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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL

INSTITUTO DE ARTES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS

LISANDRO MARCOS PIRES BELLOTTO

DESNUDAMENTO DO REAL:
PROCEDIMENTOS CÊNICOS ADOTADOS NAS CRIAÇÕES DE
TROUBLEYN E RIMINI PROTOKOLL

PORTO ALEGRE

2019

Lisandro Marcos Pires Bellotto

DESNUDAMENTO DO REAL:

PROCEDIMENTOS CÊNICOS ADOTADOS NAS CRIAÇÕES DE

TROUBLEYN E RIMINI PROTOKOLL

Tese apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Artes Cênicas do Instituto de
Artes da Universidade Federal do Rio Grande
do Sul como requisito para obtenção do título
de Doutora em Artes Cênicas.

Orientadora: Marta Isaacsson de Souza e Silva

Linha de pesquisa: Processos de Criação Cênica

Porto Alegre

2019

FOLHA DE APROVAÇÃO

Lisandro Marcos Pires Bellotto

DESNUDAMENTO DO REAL:

PROCEDIMENTOS CÊNICOS ADOTADOS NAS CRIAÇÕES DE

TROUBLEYN E RIMINI PROTOKOLL

Tese apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Artes Cênicas do Instituto de
Artes da Universidade Federal do Rio Grande
do Sul como requisito para obtenção do título
de Doutora em Artes Cênicas.

Aprovado em 3 de maio de 2019.

Prof.ª Dr.ª Marta Isaacsson de Souza e Silva – Orientadora

Profª Dr.ª Maria Beatriz Braga Mendonça – PPGArtes/EBA/ UFMG

Prof. Dr. Élcio Rossini – DAC/UFSM

Prof. Dr. Clóvis Dias Massa – UFRGS/PPGAC

AGRADECIMENTOS

Quero agradecer imensamente a minha orientadora, professora Marta Isaacsson


de Souza e Silva, por oferecer o suporte necessário durante toda a minha
caminhada acadêmica, da graduação ao doutorado.

A todos aqueles que estiveram juntos a mim nesta jornada dentro do Programa
de pós-graduação em artes cênicas da Universidade Federal do Rio Grande do
Sul; aos professores Marta Isaacsson, Suzi Weber, Patrícia Fagundes, Vera
Lúcia Bertoni, Mônica Dantas e demais professores do corpo docente, discente
e funcionários.

Aos professores Bya Braga, Élcio Rossini, e Clóvis Dias Massa, por aceitarem o
convite para participar da banca de doutorado, tecendo comentários e sugestões
de fundamental importância.

Ao professor Karel Vanhaesebrouck, que me orientou junto a Université Libre de


Bruxelles (ULB), durante programa de intercâmbio.

Ao produtor Mark Geurden, por abrir as portas da sede do grupo Troubleyn,


dando acesso a cursos e disponibilizando material para a pesquisa. E, a
performer Els Deceukelier pela atenção na entrevista concedida a mim. Ao
artista Estefan Kaegi, do coletivo Rimini Protokoll, pela entrevista concedida,
assim como por todo material disponibilizado por e-mail, que tornou possível
esta pesquisa.

A Comissão de Aperfeiçoamento de Pessoal do Nível Superior (CAPES), órgão


de fundamental importância para fomento ao estudante universitário.

As nossas Universidades Federais Brasileiras que contribuem para o


desenvolvimento da pesquisa científica e à formação do cidadão brasileiro. Que
continuem públicas e de qualidade.

A minha mãe, Vera Lúcia Pires, e todos aqueles que contribuíram de alguma
forma para esta escrita. Seja de forma intelectual, seja de forma afetiva.

RESUMO

No campo de estudo das práticas teatrais contemporâneas, esta tese traz como
questão central a tensão interposta entre as camadas do real e do ficcional do
acontecimento cênico, observada em algumas encenações. Problematiza-se o
diálogo entre teatralidade e performatividade, do ponto de vista dos
procedimentos técnicos empregados, à partir da análise de dois coletivos
artísticos europeus. O flamengo Troubleyn investe na performatividade intensa
ao colocar em evidência a materialidade dos corpos de seus praticantes. Ao
estruturar a cena como ciclos de atividades longas e repetitivas, o grupo
evidencia tanto as pulsões instintivas do homem como a sua realidade
fisiológica. A tese entende como uma performance biológica esse processo que
envolve corpos em desgaste, o qual o espectador experimenta por empatia. Por
outra via, o coletivo suíço-alemão Rimini Protokoll investe no real pelo conjunto
de procedimentos que vai desde a convocação à cena de não atores, e seus
relatos de vida, até a criação de espaços onde o espectador é convidado a
construir o acontecimento cênico. Ao se investir na potência do real em cena são
instaurados espaços para renegociação de acordos entre artistas e
espectadores, propondo zonas conviviais, e que podem resultar na mudança de
percepção em relação aos contratos estabelecidos na sociedade e na vida.

Palavras-chave: Troubleyn. Rimini Protokoll. Teatro performativo. Teatro do real.


Denegação.

RÉSUMÉ

Dans le domaine d'études des pratiques théâtrales contemporaines, cette thèse


approche la tension entre les couches du réel et de la fiction de l’évènement
scénique explorée actuellement par un certain nombre de mises en scène. À
partir de l’analyses de deux collectifs artistiques européens, on examine le
dialogue entre théâtralité et performativité dans la perspective des procédés
techniques employés. D’abord, la troupe flamande Troubleyn investit dans
l’intensité de la performativité, en exposant la matérialité des corps des
praticiens/performeurs. La structure la scène, organisée en cycles de longues et
répétitives activités, met en évidence tantôt les pulsions instinctives de l’homme
tantôt sa réalité physiologique. Ce processus, nommé par la thèse de
performance biologique, implique des corps endommagés qui affectent les
spectateurs par empathie. Dans une autre voie, le collectif suisse-allemand
Rimini Protokoll explore le réel par un ensemble de procédures qui vont de
l'appel à la scène de non-acteurs et de leurs histoires de vie à la création
d'espaces où le spectateur est invité à construire l'événement scénique. Le réel
investi dans le cadre scénique provoque le surgissement d’espaces de
renégociation des conventions habituels entre les artistes et les spectateurs et
propose des nouvelles zones conviviales, ce qui peut refléter un changement de
perception par rapport aux contrats établis en société et ceux qui concernent la
vie en elle-même.

Mots-clés: Troubleyn. Rimini Protokoll. Théâtre performatif. Théâtre du réel.


Dénégation.

LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 - O performer Gilles Polet em Mount Olympus ..................................... 16


Figura 2 - O performer Marius Popescu em Sociedade em Construção ............ 16
Figura 3 - Espetáculo Prometheus Landscape ................................................... 46
Figura 4 - O quarto de Isabela - Jan Lowers e Hedda Gabler - Ivo van Hove .... 49
Figura 5 - Espetáculos de Keersmaeker, Alain Platel e Vandekeybus ............... 49
Figura 6 - Delusion of the day e Mon corps, mon sang, mon paysage ............... 51
Figura 7 - Performance Money e desenhos A fonte do mundo. .......................... 52
Figura 8 - Performance Ilad of the bicart ............................................................. 53
Figura 9 - Videoperformance Lancelot e performance Virgin/Warrior. ................ 55
Figura 10 - Heaven of Delight. ............................................................................ 56
Figura 11 - Esculturas e figurinos de Jan Fabre. ............................................... 57
Figura 12 - Cena do espetáculo O Poder da Loucura Teatral. ........................... 58
Figura 13 - Cenas do espetáculo Je suis sang. .................................................. 60
Figura 14 - Cenas dos espetáculos Papagaios e cobaias e Anjo da morte. ....... 60
Figura 15 - Cena de espetáculo O Poder da Loucura Teatral. ........................... 62
Figura 16 - Programa de Mount Olympus - 1 ..................................................... 70
Figura 17 - Programa de Mount Olympus - 2 ..................................................... 71
Figura 18 - Espaço para repouso no átrio do La Villette. .................................... 72
Figura 19 - O êxtase de Cassandra em Mount Olympus. ................................... 76
Figura 20 - Passeio de Clitemnestra e Ifigênia em volta de Agamemnon. ......... 78
Figura 21 - Cachorro de rua em Mount Olympus. ............................................... 85
Figura 22 - Treinamento guerreiro com cordas. .................................................. 97
Figura 23 - Creonte em Mount Olympus. ............................................................ 99
Figura 24 - Treinamento guerreiro com cordas - II ............................................ 100
Figura 25 - Homem portando três mulheres em Mount Olympus. .................... 108
Figura 26 - From act to acting - terraço da Ópera de Lyon, 2017. .................... 122
Figura 27 - Annabelle e Cédric no curso From Act to Acting, 2017. ................. 124
Figura 28 - Breathing deeply, com a performer Marina Kaptjin. ........................ 127


10

Figura 29 - Vetores de compressão e expansão (estrela e feto). ..................... 128


Figura 30 - Exercício do gato no curso From Act to Acting, 2017 ..................... 131
Figura 31 - Exercício do gato II, no curso From Act to Acting, 2017 ................. 132
Figura 32 - Exercício do tigre ............................................................................ 133
Figura 33 - Vetores direcionais para Cleaning the Floor . ................................. 137
Figura 34 - Cleaning the Floor com a performer Ivana Jozic. ........................... 138
Figura 35 - Exercício Dying Animal, no curso From Act to Acting, 2017. .......... 141
Figura 36 - Perna/cérebro da instalação From the Feet to the Brain. ............... 143
Figura 37 - Exercício The Old Man em From Act to Acting, 2017. .................... 145
Figura 38 - Cold Turkey (abstinência) em From act to acting, 2017. ................ 148
Figura 39 - Vampiro em From act to acting, 2017. ............................................ 149
Figura 40 - Devil’s party em From act to acting, 2017 ....................................... 150
Figura 41 - Devil’s party II em From act to acting, 2017 .................................... 151
Figura 42 - A perfomer Annabelle Chambon em Preparatio Mortis .................. 153
Figura 43 - Improvisação Profano e Sagrado. .................................................. 154
Figura 44 - O Cavaleiro e a Donzela, em From act to acting, 2017. ................. 155
Figura 45 - Cenas do espetáculo Je Suis Sang. .............................................. 155
Figura 46 - Apresentação do Diabo em From act to acting, 2017. .................... 156
Figura 47 - Apresentação do Diabo II em From act to acting, 2017. ................ 156
Figura 48 - Uma noite no exitante bosque dionisíaco. ...................................... 173
Figura 49 - Elenco de Crossword Pit Stop. ...................................................... 179
Figura 50 - Os diretores Daniel Wetzel, Helgard Haug e Stefan Kaegi. ........... 180
Figura 51 - Caminhão reprojetado para Cargo Sofia ........................................ 195
Figura 52 - Arquibancada de Cargo Sofia. ........................................................ 196
Figura 53 - Situations Rooms ............................................................................ 212
Figura 54 - Home visit: Brasil em casa. ............................................................. 214
Figura 55 - Estado 1. ......................................................................................... 218
Figura 56 - Estado 3. ......................................................................................... 220
Figura 57 - Estado 4. ......................................................................................... 221
Figura 58 - Hall de entrada para Sociedade em Construção. ........................... 223
Figura 59 - Sociedade em Construção I. ........................................................... 225


11

Figura 60 - Sociedade em Construção II. .......................................................... 225


Figura 61 - Estação Construindo tecnologia I. .................................................. 227
Figura 62 - Estação Construindo tecnologia II. ................................................. 230
Figura 63 - Estação Direito de Construção I. .................................................... 231
Figura 64 - Estação Direito de Construção II. ................................................... 232
Figura 65 - Estação Investimento de Capitais I ................................................. 233
Figura 66 - Estação Investimento de Capitais II ................................................ 234
Figura 67 - Estação Construção de Interiores. .................................................. 235
Figura 68 - Estação Controle de Pestes. .......................................................... 236
Figura 69 - Estação Trabalhador Migrante. ....................................................... 237
Figura 70 - Estação Transparência Internacional I. .......................................... 238
Figura 71 - Estação Transparência Internacional II. ......................................... 239
Figura 72 - Estação Desenvolvimento Urbano. ................................................. 240
Figura 73 - Estação Desenvolvimento Urbano II. .............................................. 241
Figura 74 - Epílogo de Sociedade em Construção. ......................................... 242
Figura 75 - Sociedade em Construção e o Teatro Sintético ............................ 252
Figura 76 - Pospischil posiciona a câmera e analisa . ...................................... 258
Figura 77 - Comportamento das abelhas na Estação Setor de Investimentos . 258
Figura 78 - A performer Els Deceukelier em Mount Olympus. .......................... 296


12

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .................................................................................................... 16

CAPÍTULO I

1. Problematizando o real em campo cênico ................................................. 27


1.1 Teatros do real .......................................................................................... 27


1.1.1 A totalidade do Real ................................................................................... 29
1.1.2 Teatro de pessoas reais ............................................................................. 31
1.1.3 Realidade e ficção ...................................................................................... 33
1.1.4 Teatro documentário.... .............................................................................. 35

1.2 O retorno do real ........................................................................................ 39

CAPÍTULO II

2. O real biológico em Mount Olympus ............................................................. 46


2.1 O florescimento da cena investigativa da vague flamande ........................... 47


2.2 Fabre e a performance: bases processuais .................................................. 50


2.2.1 As repetições em Fabre ............................................................................. 57

2.3 Performance biológica: a fisiologia como presença. .................................. 63


2.3.1 Homeostase, o corpo à procura de equilíbrio ............................................ 66
2.3.2 Fluido extracelular, o meio interno ............................................................. 66


13

2.4 Mount Olympus e a performance biológica ................................................. 68


2.4.1 Repetição fisiológica .................................................................................. 75
2.4.2 Movimentos ralentados .............................................................................. 82
2.4.3 Animalização .............................................................................................. 83
2.4.4 Quadros fisiológicos ................................................................................... 86
2.4.5 A performance dos objetos em função do real biológico ........................... 93
2.4.6 Empatia cinestésica e alteração dos sentidos na performance biológica de
Mount Olympus ................................................................................................. 106

CAPÍTULO III

3. O treinamento do Troubleyn .......................................................................... 116


3.1 A experiência formativa sobre si mesmo: o curso From act to acting ...... 120
3.1.1 Influências grotowskianas ........................................................................ 157
3.1.2 Meyerhold e a Machine House ................................................................. 160

3.2 Autopoiese em Troubleyn .......................................................................... 163


3.2.1 Entre o treinamento e a criação ............................................................... 169

CAPÍTULO IV

4. Rimini Protokoll: suspendendo a denegação em favor do real ..................... 174

4.1 Nascimento do coletivo e a origem dos especialistas ................................. 175

4.2 Procedimento cênico 1: factualidade dos sujeitos e a irreversibilidade das


ações ................................................................................................................. 180
4.2.1 Procedimento cênico 2: o testemunho como eixo da narrativa ................ 189


14

4.2.2 Comprometimentos do deslocamento do real para o campo do teatro ... 199


4.2.3 Procedimento cênico 3: situações interativas .......................................... 209

4.3 Apresentando a tetralogia Estado ............................................................ 216


4.3.1 Espetáculo Sociedade em Construção .................................................... 221
4.3.2 Organização do espaço como convite à ação do espectador .................. 242

4.4 Rimini Protokoll e a atualização de propósitos teatrais de Piscator e


Brecht ................................................................................................................ 247

4.5 Ações para o espectador ........................................................................... 259


4.5.1 O espectador - performer ......................................................................... 262

CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................. 268

BIBLIOGRAFIA................................................................................................. 275

ANEXOS

1. Entrevista com o diretor Stefan Kaegi ........................................................... 283


2. Entrevista com a performer Els Deceukelier ................................................. 293


15

INTRODUÇÃO

FIGURA 1 – O performer Gilles Polet em Mount Olympus.


Crédito: Jelena Jankovic

FIGURA 2 – O performer Marius Popescu em Sociedade em Construção.


Crédito: Rimini Protokoll / Divulgação

Inicio esta escrita dividindo o olhar para a imagem de dois espetáculos


teatrais: Mount Olympus (2015), do grupo belga Troubleyn e Sociedade em

16

Construção (2018), do coletivo suíço-alemão Rimini Protokoll. O que nosso olhar


encontra nessas fotos? Ressalta-se, na primeira, a figura de um homem que
segura uma corrente com força - ainda que a fotografia retrata somente o quadro
parado -, pode-se inferir, devido aos punhos voltados para a sua direita, que ele,
na verdade, está girando a corrente. A boca aberta sugere a dimensão do
esforço realizado para manter a corrente em movimento. Assim como é possível
visualizar por seu corpo nu, as veias da cabeça e pescoço que se sobressaem
mediante um esforço que sugere ser intenso e contínuo. O brilho suado reveste
a pele de um corpo agora líquido. Os músculos torneados e treinados se
tencionam pelo movimento. O performer, sua ação e a vida pulsando na carne
parecem isolados em um espaço obscuro e vazio.
Na segunda fotografia, vemos, também, um homem que segura um tijolo
quase sem esforço. Ele não faz movimentos com ele, mas parece saber segurá-
lo. Vestido de forma cotidiana, ele fala com o auxílio de um microfone headset.
O performer divide o espaço com outras pessoas, sem que entre eles exista algo
que indique uma distinção, fazem parte do mesmo espaço onde uma luz recai
sobre todos de forma homogênea. Talvez estejam escutando o que ele fala ou
admirando a maneira com a qual ele segura o objeto. Os demais são os
espectadores, que, não fosse graças a essa informação adiantada por mim, não
se saberia quem é quem nesse espaço incerto onde se pode tocar e conversar
com o performer, até sentir o cheiro da sua loção pós-barba.
No primeiro contato visual, pela internet, com trechos de espetáculos do
Troubleyn e Rimini Protokoll, meu olhar não era um olhar virgem a esses tipos
de espetáculos, porém, senti que meu olhar era fortemente capturado em razão
da potência das criações em transcender os limites da representação, realizando
conexões específicas entre arte e vida. Impacto que se deu também pelo fato de
que essas criações confluíam para a minha própria prática artística. Sou um
performer. Um performer sempre em processo, e nesses processos, descubro-
me pesquisador. Como conclusão do curso de teatro do departamento de Arte
Dramática, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), apresentei

17

o espetáculo solo: Roleta Russa/Maçã do Amor1, onde relatos pessoais (aquilo


vivenciado/experienciado por mim) eram intercalados com cenas de exposição
física (evento de alta fisicalidade), em um desejo em mapear tanto a minha
realidade física quanto a realidade subjetiva. Terminada a graduação, prossigo
com minhas pesquisas teórico-práticas, e em 2013, defendo, no
PPGAC/UFRGS, o Memorial Reflexivo: Um Títere de si mesmo: a imagem como
interface dos jogos estabelecidos em uma criação sistêmica2. Coloco-me,
novamente, como um performer dentro de uma pesquisa em âmbito acadêmico,
trazendo ao palco uma linguagem, em diálogo entre dança, teatro, tecnologias
da imagem e do som. O palco tecnológico se torna elemento criativo
fundamental em uma representação teatral quando ele estabelece um jogo com
a fisicalidade de um corpo performático (BELLOTTO, 2013).
Os dois espetáculos (cujas imagens partilhamos acima), do latim
spectaculum - algo produzido para ser visto, estão atravessados pelos
questionamentos sobre a representação, deflagrados pelas vanguardas
artísticas do século XX. Cabe lembrar que a desconfiança sobre a
representação faz parte da crise da modernidade que abalou as certezas
seculares do pensamento ocidental, crise denunciada pelo filósofo francês Jean-
François Lyotard, autor da obra que cunhou o termo “pós-modernidade”,
revelando-a como a época do fim dos metarrelatos3 e a mudança de estatuto do
saber quando as sociedades entram na idade dita pós-industrial e as culturas na
idade dita pós-moderna (LYOTARD, 1988)4. O filósofo italiano Gianni Vattimo
(2002), por sua vez, entende essa crise como o fracasso do ideal moderno de

1
O espetáculo teve a orientação da professora doutora Suzi Weber e vídeos do artista visual
Bruno Gularte Barreto. Foi apresentado na Sala Alziro Azevedo dentro do Departamento de Arte
Dramática da UFRGS no ano de 2010, realizando apresentações em anos seguintes no espaço
cultural Usina do Gasômetro, na cidade de Porto Alegre.
2
O experimento prático, Um títere de si mesmo, teve orientação da professora doutora Marta
Isaacsson, com vídeos do artista visual Leonardo Remor e trilha sonora do músico Felipe Gue
Martini. Realizou apresentações dentro do Departamento de Arte Dramática da UFRGS.
3
“Pois o que conta este relato não deve ser um povo estrangulado na positividade particular de
seus saberes tradicionais, e tão pouco o conjunto dos cientistas que são limitados pelos
profissionalismos correspondentes às suas especialidades. Este não pode ser senão um
metassujeito em vias de formular tanto a legitimidade dos discursos das ciências empíricas,
como a das instituições imediatas das culturas populares” (LYOTARD, 1988, p.61).
4
“Essa passagem começou desde pelos menos o final dos anos 50, marcando para a Europa o
fim da sua reconstrução” (LYOTARD, 1988, p.3).

18

progresso, e anuncia como ponto de partida do pós-moderno: o fim do


eurocentrismo, a abertura para outras visões de mundo.
Dessa forma, a pós-modernidade, com suas características: plural,
dinâmica, híbrida, abarcando diferentes representações acerca do mundo, nos
permite assistir/testemunhar às manifestações culturais contemporâneas, que
priorizam diálogos: entre si, entre gêneros e meios artísticos, e com elementos
de outras áreas. A partir das vanguardas europeias dos anos 1920, presencia-se
uma profusão de experiências artísticas multidisciplinares, identificadas pela
historiadora RoseLee Goldberg (2006) como a origem do movimento de
performance que se adensa nos anos cinquenta em diante.
Desde então o teatro passou a se libertar das regras estruturais rígidas da
tradição e da imitação, baseadas, somente na mimese, que criava, assim, a
realidade cênica onde o texto deveria ser inscrito. O teatro passa a dividir o
cenário artístico com a performance art, o happening, onde o acontecimento real
modula a obra. Essa abertura colabora para o enfraquecimento da cena
textocentrista, investe na autonomia dos significantes e tenciona as relaçōes
entre artista/espectador, ausência/presença, ficção/real.
Quando pensamos sobre teatro e vamos à sua raiz etimológica grega,
encontramos que theatron significa “lugar para ver” – lugar onde se vê. Nesse
sentido, aconteceria teatro (eu vejo teatro) quando um espaço me
informa/sinaliza que ali está acontecendo teatro. Porém, segundo expressão
consagrada pelo dramaturgo inglês William Shakespeare, temos: teatrum mundi
– o mundo é um teatro! Recordemos que para Nicolas Evreinov, no início do
século XX, a teatralidade se constitui como um princípio fundamental presente
no homem, um “instinto de transmutar as aparências oferecidas pela natureza
em algo mais” (1930, p. 22-23)5. Assim, a teatralidade ultrapassa o teatrum.
É dentro de estudos acerca das operações envolvidas na construção de
significados que se busca avançar na compreensão do sentido da teatralidade.
Em artigo publicado em 1988, a pesquisadora Josette Féral apresenta a


5
Tradução minha para “L’instinct de transmuter des apparences offertes par la nature en
quelque chose d’autres ”.

19

teatralidade como uma operação definida pela relação do espectador com a


obra. Entre os exemplos por ela adotados está uma cena de rua, organizada
segundo os princípios do Teatro do invisível definidos por Augusto Boal6, onde
os observadores inicialmente desconhecem se tratar de teatro e somente
aqueles que ficaram até o final da representação escamoteada7 tomaram
conhecimento de que se tratava de uma situação intencional, ressignificando por
conseguinte, o que tinham acabado de ver:

Esse saber modificou seu olhar e forçou-o a ver o espetacular onde


então só havia o especular, ou seja, o evento. Ele transformou em ficção
o que pensava surgir do cotidiano, semiotizou o espaço, deslocou os
signos e pode lê-los em seguida de modo diferente, fazendo emergir o
simulacro nos corpos do performers e a ilusão onde, supostamente, ela
não estaria próxima, ou seja, no espaço do cotidiano (FÉRAL, 2015, p.
8
85) .

O observador, no caso exemplificado, não reconheceu a situação como


teatro porque desconhecia se tratar de teatro. O “pacto teatral” aconteceu de
forma retroativa, elucidando de maneira inversa as operações que o olhar coloca
em movimento frente ao fenômeno teatral.
Féral define como clivagem a operação a qual o espectador realiza ao
entrar no teatro, e que estabelece “um outro espaço, ou espaço do outro no
lugar do seu próprio” (2015, p.87). Prossegue a pesquisadora citando outro
exemplo: um observador investe de teatralidade os gestos e movimentos de
uma pessoa comum sentada em um café, neste caso, enxergando “teatro” onde
ele não estava. Assim, essas características transformadoras pertencentes ao
olhar tornam a teatralidade algo que “ultrapassa o fenômeno estritamente teatral
e pode ser identificado tanto em outras formas artísticas (dança, ópera,

6
“O teatro do invisível consiste em se preparar uma cena, para apresentar em um espaço de
acesso público, sem que ninguém, exceto os atores, venha a saber que se trata de uma
encenação […] objetiva que a encenação forneça um questionamento de comportamentos,
hábitos e mecanismos de poder que foram naturalizados, suscitando o debate e a mobilização
sobre o tema proposto” (BALESTRERI, 2013, p.3).
7
No ensaio A teatralidade como propriedade do cotidiano, publicado em 1988, Féral descreve
como exemplo, uma discussão violenta entre 2 passageiros que se inciava dentro de um metrô,
por um deles estar fumando em local proibido. Somente na chegada à estação eles revelaram se
tratar de uma cena teatral.
8
O livro Além dos limites: teoria e prática do teatro, do ano de 2015, reúne série de ensaios da
pesquisadora Josette Féral, dos anos 80 aos anos 2000.

20

espetáculo) quanto no cotidiano” (2015, p.107). A clivagem acontece então não


só ao se entrar no teatro, mas quando a teatralidade é a lente do seu olhar – é a
lente que está nos seus olhos. Essa dinâmica aponta que a teatralidade pode
tanto nascer do sujeito que projeta outro espaço a partir do seu olhar, quanto
dos criadores que instauram um lugar de teatralidade e requerem um olhar que
o reconheça (FERNANDES, 2015). Dessa forma, de uma maneira ou de outra, o
observador/ espectador/ criador se projeta para além do plano do cotidiano,
instituindo o campo da teatralidade.
A semióloga francesa do teatro, Anne Ubersfeld, ao identificar a
denegação como princípio operatório da teatralidade, aponta também as
possibilidades de “emoldurar” a forma de olhar o objeto artístico, deslocando-o
do cotidiano. Ou seja: é a predisposição do espectador de apreender como
representação aquilo que ele vê exposto em cena (a denegação), uma das
características que faz dele ser espectador de teatro. Recordemos que a arte,
enquanto um campo de experiências organizadas para fruição estética, passa
por diversas possibilidades de propor essas emoldurações do olhar, dessa
forma, “a percepção de que a totalidade dos signos teatrais é marcada por
negatividade” (UBERSFELD, 2013, p.21) faz o espectador olhar para o palco e
dizer que o que ele vê não é real em virtude deste emolduramento. Tanto a
clivagem quanto a denegação instituem para o fenômeno teatral o lugar da
ficção, da irrealidade, da ilusão, lugar do fantasmático9.
Por outro lado, sabemos que o teatro sempre trouxe uma dimensão
performativa, mas que se coloca a mostra com força, ao ser atravessado pela
performance art, no desejo de interromper a representação. A duplicidade do
acontecimento teatral traz consigo a camada do performativo imbricada à da
teatralidade. Toda uma concretude física, que em qualquer teatro, até o de
caráter ilusionista, existe. Tem-se a camada do tempo, espaço e corpo real
dados, que se multiplica/mistura à camada do tempo, espaço e corpo simbólicos


9
“Em princípio a teatralidade aparece como operação cognitiva e até mesmo fantasmática”
(FÉRAL, 2015, p.87).

21

da ficção. Se retirarmos o tecido representacional dos elementos e agentes


cênicos, deixamos a descoberto o caráter factual do acontecimento cênico.
É para dar conta dessa prática cênica para além da representação, além
da narrativa e da ficção, que eu me alio à expressão de teatro performativo,
sugerida por Josette Féral (2008). Esse teatro performativo vai se distinguir ao
destacar a “dimensão do fazer” em cena como característica preponderante,
independente do seu valor de representação. Dentro do conjunto de práticas de
performance descrita pela autora Goldberg (2006), destaco a noção de
performer como aquele que tem no seu corpo o suporte artístico onde a
dimensão de sua presença é valorizada mediante atos que são investidos em
direção a esse corpo/suporte. Ele, o performer, não se apresenta como um ou
outro, mas, assumi-se diante a uma audiência, experimentando-se.
Recorda-se que Féral, identificando diálogo estreito entre a performance,
valoriza também a dimensão da presença viva ao observar a passagem do ator
a performer e ao afirmar que o teatro performativo “versa sobre a prevalência do
corpo” (2015, p.144), sendo movido por afetos, desejos, libidos e sensações do
performador. O teatro performativo tem no seu centro o performer e “o performer
não representa. Ele é. Ele é isso que ele apresenta. Ele não é nunca uma
personagem. Ele é sempre ele próprio, mas em situação” (FÉRAL, 2015, p.
146). Segundo a autora, algumas formas de presença cênica são tão intensas
que bombardeiam o espectador em cheio com “golpes de real” (FÉRAL, 2012,
p.78). Isso porque, coloca o espectador próximo a corpos preparados que não
jogam com personagens mas que se experimentam fisicamente até o limite do
insuportável, suspendendo assim a possibilidade de denegação do espectador.
Hans-Thies Lehmann, ao propor o teatro pós-dramático como
conceituação para distintas poéticas teatrais presentes na cena experimental a
partir dos anos 1970, identifica igualmente que “o que está em primeiro plano
não é a encarnação de um personagem, mas a vividez, a presença provocante
do homem” (2007, p.225). E, por consequência, o espectador presencia “uma
experiência de real (tempo, espaço, corpo) que visa ser imediata” (LEHMANN,
2007, p. 223).

22

Outra possibilidade de questionamento da representação que coloca à


mostra a camada da performatividade, e que se adensa, dessa vez a partir dos
anos 90, diz respeito à participação no elenco de não atores e suas histórias de
vida, no interesse em valorizar a dimensão identitária destes em detrimento da
construção de um personagem e reescrever a arte no “domínio do cotidiano”
(FÉRAL, 2015, p. 84).
Uma prática artística, um espetáculo, assim como uma pesquisa
acadêmica passam por processos, etapas, amadurecimentos. Sempre me
interroguei sobre a classificação “teatros do real” atribuída a um conjunto de
práticas, pois se essas convergem no desapego da representação, elas se
mostram também esteticamente muito diversas. Cheguei, então, a cogitar a
possibilidade de categorizar modalidades de teatros do real. Porém, com o
avanço da pesquisa e a oportunidade de conhecer os processos de criação dos
grupos em estudo, abandonei tal proposta. Pareceu-me muito mais interessante
como contribuição ao campo dos estudos dos processos de criação de
concentrar meu olhar sobre como, por quais procedimentos técnicos criativos, os
espetáculos promovem no espectador a experiência de real.
É dentro dessa perspectiva que esta tese aborda as práticas do
Troubleyn e Rimini Protokoll, com especial análise nas obras Mount Olympus
(2015) e Sociedade em Construção (2018), criadas, respectivamente, pelos
coletivos. A reflexão se faz a partir de documentos audiovisuais, entrevistas,
fotos, textos críticos disponíveis sobre as produções dos artistas. Diante desse
contexto, meu olhar sobre os procedimentos técnicos empregados pelos artistas
em estudo foi sendo transpassado pelas seguintes questões: quais são as
estratégias para capturar a tendência do espectador de teatro de denegar, em
duas poéticas distintas, contemporâneas, com características particulares,
consoantes à crise da representação teatral? Como se dão os procedimentos
empregados que interrompem o patamar da ficção? Como funcionam esses
procedimentos que evidenciam a camada do real que está sempre junto ao
fenômeno teatral?

23

Minha imersão nessas duas poéticas se deu de forma que o meu olhar
tocou, confrontou-se com esses universos criativos. Um olhar de corpo e alma.
Desloco-me aos berços das duas companhias ora analisadas, e assim, adquiro
conhecimentos, através de conversas, entrevistas, diálogos informais, oficinas, e
espetáculos assistidos. Por exemplo, em Lyon, na França, participo do curso de
formação para performances constituído pelo treinamento do Troubleyn. Dessa
forma, assumo, que esta pesquisa tem inspirações tanto da etnografia quanto da
cartografia. Pois esta se constituiu, antes de mais nada, como um processo
vivido, experimentado na prática do “experienciar - fazer - refletir”. Penetrar na
tessitura das ações como possibilidade de conhecimento é concordar com
Salles que “vivendo os meandros da criação, quando em contato com a
materialidade desse processo, podemos conhecê-lo melhor” (2014, p.22).
Movimentaram, pela força comunicativa e poética, a ação necessária para
mergulhar no doutoramento na linha de pesquisa processos de criação cênica, a
fim de investigar algumas possibilidades na prática teatral contemporânea, como
a de confiscar a artificialidade própria da arte, deixando a descoberto o olho do
espectador.

A Tese se organiza em quatro capítulos. O capítulo I resgata diferentes


abordagens críticas a propósito dos chamados “teatros do real” para se
averiguar como a crítica especializada percebe e analisa os procedimentos
ligados a essas práticas que vêm se manifestando com ênfase nas últimas
décadas. E citam-se pesquisadores latinos, norte-americanos e europeus no
sentido de refletir e teorizar sobre o campo poético em questão, valendo-se das
relações entre real e ficcional, performatividade e teatralidade, sondando o
redimensionamento das fronteiras da representação clássica, através de
publicações que atestam a relevância do tema em âmbito nacional e
internacional. A seguir, uma primeira aproximação do real em campo artístico se
faz refletida através do resgate do real traumático, proposto por Hal Foster, onde
a impossibilidade de representar o real violento faz este irromper na cena

24

através de corpos que tensionam seus músculos e órgãos ao limite das suas
resistências, até ações brutais endereçadas uns aos outros.
No capítulo II a tese se debruça sobre a poética do artista Jan Fabre.
Para o exame qualificado das criações do artista, resgatam-se elementos
característicos do movimento artístico da chamada vague flamande no qual este
costuma ser inserido e que apresenta determinadas características de suas
produções. Também desenvolve painel crítico sobre sua poética no campo da
performance art que influenciou toda sua produção teatral, identificando as suas
bases criativas.
Em seguida, se desenvolve o conceito de performance biológica, onde a
luta de caráter eminentemente física do performer com ele mesmo desgasta seu
corpo e o aciona energeticamente, traduzindo-se em presença marcante em
cena. A seguir se realiza análise do espetáculo Mount Olympus com o objetivo
de perceber como o real é colocado em cena, tendo na performance biológica
seu princípio estruturante. Dessa forma, clarifica-se a prática desenvolvida pelo
grupo que aporta uma dimensão de real pelo viés fisiológico.
Em decorrência da oportunidade de participar dos procedimentos
formativos do grupo durante a pesquisa de campo, o capítulo III analisa o
treinamento do performer do Troubleyn a fim de identificar os procedimentos
corporais que compõem a performance biológica. Pela via de experiências
corporais internaliza um fazer que confere autonomia criativa para o performer a
partir de um alfabeto constituído para ser usado em cena. Possibilita-se
igualmente sistematizar as características processuais, perceber como o grupo
ativa as cenas, a partir de quais disparos criativos, jogos e exercícios. O
performer se apodera do que fez percorrendo o caminho da experimentação
para então manipular o que assimilou para si, preparando um artista
independente e criativo. A seguir, percebe-se esse treinamento colocado em
cena, através da identificação dos exercícios e jogos agindo no interior dos
quadros de Mount Olympus, entre o treinamento e a criação.
O capítulo IV avança aspectos fundamentais da poética do coletivo
Rimini Protokoll e os procedimentos cênicos utilizados para suspender a

25

tendência à denegação do espectador; o uso de não atores e suas histórias de


vida, bem como o uso de lugares não convencionais de representação e
engajamento físico da plateia na construção cênica. Procedimentos que
conformam determinado “pacto com o real” em cena. No sentido de qualificar os
procedimentos descritos, a tese traça relações com expoentes do teatro alemão
que aportam elementos que são resgatados e desenvolvidos pela poética do
Rimini Protokoll. A seguir, uma análise desses procedimentos agindo no interior
do espetáculo Sociedade em Construção, que elabora discursos de alteridade,
abrindo-se para o individual e o social de forma atual, implicando na participação
do espectador chamado a construir a obra.

26

Capítulo I – Problematizando o real em campo cênico

Ao reiterar frequentemente o surgimento do real em campo teatral em


consequência da interrupção da representação tradicional, não siginifica que a
tese tenha a pretensão de criar espaço de aprofundamento filosófico do que seja
o real. Os saberes, desde a antiguidade aos dias de hoje, redefinem
constantemente o que seja o real constituindo-se como um termo que carrega
longa história de investigação filosófica, o que só reforça seu caráter
inapreensível. Partindo de textos críticos que se tem sobre o tema em campo
teatral, percebe-se que a relação estabelecida com o real é tributária da escolha
do corpus escolhido pelo teórico, assim como a qualidade do olhar crítico que
ele lança sobre esse corpus (geralmente multidisciplinar) é o que acaba por
definir o que seja o real. Assim como uma palavra muda de sentido quando se
desloca de um contexto para o outro, o real encontra sua consumação no
contexto do seu uso. Segundo Roland Barthes, “a língua cria o real: quem
escolhe a língua escolhe sua realidade” (2007, p.76). Sendo assim, para
problematizar essa questão em campo cênico, elejo para reflexão algumas
análises existentes que fazem aproximações de determinadas poéticas teatrais
compreendidas como pertencentes ao campo do real.

1.1 Teatros do real

Resgata-se primeiro, a própria expressão “teatros do real” a partir da


psicanalista francesa Maryvonne Saison (1998)10 que a utilizou para qualificar
certo número de encenadores franceses dos anos 90 que faziam
intencionalmente referência ao real utilizando o termo com o objetivo de se
disvincular de uma determinada concepção global da realidade: "Tudo acontece,
como se o ‘real’ tomasse o lugar da ‘realidade’ da qual gradualmente fazemos o
luto” (SAISON, 1998, p.41)11. Saison se interessa por teatros que, no contexto
da crise da modernidade, abdicam à representação do mundo se empenhando

10
No original: Les Théâtres du réel, publicado no ano de 1998.
11
Tradução minha para “Tout se passe comme si le ‘réel’ prenait la place de la ‘réalité’ dont on
fait peu à peu le deuil”.

27

justamente na pesquisa de um real que não é mais possível ser representado;


vai se tratar de um "esforço de representação" (SAISON, 1998, p.79)12. Esse
esforço quer qualificar o real como uma "dimensão de alteridade à qual nunca há
acesso direto" (1998, p.46)13. É para dar forma a "visões múltiplas,
fragmentadas, estilhaçadas" (1998, p.51)14, a fim de trazer o real "ao limiar da
representatividade" (1998, p.54)15.
Esses teatros não são mais destinados a dar forma à totalidade da
realidade, mas a dar uma espécie de representação negativa, para sugerir sua
alteridade irredutível (SAISON, 1998). O que efetivamente pertence à
representação nesses teatros, serve apenas para se referir ao real como não
representável. Saison vê, nessas práticas da representação, um desejo de se
abrir para uma consciência da relatividade dos pontos de vista das “histórias
oficiais” e do próprio espectador.
E, essa tentativa de abertura se desloca até o campo do social,
mobilizando os próprios excluídos sociais contra a exclusão, através de ação
engajada e intervencionista, onde estes adquirem para si a palavra, em ações
de experiência e encontro colocados em cena. O desejo de ir em direção a essa
parcela da sociedade resultou em uma espécie de rompimento do Real (Saison
utiliza assim mesmo, com letra maiúscula, para definir uma visão de real
totalizante, unívoco, do qual se quer distanciar).
O horizonte dessa modalidade teatral visa à abertura do teatro para o
outro, mobilizando os mecanismos cênicos nessa direção, ao mesmo tempo em
que deixa entrever vontade de uma retratação social. Por exemplo, no Brasil,
encontramos o espetáculo Cidade Correria (2014)16, do Rio de Janeiro, que se
constituiu a partir das experiências vividas em residência artística, realizada
pelos diretores Adriana Schneider e Lucas Oradovschi, no espaço cultural Arena


12
Tradução minha para “l’effort de représentation”.
13
Idem “dimension d’altérité à laquelle il n’y a jamais d’accès direct”.
14
Idem “vues multiples, fragmentées, éclatées.
Idem “au seuil de la représentabilité”.
15
16
Apresenta-se aqui exemplos recentes em contexto nacional, apesar de que o teatro de
mobilização social, tal qual apresenta a autora francesa, pode ser encontrado em contexto latino
muitas décadas antes. Basta retomarmos à estética do Teatro do Oprimido, de Augusto Boal
(1971), por exemplo.

28

Carioca Dicró, na Penha. Do Sul do Brasil, cito o coletivo DAS FLOR, de Porto
Alegre, que estabelece diálogos e vivências artísticas para diferentes contextos
sociais gerando performances pela mobilização das comunidades periféricas em
que se desenvolve, como a apresentação do espetáculo Lombay (2014), criado
e apresentado no bairro Lomba do Pinheiro. Saison utiliza o termo effraction,
para caracterizar essa mobilização do teatro em direção a parcelas sociais
excluídas, e que poderia equivaler-se a difração, invasão, arrombamento do
teatro em direção a um real múltiplo, contribuindo para a “irredutível pluralidade
de versões de mundo” (SAISON, 1998, p.39)17.
O evento emblemático para reflexão de Saison sob os “teatros do real” foi
um ato de protesto realizado no mês de julho de 1995, na França, durante o
Festival europeu de Avignon, onde uma greve de fome18, realizada por artistas
de teatro, expande-se para uma ação exterior ao campo artístico. Esse
engajamento concreto dos artistas no terreno da realidade levantou
desconfiança à época se era de fato uma greve de fome real. Pode-se dizer que
a ação efetiva, que colocava em risco a integridade física dos participantes, foi
“denegada” durante certo tempo, demonstrando a potência do olhar teatralizante
do observador, a qual invade o cotidiano, os espaços, investindo de teatralidade
ao menor indício de que ali há teatro.

1.1.1 A totalidade do Real

Mas em campo artístico, mais especificamente em campo teatral, que


“real total” é esse do qual fala Saison? Para responder essa questão, retomam-
se as origens do teatro, na Grécia antiga (VII a.C), lugar onde se convenciona
como nascimento do teatro ocidental, em período anterior à institucionalização
do teatro em festivais competitivos. O que se tinha eram representações
pautadas pelos rituais religiosos, onde os participantes se conectavam com os


17
Tradução minha para “l’irréductible pluralité des versions du monde”.
18
Como ato de protesto contra a “limpeza étnica” que ocorria na Bósnia durante a guerra que
assolou o país entre os anos de 1992 a 1995.

29

deuses a partir de seus próprios corpos em relação e movimento contínuo. É o


historiador Juanito de Souza Brandão quem escreve:
Historicamente, por ocasião da vindima, celebrava-se, a cada ano, em
Atenas e por toda a Ática, a festa do vinho novo, em que os
participantes, como outrora os companheiros de Baco, se
embriagavam e começavam a cantar e a dançar freneticamente, à luz
dos archotes e ao som dos címbalos, até caírem desfalecidos. Esse
desfalecimento se devia não só ao novo néctar, mas ao fato de os
"devotos do vinho” e do deus se embriagarem de êxtase e de
entusiasmo (BRANDÃO, 1987, p. 123).

É possível perceber na origem do ritual o desejo de se comunicar com


algo que não é do campo do visível, impulsionado a partir da fisicalidade do
acontecimento ritualístico. A ativação de uma energia corporal através da
resistência física, do movimento dançado, repetitivo, espontâneo, aliado ao
consumo de bebida alcoólica provocava a “loucura sagrada”, fazia com que o
participante se fundisse à divindade. A conexão se dava pela amplificação da
presença onde “o mergulho do deus em seu adorador é ter o deus dentro de si”
(BRANDÃO, 1987, p.54).
Os gregos promoveram o paulatino esvaziamento desse modo de relação
com a divindade, ao institucionalizar o teatro, que ficou vinculado à ação de um
personagem, do que no investimento da incorporação daquela energia primeira
pelos participantes. Houve então a perda ou diminuição da experiência com a
divindade como algo que atravessa a carne e o sujeito em movimento,
valorizando o ator que, pelo princípio de representação, “dá um passo à frente e
se destaca do coletivo” (LEHMANN, 2007, p.331) ao convocar um ente ficcional.
É a partir da presença do ator em cena que se convoca uma ausência. Ausência
denominada de personagem.
Posteriormente, a estética trágica, revelada pela Poética (335 a.C - 323
a.C.) de Aristóteles, descreve uma ideia de mundo pautada pela totalidade,
unicidade e organização dos elementos de forma coerente e ordenada que
promove uma noção de realidade total e fechada. As regras se fecham para
isolar o conteúdo que se quer desenvolver, fazendo da forma a proteção maior
das perturbações de qualquer ordem. O drama se estrutura a partir dessa
herança secular do teatro grego. Essa relação de representação – entre uma

30

imagem presente e um objeto ausente, uma valendo pelo outro – traça toda a
teoria do signo do pensamento clássico, e serve de modelo de um mundo total e
coerente. Não é à toa que “os historiadores constantemente recorreram à
metáfora do drama, das tragédias e da comédia para descrever o sentido e a
unidade interna dos processos históricos” (LEHMANN, 2007, p. 61). É desse
Real no campo das artes da cena ao qual se quer distanciar, “fazer luto” nas
palavras de Saison, (1998); é esse Real que se rasga em pedaços (NANCY,
1993) na pós-modernidade.

1.1.2 Teatro de pessoas reais

Em época mais recente, as autoras alemãs Meg Mumford e Ulrike Garde


(2016) promovem a reflexão sobre o “teatro do real” deslocando a problemática
para as impressões que o trabalho do performer suscita no espectador. Para
analisar determinado número de espetáculos apresentados em campo alemão
envolvendo “pessoas reais” (no caso, performers com ou sem experiência de
palco, que encenam fatos verídicos), as autoras se utilizam da noção de
autenticidade19 em relação à percepção que o espectador tem a respeito do
performer em cena. Ressalta-se que as autoras tomam como base para
reflexão, justamente, a questão do autêntico em campo artístico, discutido por
Walter Benjamin em A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica
(1955). Para dar conta da maleabilidade do termo, as autoras delineiam dois
tipos de abordagem a respeito da autenticidade no teatro atual. Uma abordagem
denominada de “efeito idealizante de autenticidade”, e outra, uma “abordagem
cética ao efeito de autenticidade”. Enquanto que na “idealizante”, geralmente,
não se interrompe, nem se perturba um senso convincente de contato com o
autêntico, escondendo os artifícios que geram essa impressão; na segunda
abordagem há uma sensação de contato autêntico e a sua posterior
desestabilização. A noção de autenticidade em si varia de acordo com os


19
Do latim authenticus, que se refere a originais, particularmente documentos originais (GARDE;
MUMFORD, 2016).

31

contextos sócio-históricos, segundo as autoras, e tem a capacidade de gerar


diversas sensações nos espectadores, entre elas aquelas ligadas a um senso de
sinceridade, genuinidade, honestidade e não falsificação.
No teatro típico de abordagem idealizadora da autenticidade, essa
percepção é balizada pelo fato de que os meios representacionais pelos quais o
acesso à autenticidade é possível, com todas as necessárias escolhas e
técnicas artísticas, são ocultados. A autenticidade idealizadora esconde os
artifícios prometendo fornecer uma certeza ao espectador de que ele
experimentou a integridade, honestidade, veracidade e imediatismo. Remete a
uma percepção de que o evento teatral se refere exatamente ao mundo além do
cosmos encenado. O que se aplica de forma mais visível à corrente ilusionista
de teatro.
Na abordagem “cética” sobre os efeitos de autenticidade, a possibilidade
de corpos e discursos autênticos é atravessada pela consciência crítica da
dificuldade da representação verdadeira, e desafia a possibilidade sobre a
linguagem e objetividade transparentes. Em vez de prometer a veracidade,
espetáculos que utilizam a abordagem cética oferecem uma experiência da
complexidade e dificuldade da representação verdadeira. “É um termo paradoxal
que, ao se referir ao artifício das técnicas teatrais, aponta para a natureza
complexa da autenticidade, tanto dentro como fora do palco” (GARDE;
MUMFORD, 2016, p.77)20.
O teatro apresentado dessa maneira demonstra um estado de incerteza
sobre se alguém está ou pode estar na presença do autêntico. Gera dúvidas se
o momento exposto pretende ser autêntico ou artificial, se está acontecendo
teatro ou é a vida cotidiana que se apresenta, se as ações realizadas foram
ensaiadas ou não, sobre a autoria do texto que está sendo ouvido, e a própria
compreensão sobre o performer e o evento como um todo pode se tornar
incerta. Assim, esse teatro que percorre a “abordagem cética ao efeito de
autenticidade” abre estados limítrofes de desorientação para o espectador e


20
Tradução minha para “It is a paradoxical term that, by referring to the artifice of theatrical
techniques, points to the complex nature of authenticity both on and off stage”.

32

pode encorajar modos novos e instáveis de perceber a si, o outro e as


representações (GARDE; MUMFORD, 2016).
Observa-se que ao longo do texto, a expressão “real” é utilizada para
abordar o trabalho sobre a cena, em específico, dos performers. Por isso, a
denominação de “teatro de pessoas reais” decorre do fato dos performers
apresentarem relatos com referência em uma história verídica, ao invés de uma
história de ficção. Ao passo que ao se referir às condições perceptivas do
espectador, as autoras utilizam o termo autenticidade, originalidade e não
falsificação.

