do grupo, apenas observando os
demais.
142
Determinados espectadores se engajavam efetivamente na atividade, vibrando com elas,
enquanto outros as realizavam de forma apática.
143
A noção de interatividade é geralmente utilizada para definir processos de comunicação entre
o homem e a máquina. Aqui, o processo de comunicação se encontra mediado pela ação física
entre os sujeitos. A interatividade, como aquilo que está no meio da atividade, no entre
atividades: entre o espectador e o especialista reside o trabalho das ações em Sociedade em
Construção.
246
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146
Tradução minha para “In the production of the Kaiser’s Coolies (1930), Piscator cast the
author of the playscript, Theodor Plivier, to play the World War sailor Köbis, whose firt-hand naval
experience apparently did not quite make up for his lack of acting skills”.
147
Foster cita como referência o texto de Walter Benjamin, O autor como produtor (1934), como
uma das célebres intervenções na relação entre autoria artística e política cultural.
148
Retomando a relação que a autora faz entre denegação e sonho.
249
250
149
O projeto arquitetônico Piscator-Bühne não foi construído pelo alto custo implicado. Acabou
sendo adaptado a um teatro já existente.
251
150
FIGURA 75 - A) Sociedade em Construção (2018) B) Teatro Sintético (1926)
252
253
um anexo secreto151, com acesso através de uma porta que leva ao andar
superior, em cima de uma estrutura de andaimes e fechada por um tecido opaco
que a esconde em relação ao restante do dispositivo. Na Estação Construindo
Tecnologia, a seção de extração de fumaça se localiza em um corredor no andar
térreo que nem sequer aparece na planta baixa reproduzida acima. O
espectador habita a parte “de dentro”, os interstícios do dispositivo cênico, como
se a ele fosse dado a ver lugares comumente proibidos do teatro, como os
espaços técnicos e funcionais.
Por outro lado, o ímpeto de transformação do teatro político de Piscator
não contemplava o espectador no centro da ação cênica como aquele que age
fisicamente. Toda a dinâmica do ator em volta do espectador não retira o último
da imobilidade física. É no final das contas as posições demarcadas que
divisionam palco-plateia. No caso do coletivo Rimini não somente se torna
inviável identificar a hierarquia espacial da representação, como não se
consegue sequer se identificar quem são os especialistas - há não ser quando
eles tomam a palavra para falar de si. Pois os espectadores, ao receberem
objetos típicos de uso comum em um canteiro de obras (luvas e capacetes), são
investidos de uma teatralidade que faz com que se confundam com os
especialistas, e todos os participantes envolvidos se tornam um coro uniforme e
de difícil dissociação.
151
A prática de espaço em constante construção se repete em outras propostas artísticas. Em
Estado -1, o audiotour que leva o espectador a se locomover dentro do museu, acaba revelando
espaços escondidos, “salas invisíveis” de acesso proibido para os demais espectadores do
museu.
254
152
Características que, segundo Rosenfeld, apresentam-se no teatro épico de Brecht. Mais
informações acessando o quadro comparativo entre o modelo épico e dramático, proposto por
Rosenfeld (2012, p. 149).
153
Recursos tais como o uso de cartazes, projeções, descontinuidade entre cenas, songs, e
conversas entre o ator (que abandona temporariamente seu personagem) e o público.
154
Retomamos o exemplo descrito no subcapítulo 4.1 - Nascimento do coletivo e a origem dos
especialistas.
255
Partes de sua teoria e prática no novo teatro são desviadas dos seus
conexos originais, sendo-lhes dado novo sentido e usadas para outros
fins, como o próprio Brecht gostava de sentir-se frente aos clássicos
(LEHMANN, 2009, p. 232).
155
No subcapítulo 4.3 - Apresentando a Tetralogia Estado.
256
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258
259
260
261
4.5.1 O espectador-performer
262
A única coisa que o ator pode realmente fazer como personagem é uma
simples ação física, afirma S. Moore. Note que se Salvini, interpretando
Otelo, observa Otelo chorando, ao nível físico, não encontramos a
mesma ruptura entre ator e personagem. Se Otelo abre a porta, Salvini
abre a porta, se Otelo quebra o vidro contra a parede, Salvini quebra o
vidro contra a parede. É, portanto, apenas no nível da ação que o ator
não está dividido e que ele pode encontrar uma ligação absoluta com o
158
personagem (ISAACSSON, 1991, p.306) .
158
Tradução minha para "La seule chose que l'acteur puisse véritablement faire en tant que
personnage est une simple action physique, affirmera même S. Moore. Il faut noter que si Salvini,
en jouant Othello, observe Othello pleurer, au niveau physique, nous ne trouvons pas la même
rupture entre acteur et personnage. Si Othello ouvre la porte, Salvini ouvre la porte, si Othello
casse le verre contre le mur, Salvini casse le verre contre le mur. C'est donc dans l'action seule
que l'acteur ne se trouve pas divisé et qu'il peut trouver un lien absolu avec le personnage”.
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264
265
266
momento do fazer, está com seu corpo direcionado em realmente levantar uma
parede161. Não se trata de fazer uma aproximação ao papel de um mestre de
obras, mas de realizar uma atividade física concreta.
A ação física se torna elemento ativo que liga o relato do especialista ao
espectador. Nesse processo de interatividade, a ação é o que se encontra entre
o especialista e o espectador. Elemento que ele faz no presente da cena.
Nessas situações, entendo como “denegação capturada” as ações físicas
realizadas pelo espectador. Pois seu corpo não está conectado à ideia de
imitação, seja de um personagem ou imitação de um especialista, mas
conectado a uma ação com intenção específica. Ou seja: uma experiência física
concreta é vivenciada pelo espectador. Não se pode tomar a situação por um
viés puramente fictício. Os tijolos são reais e a parede pode vir ao chão. Por
outro lado, não há um treinamento de como deve ser exatamente realizada essa
ação, cada um carrega o tijolo à sua maneira e à sua velocidade. Cada um
determina seu comportamento em relação a esse fazer.
Uma tensão nasce nesse corpo empenhado em realizar atividades
físicas, e por consequência uma organicidade advém desse fazer, pois a
atenção do espectador está direcionada ao objetivo proposto. Nesse sentido,
pode-se dizer que o espectador experimenta uma “fé cênica” (até o momento em
que o alarme soa avisando o final da atividade). Essas características conferem
ao corpo do espectador uma organicidade ativa, pois ele não está sentado de
forma circunspecta assistindo a um espetáculo, ele coloca seu corpo em tensão
ao realizar ações. Sociedade em Construção está construída para uma busca de
ativação não somente do corpo do especialista, mas do corpo do espectador
também.
O fato de estar engajado na ação aporta uma qualidade real no sentido
do êxito da ação, de conseguir executar a tarefa. Todavia, observa-se um
movimento oscilatório: o espectador-performer agora está sendo visto pelos
outros do grupo, pelos outros dos grupos à sua volta e pelos experts. Um
161
Experiência minha, pois naquele momento do espetáculo me interessava ver a parede
erguida da melhor forma possível.
267
CONSIDERAÇÕES FINAIS
268
269
270
163
Mesmo o coletivo Rimini Protokoll não sendo “artaudiano”, pode-se dizer que ele concretiza o
espaço teatral idealizado por Artaud.
164
Prosseguindo Artaud; “será restabelecida uma comunicação direta entre espectador e o
espetáculo, entre ator e espectador, pelo fato de o espectador, colocado no meio da ação, estar
envolvido e marcado por ela. Esse envolvimento provém da própria configuração da sala” (2006,
p.110).
271
Retoma-se que, nas duas poéticas, o real irrompe à cena a partir de uma
construção de presença original de seus praticantes. O coletivo Rimini Protokoll
se interessa pela identidade do indivíduo e suas relações em sociedade.
Presença que se constrói valorizando o comportamento cotidiano dos
participantes em cena e também pela dimensão pessoal dos relatos que trazem
consigo. Essa presença aurática potencializa a alteridade dos participantes,
tanto no momento da apresentação, quanto no momento do processo de
elaboração dramatúrgica, onde o especialista confronta seus conhecimentos
com a poética do grupo. Já no Troubleyn, o político se estabelece à maneira da
performance biológica, na medida em que o ser humano, dentro dessa
sociedade corrupta a qual o coletivo Rimini Protokoll muitas vezes descortina,
também tem seus impulsos instintivos e desejantes. Impulsos retomados pela
poética do Troubleyn, que encontra em uma linha artaudiana a resposta de
retorno ao sujeito e as relações.