1.1.3 Realidade e ficção

A pesquisadora alemã Fischer-Lichte no texto Realidade e ficção no


teatro contemporâneo (2013) retoma a coexistência dos dois planos do
acontecimento teatral, que nunca tem suas fronteiras exatamente definidas. O
plano dos corpos reais, que se deslocam em espaços reais, e o plano das
simbolizações abertas pela ficção; o corpo real do ator (fenomenal), e o corpo
ficcional (semiótico) do personagem ou figura dramática. O real aqui é
perpetrado pelo corpo do performer assim como o espaço concreto da cena
antes de serem significados pelos mecanismos ficcionais.
Para Fischer-Lichte, o teatro psicológico-realista foi confrontado ao teatro
de vanguarda no século XX, por querer suplantar a tensão entre o real e o
ficcional em prol de uma completa ilusão de realidade. E manifestos - como o
Paradoxo do comediante, de Diderot, escrito no final do século XVIII - apontam à
vontade de transformação completa do corpo fenomenal, fazendo-o desaparecer
atrás do corpo semiótico, com a intenção de levar o público a reconhecer
apenas o personagem que o ator representa. Para a autora, dessa
impossibilidade de exclusão total de qualquer um dos corpos por um lado, e a
retomada dessa tensão por outro, advém parte do teatro contemporâneo.
É inegável que nas artes cênicas o real é presente, mesmo quando se
tenta escondê-lo, dada a própria natureza do acontecimento ao vivo e

33

compartilhado. A dimensão do real sempre acompanhou a ficção teatral, dada a


sua condição de duplicidade. Nos termos levantados por Fischer-Lichte, falar de
um “teatro do real”, torna-se relevante quando se pensa em modalidade cênica
que propositadamente evidencia em cena as duas camadas citadas: a do real
(factual) e a ficcional (simbólica). O real então interessa na medida em que faz
aparecer o funcionamento do acontecimento teatral enquanto espaço de
duplicação. E cada artista opera com essa tensão de maneira específica, a partir
de seus processos criativos, sobrepondo, alternando ou contrapondo ambas as
camadas de acordo com sua percepção. O que leva o espectador a entrar nessa
dança instável dos sentidos21.
A tensão entre realidade e ficção perpassa as análises de Ileana Diéguez
Caballero, através da noção de liminaridade, resgatado da antropologia.
Caballero analisa práticas teatrais em âmbito latino, onde ela identifica a
existência de uma zona de indecisão, “que me transferia da arte à vida e vice-
versa, submergindo-me na incompreensão do fenômeno” (CABALLERO, 2010,
p.13). A pesquisadora afirma que sua análise opera nas “bordas do teatral”
(2010, p.14), identificando essa tensão e relacionando às estratégias das artes
visuais hibridizadas ao campo cênico.
Das abordagens descritas até aqui, o que se evidencia em todas elas é o
requestionamento da representação e sua função, atrelada a essa fatia maior da
crise do modelo ocidental. "Hoje, a teatralidade analítica no teatro opera pelo
questionamento de todas as categorias teatrais", afirma Helga Finter (2003,
p.30). Nesse contexto, a representação tradicional baseada na totalidade da
fábula ilusionista22 não consegue mais dar conta da polifonia contemporânea,
pois não existe mais a produção de “uma imagem da realidade correspondente a


21
Para exemplo mais evidente dessa tensão, a autora analisa determinados espetáculos do
italiano Romeo Castelluci, onde ele utiliza-se de atores com corporalidades “fora da norma”, de
maneira que eles se sobressaiam aos personagens que intepretam.
22
“O teatro de ilusão é uma realização perversa da denegação” (UBERSFELD, 2013, p.23).

34

um sistema coerente e ordenado, desenhando um mundo ou universo onde


cada elemento teria seu lugar designado” (SAISON, 1998, p.38)23.
Se a verdade do modelo totalizante se mostra inoperante para
entendimento do mundo, seu modelo tradicional de representação, o qual
sempre o edificou, igualmente, precisa ser redimensionado. A crise dos sentidos
abre possibilidades de se especular novas direções possíveis, pois crise
pressupõe reflexão, logo “poderíamos jogar com os estilhaços, com as bolhas,
com os cacos de um sentido à deriva” (NANCY, 1993, p.11)24.
Com diferenças entre as ideias levantadas de acordo com as
especificidades de cada análise e objeto, percebe-se que nenhuma delas tem a
pretensão de eliminar ou esconder a linguagem artificial que faz parte de todo
acontecimento artístico. Autores que analisam as contaminações do teatro com
a linguagem da performance art também colocam em discussão os elementos
da realidade e da ficção, e por consequência, tencionam os princípios de
representação. Marvin Carlson identifica como característica das artes
performáticas, ao referenciar a representação como “esfera dos deslocamentos”
(CARLSON, 2010, p. 497). Essa tensão, no final das contas, reside no coração
do acontecimento teatral. Momento em que esses teatros suspendem a
denegação do espectador, fazem efraccion, encontram-se em zonas liminais,
interrompem a representação ou friccionam a apresentação e a representação.
Essas mudanças de procedimentos instituem contratos geradores de novas
percepções para o espectador, abrindo-se, por consequência, para novas
percepções de mundo.

1.1.4 Teatro documentário

Dentro da perspectiva ampla dos chamados “teatros do real”, inclui-se o


teatro documentário, por sua incontornável referência ao real pelo viés do
documento. Teatro documentário, segundo Pavis, é o “teatro que só usa, para

23
Tradução minha para “une image de la réalité correspondant à un système cohérent et
ordonné, dessinant un monde ou un univers dans lequel à chaque élément reviendrait une place
assignée”.
24
Idem “jouer avec les éclats, les bulles d’un sens à la dérive”.

35

seu texto, documentos e fontes autênticas, selecionadas e ‘montadas’ em


função da tese sociopolítica do dramaturgo” (PAVIS, 2001, p.387). Noção
circunscrita ao domínio dramatúrgico que implica reutilização de informações,
dispostas de acordo com os interesses do autor que manipula esse material à
sua vontade. Portanto, tal teatro se constitui pela elaboração de ponto de vista
organizado pelo autor sobre os fatos, que reforça a autenticidade da sua “tese”
pela utilização de documentos ditos não ficcionais.
Peter Weiss (1916 – 1982) em suas Notas sobre o teatro documentário
(1967) teoriza sobre a escritura documental e afirma que as principais tarefas
desse teatro são realizar a “crítica da camuflagem”, a “crítica da falsificação da
realidade”, e a “crítica da mentira” (WEISS, 1967, p. 9-10). Um teatro militante,
engajado que opera de modo a revelar como os fatos são veiculados nas mídias
de massa de acordo com determinados grupos de interesse, como se elimina
determinados acotencimentos históricos de maneira tendenciosa, como a
falsificação de notícias é realizada, as repercussões de uma mentira história,
bem como os falsificadores que cooperam para perpetuar essa mentira.
A natureza dessas fontes é muito variada, como observa Weiss, e podem
vir de muitos lugares:

Processos verbais, dossiers, cartas, quadros estatísticos, comunicados


da Bolsa, balanços bancários e industriais, comentários
governamentais, discursos, entrevistas, declarações de personalidades
em evidência, reportagens jornalísticas, fotografias ou filmes e todas as
outras formas de testemunho do presente formam as bases do
espetáculo (WEISS, 1967, p.9).

Da mesma forma, as múltiplas possibilidades que esses documentos podem se


relacionar com a efemeridade da encenação originam procedimentos criativos e
estéticas muito distintas, questiona-se: esse documento é apresentado ou
representado? As cartas são lidas, encenadas ou projetadas virtualmente sobre
o palco? Os testemunhos são representados por atores ou os próprios
testemunhantes são chamados a fazer? Quando aparecem como registros
audiofônicos, eles são utilizados de forma a serem ouvidos pelos espectadores
ou foram transcritos para serem enunciados pelo ator? A peça acontece no

36

palco do teatro, ou no local original, ou que faça referência ao local original onde
o documento foi gerado, ou onde se passou o acontecimento investigado? Os
documentos autênticos estão puros ou misturados a elementos ficcionais?
Possibilidades múltiplas de agenciamento que aparecem nos “modos
renovados de teatro documentário” (FERNANDES, 2013, p.1) e que interferem
na maneira na qual são percebidos esses materiais. A forma em que o teatro
“submete os fatos à perícia” (WEISS, 1967, p. 11) e transforma os documentos
em uma peça teatral para evidenciar as ideias do autor é processo central no
teatro documentário. Como exemplo, cito a própria dramaturgia de Peter Weiss,
O interrogatório. Dirigida pelo autor mesmo, estreiou simultaneamente em 14
teatros entre Alemanha e Inglaterra, no ano de 1965, em um evento teatral
único. Os autos testemunhais do processo de Frankfurt contra os criminosos
nazistas de Auschwitz serviram de base para comprovar sua tese de que os
campos de concentração seriam uma consequência do modo de organização
capitalista da sociedade. Weiss acompanhou o julgamento desse processo real
muito midiatizado na época, tomou notas para depois utilizar na composição
textual. A noção de “documento” e a forma como o autor se utiliza dela tem
como característica a seleção e edição desses depoimentos reais, que se
transforma numa contrução de um sujeito coletivo que testemunha com
objetividade em cena25.
Em termos de encenação - sob o subtítulo de “oratório em 11 cantos”26 -
se distancia completamente da reconstrução espacial do tribunal original,
retomando a disposição espacial de um gênero musical. O tribunal de Weiss faz
ver uma realidade de outra ordem que não a da justiça jurídica, necessária para
aprofundar a discussão sobre a natureza do nazismo, ainda tabu à época. O
texto se revela uma montagem dos testemunhos juntamente com produção
textual fictícia interpretada por atores, que têm na voz o documento. É na voz do


25
Weiss também elimina os autos de acusação e defesa do processo e retira todo o conteúdo
emocional do acontecimento original.
26
Oratório é um gênero de composição musical cantada e de conteúdo narrativo em que
solistas, coro e orquestras interveem, às vezes, como um narrador.

37

ator e não no engajamento do personagem que se apresentam as fontes


documentais.
Já o espetáculo Ruanda 94 – uma tentativa de reparação simbólica em
direção aos mortos para o uso dos vivos representa um marco no recente teatro
documentário. Criado pelo coletivo belga Groupov, dirigido por Jacques
Delcuvellerie, estreou en Avignon no ano de 1999. O tema abordado, o
genocídio da etnia tutsi ocorrido no ano de 1994 em Rwanda, se por um lado
resgata a herança weissiana, por outro, ultrapassa a noção de documento, ao
colocar em cena uma sobrevivente do massacre. O grupo recorreu a
historiadores, sociólogos etnólogos e jornalistas para retificar o conjunto das
informações frágeis e desviadas sobre o assunto pela imprensa. Esse tipo de
teatro produz seu documento a partir de uma testemunha do genocídio que abre
o espetáculo e fala à plateia durante uma hora. Ela conta o que fez para
sobreviver durante as 6 semanas de terror. O diretor não interveio na produção
textual, de maneira que a testemunha, Yolande Mukagasana, relata de forma
livre, conta a sua vida de forma improvisada, enunciação sempre em processo,
onde se estabelece uma possibilidade de relação afetiva com o público ao saber
que ela é de fato uma sobrevivente.
O teatro documentário tem diferentes relações com o real como se
percebe nos dois exemplos citados, mas o que se observa em comum é que
eles se encontram no limite da representação. Passados mais de sessenta anos
da estreia de O interrogatório, o teatro documental segue se reinventando, por
exemplo, no Brasil, estreia em 2011, do diretor Nelson Bakersville, o espetáculo
Luiz Antônio - Gabriela, da Cia Mungunzá, um documentário cênico pautado
pelos princípios do teatro performativo, utilizando-se de linguagem híbrida, com
atores polivalentes, técnicas de metalinguagem dentro de uma narrativa
descontínua que segue os passos da história de vida do irmão homossexual, do
próprio diretor, que sofreu preconceito familiar. Cartas, entrevistas e vídeos
verídicos são apresentados em cena em forma de depoimentos, reconstrução de
situações vividas em forma de diálogos, ou por meio da música, do cinema, das
artes visuais e da dança. Nesse caso, a documentação não aborda grandes

38

acontecimentos ou personagens históricos, mas opera no campo do


documentário sobre a individualidade, daquele que é desconhecido.
Se em Peter Weiss a ficção interpenetra os depoimentos e a encenação
como um todo, de forma a evitar a exposição crua dos acontecimentos
horrendos do holocausto, em Rwanda 94 o testemunho vivo se imbrica a
situações ficcionais, enquanto que em Bakersville, observa-se que o documento
se apresenta estilhaçado na conjugação simultânea de diversas linguagens
expressivas apresentadas pelos atores. Tanto em O interrogatório quanto em
Rwanda 94 e Luiz Antônio-Gabriela, evidencia-se a multiplicidade de meios de
utilização do documento, assim como a dificuldade em representar
artisticamente acontecimentos particularmente traumáticos, tanto em esfera
coletiva quanto em esfera individual.

1.2 O retorno do real

Dentro da crise da representação, o crítico e historiador de arte norte-


americano, Hal Foster, em “O retorno do real” (1996), propõe uma aproximação
ao real em campo artístico, justamente revelando os momentos de interrupção
da representação, ao construir olhares alternativos para uma série de obras pop,
dos anos 60, do artista Andy Warhol (Death in América)27. Segundo o autor,
diversas leituras classificam tais obras como simples simulacros. Foster
questiona e resgata outras características mais significativas e contundentes.
"Sob a superfície glamourosa do fetiche das mercadorias e estrelas das mídias,
encontra-se ‘a realidade do sofrimento e da morte’[...] Uma exposição do
consumo complacente por meio do fato brutal do acidente e da mortalidade”
(FOSTER, 1996, p.164). Através da noção de realismo traumático28
desenvolvido pelo psicanalista Jacques Lacan, Foster procede a análises


27
Série de repetições fotográficas reais de acidentes de carro fatais, e de celebridades já
falecidas à época, como Marilyn Monroe e Jackeline Onassis.
28
No começo dos anos 60, Lacan estava preocupado em definir o real em termos do trauma.

39

alternativas às críticas diminutivas lançadas a essas obras por um lado29, e


realiza a aproximação de um conceito de real em campo artístico por outro.
Nesse sentido, uma abordagem específica de real vinculada ao campo
psicanalítico, opera investindo as obras de ambiguidade, característica típica a
eventos traumáticos: fuga e aproximação, proteção e exposição, apagamento e
multiplicação do evento gerador do trauma, também entre o profundo e o
superficial, entre a crítica e a complacência, entre o afeto e a indiferença. Isso
porque está implícita, nessa abordagem, uma operação que implica levar em
conta o seu reverso como reação. Uma resposta para o “encontro faltoso” com o
real que o trauma produz.
Para desenvolver essa noção em proximidade com seu corpus exemplar,
Foster utiliza a própria persona controversa de Warhol, um artista que, de
peruca e rosto pintado de branco, tal qual uma tela vazia a ser projetado de volta
todos os olhares que recebe: “em estado de choque assume justamente a
natureza daquilo que o choca, como uma defesa mimética contra o choque”
(1996, p.165). A compulsão pela repetição e automatismo seria para Foster o
reflexo de “uma sociedade de produção e consumo seriais” (1996, p.165) que o
artista Andy Warhol devolve em forma de vida e obra.
Essa fixação compulsiva e subjetividade em choque conferem outro
status às fotografias de morte e violência das obras de Warhol repetidas em
série, entre elas a drenagem de significados como defesa contra o afeto.
Todavia, essa repetição do evento traumático não tem o objetivo de integrá-lo à
ordem simbólica do sujeito, tal qual teoriza Freud, para assim elaborar o trauma.
Warhol reproduz efeitos traumáticos em série, mas também os produz; “uma
evasão do significado traumático e uma abertura em sua direção” (FOSTER,
1996, p.165).
O pressuposto teórico para suas reflexões se ampara no psicanalista
francês Lacan, o qual define o real em termos do trauma. “Enquanto perdido, o
real não pode ser representado; ele só pode ser repetido [...] e repetição não é

29
Incluem-se nessa chave de leitura Michel Foucault, Gilles Deleuze e Jean Baudrillard, com o
último vendo a “total integração da obra de arte na economia política do signo do consumo”
(FOSTER 1996, p. 164).

40

reprodução” (LACAN, 1978 apud FOSTER 1996, p.166). Para Foster, a


repetição não visa à representação de um referente ou sua simulação, pois
nesse retorno do real se torna impossível o processo de significação. É antes
uma proteção de uma realidade compreendida como traumática. Todavia,
exatamente, essa necessidade protetiva acaba apontando para o real, que
rompe o anteparo proveniente da repetição30.
A definição de real em termos traumáticos se dá como um desencontro
com o real. Acontece uma ruptura no sujeito traumatizado sem exatidão do local.
Lacan chama esse fenômeno de touché (remetendo à ideia de causalidade
acidental de Aristóteles), tendo o punctun como o equivalente em Barthes. “Essa
confusão sobre o local da ruptura, do punctum, é uma confusão entre sujeito e
mundo, entre o dentro e o fora. Pode ser que essa confusão seja o traumático”
(FOSTER, 1996, p.167).
O punctum, o touché é produzido pelas técnicas de multiplicação e
intervenção que Warhol realiza nas obras analisadas (coloração, distorção,
apagamento, manchas, buracos etc), que parecem casuais, e servem como
equivalentes desse desencontro com o real. Como uma falha ocasional na
produção em série. “O que é repetido, escreve Lacan - é sempre algo que
acontece... como por acaso” (FOSTER 1996, p.167). Repetições selecionadas
ao acaso em momentos em que o espetáculo pop racha (suicídios, assassinatos
acidentes automobilísticos fatais) e se expande.
O real como algo que acontece, que “escapa através dos buracos,
colorações, defeitos que a repetição da imagem produz” (FOSTER, 1996,
p.168). É um efeito de estranhamento que devolve o real para a imagem pela
sua falha técnica, ainda que induzida. O real violento nesse contexto como algo
que irrompe na representação, mesmo sendo impossível relacionar-se com ele.
Ora, se esses buracos, defeitos da imagem não são espaços onde a
representação da imagem retratada está interrompida. Espaços que Foster
identifica, justamente, onde o real eclode.

30
“Se o choque que as imagens de morte e sofrimento causam são protegidas pela repetição
das imagens, essa repetição também produz uma segunda ordem do trauma, no nível da
técnica, em que o punctum rompe o anteparo e permite o real se expor” (FOSTER, 1996, p.168).

41

Definir o retorno ao real para Lacan é ir de encontro a um vazio, ao


desejo sempre insatisfeito de completude. O real é aquilo que não pode ser
representado, é uma fuga do simbólico, um desencontro, a perda do objeto
(FOSTER, 1996, p.166). Para entendimento dessa perspectiva, é fundamental
levar em conta as teorizações sobre o olhar em Lacan. Não parece ser uma
escolha ao acaso que leva Foster a utilizar obras das artes visuais (fotos e
pinturas) para estabeler leituras do real traumático em campo artístico. Pois o
olhar para Lacan não se constitui apenas como pura frustração, mas também
como um olhar que se divide e se multiplica: “aquele que olha é igualmente
olhado por aquilo que contempla. A luz que permite olhar o mundo, também é a
luz que permite que esse mesmo mundo olhe de volta” (FOSTER, 1996, p.170).
Queremos, em última instância, olhar pelos olhos de tudo aquilo que nos olha.
Essa impossibilidade que castra é o desejo reprimido do olhar. Por isso a
impossibilidade do real. Pela incapacidade do sujeito de estar em todas as
coisas. Onipresença que acontece apenas no mundo que olha. “Somos uma
mancha ao olhar do mundo, pois somos o lugar onde a luz tem sua passagem
interrompida ao olhar exterior” (FOSTER, 1996, p.169). O real em termos de
uma colisão visual que gera falta, movimenta um jogo de aproximação e
afastamento daquilo que se olha. Revela também a opacidade do real; sua
impossibilidade. Nesse sentido, a instância do real é uma coisa que existe, mas
que nós nunca iremos conhecer.
Ao se utilizar do conceito de Lacan que constrói uma noção de real por
meio da relação a eventos traumáticos, Foster possibilita aproximar
determinadas produções artísticas a uma teoria psicanalítica que reverbera em
análise crítica tanto em termos de produção, quanto de recepção da obra.
Análise que pode ser aproximada para refletir sobre o retorno do real em campo
cênico. Um retorno que opera pela ambiguidade (característica do trauma), pois
é a partir da ficção que o real rompe anteparos artísticos e aparece em cena. Em
um terreno fronteiriço entre o performativo e o teatral, entre o produto acabado e
o processo, entre a apresentação e representação. Partindo dessa
impossibilidade de simbolizar o real, o seu retorno em contexto teatral se dá aos

42

fragmentos, irrompe aos pedaços, sempre um real que nunca se torna capaz de
concretizar-se em sua inteireza.
Por isso o realismo traumático é deixar tocar-se por um real que vai
contra a “domesticação da imagem”, no sentido de uma ausência da “reserva
cultural” (FOSTER, 1996, p.170) que permite olhar para o mundo com
segurança:

A imagem apotrópica, apolínia pacifica o olhar, afasta o olhar


dionisíaco de desejo e morte. O trompe d’oeil, o dompte regard são
truques ilusionistas de domesticação do olhar. Domesticar o olhar é
tirar toda pulsão de desejo e morte (FOSTER, 1996, 171).

Domesticar o olhar é suavizar o trauma, pois o real traumático não é o


que retorna como signo, mas o que se repete como falta, o que está para além
dos significados:

O real está para além do autômaton, do retorno, da volta, da insistência


dos signos aos quais nos vemos comandados pelo princípio de prazer.
O real é o que vige sempre por trás do autômaton, e do qual é evidente,
em toda a pesquisa de Freud, que é do que ele cuida (LACAN,1985
apud FOSTER, 1996, p. 56).

Esse desencontro é identificado por Foster nas repetições alteradas das


obras pop de Warhol. O desencontro que fulmina o “olhar adestrado” pela
representação. Que mistura o sujeito à obra, que o leva para algo anterior às
significações.
Olhar que se encontra dentro de mim, pois é no fundo dos meus olhos em
que se encontra a imagem que vejo. Mas o visto é a exterioridade inalcançável;
o real não mais que um nó entre o desejo e a frustração, entre olhares, entre o
dentro e o fora. Se “a figura está certamente dentro dos meus olhos” (FOSTER,
1996, p.170), quando, por exemplo, vejo a morte de um animal, algo dentro de
mim também morre junto. Uma experiência de luto e revolta pode me assaltar já
que algo ou alguém está atentando contra minha própria vida. Por exemplo: se
estou no teatro, lugar do olhar por excelência, onde a ciência da representação e
seu pacto denegatório suavizam essa relação com o mundo, quando essas

43

condições se rompem, o retorno desse real violento pode fazer a morte desse
animal se intensificar31.
Pensar o teatro em um retorno lacaniano ao real, pelos princípios
colocados, bem pode apresentar em cena elementos a partir de um estado
anterior às significações, multiplicando possibilidades do olhar pela experiência.
Nesse sentido, a representação é interrompida, fornecendo acesso ao real como
algo que acontece, que não se fixa, mas que irrompe no tecido da cena. Como
os espetáculos do Teatro da Vertigem, onde Fernandes identifica “momentos de
intensa fisicalidade e auto-exposição” onde “a representação parecia entrar em
colapso, interceptada pelos circuitos reais de energia desses vários sujeitos”
(FERNANDES, 2009, p. 45)32.
Ora, se esses “circuitos reais de energia” dos performers não se
aproximam do teatro de energias como descrito por Lyotard:

[Em uma] busca para a intensificação energética do aparelho teatral


[...] Os signos não são mais vistos na sua dimensão representativa [...]
eles não representam, eles permitem "ações", atuam como
transformadores, alimentados por energias naturais e sociais, a fim de
produzir afetos de uma intensidade muito elevada (LYOTARD, 1981,
p.92).

Como será visto, em espetáculos do encenador Jan Fabre que fazem


parte do corpus desta pesquisa, o real irrompe em cena pelos corpos levados ao
limite energético e expostos à violência, que retomam o realismo traumático pela
realidade pulsional de um corpo em estado de choque:

Onde o dente e a palma já não têm uma relação de ilusão e de


verdade, causa e efeito, significante e significado (ou vice-versa), mas
que coexistem, independentemente, como investimentos transitórios.
Acidentalmente compondo uma constelação interrompida por um
instante, uma multiplicidade de reais congelados na circulação de


31
Como a exposição proibida no centro Pompidou do franco-chinês Huang Young Ping onde ele
expôs um viveiro, denominado de O teatro do mundo (1994), com insetos vivos presos em uma
redoma de vidro que se comiam entre si. Segundo Féral, a violência da obra vem do fato de ser
apresentada como arte, como se tivesse um valor de representação, um valor simbólico em um
lugar onde a morte e a violência impera (Féral, 2012).
32
Como o espetáculo Apocalipse 1,11 que abordou o episódio do massacre no presídio de
Carandiru em São Paulo e a queima de um índio pataxó em Brasília.

44

energia. O dente e a palma já não significam nada, são forças,


intensidades, afetos presentes (LYOTARD, 1981, p.96).

Fragmentos de violências irrepresentáveis também estão presentes em


cena através de ações brutais que beiram o limite do suportável, como a longa
cena no espetáculo Mount Olympus em que um performer tem a mão de outro
introduzida em seus ânus enquanto enuncia um texto trágico.
Todavia, no retorno do real nas produções de Jan Fabre há uma espécie
de inversão ou subversão nessa “volta”. Ele interrompe a representação e
convoca o real em cena pelo viés da violência dos corpos e entre os corpos,
numa tentativa de fazer aparecer o real do trágico grego para além da sua
representação ficcional. Fabre convoca a violência que atravessa as obras
trágicas colocando-a nos corpos dos performers. Em diversos momentos lhe
interessa materializar essa violência traduzindo-a pelo sofrimento da carne.
Nesse sentido, ele ultrapasssa a representação do trágico, pois lhe dá forma
pelo viés do realismo traumático. Em Mount Olympus, a performer Deceukelier,
ao interpretar a personagem Medéia com todo seu horror assassino, faz
irromper na cena um real violento que é impingido sobre seu próprio corpo,
enquanto se mantém fixa por 60 minutos com uma faca na mão em frente à
audiência; ela foge do trauma irrepresentável do filicídio, que retorna para seu
próprio corpo em forma de desgaste e em forma de imagem.
Do corpo que sofre pelo impacto de energias extremas provocadas em si
mesmo, ao sofrimento que um performer impinge sobre o outro: ambos não
resgatam em cena eventos traumáticos que aconteceram no cotidiano (tal quais
as fotos de acidentes de carro de Warhol e a representação do massacre do
Carandiru pelo Teatro da Vertigem). Mas resgatam os traumas que atravessam
as tragédias gregas pelos jogos cênicos cruéis entre/e nos corpos dos
performers. Em Paisagem Prometeu (2011)33, do grupo Troubleyn, o performer
que representa o herói tem seus pés e mãos acorrentados na posição tal qual o
desenho do Homem vetruviano de Leonardo Da Vinci, em uma altura
vertiginosa. Baldes de água são jogados, enquanto ele geme, grita e contrai


33
Tradução minha para Prometheus Landscape.

45

todos os músculos de seu corpo seminu. O real traumático no teatro da pulsão e


da crueldade em Fabre, no que diga respeito à mitologia grega, retorna pelo
sofrimento e violência impingida nos corpos em cena.

FIGURA 3 – Espetáculo Prometheus Landscape.


Crédito: Troubleyn/Divulgação

CAPÍTULO II - O real biológico em Mount Olympus

No contexto das produções cênicas do encenador Jan Fabre, pode-se


fazer uma aproximação ao real a partir do trabalho físico exaustivo dos
performers, que esta tese analisa e denomina de performance biológica. Para
tanto, far-se-á inicialmente uma contextualização histórica e política do
movimento artístico em que as produções do artista despontaram a partir dos
anos de 1980. Em seguida, o espetáculo Mount Olympus será analisado com o

46

objetivo de perceber como a linguagem cênica está agenciada de maneira a


fazer aparecer o real biológico em cena.

2.1 O florescimento da cena investigativa da vague flamande

A Bélgica se compõe de três regiões independentes do ponto de vista


cultural e gerenciamento político. Ao norte do país se encontram os flamengos,
grupo étnico de origem germânica que fala principalmente a língua flamenga. Ao
sul, a região da Valônia, com idioma predominantemente francês. Ainda o
alemão e outras variantes da língua holandesa subsistem em algumas regiões.
Sistemas linguísticos que convivem simultaneamente e se misturam, como na
capital Bruxelas, oficialmente, bilíngue. A Bélgica faz fronteira com Alemanha,
França, Países Baixos e Luxemburgo, além de se abrir para o mar do Norte.
Pela posição geográfica estratégica no continente, foi palco de disputas
violentas ao longo dos tempos, sendo conhecida historicamente como “campo
de batalha da Europa”. Sua gradual formação se confunde com a de países
vizinhos e inúmeras culturas e línguas que por ali passaram.
Na segunda metade do século XX, conflitos políticos e culturais se
concentraram dentro da região, entre os flamengos e os francófonos, devido às
diferenças culturais e evolução econômica assimétrica entre Flandres e Valônia.
Em 1977, por meio de reformas na constituição, reconhecem-se três regiões
semiautônomas (comunidades culturais), com base em suas línguas: Flandres,
Valônia e Bruxelas. O contexto cultural difuso tem na história da região uma
determinante para a formação de seus habitantes. O investimento generoso e
por parte do estado na área cultural, ao mesmo tempo em que revela o desejo
de construção de uma identidade nacional, por outro lado revela “um sentimento
social de incompletude cultural em seus habitantes” (VANHAESEBROUCK,
2014, p.6), que se espelha em produções cênicas híbridas, operando
principalmente nas fronteiras do teatro, dança, vídeo e performance.
A partir desse caótico cenário de cisões geográficas, com políticas ora
separatistas, ora unificadoras, que culturas diversas trespassam a Bélgica atual.

47

É nesse panorama instável, de constante transformação, que se origina a onda


flamenga. Nas palavras do pesquisador flamengo Vanhaesebrouck: “pode-se
dizer que a principal razão de sua existência é uma ausência. Ausência de
tradição, ausência de estruturas de trabalho, ausência de repertório de textos,
ausência de um discurso” (2014, p.7), e, ainda, segundo ele, a onda famenga
existe enquanto um grupo de artistas que critica o teatro convencional,
utilizando-se da linguagem da performance art em relação com o teatro e a
dança. Percebem-se características do teatro flamengo que catalisam diversos
elementos do teatro pós-dramático, tal qual definido por Lehmann como “o jogo
proposital entre realidade e ficção” (2007, p.168), “as fronteiras fluidas que
aproximam o teatro da arte performática” (2007, p.223); “a respiração, o ritmo e
o agora da presença carnal do corpo [do performer que] tomam a frente do
lógos” (2007, p.246), e “o princípio do poliglotismo” (2007, p.251) presente nos
textos teatrais multilíngues dos artistas flamengos, revelando uma “experiência
poética dos bloqueios linguísticos” (2007, p.251), chegando até um teatro não
textual.
A confusa configuração da região e o nascimento de movimento artístico
que a traduza já apresentam características que a direcionam para um campo
artístico dialético e intercultural, que põe em xeque o fazer cênico tradicional,
refletindo a própria identidade nacional fragmentada da Bélgica. Logo, as
produções teatrais tendem a levar em conta esse histórico de imbricamentos
culturais e disputas territoriais, hoje marcadas por fronteiras linguísticas,
desenhando um mapa regional que performa fronteiras reais e imaginadas no
país. A vague flamande abarca artistas heterogêneos, com estéticas
diversificadas, como os encenadores Jan Lawers, Anne Teresa De
Keersmaeker, Alain Platel, Win Vandekeybus, Guy Cassiers, Jan Decorte, Ivo
Van Hove, Jan Fabre entre outros, mas que se origina ao norte da Bélgica, em
época impulsionada por emancipação cultural e institucional, ampliada,
sistematicamente, na segunda metade dos anos 1980. Flandres, do ponto de
vista do desenvolvimento cultural, político e institucional, carrega traços

48

históricos que acabaram por configurar expressões artísticas específicas na


região.

FIGURA 4 - Jan Lowers/Needcompany - O quarto de Isabela e Ivo van Hove - Hedda Gabler.
Crédito: Site dos artistas

Na revista belga Théâtre Public (2014), o pesquisador Luck van den Dries
enumera fatores que promoveram o desenvolvimento da vague flamande, entre
eles: a tendência histórica da região em não compactuar com referências
tradicionais do passado, devido à ausência de artistas clássicos das artes da
cena na região favorecendo, por conseguinte, uma expressão mais livre e
individual de seus artistas; abertura para a produção artística que se passava
fora do país, recebendo sistematicamente artistas da vanguarda estrangeira,
entre eles, Robert Wilson, Peter Brook, Pina Baush e Tadeuz Kantor; apoio à
comunidade flamenga recebida de produtores autônomos, possibilitando que
artistas e grupos se desenvolvessem de forma independente em termos de
estrutura, organização e linguagem. Fatores esses que propiciaram um clima
teatral particularmente fecundo.

FIGURA 5 – Espetáculos de Keersmaeker, Alain Platel e Wim Vandekeybus.


Crédito: Revista Théâtre Public

49

Percebe-se que o próprio desenvolvimento da região de Flandres carrega


características que favorecem o aparecimento de arte investigativa, processual,
interdisciplinar, com ênfase na pesquisa sobre a corporalidade e criação de
textos próprios para os espetáculos. A onda flamenga continua em
desenvolvimento, caracterizada por formas de criação com novos coletivos sem
hierarquia ou encenador fixo, relacionados a processos colaborativos,
destacando-se os grupos como tg STAN, Cie De Koe e Olympique dramatique.
A expressão vague flamande foi utilizada pela mídia holandesa nos anos
1980 e pela crítica especializada francesa. De fato, os encenadores e grupos
flamengos produzem as mais diversas obras, procedimentos e pedagogias. Mais
do que um movimento de preceitos estéticos estabelecidos e estanques, a onda
flamenga diz respeito à região específica da Bélgica, em determinado tempo (a
partir dos 1980), com desenvolvimento cultural que acabou por favorecer
produções independentes. Artistas que, a partir de inúmeros referenciais
artísticos contemporâneos, hibridizam o espaço da cena contaminado pelo
entrecruzamento de modalidades e disciplinas diversas, tendo no corpo do
performer o lugar de intersecção das linguagens reunidas.

2.2 Fabre e a performance: bases processuais

Jan Fabre é um artista que cria simultaneamente em inúmeras posições


artísticas. É encenador, performer e autor no campo das artes presenciais. É
pintor, escultor e desenhista no campo das artes plásticas. Posições que podem
se manter puras em algumas produções, e em outras se hibridizam para criar
universo poético singular. Nascido em 1958 na cidade da Antuérpia, onde reside
o grupo de experimentação cênica –Trobleyn. O pluriartista, que desde a
adolescência flerta com o desenho e a escrita, experimentou a vida acadêmica
em estudos no Instituto Municipal de Artes e na Academia Royal de Belas Artes
da Antuérpia.
Fabre sempre revelou o interesse pela realidade efêmera do corpo e seus
processos vitais, sejam em forma de desenhos, pinturas, esculturas e textos,

50

seja pela linguagem da performance art. Suas experiências no campo das artes
presenciais se inicia aos dezenove anos, quando se expõe durante longo
período de tempo em vitrine de loja, vestido com roupas confeccionadas com
páginas de jornais, para criticar os mecanismos do poder do comércio, através
da performance Ilusão do dia34, de 1977. No ano seguinte, realiza a performance
privada Meu corpo, meu sangue, minha paisagem35, utilizando o próprio sangue
como matéria-prima para experimentação visual.
A impossibilidade de representar a morte e o desaparecimento do corpo
em sua totalidade faz o real retornar através de um elemento de forte poder
simbólico: o sangue - em vez de ser representado pela tinta - irrompe em sua
concretude no espaço da pintura de Fabre.

FIGURA 6 - Delusion of the Day e Mon Corps, mon sang, mon paysage
Créditos: Revista Beaux Arts

Em 1979, Fabre realiza a Money performance, uma espécie de action


painting36 onde utiliza o solo como suporte para pintura, e cinzas como
pigmento. Durante a performance, ele recolhia dinheiro dos espectadores, para
depois queimá-lo e realizar a pintura. Já a série A fonte do mundo, do mesmo
ano, versa sobre os fluidos corporais (sangue, urina, esperma e lágrima).
Mesmo em produções convencionais, do ponto de vista dos suportes e materiais


34
Tradução minha para “Delusion of the day”.
Idem “Mon Corps, mon sang, mon paysage”.
35
36
“Pintura instantânea, que é realizada como espetáculo na frente de uma audiência” (COHEN,
1996, p. 39)

51

utilizados, como nessa série de desenhos, as temáticas se repetem. O corpo


efêmero e seus processos fisiológicos e expulsão de substâncias como uma
constante em obras elaboradas em diferentes linguagens.

FIGURA 7 - Performance Money e desenhos A fonte do mundo.


Crédito: Revista Beaux Arts

Nas primeiras performances de Fabre descritas, o uso de materiais do


cotidiano de forte poder simbólico para o mercado capitalista, como jornais e
cédulas, passam por transformação de seus elementos e caminham em direção
ao desaparecimento. Em Ilusão do dia, as notícias do jornal (que se alteram a
cada dia) se transformam em “figurino” na mão do artista que a ressignifica.
Material que desaparece durante a performance, quando o jornal utilizado se
desgasta, rasga e se perde durante a ação. Igualmente as cédulas em Money
performance se transformam em cinzas, matéria-prima para o desenho ao ser
queimado. Uma vez inscrito no solo, faz com que a pintura temporária
desapareça com o tempo.
Assim como o uso de sangue na performance privada Meu corpo meu
sangue, minha paisagem, misturado ao desenho, também se transforma, muda
sua tonalidade com o tempo, caminhando para o desaparecimento. Apesar de
suportes diferentes, as produções se transformam, seus elementos sofrem
metamorfoses, desgastam-se e/ou se perdem com a passagem do tempo. Uma

52

dinâmica que inscreve transformação de materiais e seu desaparecimento, e o


desgaste do corpo como princípios performativos que se repetem em inúmeras
criações.
O corpo presente do artista também se afirma como princípio artístico. Se
em Money performance e Ilusão do dia ele se apresenta em performance ao
vivo, na ação privada Meu sangue, meu corpo, minha paisagem, o indício de sua
presença física é impresso pelo sangue e desenhos das roupas. Ações não
reproduzíveis que guardam certa resistência ao mercado de arte onde a obra
comercializável precisa perdurar no tempo. Nos anos de 1980, Fabre flerta com
a criação ficcional dentro da performance, através do personagem Ilad (Dalí
escrito ao contrário), para a performance Ilad of the bicart - a sala da arte Bic,
realizada nos Países Baixos. Em sala branca, o artista permaneceu pintando e
desenhando no chão, paredes e objetos com caneta azul durante 3 dias
ininterruptos. Ações artísticas seminais que revelam elementos e procedimentos
que vão impulsionar a produção teatral fabriniana desenvolvida nos anos
seguintes.

FIGURA 8 – Performance Ilad of the bicart.


Crédito: Revista Beaux arts

Práticas que se intensificam como nas performances Lancelot e


Virgin/Warrior, de 2004. Na primeira, ele veste uma armadura de 15 quilos e,
portando uma espada, combate durante 4 horas um inimigo imaginário. Na

53

segunda, ao lado da performer Marina Abramovic, defende “a vulnerabilidade da


beleza e da arte” (PIODA, 2016, p.12), em performance de resistência de 5
horas. O corpo sofre, sangra, expulsa seus líquidos vitais. Resistindo a inúmeras
provações, lutando contra a paralisia e violentando a carne, paradoxalmente, faz
transparecer a vida resignada. Um corpo que inexoravelmente caminha em
direção à morte e ao desaparecimento, mas que clama por vida e transformação
a todo instante. Como se o campo de batalha belga fosse transportado para o
corpo do artista em performances que envolvem violência, desgaste e
resistência. Procedimentos físicos que constituem a base experimentada para a
elaboração da noção de guerreiros da beleza, utilizada mais tarde para
classificar os performers do seu grupo, o Troubleyn.
Fabre, nessa época, está conectado aos movimentos de performance
típicos dos anos 60 e 70. Recordemos as experimentações do grupo Fluxus, as
liberdades dos happenings de Kaprow, a nova dança do Judson Dance Group,
as excentricidades de Piero Manzoni, as performances de Yves Klein e Joseph
Beuys que acentuam o processo criativo, a centralidade do corpo, e questionam
a noção de obra numa época de ataque aos valores políticos e artísticos
convencionais. A partir do final da década de 1960, os Acionistas Vienenses
(Otto Mühl, Rudolph Swarzkogler, Gunter Brus e Hermann Nitsch) realizam
performances atravessadas pela escatologia, obscenidade e violência, onde a
materialidade do corpo se intensifica ao extremo (ARDENNE, 2006). Ações que
envolviam grandes esforços físicos e concentração, ou provocavam dor e
colocavam em risco a vida dos praticantes, através da utilização de
procedimentos como eletrocussão, enforcamento, enclausuramento, armas
letais e objetos para perfurarem o corpo começaram a ser experimentadas
(como o registro de Shoot, do norte-americano Chris Burden, de 1971, que tem
seu braço atravessado por um disparo de espingarda). É a partir desse legado
que testa os limites do campo artístico, que o artista Jan Fabre vai construir seu
percurso dentro do campo das artes presenciais. A violência do corpo que se
corta, golpeia o outro ou o “vazio”, ao lado do fator temporal que o desgasta,
produz uma corporalidade específica para o praticante, que tende a privilegiar

54

uma “produção de presença” (GUMBRECHT, 2010), em contraponto à produção


de sentido buscada pelas artes de forma histórica, em ações que se pautam
pela experiência, tanto para quem faz, como para quem vê, provocando os
espectadores “a reagirem por si, a fim de participar no processo que lhe é
oferecido” (LEHMANN 2007, p.224).
Tais performances colocam o artista à frente da obra, valorizando seu
corpo conectado a uma experiência, mais que a produção de resultado ou objeto
estético. E, como temos visto até aqui, a centralidade do corpo, efemeridade,
hibridação artística, utilização de materiais do cotidiano, confronto com valores
sociais e artísticos estabelecidos, ações corporais extremas são características
comumente associadas historicamente ao campo da performance art, onde a
“apresentação” se sobressai mais do que a “representação”.

FIGURA 9 - Videoperformance Lancelot e performance Virgin/Warrior.


Crédito: Revista Beaux arts

O corpo e objetos em constante transformação se estendem ao reino


animal nas produções de Fabre, tanto nas performances, como nas instalações,
pinturas e desenhos. Na intervenção artística Heaven of delight, de 2002, Fabre
encobre o teto de umas das salas do Palais Royal, em Bruxelas, com carcaças
de escaravelhos.

55

FIGURA 10 – Heaven of delight.


Crédito: Angelos - Jan Fabre/Divulgação

Também figurinos se metamorfoseiam no corpo de Fabre, como na


performance A meeting/Vstrecha, de 1997, onde a escultura-figurino de um
escaravelho, produzida a partir de materiais orgânicos (ossos e bexiga de
porco), foi utilizada para performar ao lado de um artista russo, vestido de
“mosca”, em um apartamento na cidade norte-americana, em Nova York.
Procedimento que pode ser percebido também em diversas esculturas,
desenhos e autorretratos onde o artista se mescla a animais. Segundo Fabre,
“essa pesquisa sobre o ser humano que esqueceu que ele é uma espécie
animal é uma rica fonte de inspiração, assim como a célebre citação de
Nietzsche que diz que o homem é uma animal doente” (FABRE apud DRIES
2005, p.335)37. Retrospectivas das suas obras, como Estigma: ações e
performances (1976-2016)38, abrangendo 40 anos de ações e performances,
entre outras exposições espalhadas pela Europa, revelam acervo numeroso de
obras que mereceriam uma pesquisa à parte.


37
Tradução minha para “sur l’être humain qui a oublié qu’il est une espèce animale, a été une
riche source d’inspiration, au même titre que la célèbre citation de Nietzche qui dit que l’homme
est un animal malade”.
38
Idem “Stigmata: Actions et performances (1976-2016)”.

56

FIGURA 11 - Esculturas e figurinos de Jan Fabre.


Crédito: Revista Beaux arts

2.2.1 As repetições em Fabre

A partir dos anos 1980, depois de Jan Fabre experimentar diversos


procedimentos ligados ao universo da performance, vivenciando e
experimentando no seu corpo, ele elabora projeto teatral interdisciplinar. Na
medida em que transitou entre as expressões artísticas do desenho, pintura,
escultura, performance, literatura, vídeo e teatro, sua linguagem cênica vai
conter elementos dessas expressões em relação. Os espetáculos realizados
enquanto encenador, ou seja: aquele que vai elaborar processo criativo e
estética para a cena, acontecem a partir da poética que foi experimentada por
ele como performer. Mas o artista começa a operar no campo de espetáculos
que precisam ser repetidos e também comercializados. Então, inquietações
pungentes, na primeira fase enquanto performer, vão migrar para outros polos
que sempre estiveram presentes em suas produções – agora se adensando.
Como a centralidade do corpo enquanto espaço de investigação para o trabalho
dos performers em ações de resistência e alto impacto.
Também novos elementos advindos do teatro se apresentam para o
encenador, provocados pelo olhar de quem vê e organiza, agora de fora da
ação: aspectos sensuais, humor, utilização de improvisações coletivas sobre
temas para a construção espetacular, elaboração de treinamento para os
performers, ocupam o lugar do engajamento político direto das suas

57

performances anteriores. Os fluidos do corpo explorados em outras linguagens


estarão presentes em cena, misturados à repetição contínua dos corpos em
deslocamentos coreográficos. Muitas vezes, o que é apresentado por Fabre é
um palco vazio onde a performance de resistência entra em contato intenso com
aspectos teatrais, focando o acontecimento cênico na materialidade do corpo,
amplificando a presença dos performers pelo tempo que se estende, pelo
movimento e metamorfose constante de seus elementos.
Através da criação da companhia de teatro e dança Troubleyn (que
significa “permanecer fiel”), ele vai testar no corpo de outros performers uma
pedagogia em que elementos experimentados anteriormente se sobressaltam e
se adensam em relação à linguagem teatral. As performances de longa duração
e de apresentação única se transformarão em espetáculos e reenactments que
podem ter duração de até 24 horas, agora apresentados inúmeras vezes. As
experiências de dor, resistência e fadiga experimentadas nos anos 1970 e 1980
serão agora material a ser explorado pelo grupo de performers sob a sua
direção, a partir da elaboração de dispositivos atléticos para a encenação, como
a realização de uma série programada de exercícios individuais (pular corda ou
correr no mesmo lugar) ou em grupo (disputas corporais) combinados com
enunciações textuais durante longo período de tempo.

FIGURA 12 – Cena do espetáculo O Poder da Loucura Teatral.


Credito: Troubleyn/Divulgação

58

Após seis meses de ensaios, em 1982, estreia, em Bruxelas, o


espetáculo É teatro como esperado e planejado39, com 8 horas de duração,
consagrando o artista na cena internacional em sua fase teatral - mas sem
abandonar sua condição de performer em outras ações artísticas. Dois anos
depois, estreia, na Bienal de Veneza, O poder da loucura teatral40, e, juntamente
com o espetáculo Teatro escrito com “k”41, de 1981, compõe uma trilogia que se
assemelha em termos de estrutura e temática, contendo a palavra “teatro” nos
títulos, revelando a tendência do encenador à metalinguagem42.
Aos espetáculos que se seguiram, ele retoma insistentemente os
movimentos do corpo como elo com a realidade orgânica da vida: Eu sou
sangue (2001)43, uma espécie de conto de fadas medieval que celebra o corpo e
o sangue, e História das lágrimas (2005)44, onde a lágrima, juntamente com o
sangue, torna-se catalizador cênico explícito da investigação dos processos
fisiológicos do corpo. Em Anjo da morte (2003)45, uma videoinstalação
performática retoma o tema do desaparecimento, enquanto o solo Preparation
Mortis (2010) se caracteriza por uma dança frenética contra a morte. Em cena,
uma performer se debate durante 70 minutos contra o seu “desaparecimento
físico”. A espetacularização da imagem cênica e a do corpo performático são
forças motrizes para sua criação. Período em que o teatro dramático foi
perturbado por formas interdisciplinares que impulsionaram a exposição da
violência no tratamento dos corpos e da experiência espetacular.
Percebe-se a radicalização do corpo na cena em relação ao movimento
da performance ou live art americana, que a partir dos anos 1970 passa a
influenciar os artistas flamengos. Fabre, que já possuía fascínio pela realidade
químico-física do corpo, foi também atravessado por influências históricas como

39
Tradução minha para “C`est du theatre comme c`était à esperer et prévoir”.
40
Idem “Le pouvoir des folies théâtrales”.
Idem “Théâtre ecrit avec un “k” est un matou flamand”.
41
42
O texto criado por Fabre para O poder da loucura teatral consistia em uma listagem de
espetáculos que foram apresentados em festivais de teatro europeu, contendo as cidades e
datas, alternanda com nomes de artistas consagrados da história do teatro moderno, repetidos
em looping pelos performers durante todo o espetáculo.
43
Tradução minha para “Je suis sang”.
44
Idem “L’histoire des larmes”.
Idem “Angel de la mort”.
45

59

os rituais cênicos e sangrentos do austríaco Hermann Nitsch, as longas


performances de Joseph Beuys e Marina Abramovic. Assim como as pinturas
clássicas flamengas instaladas no museu de Groeninge em Bruges, onde o tema
do sacrifício do corpo, do masoquismo, antropozoomorfismo se fazem presentes
em obras como as do pintor Hieronymus Bosch (1450-1516). Registra-se como

FIGURA 13 - Cenas do espetáculo Je suis sang.


Crédito: Wonge Bergmann

influências para Fabre criar uma expressão teatral típica: a metamorfose física
como centro do acontecimento cênico: “um corpo real, biológico, físico, mas
também corpo coletivo, mítico e espiritual” (VAN DEN DRIES, 2014, p.13)46.

FIGURA 14 - Cenas dos espetáculos Papagaios e cobaias (2002) e Anjo da morte (2003).
Crédito: Wonge Bergmann

46
Tradução minha para “un corps réel, biologique, physique, mais aussi un corps collectif,
mythique et spirituel”.

60

É a partir desse corpo atravessado por características que vão além da


construção de personagem e conflitos intersubjetivos o que subsiste nos
espetáculos de Fabre. “O corpo é exposto no seu presente de dissolução”
(LEHMANN, 2007, p.235) na medida em que evidencia no tempo, espaço e
ações a sua materialidade. Através do esforço físico do performer, da exaustão
pela repetição, muitas vezes colocado nu no palco, expondo sua fisiologia, que a
matéria orgânica se sobressai. Ao mesmo tempo, percebe-se que aspectos
ficcionais se sobrepõem ou se alternam nos espetáculos fabrianos, friccionando
o corpo como elemento, e o ficcional de forma a propiciar uma dupla experiência
sensorial para os espectadores. Em muitas de suas produções, o espectador é
confrontado com o “corpo-força” (LEHMANN, 2007, p.346), expressão utilizada
pelo autor para denominar performers flamengos em corpos atléticos que
saltam, chocam-se, entram em luta corporal e realizam movimentos acrobáticos
arriscados, “cuja tensão o espectador não pode escapar” (2007, p.346), para,
em seguida, investir esses corpos de aspectos ficcionais.
Como em The Power of theatrical madness, onde um jogo físico violento
e, por vezes, sedutor, acontece aproximadamente durante 20 minutos, tendo um
performer empurrado para fora do palco em direção à plateia, e impedido de
retornar através de agressões e choques corporais. Por outro lado, o conto
infantil de Hans Christian Andersen, A roupa nova do imperador (1837) e seus
personagens se fazem constantemente presentes: o corpo estético versus corpo
real acaba por instaurar um “princípio de indecidibilidade” (LEHMANN, 2007,
p.165) quanto a saber se o que está em jogo é realidade ou ficção.

61

FIGURA 15 – O Poder da Loucura Teatral.


Crédito: Robert Mapplethorpe

No ano de 2007 se consolida uma pedagogia para a preparação dos


performers através do multidisciplinar Troubleyn Laboratorium, na Antuérpia. Os
corpos dos integrantes do Troubleyn serão o centro da experimentação científica
que será praticada nesse laboratório. As pesquisas acerca do comportamento
físico do performer em cena vão auxiliar o praticante a entender o que se passa
no seu próprio corpo. O Troubleyn promove parcerias com instituições e
pesquisadores que elevam o rigor e a precisão sobre estudos da cena, com
vistas a obter melhores rendimentos durante as performances47. Nesse espaço
permanente para o treinamento corporal, criação de espetáculos e produções de
artes visuais, no ano de 2015, vai ser produzido o espetáculo Monte Olimpo:
para glória e culto da tragédia48. Espaço em que a mitologia grega é revisitada
de forma extensa em 24 horas de espetáculo, onde Fabre utiliza todo seu
background interdisciplinar para elaborar espetáculo de longa duração.

47
Para outras informações acessando o artigo:
https://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/13528165.2014.947131
48
Tradução minha para “Mount Olympus: to glorify the cult of tragedy”.

62

2.3 Performance biológica: a fisiologia do corpo como presença

A performance como arte presencial, arte do corpo em vida, que instaura


um evento para ser visto, carrega consigo todos os fenômenos biológicos
fundantes do ser. Se concordarmos com Guyton e Hall, que “o objetivo do
estudo da fisiologia é explicar os fatores físicos e químicos que são
responsáveis pela origem, desenvolvimento e progressão da vida” (2006, p.3),
ao colocar em destaque, no âmbito do fazer cênico, estes fatores vitais, torna-se
possível falar em um corpo que está disposto a mostrar toda a sua fisiologia em
cena, em uma performance, então, biológica. No dicionário, encontra-se biologia
como: “ciência que estuda a estrutura, o funcionamento, evolução, distribuição e
relações dos seres vivos entre si e com o ambiente” (Houaiss, 2001, p.101).
Dessa forma, ao propor a noção de performance biológica pretendo instituir um
campo artístico onde a biologia se coloca ante o olhar do outro de forma radical
para ser apreciada por si mesma, enquanto uma estrutura que ao desafiar à
morte, celebra a vida.
As artes presenciais possibilitam explorar poeticamente estes fatores
como em nenhuma outra arte, contudo, lembremos que nem todas as artes
presenciais têm o interesse em tornar evidentes essas características. Mas,
nesse campo, a fisiologia se materializa em uma realidade incontornável, sendo
justamente o corpo em sua temporalidade orgânica, em seu presente de
dissolução, o componente fundamental para o acontecimento artístico. “O ator
em cena é golpeado pela sua própria existência”, afirma Pavis (2007, p.184),
referindo-se ao teatro ilusionista, onde o corpo fenomenal atrapalha a ficção, o
universo fechado da narrativa. Elucido: ao contemplar a expressão “biológica”
interessa-me exatamente focar nessas manifestações cênicas as quais deixam a
descoberto as suas entranhas. Se o objeto de estudo da biologia humana é o
corpo e seus processos de manutenção vitais, o teatro carrega, justamente
consigo, tal ciência biológica, no que diz respeito aos corpos em movimento,
ação e desgaste. Pois a vida é sujeito e objeto essencial do teatro.

63

Tradicionalmente, sob perspectiva dramática, os processos fisiológicos da


vida não costumam constituir o tema central espetacular, sendo o corpo o
instrumento a serviço da narrativa. Desenvolver performance que inscreve seus
procedimentos numa dimensão de real biológico implica elaborar determinada
estética que evidencia esses aspectos constituintes da vida. Entender e utilizar-
se de princípios fisiológicos em campo teatral é estar intimamente conectado ao
que acontece com o corpo do performer enquanto ele vive e transforma a cena.
Tornar visível as dinâmicas as quais mantêm o corpo respirando enquanto
performa, como possibilidade da observação dos ciclos responsáveis pela
continuidade do ser. O performer, ao acentuar as funcionalidades que o fazem
se movimentar, reproduzir-se, respirar e negociar com o ambiente em que ele
está, demonstra instintos de sobrevivência mais básicos do corpo. Faz aparecer,
através de uma prática artística, as características e mecanismos específicos
que fazem dele um ser vivo.

O próprio fato de nos mantermos vivos está quase além de nosso


controle, porque a fome nos faz procurar por alimento e porque o medo
nos faz buscar refúgio. Sensações de frio nos fazem procurar calor.
Outras forças nos levam a buscar o companheirismo e a reprodução.
Assim, o ser humano é realmente um autômato, e o fato de sermos
seres com sensações, sentimentos e culturas é parte desta sequência
automática de vida; estes atributos especiais nos permitem existir sob
condições amplamente variáveis (GUYTON; HALL, 2006, p.3).

Nessa objetividade do humano se percebe uma realidade onde forças


oriundas do ambiente são impostas ao ser, provocando reações neste para que
se mantenha vivo: uma espécie de instinto de sobrevivência reativo que
fundamenta a existência. Ao evidenciar em cena tais instintos vitais, aliados aos
fatores físicos e químicos responsáveis pela manutenção da vida, colocando em
movimento acelerado esse mecanismo complexo do corpo, suas características
e processos, entra-se no campo do real biológico da vida.
Por outro lado, em campo teatral, os espetáculos do encenador Jan Fabre
podem ser estudados como dispositivos cênicos os quais envolvem forças
adversas que provocam reações intensas nos corpos dos performers, de forma
que eles procurem meios de continuar existindo sob condições variáveis. Em

64

performances de alto impacto físico pode-se utilizar dos conhecimentos


científicos do corpo humano para elucidar o trabalho do performer na cena, com
vistas a explicitar cientificamente o que se passa no corpo do praticante.
Todavia, no entender desta tese, os estudos relacionais entre biologia e
performance teatral movimentam aspectos que vão além do citado acima.
Configuram um campo relacional entre arte e vida que não somente explica o
que se passa em um corpo em situação de performance, mas elabora um
campo de ação que institui uma noção de real que orienta os procedimentos
criativos do grupo Troubleyn como um todo. A performance biológica explicita os
fenômenos físicos e químicos da dinâmica corporal espetacular, possibilitando
tecer relações entre os estudos da fisiologia, a realidade biológica do ser com os
procedimentos pedagógicos e espetaculares de uma prática cênica49. Em
perspectiva estendida, a própria cena teatral pode ser comparada a um
organismo complexo que funciona para manter-se vivo através de seus diversos
componentes em relação.
Não se deve confundir os estudos do ISTA50 que faz uso da fisiologia de
acordo com técnicas corporais extracotidianas, o chamado nível “biológico” da
representação (BARBA; SAVARESE, 1995, p.4). No contexto do ISTA, a
explicação dos fatores fisiológicos está a serviço do entendimento das tensões
pré-expressivas presentes no ator-bailarino. O campo de trabalho do ISTA se
debruça sobre os estudos dos princípios extracotidianos do corpo e posterior
reverberação no trabalho criativo do ator. Em Fabre, não se trata de tensões
orgânicas pré-expressivas, mas da própria expressividade orgânica exposta por
si mesma, aliada a um manancial imagético que impulsiona a presença do
performer através de sua fisiologia revelada. Como visto no histórico de Jan
Fabre, suas produções cênicas dialogam com a história do teatro ocidental, logo
relações com essa herança artística podem ser resgatadas no sentido de
esclarecer e contribuir para as análises e conceitos desenvolvidos nesta tese.


49
Serão citados noções acerca da biologia humana e seus sistemas de funcionamento para o
entendimento dos processos do corpo e da cena em Fabre, de forma objetiva ou metafórica. Não
pretendendo apresentar um compêndio sobre o funcionamento biológico do corpo.
50
Escola Internacional de Antropologia Teatral, dirigido por Eugenio Barba.

65

2.3.1 Homeostase, o corpo à procura de equilíbrio

Quando o corpo é colocado em situação de desgaste, como em


espetáculos do Troubleyn, ele aciona de forma acelerada seus processos de
manutenção vitais. Um corpo em desgaste é um organismo em estado
homeostático51 de dinâmica multiplicada, pois realiza suas funções orgânicas
mais rápidas e em maior quantidade para manter o meio interno do corpo dentro
das condições normais de vida. Exige-se a aceleração dos sistemas de controle
do organismo, os quais permitem que as funcionalidades operem em suporte um
do outro, como efeito cascata, quando colocados em um meio externo (meio
ambiente) pautado por situações extremas.
Quanto maior o tempo de exercício físico, maior é a velocidade de ação
homeostática pois, “todo o sangue na circulação atravessa o circuito circulatório
inteiro em média uma vez a cada minuto quando o corpo está em repouso e até
seis vezes por minuto quando a pessoa está extremamente ativa” (GUYTON;
HALL, 2006, p.4). O sistema de homeostasia corrobora para o entendimento de
que todas as estruturas do corpo são organizadas para manter a automaticidade
e continuidade da vida. Quanto maior excitação homeostática do corpo, maior é
a vitalidade dessas estruturas corporais, que falam sobre a continuidade da vida,
sua organização e manutenção que perpetuam a espécie. A homeostasia
acelerada no dispositivo atlético proposto por Jan Fabre se torna um círculo
vicioso; é objetivo e fim nas produções do Troubleyn como será visto em Mount
Olympus.

2.3.2 Fluido extracelular, o meio interno

Cerca de 60% do corpo humano é composto de fluido, principalmente


de uma solução aquosa de íons e outras substâncias. Embora maior
parte deste fluido esteja dentro das células, chamado de fluido
intracelular, cerca de um terço se encontra nos espaços fora das
células e é chamado de fluido extracelular, este fluido extracelular está

51
“O termo homeotasia é usado pelos fisiologistas para definir a manutenção de condições
quase constantes no meio interno. Todos os órgãos e tecidos do corpo humano realizam funções
que contribuem para manter estas condições constantes” (GUYTON; HALL, 2006, p.4).

66

em movimento constante por todo o corpo. Ele é rapidamente


transportado no sangue circulante, e trocas por difusão, através das
paredes dos capilares, se dão entre o sangue e os fluidos teciduais.
No fluido extracelular estão os íons e nutrientes necessários para que
as células se mantenham vivas. Dessa forma, todas as células vivem
essencialmente no mesmo ambiente - o fluido extracelular. Por este
motivo, o fluido extracelular é também chamado de meio interno do
corpo, ou o milieu intérieur, um termo introduzido há mais de 100 anos
pelo fisiologista francês do século XIX, Claude Bernard (GUYTON;
HALL, 2006, p.3).

Essa abundância de líquidos corporais, que constitui parte expressiva da


massa corporal humana, é temática explorada constantemente, não somente,
nas obras cênicas de Fabre, mas, no conjunto de suas produções em diversas
áreas, como já visto anteriormente. A produção e a expulsão de fluidos que se
tornam visíveis, durante a performance, através do suor, urina, lágrima, saliva e
sangue, resultado de esforço físico intenso, não se dão como simples
consequência, mas objetivo a ser alcançado na encenação. O fluido corporal é
desejo e meta a ser alcançada, enquanto matéria constituinte orgânica
preponderante da vida. Quando se evidencia os líquidos vitais, quando se
exterioriza esse milieu intérieur, através da materialização das substâncias que
são produzidas dentro e fora das células, está se colocando mecanismos
corporais essenciais em ação, através do transporte dessas substâncias pelas
membranas celulares e órgãos: a troca fisiológica de materiais com o ambiente é
acionada.
A colocação dos órgãos internos em funcionamento não se constitui como
resposta refratária de um corpo em movimento, mas são instigados à ação, para
estarem em evidência por si só, pelo fato de serem mecanismos constituintes
vitais em maior quantidade no corpo vivo. Lehmann faz alusão a um “teatro
concreto” ao discorrer sobre práticas cênicas onde o sentido do signo não
remete a outra coisa mas a si mesmo. Ele observa que o “tratamento
diferenciado dos signos teatrais acaba por tornar fluidas as fronteiras que
separam o teatro das práticas artísticas que aspiram a uma experiência real,
como a arte performática” (2007, p.223). Entender o teatro no sentido de propor
uma entrada no real fisiológico é operar sobre a densidade do corpo para tirar
dele uma experiência que visa ser imediata. Experiência que aporta para essa

67

fisicalidade uma presença específica. Barba e Savarese propõem a noção de


“bios cênico” (1995, p.5) como uma qualidade do corpo que atrai a atenção do
espectador antes que qualquer forma de expressão pessoal aconteça:

um corpo-em-vida é mais que um corpo que vive. Um corpo-em-vida


dilata a presença do ator e a percepção do espectador [...] O corpo
dilatado é um corpo quente, mas não no sentido emocional ou
sentimental. Sentimento e emoção são apenas uma consequência,
tanto para o ator como para o espectador. O corpo dilatado é acima de
tudo um corpo incandescente, no sentido científico do termo: as
partículas que compõem o comportamento cotidiano foram excitadas e
produzem mais energia, sofreram um incremento de movimento,
separam-se mais, atraem-se e opõem-se com mais força, num espaço
mais amplo ou reduzido (BARBA; SAVARESE, 1995, p.54).

De fato, recordemos que as pesquisas do francês Étienne Decroux (1898-


1991) já se debruçava, antes mesmo de Eugenio Barba, sobre essas qualidades
corporais, ao desenvolver a noção de “ator dilatado” (DECROUX, 1994, p.66).
Segundo a pesquisadora Bya Braga:

Tudo o que Decroux propõe em sua arte acaba, assim, por ressoar um
elogio ao exercício material da ação, ou seja, o fazer da ação mediado
pela experiência corporal. Por consequência, há um elogio seu ao corpo
humano e à biologia criadora (BRAGA, 2011, p.13).

2.4 Mount Olympus e a performance biológica

Mount Olympus, para a glória e o culto da tragédia, estreou no ano de


2015 e vem realizando apresentações em diversos países desde então. Com 24
horas de duração, retoma o espírito dos antigos festivais trágicos gregos, os
quais duravam uma “revolução do sol”. A duração prolongada da experiência
teatral não constitui o único fator que remete ao tempo dos festivais dionisíacos.
Heróis das tragédias de Ésquilo, Sófocles e Eurípides alimentam a dramaturgia
organizada por Miet Martens, a partir de textos de Jan Fabre, Jeroen
Olyslaegers, e apoio de Hans-Thies Lehmann, Luk Van den Dries e Freddy
Decreus.

68

Mount Olympus está organizado em 15 episódios e 3 intervalos


performáticos52 - pausas consagradas aos sonhos (temps de rêves). Cada
episódio é formado por certa quantidade de quadros independentes, que não
possuem a mesma duração entre si, mas que ao final de 24 horas conformam o
total de 120 quadros. Duração submetida ao controle rígido da encenação (a
gestão cronometrada do tempo é fundamental, pois o atraso de 2 minutos em
cada quadro, por exemplo, pode equivaler a muitas horas a mais de
espetáculo)53.


52
Nesses momentos não há interrupção total do espetáculo entre os grupos de quadros. Pois os
perfomers dormem em cena, ou seguem realizando ações em “câmera lenta”. O total de
intervalos performáticos é de 3 horas e dez minutos.
53
Informação coletada em conversa informal realizada com o produtor do grupo, Marck Gueden,
em setembro de 2017 na cidade da Antuérpia.

69

FIGURA 16 - Programa de Mount Olympus - 1

70

FIGURA 17 - Programa de Mount Olympus - 2

O tempo estendido parece solicitar igualmente um espaço ampliado,


denominado por Georges Banu (2018)54 como obras dilatadas, pois para o
pesquisador não somente o tempo se prolonga fora das normas nesses

54
Matéria revista Art Press: La dureé Extrême, março de 2018.

71

espetáculos, mas o espaço igualmente se estende além da sala de espetáculos.


Em Mount Olympus uma necessária organização espacial ganha vida em volta
do acontecimento principal. Uma conjunção de espacialidades que coloca a
audiência em deslocamento55. Ao lado da porta principal do teatro, encontra-se o
foyer com saída para área aberta com food trucks disponíveis para refeições em
tempo integral. À esquerda, uma cafeteria com área de convívio e uma sala
contígua para sessões de massagens. Espaço que desemboca em escadaria
que leva ao salão de dois andares com camas e cobertores, reservado para o
descanso dos espectadores, que podem entrar e sair à vontade.

FIGURA 18 - Espaço para repouso no átrio do La Villette.


Crédito: Foto minha

Banheiros posicionados em diferentes locais, ao longo da arquitetura do


edifício. Atrás do palco, uma área de grandes proporções para preparação e
descanso dos performers que respondem a um dispositivo complexo de alerta
para seguir o cronograma do espetáculo. Diferentes espaços extracênicos não
dissociáveis do tempo/espaço da experiência cênica como um todo como
veremos a seguir.

55
O espetáculo foi assistido pelo pesquisador no dia 15 de setembro de 2017, no Grande Halle
de la Villette em Paris.

72

Sem compromisso de fidelidade com as palavras dos dramaturgos


gregos, Fabre traz à cena Etéocles, Hécuba, Ulisses, Édipo, Creonte, Jocasta,
Penteu, Fedra, Hipólito, Alceste, Hércules, Clitemnestra, Agamêmnon, Ifigênia,
Cassandra, Electra, Orestes, Medéia, Jasão, Antígona, Crisipo, Ajax, Dario e
Filoctetes. Falado em quatro línguas e reunindo 28 performers; quatro gerações
de artistas parceiros de antigas criações de Fabre. O espetáculo atravessa
questões como o incesto, vingança, heroísmo, violência, poder e sexualidade.
Grande parte dos quadros em Mount Olympus está estruturada como
tarefas ou ciclos de atividades prolongadas e repetitivas (procedimento chave na
poética do encenador). Os performers correm no mesmo lugar enquanto
enunciam palavras gritadas, realizam mais de 300 piruetas em trajetória circular,
pulam corda até a fadiga, debatem-se no chão durante 30 minutos, caminham,
contraindo todos os músculos do corpo até fazê-los vibrar, deslocam-se com
boca e olhos vendados, dificultando a visibilidade e respiração. Estas são
algumas das atividades que se sucedem no decorrer de um dia inteiro. Tarefas
que poderiam constituir um treinamento de militar ou de atleta se alternam com a
apresentação de heróis clássicos da mitologia grega. Evidencia-se a cada
atividade o drama do corpo que provoca uma intensidade física e resiste a ela.
Tais tarefas se desenvolvem organizadas e programadas por meio de
ações e procedimentos corporais com determinadas características, como:
repetição, ralentação ou aceleração, uso da violência, erotismo e a exploração
intensa de objetos e materiais - que visam a experiências concretas de exaustão
física e psicológica. Essas ações colocadas para o performer são investidas em
seguida de elementos ficcionais. Fazem a passagem da ação para a atuação,
pois toda ação performática compreende determinado nível de teatralidade na
medida em que se está operando no espaço circunscrito do palco, lugar do
artifício, repetição e estetização.
Performatividade e teatralidade têm lugar consciente no trabalho da
encenação e dos performers. Por exemplo, as centenas de piruetas realizadas
por duas performers no quadro 9.1 - Passeio de Clitemnestra e Ifigênia em volta

73

de Agamemnon56 que se desenvolvem a partir do trabalho prévio de marcação


precisa das trajetórias circulares no centro do palco: compreendem a forma fixa
que precisa ser mantida até que as performers fiquem exauridas (e as falhas se
tornem perceptíveis). Essa tarefa se configura como um movimento virtuoso
retirado da dança clássica e isolado numa repetição que se transforma em
movimento acrobático que acontece dentro da cena projetada artificialmente57,
enquanto que no centro está a figura fixa do herói Agamenon completamente
imóvel. Na técnica que Fabre denomina pela expressão from act to acting, a
atividade de exaustão perpretada pelo performer entra em contato com o texto
ficcional para sondar como este se comporta, qual voltagem representacional
surge dessa combinação. A ação performática prepara o corpo para a ação
representacional. Nesse sentido, o processo de construção da cena, da ativação
física do performer até o personagem, vira espetáculo. Essa ativação faz
aparecer qualidades corporais decorrentes da homeostasia acelerada que
mantém os performers por longo tempo suspensos em determinadas qualidades
de vibração física. As figuras trágicas que compõem a narrativa aparecem então
depois que esse processo se esgota, para então iniciar novo ciclo. Proposições
de repetição de ações e movimentos que favorecem a exposição fisiológica do
corpo. Processo que tem no fator tempo o elemento fundamental para o seu
desenvolvimento.
Por sua vez, o espectador também vivencia a passagem do tempo,
através da consumação dos seus próprios ciclos de repetições que acontecem
fora de cena (descansar, se alimentar etc), pois em Mount Olympus, os eventos
pré e pós-representação e todas as circunstâncias adjacentes são abarcadas. O
tempo de vida e o tempo de encenação se imbricam nessa obra dilatada,
aproximando-se do que Lehmann chama de “estética da duração”, uma


56
Tradução minha para “Menège de Clytemnestre et Iphigénie autour d’Agamemnon”.
57
A composição do quadro mistura elementos conectados ao teatro e a performance
concomitantemente. No centro do palco um performer representando o personagem Agamenon
imóvel, enquanto duas performers, no papel de Hifigênia e Hipólita, realizam piruetas em volta
do herói até o cansaço e a desorientação provocados pelos giros, fazendo com que elas
tropecem e tombem constantemente, perdendo a trajetória espacial e formalização corporal
originalmente proposta. Depois de 30 minutos, a performer no papel de Hipólita começa seu
monólogo colérico contra Agamenon.

74

“concepção do tempo partilhado [que] considera o tempo estruturado e o tempo


realmente vivido como um mesmo bolo que os frequentadores e atores
compartilham” (LEHMANN, 2007, p.303). Os fatores tempo e espaço que
colaboram para evidenciar a dimensão biológica da cena em Mount Olympus
serão agora analisados pelo viés das características da linguagem do
encenador, já que o espetáculo revisita procedimentos aplicados nos seus
espetáculos anteriores, configurando-se, em parte, como uma obra
autorreferencial nos seus aspectos temáticos e estruturais da cena.

2.4.1 Repetição fisiológica

As peças teatrais de Fabre partem da possibilidade de repetição e ao lado


do tempo alongado é princípio estruturante de suas obras. Tal princípio costuma
deflagrar a performance biológica e auxilia na manutenção de seus efeitos sobre
a cena. Através da execução de exercícios contínuos como pular corda ou correr
no mesmo lugar, repetir palavras gritadas ou balbuciadas58 (colocando a
performatividade da voz em destaque), a repetição se dá até o suor e a
respiração ofegante vir à tona em corpos que se energizam pelo desgaste e
acionamento muscular. Tarefa física que imprime força e fragilidade nos corpos,
uma ação de resistência e também de desistência, que, para Fabre, traduz
aspectos ligados à beleza da vida (como será visto no capítulo III), e que põe a
descoberto a fisiologia a todo momento. Pela repetição se produz uma
presentificação única dos praticantes que é percebida num crescente desse
acontecimento físico-processual colocado no palco. Desgastam-se o corpo e a
voz por meio de determinadas estratégias formalizadas para perscrutar em que
medida o desgaste influencia nas capacidades motoras do performer, que
emanação térmica se desprende do corpo cansado, que qualidade sonora esse
corpo produz. Como no quadro 9.6 - O êxtase de Cassandra, onde a performer


58
Para mais informações sobre esse procedimento, ver artigo “A tragédia de uma amizade, de
Jan Fabre, uma variação coreográfica do grito”, de Chloé Larmet. Disponível em
http://www.seer.unirio.br/index.php/opercevejoonline/article/viewFile/4995/4626 .

75

chora59, baba, sua, geme, tornando perceptível seu rosto completamente


vascularizado depois de repetir determinado movimento violento com a cabeça,
para frente e para trás, sem nenhum motivo aparente, durante 30 minutos.

FIGURA 19 - O êxtase de Cassandra em Mount Olympus.


Crédito: Troubleyn-Jan Fabre/Divulgação

A cada repetição de movimentos ou do choque de um corpo sobre o


outro, é elevado o nível homeostático e torna-se visível o impacto violento sobre
as articulações, tendões, músculos e ossos. Para Lehmann, a repetição em
Fabre teria como função principal desestabilizar o público pela agressividade,
pois:

na repetição agressiva é recusada a demanda de divertimento


superficial mediante o consumo passivo de estímulos: em vez de
variedade que mata o tempo, esforço da visão para tornar o tempo
perceptível. Por trás da ira se reconhece a busca de contato real, ainda
que segundo o mote “o soco é contato” (LEHMANN, 2007, p.309).


59
Para Deleuze, “o coração é o órgão amoroso da repetição - É verdade que a repetição
concerne também à cabeça, mas precisamente porque ela é seu terror ou seu paradoxo”
(DELUZE, 2018, p.11).

76

Observa-se que quanto maior a quantidade de repetições, mais o


movimento implicado se afasta da sua condição formal imposta, em direção ao
movimento livre. Uma reprodução quase maquinal que paradoxalmente confere
autonomia para o corpo, revelando sua identidade pelo funcionamento
fisiológico. A repetição pode se acumular em um corpo coletivo que faz a mesma
ação em conjunto até aparecerem as diferenças físicas entre os participantes. A
repetição conduz à abstração do significado quando feita inúmeras vezes,
esvazia os sentidos, isola o movimento restando o corpo em seu pleno
funcionamento orgânico. “Se antes ela [a repetição] servia para a estruturação,
para a construção de uma forma, aqui ela serve justamente para a
desestruturação e desconstrução da fábula, do significado e da totalidade
formal” (LEHMANN, 2007, p.310).
A repetição autorreferencial retoma as experiências sobre o corpo e
objetos como atualizações já testadas em produções anteriores, assim como a
estrutura do próprio espetáculo (em quadros que se repetem), adensando-se e
fortalecendo enquanto linguagem para a cena. Procedimento que acontece em
diversos níveis e qualquer movimento, palavra, imagem ou ação se constitui
como uma potência passível de ser deslocada de seu contexto lógico de
significação para se transformar em fonte de repetição, como o já citado quadro
Passeio de Clitemnestra e Ifigênia em volta de Agamemnon, composto por
movimento organizado de balé, que se desfaz e se transforma pela exaustão
provocada pela repetição e que acentua, a cada giro, o funcionamento biológico
da performer.

77

FIGURA 20 - Passeio de Clitemnestra e Ifigênia em volta de Agamemnon.


Crédito: Captura de vídeo.

A repetição aparece ainda como recurso que se aplica igualmente em


relação aos objetos que são trazidos para a cena, de modo a terem exploradas
suas possibilidades dinâmicas, e que retornam ciclicamente para novas
experiências (como uma corrente de ferro que serve de múltiplas funções:
chicotear, pular corda, acorrentar um performer a outro, servir de cabo de
guerra). Os objetos se tornam íntimos do corpo, fusionam-se a ele a cada nova
aparição, reconfigurando e restaurando, por sua vez, a fisiologia do corpo. Outra
maneira de repetição é a utilização da imagem do duplo em cena como
referencial que se presta a diversas leituras ao longo do espetáculo. Aparecem
em deslocamentos “em espelho” entre dois ou mais performers, como na
sequência de abertura de Mount Olympus, onde dois performers seminus se
deslocam em “quatro patas” geometrizando o palco. Também em cenas onde
movimentos similares se transformam em um jogo lúdico de identidades (como
no quadro 4.9 – Narciso, onde, por longo tempo o jogo infantil de espelhar os
movimentos do outro se desenvolve com os performers nus). Também a
repetição de figuras como a multiplicação de Dionisos; as anatomias masculina

78

e feminina são colocadas lado a lado para serem ressaltadas e desgastadas. O


“tempo cíclico” (LEHMANN, 2007, p.310) trágico se estabelece através de jogos
onde Fabre coleciona repetições:

Inventariando-a em termos fixos com os quais pode-se jogar


reversivelmente, a coleção representa o perpétuo reinício de um ciclo
dirigido onde o homem se entrega a cada instante e com absoluta
segurança-partindo não importa de que termo e seguro de a ele voltar -
ao jogo do nascimento e da morte (BAUDRILLARD, 2009, p.103).

Para Deleuze, o uso da repetição interromperia a representação tradicional:

O teatro da repetição opõe-se ao teatro da representação, como o


movimento opõe-se ao conceito e à representação que o relaciona ao
conceito. No teatro da repetição, experimentamos forças puras,
traçados dinâmicos no espaço que, sem intermediário, agem sobre o
espírito, unindo-o diretamente à natureza e à história; experimentamos
uma linguagem que fala antes das palavras, gestos que se elaboram
antes dos corpos organizados, máscaras antes das faces, espectros e
fantasmas antes dos personagens, todo o aparelho da repetição como
‘potência terrível’ (2018, p.19).

Característica que leva o autor a se aproximar das noções artaudianas


oriundas da primeira metade do século XX, de valorização da materialidade da
cena e seus recursos expressivos como alternativa ao textocentrismo e conflito
intersubjetivo do teatro clássico europeu, e que reverberam hoje importante
referência para o resgate do processo teatral centrado no trabalho físico do
performer e da cena. O corpo poético que não opera pelo apagamento de sua
presença, mas que persegue o adensamento da matéria, ou “a parte orgânica
de uma indescritível vibração” (ARTAUD, 2006, p.53). A metafísica artaudiana
valoriza a fisicalidade do ator enquanto elemento central e desencadeador de
forças da linguagem cênica. Um corpo que não se ausenta de si próprio, que se
afirma como potência e se opõe à construção de uma realidade que permanece
fora do circuito orgânico e vital; antes uma “restauração de sua integridade física
orgânica” (ARTAUD, 2006 p.66). Pois, a performance biológica: aciona os
performers energeticamente em direção ao esgotamento e extrai desse corpo
uma potência de alta voltagem presencial. Ao mesmo tempo, é possível

79

encontrar nos textos artaudianos diversos indícios de uma realidade fisiológica,


“de um teatro que desperte nervos e coração” (ARTAUD, 2006, p. 95).
O tempo em looping constitui elemento determinante para o destino dos
corpos, colocando em ação todo o seu sistema físico, muitas vezes fazendo
desse processo derrisório o próprio acontecimento cênico. O drama que migra
para dentro do corpo, segundo Lehmann (2007). Para Artaud, o corpo em
estado latente e primitivo. O corpo energético “cheio de descargas”, que se
desgasta e gera tensão, drama materializado na alquimia do corpo:

Encontraremos de um lado, e metafisicamente, a materialização ou


antes a exteriorização de uma espécie de drama essencial que conteria
de um modo simultaneamente múltiplo e único os princípios essenciais
de todo drama, já orientados e divididos, não o suficiente para
perderem sua natureza de princípios, mas o suficiente para conterem
de modo substancial e ativo, isto é, cheio de descargas, infinitas
perspectivas de conflitos (ARTAUD, 2006, p. 52).

O palco fisicalizado pela performance biológica se aproxima ao que


propunha o autor do teatro da crueldade: um lugar a ser preenchido de forma
visceral pela materialidade de corpos e vozes:

Sacudindo a inércia asfixiante da matéria que atinge até os dados mais


claros dos sentidos e, revelando para a coletividade o poder obscuro
delas, sua força oculta, convida-as a assumir diante do destino uma
atitude heróica e superior que, sem isso, nunca assumiriam (ARTAUD,
2006, p. 29).

A obra dilatada fabriana intensifica a performance biológica, trazendo à


cena o corpo da peste artaudiana:

A cena de Fabre se constrói pela submissão dos corpos a ritos físicos


extenuantes e onde toda forma de pudor está banida. Enquanto Fabre
encontra-se na cabine de controle de luz e som, Artaud está
certamente nas coxias. Embora respeite a quarta parede e não faça
uso do espaço circular artaudiano, Mount Olympus traz ao palco o
corpo acometido pela peste, submetido a um mal superior, tão
desejado por Artaud. Na cena de Fabre, a destruição é engendrada
pelo tempo. O mal superior é o tempo. Sob a ação do tempo, o corpo
se desgasta e termina por se desfazer. É contra o tempo que os
guerreiros da beleza lutam, procurando vencer o cansaço, a dor,
manter o fôlego e a energia. A luta de caráter eminentemente física do

80

sujeito com ele mesmo, faz emergir seus líquidos - suor, lágrimas,
sangue, urina e saliva - e desnudar a verdade fisiológica da existência
e as pulsões do animal-homem (BELLOTTO; ISAACSSON, 2019, p.16,
no prelo).

As ações são executadas por um ou mais performers e não são pautadas


por características representacionais, no sentido de remeter a algo que não está
ali. O pesquisador flamengo Luk Van den Dries, ao acompanhar e descrever o
processo de criação do espetáculo Papagaios e cobaias (2002) do Troubleyn,
conceitua esse fenômeno como real time/real action (tempo real/ação real),
onde, mais do que jogar com a ficcionalidade, age-se em cena:

Os performers de Fabre não interpretam um personagem, mas


executam determinadas tarefas ou ações. Através desses atos, Fabre
apresenta uma fisicalidade não relacionada ao "caráter", mas sim ao
corpo e à presença física do performer. O performer executa uma
tarefa e, ao expandir o período de tempo (as ações geralmente são
repetidas em um loop ou aceleradas), isso tem um impacto físico no
60
corpo. (GIELEN et al., 2014, p. 45) .

Essa condição do agir eleva o fazer como central no acontecimento.


Conectado ao princípio fundamental do teatro performativo (FÉRAL, 2015), onde
a performatividade da ação é valorizada em si mesma. Esta característica de
ação centrada colabora fundamentalmente para a performance biológica se
constituir, assim como os demais elementos que irão se investir de sentidos no
palco. Decorre que o tempo está a serviço da repetição que cansa o performer e
valoriza a materialidade da sua presença. Acentuam-se configurações
musculares e ósseas. Percebe-se uma dinâmica física que procura manter a
anatomia em movimento constante. Homeostase acelerada, trocas de líquidos
com o meio, circularidade de produção de energia ininterrupta. Fenômenos
bioquímicos que acentuam a presentificação do corpo fenomenal. Aspectos da
dimensão fisiológica tomam a frente, o real biológico se materializa em cena
pela experiência do corpo no tempo presente.

60
Tradução minha para “Fabre’s performers do not play a character, but instead execute certain
tasks or actions. Through these acts, Fabre introduces a physicality not related to the ‘character’,
but rather to the body and physical presence of the performer. The performer executes a task,
and by expanding the timeframe (actions are often repeated in a loop or accelerated) this has a
physical impact on the body”.

81

Por outro lado, observam-se ações como vestir ou despir roupas, pintar o
corpo ou colar elementos nele, muitas vezes, esvaziando o caráter de
espetacularidade (quando envoltos em atmosfera de tranquilidade que remete a
princípios do zen-budismo)61. Como as inúmeras sequências de limpeza de
corações e fígados de animais em Mount Olympus62. Características que
imprimem para a ação uma temporalidade específica (fincada no presente da
cena), que em termos de recepção, pode se interessar pelo que se passa no
palco, “mergulhando” em cada detalhe dos corpos e suas estruturas, ou, ao
contrário, entediar-se com esse tempo em comum63. Segundo Lehmann, essa
temporalidade estabelecida faz do palco o lugar de uma reflexão sobre o ato de
ver dos espectadores:

O que se salienta no processo da repetição é sua impaciência ou


equanimidade, seu estado de atenção ou relutância em aprofundar o
tempo, sua disposição ou recusa a fazer jus à diferença, ao detalhe, ao
fenômeno do tempo (LEHMANN, 2007, p.311).

2.4.2 Movimentos ralentados

Fabre recorre constantemente ao uso de movimentos ou ações realizadas


em “câmera lenta” em seus espetáculos A desaceleração paradoxalmente
desgasta ainda mais o performer em cena, segundo a performer de Mount
Olympus, Deceukelier pois “os movimentos lentos podem demandar mais
energia” (2017). Como o quadro 11.4 – Medéia ela permanece fixa por 10
minutos, enquanto confessa o desejo de matar os filhos, para em seguida se
locomover lentamente com uma faca na mão durante 50 minutos até a sua
imobilidade total. Ou como no quadro denominado de Estátuas
masculino/transsexual - 4.264, onde os performers, posicionados nus em cima de
mesas, transformam-se em “esculturas vivas” realizando movimentos amplos,

61
O que institui uma atmosfera de solenidade e ritualística para os quadros.
62
Os performers, portando recipientes com água, lavam diferentes víceras de animais ao longo
do espetáculo.
63
E muitas outras reações possíveis de plateia aqui não descritas.
64
Tradução minha para “Male/Shemale statues”.

82

lentos e contrários à lógica anatômica do corpo. Já no quadro 0.2 - O poder do


masculino65, um foco de luz, iluminando apenas o órgão sexual do performer,
testemunha o enrijecimento lento de seu pênis. O sistema reprodutor masculino
e sua anatomia ganha protagonismo por si mesmo, na medida em que não está
conectado a nenhum enredo, a não ser a questão se o performer vai ou não
concretizar a ação.
O recurso à lentidão, que proporciona alongamento do tempo, não parece
ser o objetivo primordial em Mount Olympus. A representação ralenta o jogo e os
movimentos da cena em diversos momentos, transformando os corpos em um
atlas do corpo humano. O espetáculo adquire uma duração desmesurada por
querer abordar a obra trágica em toda a sua complexidade por um lado, e o
desejo de levar ao extremo a experimentação corporal do performer e da
audiência por outro. Muitas vezes, essa ralentação temporal que se instaura
pode vir acompanhada por névoa lançada por máquinas de fumaça e textos
sussurrados ao microfone, aproximando-se ao “tempo do sonho”, onde
lentamente figuras fantasmagóricas povoam o palco, com corpos pintados como
fantasmas ensanguentados, retornando em forma de figuras desencarnadas
pelo terror trágico. Dinâmicas contrárias também se alternam em cena, quando
os corpos são investidos de uma energia explosiva, tendo seus membros
freneticamente lançados para todos os níveis e direções, desenhando uma
anatomia muscular peculiar em cena. O real biológico é acometido pela peste e
também pelo corpo sem órgãos artaudiano.

2.4.3 Animalização

A animalização é outra característica das obras cênicas de Fabre, onde


se coloca em cena o processo representativo de transformação física do homem
em animal. Os momentos de passagem nos quais não se perderam as
características humanas e ainda não se solidificou o estágio animal são
valorizados. Logo, essas metamorfoses são longas quando colocadas em cena.

65
Tradução minha para “Le pouvouir du mâle”.

83

Segundo Lehmann, para os gregos antigos, “a diferença entre o homem e o


animal era definida menos através da posse da razão do que através da
característica que indica a capacidade de suportar” (LEHMANN, 2007, p. 16).
Este procedimento que sempre apareceu em espetáculos anteriores, encontra
em Mount Olympus a duração necessária para se intensificar. Cada “animal”,
identificável ou não (muitas vezes são seres híbridos indefiníveis), tensiona seu
corpo de forma diferente, excitando os órgãos internos do corpo e convocando
determinadas dinâmicas homeostáticas. Sobretudo, são as reconfigurações
corporais que se sobressaem nas constantes metamorfoses do homem em
animal.
Por exemplo, o quadro 2.8 - A maquiagem das criaturas66 inicia-se por
uma longa ação de pintar o corpo (realizado pelos próprios performers) na frente
do espectador. Na medida em que a maquiagem vai se adensando nos corpos,
eles vão se transformando em animais disformes. Eles rasgam suas vestimentas
e amarram no corpo. Criaturas grotescas e ridículas, com sons guturais,
aparecem: suspiros, balbucios de animais - ao som de música minimalista que
se perpetua no mesmo tom vibratório. Até que duas performers entram ao fundo
tingidas de branco. Elas realizam uma série de movimentos em espelho até se
transformarem em animais irreconhecíveis. Celebram-se os instintos selvagens,
que acabam por acentuar a presença dos performers, e também a brutalidade
da cena. Pois, preponderam os instintos violentos e sexuais do mundo animal
que sempre se apresentam em luta constante pela vida. A performer
Deceukelier estraçalha e engole pedaços de carne crua ao se transformar em
um cachorro no quadro 0.5 - Cão de rua e abutre sobre o campo de batalha
abandonado67. A realidade fisiológica da existência e as pulsões do animal-
homem fazem emergir seus líquidos, suor, lágrimas, sangue, urina e saliva.


66
Tradução minha para “Le maquillage des créatures”.
67
Idem “Chien de rue et vautour sur le champ de bataille abandonné”.

84

FIGURA 21 - Cão de rua em Mount Olympus.


Crédito: Captura de vídeo

A animalização faz as estruturas anatômicas do corpo se sobressaírem


ao serem desorganizadas e reconfiguradas. Por exemplo, o abutre do performer
Cédric Charron, que aparece em cena para aproveitar a carniça do campo de
batalha dionisíaco, apresenta uma corporalidade totalmente fragmentada, que
se move de forma compartimentada, isolando e colocando, em evidência, partes
específicas da sua anatomia. De fato, determinadas metamorfoses podem ser
lidas como uma aula de anatomia, pois se acentua a realidade biológica da vida
pelo viés do corpo reconfigurado como se fosse o corpo de um animal.
Essa investigação fisiológica leva em conta escancarar e testar os
orifícios do corpo. Constantemente objetos são introduzidos e/ou expelidos pelos
performers em Mount Olympus, como um dos quadros finais onde 4 performers
estáticas expelem ovos de suas vaginas. Em outro momento, as performers se
transformam em aranhas que escancaram seus órgãos genitais frente à plateia,
enquanto perseguem o personagem de Édipo rei. A metamorfose colabora para
que o corpo biológico seja testado, acionado, exibido por fora e por dentro. Por
estas características colocadas, a animalização, por sua vez, tende a afetar o
espectador por meio de um “ataque psicofísico”, que contrasta, segundo
Lehmann, “com a construção racional da forma trágica e seu caráter

85

especialmente filosófico” (2007, p. 353). O performer, ao deformar seu corpo em


direção à animalização, faz aparecer e ressaltar configurações corporais que
tornam visíveis sua arquitetura física através de combinações musculares
contrárias, esgarçamento das articulações, desalinhamentos ósseos,
ressaltando partes específicas desses corpos.
Do homem-animal (animalização) ao homem-objeto (escultura), o
performer se transforma e se sobressai. A verdade do corpo para Fabre é a
transformação físico-química constante. Plasticidade que se revela melhor
quando despido. O corpo dotado de sentidos capaz de perceber o mundo em si
e que se faz visível por ele. E, com cada um desses procedimentos se observa o
corpo sendo exacerbado em determinada direção. Essa energia produzida pode
ser carregada de emoções e de intensidades variadas que transbordam pelos
poros. O tempo arrasta e orquestra o destino trágico dos seus integrantes:
“Nessa tragédia, o conflito intersubjetivo tradicional do drama cede lugar ao
embate entre o homem e o tempo, ele se traduz na busca obstinada por vencer
os limites do corpo diante da passagem do tempo” (BELLOTTO; ISAACSSON,
2019, p.11, no prelo). Fabre, ao retomar e intensificar seus próprios
procedimentos experimentados, resgata o passado conectado a uma memória
estética. Devolve esse tempo apagado para o presente através da constante
autocitação. Ao perpetuar suas performances através da atualização constante
de suas práticas, retarda a condição de efemeridade do acontecimento teatral.

2.4.4 Quadros fisiológicos

É depois que a performance fisiológica se estabelece que a ficção pode


tomar lugar nos corpos. Momentos em que Fabre recompõe o jogo das tragédias
através da presença dos personagens trágicos, do corifeu e do coro. As tramas
são apresentadas de forma extremamente fragmentada e difusa: pequenos
trechos trágicos são lançados à cena, sem início ou fim. Os personagens fazem
aparições, nascem da concretude biológica para desaparecerem em seguida,
podendo retornar ou não em momentos diferentes da peça.

86

O caráter não realista da representação das personagens vem impresso


no tratamento visual dos corpos pintados de branco e vermelho,
descarnados de vida e que vagam pelo palco, como o “fantasma de
Dario”. Ou figuras que golpeam o espaço vazio, presos numa batalha
sem fim, como o guerreio Ulisses (BELLOTTO; ISAACSSON, 2019, p. 8,
no prelo).

Propõe-se a noção de quadros fisiológicos para descrever as sequências


de Mount Olympus, pois o esquema trágico se compõe por partes dramáticas
incompletas precedidas por uma fisicalidade intensa ligada à performance
biológica. “Assim como o discurso trágico incorpora o mito para iluminá-lo de
forma ambígua” (LEHMANN, 2009, p. 16), a performance biológica ilumina as
personagens trágicas que emergem desses corpos pulsantes.
Os personagens carregam consigo uma dimensão de presença
aumentada pelos corpos energizados que lhes conferem uma qualidade
específica de atuação. Essa qualidade prospecta uma dimensão arquetípica
para a abordagem dos personagens que aparecem como modelos de pura
energia e tensão física, onde a palavra enunciada reverbera em uma condição
muscular explosiva decorrente do esforço. Essa fisiologia à flor da pele não se
encerra em etapa única, anterior ao personagem ficcional. Ela pode continuar
durante o quadro inteiro e/ou também após o final do seu discurso trágico, a
ação extenuante pode ser retomada em um ciclo contínuo. Dispositivo esse que
está desenhado em cena a partir de composição visual altamente formalizada e
pictórica.
Por outro lado, quando a área de atuação é utilizada para sobreposição
de imagens e deslocamentos dos corpos que desenham o espaço da cena,
compara-se “o palco como uma ideal superfície pictórica, para exercer o teatro
como pintura cênica” (LEHMANN, 2007, p. 273). Concordando com o teórico, os
movimentos relentados ou repetidos, fazem referência à maneira em que se
percebe a pintura: “o que é correto na comparação é que no teatro da lentidão a
percepção inevitavelmente se orienta para o foco com que se percebe um
quadro” (LEHMANN, 2007, p. 272). Fabre coloca os performers em situação de
esculturas vivas ou de pinturas que realizam trajetórias milimetricamente
arranjadas. Ele cria molduras vivas com ações e movimentos. Realiza

87

sobreposição de imagens em camadas, esquadrinha o espaço, dá forma a ele


em dinâmicas baseadas em noções de composição visual-pictórico, como
deslocamentos geométricos, duplicados e alternância de áreas de cheio e vazio.
Essa composição é comparável a princípios que remetem a do “quadro em
movimento ou molduragem” (LEHMANN, 2007, p. 272). Mas os quadros não
estacionam puramente em um teatro de imagens como sugere Lehmann ao se
reportar a determinado tipo de teatro contemporâneo. Recordemos que, no
interior dessa configuração visual, tem lugar uma série de tasks, ações,
exercícios executados pelos performers que são fundamentais para se atingir os
estados corporais. Esse procedimento inscreve o fazer em cena como
fundamental. A dimensão performativa da ação independente do seu valor
representativo (um pressuposto da performance em relação ao teatro) é central
e acompanha a formalização dos corpos: “o espetáculo se centra na imagem e
na ação e não mais sobre o texto” (FÉRAL, 2015, p.114).
A ação e o tratamento visual da cena impulsionam a camada ficcional,
que encontra espaço para existência. Os quadros com ações repetitivas
colocam o performer em estado energético peculiar, “onde seu corpo e
competências técnicas são colocados na frente” (FÉRAL, 2015, p. 120). É nesse
processo ativo que a alteração física acontece e a performance biológica se
concretiza. Por fim, essa composição imposta se desorganiza através da
repetição que gera fadiga, desestrutura-se pela performatividade conectada,
muitas vezes, ao teatro energético descrito por Lyotard (1981). O real do corpo
biológico acionado apresenta então a camada ficcional, representado pelo texto
enunciado em cena, relacionados às situações e temáticas do mundo trágico
grego.
Como o quadro 3.10 - Édipo , onde o performer, exausto, depois de forçar
uma respiração acelerada, tendo os olhos e boca vendados, precisa enunciar o
texto sobre o destino trágico do rei Édipo. Essa composição coloca o processo
autorreferencial em cena, pois apresenta reiteradamente a preparação e
construção dessa corporalidade, demonstra sua processualidade. É do quadro
que o corpo se expande e a ficção trágica se origina. Pelo seu teor processual e

88

reflexivo, originário da própria cena que se constrói, desponta como


“autoestrutura temática” (LEHMANN, 2007, p. 119). As sequências estão
associadas a uma exacerbação da vida biológica que antecede os momentos
dramáticos associados ao trágico grego, mas também podem se prolongar;
contribuem para o estado alterado do performer que se encontra dentro de um
esquema visual-pictórico. Essa descrição não tem a intenção de limitar a
maneira que os quadros são apresentados durante o espetáculo. Ele pode
apresentar variações de acordo com a linguagem que está sendo evidenciada
em “primeiro plano” da cena híbrida de Mount Olympus.
Nos quadros onde a linguagem da dança predomina, percebem-se os
elementos performativos e ficcionais imbricados no desenho coreográfico
pictórico da cena. Como nas variações do quadro denominado Wardanse (dança
guerreira), no qual os performers apresentam uma mesma coreografia 5 vezes
ao longo das 24 horas. A cada repetição, novos elementos são envolvidos na
performance, impondo restrições físicas ou espaciais em relação aos
movimentos originais, transformando-os. Como o quadro 8.4 - Dança guerreira
em sacos de dormir68, onde a dança guerreira apresentada anteriormente
retorna, mas com os performers agora “embalados” dentro de sacos de dormir,
tendo seus movimentos condicionados pela falta de espaço.
Em Mount Olympus se observa o predomínio do espaço em movimento
através da construção de ações performativas, com o objetivo de acionar
energeticamente os performers sem o abandono dos aspectos ficcionais e
visuais concomitantemente. Formam um campo poético, onde a noção de
quadro fisiológico se encontra na confluência desses procedimentos. Nesse
processo, as transformações físicas se tornam visíveis no palco, através da
acentuação da realidade biológica do corpo: sistema circulatório, digestório,
excretor, respiratório, sanguíneo, nervoso e tegumentar. Todo o aparato
sensório-físico do performer é acionado, fazendo com que a organicidade desse
corpo seja colocada em evidência na encenação.