Por outro lado, em âmbito nacional, espetáculos que esfumaçam as
fronteiras entre palco e plateia, deixando a descoberto a camada real das
relações inter-humanas, podem ser observados em determinadas proposições
artísticas, como a da diretora carioca Christiane Jatahí, no espetáculo A floresta
que anda165. O espetáculo transita entre as linguagens do teatro, do cinema e
artes visuais fusionando-se em um complexo dispositivo, tanto estrutural, como
narrativo. Dada a natureza híbrida do espetáculo, a sala na qual acontece é
atravessada por 4 telas suspensas onde se projetam pequenos filmes
documentais sobre a vida de excluídos sociais. É o espectador quem escolhe
qual das telas ele quer ver, a partir de qual distância e posição, se na íntegra ou
parcialmente, podendo circular livremente pela instalação cênica, trocando de
tela à sua vontade. Ainda, pode-se se deslocar a um bar posicionado ao fundo
da sala, sentar ao balcão, comer aperitivos, beber cervejas e conversar. Pode-se
dizer que o espetáculo é feito por não atores, pela plateia. Essa experiência
artística que questiona comportamentos e hábitos tradicionais de fruição
estética, traz a possibilidade de barrar a perda da dimensão corpórea e até
165
Assisti ao espetáculo em São Paulo, em julho de 2016, no SESC Pompéia.
272
166
Traduzindo poeticamente a floresta que avança sobre Macbeth, o rei assassino de
Shakespeare no penúltimo ato da obra de mesmo nome.
273
274
BIBLIOGRAFIA
ARTAUD, Antonin. O teatro e seu duplo. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
BANU, Georges. La durée extrême: le défi de Mount Olympus. Art Press, Paris,
n. 458, p.67 - 73, março 2018.
275
276
FÉRAL, Josette. Além dos limites: teoria e prática do teatro. São Paulo:
Perspectiva, 2015.
277
FOSTER, Hal. O artista etnógrafo. In: O retorno do real. São Paulo: Ubu, 2017,
p.158-185.
Disponível em https://liviafloreslopes.files.wordpress.com/2015/12/foster-hal-o-
artista-como-etnocc81grafo.pdf. Acesso em 20 set. 2018.
278
KAEGI, Stefan. Berlim, 04 março 2018. Um arquivo de MP3 (40 min.). Entrevista
concedida a Lisandro Bellotto. [A entrevista encontra-se transcrita nos anexos
desta tese].
KIRBY, Michael. The new theatre. Performance documentation. New York: New
York University Press, 1974.
279
MUNIZ, Ricard. Chácara Paraíso, Mostra de arte polícia, dirigido por Stefan
Kaegi e Lola Arias. Catálogo. Rio de Janeiro, 2007. Disponível em:
https://issuu.com/varzeadesign/docs/chacaraparaiso. Acesso em jan. 2019.
280
PIODA, Sthéphanie. Dix mots, dix portes d’entrée chez Jan Fabre. Beaux Arts.
Paris, 2016.
281
VAN DEN DRIES, Luk. Corpus Jan Fabre. Gand: L’Arche, 2005.
282
ANEXOS
167
Chanceler da Alemanha desde 2005.
283
de férias baratas para os alemães nos anos 80, então eles iam para lá. Mas não
tem nada específico do significado do Rimini na verdade.
Lisandro: O coletivo fricciona o campo teatral com diversas linguagens e mídias,
resultando em espetáculos multimidiáticos, relacionais e participativos, como os
site-specifics, audiotours, peças radiofônicas, documentais e biográficas. Você
poderia comentar sobre essas “frentes” em que opera o coletivo de diretores?