68
Tradução minha para “Sleeping bag wardance”.

89

Para Lyotard, a “teoria dos signos teatrais baseia-se em aceitar o niilismo


inerente a representação” (1981, p. 89). Ele ressalta esta condição no processo
teatral tradicional, onde o que é verdade em cena é afirmado como ausência,
pois remete a algo que não está ali. A partir da teoria de Peirce, o signo é “como
algo que está para alguém no lugar de alguma coisa” (LYOTARD, 1981, p. 89),
Lyotard questiona a teatralidade colocada nesses termos, pois “para perceber
plenamente o sistema de signos, o próprio ator teve que desaparecer como
presença” (1981, p. 91). Essa lógica instaura um sistema de valores onde a
representação de algo tem mais valor do que esse algo propriamente.
Em contraponto, a “busca para a intensificação energética do aparelho
teatral” [promove uma] dissemiotização generalizada” (1981, p. 94), pois o teatro
energético escapa de representar algo com suas dinâmicas corporais,
produzindo, máxima intensidade nesses corpos desvinculados da intenção
figurativa. Para o autor, o “fluxo libidinal” é colocado em movimento nesse teatro,
e que não estaria interessado na força signica dos corpos (que contêm
implicitamente relações de poder pela hierarquia dos signos), mas na irradiação
energética que esses corpos acionam, como, por exemplo, do dente até a palma
da mão:

A teoria do valor nos coloca potencialmente em circulação não-


hierárquica, onde o dente e a palma já não têm uma relação de ilusão e
de verdade, causa e efeito, significante e significado (ou vice-versa),
mas que coexistem, independentemente, como investimentos
transitórios. Acidentalmente compondo uma constelação interrompida
por um instante, uma multiplicidade de reais congelados na circulação
de energia. O dente e a palma já não significam nada, são forças,
intensidades, afetos presentes (LYOTARD, 1981, p. 96).

Essas forças movimentadas no corpo não apontam para signos externos.


O teatro energético, assim descrito, aproxima-se do desejo do filósofo
Gumbrecht de interromper os mecanismos hermenêuticos dos significados, da
metafísica, para valorizar a materialidade das coisas e suas manifestações no
espaço:

90

A escolha da palavra ‘intensidade’ confirma que a diferença trazida pela


experiência estética é, sobretudo, uma diferença de quantidade:
desafios radicais produzem níveis radicais de desempenho, nas mentes
e nos corpos (GUMBRECHT, 2010, p. 133).

A procura por intensidades se torna a própria representação, provocando


deslocamentos, transferências de energias pelo corpo:

[...] uma espécie de eficácia por meio dos afetos, que pertencem à
economia libidinal [...] Os signos não são mais vistos na sua dimensão
representativa [...] eles permitem “ações”, atuam como
transformadores, alimentados por energias naturais e sociais, a fim de
produzir afetos de uma intensidade muito elevada (LYOTARD, 1984, p.
92).

Essas características que o teatro energético traz para os performers


configuram uma das etapas e possibilidades para os corpos na cena fabriana.
Todavia, esse fluxo libidinal gerado no interior dos quadros pode ser direcionado
para ressignificar o universo trágico abordado (com no quadro 3.10 - Édipo).
Essa alternância de qualidades coloca as sequências em zonas instáveis,
estados intermediários, sempre em constante mutação. Os quadros fisiológicos
valorizam o momento de passagem da organização para o caos, da composição
para a decomposição, ou do performativo para o representativo, do real para o
ficcional, sempre alternando sua condição entre esses polos.
Os elementos coreográficos, em contato com princípios performativos
descritos, adquirem contornos incomuns, pois servem de matéria para
exploração e transgressão das formas e movimentos. Ressalta-se que a dança
ocupa espaço de destaque nas obras cênicas do encenador Jan Fabre, motivo
pelo qual, muitas vezes, é classificado como coreógrafo. É comum Fabre utilizar
a dança combinada à repetição, à ralentação, à animalização e a outros
princípios teatrais. As danças que abrem e fecham o espetáculo, como prólogo e
epílogo, têm caráter festivo. A Dança ritual em êxtase69(Twerk)70 remete à
carnavalização e celebração da vida, da carne e suas pulsões sexuais. Ao som

69
“Dance Rituelle Extatique” como consta no programa do espetáculo.
70
Junção das palavras twist (giro, movimento circular) e jerk (movimento repentino). Originada
em New Orleans nos anos 80, com influência de danças tribais africanas, cresceu ao som da
bounce music (New Orleans hip-hop de alta conotação sexual).

91

da twerk dance, os movimentos são vigorosos e agressivamente sensuais. Onze


performers em cena realizam gestos provocantes, circulares e repetitivos com o
quadril e tronco, e deslizam até o chão. Movimentos eróticos que remetem aos
sentidos de prazer: luxúria, libertinagem, volúpia, lascívia e todo leque de
manifestações de conotações sexuais (coxas, torso e órgãos sexuais ficam
visíveis quando se movimentam). Uma atmosfera de permissividade se
estabelece e se adensa quando elementos representativos diretos aparecem
através de performers que simulam um ato sexual frenético – afinal, no plano
narrativo, estamos no reino dionisíaco.
A coreografia se desenvolve entre inúmeros pedaços de carne crua que
se desprendem do corpo dos performers, enquanto a figura duplicada de Dioniso
passeia entre o coro dançante e os corpos mortos e fragmentados das carnes
que começam a tomar conta do palco. O quadro convoca a presença de
elementos alusivos ao prazer (do ato sexual) e a dor (da morte), unindo a
sensualidade (dança) e a violência (carne) que habitam o mesmo espaço do
corpo. A potência sexual que gera vida é colocada no mesmo nível daquela que
gera a morte. A carne crua tinge as roupas e corpos dos performers de sangue,
que não se furtam nunca do prazer de dançar. Ao mesmo tempo em que a
sensualidade aproxima a audiência dos corpos quase nus e atléticos, a
presença do sangue e da carne morta pode afastar. Destaco que essa condição
de aproximação e afastamento, de atração e repulsa do que se passa no palco
se torna uma dinâmica explorada em cena71.
As imagens carregam dualidades, o drama se encontra no próprio corpo.
Nos signos que esses corpos anunciam. Um confrontamento físico que revela
sua unidade, mas também seu desmembramento. Do corpo em vida, mas que
contém a morte. A imagem do corpo belo do performer é contrariada pela carne
crua que revela o lado escondido e selvagem. A imagem do “dentro” e do “fora”

71
A carne crua, ainda sugere uma referência às poças de carne reais colocadas em cena por
André Antoine (1858-1943) historicamente em busca de um superealismo, já que é sabido que o
passado teatral é continuamente resgatado e repensado nas obras fabrianas. No campo
temático da tragédia grega ainda não se pode deixar de citar a relação com o sacrifício de
imolação do bode no início dos festivais gregos antigos. Como já dito, sua primeira trilogia
continha a palavra teatro nos títulos: Era de se esperar e prever o que é do teatro, O poder da
loucura teatral e Teatro escrito com “K”.

92

a partir de elementos de mesma matéria, gerando conflito e tensão visual.


Deslocamento que não estaciona no plano energético do corpo, de manipulação
interna de pulsões energéticas contrárias, como modelo do corpo em estado de
conflito, mas no poder contraditório das imagens em sua superfície, dos signos
colocados em cena e que provocam o drama do próprio desejo daquilo que se
quer comunicar. A dança guerreira já citada é outra coreografia em conjunto que
mobiliza movimentos de luta, manipulação de armas imaginárias, golpes de
espada, defesa, ataque e demonstração de força e que se repetem ciclicamente,
acompanhados por sons guturais. E, como já foi dito: a cada aparição, algum
elemento é adicionado, alterando os movimentos iniciais. Ora armaduras da
idade média, que limitam os movimentos, ora os performers precisam realizar a
mesma segurando objetos pesados, ou perigosos, ou ainda, aprisionados dentro
de sacos de dormir.
Por outro lado, a sequência de quadros denominada de Vasedance, que
retorna quatro vezes durante o espetáculo, condiciona a coreografia a
movimentos realizados por corpos bidimensionais, tal quais as figuras dos vasos
antigos gregos. Igualmente, sua forma primeira é desconstruída a cada
aparição, devido a elementos cênicos ou figurinos que nela são agregados.
Esses elementos adicionados à coreografia acabam por revelar condições
físicas sempre diferentes, onde o corpo, a todo o momento, reconfigura-se em
termos anatômicos e rítmicos, em termos fisiológicos.

2.4.5 A performance dos objetos em função do real biológico

As características de teatro laboratório72 são fundamentais para criação


de Fabre. Não somente no que diz respeito ao contexto permanente de
pesquisa, experiência e treinamento do performer, mas em relação a todos os
elementos constituintes da cena. Se algum objeto é introduzido no palco, será
exaustivamente testado, especulado, manipulado, verificadas suas
possibilidades dinâmicas, de resistência, força, capacidade relacional e dialógica

72
Troubleyn Laboratorium, como é chamado a sede do grupo.

93

com os corpos. Um mesmo elemento pode ser utilizado de forma funcional e


prática, de disputa, para defesa e ataque, ser sujeito ou objeto da ação, e todas
as relações lúdicas possíveis com um objeto cênico, sendo constantemente
ressignificado e transformado em algo para o qual ele não foi inicialmente
desenvolvido. Será “laboratoriado” em termos teatrais e performáticos ao longo
dos processos de criação e apresentação dos espetáculos, conferindo a eles um
papel importante que contribui para o alargamento da presença do performer no
campo do real biológico.
O livro O sistema dos objetos, de Jean Baudrillard (2015), constitui
horizonte referencial para análise que se seguirá, pois o autor propõe olhares
sobre os objetos do mundo para além de suas características imediatas, tais
como tamanho, peso e utilidade. Sabe-se que qualquer objeto, ao passar para o
campo cênico, muda sua natureza, sua abordagem. Um objeto no mundo não é
a mesma coisa que um objeto em cena, nos recorda Ubersfeld (2005). Todavia,
para Baudrillard, pensar os objetos é, antes de tudo, organizá-los
intelectualmente, pensar nos tipos de atração que os objetos exercem e que
projeções os indivíduos fazem neles. Nesse sentido, o filósofo nos serve como
referencial para descrever e embasar a maneira que os objetos são
experienciados na cena fabriana, que tipo de ação é exercida sobre eles e com
que objetivos.
Pois os objetos utilizados em cena têm suas funções multiplicadas e
aumentadas em potencial sígnico. Como se a prática já citada da repetição
(tanto dos movimentos do objeto em cena, como a volta constante do mesmo
em diferentes quadros) trouxesse uma incoerência funcional, possibilitando
outras maneiras de utilização dos objetos, desenhando-se todo um “sistema
vivido”, renovado, não essencial a ele. Cada maneira de laboratoriar o objeto é
fonte de provocação de sentidos para o performer e para o espectador. Uma
configuração de forças que dá forma para o espaço cênico. Descrevo, a seguir,
os momentos em que uma “corrente de ferro” é utilizada em cena, nas primeiras
doze horas de espetáculo, para em seguida, realizar as análises.

94

1. Capítulo um, quadro primeiro, denominado Treinamento guerreiro com


correntes (pular corda). Nove performers “pulam corda”, enquanto entoam canto
guerreiro com o refrão: “qual é a dor que mais dói?”. Cada um possui a sua
corrente para realizar esse exercício atlético durante 18 minutos. Em seguida,
todos fazem uma pausa para degustar um picolé, para depois retomar o mesmo
procedimento físico.

2. Capítulo dois, quadro terceiro, denominado Domesticação da serpente por


Ulisses. Um performer vestido com armadura (capacete, colete e caneleiras de
ferro) tem uma corrente na mão. Ele manipula-a para todas as direções e níveis,
explorando suas possibilidades de movimento no espaço durante 10 minutos.

3. Capítulo três, quadro terceiro, denominado Creonte. Um performer acorrenta


seu corpo ao pé da mesa, para depois tentar inutilmente escapar dessa
condição. Ele quer alcançar uma coroa posicionada na frente do palco, enquanto
enuncia um texto em língua italiana. A ação dura 7 minutos.

4. Capítulo três, quadro quinto, denominado Jocasta com bebê acorrentado.


Uma corrente amarrada em uma das extremidades ao quadril da performer, e na
outra, a um performer que está no chão em posição fetal. Ela o arrasta durante 8
minutos, enquanto enuncia um texto, até cair de forma espasmódica.

5. Capítulo seis, quadro sétimo, denominado Sonho úmido. Os zumbidos das


abelhas. Quadro onírico onde o teatro, tomado por fumaça, apresenta
performers que vagam pelo palco em “câmera lenta”, para estabelecer uma
orgia sexual como resposta às flechadas do Cupido. Imagens representacionais
de sexo consentido e estupro se alternam. Uma das performers nua tem uma
corrente enrolada no corpo. O quadro dura 10 minutos.

6. Capítulo sete, quadro segundo, denominado Treinamento guerreiro com


cordas II (puxando a corda). Doze performers se desgastam puxando uma

95

corrente para lados contrários durante 16 minutos. Não há campeões ou


derrotados.

7. Capítulo sete, quadro terceiro, denominado Domesticação da serpente por


Megara. Uma performer, com corrente em mãos, golpeia 10 capacetes que
estão espalhados pelo palco. Ela anda nas pontas dos pés. Ao final, ela enuncia
um texto com duração total de 10 minutos.

No primeiro quadro, a corrente apresenta funcionalidade objetiva: serve


de instrumento para a realização de exercício físico. Como treinamento atlético,
acompanhado de canto guerreiro que se repete. Tarefa, que revela, como já
visto, o processo tático de Fabre: colocar os performers em atividade exaustiva.
As correntes-corda criam sonoridades específicas e ritmadas quando batem ao
chão (som metálico em conjunto), como uma marcha militar e precisa. Uma
corrente pode servir a muitas utilizações, mas, nesse contexto, o elemento ferro
(assim como muitos outros que entrarão em cena como capacetes, caneleiras e
coletes) está relacionado ao mundo bélico e rígido que enclausura os performers
nessa condição formal do movimento e da disciplina. O objeto nas mãos
precisas dos performers realiza movimento circular e repetitivo. Depois de
determinado tempo, os ritmos começam a se acelerar, e dinâmicas circulares de
floreio com a corrente ao lado dos corpos são incluídas. O objeto está a serviço
do teste de resistência e de coordenação motora dos seus praticantes, mas é
fonte geradora de comicidade quando os performers tropeçam nele. Igualmente
à ação de repetição prolongada, o erro é previsto pela passagem do tempo, que
acentua o grau de dificuldade do exercício, provocado pelo cansaço.
A corrente em relação dinâmica com os corpos conforma uma ação
performática no sentido de não fazer aparecer personagens, mas de concentrar
o praticante em realizar determinada atividade em relação com o objeto. Troca
de líquidos com o ambiente amplificam as presenças pelo arfar e suor do
performer que verte para fora do corpo, enquanto a glicose e água do picolé
vertem para dentro. O público se regozija e vibra junto batendo palmas ao final

96

do quadro. A corrente apresenta uma qualidade funcional objetiva ao auxiliar a


realização de tarefa física repetitiva, ao mesmo tempo em que se tem ressaltado
a sua materialidade através da sua multiplicação (nove correntes), da
capacidade sonora específica de seu material explorada de forma ritmada, e do
obstáculo gerador de movimento.

FIGURA 22 - Treinamento guerreiro com cordas.


Crédito: Troubleyn/Divulgação

A corrente, em sua segunda aparição em cena, já não se investe da


função de uma corda para pular. Antes, manuseada de forma controlada e
organizada, fazendo praticamente o mesmo movimento, no quadro já descrito,
agora ganha outras possibilidades de “existir” no espaço. É investigada a
capacidade performativa da corda em si que, solta no espaço por uma das suas
pontas, tem seus movimentos renovados a cada repetição.
Na mão do performer Cédric Charron, adquire possíveis significações,
como o manuseio de uma arma letal, tal qual um chicote que golpeia o espaço
sem trégua. A interação fusional do corpo com o objeto é perceptível, como se
fosse o prolongamento do braço do performer, onde velocidade, peso, direção e
plano se alteram a cada investida. À medida que ele ataca o “vazio” da cena,

97

este também o ataca de volta em movimento de retração da corrente. Cédric


agride e também é agredido pelo próprio movimento anatômico do objeto. Por
vezes, a potência, investida na corrente, por reação, refaz o caminho inverso e
volta a seu corpo enrolando-se no colete de ferro de forma violenta. Ele expulsa
o objeto mas este retorna.
Uma sequência que parece igualmente infinita, desgastando o performer,
ao mesmo tempo em que a criatividade dele impulsiona o objeto sempre de
formas diferentes, fazendo movimentos únicos a cada vez. Certa dose de
improvisação tem espaço, pois o performer manipula este objeto que pode se
voltar contra ele de maneiras inesperadas. A corrente, de movimentos sinuosos
e ondulados, dá forma e sensualiza, por sua vez, o espaço que ganha
visibilidade. Se anteriormente estava a serviço de auxiliar a ação do performer,
agora se transforma e passa a exibir suas capacidades de movimentos e formas
no espaço, sendo ela mesma performada. O objeto é incluído nesse ciclo
pulsional do performer modificando seu corpo e o espaço concomitantemente.
Em sua terceira aparição, o performer Pietro Quadrino é impedido de se
deslocar para além de uma pequena área prevista pelo comprimento da corrente
que o prende pelos pés em direção à mesa. Ele se debate, grita e se joga em
direção à coroa posicionada a sua frente, sem poder alcançá-la. A corrente se
torna o antagonista do quadro, realizando função objetiva que seria esperado
dela: acorrentar, prender ou imobilizar algo ou alguém, coibindo seu movimento
parcialmente. A resistência do material é testada junto com a resistência do
performer, pois ela se tenciona e relaxa alternadamente frente às investidas de
um corpo desejante de fuga. Característica que vai se acentuar no quadro
seguinte.

98

FIGURA 23 – Creonte em Mount Olympus.


Crédito: Captura de vídeo

Na quarta aparição do objeto, ele retorna a ter suas extremidades presas,


mas cada uma delas a um corpo diferente. A corrente adquire a significação de
um cordão umbilical, constantemente tensionado, onde a performer Ivana Jozic,
em pé, precisa realizar certa dose de esforço para caminhar e arrastar outro
performer deitado ao chão, pendurado a seu quadril. O objeto em função de uma
imagem no plano representativo (a mãe e seu pesado filho) e no plano
performático se constitui como ligação indissociável ao obstáculo que pesa,
cansa e impede de se locomover aquele que o carrega.
Na cena de sonho, o objeto se prende em toda a sua extensão ao corpo
da performer. Toma o lugar de uma roupa incômoda, um figurino de ferro que
embala e aprisiona quem o utiliza. Suas capacidades de movimentos são
parciais, e inúmeras leituras advêm do ato simulado de estupro que a performer
sofre (no plano dramatúrgico, a escrava humilhada após a guerra de Tróia, ou
reflexão da condição feminina que tem seus direitos sob constante coerção
masculina, ou ainda, uma espécie de fetichismo perverso).
Na aparição seguinte, a corrente tem aumentado o seu comprimento e
desempenha a função de um “cabo de guerra”. Tipo de esporte que coloca dois
times, um contra o outro, em teste de força, enquanto entoam o canto guerreiro
idêntico ao do primeiro quadro. Mais uma vez, a corrente funciona como corda

99

que testa os limites físicos dos praticantes e os colocam em oposição ao mesmo


tempo. A corrente se coletiviza, pois todos os performers dela se utilizam para
medir forças, tensionando-a permanentemente, medindo o material e
transformando-o em objeto de disputa.

FIGURA 24 - Treinamento guerreiro com cordas - II.


Crédito: Troubleyn/Divulgação

Na última aparição da corrente, nessa primeira etapa de doze horas de


espetáculo, a performer Stella Hottler, enquanto investe o objeto agora em
direção a outros materiais concretos (capacetes), deixa seu corpo se transformar
em função dos movimentos que realiza. Ela se enrosca delicadamente na
corrente, deixando-a tomar forma no seu corpo, para, em seguida, fazê-la
“dançar” pelo espaço. A corrente refaz alguns de seus passos anteriores em
conjunto; prende-se ao corpo da performer, serve de defesa e ataque, tem suas
capacidades anatômicas de movimento exploradas, ao mesmo tempo em que
está a serviço do teste de resistência sobre si e sobre a performer.
Percebe-se que a corrente perfaz um longo caminho visível em cena
possível de divisão: em uma primeira leitura, o caminho dos significados
adquiridos no plano narrativo. Por vezes, diretos: a corrente pula-corda,

100

corrente-cabo de guerra, corrente-figurino, corrente-cordão umbilical e até a


corrente-corrente, por vezes de significados advindos da manipulação subjetiva
do objeto: a corrente-chicote, a corrente-serpente. E, em uma segunda leitura, o
caminho performático do objeto que prevê simultaneamente a exploração de
suas características dinâmicas internas e externas de existir no espaço (peso,
tamanho, resistência, qualidades de movimento), e que provoca a exaustão nos
performers que o utilizam. Dessa forma, os objetos desafiam e provocam
transformações físicas nos performers, ao mesmo tempo em que o objeto
também é desafiado por eles (noção metafórica, pois não tem como “desafiar”
coisas inanimadas e sem sentimentos. Mas, provocam sentimentos quando
interagem com os seres humanos).
Nesse sentido, os objetos auxiliam a explorar ou evidenciar a realidade
orgânica do corpo através de seu uso em cena. Adquirem características de
objetos antropomórficos, encontrando ressonância com a análise do objeto em
Baudrillard:

O homem então acha-se ligado aos objetos ambientes pela mesma


intimidade visceral (guardadas as devidas proporções) que aos órgãos
do próprio corpo e a “característica” do objeto tende sempre
virtualmente à recuperação desta substância por anexação oral e
“assimilação” (BAUDRILLARD, 2015, p. 34).

Com exceção das cenas de sonho, que se constituem como quadros à


parte no espetáculo, a corrente funciona como objeto que força a resistência dos
corpos. Nesse contexto, percebe-se o deslocamento constante de significados
da corrente ao longo do tempo, que entra em relação com narrativa apresentada
do universo trágico grego e com o desejo de explorar as potencialidades desse
objeto em cena. Objeto, ressalta-se, sempre em processo de transformação e
devir. Assim, o objeto é revelado e perpetuado em seu conjunto de aparições.
A corrente estabelece, em diversos níveis, uma condição de
aprisionamento dos performers em cena. Seja obrigando-os a realização de
exercícios físicos intermináveis, fixando-os em condição formal estática, seja
enroscando-se no seu corpo ou aprisionando-os em outros objetos. Ela oprime

101

os performers em determinados momentos, em outros se coloca à disposição


dos mesmos para servir de objeto a ser manipulado e testado. A corrente
condiciona a fisicalidade dos performers e esses condicionam as capacidades
físicas da corrente em um processo circular. O aprisionamento do performer pelo
objeto gera um objetivo físico puro, que faz transbordar o real do corpo.
Por outro lado, Baudrillard descreve o grau de sociabilidade e
socialização do uso dos objetos, podendo ser classificado em privado, familiar,
público ou indiferente. Em cena, um objeto tende a se configurar como objeto
público (sua experimentação é compartilhada coletivamente enquanto
experiência visual). Mas, também, privado (a manipulação concreta é realizada
apenas por quem está em cena). No palco fabriano, esta condição do objeto é
direcionada à socialização que potencializa sua força, pois o coloca em relação
com muitos performers em diferentes situações. Essa exploração da
funcionalidade e seu sistema de relações estabelecido, ressalta a materialidade
concreta do objeto. Confere uma produção de presença e de teatralidade pelos
diferentes graus de manipulação e significação que ganham a cada cena ou
repetição.
Como vimos, em Monte Olympus, a cada uso o objeto se transforma e se
amplia: no primeiro quadro, a presença do objeto se amplia pela sua visibilidade
sonora. No segundo, pela visibilidade espacial que o objeto produz. No terceiro
quadro, pela resistência do material exibido como antagonista da cena,
reprimindo, dificultado os movimentos e deslocamentos dos outros corpos em
cena. No quadro quarto, pela sua capacidade de unir e colocar os corpos em
relação. No quinto, pela sua potência representativa. No quadro seis, pela sua
coletivização do uso em objeto de disputa. Todas essas capacidades de
conexão expõem a potência, reforçam sua presença, expõem sua materialidade.
Ressalto que seria possível inventariar o caminho de outros elementos que
entram em cena em Mount Olympus, como os pedaços de carne crua, lençóis,
pinheiros, facas entre outros. Porém, essa tarefa exaustiva revelaria, por fim,
que os objetos são multifuncionais e apresentam múltiplos significados, sempre
em constante movimento. O que faz ressaltar a concretude desses objetos, pois

102

“o real físico se manifesta quando algo se faz com esse corpo” (BAUDRILLARD,
2015, p.54). Conclui-se que esse investimento investigativo revela uma
produção de presença amplificada que os objetos e performers adquirem
quando explorados em seu potencial semântico, espacial e interacional.
Presença singular que mobiliza o espaço.
Pode-se, ainda perceber, a volta constante desses mesmos materiais ao
longo das vinte quatro horas de Mount Olympus e o desejo de resistência ao
“desaparecimento dos objetos”. Como se a insistência das imagens dessas
coisas em contextos e significados sempre renovados solicitasse deles uma
permanência maior em cena e, por consequência, uma sobrevida alongada
dentro do sistema de consumo dos objetos contemporâneos pautados pela
obsolescência programada. Em um mundo onde produtos para as mais diversas
funções se proliferam no ritmo acelerado das descobertas tecnológicas e de
fabricação em séries, a lógica capitalista faz com que o tempo entre nascimento
e morte de cada objeto manufaturado diminua para dar lugar a outro similar,
fazendo girar a roda econômica de produção e consumo, gerando cada vez mais
produtos descartáveis. Não se quer abrir espaço reflexivo sobre os objetos
pautados por uma polêmica sobre os efeitos colaterais do desenvolvimento
tecnológico e seu impacto no meio ambiente que daí decorre, mas, interessa
ressaltar que as transformações dos objetos em Mount Olympus acontecem
dentro de uma lógica de permanência dos mesmos, que voltam à cena
periodicamente para novamente serem alocados em novas proposições cênicas.
Os objetos sobrevivem, permanecem e continuam a existir e se fazerem
determinantes a cada aparecimento em cena, ressaltando sua materialidade
sensível, dentro de uma modernidade onde “a tendência atual, não é
absolutamente a de resolver tal incoerência [a da lógica de produção e
descarte], mas a de atender às necessidades sucessivas por meio de objetos
novos” (BAUDRILLARD, 2015, p.14). Os objetos em cena se potencializam pela
dispersão do seu uso e fazem nascer uma “linguagem dos objetos” que
colaboram para intensificar a performance biológica.

103

Saliento que esse caminho percorrido até aqui, análise concentrada e


múltipla sobre desenvolvimento do objeto em cena a partir das suas inúmeras
aparições, não esgota as funções e significados que esses adquirem em Mount
Olympus. Há outros que são acoplados ao corpo tais como armaduras,
caneleiras, capacetes e braceletes, outros “embalam” os performers (como os
sacos de dormir), servindo como condicionantes para a realização dos
movimentos em diversas ações durante a peça, impondo restrições físicas para
os performers que têm que lidar com uma limitação espacial real.
Por exemplo, no quadro 2.3 - Domesticação da serpente por Ulisses;
mesmo sendo executada por performer experiente, com domínio técnico sobre
seus movimentos, a proposição performática é de extrema violência e impacto.
Implicando riscos para o performer. Podem-se perceber, ao fim deste quadro, os
hematomas e cortes provocados pelo ferro em contato agressivo com o corpo
(ainda que a ferida, o sangue e o sofrimento sempre tenham caráter duvidoso
em cena). Mas, nessa formalização do seu uso, o objeto propõe determinados
movimentos e proíbe outros, como nos quadros dançados Vasedance, onde a
coreografia foi inscrita a partir das possibilidades de movimentos que esses
objetos permitem ao corpo. Fazem, assim, surgir novas corporalidades e
dinâmicas de movimento. O real dos corpos é colocado em evidência através da
exploração multifuncional dos objetos em cena. As transformações, associações
e relações afetivas que eles adquirem em contato com os corpos, sua
permanência, ampliação, mobilidade, desejos de ação e poder de mobilizar a
materialidade da cena conferem igualmente para eles uma presença acentuada
em Mount Olympus.
Segundo Baudrillard, as maneiras de agir frente aos objetos podem
revelar determinado sistema de condutas sociais (BAUDRILLARD, 2015). Pois
esse ângulo de análise para o autor tem a capacidade de traduzir modalidades
comportamentais que dele resultam. Logo, as funções dadas para os objetos em
cena podem coraborar para o entendimento da relação estabelecida entre
performers e objetos, mas também oferecem pistas para a relação que o próprio
encenador Jan Fabre estabelece com a equipe do Troubleyn, já que “a própria

104

lógica deste jogo (com os objetos) implica na imagem de uma estratégia geral
das relações humanas, de um projeto humano, de um modus vivendi [...]”
(BAUDRILLARD, 2015, p.33). Nessa perspectiva, a maneira que Fabre fricciona
os objetos com os corpos é sintomática do próprio comportamento que o
encenador estabelece com o elenco durante os processos de criação. Assim
como as diversas maneiras que os objetos são testados e explorados, os
performers também são testados e laboratoriados nas mãos do encenador,
como ele mesmo afirma: “Eu considero meus atores e dançarinos como cobaias
para todos os tipos de experiências e pesquisas” (FABRE apud VAN DEN
DRIES, 2005, p.336)73. Acrescento que não somente no momento de
apresentação dos espetáculos, mas no processo de feitura deles, que envolvem
duras etapas de preparação, condicionamento físico e introdução à sua
linguagem formal.
A corrente, como objeto que fixa, prende e impõe condições, em cena,
reflete uma visão de mundo ligado ao trágico grego e ao espaço artístico
fabriano concomitantemente. Essa radicalidade e o constante desafio imposto
ao performer, por vezes, transbordam do campo artístico, invadindo o cotidiano
e as relações profissionais estabelecidas entre elenco e encenador.
Recentemente, uma carta-protesto elaborada por 20 performers, que
participaram ou ainda participam das produções ao lado de Fabre, foi
comunicada à imprensa belga74. O conteúdo relata os exageros, as pressões
físicas e psicológicas que os participantes sofrem decorrente das relações
distorcidas entre encenador e performer, e que confundem arte e vida de forma
negativa: xingamentos, perseguições, humilhações e assédio constituem o teor
das acusações direcionadas ao encenador. Qual são os limites éticos em uma
aprendizagem para alto desempenho? Até que ponto se pode ir nos processos


73
Tradução minha para “je considère aussi mes acteurs et mes danseurs comme des cobayes
pour toutes sortes d’expériences et des recherches”.
74
Jan Fabre negou o conteúdo das acusações, mas alguns espetáculos do Troubleyn tiveram
suas apresentações canceladas durante o ano de 2018 em virtude do protesto gerado pelo
movimento #mee too. Acesso em https://www.rektoverso.be/artikel/open-letter-metoo-and-
troubleynjan-fabre . Último acesso 4 nov. 2018.

105

criativos com humanos? Questões que acabam por interrogar o que se pode ou
não fazer em nome da arte e a qual preço.

2.4.6 Empatia cinestésica e alteração dos sentidos na performance


biológica de Mount Olympus

A performance biológica em Mount Olympus propõe determinadas


experiências de vivência e de desestabilização dos sentidos do espectador. Por
um lado, inscreve-se no movimento amplo da vague flamande em contexto
belga, por outro, conecta-se às práticas performativas e pós-dramáticas que
despontam a partir dos anos 60, onde as fronteiras entre o performativo e o
teatral se encontram em prol do que Féral (2011) denomina de “dilatação
perceptiva” do espectador.
Para adensar a análise do impacto da performance biológica no
espectador, faz-se necessário que se retome, brevemente, os estudos de
empatia cinestésica. A artista pesquisadora Suzan Foster recorda que o
espectador, ao apreciar as sequências de movimentos coreográficos de um
performer, aciona um processo perceptivo denominado de mimetismo interno,
reproduzindo tal intensidade no seu próprio corpo: “uma imitação cinestésica das
progressões musculares tensivas especificadas na coreografia” (FOSTER, 2010,
p.72). Esse processo empático se exemplifica “quando testemunhamos alguém
saboreando um limão e nos franzimos do mesmo modo, ou quando sentimos
impulsos similares quando alguém boceja ou chora” (FOSTER, 2010 p.71). Da
mesma forma, o pesquisador Hubert Godard (2002) formula a noção de empatia
cinestésica ou de contágio gravitacional, que vai tratar do fenômeno que se
passa quando assistimos a uma dança e somos, de certa forma, transportados
para aquela maneira de gerir os esforços dos dançarinos, as relações de
organização do movimento em relação à ação da gravidade. Processos que não
se limitam a uma imitação puramente física, se concordarmos que o sentimento
não está dissociado do físico:

106

O corpo do espectador, apesar de estar tranquilamente em seu


assento, sente o que o corpo dançante está sentindo – os movimentos
de tensão ou expansividade, flutuação ou impulso que compõe o
movimento do dançarino (FOSTER, 2010, p.71).

A empática cinestésica é comumente utilizada para verificar a


reverberação que os movimentos do bailarino provocam no corpo da audiência,
tornando-se úteis para perceber o senso incomum de identificação física que o
teatro multidisciplinar de Fabre provoca. Pois o espectador experimenta
empaticamente não somente o vigor dos movimentos executados, mas a
vertigem, o risco e os afetos dos fluxos energéticos produzidos pelos corpos
fabrianos. Tomemos como exemplo o jogo de choques e equilíbrios entre quatro
performers, no quadro 6.2 - Homem portando quatro mulheres75: para além da
técnica visível impressa nos corpos, as ações carregam a vertigem do risco
incontornável que permeia a ação. O espectador experimenta a tensão do
deslocamento desses corpos de uma posição à outra. Do início da corrida em
rota de colisão, uns aos outros, até o salto que provoca o choque, faz o
observador se equilibrar na poltrona. Os corpos, em seguida, tombam ao chão e
é possível inferir fisicamente o contato violento dos membros que se chocam em
direção às tábuas do palco. A visão do espectador se impõe com uma realidade
física.
Por outro lado, o significado dessa dinâmica física está interrompido ou se
torna menor em prol da atenção empática provocada pela travessia dramática
desses corpos. O olho que teatraliza (FÉRAL, 2015) é também o olho que joga o
que ele vê para dentro do seu corpo; o espectador absorve ou é absorvido por
essa performatividade de risco em potencial. Os corpos se testam através do
atrito violento com tal intensidade, que a possibilidade do espectador denegar
essa performatividade diminui. Torna-se improvável tomar esse embate físico
como pura representação. Mesmo sabendo-se que existe uma técnica para a
realização do jogo e que o risco de acidente seja pequeno, é possível entrever
uma embriaguez cinestésica do espectador.


75
Tradução minha para “Homme portant trois femmes”.

107

Na “mimese interna”, o que se coloca à frente é uma excitante emoção,


que surge instintivamente, ao ver um corpo em frenesi. O desafio dos corpos em
cena encontra a identificação física na audiência, que experimenta junto a eles
as sensações de um corpo colocado nas condições extenuantes de um
dispositivo atlético. Uma série de sensações e impressões determinadas pela
lógica das circunstâncias dadas pela cena se impõe; as relações de instabilidade
dos corpos, o efeito gravitacional, a força do peso exercido uns sobre os outros,
imprimem-se no corpo do espectador. Ele perscruta a altura e os possíveis
danos resultantes da queda, ele escala o corpo dos performers por empatia.

FIGURA 25 - Homem portando três mulheres em Mount Olympus.


Crédito: Captura de vídeo

Já no vortex energético que se forma em torno das inúmeras piruetas das


performers em Clitmenestra e Iphigénia autour de Agamenonn, é a coluna
vertebral das performers que passa a ser o eixo e a correia de transmissão
desse contágio cinético. Era possível ver a plateia ajeitando seu próprio torso na
poltrona ao longo das centenas de giros que se sucediam no palco. A empatia
cinestésica, enquanto processo que correlaciona a capacidade do espectador de
experimentar fisicamente as qualidades corporais do performer, repercute nas

108

emoções decorrentes das dinâmicas musculares pelo “entrelaçamento intrínseco


da ação muscular com a emoção” (SUQUET, 2009, p.58). As descargas
energéticas que tensionam, comprimem e expandem os corpos dos performers
em direção ao espaço, repercutem na plateia. Nessa amplitude perceptiva,
residem perspectivas de caráter político da performance biológica, na medida
em que atravessam possibilidades comunicativas não conectadas a palavra ou a
significados que estariam para além dessa fisicalidade em ação intensa. Práticas
que acentuam processos empáticos contribuem para uma identificação mais
próxima do espectador com a cena, ao contrário do distanciamento do pacto
denegatório. Ações concretas e imediatas favorecem a transparência do meio
(UBERSFELD, 2013), relaxando a denegação do espectador.
Ainda torna-se possível pensar na alteridade no momento de empatia
cinestésica. Pois, ao registrar fisicamente em nosso corpo as sensações e
qualidades físicas do corpo do outro, há um processo de negociação com as
diferenças. A mímese empática copia o corpo do outro dentro de uma margem
experiencial, pois experimenta esse corpo em relação ao seu próprio, já que
cada pessoa responde à força da gravidade e ao equilíbrio de formas distintas,
tendo seu limite de resistência e de movimentos diferentes, assim como
familiaridade ao toque, peso e tensão variáveis.
A empatia cinestésica se torna uma negociação. De forma que um corpo
nunca pode saber se a sensação que ele sente é equivalente à de outro corpo.
O espectador sente fisicamente, reproduz, internaliza o que ele vê, tomando
para si. Essa empatia é equalizada para as percepções individuais de cada
espectador; “com efeito, o abalo sofrido pelo corpo no ato da percepção não é
mecânico mas é função da intenção do desejo que faz o sujeito voltar-se para o
mundo” (SUQUET, 2009, p.34). Mais do que se expressar sem palavras pela via
corporal, a performance biológica, pelo viés daquilo que ela tem de comum a
todos os seres humanos vivos, aponta para as similaridades e diferenças entre
os corpos. O drama dos corpos em cena encontra identificação na audiência,
que experimenta junto aos performers sensações que seriam de qualquer corpo
colocado dentro das condições extenuantes de um dispositivo atlético. A

109

performance biológica favorece a empatia sinestésica do espectador, sendo ela


tributária da fisiologia dos corpos enredados nas situações concretas sobre a
cena, no real time/real action.
Oras, pode-se pensar, por outro lado, em referência em campo teatral,
que na trajetória artística do polonês Jerzi Grotowski (1933-1998) já se
encontrava o desejo de provocar impressões sensoriais diferenciadas nos
espectadores. Retomando Isaacsson em seus estudos acerca do mestre
polonês:

A primeira etapa da fase teatral de seu trabalho (1959-1963), definida


por E. Barba como Teatro psicodinâmico, esteve voltada ao estudo de
elementos capazes de permitir aos atores a construção voluntária de
efeitos corporais impactantes [...] Barba revela, por exemplo, que a
prática da acrobacia estava relacionada à expectativa de que
movimentos acrobáticos provocassem no espectador um choque
perceptivo decorrente da transgressão das leis da física que envolve
esse tipo de prática (ISAACSSON, 2015, p. 197).

Infere-se que esse choque perceptivo é muito semelhante ao que se vem


falando nos parágrafos anteriores em relação à empatia cinestésica, pois,
continuando Issacsson, ao fazer referência do impacto da poética de Grotowski
sobre o espectador, este, ao ser “colocado em estado de tensão, teria
mobilizadas suas energias interiores, teria sua natureza psíquica mais sensível à
comunhão”76 (ISAACSSON, 2015, p.197).
Também é possível perceber o jogo entre a ordem da presença e a
ordem da representação, provocando o que Fischer-Lichte nomeou de
multiestabilidade perceptiva (2013). Pois, “o que num dado momento é
percebido como o corpo fenomenal do ator, é percebido, no instante seguinte,
como uma figura dramática e vice-versa” (2013, p. 19). A passagem de uma à
outra altera a ordem perceptiva estabelecida, exigindo do espectador ajustes de
sentido. Como ao final da dança em êxtase do coro nos primeiros quadros de
Mount Olympus. É entre os corpos belos e em frenesi fisiológico que o performer
Van Ostade surge, representando o deus Dioniso. Muito corpulento e quase nu,


76
As relações entre a poética de Grotowski e Fabre serão retomadas no capítulo 3

110

ele contrasta com o que normalmente se esperaria ver dentro do espectro de


corpos belos do Troubleyn que vinha se apresentando até então.
Ele se destaca do coro musculoso e sua physis causa impacto se
sobressaindo do personagem que representa. A percepção do “seu estar-no-
mundo em sua corporeidade própria” (FISCHER-LICHTE, 2013, p. 17) se altera
com a percepção ficcional. A figura grotesca do sátiro retorna em diversos
momentos, para, igualmente, realizar sua performance biológica, como o quadro
3.8 - Dioniso bodybuilding dance, onde ele dança freneticamente até a exaustão,
a partir de um vocabulário de movimentos inspirados em exercícios de
musculação, contrastando com muito humor seu corpo em relação aos demais.
Nesse caso, a atração alterna entre o personagem e seu corpo específico que
se sobressai a todo instante. Muitas outras performances biológicas provocam
deslizes de sentidos, onde a cada deslocamento uma ordem de percepção se
funda. Pois, em dado momento, a cena se movimenta em função de um
personagem ficcional particular, noutro, o corpo da realidade biológica se
sobressai. Este constante vaivêm coloca, segundo a autora, o perceptor em um
estado intermediário:

Desta forma, o sujeito perceptor encontra-se num umbral – o umbral


que informa e marca a passagem de uma ordem a outra. O
antropólogo Victor Turner chamou o fato de encontrar-se num tal
umbral de “liminaridade” (TURNER, 1969). Por isso, pode-se concluir
que o deslocamento transporta o sujeito perceptor a um estado liminar.
Quando, durante um espetáculo, a percepção muda repetidamente e,
devido a este fato, o espectador é frequentemente transportado a um
estado entre as duas ordens, tal diferença perde cada vez mais sua
pertinência e, ao contrário, a atenção do sujeito que percebe fixa-se na
ruptura da estabilidade, no estado de instabilidade, na passagem.
Quanto mais frequentemente o deslocamento aparece, mais o sujeito
perceptor torna-se um viajante errando entre dois mundos, entre duas
ordens de percepção. Neste processo, ele toma progressivamente
consciência da impossibilidade de controlar essa passagem
(FISCHER-LICHTE, 2013, p. 21).

Esse momento de deslocamento de uma percepção a outra, da ordem da


presença a da representação ou o seu contrário, é particularmente alongado em
Mount Olympus. Isso quando essa passagem é identificável, pois muitas vezes
se torna difícil de renunciar à realidade biológica dos corpos dos performers, os

111

quais acentuam sua presença pelo acionamento de suas fisiologias com tal
intensidade que contaminam todo o resto. Determinados quadros de
animalização tomam tempo justamente no momento de metamorfose. A
passagem do homem ao animal, onde se acentua a performance biológica pela
visibilidade dos músculos e órgãos em configurações assimétricas não usuais,
coincide com a multiestabilidade perceptiva da qual nos fala Fischer-Lichte, pois
o que se vê é a passagem alongada do corpo fenomenal ao corpo simbólico,
momentos nos quais o corpo se apresenta como um amontoado de membros,
órgãos e músculos disformes.
A multiestabilidade perceptiva também se estende em termos espaciais,
acentuando as zonas liminais. Como os quadros denominados de Le rêve
(sonho), que voltam sistematicamente no espetáculo. (Relato que esses quadros
se iniciam, estrategicamente, durante a madrugada, quando a plateia começa a
dar sinais de cansaço, assim como os performers). Quadros compostos de
imagens de caráter onírico, que no contexto do universo trágico ganham
aspectos de pesadelos, como o quadro 1.4 - O sonho da viagem da peruca,
onde uma peruca vai passando lentamente de uma cabeça à outra, incitando
assassinatos, para atormentar o espectador que, entre o cochilo e a
contemplação de universo surreal trágico a sua frente, pode perder
momentaneamente suas referências temporais.
O palco invadido por fumaça, estende-se ao espaço da plateia,
provocando uma desorientação espacial, pois não se enxerga claramente e toda
a sala de espetáculo parece pertencer a um único lugar. O espectador se vê
dentro desse “sonho”. Após alguns minutos, ouve-se, em volume baixo, uma
música atmosférica (dream music77), composta por poucas notas graves, e um
performer sussurrando ao microfone palavras repetidas, descrevendo a imagem
de um corpo cansado que precisa dormir, quase como uma enunciação
hipnótica sugerindo que a plateia abandone seu corpo e “caia no sono”. Os
elementos de fumaça, música monocórdica, movimentos ralentados dos corpos


77
Designação dada pelo compositor de Mount Olympus, Dag Taeldeman, em entrevista durante
o registro em DVD do espetáculo.

112

em cena e texto sussurrado convida o espectador a relaxar. Relato que muitas


pessoas dormem ou alcançam um estado de semiconsciência, ou aquele estado
anterior ao sono, no qual se vaga por entre percepções, entre o sono e o
desperto.
Uma desorientação se produz por indução. A fadiga do espectador, que
resiste na sala, contribui para que ele perca noções espaço-temporais. A “luta”
para se manter acordado ou deixar-se vencer pela sugestão estética que se
apresenta78, leva a certo desempenho performático da plateia. Algumas pessoas
vão à procura de um café, outras se retiram para a sala de descanso, outras
abandonam o espetáculo em definitivo ou voltam para ver os quadros finais,
assim como aquelas que permanecem na plateia acordadas, dormindo sentados
ou alternando esses estados. A audiência tem seus limites de resistência
testados.
Ressalta-se que a violência da performance biológica irrompe em
diferentes graus em Mount Olympus. Da violência introjetada pelos circuitos
energéticos, produzindo dinâmicas de corpos em convulsão, queda e agonia
constante, até a violência entre os corpos que se chocam, agridem e violam uns
aos outros sem pudor. Essa estética gera determinada brutalidade que pode
igualmente desestabilizar os sentidos do espectador. As peças de Fabre sempre
solicitam uma mudança de percepção em relação ao pacto teatral. Pois ele
proporciona espetáculos que lidam com situações ultrapassando o campo da
ficção. Féral, em ensaio denominado de Estética do choque (2012), analisa a
desestabilização dos sentidos do público pelo viés da violência. No caso,
acontecimentos particularmente violentos, os quais irrompem na cena
contemporânea e que “abolem a distância estética para se ficar só com o evento
em cena” (2012, p. 80). A autora toma emprestada a expressão estética choque,
do francês Paul Ardenne, que remete a um tipo de arte do extremo muito comum
a partir dos anos 70, e que “colocam o espectador em negociação com seu
próprio olhar fascinado de voyeur, externalizando sua própria relação com a

78
A encenação não tem a preocupação em manter a atenção contínua dos espectadores através
do aumento ritmico progressivo das sequências. Ao contrário, a ralentação dos quadros se
acentua com o tempo.

113

violência que o habita” (FÉRAL, 2012, p.83). Determinadas cenas violentas,


segundo ela,

[...] instituem o evento, a saída do enquadramento cênico para entrada


em uma esfera da violência brutal e não mediada. Um meio de romper
a ilusão cênica e a representação para favorecer uma presença e
esvaziar a mediação de uma narrativa trazida pelo ator (2012, p. 83).

A reflexão da autora discute o lugar do espectador frente à irrupção de


ações violentas em campo teatral, possibilitando traçar relações entre a
“violência do choque”, analisada por ela, e a “violência do jogo cênico”, proposta
por Fabre. Pois, se as ações violentas as quais o espectador é confrontado em
Mount Olympus, como nos embates físicos, passando por tormentas físicas e
estertores fisiológicos “fazem o teatro sair de seu enquadramento teatral para
criar em cena um evento com uma performatividade violenta” (FÉRAL, 2012, p.
79), por outro lado, essa violência é realizada com a consciência e a completa
adesão dos seus jogadores e dentro de uma margem de previsibilidade em
relação às consequências. Ressalta-se que é uma diferença fundamental em
relação a uma violência imposta, que resulta em morte, como os vídeos
importados para a cena dos quais fala Féral no seu ensaio79. No entanto, as
ações em Mount Olympus não deixam de “abalar as regras de conduta, abolir
censuras e agredir o público” (FÉRAL, 2012, p. 79). O uso da violência em Fabre
se estrutura em jogos cênicos entre os performers quando se trata de uma
violência de colisão entre os corpos, ou são provocados individualmente quando
colocados em circuitos de ações predeterminadas. Procedimento que transfere
uma carga de presença para os performers, e que pode gerar impacto para o
espectador, dado os altos graus de exposição desses corpos.
Por outro lado, compartilhar longa experiência teatral dessa envergadura
acaba por romper limites comumente estabelecidos em termos espaciais e
comportamentais. Sabe-se que o teatro enquanto evento efêmero torna o
espectador uma testemunha de acontecimento único. Todavia, em Mount

79
A autora faz referência a registros videográficos de assassinatos e massacres verídicos
projetados em cena.

114

Olympus, essa condição se acentua dado suas características de obra dilatada.


Uma atitude imersiva do espetáculo pelo tempo vivenciado e compartilhado se
solidifica. Como a dimensão do tempo construído de convívio, que produz uma
ideia de coletividade que ultrapassa os limites da apresentação cênica. Todo o
mecanismo que gira dentro e em torno do palco cria uma zona relacional que
amplifica este dispositivo de encontro que é o teatro. Além de assistirem ao
espetáculo, os espectadores almoçam, jantam e dormem próximos uns dos
outros. Uma pequena comunidade-plateia se desenvolve a cada apresentação,
pois a estrutura de encontros acontece para além da sala de espetáculo. Uma
realização conjunta dos rituais do cotidiano: beber, comer e descansar tem seu
espaço em meio ao acontecimento cênico.
Ainda que a divisão rígida entre palco e plateia não se altere, o tempo e o
espaço organizados nessas condições implicam relações de convívio fora da
sala do espetáculo e aprofundamento da experiência estética. Conversa-se
sobre as percepções vivenciadas na cafeteria e corredores, acompanha-se, via
monitores, o que se passa em cena enquanto se almoça nos food-trucks.
Mecanismo que insiste na relação do público consigo mesmo e que multiplica as
capacidades de encontro.

“A duração estendida autoriza o público francês a transgredir suas


normas estritas de convivência no espaço teatral. Algumas horas após
o início do espetáculo, os espectadores não se inibem em entrar e sair,
sussurrar, comer, beber e dormir na plateia. Ninguém reclama, afinal é
tempo de desmedida. A liberdade de movimentos do espectador se
instaura e faz ecoar o clima das plateias do tempo das grandes
dionisíacas” (BELLOTTO; ISAACSSON, 2019, p.4, no prelo).

As pessoas vão adquirindo certa intimidade, onde determinadas convenções


comportamentais são suspendidas ou alteradas. A resistência da plateia, assim
como a do performer, é testada e desgastada e o esforço de cada espectador
para chegar ao final das 24 horas se torna visível. Esse esforço traz a
materialidade e existência dos espectadores, que se evidencia enquanto
coletividade. Acontece um alargamento dessa experiência de encontro. A plateia
se percebe envolvida em mecanismo teatral que transcende o espaço da caixa
cênica e engloba todo o edifício teatral. Os aspectos empáticos, a

115

multiestabilidade perceptiva e o jogo violento da cena, conectados à


performance biológica e à estrutura de convívio proposta, potencializam a
instabilidade sensorial do espectador e a suspensão das regras de
comportamento em Mount Olympus.

CAPÍTULO III - O treinamento do Troubleyn

O encenador Jan Fabre aciona determinada prática artística para o


trabalho do performer, forjando a noção de “gerreiros da beleza”80, onde as
capacidades dinâmicas dos corpos são experimentadas em procedimentos
físicos intensos durante os períodos de ensaios e apresentações. A repetição de
ações e os movimentos contínuos aliados à imaginação produzem e acumulam
energia, que resulta em dilatação das presenças, plasticidade e organicidade
dos corpos particulares. A noção de “beleza” aplicada ao trabalho do performer
para Fabre, reside em, pelo menos, dois paradoxos em cena:
1) - O desejo de experimentar resistência à tendência do corpo humano
de sucumbir com a passagem do tempo. Um esforço contra a finitude, mesmo
sabendo que ao final esse corpo cansa e cede. Os procedimentos
experimentados pelo performer constituem a metáfora daquele que luta contra o
desaparecimento. Isso implica desenvolver máxima atenção do corpo no tempo
e no espaço, para tomar decisões apropriadas como resposta aos desafios
físicos e mentais que a cena propõe. Através da resiliência frente à repetição


80
“Meus espetáculos se situam no campo de tensão entre a liberdade e o determinismo. Meus
atores e dançarinos são os guerreiros da beleza que, no universo de minhas peças, tem a
coragem de viver perigosamente e de assumir o risco de falhar ou triunfar. Eles sondam os
limites de sua própria natureza, e ultrapassando esse limite, atingem um outro estado de
consciência” (FABRE, apud VAN DEN DRIES 2005, p.343). Tradução minha para “Mes
spetacles se situent dans le champ de tension entre la liberté et le déterminisme, mes acteurs et
mes danseurs sont des guerriers de la beauté qui, dans l’universe de mes pièces, ont le courage
de vivre dangereusement et de prendre le risque de faillir ou de triompher. Ils sondent les limites
de leur propre nature, les dépassent et accèdent à um autre état de conscience”.

116

exaustiva e ao desgaste, que a oposição contra a morte se sobressai. Segundo


Van de Dries, os performers estão a “procura do momento em que, os corpos já
desgastados, acionam uma energia extra” (DRIES, 2005, p. 20)81.
2) - A organização da cena, milimetricamente arranjada e autorreflexiva,
que se perde no processo de realização da mesma pelo excesso e duração. O
performer, envolvido em uma estrutura coreográfica, acaba por escapar dessa
condição imposta pela encenação através de processos energéticos. Momentos
em que se testam os limites do corpo e se sobressai sua organicidade. A
passagem do tempo é elemento fundamental a serviço do desgaste da cena
como visto, que se inicia pela fixação e obsessão em movimentos repetitivos
impostos e, à medida que a cena progride, a desorganização e espontaneidade
encontram seu lugar.
O duplo paradoxo, da forma rígida que se esvai e da resistência que se
exaure, é experimentado pelos performers a cada nova etapa preparatória dos
espetáculos do Troubleyn. Um ritual de iniciação na linguagem do grupo para os
novos integrantes, e uma atualização para aqueles que se mantêm há mais
tempo. Prática artística organizada em treinamento que apresenta as
ferramentas expressivas básicas do Troubleyn, que prepara o performer para
lidar com situações extremas, que muitas vezes ultrapassa o limite do que
poderia ser considerado moral e eticamente suportável para um corpo,
estimulando estes a desenvolverem seu físico para além de suas capacidades
conhecidas. As capacidades sensório-motoras são convocadas através de
disciplina árdua, uma maratona física sem nunca perder a consciência, um
“transe controlado” (VAN DEN DRIES apud FABRE, 2005, p.368)82. O que
aproxima a prática da arte performance, “já que aspira a um processo real, que
impõe emoções e acontece no aqui e agora” (LEHMANN, 2007, p.229). Oras, o
performer em Fabre se oferece como vítima do sacrifício, como se trocasse de
lugar com o bode no processo sacrificial dos antigos festivais dionisíacos. Nesse
sentido, as situações colocadas têm o objetivo da autotransformação do

81
Tradução minha para “ils recherchent le moment où, des corps déjà usés, déclenchent une
énergie supplémentaire”.
82
Idem “transe contrôlée”.

117

performer pela vivência de experiências físicas intensas em cena. Organização e


caos, apolíneo e dionisíaco, violência e afeto; é percorrendo esses polos em
cena que, segundo o encenador, confronta-se com possibilidades de “beleza”.
Prática atravessada pela noção de morte e precariedade da vida, mas também
pela celebração carnavalesca do corpo. Noções desenvolvidas através da
técnica com objetivo de extrair energia criativa única em corpos que rejeitam o
retrato psicológico, concentrando-se na sua materialidade - ou naquilo que o
sentido não consegue transmitir (GUMBRECHT, 2010).
É dentro das sequências de atividades repetitivas (muitos dos exercícios
se organizam em uma série que Fabre denomina de exercícios de Sísifo), que o
performer deve encontrar maneiras vivas para a repetição, extraindo do
movimento diferentes possibilidades de configuração corporal, porque a
mutação física é estimulada para evitar o ato mecânico, concordando com
Artaud que observa que a forma fechada e repetida maquinalmente é morta
(ARTAUD, 2016).

Meu método de trabalho se compõe essencialmente de uma pesquisa


dos múltiplos modos de repetição [...] e suas significações [...] Eu
encontro os ciclos de repetição cativantes[...] Mostrar a transformação
através da repetição está intrinsicamente ligado ao teatro na minha
83
opinião (FABRE apud VAN DEN DRIES, 2005, p. 341) .

Esse conflito físico se traduz igualmente em conflito imaginário. Ação e


imaginação são elementos fundamentais para o performer e se retroalimentam
concomitantemente. A oposição entre os ossos (imóvel e fixo) e músculos e
tendões (móvel e maleável), também no entre o espaço interno do corpo, o lado
de dentro (órgãos e líquidos) e o espaço externo do mesmo, o lado de fora
(pele). Essas pulsões colocadas em diálogo e choque vão ao encontro a
características observadas por Lehmann em relação a determinadas
modalidades teatrais de viés pós-dramáticos, onde o conflito que se passa “entre
os corpos” migra “para os corpos” (LEHMANN, 2007, p.336), para dentro do

83
Tradução minha para “Ma méthode de travail se compose essentiellment d’un recherche des
multiples modes de répétition […] et de leur signification[…] Je trouve les cycles de répétitions
très captivants […] Montrer la transformation à travers la répétition est intrinsèquement lié au
théâtre d’après moi”.

118

corpo. Ainda encontra-se respaldo fisiológico para esse conflito em nível


muscular. Pois, nos movimentos repetidos são acionados os chamados grupos
musculares antagonistas, que funcionam em estado relacional de permanente
oposição:

A maioria das articulações no corpo possuem músculos flexores e


extensores, já que um músculo contraído pode puxar um osso em uma
direção, mas não consegue empurrá-lo de volta. Os pares de músculos
extensor-flexor são denominados de grupos musculares antagonistas,
pois exercem efeitos opostos (SILVERTHORN, 2010, p. 408).

E o Troubleyn utiliza essa via física e imaginária, individual e coletiva,


para traduzir tais conflitos. Choque que permite atingir determinado estado de
liberdade através da experiência e da tentativa de superação das potências
corporais. E, de forma cíclica, volta-se ao paradoxo. Fabre, enquanto performer,
experimentou condições adversas em performances privadas (recordemos que
ele drena seu próprio sangue em Mon sang, mon corp, mon paysage). Ele viveu
fisicamente essa crueldade pessoal, para estimular, posteriormente, condições
semelhantes nos performers. Processo que prevê explorar a fisiologia desses
corpos, aliada a questões que são comumente reprimidas e negadas
socialmente, como a sexualidade, a morte e o grotesco.
Destaco que decorrem dessas características alguns pontos a serem
analisados. Se a resistência e a repetição são percebidas como fardo e “ato
heroico” que faz ultrapassar os limites físicos e psicológicos dos performers -
sendo esse processo colocado em cena – questiono: como esse treinamento se
configura? quais exercícios são utilizados? e, como eles se transformam em
espetáculo? e, também: como o imaginário está a serviço dessa estética
particular? Para sondar respostas, analisam-se os exercícios e improvisações
que formam a base criativa do Troubleyn, ministrado pelos performers
experientes do grupo, assim como se investiga a natureza de tais processos
formativos, partindo do princípio que o treinamento do Troubleyn se filia a outros
encenadores importantes do século XX. A seguir, propõe-se tangenciar a
qualidade desses processos formativos do performer e da cena, a partir do

119

conceito de autopoiese dos biólogos Maturana e Varela, bem como verificar


como esse treinamento se revela no interior do espetáculo Mount Olympus.
Através desse método de análise se verifica a relação entre processos
formativos e a estética teatral. Resulta desse processo, como visto, trabalho
físico intenso, ressaltando aspectos biológicos do corpo, que adquirem valor por
si mesmos, levando à noção de performance biológica. Essa exacerbação
fisiológica é entendida nesta tese como aspectos violentos do real que irrompem
na cena. Aspectos que se alternam com características ficcionais do mundo
trágico grego evocado, onde o teatro do real biológico se constitui como
modalidade que revela a duplicação do acontecimento cênico.

3.1 A experiência formativa sobre si mesmo: o curso From act to acting

A experimentação da passagem “da ação para a atuação” gerou um


método de treinamento estabelecido ao longo do tempo em forma de pedagogia
para o performer contemporâneo. Utilizando exercícios formulados durante os
anos como performer, encenador e desportista, Jan Fabre revisita ações já
realizadas como artista e resgata exercícios advindos da história do teatro, de
Meyerhold a Grotowski84. Também utiliza técnicas de dança e educação física.
Treinamento que tem como base a fisicalidade do performer em conexão com
seu imaginário, evitando o máximo possível a “psicologização” durante essa
prática. O treino de Fabre está conectado com uma poética teatral de
intensidade física e plástica. A partir da exploração desses elementos, fazem
aparecer corporalidades específicas que ressaltam a biologia do ser vivo.
Técnica organizada onde o performer aprende a controlar seu corpo e a utilizar
as ferramentas experienciadas como impulso para a criação. Por isso, para
melhor compreensão do processo criativo do Troubleyn se fez necessário
acesso aos exercícios de base que preparam o performer, possibilitando


84
Como consta no conteúdo programático do curso de formação de performers enviado aos
participantes.

120

descrever a organização dos processos físicos a partir de uma percepção


teórica e prática.
Informo: participei do curso no período de 30 de novembro a 8 de
dezembro de 2017, nos espaços da Ópera de Lyon e Théâtre Celestinas, na
cidade de Lyon - França. O curso foi ministrado por Cédric Charron e Annabelle
Chambon85, performers que fazem parte do Jean Fabre Teaching Group86. Com
duração de 56 horas, reuniu 19 participantes de diversas nacionalidades e áreas
artísticas (principalmente de teatro, dança, performance e circo). Apresentou a
série de exercícios e improvisações, que constituem um guideline preparatório
para o performer desenvolver seu corpo e potencial expressivo. As linhas
direcionais para o performer do século XXI87 estabelecem a base física utilizada
pelo Troubleyn a cada novo processo criativo. Um vocabulário corporal
experimentado através de uma prática que solicita conexão direta entre imagem
e movimento, entre ação e imaginação.
Uma sintaxe corporal visível na elaboração dos espetáculos do grupo e
perceptível em Mount Olympus. Para realizar o curso, a experiência prévia era
necessária. O participante deveria ter tido contato anterior com alguma das
linguagens artísticas citadas, ou seja, o curso de formação para o performer,
correspondido por 22 exercícios e improvisações, não visa a constituir um
método de iniciação para performer sem experiência. Ao contrário, o
conhecimento de práticas corporais anteriores88 era base fundamental, onde o
treinamento do Troubleyn, orientado por linguagem física e energética intensa
deveria dialogar com as experiências anteriores dos praticantes - experiências
heterogêneas dentro de um grupo com corpos e formações muito diferenciados.
Segundo o biólogo Maturana, a construção da realidade de um objeto
analisado se dá a partir do olhar específico do observador que o distingue,
analisa e especifica de acordo com suas percepções aliadas a um recorte

85
Profissionais da cena que trabalham com Fabre a mais de 18 anos e desenvolvem ao lado do
encenador os exercícios que fazem parte do processo formativo dos performers.
86
Com duração diária de sete horas.
87
Como consta no programa do curso.
88
Salvo em suas primeiras produções onde Fabre selecionou pessoas sem experiência artística
em bares e pubs da Antuérpia. Nos espetáculos recentes, ele seleciona apenas bailarinos e
atores profissionais para compor o elenco de suas produções.

121

teórico, deixando, à margem, inúmeras outras possibilidades analíticas


(MATURANA, 2001) . Por outro lado, Merleau-Ponty (2002) cita o espaço próprio
do corpo, pelos órgãos físicos do sentido que se dá a percepção do mundo: “É
por meu corpo que compreendo o outro, assim como é por meu corpo que
percebo coisas” (1999, p. 253). E a análise que se verá a seguir, contou como
elemento-chave, para a percepção do treinamento do Troubleyn, a percepção e
o engajamento do meu corpo nos exercícios analisados, sendo um diferencial
em termos de descrição e análise crítica dessa prática artística. É pelo viés da
experiência física que as análises se constituem nesse capítulo. Experiência
confrontada no momento da escrita com alguns referenciais teóricos que
constituem um recorte de análise. A potência fisiológica impulsionada pela
técnica do Troubleyn foi aferida pelo pesquisador através da experimentação
desses elementos.
A seguir, descreve-se e se analisa os exercícios realizados ao longo do
curso. Transcrições das falas dos professores foram inseridas, seguidos de
comentários advindos da experiência da realização dos mesmos. Enquanto
determinadas proposições foram desenvolvidas e aprofundadas
progressivamente a cada dia, outras foram realizadas uma única vez. Para uma
maior compreensão, estão organizados em três grupos, de acordo com sua
origem, funcionamento e objetivo.

FIGURA 26 - From act to acting - terraço da Ópera de Lyon, 2017.


Crédito: Foto minha

122

No primeiro dia, Cédric e Annabelle informaram sobre as linhas gerais do


curso, orientado por um guideline, o qual não constitui método fechado,
compondo-se de diferentes exercícios de preparação para performers, utilizados
pelo encenador Jan Fabre. Acentuou-se o fato de os exercícios serem calcados
na fisiologia do performer e não na psicologia. Ou seja: ênfase nos processos
físicos pelos quais passam cada participante durante o treinamento. Dessa
forma, quando se utiliza a expressão trabalho interno, refere-se a determinada
dinâmica onde órgãos e músculos são estimulados energeticamente para
provocar reações visíveis na expressividade do performer. "Nós podemos
ensinar esses exercícios porque nós os suamos, nós os jogamos e os
desenvolvemos por 18 anos" (CÉDRIC, 2017). Ressalto que a utilização dos
verbos “suar”, “jogar” e “desenvolver” fornecem pistas acerca dos exercícios
propostos. O primeiro revela a necessidade de vivenciar esse trabalho físico e
seus processos corporais como chave para a compreensão efetiva dos mesmos.
O segundo indica que não estão separados dos aspectos lúdicos vinculados à
arte, enquanto que o terceiro assinala que os exercícios se encontram em
perpétuo movimento e transformação, com vistas a aprimorá-los
constantemente.
Em nenhum momento foi “demonstrado” como fazer os exercícios e
improvisações. Eram fornecidas apenas orientações de como realizá-los através
de disparadores imagéticos e informações acerca do funcionamento do corpo
humano. Pela imagem, chegava-se à forma ou seja: a sugestão imagética
estimulava os participantes a encontrar determinada dinâmica corporal. Como
não há modelo exato a ser seguido, as criações guardam determinadas
originalidades.
Para esse tipo de trabalho não interessa a repetição, a cópia a partir de
uma matriz proposta pelo professor ou diretor. Que cada um descubra
sua própria maneira de fazer os exercícios, percorrendo trajeto
particular e único. Não se trata de reproduzir algo, é sobre você. Você
terá que descobrir uma qualidade performativa nos movimentos que
realiza (ANNABELLE, 2017).

Qualidade performativa, nesse contexto, indica que a experiência da


realização da ação é ponto fundamental. Os trajetos dos movimentos

123

percorridos durante a ação em conexão com o corpo e as emoções que daí


decorre são mais importantes do que a imitação de uma forma. Movimento
definido pela dupla como “percurso físico performático”, motivado pela
descoberta pessoal. O que revela uma experiência formativa sobre si mesmo
para a estética da cena, onde a vivência e consciência do processo é elemento-
chave. "Vai ser muito intenso, mas não sadomasoquista, você deve controlar
seu corpo, conhecer seus limites, e tentaremos superá-los", completou
Annabelle. Apontando para característica fundamental assinalada anteriormente.
O método atravessado por procedimentos onde a técnica pessoal de cada um
era estimulada através dos exercícios até o seu limite, para, a partir dessa linha,
demarcada pela resistência, atingir um território novo e desconhecido a ser
explorado.

FIGURA 27 - Annabelle e Cédric no curso From Act to Acting, 2017.


Crédito: Amélie Dubosc

Uma posição de base para o corpo do participante deveria ser retomada


sempre que estivesse em estado de repouso. Denominada de angel’s feet (pés
de anjo), a postura prevê os pés juntos, posicionados lado a lado, coluna ereta,

124

braços relaxados ao longo do corpo, observando o “alinhamento ósseo”,


“respiração abdominal” e “olhar à frente”. A partir dessa configuração, balanço e
conexão entre corpo e mente se estabelecem sem relaxar completamente o
performer, que investe energia para manter estabilidade nessa postura,
preservando a concentração e controle do corpo. Inspirado na “sexta posição”,
do ballet clássico, Fabre solicita frequentemente dos performers tal configuração
física nos ensaios e na cena. Postura que se relaciona com um corpo em
momento de espera e prontidão antes de iniciar ou ao terminar uma atividade
física.
O texto I am a Mistake (Eu sou um Erro), escrito por Fabre, no ano de
1988, foi fornecido com antecedência por e-mail para os participantes. Um
monólogo caracterizado por blocos de frases a serem experimentados de forma
verborrágica. Começou a ser utilizado junto aos exercícios a partir do quinto dia
do curso. Este deveria acompanhar os diferentes ritmos das ações propostas,
afetando a expressividade da voz, muitas vezes permeadas por emoções que
surgiam do esforço físico repetitivo.

O cansaço pode trazer alguma coisa de real para o corpo - o real time
Nesse sentido as emoções que nascem durante esses momentos são
genuínas, pois surgem pelo movimento, como reações decorrentes das
ações. As ações são realizadas de maneira neutra, onde as emoções
nascem do movimento repetitivo delas (CÉDRIC, 2017).

Dessa forma, infere-se que o real time é consequência do desgaste do


corpo. É pela atividade física repetida que uma dimensão de real ligada à
biologia do corpo aparece.

Grupo A - Exercícios de aquecimento (Warmings up)

Os exercícios reunidos neste grupo constituem a base do treinamento do


Troubleyn. Práticas diárias que progressivamente aumentaram em
complexidade e intensidade física, ocupando mais da metade do curso.
Segundo Annabelle, esta etapa visa a experienciar as principais ferramentas
corporais utilizadas por Fabre para criação dos espetáculos. Um vocabulário

125

físico que instrumentaliza o performer expressivamente, ao mesmo tempo em


que aquece o corpo e a imaginação.

1 - Breathing Deeply (Respirando Profundamente): deitado de costas, no


chão, com uma mão sobre o abdômen e a outra sobre o peito, o performer
inspira e expira sentindo o movimento de contração dessa região, ficando a
seguir por breve momento sem respirar. Técnicas respiratórias do yoga lhe
servem de referência, na medida em que objetiva relaxar corpo e mente através
do controle da respiração na região abdominal. “Rejeite todo o ar para realmente
estar vazio e aproveite o espaço do nada” (CÉDRIC, 2017). Cada etapa
respiratória deveria ser divida entre tempos de 21 segundos. O exercício durou
25 minutos, sendo metodicamente controlado por Annabelle: “oxigenando o
corpo e relaxando-o, inicia-se o processo de escuta interna da dinâmica
respiratória, afinando a concentração e valorizando o contato do corpo com o
solo”. Segundo Cédric, “esse exercício permite a concentração em uma ação
apenas, de caráter existencial, na medida em que respirar é fundamental para
se manter vivo”.
O que, em termos da realidade fisiológica do ser, cada vez que o sangue
passa pelo corpo, ele flui através dos pulmões. O sangue captura, nos alvéolos,
o oxigênio necessário para as células, tornando o processo de oxigenação
celular realizado pelo sistema respiratório vital para trocas e produção de
energia para o corpo (GUYTON; HALL, 2006). Ainda conscientiza-se sobre os
“pontos de tensão” que podem haver no corpo, em fase preparatória para a
jornada criativa. Observa-se que, ao respirar em ritmo predeterminado, coloca-
se uma condição para o performer que precisa respeitar o tempo imposto,
constituindo um desafio físico. Essa “respiração profunda” permite que se “abra
espaço” entre os órgãos internos, na medida em que o ar entra no corpo,
expandindo-o. Exercício que foi aumentando o tempo de cada etapa respiratória
nos dias seguintes, com a posterior introdução de sonoridades vocais. Observa-
se que o processo respiratório é modificado a cada vez: o que aparenta ser
constante repetição diária, revela-se como alteração contínua.

126

Essa condição básica respiratória é frequentemente retomada na posição


vertical (combinada com a posição angel’s feet), no pequeno intervalo entre os
exercícios que envolvem maior esforço físico. Tática utilizada para evitar a
hiperventilação do respirar rápido, retomando o fôlego e o reestabelecimento do
centro do corpo do performer rapidamente. Controle dos processos respiratórios,
relaxamento físico e mental, consciência dos movimentos internos dos órgãos,
concentração e resistência, relação da inspiração com a dinâmica da vida e da
expiração com a morte; pontos que em exercício de base são ressaltados como
elementos fundamentais para a cena.

FIGURA 28 - Breathing deeply, com a performer Marina Kaptjin.


Crédito: Troubleyn/Divulgação

2 - Star and Fetos (Estrela e Feto): A partir da posição anterior, o performer


realiza uma dinâmica de movimentos simples sugeridos por imagens. O primeiro
movimento consiste em deslocar o corpo para a “posição fetal”, mantendo a
respiração profunda. A seguir, retomar a posição inicial com as costas no chão,
agora com os braços e pernas abertas em 45 graus, como a figura do “homem
vetruviano”, de Leonardo da Vinci, ou uma “estrela”.

127

FIGURA 29 - Vetores de compressão e expansão (estrela e feto).


Crédito: Desenho meu

Essas imagens devem se alternar no corpo, solicitando movimentos


distintos: o primeiro de contração do corpo, comprimindo-o no menor espaço
possível, com pernas, braços e coluna dobrados e próximos do corpo, e a seguir
o de expansão, onde este se “abre” distanciando seus membros. Dinâmica que
solicita dois movimentos diametralmente opostos: contração e alongamento se
alternam, como um “coração que bate”. Duas possibilidades físicas de ocupar o
espaço em curto período de tempo e com movimentos reduzidos. Acontece a
transformação na direção do esforço em cada posição. Uma maneira eficiente
de aquecer o corpo e ao mesmo tempo solicitar dele uma transformação, uma
metamorfose rápida. Toma-se consciência das extremidades do corpo ao
mesmo tempo em que movimenta uma energia corporal que na “posição fetal”
se mantém concentrada, e na “estrela”, irradia. Assim como a memória ou
imaginação passeia de uma imagem à outra (da estrela ao feto), o corpo
responde fazendo a passagem de uma configuração corporal à outra.
Se, no primeiro exercício proposto (breathing deeply), “aquece” os órgãos
internos e os coloca em movimento pela respiração, em star and fetos os
músculos são “aquecidos” pelo movimento de contração física e alongamento,
explosão e implosão do corpo. Foi salientado que todos os exercícios de
warming up servem como ferramentas para o performer utilizar em cena,
ultrapassando o mero aquecimento corporal, e assim, o processo de
aquecimento já se constitui como vocabulário para a composição cênica:

128

Nós esticamos grande, grande, grande, então voltamos para fetos,


ficamos muito pequenos, pequenos. Nós trazemos tudo de volta para
nós mesmos, de forma muito condensada. Reabrimos, fechamos...
Aperte e estique, maior e maior; cada vez mais pequenos. Mude
primeiro lentamente, depois cada vez mais rápido, cada vez mais
violento, explosivo, para fora, dentro, para fora, dentro e fora. Nós
retornamos ao centro e vamos reabrir. Concentre-se na relação entre
as extremidades e o centro. Sem premeditação, estamos aqui, no
momento (ANNABELLE, 2017).

Pela última informação fornecida, percebe-se que a dimensão do


acontecimento no ato de sua realização é reforçada durante os exercícios, pela
constante afirmativa de que o corpo se encontra sempre no “tempo presente”.
Nesse sentido, não somente o corpo cansado é capaz de amplificar sua
presença, mas a consciência do movimento e do seu percurso (processos
interoceptivos)89 no ato de sua realização é outra tática de valorização da
presença física, que ancora o corpo na realidade presente. Soma-se, ainda, o
constante pedido de alteração na dinâmica dos movimentos, evitando - como no
exercício anterior - a repetição mecânica.

3 - Animalizations (Animalizações): Improvisações dirigidas que consistem em


se metamorfosear em determinados animais, objetivando encontrar diferentes
ritmos internos para o corpo, a consciência dos processos exteroceptivos90,
assim como desenvolver maneiras de se movimentar pelo espaço em outra
organização física. Tendo como referências principais as imagens
comportamentais do gato, leão e lagartixa.
Aquecer a imaginação não separada de uma dinâmica corporal. Para
realizar a improvisação, levem em conta os instintos de cada animal,
como o de territorialidade, grupo, defesa ou ataque, assim como a
utilização do faro e de sonoridades características dos animais
(CÉDRIC, 2017).

Inicia-se a relação com os demais participantes, já que os exercícios


anteriores eram praticados de forma individual e não interativa. Aquecimento
que sensibiliza o corpo com vistas a perceber a si e aos outros no espaço. A
dificuldade, nessa sequência de improvisações, foi manter as dinâmicas para

89
Relativo à sensibilidade a estímulos e variações no interior do corpo.
90
A capacidade através da qual o indivíduo entra em contato com estímulos imediatos presentes
no ambiente circundante.

129

cada animal, tendo em vista que as improvisações duravam certa quantidade de


tempo sem intervalo entre um e outro, solicitando uma resistência física desde o
primeiro animal experienciado. A necessidade de não condicionar o corpo em
uma mesma dinâmica de movimentos também se constitui como desafio,
ultrapassado depois de muitos ciclos de improvisação ao longo dos dias.

O gato: Exercício inspirado em Jerzi Grotowsky (1933-1999), segundo Cédric.


Consiste em metamorfosear o corpo em um gato, onde interessa menos
mimetizar o animal, mas procurar “as energias que o traduzem”, tendo o
comportamento do felino como referência. A transformação do corpo do
exercício anterior para o gato deveria ser lenta e orgânica, iniciando-se por uma
sessão de limpeza do corpo com a língua. A proposição se complexifica,
solicitando que se faça a higiene em partes de difícil acesso como lamber as
costas e as pernas. O que possibilita alongar os músculos, aquecer e verificar
possibilidades de movimento para as articulações e a sensibilização da pele, já
que como reforçou Cédric, os gatos tendem a roçar seu corpo em outros corpos
e objetos.
A cada dia alguma informação nova era introduzida para o jogo coletivo
se adensar e evitar o processo de mera repetição: a preparação e caça a um
rato imaginário, (incluindo os processos digestivos do animal); doces eram
jogados para o grupo que disputavam o alimento. No quarto dia de prática, era
possível perceber nitidamente a diferença de qualidade de movimentos e
detalhes de cada felino criado, com corpos mais precisos e com diferentes
expressividades de movimento.
Você vai se transformar em um gato, mas articulação por articulação.
Que tipo de gato você quer ser? Um gato de sofá, um gato de rua? [...]
Devemos nos concentrar no esqueleto do gato, a estrutura anatômica
dele é muito flexível [...] Usem a voz, aqueçam as cordas vocais [...]
Tentem ativar todas as partes do corpo [...] Então você pode começar a
conhecer seus colegas [...] Observe como você se locomove no espaço
[...] Um gato tem cauda, bigodes, como você integra essa informação
no corpo? Estude o seu jeito de se mover, de saltar, seja o cientista de
si mesmo [...] tudo serve para a imaginação do artista (ANNABELLE;
CÉDRIC, 2017).

130

FIGURA 30 - Exercício do gato no curso From Act to Acting, 2017


Crédito: Amélie Dubosc

Ao enfatizar as possibilidades de movimento e de relações entre as


diferentes partes do corpo, fragmentando-o a partir de seus membros, estruturas
e órgãos, o exercício ultrapassa a proposição de transformar-se em um animal,
colocando a atenção na pesquisa, origem e possibilidades de descobrir
movimentos corporais nunca realizados antes pelo performer. Rompe-se com a
anatomia conhecida do corpo. A consciência de si no momento do fazer parece
igualmente impedir o ato de mimetizar simplesmente uma imagem de referência,
colocando a dinâmica dos processos corporais em primeiro plano no exercício.

131

FIGURA 31 - Exercício do gato II, no curso From Act to Acting, 2017.


Crédito: Amélie Dubosc

O tigre: A seguir, a metamorfose para esse animal que possui outras


características, como imponência, agressividade e instinto de territorialidade. A
forma física guarda semelhança com o animal anterior de quatro patas, mas a
diferença energética é fundamental, possibilitando a relação do corpo mais
intensa com a voz. É fundamental a percepção do que se transforma em termos
anatômicos durante a passagem da elasticidade do gato para a força do tigre. O
corpo experiencia outras formas de organização muscular. Proposições
relacionais foram lançadas durante as repetições, como definir o líder do grupo
de tigres, assim como o planejamento de ataque e combates entre eles. O
praticante deveria explorar as 3 dimensões espaciais ao seu redor, dos limites
verticais aos horizontais.
Uma tensão física aparece no performer pela ideia de que ele está sob
ataque iminente, aumentando a consciência arquitetônica do corpo. É preciso
estar em estado constante de alerta para reagir imediatamente quando o
impulso para o ataque é dado. Desenvolve-se uma fisicalidade que solicita do
sistema nervoso vigília e uma necessária antecipação mental, pois este precisa
conquistar seu espaço através da sua presença marcante e antever ameaças

132

possíveis. Poderia solicitar-se que o nome da pessoa que estava ao lado fosse
dita rapidamente durante a improvisação: “Fabre repete insistentemente a
expressão comer o espaço, olhos em todas as direções, durante os ensaios”
(ANNABELLE, 2017)91. Percebe-se que a consciência espacial do performer é
desenvolvida pela imaginação e convocação dos instintos animais, ao passo que
a expressão “comer o espaço” revela uma metáfora onde o espaço adquire
expressividade ao se fisicalizar no corpo do performer. Não basta o corpo
ocupar o espaço onde a improvisação acontece, é necessário materializar esse
lugar através do corpo, sendo a referência do tigre (em sua dinâmica intensa,
agressiva, de instinto de bélico e conquista), a improvisação mais próxima para
experimentar o que se entenderia por fisicalizar o espaço.

FIGURA 32 - Exercício do tigre.


Crédito: Troubleyn/Divulgação

Você está se tornando muito mais forte, a estrutura muscular é


diferente. Você foi construído para matar [...] Aumente a força e
agressão, estude como você caminha e corre. Você é o cientista do
seu próprio corpo [...] Ataque outro tigre, sem tocá-lo! [...] Faça tudo
instintivamente, não procure intenção, apenas faça [...] Eu quero ver os
cabelos eriçados, a pele suada, os olhos exorbitantes [...] Trabalhe seu
poder muscular [...] Construa a tensão antes do ataque, não saia do


91
Tradução minha para “eating the space, eyes in all directions”.

133

tigre, mesmo quando estou falando com você [...] Estude seu corpo,
seu peso, seu contato com o solo (ANNABELLE; CÉDRIC, 2017).

Não procurar intenção nesse contexto, significa algo importante na


metodologia dos exercícios, já que não existe uma preparação psicológica que
anteceda a ação. Ao pedir que se construa a tensão antes do ataque, essa
preparação se dá em nível muscular, tencionando-os de maneira específica
antes do movimento final de ataque. O subtexto é o impulso físico que aciona o
movimento. Há uma preparação física ao invés de uma preparação mental - o
que se traduz, em termos metafóricos, como a psicologia do músculo.

A lagartixa: Terceiro animal experienciado. Uma continuação do aquecimento


físico pela imaginação, agora com deslocamentos verticais próximos ao chão e
velocidades que variam do rápido ao lento, passando pela ausência de
movimentos. Foram enfatizadas características como “animal rasteiro e de
sangue frio”, onde a respiração tende a ser diferente para dar conta do fluxo
sanguíneo específico (o ritmo respiratório experimentado no primeiro exercício é
retomado). O performer deve pesquisar formas de fisicalizar a mudança de
temperatura do corpo e seus processos químicos. Movimentos em direções
contrárias à lógica do corpo eram requisitados.
Foram inseridas a caça e a ingestão de um inseto com a intenção de
experimentar a dinâmica interna dos processos digestivos do animal;
experienciar como a língua, garganta, esôfago, estômago e ânus contribuem
para digerir e expulsar o inseto, consistia parte do exercício. Outras vezes, o
inseto ingerido estava envenenado, sendo necessário realizar o processo
inverso da digestão até regurgitar o animal pela boca, investindo em estímulos
voltados para dentro dos órgãos. Outras vezes, as lagartixas se transformavam
no inseto devorado, fazendo aparecer corporalidades e insetos distintos.
Ressalto que esse animal é o que proporciona a maior fragmentação corporal,
na medida em que a alternância dos movimentos acontece de forma súbita e
localizada em partes específicas do corpo. Uma grande demanda de resistência

134

nos músculos dos braços e costas tornava o exercício muitas vezes um desafio
doloroso de resistência.
A noção de metamorfose está sempre presente nas proposições. Assim
como nos animais anteriores, a consciência dinâmica dos momentos de
passagem de um animal a outro era enfatizada. A transformação gradual das
formas, membro por membro, até encontrar a anatomia seguinte. Para Fabre,
experimentar os diferentes animais não está ligado à noção de “mudar de
personagem” ou figurino, mas de transformar o corpo em termos fisiológicos.

Transformação articulação por articulação [...] De um sangue muito


quente [tigre], para um sangue muito frio. Como isso afetará sua
anatomia e suas escolhas? Verifiquem como o lagarto caminha,
respira. Tente aplicar a anatomia do lagarto a sua própria anatomia [...]
Um inseto passa, deve comê-lo, trabalhe com seus órgãos, passe o
inseto para a barriga [...] Não tente fazer as coisas corretas, faça-as [...]
Procure com seu próprio instinto [...] Não seja um pássaro! Eu sou um
lagarto, devo esconder-me. Mais instinto, mais opções radicais
(ANNABELLE; CÉDRIC, 2017).

Retomando princípios biológicos funcionais, segundo Guy e Hall: “Uma


grande parte do sangue bombeado pelo coração também flui através das
paredes do trato gastrointestinal” (2006, p.5), ou seja, improvisações que
envolvem o acionamento do sistema digestivo, em termos fisiológicos,
movimentam grande quantidade de sangue pelo corpo, acelerando o trabalho do
coração. Em certo sentido, todos os órgãos são vitais para o funcionamento
normal do corpo, já que este se constitui como um todo a partir de suas partes.
Todavia, órgãos que acionam e concentram grandes quantidades de fluxos
sanguíneos para gerar processos homeostáticos influenciam intensamente nos
estados físicos alterados que se tornam visíveis pelas veias que se sobressaem,
coloração da pele que se modifica e contração muscular intensa na região
central do corpo.
Pela realização desses exercícios, os comentários dos performers e o
resultado desses procedimentos nos espetáculos Mount Olympus e Belgian
Rules (2017), chega-se a conclusão de que o trabalho da animalização,
fundamental na prática do Troubleyn, coloca-se a serviço de duas funções: a

135

primeira, a de provocar pelo viés do imaginário uma desconstrução dos padrões


lógicos dos movimentos e do alinhamento arquitetônico natural do corpo
humano. Isso se dá pelo resgate da forma física de determinado animal que
serve de inspiração para se investigar outras conformações físicas e qualidades
de movimento. A segunda, a de investigar diferentes possibilidades
comportamentais de contato com o espaço, objetos e outros performers. Regras
comportamentais que ficam à mercê das intensidades instintivas de cada animal.
Desse recuo ao estágio animal, as capacidades perceptivas do performer no
tempo /espaço se amplificam por um lado, e por outro, deixam a descoberto uma
organicidade do corpo reconfigurada. Ambas as consequências contribuem para
uma produção de presença que favorece ao real biológico.

4 - Cleaning the Floor (Limpando o Chão): Exercício que consiste em esfregar


diferentes partes do corpo no chão incessantemente: mãos, braços, pernas,
cabeça, quadril, tronco, costas, ombros, nariz etc. Fragmentar o corpo e fazê-lo
realizar movimentos repetitivos circulares ou retos, pequenos e grandes,
pressionando o chão e utilizando diferentes velocidades e tensões a cada vez.
Na primeira etapa, pede-se que se defina determinada área para realizar a ação
em todas as direções. Na segunda etapa do exercício, o espaço foi limitado em
um deslocamento diagonal para frente e para trás. Esse movimento deveria ser
feito não somente em relação ao chão, mas por todo o espaço, investigando
planos horizontais e verticais. A consciência em utilizar diferentes velocidades,
direções e comprimento de movimentos era constantemente ressaltada, de
forma a alternar as qualidades expressivas da ação e contemplar o espaço em
toda a sua tridimensionalidade. Tendo como objetivo limpar o espaço da
maneira mais efetiva possível com o corpo todo, usando este como instrumento
funcional mais do que como agente psicológico. Exercício de grande
investimento físico e concentração, onde cada participante deveria achar a sua
maneira de executar a ação obsessiva de limpar.

136

FIGURA 33 - Vetores direcionais para diferentes partes Cleaning the Floor.


Crédito: Desenho meu

A certa altura, a imagem da “Lady Macbeth limpando o sangue das mãos


após assassinar o rei” foi sugerida para intensificar o exercício pela
imaginação92. Diversas vezes foi solicitado que a “intenção fosse mais clara”, no
sentido de definir exatamente qual parte do corpo estava efetivamente sendo
acionada. No terceiro dia, incluíram-se frases improvisadas de insulto enquanto
se realizava a ação, imprimindo, por consequência, violência e carga de energia
extra ao exercício, intensificando-o.
Nos dias seguintes, o texto I am a mistake começou a ser utilizado
concomitantemente. Quando algum participante não estava pronunciando o
texto em relação à qualidade do movimento, o exercício era interrompido para
reforçar a importância de corporificar e modificar a intenção da voz de acordo
com a dinâmica do movimento. Evitando, assim, que houvesse separação entre
voz e corpo. A consequência de interpretar o texto, relegando a ação a segundo
plano, resultou na interrupção do uso da palavra, sob a promessa de voltar para
ela depois.
No terceiro dia dessa prática, todos foram colocados lado a lado para
realizar um deslocamento para frente, limpando o “corredor virtual” de forma
metódica e pronunciando o texto, com o objetivo de articulá-lo da melhor forma,
com a consciência de que alguém está olhando à frente. Pronunciar o texto para
diferentes direções, realizando cada movimento de limpeza legível para quem
está vendo. Ou seja, agora, pressupõe-se a presença do observador, o que


92
Referência a personagem presente em Macbeth, de William Shakespeare.

137

modificou as ações no sentido de torná-las mais precisas. Aos poucos, voz e


corpo foram encontrando seu ponto de convergência nos últimos dias do curso.

Nós fazemos a limpeza, limpamos as manchas no chão. Tenham


obsessão com esse trabalho [...] Usamos todas as partes do corpo;
cabelo, língua, nádegas [...] Visualize um espaço que deseja limpar.
Movimentos macro e micro [...] Lady Macbeth quer remover o sangue
das mãos, pois façam o mesmo com o chão (ANNABELLE; CÉDRIC,
2017).

FIGURA 34 - Cleaning the Floor com a performer Ivana Jozic.


Crédito: Troubleyn/Divulgação

5 – Machine House (Casa de Máquinas): Exercício inspirado na biomecânica


do russo Vaslav Meyerhold (1874-1940), segundo Annabelle. O corpo se
transforma em uma máquina de movimentos geométricos ininterruptos com
diferentes velocidades. Exercício que resgata elementos dos anteriores, uma
vez que, o corpo compartimentado deve realizar movimentos em múltiplas
direções, níveis, ritmos e intensidades, acompanhados de sons onomatopeicos.
A velocidade aumenta de acordo com os comandos realizados até a máquina
“explodir”, ou seja: em ritmo frenético e aleatório até a parada brusca e
abandono do corpo ao chão. O texto foi sendo inserido ao exercício ao longo
dos dias.

138

6 - Rice paper and Fire (Papel de arroz e Fogo): se deslocando


aleatoriamente pela sala, até que o chão subitamente se transforma em “papel
de arroz”, solicitando deslocamentos lentos e controlados pelo espaço, de forma
a não rasgar o papel fino e delicado. O que solicitou do corpo máxima atenção e
cuidado ao pisar no chão, retirando o peso e velocidade dos movimentos.
Ao comando, o chão subitamente pega fogo exigindo do corpo mudança
repentina de velocidade e peso para que se possa fugir dessa condição
movendo-se rapidamente. Alternam-se as qualidades do movimento no espaço
radicalmente. Os reflexos são exigidos no seu grau máximo, pois deve trocar
instantaneamente de estado físico, implicando o sistema nervoso dos
participantes pela sugestão imaginativa dos pés sendo queimados. Destaco que
o exercício foi repetido diversas vezes no mesmo dia e nos seguintes. Guarda
relações com a dança japonesa do Butoh (de movimentos lentos e delicados) e
das artes marciais (o estilo Kendo faz parte do treino do Troubleyn, quando não
estão em processos de ensaios).

Agora imagine que o chão está em chamas e que o fogo vai atacar
todo o seu sistema nervoso [...] Você corre como uma galinha sem
cabeça [...] Quando digo fogo, você é como um peixe vivo na grelha, eu
quero ver você receber esse ataque no sistema nervoso [...] Em
seguida, agir como se estivessem andando em papel de arroz. Então
fogo novamente. Faça com extrema precisão e atenção [...] Não se
repita, faça isso no aqui/agora (ANNABELLE; CÉDRIC, 2017).

7 – Buffon (Bufão): Exagerar a expressividade do corpo e utilizar diálogos em


grammelot (comunicação por sons sem palavras) uns com os outros. Foi
ressaltado pesquisar um corpo com movimentos fragmentados que se move em
direções contrárias simultaneamente, com a intenção de desfigurar a imagem do
performer. Improvisação com 40 minutos de duração. Percebeu-se que, com a
passagem do tempo, os corpos foram “se expandindo no espaço” em
decorrência de uma crescente amplitude dos gestos e volume da voz. Como se
as diretrizes propostas para a improvisação fossem se intensificando na medida
em que o corpo cansado hiperventilava, solicitando aumento de energia
empregada.

139

8 - Dying Animal (Animal Morrendo): Improvisação realizada diariamente.


Escolher a imagem de um animal e desenvolvê-lo no espaço, tal quais as
improvisações de animalização. Poderia ser algum já experienciado ou novas
espécies. Após o momento de “laboratório”, cada animal deve correr pelo
espaço, pleno de vitalidade, até ser alvejado subitamente. Inicia-se, então, a
segunda parte do exercício, de longa duração, onde se pesquisa a morte do
animal. Segundo Cédric, “é sobre o tempo que tem a ver com a luta pela vida”.
O corpo deve experimentar diferentes estágios físicos, indo do estertor, até a
respiração final e a morte.
Foi ressaltada a necessidade de incluir as qualidades dos exercícios
anteriores para esse momento crucial. Do corpo que resiste à morte e luta pela
sobrevivência, como o leão, passando pela respiração acelerada e a imobilidade
paciente da lagartixa, a dinâmica corporal do “chão de fogo”, a possibilidade de
comprimir o corpo como na “posição fetal”, ou a flexibilidade do gato, aliado aos
processos físicos internos dos órgãos, como o exercício de regurgitar o inseto
envenenado, e assim por diante. Todos transformados agora para o exercício
proposto, fundamental para a linguagem do corpo em construção. Opõe a
vitalidade física do corpo desejoso de vida, contra a paralisia e inércia que
traduz a morte como característica sempre à espreita nesse universo.
Apresentações individuais para o coletivo foram incluídas ao longo dos dias.

Não seja tímido com a morte [...] Não foquem muito no relacionamento
com os outros, é algo que vem de si mesmo [...] Lembre-se, é uma
batalha contra a morte que o leva ao chão, uma luta contra a gravidade
[...] Explique fisicamente o fenômeno biológico da morte; câimbras,
respiração alterada, taquicardia, sangue subindo para a cabeça etc [...]
Como você faz o último suspiro? Vocês são performers, vocês querem
que as pessoas vejam isso [...] quanto mais intensa a vitalidade, mais
intensa será a morte. Devemos ver a luta pela vida. O espectador
acaba sentindo essa luta [...] Como performer, você faz isso sozinho,
para mostrar para si mesmo primeiro, antes dos outros [...] Eu não
quero ver alguém sincero. Não se preocupe com a noção de
sinceridade do performer; não procuramos o realismo (ANNABELLE;
CÉDRIC, 2017).

140

FIGURA 35 - Exercício Dying Animal, no curso From Act to Acting, 2017.


Crédito: Amélie Dubosc.

9 – Exercise of 6 Emotions (Exercício das 6 Emoções): Com base nos


estudos de Charles Darwin, a partir da obra Expressão das emoções em
homens e animais (1872), que defende a teoria de que as emoções são frutos
do processo evolutivo das espécies, que desenvolveram reações adequadas
para responder as situações da vida, aumentando suas chances de
sobrevivência. Assim, mapeou-se a existência de 6 emoções básicas: medo,
tristeza, alegria, aversão, surpresa e raiva. Essas emoções, no treinamento do
Troubleyn, transformaram-se em exercício onde o performer deveria expressá-
las alternadamente em curto intervalo de tempo – no máximo 5 segundos cada.
A mudança rápida de uma emoção para outra impede que se crie uma
atmosfera ou psicologia para acessar tais emoções, solicitando que o corpo
encontre determinada expressão através de composições físicas intensificadas.
“Duzentos por cento, todo o corpo, todo o corpo, mais aos extremos, mais
intenso” (CÉDRIC, 2017), onde a intensidade física nunca era o suficiente.
Como o tempo é curto e a passagem para a emoção é súbita, o corpo precisa
ser acionado antes de uma elaboração intelectual. “From the feet to the brain”

141

(dos pés à cabeça) era a expressão utilizada para traduzir a ideia de que algo
físico deve se manifestar no corpo anterior à sugestão mental. Era preciso “corte
seco” de uma emoção para outra, onde a diferença física para cada uma deveria
ser visível. Era solicitado criar relações com os demais exercícios, como o do
tigre por exemplo, para acionar emoções de raiva e medo, ou encontrar planos e
configurações físicas diferentes para cada emoção. No primeiro dia, iniciou-se
com 3 emoções (medo, aversão e alegria). Nos dias seguintes, foram
aumentando gradualmente até chegarem as 6 emoções em sequência, evitando
repetir a mesma forma a cada vez que a proposta era retomada.
Os princípios artísticos e a imaginação transitam entre as áreas criativas
distintas, em um ciclo constante de autorreferências, como a expressão utilizada
diversas vezes no curso – from the feet to the brain. Expressão que nomeia uma
instalação de Jan Fabre, de 2008, realizada para o museu de arte
contemporânea, situado em um edifício na cidade de Bregenz (Áustria). A obra
abrange 5 andares com esculturas que remetem, de forma direta ou metafórica,
a partes do corpo humano: pés, barriga, sexo, coração e cérebro. Os pés estão
dissociados do corpo e suspensos no teto da sala (a pele representa a mesma
matéria do cérebro), posição onde deveria estar a cabeça. From the feet to the
brain estimula e coloca à frente a materialidade do corpo e suas possibilidades
de movimentos, interrompendo, retardando ou relegando a atividade psicológica
ou subjetiva para segunda ordem. Inversão, metamorfose e independência dos
processos sensíveis do corpo são valorizadas como procedimento.