Kaegi: Eu acho que eu jogo playtheater em inglês, que mostra que tem algo
lúdico dentro do teatro, mas o jogo do teatro que criamos na maioria dos casos
168
Se referindo ao espetáculo Home Visit: Brasil em casa que em setembro de 2018 fez
apresentações dentro do 24º Festival Porto Alegre em Cena.
169
RPG é a sigla em inglês para role-playing game, um gênero de jogo no qual os jogadores
assumem o papel de personagens imaginários em uma narrativa.
284
Kaegi: Acho que você está iluminando o perigo da arbitrariedade quando tem a
opção A, B ou C e não tem um autor superpotente que decide tudo para você...
Mas eu acho que nunca gostei, nem filmes, nem no teatro, nem na literatura um
autor que me define tudo o que ele quer que eu leia dentro da composição de
arte dele. Eu gosto de dispositivos que abrem uma complexidade, onde eu tenho
que escolher também onde eu quero olhar, o que que eu descubro, eu gosto do
imprevisível por exemplo que oferece o espaço público. Por isso não tenho
medo de fazer uma peça com um caminhão que transporta público, onde um dia
mostra a chuva e noutro a neve, mostra diferentes cenografias. O arbitrário
dentro de uma certa margem. A previsibilidade e imprevisibilidade do que vai
acontecer me interessa em trabalhos como Remote-X em que um dia acontece
algo, em outro não. Nunca se descobre a mesma coisa. Tem outros “extras”
parece, outros figurantes no cenário que é a cidade mesma. E as maiorias então
é que decidem um caminho dentro de uma certa “árvore”. Tem um limite esse
jogo, eu não posso escrever open route, para permanecer nos termos dos
videogames, onde você pode ir para qualquer lado e sempre vai descobrir
alguma coisa.... na verdade tem trabalhos open route, no Chile a gente fez
AppRecuerdos, que é uma forma de aplicativo que você pode mover-se pela
cidade e descobrir áudios a partir dos seus movimentos. Tinha mais de 10 horas
de material e você escolhe onde quer ir... aí sim, talvez um pouco se perde da
285
densidade de uma obra de teatro que captura os seus sentidos numa timeline, e
fica mais perto de ser quase uma exposição invisível no espaço público.
Kaegi: Acho que para mim tem mais a influência do jornalismo, que foi meu
trabalho anterior ao teatro.... no sentido de que eu gosto de pesquisa, de ir falar
com pessoas que não vêm do mundo do teatro. Mas me interessou mais a
invenção de meios de comunicação mais que repetir, como os jornais, as
emissões televisivas, a forma do mundo do jornalismo clássico. Mas nas artes
plásticas também tinha algo que me encheu um pouco o saco que foi a
sacralidade do artista. O objeto como fetiche. Eu gosto do teatro no sentido de
entertainment, no sentido de entreter os pensamentos que seguem uma fluidez
de comunicação, no melhor dos casos. Depois tem entertainment que é muito
chato também porque tem obras que me subestimam, me tomam como burro.
Mas eu gosto de bons timings de convidar pessoas a entrar em mundos
complexos que eles não entrariam por conta própria.
Kaegi: Para mim é teatro. Mas é um teatro que não nega o espectador como
elemento do experimento. Na física se fala que não existe experimento que não
seja influenciado pelo observador e no teatro a gente esquece muito isso e
286
170
Referência à Estado - 4.
287
Kaegi: E isso você tem com Piscator por exemplo, que trabalhou aqui no
Volksbürne nos anos 30 com cenas simultâneas. Tem um dispositivo clássico,
mas projetando filmes juntos aos atores, então acho que simultaneidade de
diferentes meios pode caber no teatro.
Kaegi: É muito simples, a diferença é que o ator, o que você falou, ele
representa uma outra pessoa e não a si mesmo, quer dizer os seus critérios
para fazer uma ou outra coisa de certa forma vai ser em função do texto, da
direção, de uma forma de manipulação psicológica da percepção do espectador
e não em função de falar de si mesmo. Quando eu trabalho com um advogado
eu corrijo o texto dele em função do que eu acho mais interessante, mais justo,
faço essa intervenção, e ele vai me corrigir o texto de novo e vai me dizer, “não,
isso não é o texto da lei”, ou “eu não vivi essa experiência”. Pode ser que ele
censure coisas que ele mesmo falou um dia, ou que eu escrevo e ele diz: “mas
em público eu não posso dizer isso”. Então essa fricção com eles, como
288
289
Kaegi: No 100% cities é diferente. Não é escolhido por nós. É uma pessoa da
cidade mesma que faz, que segue as estatísticas. Por que tem que ter uma
certa quantidade de mulheres, homens, de moradores de cada bairro e assim
por diante.
Lisandro: Não tem esse olho da direção que seleciona o que pode ser mais
interessante no palco?
Kaegi: Dentro de 100 pessoas você sempre tem uma certa quantidade de
pessoas interessantes. A gente tenta acertar nesses aspectos. O que a gente
procura corrigir no casting é em função de cuidar para não ter pessoas demais
da esquerda. Não sei por que mas pessoas da esquerda gostam mais de teatro
do que da direita, parece ou pelo menos gostam mais de processos integrativos
como é o 100% cities. Mas precisamos de pessoas que votam na direita, então
temos que corrigir nesse sentido. É assim no mundo todo. Por exemplo, é um
pouco mais difícil encontrar racistas que aceitem participar de projeto que tem
pessoas de todas as proveniências que têm na cidade.
290
Kaegi: Isso você pode dizer melhor do que eu. Atuar é uma coisa que nós todos
fazemos. Você atuando de científico para mim e eu atuando de artista para
você. Nós atuando para um produtor conseguindo dinheiro, pessoas normais
tentando conseguir um trabalho, nos comportamos de certa forma para servir o
contexto no qual desejamos aparecer. Isso vale para o 100% cities. Porque eles
se mostram no teatro, se vestem melhor do que normalmente, outros se vestem
de maneira mais trash, outros querem fazer piadas e serem engraçados, outros
querem contar histórias tristes que na vida ninguém quer escutar. Tem tantas
teatralidades diferentes, não sei se tem uma unidade nisso, uma linguagem em
comum. O que tem de parecido é o fato de que eles não vão ser exatamente
autênticos, porque estão à frente de um cenário, eles vão refletir, e acho
importante que eles façam isso. Como eles estão na frente do público, então
alguns não vão responder com sinceridade à pergunta sobre traição, se eles não
conversaram antes com seu parceiro ou parceira sobre isso. Eles não vão fazer
isso no teatro. Tem certas lógicas que se repetem.
Kaegi: Coisas simples, como não virar as costas para o público, não fazer
barulho enquanto os outros falam, questões muito técnicas. O processo é longo
de produção mas no caso dos ensaios do 100% cities, são poucos, entre 5 ou 6.
E temos o teleprompter. Um telão atrás do público que indica o que eles
precisam fazer na hora certa, já que são poucos ensaios. No mais, existe um
espaço para eles jogarem livremente, faz parte desse projeto essa liberdade de
jogo.
291
Lisandro: E como foi o processo de ensaios de Estado - 2, que parece ter uma
diferença significativa em como o espetáculo se organiza, com os especialistas
trazendo relatos muito maiores, se comparados aos do 100% cities, por
exemplo.
Kaegi: É, teve muito mais ensaios. São 9 minutos para cada um dos
especialistas. Comecei a procurar as pessoas um ano antes de começar os
ensaios. Algumas foram fáceis de encontrar, outras demoraram mais. O di
Mauro, técnico em ventilação do aeroporto foi um dos primeiros. É bem
interessante contar a história dele em Berlim agora. Porque ele tem a
possibilidade de se reposicionar profissionalmente. Tivemos ensaios duas vezes
por semana durante dois meses e pouco. Um ensaio individualmente, com cada
um deles, e o outro era um ensaio coletivo. No ensaio individual a gente escrevia
os textos. No ensaio coletivo a gente sincronizava esses relatos, olhávamos
como combinar as coisas, e como funcionava essa forma de ilustração do que
uma pessoa diz pelo que a outra pessoa faz. Para cada uma dessas estratégias
292
tinha que se encontrar uma forma de ensaiar. Muito importante para nós são os
tryouts com o público (ensaios abertos). Um trabalho desses tem muitos tryouts
um mês antes da estreia. Um grupo de pessoas que vinha assistir
sistematicamente e assim a gente descobria o que funcionava e o que não.