142

FIGURA 36 – Perna/cérebro da instalação From the Feet to the Brain.


Crédito: Captura de vídeo/Documentário

10 – The Old Man (O Homem Velho): Alinhados lado a lado, a partir da posição
Angel’s feet, iniciar caminhada lenta até a frente da sala, com duração de dez
minutos, como se o corpo fosse semelhante ao de um velho com 120 anos de
idade, portando a doença de parkinson. Exercício extremamente desgastante,
que solicita esforço constante do corpo. As caminhadas eram meticulosamente
observadas por Cédric e Annabelle, que tocavam nos músculos dos
participantes para ver se estavam contraídos suficientemente para senti-los
tremer internamente.
Em termos fisiológicos, para cada contração muscular do corpo humano é
previsto, em seguida, um relaxamento dessa fibra, ciclo denominado pelos
fisiologistas de “abalo” (SILVERTHORN, 2010, p. 419). Esse abalo é o gerador
da tensão muscular. Quando as fibras musculares não encontram tempo para
relaxar entre um abalo e outro, a pressão constante resulta em uma contração
mais vigorosa do corpo, processo denominado de “somação” (SILVERTHORN,
2010, p. 425). No exercício do old man, a ênfase é na contração de todos os
músculos do corpo em sua máxima potência somatória até fazê-los vibrar. Ao
longo dos dias, o tempo do exercício foi aumentando até chegar aos 30 minutos.

143

Todas as partes do corpo precisavam estar engajadas: sistema nervoso,


circulatório, respiratório e muscular. O mesmo para a voz que era afetada pelos
impulsos físicos.
Ao final de cada caminhada, o estado de fadiga era geral, os músculos
pareciam queimar a partir do seu interior, onde o tempo parecia conservado em
suas fibras. Alguns participantes choravam ou riam descontroladamente.
Segundo Cédric, essa emoção é a única possível para o Troubleyn. Aquela que
nasce provocada por estado corporal intenso. Percebe-se que a emoção
decorrente de um processo físico se difere da emoção decorrente de um
processo pautado pelo imaginário exclusivamente. O objetivo é experienciar
corporalidades específicas, muitas vezes acompanhadas de emoções que são
despertadas pela somação e fadiga. A emoção despertada pela somação faz
essa reverberar no corpo inteiro, dos pés à cabeça. Ao passo que a emoção
resultante de operação puramente mental não interessa para os processos do
grupo, se levar em consideração a já citada expressão from the feet to the brain.

Do interior para o exterior. Cada passo custa a você, cada passo é um


acontecimento [...] Concentre-se no tremor, mas não faça isso demais,
não é dança. Comece as poucos e, em seguida, aumente [...] Você
precisa sair da zona de conforto! (ANNABELLE; CÉDRIC, 2017).

144

FIGURA 37 - Exercício The Old Man em From Act to Acting, 2017.


Crédito: Amélie Dubosc

“Sair da zona de conforto” compreende todo o esforço que se produz


quando o corpo atinge determinado estado de resistência, onde parece não ser
mais possível continuar. A produção desse esforço continuado, esse
acionamento forçado de energia pelo corpo, era incentivado constantemente por
Cédric e Annabelle. Etapa onde a performance fisiológica atinge seu ápice
energético.

Grupo B – Variações Warming up

Grupo de improvisações que constituía a segunda etapa do curso a cada


dia. Algumas foram realizadas apenas uma vez, outras se repetiram no dia
seguinte. Uma espécie de variação dos warmings up na medida em que as
experiências dos exercícios anteriores eram retomadas em outras situações
propostas. Agora com diferentes disparadores imaginários que estimulavam
variações nas dinâmicas corporais já experimentadas.

145

1 - Walking on the Mon (Caminhando na Lua): Caminhando pelo espaço


lentamente, como um astronauta na superfície da lua em gravidade zero. Em
determinado momento, o oxigênio do traje é cortado, e o estado corporal deve
mudar para acompanhar a nova situação de sufocamento. Em seguida, o
oxigênio é restabelecido e a caminhada lenta retomada. Variação realizada
inúmeras vezes para experimentar a mudança física do corpo. Nessa
improvisação coletiva guiada, a transição de um estado corporal para outro
acontece de forma mais lenta, já que a falta de oxigênio afeta o organismo
gradualmente, se comparado com os exercícios de dinâmicas semelhantes
como rice paper and fire e dying animal.

2 – Slow Cam/Electric Shock (Câmera Lenta/Descarga Elétrica): Exercício


composto de duas partes. Caminhando pelo espaço, ao comando, o tempo deve
se “dilatar” e os movimentos do corpo ralentarem, como as imagens em “câmera
lenta”. Essa variação de velocidade é solicitada durante determinado período de
tempo. Em seguida, um segundo comando é introduzido: uma descarga elétrica
deve passar pelo corpo, fazendo-o tremer, indo do estado lento para uma
espécie de convulsão. Essas três qualidades corporais se alternam ao longo do
exercício: caminhar, ralentar e tremer. A improvisação se complexifica na
medida em que novos comandos são solicitados, como diferentes intensidades
de descarga elétrica (110, 1.000 ou 10.000 volts). Após cada ciclo, o texto I am a
mistake deveria ser enunciado de forma sussurrada e articulada lentamente,
contrastando com a fisicalidade alterada dos performers pelas sequências
realizadas.
Apesar das semelhanças entre as dinâmicas corporais desses exercícios,
as imagens sugeridas têm papel fundamental que matizam a qualidade de cada
uma delas. As energias acionadas a cada exercício adquirem texturas
diferentes. Os músculos vibram no exercício do “velho” devido à pressão em
somatória sobre o sistema muscular. Já o tremor acionado pela sugestão de dor,
provocada por “choques elétricos”, fazem-no vibrar com outras tonalidades. São
qualidades diferentes que resultam em corpos energéticos distintos. O mesmo

146

para a ralentação do “caminhar em gravidade zero”, e o caminhar em “câmera


lenta”.

3 - I Hate you I Love you (Eu te Odeio eu te Amo): em duplas, locomover-se


ao redor do outro, ofendendo-o através de insultos (deve-se implicar voz e
corpo) durante 5 minutos. A seguir, elogiar por mais 5 minutos. O exercício das 6
emoções alternadas era o ponto de partida neste contexto.

4 - To Become what you Eat (Se Transformar naquilo que se Come):


Improvisação realizada inúmeras vezes no mesmo dia. Primeiramente, em
grupos de 4 pessoas, em seguida, o grupo todo. Consiste em improvisar um
jantar onde participantes devem comer determinada carne e, aos poucos,
enquanto conversam sobre banalidades do cotidiano, transformam-se
lentamente no animal que comeram. A improvisação segue até a transformação
de cada parte do corpo em sequência se completar. Após o ambiente de
animalização se estabelecer, todos são alvejados, iniciando-se a cena do Dying
animal.

5 - Gangsters: Improvisação que visa a construir uma atmosfera estilo filme de


Gangsters (mafiosos e policiais disfarçados), onde todos estão em “estado de
alerta” constante, pois a qualquer momento algo perigoso pode acontecer. O
objetivo é encontrar um estado de tensão e atenção máxima entre os
participantes e o espaço. Sugeriu-se utilizar a energia do tigre combinados a
movimentos de “câmera lenta” ou de “gravidade zero”.

6 - Prostitutes and Transvestites (Prostitutas e Travestis): Improvisação que


consistia em exibir e vender seu corpo uns para os outros. Constantemente a
energia do gato era solicitada para desenhar o corpo sensual dos participantes.
A seguir, os dois estados corporais experimentados eram colocados juntos
numa mesma improvisação. Os gângsters e as prostitutas, aliados ao texto I am
a mistake em conjunto.

147

7 – Cold Turkey: experimentar os estágios físicos de um viciado em heroína: do


corpo em estado de êxtase após consumir a droga, até o corpo que sofre pela
falta dela, em abstinência. “Usem as dinâmicas corporais combinadas dos
exercícios anteriores”, sugeriu Cédric.

FIGURA 38 - Cold Turkey (abstinência) em From act to acting, 2017.


Crédito: Amélie Dubosc

8 - Vampire (Vampiro): Improvisação em duplas, onde o “vampiro” drena o


sangue da vítima, ganhando vitalidade e energia, enquanto o outro desfalece.
Uma dinâmica que alternava a função a cada nova repetição. Annabelle sugeriu
elementos físicos do exercício do Animal Morrendo para um, e o tigre ou cold
turkey, para o outro.

148

FIGURA 39 - Vampiro em From act to acting, 2017.


Crédito: Amélie Dubosc

Grupo C - Recriação de cenas e improvisações

A Terceira etapa consistia em recriar cenas de espetáculos realizados


pelo grupo, experimentando processos de improvisação que deram origem a
cenas específicas, ou ainda, proposições utilizadas por Fabre durante audições
que ele realiza a cada nova produção.

1 - Strip-tease: o participante escolhe uma música e, durante a dança sensual,


deve tirar uma única peça de roupa. Improvisação realizada nas audições
realizadas por Fabre. Segundo ele, não se trata do nu propriamente, mas da
capacidade de cada performer seduzir a plateia pelo jogo do corpo em
movimento.

149

2 - Devil's party (Festa do Diabo): Improvisação também utilizada nas


audições. Consiste em criar uma figura para o diabo, que combina
características opostas: mistura de homem e animal, masculino e feminino,
erótico e grotesco, vida e morte, a partir dos estados físicos experimentados nos
dias anteriores. Estas figuras criadas em coletivo foram inseridas em ambiente
de festa com música eletrônica durante uma hora.

FIGURA 40 - Devil’s party em From act to acting, 2017.


Crédito: Amélie Dubosc

150

FIGURA 41 - Devil’s party II, em From act to acting, 2017.


Crédito: Amélie Dubosc

3 - Dressing Room (Provador): Improvisação utilizada para criar cenas em


Mount Olympus e Belgiam Rules. Cada participante deve performar 6 figuras
diferentes. Três previamente escolhidas (santo, prostituta, travesti e palhaço) e
outras 2 inspiradas em ícones pop de livre escolha. Ainda: para cada tipo
deveria se escolher duas frases de protesto.
Ao fundo do palco se situava o dressing room com inúmeros acessórios e
roupas dos próprios participantes espalhados pelo chão. Todos despidos lado a
lado, situados à frente do dressing room, ao comando, deveriam escolher peças
de roupas com o objetivo de caracterizar as figuras e apresentá-las, para em
seguida, retornar ao fundo do palco para preparar a figura seguinte. Após a
primeira tentativa, o exercício foi interrompido devido à falta de engajamento
corporal nas proposições, como se a utilização de figuras fixas e a utilização de
figurinos tornassem os corpos engessados numa forma física aquém da força
expressiva que vinha sendo requisitada ao longo do curso. Após inúmeras
tentativas, uma qualidade de presença intensa começou a aparecer, quando
estimulados a utilizar dinâmicas corporais dos exercícios anteriores. Cantores,

151

santos, boxeadores, clowns, bufões entre outras figuras foram sendo


apresentadas e repetidas.
O exercício durou cerca de duas horas. Quando o cansaço tomou conta
das apresentações, tendo em vista o tempo de duração da improvisação,
começaram a aparecer situações extremamente cômicas e corpos mais
desconstruídos, no sentido de que não se assemelhavam aos do cotidiano.
Ainda estimulou-se encontrar ações contraditórias nas figuras, tornando-as mais
complexas. Como o santo recitando trechos da bíblia e masturbando-se ao
mesmo tempo. A qualidade e quantidade de movimentos dos corpos começaram
a adquirir relevo e plasticidade, indo além da caracterização das figuras que, na
maioria das vezes, beiravam o estereótipo. Uma certa presença cativante
começou a emanar dos participantes. Aos poucos, o grotesco foi tomando conta
das apresentações, com desfile de bufões em diferentes qualidades energéticas.
Quando o grotesco aparecia em uma mistura de corporalidades de sentidos
opostos, o potencial expressivo dos corpos aumentava. O receio do ridículo
diminuiu com o tempo, ao passo que o sentido de risco aumentou. Quase ao
final, os personagens se perderam, dando lugar a corpos exauridos e estranhas
figuras, resultado da mistura e contradição entre elas. Segundo Annabelle:

Não se trata de fazer um personagem correto, mas de passar pela


experiência do experimento, resgatando as ferramentas dos exercícios
anteriores. Escolher qual das ferramentas trabalhadas até aqui podem
ser acionadas na hora de apresentar os personagens ou imagens. Por
isso o nome do workshop do ato (da ação) para o personagem. Nessa
perspectiva, o real aparece quando algo interno está sendo trabalhado,
algo de dentro para fora, junto com uma imagem caracterizada.
(ANNABELLE, 2017).

Esse algo de dentro é constituído pela multiplicidade de estados corporais


experimentados nos exercícios. A noção de presença pressupõe a construção
de vocabulário físico e energético. Uma vez apreendido esse léxico, inúmeras
combinações são possíveis para a construção do corpo para a cena. O que
instaura uma presença para além do personagem que se esteja jogando.
Presença expandida no contexto desses exercícios descritos envolve a
visibilidade dos processos orgânicos que se dão durante as improvisações. Tem

152

no processo de exaustão corporal elemento fundamental: suor, lágrimas,


respiração alterada e movimentos dos órgãos internos se tornam visíveis e
audíveis. Aliado a essa dinâmica, a tridimensionalização dos corpos que são
orientados para se movimentarem em todas as direções e planos, assim como a
tridimensionalização das energias que os corpos experimentam, estabelecendo
ritmos e tensões alternados. Os disparadores imagéticos são fundamentais para
acionar o impulso que nasce no corpo. As imagens são sugestões para que o
impulso nasça de dentro para fora; pela organicidade impingida por uma imagem
que aciona o corpo.
A hora de apresentar a composição das figuras, observando o momento
de entrar, sair ou permanecer em cena, foi testada na dinâmica desse jogo e se
constitui de importante momento de entrosamento em grupo. Muito utilizado
para criar as cenas coletivas em Fabre, segundo Annabelle.

4 - Eros/ Tanatos: Improvisação utilizada para a criação coreográfica do solo


Preparatio Mortis (2005). Individualmente, explorar uma sequência contrastante
de movimentos, utilizando o plano alto para movimentos de expansão,
simbolizando a energia da vida e do amor, representada por Eros. E os planos
médio e baixo, com movimentos de contração para Tanatos, simbolizando a
pulsão de sofrimento e morte. Através dessas duas energias díspares,
elaboraram-se coreografias improvisadas, onde a verticalidade do espaço era
experimentada por constantes quedas bruscas e violentas.

FIGURA 42 - A perfomer Annabelle Chambon em Preparatio Mortis


Crédito: Captura de vídeo

5 - Scene Profane and Sacred (Cena Profano e Sagrado): recriação de cena


do espetáculo Orgy of Tolerance (2009) e Mount Olympus. Consiste em uma

153

caminhada do fundo do palco até a frente, realizando movimentos sexuais em


diferentes posições e ritmos, com duração de 15 minutos. Ao chegar à frente, o
suor deveria ser recolhido do corpo e jogado para cima, transformando o
participante em uma espécie de “escultura angelical imóvel”.

FIGURA 43 – Improvisação Profano e Sagrado.


Crédito: Troubleyn /Divulgação

6 - Scene The Knight and the Maiden (Cena O Cavaleiro e a Donzela):


recriação de cena do espetáculo Je Suis Sang (2001). Uma dinâmica onde os
“cavaleiros”, posicionados lado a lado, realizam deslocamento para frente, ao
encontro das “donzelas” que esperam para serem imoladas e carregadas para o
fundo da sala.

154

FIGURA 44 - O Cavaleiro e a Donzela, em From act to acting, 2017.


Crédito: Amélie Dubosc

FIGURA 45 - Cenas do espetáculo Je Suis Sang.


Crédito: Wonge Bergmann

7. Devil’s presentation (Apresentação do Diabo): improvisação individual em


formato arena, com duração de 15 minutos. Construir um corpo para a figura do
“diabo” a partir de uma estrutura dada (acordar do sono profundo/
metamorfosear-se em diabo/envelhecer/voltar ao sono). Momento performático
para se utilizar todas as possibilidades físicas experimentadas durante o curso,
com seus variados estados energéticos, qualidade de movimentos, direções e
planos. Destaco que foi solicitada organicidade no momento de passagem entre
uma energia à outra, que, como em exercícios anteriores, foi trabalhada passo a
passo.
Aqui se tem a síntese ou a reunião de todos os exercícios experienciados
durante o curso. Com uma observância fundamental: aborda-los em total

155

liberdade de ordem, ritmo, composição e de forma não premeditada. A partir de


uma linha espontânea. Ultrapassando nesse sentido os próprios exercícios,
integrando-os a um fluxo ditado pelo corpo.

Figura 46 - Apresentação do Diabo em From act to acting, 2017.


Crédito: Amélie Dubosc

FIGURA 47 - Apresentação do Diabo II em From act to acting, 2017.


Crédito: Amélie Dubosc

156

O treinamento, no final das contas, não objetiva unicamente colocar o


performer “em forma”, preparando-o para enfrentar situações de resistência e
trazer uma presença expandida para a cena. Tampouco se constitui como
vocabulário fechado de movimentos, estanque. Esse vocabulário, como
demonstrado, atinge-se no fazer, porém ele não se esgota, pois não há uma
forma exata a ser descoberta. Na medida em que cada exercício aporta
determinadas qualidades de movimento (impulsionado por imagens), e essas
qualidades foram combinadas de inúmeras maneiras ao longo dos dias, esses
exercícios se consolidam muito mais como procedimentos corporais.
Configuram-se como materiais livres e moduláveis para criação, a serem
utilizados em diferentes estéticas teatrais. Ao realizar os exercícios se
experienciam intensidades corporais prontos para responderem à criação
exigida pela cena.

3.1.1 Influências grotowskianas

O diálogo de Jan Fabre com Jerzi Grotowsky não se esgota ao


contrabandear alguns exercícios para a prática do performer. Outros princípios
do Troubleyn se aproximam do legado do mestre polonês. Torna-se, de fato,
atitude sagaz retomar a uma prática investigativa a partir daquele que guarda
grande relevância à discussão das artes performativas na contemporaneidade,
lugar em que se encontra a prática de Grotowski. Seu legado não será aqui
retomado extensamente, pois interessa averiguar as referências que foram
citadas por Cédric e Annabelle no momento em que realizei o curso, de forma a
acrescentar elementos para a compreensão dos processos envolvidos na
performance biológica.
Um dos pontos a destacar é que a prática de Grotowski “tinha por
pressuposto de base a existência de uma realidade orgânica que engloba e
anima, mas também transcende a realidade que percebemos na vida diária”
(ISAACSSON, 2013, p.194). Nessa busca, pelas bases orgânicas que
ultrapassam a do cotidiano, inscreve-se o desejo de Grotowski de sondar em

157

profundidade o ser humano, tendo o trabalho do performer sobre si mesmo


como partida. Porta de entrada sempre renovada para o aprofundamento
pessoal em torno do desenvolvimento de uma técnica para o ator-performer.
Desejo que o acompanhou desde seus procedimentos metodológicos adotados
no período de 1964 a 1967, no Teatro Laboratório, passando pelas experiências
realizadas no Workcenter, em Pontedera, até suas últimas conferências
proferidas por ele nos anos de 1990. Prática essa que pode permitir que o
performer transcenda a experiência cotidiana, acedendo então a uma
determinada realidade orgânica. Recordamos que organicidade para Grotowski
está ligada ao ato de resgatar o funcionamento original do organismo humano.
Ao conquistar esse estado, o performer pode então afetar a percepção dos
espectadores graças a essa potência orgânica revelada.
A realidade orgânica para Grotowski está intimamente conectada ao
conhecimento e operações estabelecidas entre o interior e o exterior do corpo na
experiência do performer. Procedimento que se adquire através de
determinadas competências técnicas indispensáveis para quem busca essa
condição, esse contato com a verdade do corpo. E, nesse ponto, a performance
fisiológica de Fabre se aproxima ao desejo grotowskiano de resgate do corpo do
performer em seu estado físico primeiro. O “exercício do gato”, utilizado em
ambas as práticas, revela-nos que, para ir de encontro a esse funcionamento
original do ser humano, de fato, é preciso ir além, e fazer um desvio em direção
ao resgate de uma ancestralidade que remete a tempos longínquos do ser
humano: “Nosso corpo é um animal, não podemos esquecer isso. Eu não digo
que somos animais, digo: nosso corpo é um animal” (GROTOWSKI, 1992 apud
ISAACSSON, 2004, p.81). Ao retomar a força dos instintos apurados dos
animais, poder-se-ia então desanestesiar o homem combalido pela
artificialidade, pelas sucessivas máscaras que a força das obrigações do
cotidiano impõe sobre seu corpo. E o que se vê na cena fabriana e se
experimenta no treinamento do Troubleyn é o resgate desse nível vital, biológico
da base da vida, pelo viés dessa animalidade inscrita na ancestralidade do

158

homem, mas esquecida e reprimida pela sociedade moderna. Como aponta


Isaacsson:

O conceito de organicidade se vê seguidamente definido pelo parâmetro


dos comportamentos da criança e do animal (muitas vezes o do gato),
remetendo então a organicidade à realização de algo previamente não
elaborado, à emergência natural de uma corrente de impulsos biológicos
que se encontra, em princípio, bloqueada no homem adulto
(ISAACSSON, 2004, p.81).

Organicidade para Grotowski está diretamente associado a ações reais. E


ações reais são aquelas que apresentam um grau intenso de organicidade
capaz de despertar no espectador intensidade semelhante, de forma que ele
acompanhe a ação a partir do seu interior. Oras, senão encontramos aqui
fenômeno de recepção semelhante ao descrito como “empatia cinestésica”, já
abordado. A busca pela organicidade da ação que acompanhou as pesquisas de
Grotowski só poderia ser alcançada através de um trabalho sobre si mesmo.
Processo de aprendizagem onde o corpo apreende percorrendo o caminho
singular da experiência única, intransferível: “o ensinamento deve ser recebido,
mas a maneira de o aprendiz redescobri-lo só pode ser pessoal [...] o homem do
conhecimento tem a sua disposição o fazer, o doing, e não ideias ou teorias”
(GROTOWSKI, 2015, p. 2).
Grotowski reforça a potência dos instintos e do corpo como lugar de um
entendimento anterior à elaboração intelectual:

O aprendiz luta para entender, reduzir o desconhecido ao conhecido,


para evitar fazer. Pelo simples fato de querer entender, ele resiste. Ele
só pode entender depois de fazer. Ele faz ou não faz. O conhecimento
é uma questão de fazer (GROTOWSKI, 2015, p. 2).

Metodologia pragmática que encontra ecos em Fabre através da já citada


expressão from the feet to the brain, onde se almeja que o intelecto seja o
campo último de envolvimento do movimento que nasce e se desloca no corpo.
O interessante ponto a destacar é justamente o fato de privilegiar o “fazer” como
prática anterior ao processo do “pensar”. Tendo em vista que em ambas as
práticas nomeiam como laboratório as pesquisas sobre o performer (Teatr

159

Laboratorium e Troubleyn Laboratorium). O que constitui um interessante


processo dialético que coloca em confronto a formalidade do treinamento,
espaço onde se adquire uma técnica, com a procura de uma natureza orgânica
nesses processos.

3.1.2 Meyerhold e a Machine House

Durante o curso de formação não se forneceu informações acerca do


encenador russo Meyerhold e sua prática, apenas seu nome foi citado junto à
expressão biomecânica, antes do início do exercício da Machine House.
Todavia, este exercício parece dialogar com a Taylorização da atuação em
Meyerhold (PICON-VALLIN, 1991). Fascinado pelos movimentos da máquina e
pela lógica da fábrica, alguns exercícios da biomecânica para o “ator-operário”
meyerholdiano coincidem com os movimentos geométricos, em estilo staccato
da machine house aplicada pelo Troubleyn. Porém, para Fabre, essa dinâmica
física impulsionada pela imagem da máquina visa a experimentar as
possibilidades de fragmentar o corpo a partir da consciência dos pontos de
articulação (principalmente pulso, cotovelo, ombros, pescoço, quadril, joelhos e
pés) como locais que divisam e iniciam determinado movimento, sem a
participação do corpo na sua totalidade, enquanto Meyerhold estava interessado
na racionalização, economia, objetividade e eficiência dos movimentos
geométricos.
Ao mesmo tempo, determinados exercícios da biomecânica “põe em jogo
a expressão vocal como consequência direta das tensões musculares” (PICON-
VALLIN 1991, p. 69). O que se relaciona diretamente com a inserção gradual do
texto I’m a mistake, de Fabre, tanto na machine house, como nos demais
exercícios do curso. A integração da voz no corpo como resultado do agir, onde
a palavra e a qualidade do movimento devem interagir entre si. Quando se
percebia uma dissociação dessa dinâmica, a expressão “sem cabeças falantes,
por favor” (constante durante o curso) era alertada pelos professores. Ainda, é

160

possível traçar outras aproximações e distanciamentos da prática do Troubleyn


com a do encenador russo:

A biomecânica consistia num sistema de treinamento do ator concebido


por Meyerhold logo após a Revolução Russa de 1917 e visava o
desenvolvimento e a ampliação do vocabulário expressivo do ator.
Meyerhold entendia o ator como fundamento da linguagem artística
teatral. Seria através dos seus movimentos plásticos que seria revelado
todo potencial expressivo do jogo cênico. A expressividade dos
movimentos exigia da parte do ator a passagem por um treinamento
físico exaustivo envolvendo a ginástica, as acrobacias, a dança, a
dança rítmica, o boxe e a esgrima […] (OLIVEIRA, 2008, p. 8).

Do treinamento que envolve exercícios de origens diversas, como visto


acima, Meyerhold resgatou princípios do trabalho do ator na tradição teatral do
ocidente e do oriente, em oposição à “tirania do declamador ou ator-gramofone”
(PICON-VALLIN, 1991, p. 69), típico do início do século passado. A biomecânica
desenvolve a consciência corporal e sua relação com o tempo e o espaço
através de sistema híbrido de treinamento, que leva em consideração uma
abordagem formal, contrária ao movimento espontâneo. O ator polifônico
meyerholdiano faz do agir, do movimento em cena, o elemento preponderante
do teatro, ao mesmo tempo em que o afasta da improvisação sem técnica e da
simples intuição. A insistência na plasticidade e no ritmo do movimento serve de
substituição para a procura da emoção. “É o movimento de um teatro no qual
quem age não é o personagem, mas o ator que o representa [...] Não se trata
nem de reviver, nem de ilustrar, mas de agir para sentir e fazer sentir” (PICON-
VALLIN, 1991, p.21)
É no movimento preciso e treinado que se encontra espaço para o sentir
na técnica de Meyerhold. Assim como para o Troubleyn, a “única emoção
possível” é aquela que nasce de dinâmica física potente, onde a emoção é
reação física provocada por determinada condição corporal. Isaacsson, em
artigo sobre os desafios da arte do ator, esclarece o caminho “do agir ao sentir”
ao refletir sobre a biomecânica:

[…] Meyerhold insiste que a forma não se encerra nela mesma, pois
graças ao que chama de princípio de excitabilidade, a execução do

161

gesto, com o rigor indispensável à precisão, provoca naturalmente a


emergência do sentimento correspondente. Meyerhold, na realidade,
inspira-se na tese do psicólogo William James, cujo exemplo mais
famoso é aquele do urso: eu vejo o urso, eu corro e depois sinto medo.
Isto significa que a emoção passa aqui a ser definida como a
percepção das mudanças fisiológicas provocadas pelo estímulo. Ou
seja, a emoção deixa de ser a causa da ação física, mas seu efeito
(ISAACSSON, 2004, p.79).

A biomecânica treina a consciência arquitetônica do ator através de


exercícios onde o movimento é integrado à forma, aprofundando sua relação
corporal com o espaço da cena que lhe é reservado. O tamanho, a velocidade e
a direção geométrica do movimento realizado estão estreitamente relacionados
à dimensão do espaço em que o ator se encontra, assim como em diálogo
reativo aos movimentos dos outros participantes. Igualmente o Troubleyn se vale
de exercícios que acionam processos exteroceptivos e interoceptivos, utilizando-
se dos exercícios da animalização e seus instintos de territorialidade. Todavia,
aspectos geométricos do corpo, ao contrário da biomecânica, ficam de fora,
assim como os movimentos não são fixados numa forma fechada, mas
estimulados por imagens que sugerem formas variáveis dentro de um espectro,
provocando diferenças corporais de um performer para outro. O rigor em Fabre
durante o treinamento é mais “energético” do que “formal”. Distintas abordagens
para conscientizar princípios perceptivos espaciais semelhantes.
Outro distanciamento a destacar diz respeito ao fato de que a exaustão,
como coloca o pesquisador Oliveira, sobre os exercícios múltiplos aplicados ao
ator meyerholdiano têm o objetivo de prepará-lo em diversos campos do
conhecimento técnico do corpo, tornando-o apto a corresponder à construção de
um ator-máquina treinado para as demandas de uma cena física, imagética e
não psicológica (OLIVEIRA, 2008). Ao passo que em Fabre, a exaustão está
conectada ao desejo de mostrar o próprio processo construtivo da “máquina”
durante a cena, através de exercícios que sinalizam que essa máquina é feita de
ossos, músculos, órgãos, líquidos e peles que se desgastam pelo movimento
excessivo. Pode-se dizer que o Troubleyn Laboratorium, na Antuérpia, desde
2007, está para Fabre, assim como os Estúdios (GVYRM, GVYTM) estavam

162

para Meyerhold, em São Petersburgo, do início do século passado, e o Teatro


Laboratório estava para Grotowski, em Wroclaw, nos anos 60.

3.2 A autopoiese em Troubleyn

A teoria da autopoiese é elemento-chave para o entendimento filosófico93


proposto pelos biólogos chilenos Maturana e Varela, “que tem como tema
central a organização do ser vivo” (1997, p.9) ou o conjunto de relações internas
que o ser vivo possui para que exista como tal. Segundo os autores, para
distinguir e analisar os seres vivos, é preciso levar em consideração a condição
de “entes separados, autônomos, e que existem como unidades independentes”
(1997, p.11). A tarefa central do biólogo passa por explicar e compreender os
seres vivos como sistemas nos quais, seja “no seu acontecer solitário de sua
atuação como unidades autônomas, ou no que se refere aos fenômenos de
convivência com o outro, se dá em/e através de sua relação individual como
entes autônomos” (MATURANA; VARELA, 1997, p.11). Observa-se que a
filosofia proposta se sustenta, em essência, na noção de autonomia do ser vivo.
Na sua capacidade de se autogerar, de sobreviver de forma independente e que
pode constituir fenômenos de convivência94. Para os autores, a vida não teria
sentido fora de si mesma:

o sentido da vida de uma mosca é viver como mosca, mosquear, ser


mosca [...] o sentido da vida de um ser humano é o viver humanamente
ao “ser humano no humanizar”, sendo o homem o resultado de uma
dinâmica não-proposital que funciona em sistema fechado (1997, p.12).

Nesse sentido que se dá a autonomia; as leis que regem o funcionamento


dos seres vivos são elaboradas por este em nível biológico, e estão submetidos
à sua organização autopoiética. A origem dessa compreensão da autonomia e
individualidade do ser enquanto sistema, para Maturana e Varela, deu-se ao

93
“O que é que começa quando começam os seres vivos sobre a terra, e que se tem conservado
desde então? Ou colocado em outras palavras, que classe de sistema é um ser vivo?”
(MATURANA; VARELA, 1997, p.11).
94
Autonomia vinculada a aspectos que se interligam com o meio.

163

analisar um desenho esquemático sobre a relação produtiva circular que existe


entre moléculas dentro da própria célula95, onde se percebe que essa dinâmica
autoprodutiva molecular é que constitui o ser vivo:

Isto é, nesse momento me dei conta de que o que definia e de fato


constituía os seres vivos como entes autônomos que resultavam
autorreferidos em seus simples operar era o fato de que se tratava de
unidades separadas que existiam como tais na contínua realização e
conservação da circularidade produtiva de todos seus componentes, de
maneira tal que tudo que acontecia com eles acontecia na realização e
conservação dessa dinâmica produtiva, que os definia e ao mesmo
tempo os constituía na sua autonomia... O ser vivo ocorre e consiste na
dinâmica de realização de uma rede de transformações e de produções
moleculares, de maneira tal que todas as moléculas produzidas e
transformadas no operar dessa rede fazem parte da rede
(MATURANA; VARELA, 1997, p.14).

Rede de produção e transformação circular dos componentes é a


dinâmica que define e constitui a autonomia do ser vivo. Os autores seguem tal
raciocínio apontando especificidades desse operar enquanto processo:

Ser vivo não se constitui como um conjunto de moléculas, mas uma


dinâmica molecular, um processo que acontece como unidade
separada e singular como resultado do operar e no operar, das
diferentes classes de moléculas que a compõem, em um interjogo de
interações e relações de proximidade que o especificam e realizam
como uma rede fechada de câmbios e sínteses moleculares que
produzem as mesmas classes de moléculas que a constituem,
configurando uma dinâmica que ao mesmo tempo especifica em cada
instante seus limites e extensão (MATURANA;VARELA, 1997, p. 15).

Esse ser autônomo está ligado a um esquema circular de transformações


que organiza o ser vivo e permanece como tal enquanto conserva essa
configuração em nível molecular, assim Maturana e Varela demonstram que
cada um e todos os fenômenos biológicos “surgem no ser vivo do viver como
um sistema que se realiza e existe na contínua produção de si mesmo” (1997,
p.16).


95
No funcionamento da célula, a informação parte tanto do núcleo em direção ao citoplasma,
como o seu movimento inverso, do citoplasma ao núcleo, ambas as direções influenciam na
síntese do material encontrado.

164

A célula constitui-se como um sistema autopoiético, que no seu conjunto


de “células agregadas” formam o ser vivo: o ser pluricelular, a máquina
autopoiética chamado ser vivo. Uma circularidade de componentes que
produzem a si mesmos fazendo com que o vivo seja produto e produtor do seu
operar característico. As diferentes interações entre as células e relações com o
meio ambiente é o que possibilita a diversidade dos seres vivos no planeta. A
autopoiese é processo que ocorre em nível molecular. Todavia, é possível traçar
relações do funcionar da autopoiese fora da molécula, ao acrescentar outros
meios e conexões, reverberando assim em espaço de conversação possível,
como os autores afirmam:

Sistemas autopoeticos não-moleculares, isto é, que existem como


unidades compostas em um âmbito ou domínio não-molecular, porque
possuem outro tipo de componentes, são sistemas autopoieticos de
outra classe, que compartilham com os seres vivos o que tem a ver
com a autopoise, que porém ao existirem em outro domínio possuem
outras características que os torna completamente diferentes. Assim,
por exemplo, é possível que uma cultura seja um sistema autopoietico
que existe em um espaço de conversações, porém é uma cultura, não
um ser vivo (1997, p.15).

Assim, o termo autopoiese alcança terrenos fora da biologia, não sendo,


de fato, novidade a utilização para definições em outros campos do
conhecimento. Todavia, a analogia se torna instrumento elucidativo ao falar de
determinados processos criativos e contribui para a continuidade da reflexão
sobre o real biológico. Nesse sentido, encontram-se aspectos autopoiéticos
tanto na prática de treinamento do Troubleyn, como no espetáculo Mount
Olympus, como será visto a seguir.

A - ser independente e que gera fenômenos de convivência com o outro, se


dá em/e através de sua relação individual como ente autônomo: o performer
em cena lida com tais aspectos autopoiéticos na medida em que o fenômeno de
convivência com o outro, próprio do mecanismo cênico, está presente, ao
mesmo tempo em que ele opera pela constituição de si como ser individual e
independente, ou seja: o treinamento de base do Troubleyn, além de constituir

165

um vocabulário físico para a criação, oportuniza ao performer experimentar


processos pessoais acerca das dinâmicas corporais. Em outras palavras, o
treinamento instrumentaliza o performer em direção a sua emancipação artística
pelo trajeto do conhecer pela experiência. O treinamento é um ambiente
privilegiado para que a autocriação, autodescoberta e preparação do performer
aconteça. Na medida em que, em posse dessa experiência, o performer
potencialmente está apto a utilizá-la em seus processos pessoais de criação e
composição de forma independente. Pois se apodera do que fez, percorre o
caminho da experimentação e do entendimento e pode então, manipular o que
assimilou para si, como visto na seção analítica sobre o treinamento From act to
acting.
Por outro lado, em termos de encenação, os conhecidos “ciclos de
repetição” nunca são exatamente iguais, pois se busca a repetição de
experiências corporais, não da forma simplesmente. O acontecimento, o trajeto
experiencial do fazer se sobrepõe à repetição mecânica. As ações, sejam
individuais ou coletivas, guardam sua autonomia e independência nos
movimentos únicos impressos nos corpos.

B - O sentido da mosca é mosquear: o performer é treinado para encontrar


independência em relação ao meio. Colocado em forma de repetições físicas no
palco que o arrasta para o desgaste, ele busca independência desse meio hostil
que o quer fazer sucumbir, torná-lo “robô” ou “papagaio”. A maneira de encontrar
essa liberdade é preparando seu corpo para condições adversas, fazendo ele
sobrepujar a situação negativa do dispositivo que o testa. As diferentes
interações entre os exercícios que constroem corporalidades, conjuntamente
com a ficção, acessórios cênicos, processos coreográficos (e tudo aquilo que é
colocado em relação com o performer e que o testa e desafia), constituem o
meio ambiente e possibilita a diversidade dos quadros nos espetáculos. O que
atesta a influência do meio como elemento fundamental para a diversidade dos
corpos. O meio ambiente - o palco e suas variações, o campo de atuação do

166

performer, quando entra em relação com os exercícios e corporalidades que daí


nascem, influenciam, alteram e personalizam o trabalho de maneira individual.
A liberdade criativa em cena passa pelo encontrar brechas dentro da
forma para sua expressão pessoal e intransferível. Uma característica das
encenações de Fabre, que permanece para os espetáculos mais recentes,
descortina a procura constante de originalidade e autonomia criativa, através da
análise de Julio Boato para o espetáculo O poder da loucura teatral:

O modus operandi do diretor (variar os detalhes das ações conservando


a estrutura do espetáculo) encontra um paralelo na maneira de atuar de
seus atores: a organização dos movimentos é extremamente precisa, o
espaço é milimetricamente medido e cada posição assinalada no chão
por um adesivo (rigorosamente preto como o palco, de modo que
apenas os atores consigam vê-lo e reconhecê- lo). No entanto, essa
rígida estrutura é criada especialmente para ser animada pela
personalidade do ator, pela sua inventividade e sua vitalidade. A cada
noite os atores devem levar variantes mínimas às suas ações,
reencontrar sua razão de ser e sua necessidade de estar em cena. A
originalidade deve passar através da obrigação para poder brilhar:
“atrás das nuvens, o sol brilha”, eis o que está escrito sobre uma das
paredes do pátio interno de Troubleyn (BOATO, 2013, p. 449).

Paradoxalmente, quando mais se realiza os exercícios em treinamento,


mais a pesquisa sobre si se adensa e a criação se autonomiza, podem se tornar
autocriações pelo mergulho investigativo. Os exercícios são abordados de
diferentes maneiras sob novos pontos de vista a cada vez, reinventando-os a
cada repetição. Quanto mais se encontra espaço para utilizar os exercícios
apresentados de forma combinada no momento da criação, maior liberdade
criativa disponível o performer encontra. Na medida em que as ferramentas
corporais se potencializam no corpo e se multiplicam através das experiências
do fazer.
Os fluxos energéticos deflagrados pelo treinamento permanecem no
corpo e acionam uma dinâmica em constante modificação que ganha sentido na
internalidade do fazer. Na manipulação e continuidade desses pulsos para além
da significação. Nesse sentido poderia até se falar em transe. Mas não um
transe em que se perde a consciência, mas um “transe controlado” que se atinge
ao deixar-se levar pelos fluxos de movimentos que foram acionados durante o

167

treinamento. Deflagrar processos criativos autorais a partir da experimentação


dos princípios abordados em treinamento constitui no final das contas o objetivo
do curso de formação ministrado pelo grupo. Objetivo que se tornou evidente
durante a última sequência de improvisações do treinamento (Devil’s
presentation): por trás da imagem de uma “força diabólica”, como disparo
criativo, o que se apresentou, foi uma livre e criativa combinação de todos os
exercícios anteriores, já transformados eles mesmos, pelos fluxos energéticos
pessoais de cada participante. Estimular a dimensão autônoma do fazer de cada
um é ir de encontro à organização autopoiética intrínseca do ser humano; “o
sentido do performer é performar” (MATURANA; VARELA, 1997, p.17).

C - Circularidade da dinâmica produtiva molecular: as obras do Troubleyn


constituem um sistema onde o performer dentro dele é entendido como um
processo que acontece por fricção molecular, uma dinâmica corporal, uma
configuração energética que especifica a cada vez seus limites e extensões.
Este sistema que se retroalimenta na cena fabriana, através de esforço e
produção de energia circular, funciona como um sistema de Sísifo - circundado
por um espaço que diz respeito ao trajeto do sopé da montanha até seu topo,
onde o performer precisa fazer e refazer o trajeto com a pedra. Percebe-se o
performer como ser que tem uma dinâmica de realização contínua, uma rede de
transferências e produções de corpos e relações. O trabalho físico quer mostrar
os fenômenos biológicos que surgem no viver do ser vivo como um sistema que
se realiza e existe na produção contínua de si mesmo.
O performer em Mount Olympus é resultado de um processo que
acontece nele, sendo este processo singular para cada performer. Os corpos
são resultados do próprio operar do acontecimento colocado em cena. Uma
dinâmica autorreferida. Um interjogo de interações desse corpo com as
inúmeras dinâmicas corporais experimentadas.
Maturana e Varela pensam os fenômenos biológicos sendo a autopoiese
o que se necessita para caracterizar os seres vivos como sistemas autônomos.
Essa noção fenomenal se encontra em diálogo com a poética do encenador, que

168

leva em conta para a encenação o corpo do performer e seus processos


fisioquímicos da vida colocados à frente. A relação com este sistema autônomo
do ser vivo a partir da autopoiese molecular nasce de um corpo que faz aparecer
os fenômenos biológicos acelerando-os e desacelerando-os, reforçando seu
contínuo dinamismo enquanto sistema individual.
A autopoiese se configura em uma auto-organização do ser a partir dos
seus componentes independentes, aproximando-se da prática do Troubleyn na
medida em que os diferentes exercícios estimulam e colocam em evidência uma
fisicalidade que primeiro é decupada em termos orgânicos em seus sistemas de
funcionamento (como visto, experimenta-se separadamente exercícios de
consciência para o sistema respiratório, digestivo, muscular, nervoso, dando
diferentes ênfases para os órgãos corporais), para assim gerar uma
autoprodução organizada do todo a partir da inter-relação de suas partes, uma
organização poética do indivíduo gerado em si e para si.

D - Uma dinâmica molecular, um processo: os exercícios não são um mero


amontoado de práticas em conjunto, mas uma dinâmica onde um exercício
interfere no outro como efeito cascata. Se interrelacionam, possibilitando a
construção de um corpo poético independente, na medida em que a maneira
pessoal de cada um fazer, a maneira de assimilar as dinâmicas descobertas
pelos exercícios na sua formação enquanto performer para a cena se difere de
um para outro. É fazendo e refazendo os exercícios que eles se potencializam
no próprio ato da experiência da repetição em processo. O treinamento acontece
na medida em que ele produz a si mesmo pelas singularidades sobrepostas; as
combinações, as “texturas” provenientes das diferentes combinações entre os
exercícios são infinitas.

3.2.1 Entre o treinamento e a criação

Agora descrevem-se 5 quadros de Mount Olympus, onde se percebe o


vocabulário corporal do Troubleyn se revelando em cena, a partir da execução
dos exercícios experimentados no treinamento do grupo.

169

Capítulo 2, quadro 4, denominado 5 etapas da punição96: em cena 12


performers lado a lado, em posição Angel’s feet, executam sequência
coreografada em conjunto: eles sentam sobre os joelhos, realizam uma
respiração profunda (breathing deeply), e levantam novamente para retomar a
posição de base. A partitura de movimentos é alternada com a enunciação de 3
palavras repetidas 3 vezes em coro (no, fuck, take me). Durante 20 minutos a
sequência progride e se transforma paulatinamente. A unidade coreográfica se
perde juntamente com a sequência de movimentos. As palavras, antes
pronunciadas em uníssono, agora são enunciadas individualmente e sem
ordem. Iniciam-se deslocamentos em linha reta para trás e para frente do palco,
como se as etapas repetidas gerassem energia, “combustível” para o corpo se
movimentar. Com o passar da repetição o coro é liberado no espaço para
deslocamento horizontal, com diferentes posturas corporais que acompanham
as diferentes emoções que nascem da repetição contínua (se nas primeiras
duas etapas a repetição em sequência mobilizam o imaginário e o corpo de
forma controlada, as seguintes são realizadas livremente); se desloca de uma
emoção a outra fisicamente.
A cena se configura a maneira do exercício das 6 emoções (exercise of 6
emotions), descrito e experimentado no curso From act to acting. Dar um passo
à frente, fisicalizar emoções, uma após a outra, e retornar para a posição de
base ao final. Ao transpor o exercício diretamente para o palco, a encenação
revela seu processo de criação em movimento autorreferencial. A pedagogia do
corpo e voz experimentada durante o treinamento para o performer é transposta
para a cena.
A imersão em diferentes emoções é acionada pelo corpo (a repetição
como meio de provocar emoções, que por sua vez, provocam novas alterações
físicas e emocionais). Explora-se a teatralidade das emoções em múltiplas
possibilidades e matizes como reação ao movimento do corpo (from the feet to
the brain). Emoções precedidas por tarefa física. A voltagem corporal se traduz

96
Tradução minha para “5 étapes de la peine”.

170

em tensão emotiva provocada pela repetição enquanto a biologia do corpo é


acionada e colocada em evidência.
As emoções são convocadas e internalizadas pelo movimento físico da
voz, como se a emoção entrasse pela boca e tomasse corpo. Como o exercício
imaginário de ingerir o inseto e realizar os processos digestivos (no “tigre” e
“lagartixa”): as emoções também passam pelo filtro do imaginário. São engolidas
com a força da palavra repetida, passam por processos digestivos e se
transformam em outra emoção. As palavras já perderam seu sentido pela
repetição e se sobressaem enquanto texturas vocais, que se materializam no
espaço por meio do grito e de sons guturais.
O processo imaginativo não se fixa no poder da sugestão mental, ou não
estaciona no domínio do subjetivo, mas se fisicaliza, manifesta-se na matéria.
Na etapa preparatória do performer e no curso de formação já se prevê a
experimentação desse vocabulário físico. Um exercício transformado em
treinamento para os performers, que serve de base para criar o quadro 5 étapes
de la peine, em Mount Olympus.

Capítulo 3 quadro 10, denominado de Édipe: O performer Gustav Koenigs com


os olhos vendados, vaga perdido pela cena. Ele balbucia sentenças em língua
alemã. Como um gago, faz força propositadamente para pronunciar as palavras.
Elas saem rocas, “arranhadas” e quase sem fôlego. Essa dinâmica vocal cansa
o aparelho fonador e por extensão o corpo todo. Ao mesmo tempo, ele produz e
reserva energia internamente, conectando a respiração profunda que ele realiza,
em atividade de contração e relaxamento do corpo alternadamente. Ele agoniza,
tomba, levanta e vaga pelo palco durante 20 minutos. Por trás do lamento
edipiano do seu destino trágico, percebe-se a estrutura do exercício dying
animal sendo experimentada. No quadro anterior, denominado de Coro
gaguejante sem olhos e sem boca97, os performers caminham pelo palco com
fitas coladas na boca. Eles tentam gritar mas a boca está “lacrada”. A ação de
gritar se torna um problema a ser resolvido. Eles precisam executar essa ação,

97
Tradução minha para “Choeur bégayant sans yeux ni bouche”.

171

não interpretar ela, mas realizar uma proposição física concreta ligada a uma
limitação dos sentidos e de funções básicas do corpo (a respiração igualmente
se torna problemática). Trabalhar pelo viés do corpo é trabalhar pelo viés de
proposições físicas não psicológicas ou representacionais. A não ser quando o
quadro muda seu registro em direção à interpretação. Pois como já visto, a
estética cênica em Fabre flerta com as duas linguagens no palco ao mesmo
tempo. Fazer passear de uma para a outra. Ainda que quando se desliza para o
reino da construção de um teatro ficcional, esse “deslize” nunca chega
plenamente ao seu termo. Os performers passeiam por essa zona indefinida
para retornar em seguida para os corpos em ebulição fisiológica. Pode-se dizer
que se substitui a mímese no sentido de representar algo a partir de uma
referência, por uma mimese energética acionada pelo corpo em movimento
abrupto.

Capítulo 4 quadro 3, denominado de Então a morte pode acabar com essa


loucura: o performer repete a frase do título insistentemente enquanto realiza o
exercício Cleanning the Flor acrescido de movimentos sexuais em diferentes
posições e ritmos, tal qual a Scene Profane and Sacred. A voz é modelada por
essas ações que, por sua vez, são modificadas pela força da palavra enunciada.
A ação provocando a palavra e a palavra transformando a ação em um ciclo
particularmente longo.

Capítulo 3 quadro 5, denominado Jocasta com bebê acorrentado98: a performer


Ivana Jozic arrasta outro performer com uma coroa na cabeça, em posição fetal,
acorrentado a seu ventre, durante dez minutos. Ela enuncia aos gritos o
arrependimento e fúria da personagem trágica Jocasta pelas relações sexuais
que teve com Édipo rei sem saber que era seu filho. Após o esforço de arrastar
outro corpo pelo palco, o que se vê é a performer realizando o exercício walk on
the moon, quando subitamente lhe “falta oxigênio no traje”. Ela então agoniza


98
Tradução minha para “Jocaste avec bébé enchaîné”.

172

lentamente, lhe conferindo uma presença intensa pelas qualidades físicas dos
movimentos “internos e externos” do corpo hiperventilado e cansado.
Capítulo 3, quadro 7, denominado Uma noite no exitante bosque dionisíaco99: O
encontro sensual entre os homens e a natureza dionisíaca (representada por
pinheiros reais trazidos à cena), apresenta elementos da Cena do Profano e
Sagrado (Scene Profane and Sacred) e a festa do diabo (Devil’s party). O
quadro se inicia com uma dança patética que simula o ritual de aproximação
entre o performer Kasper Van den Berghe e um pinheiro. Lentamente entram em
cena 8 performers que realizam uma orgia pansexual durante 30 minutos. A
proposição para todos é a mesma, mas cada um mantém sua “personalidade”
em relação à qualidade sexual dos movimentos.


FIGURA 48 - Uma noite no exitante bosque dionisíaco.
Crédito: Troubleyn/Divulgação


99
Tradução minha para “Une nuit dans les excitants bois dionysiens”.

173

CAPÍTULO IV - Rimini Protokoll: suspendendo a denegação em favor do


real

Como abordado até aqui, sabe-se que um dos fatores do fenômeno da


teatralidade é o princípio da denegação. Dessa forma, entende-se que, também,
é através de tal princípio que o espectador pode fruir um espetáculo sem lidar
com as consequências imediatas do que está sendo visto:

É característico da comunicação teatral que o receptor considere a


mensagem como não-real ou mais exatamente como não verdadeira.
Ora, isso é evidente ou pode ser evidente no caso de uma narrativa ou
de um conto (oral ou escrito), em que o relato é expressamente
denotado como imaginário, no caso do teatro, a situação é diferente: o
que figura no lugar cênico é um real concreto, objetos e pessoas cuja
existência concreta ninguém põe em dúvida. Se, por um lado, eles são
seres de existência indiscutível (presos no tecido do real); por outro, se
acham ao mesmo tempo negados, marcados pelo sinal de menos
(UBERSFELD, 2005, p.21).

Pois, como visto nos capítulos anteriores, determinadas modalidades


teatrais suspendem ou diminuem o processo denegatório, fazendo com que o
espectador seja projetado a um espaço artístico fronteiriço onde ele pode tomar
aquilo que ele vê como real, como já analisados na proposta de performance
biológica, do Troubleyn, defendida nesta tese.
No caso do coletivo suíço-alemão Rimini Protokoll a busca por alterar o
pacto teatral, revela o interesse por uma prática artística que se aproxime ao
campo extraficcional, como se entrevê na fala de um dos diretores em
entrevista, para esta pesquisa, “em geral nos interessamos pela realidade, que é
o caso de muitas formas de teatro, mas no nosso caso queremos dar ‘um’ certo
acesso imediato ao real” (KAEGI, 2018). Um modo de dar esse acesso imediato
é a quebra do protocolo implícito na representação, afastando a expectativa de
teatralidade do espectador quando inserido no contexto teatral. Essa quebra
pode ser entendida como uma forma de inverter o “sinal de menos”, que nos fala
Ubersfeld que marcam os participantes e acontecimentos cênicos.

174

A inversão desses códigos estabelecidos, em algumas práticas artísticas,


acaba por se manifestar de forma contundente evitando o uso de atores
profissionais ou texto ficcional, assim como esfumaçando as fronteiras que
separam a representação do espectador. Isso gera diferente posição perceptiva
frente à cena apresentada, forçando a audiência para fora do espírito habitual de
dizer que o que ela vê no teatro é irreal. Dentro dessa chave reflexiva, neste
capítulo, analiso outras estratégias de interrupção da representação no teatro
contemporâneo. Questões que serão norteadoras para adentrarmos na poética
do Rimini Protokoll, a saber: 1) o uso de não atores; 2) a utilização de referencial
verídico como base da construção dos depoimentos apresentados em cena; 3) a
interatividade do espectador e suas distintas possibilidades. Aspectos que serão
abordados e que delimitam determinado pacto perceptivo.
Para verificar tais operações agindo no interior das práticas cênicas, suas
características serão analisadas a partir do percurso criativo multidisforme do
coletivo Rimini Protokoll dando ênfase no espetáculo Sociedade em Construção
(2018). No intuito de qualificar a análise, também será traçada relações
históricas com expoentes do teatro alemão, que aportam elementos que são
resgatados pelo Rimini Protokoll para o desenvolvimento de suas criações.

4.1 Nascimento do coletivo e a origem dos especialistas

A complexa poética do coletivo composto pelos alemães Helgard Haug,


Daniel Wetzel, e pelo suíço Stefan Kaegi se constitui por constelação de ações
artísticas reconhecidas internacionalmente que se estrutura a partir do ano de
2000. Como consta no site oficial100, o objetivo primeiro do Protocolo Rimini “é o
desenvolvimento dos meios teatrais para permitir maneiras incomuns de olhar
para a nossa realidade” (grifo meu). Esse olhar poético para o mundo pode
incluir a utilização de não atores e suas experiências de vida colocados em
situações atípicas através de camadas lúdicas, ficcionais e tecnológicas


100 Site do coletivo: https://www.rimini-protokoll.de/website/de/. Acesso em 2 maio 2019.

175

imbricadas, e que, por vezes, pode convocar o espectador a fazer parte da ação
cênica.
Na Alemanha, o Institute for Applied Theatre Studies at Giessen
University101 é conhecido por combinar teoria e prática teatral contemporânea,
incentivando a produção de teatro experimental desde os anos de 1980.
Inúmeros criadores que despontaram na cena nacional alemã102 frequentaram o
lugar à procura de caminhos teatrais alternativos. Nesse ambiente acadêmico é
comum os experimentos cênicos tencionarem os limites da representação e se
colocarem contra o teatro tradicional. Segundo a pesquisadora alemã Malzacher
(2008), foi lá, durante temporada de estudos no ano de 1997 que o diretor
Stefan Kaegi - que já tinha experiência como jornalista e estudos em artes
plásticas - assistiu ao Peter Heller fala sobre a criação de avicultura (1997), o
que pode ter sido o protótipo para o tipo de teatro o qual seria realizado pelo
futuro coletivo Rimini Protokoll: um experimento que consistia em um homem
falando cerca de uma hora sobre a criação de aves e passando slides
(DREYSSE; MALZACHER, 2008). A dúvida de que se tratava de um profissional
falando sobre seus conhecimentos, ou de um ator representando através de
estilo de atuação não usual, aliado à simplicidade da encenação, gerava uma
zona de tensão entre realidade e ficção ao ponto de confundir os alunos-
espectadores que lhe assistiam.
É nesse contexto criativo que Kaegi vai experimentar ações no campo da
performance art, enquanto escreve radio plays que ele mesmo performa ao vivo
nas rádios locais, distorcendo sua voz através de efeitos com um pedal de delay.
Em seguida ele funda, com um colega - Bernd Ernst -, o grupo Higiene Heute
(Higiene hoje), e juntos realizam produções artísticas utilizando-se em cena
somente de agentes externos ao universo teatral. Como a Conferência Fare
Dodgers (2000), na cidade de Hamburgo, onde reuniram 60 pessoas sem


101
Instituto de Estudos de Teatro Aplicado da Universidade de Giessen. “Concebido segundo o
modelo das drama schools norte-americanas, o ensino simultâneo teórico e prático acentua a
reflexão sobre o lugar do teatro em uma sociedade do espetáculo (FINTER, 2003, p.2).
102
Como os coletivos de performers She She Pop (1998), Showcase Beat Le Mot (1997), e o
dramaturgo e performer René Pollesch, representantes da cena underground alemã desde os
anos 90, e que seguem realizando espetáculos no país.

176

experiências teatrais (do mendigo a um gerente de PNL)103, para conversarem


sobre “sistemas parasitários”. O Higiene Heute também experimentava animais
no palco, sobrepondo à espontaneidade, imprevisibilidade e arbitrariedade
desses, narrativas em off. Em 2001, a dupla reproduziu o encontro histórico
entre embaixadores europeus no Congresso de Viena de 1815 com sessenta
porquinhos da Índia, enquanto em outro trabalho, na instalação Estado - Um
terrário, foi utilizado mais de mil formigas.
Os demais integrantes do futuro coletivo, Helgard Haug e Daniel Wetzel,
realizavam performances desde 1995 no mesmo contexto universitário, sob a
direção do compositor e encenador Heiner Goebells104. Sob o nome de
Ungunstraum (Sonho e espaço de má sorte) as performances revelavam os
mecanismos teatrais e fazia uso de profissionais em determinadas funções
técnicas necessárias à realização das proposições cênicas, permeadas por
máquinas e inventivos aparelhos técnicos. Os diretores davam instruções
específicas sobre o que deveria ser feito em cena:
Em maio de 1995, os primeiros “especialistas” entraram em ação: à
direita e à esquerda da instalação, que mais uma vez foi composta de
muitos equipamentos e janelas embaçadas, estavam dois bombeiros
cuja presença era, de fato, necessário por motivos de saúde e
segurança (portanto, pertencentes à infra-estrutura), porque muitas
velas deveriam ser apagadas com sons graves no final da peça e depois
acesas novamente. Haug e Wetzel convenceu-os como especialistas
em incêndio a assumirem essas tarefas (DREYSSE; MALZACHER,
105
2008, p.18) .

A precisa execução das instruções no palco (ligar e desligar máquinas,


trocar as projeções, retroceder, parar ou avançar imagens, realizar experiências
físicas com equipamentos de condensação) revela certa estrutura dramática
pautada pelo uso de aparelhos técnicos e seus manuais de instruções. O que

103 A Programação Neurolinguística (PNL) estuda estruturas específicas que geram um
comportamento, oferecendo técnicas e ferramentas de intervenção nesta estrutura para que o
comportamento seja remodelado.
104 Importante expoente da música e da cena contemporânea alemã. É professor na
Universidade de Liebing em Giessen há 20 anos.
105
Tradução minha para “in May 1995, the first “experts” came into play: right and left of the
installation, which was once again comprised of a lot of equip- ment and steamed up windows,
sat two firemen whose presence was, in fact, necessary on health and safety grounds (therefore
sort of belonging to the infrastructure), because lots of candles were to be blown out with bass
sounds towards the end of the piece and then litagain. Haug, Droß und Wetzel convinced them
as fire experts to take on this task themselves”.

177

guarda relações com a noção de teatro mecânico, que segundo Pavis, “é uma
forma de teatro de marionetes ou de objetos onde os atores foram substituídos
por figuras animadas, autômatos ou máquinas” (2001, p.391). Nessa acepção o
teatro feito pela dupla era uma subversão do teatro mecânico, pois não
interessava “romper a presença viva em cena” (PAVIS, 2001, p.391), para
afirmar a habilidade técnica dos diretores, mas, sim, valorizar a performance das
máquinas e dos técnicos que as manipulavam concomitantemente.
Enquanto Kaegi experimentava animais em cena como metáfora para o
comportamento humano, produzia textos radiofônicos e escalava não atores,
Heug e Wetzel exploravam a teatralidade das máquinas e seus “especialistas”.
Ambas as tendências criativas se assemelham na medida em que suas
produções cênicas nunca prescindiram de artistas profissionais por um lado, e
por outro, empurraram as fronteiras teatrais em direção ao terreno híbrido das
linguagens artísticas. O primeiro encontro entre Higiene Heute e Ungunstraum
em trabalho colaborativo aconteceu em Berlim com a montagem de Palavras
cruzadas Pit Stop106, no ano de 2000. No palco, quatro senhoras octagenárias -
que moravam no asilo ao lado do teatro, onde foi apresentado o espetáculo -
falavam sobre suas vidas e perspectivas de morte. Sobreposta a essas
narrativas, o coletivo inseriu um plano ficcional e lúdico, onde as participantes
executavam diversas tarefas de modo a se prepararem para uma corrida de
Fórmula -1.


106
Tradução minha para “Crossword Pit Stop”.

178

FIGURA 49 - Elenco de Crossword Pit Stop.


Crédito: Rimini Protokoll/Divulgação

A utilização de um espaço high tech, de não atores - nesse contexto


entendido como as pessoas sem experiências em técnicas de palco ou de
representação, nomeados por Fernandes de presenças extracênicas (2009),
foram o ponto de partida para um espetáculo que refletia sobre o lugar e a
exclusão da velhice em uma sociedade dedicada à juventude e à velocidade. A
dramaturgia foi construída em forma colaborativa com os participantes a partir
dos seus relatos de vida, evitando a utilização de textos preexistentes ao
processo criativo. Nascia o coletivo Rimini Protokoll.
O diálogo entre biografias privadas de pessoas comuns e questões
públicas, o uso de dispositivos tecnológicos e a execução de tarefas em cena
vão perpassar inúmeras futuras obras. Espetáculos que não se fixarão no
âmbito do palco italiano, assim como o manual de instrução para a realização de
atividades vai se adensar e envolver o próprio espectador que participa. Hoje,
depois de 19 anos de existência, o coletivo transita pelos quatro continentes
tendo realizado uma centena de projetos.

179

FIGURA 50 - Os diretores Daniel Wetzel, Helgard Haug e Stefan Kaegi.


Crédito: Maja Nydal Eriksen / Le Monde

4.2 Procedimento cênico 1: factualidade dos sujeitos e a irreversibilidade


das ações

A utilização de não atores pelo coletivo levou os artistas a forjarem noção


própria para nomear os participantes de suas produções. São os especialistas
do cotidiano, pessoas que são especialistas nas suas próprias histórias de vida.
O termo especialistas é dimensionado pelos conhecimentos que esses
participantes têm em determinado assunto, pela valorização cênica das
experiências que eles guardam em relação a um tema específico107. Por outro
lado, o verbete “especialista”, segundo o dicionário Michaellis, é “1. que ou quem
se dedica a um determinado trabalho, estudo ou ramo da profissão; 2. perito,
conhecedor profundo de determinada coisa” (2008, p.349). Tais especialistas
podem ser observados nos primeiros trabalhos da dupla Helga e Wetzel, como

107
A tese da pesquisadora brasileira Júlia Guimarães Mendes denominada de Teatros do real,
teatros do outro: os atores do cotidiano na cena contemporânea (2018), traça interessante
paralelo entre as diversas possibilidades em que pessoas sem experiência artística são
utilizadas na cena contemporânea. Apesar da minha tese abordar a questão do trabalho do não
ator nas páginas seguintes, meu olhar, como já apontado, está voltado para identificar e analisar
os procedimentos que suspendem a tendência do espectador em denegar o acontecimento
teatral, nesse sentido, diferindo-se da tese de Mendes.

180

no caso dos bombeiros, já citado. Ao deslocarem o termo de forma a nomear de


maneira mais ampla os participantes da cena, atingindo os não atores em geral
que trabalham com o coletivo, fornece pistas para se perceber as questões
políticas implicadas nas produções dos artistas. Pois o termo especialista é
sintomático do início do século XX e designa aquele que tem determinado
conhecimento específico aprofundado ou formação técnica, relacionado a uma
visão cientificista de mundo. Visão que está sendo colocada em questão hoje108.
A origem do termo especialista, portanto, está associada, no ocidente, a
uma crença positivista do progresso que pensava estar próximo da certeza
sobre a realidade (a Realidade da qual fala Saison), com reverberações
estilísticas no campo da ficção que imitava os procedimentos científicos na
construção artística. Nesse contexto, a realidade se pauta pelo “mundo das
coisas [...] tal como revela a ciência” (SÁNCHEZ, 2007, p.22)109 , incluindo o
humano e o social. Pavis conceitua o realismo naturalista enquanto corrente
estética como uma técnica capaz de dar conta, de maneira objetiva, da realidade
psicológica e social do homem (PAVIS, 2001), duplicando, através da cena, da
maneira mais fiel possível, determinada realidade, pela manipulação de artifícios
convencionados de forma a se chegar à ilusão de algo “verdadeiro”. Um
conjunto de técnicas para a cena e para o ator, respondendo a obrigações
narrativas formuladas de acordo com a época.
O que se evidencia é a construção de uma realidade convencionada por
princípios de representação, os quais envolviam desde a produção textual
pautada pelos diálogos e personagens definidos, passando pela reconstrução da
cena a mais idêntica ao espaço onde se passa a história, chegando no trabalho
minucioso do ator, tanto externamente, como psicologicamente. Efeito que se
traduzia na construção visual da cena, chegando a reproduções exatas dos
espaços dramáticos representados, criando ambiente propício para que a vida
representada transcorresse no interior da cena, dependendo em grande parte da
ocultação da realidade material, por diversos artifícios ilusórios:


108
“O saber científico é uma espécie de discurso, um jogo de linguagem” (LYOTARD, 1988, p.3).
Tradução minha para “el mundo de las cosas […] tal como lo revela la ciencia”.
109

181

Os figurinos simples que adoçam o cotidiano, as palavras sussurradas


que amortecem o discurso, os sons ao longe que disfarçam o silêncio,
o ritmo matematicamente construído que restituem o da experiência
vivida. A ilusão de vida se alcançava mediante a minimização dos
fragmentos ou detalhes com que se constituía e, portanto de suas
bordas, de suas suturas, em um procedimento paralelo ao
desenvolvido internamente pelo ator na busca da chamada “linha
contínua”. A cobertura atmosférica e a distância impediam a visibilidade
110
do artifício (SÁNCHEZ, 2007, p.34) .

O artifício ilusório, como recurso utilizado para criar a sensação de


realidade, camuflando a camada do acontecimento teatral, aquela dos objetos e
pessoas reais. A representação, assim colocada, sinaliza para uma realidade
por meio da referência, portanto, para algo que não está presente de fato. O que
é visto e ouvido não constitui uma realidade em si, pois indica a existência de
“um” outro lugar, que só aparece mediante o esforço de deslocamento. O que
está sendo referenciado não é o tempo e o espaço da cena, mas o “fora” que ela
idealiza; um efeito idealizante de autenticidade (GARDE; MUMFORD, 2016).
O termo especialista sinaliza e carrega consigo toda essa carga histórica
que reverbera em uma maneira de se pensar o teatro. O coletivo Rimini, ao
extrapolar essa acepção primeira, em direção à pluralidade de especialistas,
torna-se refratária dessa história, enquanto curso unitário. A virada do termo
aponta para um confrontamento com um teatro que leva em conta uma “política
cultural da alteridade” (FOSTER, 2017, p.160). O que faz effracion no universo
teatral dos especialistas do cotidiano é o tipo de apresentação que é colocada,
que procura menos um sistema de representação global da “Realidade” (única e
total). As representações do mundo, tornadas, portanto, plurais e relativas, onde
o real é aquele que só se pode aceder a partir de suas “formas múltiplas,
fragmentadas, estilhaçadas” (SAISON, 1998, p.51)111 . Oras, ao mesmo tempo
não se pode deixar de observar que o ator, ele próprio, é um especialista do

110
Tradução minha para “el de los vestuarios sencillos que dulcifican la cotidianidad, el de las
palabras susurradas que amortiguan el discurso, el de los sonidos lejanos que disfrazan el
silencio, el del ritmo matemáticamente construido que restituye el de la experiencia vivida. La
ilusión de vida se lograba mediante la minimización de los fragmentos o detalles con los que se
componía y, por tanto, de sus bordes, de sus suturas, en un procedimiento paralelo al
desarrollado internamente por el actor en la búsqueda de la llamada “línea continua. La
cobertura atmosférica y la distancia impedían la visibilidad del artificio”.
111
Idem “vues multiples, fragmentées, éclatées”.

182

palco, e não é convocado a estar em cena. O teatro se abre a uma alteridade


diversificada, nesse caso, à custa do trabalho do ator, aquele que se encontra
impedido. Ao ser expulso de seu local de pertencimento legítimo, coloca em
questionamento a função e a necessidade do ator profissional na atualidade.
Já o termo cotidiano remete “ao tratamento cênico cotidiano dessas
presenças que projetam sobre elas um viés antivirtuoso e antiespetacular”
(MENDES, 2018, p.50). Os corpos dos especialistas112, despojados de princípios
representacionais aparentes têm suas características pessoais, seus gestos
autorrepresentacionais preservados. A identidade corporal do participante se
mantém, ao mesmo tempo em que a palavra é concedida a ele. O uso de
microfones mantém o registro vocal pessoal e intimista, assim como o uso de
roupas e objetos dos próprios participantes ao invés do “figurino artístico”
potencializam a dimensão autêntica do acontecimento cênico. Igualmente, os
erros decorrentes da falta de prática de atuação são naturalizados como
procedimentos que colaboram para conferir verdade aos corpos não
acostumados à cena.
O termo especialistas do cotidiano é preferível ao invés de não atores,
pois conota algo de negativo a essa prática, segundo Kaegi, caracterizando os
participantes por aquilo que eles não são. Pois ao colocar em cenas essas
individualidades, interessa afirmar dimensões identitárias. Alguns pesquisadores
atribuem o termo ready-mades vivos113 para classificar a presença dessas
pessoas em cena, fazendo relação ao gesto conhecido do artista alemão Marcel
Duchamp de deslocar objetos do cotidiano para o espaço da arte. Sem querer
objetificar o agente cênico, a expressão ready-made teatral concorre para
esclarecer procedimentos envolvidos na prática dos chamados especialistas do
cotidiano. Quando Duchamp expõe os objetos manufaturados, ele desestabiliza
o sistema de representação das artes, abreviando o caminho entre significado e
receptor (SAISON, 1998; SANTAELLA, 2003; TOMKINS, 2005). No teatro, essa

112
Será utilizado na tese os termos especialista ou expert como sinônimos para especialistas
dos cotidiano.
113
Como o crítico Ricardo Muniz, para o catálogo do espetáculo Chácara Paraíso, Mostra de
arte polícia, dirigido por Stefan Kaegi e Lola Arias, na cidade do Rio de Janeiro no ano de 2007.
Catálogo em https://issuu.com/varzeadesign/docs/chacaraparaiso. Acesso maio 2019.

183

relação dos participantes como ready-made quer suprimir a representação (até o


limite do possível) e operar uma mudança na maneira como o acontecimento é
recebido pela audiência. Quer gerar desestabilização do lugar da expectação,
onde este passa do observador que transforma a realidade que ele vê apenas
no seu espaço mental (SAISON, 1998) para testemunha de uma situação,
condição social ou pessoal.
Ao colocar em cena pessoas de fora do métier teatral, elaboram-se
estéticas que interrogam o olhar como fato, gerando contato próximo com um
sujeito real, no sentido de que este não está interpretando um personagem
ficcional. Uma “produção de presença” (GUMBRECHT, 2010) original é colocada
à frente do espetáculo. A exposição em cena de pessoas retiradas diretamente
do cotidiano da vida abrevia um caminho perceptivo que coloca o espectador
diante de uma presença que tem sua dimensão aurática (BENJAMIN, 1987)
preservada, em detrimento da reprodução ou representação de uma presença
ficcional pela noção tradicional de mímese. Oras, é exatamente esse
procedimento que imprime uma dimensão de real frente à possibilidade de
suspensão ou captura da tentação denegatória do olhar da recepção sobre a
cena teatral.
Féral ao refletir sobre a teatralidade retoma o “processo que faz com que
ele [o ator] sinta, nos momentos de imobilismo das estruturas simbólicas, a
ameaça sempre presente de retorno ao sujeito” (2015, p. 92). Não se pode
deixar de perceber que nesses momentos de “retorno ao sujeito”, a denegação
se vê ameaçada, pois o espectador pode ver essa condição do “ator preso no
tecido do real” sem negá-lo ou “aparentá-lo ao sonho” (UBERSFELD, 2005,
p.21). Assim como o ready-made duchampiano não se resume ao simples
deslocamento de objetos de “um lugar para outro”, sendo dependente de um
olhar que tenha o conhecimento conceitual desse deslocamento para poder com
a obra se comunicar, da mesma forma, não basta o ato de deslocar o
especialista do cotidiano para o espaço da cena, se o espectador não percebe o
que está fruindo como diferente do teatro ilusionista. Essa condição de
especialista só será percebida como tal, quando a plateia conceituá-lo desse

184

modo. Essa informação, que no caso dos espetáculos do Rimini Protokoll vem
impressa no material parateatral distribuído antes dos espetáculos, auxilia a
evidenciar o caráter ready-made. O espectador que assiste à encenação ciente
que envolve especialistas do cotidiano, processa as informações de maneira
diferente daquela que faria frente a um espetáculo de pura ficção. Nesse
sentido, o fenômeno de effracion presente na cena precisa ser protocolado para
a audiência. O que demonstra o grau de importância que a relação com o
público ocupa nessas práticas contemporâneas.
No âmbito do trabalho dos especialistas sobre a cena, existe ou elemento
fundamental que são as ações que eles realizam. Ações que reforçam a
dimensão de real não somente por serem feitas através de gestos
autorreferenciais, e por não estarem depuradas e/ou coreografadas. Mas essas
ações carregam consigo uma determinada concretude no sentido de que são
ações que precisam ser verdadeiramente executáveis em cena. Retomando o
primeiro espetáculo do coletivo, Palavras-cruzadas pit-stop, já citado, as
senhoras especialistas enquanto falavam de si realizavam atividades
preparatórias para uma corrida de Fórmula-1. Uma das atividades previa jogar
videogame de corrida de carros na frente do público. Também imagens delas
correndo em cadeiras de rodas pelos corredores do asilo, onde viviam, foram
filmadas e projetadas em cena. Da mesma forma, em espetáculo recente,
Estado - 4 (2018), os especialistas, em determinado momento jogam hóquei, no
palco transformado em uma arena de gelo.
Além da comicidade e poesia que guardam essas imagens, revelam um
procedimento estratégico do coletivo que aporta uma dimensão de real pela
qualidade performativa das atividades executadas em cena114. A realização de
ações como elemento que conecta o especialista à concretude de um fazer,
onde ele precisa agir de forma a compor a dramaturgia da cena. E nessa
dimensão do agir está prevista certa margem improvisacional e de
arbitrariedade, pois não há como retomar tais atividades em caráter de


114
“[...] quanto menos se leva em conta a representação, não assumindo a mímese, mais fala da
presença, do imediatismo do evento e de sua própria materialidade” (FÉRAL, 2015, p.93).

185

repetição. Atividades que solicitam dos especialistas respostas rápidas e um


direcionamento efetivo do seu corpo, assim como coordenação motora que
conferem uma espontaneidade a esse fazer que adere ao real. Pois, existe um
desafio imediato proposto pela máquina em um jogo de videogame que é
preciso responder de forma reflexiva. Pode-se até repetir a partida de
videogame, mas o jogo não vai se dar da mesma forma, o carro virtual vai se
chocar em momentos diferentes a cada vez. Ao mesmo tempo essa ação revela
características como um atraso reflexivo das senhoras devido a idade.
Característica que está impressa no fazer, elas não simulam um problema
decorrente da velhice. Elas não fingem os “erros” frequentes na partida. Elas
“erram” porque agem. As especialistas precisam realmente jogar o videogame
para a proposição cênica se concretizar.
Da mesma forma os especialistas que jogam hóquei; os lances serão
diferentes a cada dia. Uma dimensão vivida pelo especialista do cotidiano que
configura um real pela experiência da ação realizada. Ação que pode mostrar
tanto uma habilidade, mas também uma inabilidade. Como os convidados a
participar da Conferência Fare Dodger (2000), onde muitos não tinham a menor
ideia sobre o que seria um sistema parasitário, tema proposto para a discussão
em cena, gerando comicidade pelas conclusões precipitadas. Mesmo que o
especialista tenha a consciência de que ele está sendo visto, de que ele está em
situação de performance, tais ações portam a imprevisibilidade própria da ação
real. Ressalta-se, contudo, que essa imprevisibilidade não se dá no mesmo grau
que a colocação de um animal no palco, por exemplo, como em algumas
produções do coletivo Rimini Protokoll, onde a falta de controle da cena é muito
maior, dada a inconsciência do animal em relação a sua situação de
performance. Essas qualidades descritas não se observam em todas as ações e
espetáculos do coletivo, mas são exemplares pelo grau de engajamento corporal
solicitado, permitindo que se reflita sobre as ações e suas reverberações
concretas que contribuem para enfraquecer o processo denegatório.
Nesse sentido, o trabalho da ação na cena não se constitui como um
elemento que conecta o ator ao personagem, mas como elemento que conecta

186

o especialista ao presente do acontecimento. Do amplo aspecto de


características observáveis em uma ação, interessa esse viés que o coloca no
aqui/agora da cena. Pois, como visto, o Rimini Protokoll não trabalha com atores
profissionais e com a ideia de personagem. O trabalho das ações sobre a cena
está a serviço da dimensão de real pelo grau de concretude, irreversibilidade e
factualidade que elas aportam, para além da sua capacidade de catalizar
características ficcionais. Assim se ressalta a dimensão de acontecimento que a
ação contém pelo viés performativo.
Como os especialistas que no espetáculo-móvel Cargo - X115 levam os
espectadores a “um passeio” de caminhão. Os especialistas dirigem um veículo
dentro do cotidiano das autoestradas enquanto narram suas histórias de vida.
Torna-se impossível denegar a atividade realizada, pois dela depende a vida dos
participantes, e por outro lado, esse caráter performativo está solidamente
ancorado em um fazer com intenção. Em determinados espetáculos, os
especialistas são experimentados em certo número de atividades que gera um
dispositivo cênico que retoma o manual de instruções, onde é preciso executar
diversas tarefas, as quais convocam o corpo do especialista a se manifestar de
maneira original e conectada a um objetivo prático. Essa proposta guarda
relações com a ideia de “programa” pensado dentro da teoria da performance
elaborado pela pesquisadora brasileira Eleonora Fabião: uma série pré-
programada de ações que funcionam como um “ativador de experiências” (2008,
p.5). Essa dimensão de experiência resgata o contato com o presente, com o
aqui/agora do acontecimento cênico.
Por outro lado, Carlson identifica contemporaneamente a aplicação da
performance em campo teatral como fenômeno que tem deixado de lado a
preocupação prioritária com a dinâmica entre ator – personagem onde:
Realizar ações reais na frente dos espectadores desvinculado da
noção típica de personagem permite que seus praticantes, quase por
definição, não baseiam seu trabalho em personagens previamente
criados por outros artistas, mas em seus próprios corpos, suas próprias

115
Projeto artístico que acontece desde 2008, onde motoristas de caminhão imigrantes levam
espectadores para um tour através das estradas e rodovias. Depois de dois anos de tour pela
Europa, o projeto foi adaptado para o contexto asiático: Cargo Ásia, Japão, Singapura e
Shangai.

187

autobiografias, suas próprias experiências, numa cultura ou num


mundo que se fizeram performativos pela consciência que tiveram de si
e pelo processo de se exibirem para uma audiência (CARLSON, 2009,
p.17).

Por sua vez, Cohen, ao relacionar o teatro atravessado pela linguagem da


performance, detecta a possibilidade de interrupção dos processos ficcionais
tradicionais do teatro:

O que dá característica de representação a um espetáculo é o seu


caráter ficcional: espaço e o tempo são ilusórios (se reportam a outro
instante), da mesma forma que os atores se reportam a uma outra coisa.
Eles “representam algo”. O público é colocado numa postura de
espectador que assiste a uma história (COHEN, 2004, p.96).

É nesse limite tênue entre representação e apresentação que os não


atores, especialistas do cotidiano se encontram. Espaço onde o teatro “é uma
demonstração, algo que se passa entre arte e vida” (COHEN, 2004, p.97). Essa
condição se revela tributária “da acentuação muito maior do instante presente,
do momento da ação - o que acontece no tempo real” (2004, p.97). Essa
condição transforma o espectador, que do teatro da ficção pura onde ele assiste
a uma história, para o espectador-cúmplice, uma testemunha do acontecimento
cênico.
Féral, ao refletir sobre o deslizamento ocorrido no domínio da
performance a partir dos anos 80, identifica a posição na qual o artista está no
centro do acontecimento e toma a posição sobre o mundo:

Trata-se de um retorno ao relato, um relato sempre sem linearidade mas


em que as microssequências se sucedem construindo, para além da
fragmentação, uma história, um trajeto, um significado. A experiência do
indivíduo, sua relação com o mundo e consigo próprio, seu caráter único
e sua originalidade estão no centro da cena (FÉRAL, 2015, p. 184).

Um retorno ao indivíduo, não necessariamente esse tomado pela pulsões


energéticas, onde o espaço do corpo é o da afirmação violenta do real pelo seu
sofrimento e desgaste, nem tampouco, “reduzindo seus caracteres e situações a
mera coerência, ao discurso naturalista” (FÉRAL, 2015, p.183). Podemos, então,
inferir como a esfera do “agir” contribui para ressaltar a dimesão de real do
acontecimento cênico na prática do coletivo Rimini Protokoll.

188

Retomam-se agora as características que ancoram o especialista do


cotidiano no plano do não ficcional contribuindo para a suspensão do processo
denegatório: 1) material parateatral informativo sobre a condição dos
participantes cênicos; 2) valorização cênica dos conhecimentos que eles
guardam em determinado tema; 3) uso de gestos autorrepresentacionais e/ou
registro vocal pessoal e intimista; 4) uso de roupas e objetos dos próprios
participantes; 5) tratamento cênico cotidiano dessas presenças - antivirtuoso,
antiespetacular; 6) qualidade das atividades realizadas que resgatam o presente
do acontecimento e a originalidade dos corpos.

4.2.1 Procedimento cênico 2: o testemunho como eixo da narrativa

Da mesma forma que se utiliza não atores e seus gestos


autorrepresentacionais eliminando a distância entre representante e
representado, o discurso verbal da cena acontece a partir de experiências e
conhecimentos que estes possuem, onde o participante fala por si mesmo, em
substituição ao texto dramático ficcional. Féral recorda que “mais que o corpo,
as performances escrevem hoje em dia o sujeito falante” (2015, p.186). A
possibilidade de aproximar a vida real em cena através do uso de autobiografias
constitui elemento para se pensar o afrouxamento do pacto de denegação
vinculado pelos discursos pessoais dos especialistas do cotidiano, assim como a
força política que tal procedimento aporta. Uma definição de autobiografia pode
ser encontrada, em campo literário, proferida pelo francês Philipe Lejeune,
sendo: “um relato retrospectivo em prosa que uma pessoa real faz de sua
própria existência, colocando ênfase em sua vida individual e, em particular, na
história de sua personalidade” (LEJEUNE, 1994, p.50). A vida individual, a
memória como matéria criativa e que adquire valor por ter sido experienciada
pelo próprio relatante. Aqui o “documento” é a história real do sujeito que modula
a obra de arte; vida documentada que serve de substrato para a produção
literária.

189

De fato, observa-se, atualmente, uma onda de filmes, séries, livros e


espetáculos que utilizam essa característica em suas produções, informando o
espectador que a obra foi “baseada em fatos reais”. Mesmo que uma expressiva
quantidade dessas produções possam sofrer adulterações no seu conteúdo
pretensamente verídico, como em muitas produções fílmicas holywoodianas que
retomam a vida e/ou fatos conhecidos do grande público para fazer ficção.
Inúmeras questões fundamentais não são minimamente esclarecidas, como a
origem das fontes utilizadas, que documentos serviram para a produção dos
roteiros, que intervenção foi realizada nos acontecimentos para encaixá-los em
determinado gênero fílmico e assim por diante. Nos espetáculos, como os do
Rimini Protokoll, uma característica fundamental é o fato de que esses relatos
que têm referência no real são apresentados pelas próprias pessoas que os
vivenciaram, como visto, o que transforma um potencial processo negativo de
adulteração em uma negociação criativa entre artistas e os portadores desses
relatos.
Ao mesmo tempo, os relatos dos especialistas se diferenciam do modelo
autobiográfico na medida em que não ficam circunscritos à vida pessoal e à
trajetória da personalidade dos envolvidos. Os relatos reais se tencionam com
determinada problemática de caráter mais amplo proposto pelos diretores, onde
o relato pessoal alcança determinado olhar sobre uma realidade social. A
experiência individual dialoga com situações vividas em coletivo. Os relatos vão
se expandindo até encontrar uma dimensão onde o pessoal e o político se
tencionam. Propicia-se, dessa forma, um lugar de fala favorecendo a alteridade
e se problematiza as consequências em âmbito político - social. Para um dos
diretores do coletivo:

Durante a produção, chega-se a um momento de cumplicidade, que é


muito importante. Essa cumplicidade é possível porque você pode
claramente dizer às pessoas que a razão delas estarem aqui é a sua
alteridade (HAUG apud DREYSSE; MALZACHER, 2008, p. 32).

190

Ao mesmo tempo, Lejeune, no desenvolvimento da noção de


autobiografia, recorda as possibilidades referenciais do real e do ficcional que
permeiam esse modelo literário:

O que chamo autobiografia pode pertencer a dois sistemas diferentes:


um sistema referencial “real” (no qual o compromisso autobiográfico [...]
tem valor de ato), e um sistema literário no qual a escritura já não aspira
transparência, mas pode perfeitamente imitar, mobilizar, as crenças do
primeiro sistema (LEJEUNE, 1994, p.133) .

Recordemos que Lejeune procede análise em campo literário sobre os


processos de imitação e transformação que operam a escrita em relação à
autobiografia, não levando em conta outros elementos fundamentais que Oscar
Cornago vai, então, apontar ao tratar dos testemunhos em campo teatral: a
confissão do ponto de vista cênico traz a comunicação em primeira pessoa, a
dimensão física do ato da enunciação, a proximidade espacial com o espectador
e a referência a um passado que é retomado na forma de experiência
(CORNAGO, 2009). O que está em jogo em termos de enfraquecimento do
processo denegatório do espectador é o fato de que são explicações pessoais
sobre algo que aconteceu com a pessoa mesma que fala, uma presença cênica
original do falante e a experiência que ele experimenta ao resgatar o acontecido
e socializá-lo publicamente.
Cornago ao analisar, em campo cinematográfico, questões
autobiográficas, chama a atenção para o fato de que a pessoa convidada a
desenvolver um relato, não é somente uma primeira pessoa gramatical, mas
também é física:
[...] o falante se vê transformado em sua própria intimidade em um eu-
atuo cuja verdade resulta construída em forma de relato, não somente
verbal, mas também físico, o relato da experiência quando esta ainda
não foi contada, a experiência que fica escrita no corpo, em uma atitude,
um modo de atuar, de mover-se, de olhar o outro, de estar frente à
câmera. Esses traços físicos são os que convertem a testemunha em
uma jóia preciosa do discurso contemporâneo sobre a verdade pessoal
ou coletiva, a verdade da história. A aura que rodeia a testemunha não
se apóia em sua capacidade de contar o que viu, sofreu ou
experimentou, mas sim na própria presença de um corpo que viu isso,
sofreu ou experimentou (CORNAGO, 2009, p.101).

191

A palavra como testemunho físico da memória pode ser percebida no


espetáculo, para palco italiano, Mr. Dagacar and the Golden Tectonics of trash
(2013)116, do coletivo Rimini Protokoll, ao mesmo tempo em que se atesta o grau
de engajamento social dos diretores ao dar “voz aos imigrantes” (SAISON,
1998). Em cena, vemos seis especialistas: quatro curdos e dois turcos, que
narram suas histórias de vida, as condições de trabalho e opressões do sistema
capitalista, o choque entre as culturas, suas dificuldades em se comunicarem em
língua estrangeira, o drama da distância da família. É pela ótica das
experiências pessoais de cada integrante, que em forma de crônicas, resgatam
as memórias dos acontecimentos e confidenciam essas aos espectadores.
Trata-se, pelos seus relatos, dos coletores de lixo em Istambul que
sofrem um processo de marginalização pelo estado e autoridades do município.
A figura do estrangeiro, sua cultura, hábitos, e background étnico, são colocados
em cena e se tencionam com a temática da produção e descarte do lixo em
contexto global. O individual e o político se encontram ao projetar um olhar sobre
a condição de produção de lixo e seu destino no século XXI, ao mesmo tempo
em que histórias pessoais de especialistas aparecem imbricadas a partir desse
contexto. Os testemunhos dos especialistas são proferidos diretamente ao
espectador e são reforçados por meio de materiais extraídos do cotidiano e
levados à cena: fotos e objetos afetivos que conferem informações adicionais
que atestam a inscrição dos fatos no campo da realidade dessas pessoas.
Enquanto narram para os espectadores, realizam suas ações cotidianas de
coletar objetos descartados, em uma cenografia que retoma um depósito de lixo.
Ao voltarmos nosso olhar para o próprio nome do coletivo, Protokoll, em
tradução para o português: protocolo, já nos antecipa aspectos do projeto
artístico, pois, o termo protocolo está relacionado ao conjunto de decisões,
normas e regras definidas a partir de ato oficial em negociações diplomáticas.
Para Kaegi, “o protocolo é uma palavra significativa porque está ligado por um
lado ao documentário, e por outro, aos processos representativos na política”
(KAEGI, 2018). E, de certa forma, o coletivo precisa realizar acordos para levar à

116
Dirigido por Helgard Haug e Daniel Wetzel.

192

cena os experts que aportam experiências do mundo contemporâneo e seus


meios de produção, equalizando a ótica de todos os agentes envolvidos. Formas
democráticas de negociar com a realidade, onde a decisão conjunta se
transforma em documento a ser investigado cenicamente. Ou ainda, negociar os
espaços onde vão ocorrer as ações artísticas, muitas vezes em locais
extrateatrais que envolvem diálogos entre artistas, poder público e/ou privado.
Há uma recusa ao texto dramático prévio ao processo criativo, em prol
dos testemunhos e conhecimentos daqueles envolvidos, constituindo-se em um
dos modus operandi do coletivo, ainda que esses parâmetros possam ser
alterados de acordo com as especificidades de cada projeto. Esse processo
envolve uma sistemática de realização de entrevistas e diálogos que são
registrados e reescritos diversas vezes, de forma a contemplar as vontades de
todos os envolvidos a respeito do que vai ser narrado em cena, como afirma um
dos diretores:

Quando eu trabalho com um advogado eu corrijo o texto dele em


função do que eu acho mais interessante, mais justo, faço essa
intervenção, e ele vai me corrigir o texto de novo e vai me dizer não:
isso não é o texto da lei, ou, eu não vivi essa experiência. Pode ser que
ele censure coisas que ele mesmo fala um dia, ou que eu escrevo e ele
diz: em público eu não posso dizer isso. Então essa fricção com eles,
como representantes de si mesmos, cria um texto muito diferente do
que eu poderia imaginá-lo, e mesmo depois da estreia... Não é que eu
entrevisto uma vez e depois escrevo o texto e está pronto. Nós vamos
refazê-lo nos ensaios, descobre-se que eles não gostam de
determinada coisa, eu também posso não gostar de outras. Tem muito
trabalho de edição com eles. Que é bem diferente do trabalho do ator
que vai perguntar como deve fazer o texto, que vai ensaiar para fazer
perfeitamente, a técnica para nós entra somente em segundo plano.
Primeiro é a criação em forma de coautoria com eles, de uma forma
que eles são quase como políticos e nós somos os ghostwriters ou
speechwriters (KAEGI, 2018).

Enquadrar o participante convidado como um político da cena, significa


dar voz e liberdade para ele decidir o que vai dizer, responsabilizando-o pelas
suas palavras e investindo os discursos de certa autenticidade. Ao mesmo
tempo em que o processo de reescritura mostra a intervenção artística dos
diretores, tornando o que é dito em cena o resultado de uma construção de
vozes coletivas.

193

O processo de criação textual colaborativo entre os diretores e


especialistas, apresenta peculiaridade criativa que o diferencia do chamado
teatro documental. Recordemos que para Pavis, o teatro documentário é o
“teatro que só usa, para seu texto, documentos e fontes autênticas,
selecionadas e ‘montadas’ em função da tese sociopolítica do dramaturgo”
(2001, p.387). Enquanto o dramaturgo apontado por Pavis monta sua “tese
sociopolítica” por si, a partir de documentos autênticos, e anterior ao processo
de ensaios, o processo de ghostwriter ou speechwriter117 do Rimini Protokoll
elabora sua visão sobre os fatos utilizando fontes autênticas vivas que
constroem no período de ensaios a “tese sociopolítica”, em diálogo direto com
aqueles que fazem parte dela. Resultando em uma produção textual em
processo, e que se modifica ao longo das temporadas.
Assim como o espectador precisa ter a consciência de que ele está
diante de pessoas que vêm de fora do universo teatral como já abordado no
Procedimento 1, ele precisa estar ciente de que os discursos enunciados estão
relacionados à situação ou história de vida dos próprios especialistas. Também
os especialistas, enquanto portadores de discursos que se originam das suas
experiências, diferenciam-se dos chamados atores amadores, comumente
conhecidos por serem atores não profissionais que constroem personagens em
cena a partir de texto ficcional. Procedimento que não acontece no caso dos
especialistas do cotidiano, como demonstrado até aqui
Antecedendo o termo protocolo, temos a palavra Rimini, a qual faz
referência a uma cidade litorânea da Itália, onde os alemães costumavam
passar as férias a custos baixos nos anos 80 (KAEGI, 2018). Nesse caso, a
cidade definia um lugar de diversidade cultural muito intensificada. E, assim,
como funcionava a cidade de Rimini, o protocolo Rimini, discurtina um
desempenho socialmente engajado do coletivo operando para desvelar as
complexas identidades do mundo globalizado e os encontros com o outro, com

117
Ghostwriter ou escritor fantasma é aquele que escreve uma obra mas não recebe os créditos
da autoria, ficando para aquele que contrata o seu trabalho. Já o escritor de discursos
(speechwriter) é comumente conhecido como um autor contratado para escrever discursos
políticos.

194

aquele que é desconhecido. A escolha por um “teatro de pessoas reais”


(GARDE; MUMFORD, 2016) transita em diferentes modalidades cênicas, e atua
para colocar em evidência questões identitárias da era pós-moderna, em estreita
relação com as políticas da alteridade.
Os relatos pessoais podem ser reforçados por outros elementos que
potencializam a inscrição do acontecimento no âmbito do real, como o site-
specific móvel do projeto Cargo X (2008). Um modelo de teatro projetado para
acontecer em meio às paisagens urbanas em movimento. Em Cargo Sofia, três
motoristas búlgaros levam 45 espectadores, sentados na cabine de carga de um
caminhão adaptado, para um tour através das estradas e rodovias das cidades
pelas quais está sendo apresentado. Eles narram suas vidas de trabalho como
motoristas que inclui longas horas de trabalho das quais muitas são gastas
estacionadas em fronteiras, e a impossibilidade de interação com as culturas
dos países pelos quais passam, na medida em que ganham pouco, dormem e
se alimentam dentro do caminhão. O Projeto Cargo X revela outra tentativa do
coletivo se aproximar de um “acesso direto ao real” (KAEGI, 2018); a criação
que se afasta do edifício teatral e faz uso da cidade como conexão entre
realidade e ficcionalidade.

FIGURA 51 – Caminhão reprojetado para Cargo Sofia.


Crédito: Rimini Protokoll/Divulgação

195

FIGURA 52 - Arquibancada de Cargo Sofia.


Crédito: Rimini Protokoll/Divulgação

Nesse contexto, o espaço é determinante para a produção e realização


do acontecimento artístico que se direciona ao tecido urbano, ao mesmo tempo
ressignifica a geografia, os lugares e suas histórias. Como um antropólogo que
sai a campo para colher dados do seu objeto de pesquisa, o Rimini Protokoll
perscruta, cria, evidencia, critica e performatiza o espaço da rua. É dessa
geografia, previamente escolhida, que nascem relações entre realidade e ficção.
Pois, em momentos pontuais desse trajeto, já ressignificado pelo olhar peculiar
dos motoristas, figuras exóticas são previamente posicionadas em meio à
paisagem natural, criando estranhamento para o espectador em relação ao
espaço público conhecido.
O site-specific quer investigar e incorporar a arquitetura, as narrativas e
sujeitos que ali transitam. Segundo Féral, “toda performance só é feita (e só
pode ser feita) em/para um dado espaço ao qual ela está indissoluvelmente
ligada” (1985, p.129). Segundo Lehmann, teatro específico ao local significa que
o “próprio local se mostra sob uma nova luz” (2007, p. 281). Esse teatro versa
sobre os efeitos da "interferenciada fronteira entre espaço estético e real"
(FINTER, 2003, p. 37). No caso de Cargo-X, os locais são apresentados sob a
ótica de uma profissão específica. Uma intervenção teatral em espaço público
onde nem sempre as fronteiras entre encenação e cotidiano são precisas, uma

196

vez que ações artísticas ocorrem em vários locais do itinerário. O espectador


experiencia/vivencia o ambiente urbano como parte da composição
performática, ao mesmo tempo em que se vê reposicionado como se fosse uma
“mercadoria sendo transportada”. O motorista que leva os espectadores, além
da organicidade do seu corpo direcionado a uma ação concreta e real de estar
conduzindo um veículo no cotidiano das estradas, tem na mão a vida desses
espectadores que estão numa caçamba de caminhão à mercê de um trajeto não
sabido e da habilidade do profissional em dirigir corretamente.
Esses novos formatos, assim como inúmeras práticas cênicas
contemporâneas, costumam resistir a classificações quando pensados a partir
de parâmetros tradicionais de arte. Para Kaegi, um dos diretores, não resta
dúvida para o coletivo que suas produções se inserem em campo teatral. Ao
dizer que em Cargo – X a “cenografia” muda de acordo com o tempo, mostrando
chuva em um dia e noutro neve, ou quando afirma que tem outros “extras”,
outros “figurantes” no “cenário” que é a cidade mesma (KAEGI, 2018), revelam-
se processos criativos atravessados por metáforas, por deslocamentos de
vocabulário, sempre esse fio-bamba, um tentar equilibrar-se entre o que se
entenderia por teatro e o que não se entenderia como tal em seus processos
criativos:

Seja quando se expande para além dos limites do que se considera uma
manifestação teatral, seja quando invade a vida e dela se apropria por
mecanismos de anexação do real, parece evidente que o campo de
ação do teatro de hoje é amplo e informe (FERNANDES; ISAACSSON,
2016, p.1)

“O campo do teatro é infinito” (2016), afirma o francês Christophe Bident,


ao perceber este como atravessamento de potências, linguagens,
espetacularidades, ficções e realidades, observando-se diferentes regimes de
extraterritorialidade praticados no teatro historicamente:

Nós nos encontramos, assim, presos entre duas armadilhas: aquela da


ordem que nos reduz à postulação de um pacto de adesão entre a cena
como lugar fechado da ação e a sala como comunidade efêmera de
olhares convergentes, e aquela que amplia o campo do teatro ao
conjunto dos fatos sociais. Este vai e vem poderia provocar vertigem se

197

ele não nos obrigasse a definir a cada vez, em cada lugar e a cada
momento do mundo, o que entendemos por “teatro” (BIDENT, 2016,
p.51).