Assim a gente se aproxima de uma simulação da realidade do próprio
espetáculo. E também saber quanto tempo os grupos precisam para chegar de
um lugar a outro, onde colocar as portas de acesso de forma a organizar o
espaço. Quantas pessoas são possíveis em cada grupo para todos poderem
enxergar por cima do contêiner o que acontece, por exemplo.
2. Entrevista com a performer Els Deceukelier171 no Troubleyn
Laboratorium – Antuérpia, em 25 de novembro de 2017
Lisandro: Você consegue descrever o que acontece no seu corpo quando você
realiza movimentos muito lentos durante longo período de tempo, como nos
espetáculos do Troubleyn?
293
Lisandro - Mas você acha que fazendo esse tipo de movimento por longo
período de tempo te traz algum outro tipo de presença no palco?
Els - Sim. Experimentei isso em Medeia e em Mount Olympus também. Por volta
de 3 horas de movimentos muito lentos, você chega a um estado mental que é
muito difícil de descrever, de colocar em palavras. É como se eu fosse para
outra dimensão. É lindo essa experiência. Nesses momentos eu tenho
consciência da plateia, dos meus colegas no palco e de mim mesma. Mas ao
mesmo tempo eu quase começo a alucinar. É mágico, é uma consciência quase
que total do que se passa internamente, externamente e algo mais; algo mágico.
294
Els - De fato é oposto, mas também é junto com os sentimentos que te descrevi.
Porque você tem que sentir-se como um cachorro, como todos animais. Nós
somos pessoas, mas ao mesmo tempo sentimos essa animalidade em nós
mesmos. É também um tipo de transe. Mas com mais energia. Mas por outro
lado, os movimentos lentos podem demandar mais energia. Não tem a ver com
a qualidade de movimento lento que vai determinar a quantidade de energia
empenhada. Eu sinto o mundo em movimento quando faço movimentos lentos.
Quando eu faço a cena do cachorro de rua, é outra energia, todo mundo vê. Mas
de novo, essa transformação que está acontecendo em meu corpo demanda
energia igual, mental também, pois eu transformei esse cachorro durante as
improvisações em uma vítima dessa guerra que acontece no palco.
Lisandro - Você usa nessa cena pedaços de carne crua. Isso causa algo físico
em você, porque no público causa sentimentos diversos... por que não é apenas
um objeto cênico, mas algo real que você coloca na boca e morde.
295
Figura 78 - A performer Els Deceukelier em Mount Olympus.
Crédito: Captura de vídeo
Els - Quanto mais cansado seu corpo, mais honesto ele fica, porque você não
consegue mais lutar com emoções falsas, ou com aquilo que você acha que é.
Verdadeiros sentimentos vêm à tona, ao mesmo tempo em que você percebe
claramente a plateia e seus colegas de cena. Seu corpo está cansado, mas ao
contrário sua mente fica mais clara e direta em termos de reação, repleta de
energia. É como quando você acorda de um pesadelo profundo e aquela
sensação de sonho ainda está muito presente no seu corpo, mesmo com a
consciência de aquilo era um sonho. Jan fala muito da “hora azul”, entre 5 ou 6
da manhã, quando a noite está se dissipando mas o dia ainda não chegou. Tem
um silêncio, as aves silenciam, um pequeno momento de paz e de vazio, e esse
296
Els - Tinha sempre um tipo de perigo, porque a aranha era realmente venenosa,
mesmo que as pessoas não soubessem.
Lisandro - Mesmo?
Els - Então você e seu corpo têm que se adaptar ao animal, pois é algo que
você não consegue controlar. Para mim é um teatro autêntico e quando você se
torna muitas vezes um coadjuvante, pois sua atenção está voltada para a
imprevisibilidade do animal. Essa peça trazia uma realidade que modificava o
297
Lisandro - Para você que trabalha com Fabre desde o início da sua fase teatral,
a noção de guerreiros da beleza vem se transformando ao longo dos anos, ou a
ideia permanece a mesma?
298