Encontram-se ecos nos escritos de Michael Kirby, ao afirmar a potência


do teatro estendido quando este se hibridiza com outras artes e explora locais
considerados até então como não teatrais.

Nos últimos anos algumas encenações têm começado a relacionar o


teatro com as outras artes. Estas montagens, assim como as
apresentações em diversos espaços não convencionais nos obrigam a
examinar o teatro sob uma nova luz, e sugerem perguntas em volta da
palavra em si: 'Teatro' (KIRBY, 1974, p.61).

Ileana Caballero identifica o fenômeno de limininaridade como espaço de


fronteira entre linguagens associadas a determinadas práticas teatrais inseridas
no “tecido dos acontecimentos da esfera vital e social” (2014, p.14), onde a
teatralidade se estende ao cotidiano:

[...] a teatralidade como campo expandido não só nos exige reconhecer


as outras cenas e o outro teatro que emerge nos interstícios artísticos,
mas também nos intima a reconhecer a teatralidade que habita na vida e
nas representações sociais, tal como o fizeram Artaud e Evreinov. A
teatralidade como campo expandido para além das artes (CABALLERO,
2014, p. 129).

Vejamos, agora, algumas características dos relatos dos especialistas


que favorecem a não denegação: 1) A referência textual construída a partir dos
relatos, depoimentos e conhecimentos trazidos pelos próprios participantes que
a enunciam; 2) Os relatos verídicos se tencionam com uma temática proposta
pelo grupo e alcançam uma realidade onde o pessoal e o político se encontram;
3) A maneira que esses relatos são enunciados em cena ou no tecido urbano,
incluem a fala em primeira pessoa, em caráter de experiência e muitas vezes em
relação de proximidade com os participantes; 4) Os relatos costumam ser
acompanhados por ações que fortalecem a presença do especialista,
geralmente alguma atividade que este domina.

198

Faz-se necessário, antes de evidenciar o terceiro procedimento utilizado


pelo coletivo, que diz respeito a questões de interatividade com o espectador,
lançar um olhar crítico a respeito do uso dos dois procedimentos apresentados,
no sentido de complexificar a discussão em torno do uso de não atores e suas
histórias de vida, para refletir em que medida os especialistas do cotidiano
preservam sua dimensão real quando entram em contato com o universo cênico.

4.2.2 Comprometimentos do deslocamento do real para o campo do teatro

Como vem sendo abordado, a equipe do Rimini Protokoll ao acionar um


processo criativo lida com procedimentos como reescritura textual, ensaios,
organização dos elementos no espaço cênico e outras etapas do fazer estético,
que são capazes de aproximar o corpo extracênico do especialista do cotidiano
e seu discurso ao corpo cênico do ator tradicional.
Espetáculos, como Sociedade em Construção, dão início a etapas de
produção até um ano antes da estreia, pois como afirma Kaegi (2018), a procura
por especialistas pode ser muito longa, evidenciando o processo meticuloso de
escolha desses participantes. Já a etapa de ensaios acontece durante pouco
mais de dois meses. Mas, podem se estender até quatro meses, entre
mapeamento de histórias, reescritura textual e elaboração das cenas,
transformando os relatos das experiências de vida dos especialistas. Kaegi, em
entrevista, complementa, explicando que:

[...] mais importante é o primeiro trabalho sobre o conteúdo e sua


reescritura do que eles talvez poderiam dizer, ou em muitos casos
também coisas que eu gostaria que eles dissessem. Então é uma
negociação com eles, se eles estão de acordo em contar a história deles
dessa forma. É um processo de vai e vem. Eles me contam eu escrevo,
eles protestam, eu reescrevo, eles reescrevem, eu reescrevo e assim
vai por meses (KAEGI, 2018).

Na medida em que as narrativas foram buriladas e modificadas pelos


diretores, os relatos e experiências pessoais se transformam em produção
textual coletiva, que envolve a criação no momento da transcrição desse

199

material para a cena, levando em conta os objetivos da encenação. Marcelo


Soler, que pesquisa o teatro no campo documental, afirma que:

O ato de documentar, contemporaneamente, não se relaciona com a


equivocada tentativa de registrar a realidade como ela é, mas com a
construção (grifo meu) de um ponto de vista sobre a mesma,
depoimento de uma época, cultura e sociedade (SOLER, 2008, p.36).

A obra como construção de uma realidade vai ao encontro dos


pensamentos do coletivo Rimini Protokoll:

Iniciamos com a investigação, mas depois tem um passo em que


começamos a propor coisas que um jornalista, por exemplo, não faria. O
que vai suceder com esse espaço, com essa música, com qual
finalidade. No final, o resultado é mais do que uma entrevista. É uma
performance subjetiva, talvez autêntica no sentido que tem relação com
a vida deles, mas também é uma construção para mim. Uma entrevista
impressa no papel, numa revista por exemplo, também é artificial, mas a
situação de um público pagar para assistir algo no teatro distancia mais
do autêntico, até porque também trabalhamos por bastante tempo na
construção dessa realidade, desse acompanhamento. Por três ou quatro
meses trabalhamos com eles e também transformamos a vida deles,
porque uma coisa é retratar a realidade e a outra é construir uma
realidade (KAEGI apud LEÃO E SILVA, 2015, p.108).

O especialista não dispõe de conhecimento técnico representativo, logo,


ele precisa que o diretor o conduza nesse processo. Nesse sentido, o teatro com
não atores retoma o espetáculo de diretor. Não da forma tradicional onde este
tem o domínio de todos os elementos comunicantes, pois, como já abordado,
trata-se sempre de um diálogo, uma negociação do que vai ser colocado em
cena. Não existe uma marcação rígida dos corpos no espaço cênico, mas uma
condução precisa ser feita já que o especialista faz uma passagem das
representações do cotidiano para os códigos de representação artísticos. Além
de todos os aspectos visuais dos espetáculos que guardam um acabamento
refinado e uma coerência unificadora nos estilos de apresentação dos
especialistas. Procedimentos de direção que são visíveis a partir dos
deslocamentos realizados em cena, onde os experts vão encontrando a maneira
de se colocar no palco, de contar as histórias, de jogar com microfones e
câmeras, de forma a compor o espetáculo:

200

Técnica de pronunciação, técnica de falar suficientemente alto que você


possa escutar. Mesmo que um expert seja superinteressante, se o
público não entende porque ele fala baixo, isso não vai funcionar. Então
às vezes entram técnicas como utilizar microfones, no sentido de
aproximar o público, ou também pode acontecer, como no Estado-4 que
tem 2 estrangeiros que não falam muito bem alemão, então utilizamos
um treinador de atuação que trabalhou com eles para melhorar a
pronúncia. Então isso é uma coisa técnica que faz parte do trabalho do
ator como também do expert (KAEGI, 2018).

O expert/especialista é orientado pela direção para que preserve seu


comportamento físico, suas características pessoais e gestos
autorrepresentacionais como procedimento cênico de representação. Uma
organicidade próxima ao cotidiano na maneira de falar e se movimentar é
estimulada durante os ensaios. Técnica representativa que se funda a partir de
outros princípios criativos. Como o processo de tryouts (KAEGI, 2018)118, já que
o contato direto com o espectador para averiguar o que funciona ou não, é parte
do processo em determinados espetáculos.
No caso do já referido teatro de ready made, proposto pelo Rimini
Protokoll, quando o participante mantém sua “aura” pode significar que ele
preserva a autenticidade, a originalidade, mas enquanto alguém que participa de
um acontecimento teatral. Isso não quer dizer que ele não está representando.
Ao contrário, esse método está organizado, como vimos, para ressaltar
determinados aspectos para serem lidos pelo espectador como sendo originais,
e outros para serem lidos no sentido oposto. Recordemos que Walter Benjamin,
ao falar de aura está se referindo ao original de uma construção artística. Se, por
um lado, a aura remete a um imediatismo proveniente do contato físico do
espectador com uma obra original, por outro, há uma distância para o
espectador de outros aspectos que constitui essa mesma obra (a mão do artista
que a construiu e o processo de confecção, por exemplo, são características
ausentes em uma pintura ou escultura exposta numa galeria). A aura nos faz
lembrar, paradoxalmente, desses aspectos longínquos e apagados de uma obra
pictórica.

118
Consiste em apresentar o espetáculo para grupo de espectadores convidados antes da
estreia, de forma a experimentar o seu “funcionamento”.

201

A autenticidade cênica está à mercê da construção do jogo cênico


proposto pela encenação. Por exemplo, voltemos às artes plásticas dos anos
vinte do século passado, e pensemos no objeto duchampiano, que ao ser
deslocado do cotidiano para o espaço da arte sofre uma série de operações e
interferências a serem levadas em conta. A assinatura feita com tinta preta no
Urinol duchampiano é uma das intervenções pictóricas realizada nesse objeto
encontrado deslocado. Uma intervenção de representação na medida em que a
“assinatura de artista” é utilizada historicamente para identificar a autoria em
obras de arte. Representação que se intensifica mais quando Duchamp não
assina seu verdadeiro nome, mas sim R. Mutt (nome da fábrica que produziu o
urinol). Esse objeto não está fixado na parede na altura dos joelhos, tal qual se
encontraria em qualquer banheiro, mas exposto no chão, de cabeça para baixo
no espaço expositivo e, assim, como tantos outros deslocamentos e questões
poderiam se inferir no fascinante universo provocativo duchampiano. Oras, da
mesma forma, pode-se entender que os especialistas do cotidiano estão
emoldurados pela marca Rimini Protokoll. Seus corpos, vozes e relatos passam
por um processo de elaboração artística, recebem um enquadramento cênico,
com operações e deslocamentos inerentes a essa prática. Estão inseridos em
um contexto artístico do qual eles têm plena consciência. A própria necessidade
de repetição do espetáculo em temporada aponta para determinado nível de
artificialidade, sua maneira organizada de construção.
Busca-se uma atuação objetiva, não espetacular e afastada de excessos
emotivos como ponto de partida comum. Julie Salverson, no ensaio Performing
emergency: witnessing, popular theatre, and the life of the literal, alerta para a
cilada que constitui a “idealização do original” (SALVERSON, 1996, p.184). Já
em campo teatral, métodos têm sido usados no que Elinor Fuchs denomina de
teatro da ausência para analisar os roteiros e partituras que os atores
geralmente escondem durante uma representação: “Ao ocultar a memorização
de palavras, modos de fala e sequências gestuais, os atores no teatro ilusionista
criam sentido de presença espontânea ou um sentido de imediatismo” (FUCHS,
1985, p.166).

202

As observações de Fuchs se referem a um tipo de trabalho do ator;


aquele que constrói para si um corpo imaginário dentro de um universo ficcional.
Sob a ótica dos especialistas, os modos de fala e sequências gestuais, mais do
que uma construção artificial, configuram-se como uma prática para manter a
originalidade comportamental individual (vide a qualidade descrita de
determinadas ações realizadas pelos especialistas já explicitadas). Nesse
sentido se trabalha para fortalecer as particularidades do especialista, aquilo que
pertence somente a ele e a mais ninguém. Ao contrário do trabalho do ator que
se esforça para convocar a “ausência” de um personagem, pode-se dizer que o
especialista desenvolve sua capacidade para desenvolver sua própria
“presença”.
Há que se levar em conta, ao mesmo tempo, que, se esses elementos
provocam debates acerca de um possível “método de atuação” que o coletivo
Rimini Protokoll aplica aos não atores, por outro lado, interferem no pacto de real
que se quer estabelecer com os espectadores. Cornago (2005) aponta essa
problemática, ao comentar a “regra de atuação” proposta por Michael Kirby
(1972), que intenta construir uma escala gradual entre os polos da atuação / não
atuação:

Sem dúvida, o próprio mecanismo teatral, que só funciona segundo o


modo como é percebido pelo espectador, torna essa classificação
problemática, posto que uma representação que não é apresentada
como tal, uma não-atuação, pode ser recebida pelo público como
119
atuação, ou vice-versa (CORNAGO, 2005, p.11) .

Recordemos que com Féral já vimos que o espectador enxerga teatro


onde não há e pode também não ver quando há120. Nos espetáculos do coletivo
Rimini, como os do projeto 100% cities, por exemplo, utiliza-se de documentos
oficiais aliados a depoimentos pessoais, tendo mics e câmeras a serviço de
amplificar as expressões (corpo/voz) dos especialistas. Mas a dúvida pode ter


119
Tradução minha para “Sin embargo, el propio mecanismo teatral, que sólo funciona según el
modo cómo es percibido por el espectador, hace que esta clasificación pueda ser problemática,
puesto que una representación que no se presenta como tal, una no-actuación, puede ser
recibida por el público de este modo, como actuación, o viceversa”.
120
Retomando os exemplos citados na introdução desta tese (p.16-26).

203

lugar no espectador sagaz de que o que ele vê pode ser uma grande encenação
ensaiada por atores profissionais.
A própria expressão especialista do cotidiano parece querer gerar um
efeito de “negação” da denegação. Querendo eximir o atuante de cena do
compromisso da ilusão, sinalizando que aquilo que ele fala ou faz não é
representação, mas, sim, realidade da vida. Contudo, a desconfiança de que
isso consista em artifício para gerar efeitos que causam a impressão de algo
espontâneo e não mediado, pode promover percepção contrária: provocando a
desconfiança no espectador que devolve como reação uma resistência maior em
creditar como verdade o que é apresentado. A estratégia de propor a realidade
da vida por um modelo que se aparenta ao cotidiano pode não suspender a
denegação. Pode-se inferir que seja um ator interpretando um não ator, ou
interpretando uma história “baseada em fatos reais”, o que constitui prática em
muitos teatros121. Por outro lado, a história do sujeito é outro procedimento, mas
ainda em condições de ser deslocado para o campo da artificialidade, ser
plenamente teatralizado.
Carol Martin alerta que “o teatro do real designa um aspecto amplo de
práticas e estilos teatrais que reciclam a realidade, seja essa realidade pessoal,
social ou histórica” (MARTIN, 2013, p.5). Tal reciclagem envolve a menção
explícita, citando, simulando e convocando o mundo de fora do teatro através de
uma variedade de meios como fotos documentais, filmes, gravações em áudio,
roupas ou objetos pessoais, e também “as pessoas reais para realizar suas
próprias narrativas de vida” (MARTIN, 2013, p.8). Embora a autora não descarte
a possibilidade de que a reciclagem explícita da realidade aconteça desde o
início do teatro ocidental, o que vai ao encontro ao pensamento de Pavis,
afirmando que “a dramaturgia nunca cria nada ex nihilo, mas recorre a fontes -
mitos, notícias, acontecimentos históricos” (2001, p.387).
Infere-se que é o movimento natural do teatro recorrer aos
acontecimentos da própria vida para se constituir, reciclando a realidade. Logo,
pode não bastar que os especialistas e os programas dos espetáculos vinculem

121
Como será visto em algumas montagens do teatro biodramático (p. 206-208).

204

a informação de que não se trata de atores profissionais, mas de pessoas


comuns compartilhando suas próprias experiências de vida. Essas táticas
adulteram a denegação, mas é necessário mais elementos para capturá-la
efetivamente. Nesse sentido, o procedimento de interação se torna elemento-
chave para que isso aconteça.
Por outro lado, a expressão especialistas do cotidiano deixa entrever que
os selecionados para os espetáculos são também resultado do “recorte do olhar”
dos diretores que ressaltam determinadas características expressivas dos
participantes. Para a pesquisadora Féral, pode-se perceber teatralidade em todo
ser humano, levando-se em conta que a teatralidade é resultado da
transformação do olhar de quem vê e identifica princípios expressivos no outro,
em alguma coisa ou situação:

Mais do que uma propriedade, cujas características seriam possível


analisar, é um processo, uma produção relacionada sobretudo ao olhar
que postula e cria outro espaço, tornado espaço do outro (FÉRAL,
2015, p.86).

Nesse sentido, a teatralidade guarda características de latência, está


sempre à espreita para ser descoberta mesmo nos lugares que se menos
espera. O olho que teatraliza, que transforma o outro em “sub species theatralis”
(CORNAGO, 2005, p.8). Para Soler, ao analisar o teatro de não ficção,
reconhece que “as coisas não são, é justamente nosso olhar que faz delas algo
cheio de significado” (SOLER, 2008, p.37). Dessa forma, compreende-se que as
qualidades expressivas são percebidas pelo olhar dos diretores que elegem os
especialistas para coloca-los em cena. Os especialistas, então, são investidos
de teatralidade pelo olhar do outro. Segundo o pesquisador e artista Richard
Schechner, em análise da performance em perspectiva antropológica, “todos
nós fazemos muito mais performances do que percebemos” (2002, p.30); os
comportamentos repetidos e socialmente sancionados se encontram em todas
as atividades humanas, aproximando as esferas sociais e comportamentais ao
olhar teatral e performativo. Decorre como pressuposto de que há sempre algum

205

grau de teatralidade e repetição permeando os comportamentos sociais e as


relações intersubjetivas. Noção endossada por um dos diretores em entrevista:

Atuar é uma coisa que nós todos fazemos. Você atuando de científico
para mim e eu atuando de artista para você. Nós atuando para um
produtor conseguindo dinheiro, pessoas normais tentando conseguir
um trabalho, nos comportamos de certa forma para servir o contexto no
qual desejamos aparecer (KAEGI, 218).

A effracion (SAISON, 1998) cria um jogo ambíguo que confere


originalidade e artificialidade ao que se passa no palco. Esse desejo de mostrar
a realidade com menor desvio possível se confunde com a vontade de
evidenciar a teatralidade inata do ser humano:

Em qualquer caso, o olhar teatral atua sobre o mundo exterior


como se fosse uma operação cirúrgica praticando cortes,
descentralizações e enfoques com o objetivo de tornar visível em
uma dimensão simbólica aquilo que não é no campo da
realidade, questionando suas categorias, limites e convenções.
(CORNAGO, 2005, p. 9)122.

Esse olho que produz teatralidade também pode ser encontrado no


ensaio de Helga Finter, quando a pesquisadora alemã descreve a ocasião em
que Antonin Artaud imagina um modelo de teatro futuro “depois de ter admirado
a coreografia de um espetáculo de ação policial durante uma batida policial em
um prostíbulo, como se fosse uma coreografia potente de ballet preciso, de uma
determinação incontestável” (FINTER, 2003, p. 1). Recordemos, então, Féral,
que alertava que “a teatralidade não pertence em sentido exclusivo ao teatro”
(2015, p. 84). E, desse olhar teatralizante, testemunhamos outras formas
cênicas, por exemplo, a encenadora argentina Viviana Tellas, que organiza o
Ciclo biodramático, sobre a vida das pessoas, entre 2002 e 2009, na cidade de
Buenos Aires.
O projeto teve como princípio convidar diretores de renome para a
elaboração experimental de espetáculo que levasse em conta a vida de algum

122
Tradução minha para “En cualquier caso, la mirada teatral actúa sobre el mundo exterior
como si se tratase de una operación quirúrgica, practicando cortes, descentramientos y
focalizaciones con el propósito de hacer visible en una dimensión simbólica aquello que no lo es
en el campo de la realidad, cuestionando sus categorías, límites y convenciones”.

206

argentino vivo. Pessoas que teriam sua biografia transformada em material para
cena, e que poderiam de alguma forma participar do espetáculo através de
contato direto, seja durante o processo, contribuindo para a produção
dramatúrgica, seja se presentificando diretamente em cena. Sem restrição do
ponto de vista estético, podendo cada diretor confrontar sua respectiva poética
com a proposta dada e criar livremente a partir da pessoa escolhida.
Dentro do gênero maior, o ciclo biodramático faz um recorte específico de
teatro contemporâneo, inspirado na vida de pessoas comuns, em interessante
contraponto às grandes narrativas heroicas. Para detectar a teatralidade
existente na vida de qualquer pessoa em relação ao seu cotidiano, a diretora
elaborou a noção de Umbral Mínimo de Ficção - UMF, que prevê identificar as
características das situações ou pessoas que possam ser entendidas como
teatro. Nesse sentido, o UMF se relaciona ao “processo de produção e
teatralização dirigido ao real” (FÉRAL, 2015, p. 82). A noção apresentada de
biodrama considera a possibilidade de que qualquer pessoa possui algo de
relevante para contar, na medida em que todo ser humano é um “arquivo vivo”
(TELLAS, 2003) de relações com o mundo. Opera na camada microscópica da
sociedade, do indivíduo que a forma. Cada biodrama exibido no ciclo
conformava uma realidade específica que, no conjunto de 13 peças aponta para
a percepção múltipla de realidades existentes. Desde a criação da dramaturgia a
partir dos escolhidos, o uso de atores que falavam sobre si mesmos, ou
representava a vida de outras pessoas, incluindo algumas vezes os próprios
biografados no palco. Destaca-se, dentro do projeto biodrama, a participação de
Stefan Kaegi, com o espetáculo ¡Senta-te!, um zoostituto (2003), que leva à
cena animais de estimação e seus donos de modo a vê-los interagindo entre si.
Para Cornago, o biodrama se constitui como um fenômeno que tem
implicações físicas, processuais e coletivas para o acontecimento teatral,
evidenciando por contraste suas fronteiras e limites, ao confrontar-se a
realidades outras que não a sua:

Fazendo o caminho de volta, quer dizer, dos efeitos dessa carga vital
sobre a cena, um dos aspectos mais reveladores do ciclo consiste em

207

que, tratando de aproximar o teatro da realidade, na maioria dos casos


teve que falar do teatro, quer dizer, da realidade do próprio teatro,
como se tratasse de um efeito boomerang. Na medida em que se
tentou empurrar a cena até a vida não teatral, a própria cena fez visível
sua realidade específica. De alguma maneira, o teatro não pode falar
de uma realidade exterior a ela, sem fazer primeiro visível seu próprio
corpo, sem falar ao mesmo tempo de sua materialidade física e seus
limites comunicacionais, sem fazer presente mais do que nunca o
próprio espectador, confuso ante a natureza – ficcional ou real? – do
que ele está vendo. A arte fala da realidade exterior referindo-se a sua
123
realidade mesma (CORNAGO, 2005, p.9) .

Por apresentar características semelhantes ao Rimini Protokoll, objeto de


estudo desta pesquisa, em um primeiro momento poderíamos tentar classifica-
los como biodramáticos mas, um olhar um pouco mais apurado, compreende-se
que eles divergem, na medida em que no ciclo de Tellas o caráter interativo
entre espectador e ator se resumia aos do projeto do palco italiano, enquanto
que no teatro do coletivo Rimini Protokoll pode prever espetáculos de
interatividade com o espectador, e produções fora do edifício teatral. Também o
biodrama, da forma como foi apresentado, incluía a possibilidade de utilização
de atores profissionais representando biografias de outras pessoas ou a si
mesmos, enquanto que nas produções do Rimini Protokoll sabe-se (somos
informados pelo material parateatral e pelos especialistas) que não se trabalha
com atores profissionais. Outra diferença que se pode observar é que se, por um
lado, verifica-se uma liberdade temática e de biografias envolvidas que
demonstra a possibilidade de existência de uma ficção mínima na vida de
qualquer pessoa no biodrama, por outro, distancia-se das produções do Rimini
Protokoll, na medida em que o coletivo adere seus espetáculos às temáticas do
mundo em contexto globalizado e suas tensões decorrentes dos choques entre
as culturas e as relações de trabalho.


123
Tradução minha para “Recorriendo el camino de vuelta, es decir, de los efectos de esa carga
vital sobre la escena, uno de los aspectos más reveladores del ciclo consiste en que tratando de
acercar el teatro a la realidad, en la mayoría de los casos hubo que hablar del teatro, es decir, de
la realidad del propio teatro, como si se tratase de un efecto boomerang. En la medida en que se
intentó empujar la escena hacia la vida no teatral, la propia escena hizo visible su realidad
específica. De alguna manera, el teatro no pudo hablar de una realidad exterior a él, sin hacer
primero visible su propio cuerpo, sin hablar al mismo tiempo de su materialidad física y sus
límites comunicacionales, sin hacer presente más que nunca al propio espectador, confuso ante
la naturaleza - ¿ficcional o real? - de lo que está viendo. El arte habla de la realidad exterior
refiriéndose a su misma realidad”.

208

4.2.3 Procedimento cênico 3: situações interativas

A proposição de olhares do coletivo se concretiza tanto para o palco


tradicional quanto para espaços fora dos teatros, como abordado, constituindo-
se em site-specifics, instalações cênicas multimidiáticas, peças audiofônicas e
proposições que geram espaços de convívio entre os espectadores. Essas
diferentes modalidades artísticas, geralmente, oferecem algum nível de situação
interativa, seja do espectador com o especialista, seja entre os próprios
espectadores ou com a cidade.
Tais criações podem incluir presencialmente os especialistas do cotidiano
como descrito, ou mediá-los por ferramentas de comunicação, como o
espetáculo Call Cutta in a Box – uma peça de telefone intercontinental124, criada
em 2008. Ao chegar no local marcado da cidade de Berlim para ver a “peça”, o
espectador se vê sozinho em uma sala onde é impulsionado a fazer uma série
de ações através de uma chamada telefônica realizada por atendente de
telemarketing situado na cidade de Calcutá na Índia.
A relação estabelecida entre espectador e especialista situado em outro
continente acontece em uma conversa perpassada por relatos pessoais da
atendente que também interroga sobre a vida pessoal do espectador. Um
diálogo que acontece em tempo real, durante aproximadamente uma hora, sem
a presença física do especialista, mas que a todo o momento joga com efeitos
de presença, como oferecer algo para beber e a máquina de café ser acionada
ao lado do espectador. O procedimento revela o desaparecimento do artista em
prol de uma zona relacional entre espectador e especialista que constroem a
obra entre si.
Por outro lado, a ação vocal da especialista do call center adquire uma
concretude performativa, que se acentua em determinados momentos, nos quais
ela solicita que o espectador se desloque e realize determinadas atividades,
através das indicações verbais fornecidas por ela, via telefone celular. A
potência da proximidade física do especialista observada nos espetáculos

124
Criado pelo trio de diretores.

209

anteriores se perde, sendo substituída por um diálogo intensificado com o


espectador não somente em termos subjetivos, mas pelo envolvimento do corpo
dele ao ser solicitado a realizar atividades (dançar, procurar objetos pela sala,
descrever os quadros pendurados na parede). Se as ações dos especialistas
presentes em cena anteriormente (como Palavras cruzadas pit-stop, ou Mr.
Dagacar and the golden tectonics of trash) não implicavam na participação da
audiência, em espetáculos como Call Cuttá in a box em que o especialista está
ausente espacialmente, as ações são “delegadas” diretamente ao espectador.
É cada vez mais comum a prática artística contemporânea se imbricar as
máquinas e aos dispositivos digitais de comunicação. Dessa relação surge a
possibilidade de se refletir sobre a transformação dos modos de vida do homem
decorrentes do uso indiscriminado dessas tecnologias no nosso cotidiano.
Popularizados a partir da metade do século XX e velozmente apropriados pelos
artistas em diversos segmentos, no caso do coletivo Rimini Protokoll, esses
aparelhos são alçados, muitas vezes, a mediadores das relações entre os
especialistas e espectadores.
A interação por meio de aparelhos e regras aparecem investidas de
outras qualidades em Situations Rooms - A multiplayer video piece125(2013).
Proposta cênica onde os diretores colocam o espectador em situação de
performance constante. Esse, munido de fones de ouvido e tablet, desloca-se
por corredores e salas cenográficas as quais reproduzem exatamente os
ambientes que ele vê no documentário exibido na tela. Em uma situação de
imersão o espectador deve reproduzir as situações reais que foram filmadas
pelos especialistas, refazendo os passos de diversas pessoas que tiveram suas
vidas atravessadas pela presença de armas de fogo.
Como usual, é preciso seguir um conjunto de regras preestabelecidas, um
manual de instruções que determina o funcionamento de Situations Rooms, pois
os vídeos e áudios são pré-gravados, e o espectador literalmente refaz no
espaço, em forma de instalação cênica, as ações gravadas. Enquanto escuta


125
“Uma peça de vídeo para múltiplos jogadores” (tradução minha).

210

depoimentos de pessoas de diferentes nacionalidades, ele se desloca em


inúmeras trajetórias distintas.
Nesse contexto, as tecnologias se apresentam de forma a realizar uma
conexão com especialistas ausentes, ao mesmo tempo em que coloca o
espectador como agente da ação cênica ao performar situações que foram
vividas por pessoas de diversas partes do mundo. Pode-se dizer que a
“espessura da presença” (DUBATTI, 2007) do especialista é substuída por uma
presença registrada em vídeo.
Ressalta-se, que se, por um lado, as questões de interatividade se
referem aos estudos recentes para se analisar a relação do homem com a
máquina e com ambientes virtuais, por outro, a interação inter-humana faz parte
dos estudos da comunicação interpessoal desde os anos de 1960. Nesse
sentido, os estudos sobre interação procuram definir a natureza da relação
interpessoal que se estabelece, e que varia em grau, qualidade e de um
contexto para outro. Historicamente, o modelo paradigmático de “ação e reação”
aponta para uma interação rudimentar, fundamentado na transmissão linear e
consecutiva de informações, e baseados na superioridade do emissor (CASSOL;
PRIMO, 1999). Uma interação de mão única, que se encontra defasada, pois
não leva em conta a interdependência dinâmica (BERLO, 1991) dos agentes,
que os estudos mais recentes da comunicação privilegiam ao enfatizar a
questão da interação propriamente dita.
O que se observa em Situation Rooms se aproxima do modelo ação-
reação, que em termos de interatividade (homem-máquina) se traduz como um
modelo unidirecional emissor-receptor. Guarda as qualidades de linearidade,
desigualdade de relação, baseado na hierarquia dos vídeos pré-gravados que o
espectador precisa reproduzir. O emissor se apresenta em sistema fechado,
limitando a relação para uma interação reativa. O pesquisador em comunicação
e semiótica Arlindo Machado (1990) alerta que contemporaneamente,

Boa parte dos equipamentos hoje experimentados ou já


comercializados como interativos são na verdade, apenas reativos,
enquanto que a verdadeira interatividade deveria abarcar a

211

possibilidade de reposta autônoma, criativa e não prevista da audiência


(MACHADO, 1990, p. 26).

De acordo com esses sistemas onde a comunicação como troca


simbólica cai em um monopólio onde o emissor se torna hegemônico é
prejudicial às trocas comunicacionais e a capacidade de resposta. Ao colocar o
espectador no lugar do outro através de uma reencenação, como é a proposta
em Situations Rooms, transforma-se o teatro em uma espécie de jogo de
videogame, como sugere o próprio subtítulo - a multiplayer video piece -
correndo-se o risco de banalizar as situações delicadas apresentadas. O
processo empático tende a ficar limitado, dada a frieza do meio e a
unilateralidade interativa da proposta, impossibilitando colocar em movimento a
essência do processo comunicativo. Oras, comunicação pressupõe troca,
comunhão, uma relação ativa entre os comunicadores como possibilidade de
diálogo efetivo, sendo estes mediados por artefatos tecnológicos ou não.

FIGURA 53 - Situations Rooms


Crédito: Rimini Protokoll/Divulgação

O desaparecimento do especialista pode se intensificar em alguns


espetáculos do coletivo, chegando a total ausência deste, instaurando um

212

espaço de encontros e diálogos entre os presentes, como no projeto Home visit:


Brasil em casa (2015)126. Os espectadores se encontram em uma casa
residencial cedida por algum morador da cidade para participar de um jogo de
perguntas e respostas em torno de uma mesa, onde a cada noite uma narrativa
diferente se constrói, enquanto um bolo está sendo assado no forno. Nessa
modalidade, o especialista é substituído por um mestre de cerimônias que serve
de árbitro explicitando as regras do jogo e seu contexto, zelando para que a
proposição relacional progrida. No caso de Home visit: Brasil em casa o tema do
jogo era perpassado pela história das ditaduras na América Latina. A qualidade
do contato aqui está perpassada pela sincronização e reciprocidade na
interação, que tende a culminar em uma maior aproximação entre os
participantes, se concordarmos com Primo (1999) que a relação interpessoal
não existe na “cabeça” dos indivíduos, mas entre eles, onde a comunicação não
é apenas um conjunto de ações para com outra pessoa, “mas sim a interação
criada entre os participantes” (CASSOL; PRIMO, 1999, p.74).
Em termos de interação, pode-se argumentar que o coletivo Rimini
apresenta duas facetas distintas: a interação reativa, como pode ser vista nos
espetáculos Situations Rooms, e a interação mútua como no caso de Home visit:
Brasil em casa. Colocando em perspectiva de comparação, o que se vê nesses
formatos é a entrega do desenvolvimento e do êxito das propostas aos
espectadores, ainda que a interatividade se intensifique em Home visit: Brasil
em casa, em relação aos dois exemplos anteriores (Situations Rooms e Call-
Cuttá in a box) que não envolvem a presença física do especialista.
Pois a interação mútua em Home Visit favorece a produção de um diálogo
aberto ao valorizar a relação entre os participantes. Confere-se, dessa forma,
liberdade para o espectador, onde a cada lance jogado, um novo patamar de
relações precisa ser negociado. Enquanto a interação reativa em Situations
Rooms se caracteriza como um diálogo fechado e unilateral, comprometendo a
interação de fato.


126
O pesquisador participou de Home Visit: Brasil em casa em setembro de 2018, na cidade de
Porto Alegre.

213

FIGURA 54 - Home visit: Brasil em casa.


Crédito: Rimini Protokoll/Divulgação

O crítico de arte francês Nicolas Bourriaud traz luz à discussão sobre


fenômenos contemporâneos, que tendem a estruturar a obra de arte como um
interstício social, “que toma como horizonte teórico a esfera das interações
humanas e seu contexto social” (BOURRIAUD, 2009, p.19). Segundo o autor, os
encontros efêmeros entre as pessoas dentro do processo incessante de
urbanização acabam por gerar práticas artísticas correspondentes: a ascensão
da arte enquanto zonas de encontro e proximidade; uma forma que “tem como
tema central o estar-juntos” (BOURRIAUD, 2009, p. 21). E esse “estar-juntos” é
o que vemos em Home Visit onde se delineia uma possível estratégia em termos
de interrupção da denegação pelo viés dos encontros não mediados pela
representação. Pois se torna improvável um espectador denegar outro, na
medida em que ambos se encontram na mesma posição de criadores. Em Home
Visit temos o paradoxo proposto pelo coletivo, pois o próprio teatro enquanto
lugar de encontro entre artistas e audiência se encontra também aqui negado.
Ainda outras modalidades de espetáculos propõem “modelos de
socialidade” (BOURRIAUD, 2009, p.40) que se caracterizam por caminhadas

214

interativas em espaços públicos e a utilização de dispositivos tecnológicos


(áudios, vídeos, câmeras de segurança, internet) como mediadores entre o
espectador e a cidade ou entre os próprios espectadores e outras pessoas.
Proposições que, ora descortinam a vida dos que transitam nesses espaços, ora
propõem narrativas ficcionais a partir desses lugares, através de indicações
fornecidas via áudios pré-gravados ou produzidos em tempo real. Ações em
consonância com produções que “ativam os espaços públicos” (LEHMANN,
2007, p.282).
O próprio Bourriaud nos recorda que a arte é sempre relacional, porém
em diferentes graus, e se tratando do campo das artes presenciais, que se
caracteriza justamente pelo viés dos encontros, essa assertiva se torna mais
evidente. As questões de interatividade nesse contexto promovem contato entre
produtores artísticos e espectadores em formatos onde o espectador é levado a
interagir com o cotidiano das cidades, com o cotidiano dos especialistas e dos
outros espectadores, por vezes levado a agir fisicamente como resposta a uma
proposta relacional.
Como demonstrado, é amplo o campo de atuação do coletivo, levando
em conta o conjunto de obras e dos diferentes especialistas envolvidos e
espaços utilizados. A construção da relação do individual versus coletivo, o
contato direto com pessoas desconhecidas como estrangeiros, imigrantes e
excluídos sociais, a investigação lúdica dos diferentes locais das cidades, a
criação de jogos que geram relações entre espectadores, as narrativas pessoais
e biografias imbricadas com produção textual e tecnológica, inscrevem as
atividades artísticas do coletivo no âmbito das esferas sócio-políticas e
relacionais. Não é interessante para esta tese o mapeamento de todas as
possíveis nuances estéticas, conceituais, operacionais e temáticas que os
trabalhos do coletivo apresentam, pois relembramos ao leitor que a proposta
aqui é a trazer à luz as estratégias utilizadas pelo coletivo para driblar o pacto
denegatório

215

Se por um lado, determinadas práticas do coletivo apostam em projetos


artísticos127 como 100% Cities, Cargo - X e Visit Home, por outro, vem se
elaborando produções com diferentes olhares sobre o trabalho dos não atores
que promovem percepções singulares sobre o lugar do espectador, como
acontece no espetáculo Sociedade em Construção (2018), onde os relatos
pessoais são atravessados pelo manual de instrução que o próprio especialista
aplica à audiência. Se nos trabalhos anteriores descritos essa relação não se
concretizava plenamente dada a distância espacial entre os participantes (Call
Cuttá in a box)128 ou temporal (Situations Rooms), ou pelo desaparecimento do
especialista (Home Visit: Brasil em casa), em Sociedade em Construção o
espectador e especialista se encontram em um mesmo tempo-espaço para
imprimir no acontecimento artístico uma potente dimensão relacional através do
entrecruzamento de inúmeros procedimentos experimentados em práticas
anteriores pelo coletivo, e que será analisado no próximo subcapítulo.
Retomam-se agora características de interatividade nas proposições do
coletivo Rimini Protokoll que contribuem para suspender a tendência à
denegação: 1) o espectador é levado a realizar deslocamentos e visitas a
lugares públicos e privados da cidade através de dispositivos tecnológicos
diversos; 2) especialista e espectador podem interagir em forma de diálogo em
tempo real; 3) o espectador é levado a agir com seu corpo através de ações
impulsionadas pelos especialistas; 4) o especialista pode desaparecer das
proposições restando um espaço de interação e convívio entre os próprios
espectadores.

4.3 Apresentando a tetralogia Estado

Faz parte do corpus de análise desta tese o espetáculo Sociedade em


Construção do coletivo Rimini Protokoll, pertencendo à tetralogia denominada de

127
Espetáculos que mantêm a mesma estrutura estética mas que modificam os especialistas, as
narrativas, trilha sonora e documentos utilizados a cada nova produção.
128
Estabelecendo o que Dubatti (2007) nomeou de “tecnovívio”, relações mediadas pela
tecnologia em condição de sustação do corpo. O que impediria o acontecimento convivial, que
prevê a reunião de corpo presente no teatro.

216

Estado 1 - 4. Em conjunto, as obras propõem reflexões sobre fenômenos pós-


democráticos, na perspectiva de entender se os poderes dos chamados
Estados-Nação129 são ainda capazes de regular os impulsos decisivos para as
mudanças que as sociedades necessitam. A primeira parte da tetralogia,
denominada de Estado 1 - Top Secret International, foi criada por Helgard, Kaegi
e Wetzel, e caracteriza-se por audioplay no interior do museu Neues (Berlin)130 .
Recordo que as peças de áudio constituem modalidade artística que faz parte do
repertório criativo do coletivo desde suas origens, e se configuram por textos
pré-gravados que exploram determinadas temáticas, a serem ouvidas em
lugares específicos da cidade para a qual elas foram pensadas.
Munido de fones de ouvido e dispositivo GPS conectado a um
algoritmo131, uma narrativa transforma o espectador em jornalista que investiga a
rede global de segredos de Estado e seus serviços secretos. Enquanto ele
caminha entre objetos e estátuas egípcias do museu, histórias sobre
investigações dos serviços de espionagem estrangeiros, biografias de oficiais de
inteligência, escândalos e vazamento de informações confidenciais vão
revelando os poderes do “estado dentro do estado” (RIMINI PROTOKOLL,
2018)132. Questões são lançadas ao espectador, que precisa tomar decisões
sobre o desenvolvimento da história que se desenrola; a cada decisão o
espectador é guiado para lugares específicos do museu, compondo uma
narrativa espacial e ficcional própria.
Os áudios ressignificam as obras exibidas e a exposição como um todo, e
o espectador é levado a fazer contato com os outros participantes
desconhecidos, a descobrir salas secretas no museu, ou realizar tarefas, que se
tornam visíveis publicamente, de forma a acessar novos arquivos virtuais e fazer
a narrativa progredir. O audioplay propõe um olhar reflexivo sobre o cotidiano do
espaço do museu, relacionando a concretude das obras expostas a elementos

129
Como consta no prospecto do projeto fornecido aos espectadores.
130
O espaço contemplava 3 andares da Mostra permanente de objetos arqueológicos do antigo
Egito. O audioplay tinha duração de aproximadamente 90 minutos. O pesquisador participou da
sessão no dia 4 de março de 2018.
131
Em ciência da computação, o algoritmo é uma sequência finita de ações executáveis que
visam obter uma solução para um determinado tipo de problema.
132
Como consta no site do grupo: https://www.rimini-protokoll.de/website/en/

217

narrativos, com vistas a refletir sobre a fragilidade dos sistemas de proteção e


compartilhamento das informações em um mundo tecnológico complexo e
competitivo.
O museu é transformado através dos relatos virtuais que lançam um olhar
cheio de teatralidade para as pessoas, objetos e espaços. Um teatro íntimo vai
se desenhando através da relação do espectador com seu imaginário
estimulado pelos relatos do áudio. O tema da espionagem para o espectador se
torna uma prótese que se fixa no real do cotidiano do museu para criar
intercâmbio entre os participantes e objetos, para refletir sobre a condição
social-tecnológica atual. A ausência física do narrador e a presença concreta
dos espaços do museu articulam teatralidades capazes de deslocar o olhar do
espectador que passa a perceber o museu de forma imaginada. Segundo
Fischer-Lichte, “o fato de atravessar espaços reais enquanto se escuta uma
história ficcional estabelece uma relação completamente nova entre real e
imaginário” (2007, p. 25).


FIGURA 55 - Estado 1.
Crédito: Rimini Protokoll/Divulgação

218

Já Estado 3 - Sonhos Coletivos. Conduzindo Ovelhas133, concebido e


dirigido por Wezel, parte de uma premissa ficcional para deflagrar um jogo de
perguntas e respostas entre uma máquina e os participantes. O espaço ficcional
onde se passa o jogo é uma sala futurista no ano de 2048. A humanidade está
sendo gerenciada digitalmente. Não há mais violência nem acidentes de trânsito
porque a inteligência artificial denominada de IRIS assumiu o controle das armas
e do tráfego, e a participação dos coletivos nas decisões democráticas
acontecem por meio de feedback digital. Tendo como ponto de partida a
democracia antiga ateniense, um software lança perguntas aos espectadores a
respeito das decisões econômicas e sociais, e depois mede os resultados. A
proposta procurava explorar os potenciais e os perigos da tecnologia para os
processos democráticos contemporaneamente.
Os espectadores, ora colocados frente a frente (mas separados
visualmente por dispositivos móveis colocados entre eles), ora divididos em
grupos, respondem às questões que são enunciadas de diferentes formas:
projetadas nas paredes, ouvidas por equipamentos sonoros, ou impressas em
dispositivos digitais. As respostas deflagram possíveis cenários mundiais em
forma de textos e vídeos134 . É possível identificar as bases do trabalho da dupla,
Daniel Wetzel e Helgard Haug, pois uma máquina adquire o protagonismo da
cena propondo e mediando as relações humanas, enquanto é possível ver os
especialistas na figura de técnicos e engenheiros operando computadores e
dispositivos sonoros através de janelas situadas em uma das laterais da sala.


133
A instalação cênica estava situada no 3º andar do centro Haus der Kulturen der Welt. O
pesquisador participou da sessão no dia 5 de março de 2018.
134
Podemos trazer como referência para o ambiente tecnológico proposto aqui, a estranha
inteligência artificial que interage com os homens, no filme de ficção científica, 2001 uma
Odisséia no espaço (1968), do diretor Stanley Kubric.

219


FIGURA 56 - Estado 3.
Crédito: Foto minha

Depois de Estado 1 - Top Secret International, sobre serviços de
inteligência global, Estado 3 - Sonhos Coletivos. Conduzindo Ovelhas, sobre a
importância do espaço digital para processos democráticos, em Estado 4 -
Davos, estado do mundo, lança olhar crítico sobre as decisões que ocorrem nas
reuniões privadas entre as influentes corporações internacionais. Os diretores
Helgard e Kaegi se baseiam no Fórum Econômico Mundial, em Davos, para
especular sobre o poder dos encontros globais, organizados para uma elite com
influência política e financeira para discutir sobre os destinos das nações e as
relações de propriedade e poder. Em um palco arena transformado em pista de
gelo, um médico, um sociólogo, um membro do conselho executivo de Davos, e
uma vice-presidente de ONG realizam diversas atividades enquanto discutem o
mundo como um modelo de negócios privados.
Os espectadores, espremidos em arquibancada entre o palco e uma
larga tela de projeção panorâmica, recebem uma pasta contendo profiles de
executivos de importantes corporações que frequentam Davos. Os espectadores
se colocam como participantes da reunião, enquanto os especialistas do
cotidiano revelam as estratégias políticas, econômicas e sociais empregadas
para defender interesses privados.

220

FIGURA 57 - Estado 4.
Crédito: Rimini Protokoll/Divulgação


4.3.1 Espetáculo Sociedade em Construção

Sociedade em Construção135 é a segunda parte da tetralogia Estado. O


espetáculo se incorpora a uma estrutura impulsionada por projeto artístico que
tem por tema central discutir as diversas facetas do estado e as relações com
seus indivíduos, como consta no livreto dedicado ao projeto. Com 90 minutos de
duração, foi assistido por este pesquisador no mês de estreia, no dia 4 de
fevereiro de 2018, no centro Haus der Kulturen der Welt136, instituição que
usualmente abriga projetos artísticos alternativos e não usuais. O prédio ainda
guarda importância histórica para a Berlim pós-guerra. Inicialmente utilizado
pelos norte-americanos em programas de reeducação antifascista, hoje


135
Registro videográfico na versão original em alemão: https://vimeo.com/274536717. Acesso
em 4 maio de 2019.
136
O projeto Staat 1-4 faz parte do projeto 100 Years of Now, financiado pelo Governo Federal
da Alemanha. É uma cooperação entre cinco instituições artísticas, o Haus der Kulturen der
Welt, a Münchner Kammerspiele, a Düsseldorfer Schauspielhaus, a Staatsschauspiel Dresden, a
Schauspielhaus Zürich com o coletivo Rimini Protokoll.

221

transformado em espaço cultural. O projeto Estado 1-4 na sua totalidade


apresenta, como visto, um conjunto de práticas cênicas contemporâneas de
caráter interdisciplinar e de interconectividade.
No grande hall situado no segundo andar, as três portas de acesso ao
espaço que abriga o espetáculo foram cobertas de folhas de jornais populares
com notícias atuais e diversificadas da Alemanha. As matérias sobrepostas
umas às outras, de forma aleatória, compunham um imenso mosaico
fragmentado de informações sobre o cotidiano das cidades, e foram
emolduradas com fita zebrada, que são geralmente utilizadas para demarcar
locais de passagem interrompida. As laterais do hall receberam cercas de ferro
com telas vazadas que remetem tanto a um espaço de uma obra em construção,
como a um campo de refugiados ou de contenção. Ainda uma placa suspensa
fornecia a ficha técnica do espetáculo e a planta-baixa do espaço utilizado, que
foi transformado para o espetáculo. Esses três elementos, dispostos em relação,
configuram informações possíveis de reflexão.
As portas que dividem o espaço do cotidiano do espaço da representação
receberam uma camada artística semelhante à técnica de collage. Além dos
recortes de jornais apontarem para característica teatral do coletivo, em
proximidade com formatos cênicos documentais e jornalísticos, a técnica
estruturante da colagem em si revela sobre o que será visto em cena:
sobreposição de acontecimentos, fragmentação, condensação temporal e soma,
típica dessa técnica visual (COHEN, 2004), e que antecipam elementos da
própria organização do acontecimento teatral que será experienciado pelo
espectador ao ultrapassar para o espaço do outro lado da porta.
Também a cerca de ferro utilizada como cenografia, enquanto produto
manufaturado deslocado para o espaço artístico, sublinha outra característica do
coletivo: a alocação de objetos, materiais e pessoas do cotidiano para o espaço
cênico. Enquanto a placa revela um material parateatral que informa o nome dos
participantes, datas, local e patrocinadores do espetáculo, ainda, antecipa, tal
qual um mecanismo de distanciamento brechtiano, o espaço arquitetônico e a

222

disposição dos materiais, que será habitado, pelos espectadores e especialistas,


em conjunto.

FIGURA 58 - Hall de entrada para Sociedade em Construção.


Crédito: Foto minha

Depois de um tempo no hall, os espectadores são convidados a entrarem,


divididos em 8 grupos de até 12 integrantes, que ingressam simultaneamente
nas oito estações cênicas dispostas ao longo do espaço, que no conjunto se
configura como um grande canteiro de obras. Todos recebem capacetes de
proteção e abafadores de som que contêm no seu interior fones de ouvido137 .
Cada estação cênica se estrutura por cenografia interativa específica, onde um
expert do cotidiano vai, durante nove minutos, narrar suas experiências,
conhecimentos, e tecer opiniões sobre o mundo globalizado da construção civil,
enquanto os participantes são instruídos a realizarem alguma atividade ligada à
área que o especialista trabalha.
Uma imensa instalação cênica estruturada em forma de dispositivo teatral
imersivo. Em nível simbólico, cada integrante da audiência é parte da
engrenagem que faz funcionar as diferentes etapas das megaconstruções
ativadas pelo poder público e privado, onde se observa a conduta dos agentes e
consequências para a sociedade e os indivíduos envolvidos. Os especialistas
variam do operário imigrante explorado, passando por advogados que defendem
ou perseguem criminalmente grandes corporações, professores que explicam o
comportamento humano em coletivo, engenheiro malsucedido, até o trabalhador

137
Fones de ouvido com tradução para o inglês foram oferecidos para espectadores não
familiarizados com o idioma alemão.

223

do setor de investimentos imobiliários. As questões políticas, econômicas e


sociais inerentes a cada área vão sendo abordadas de forma crítica e lúdica
pelas imagens e palavras da equipe.
Através da apresentação de empreendimentos que aconteceram ao redor
do mundo, o espetáculo faz um recorte, em nível macro, sobre a sociedade
contemporânea e a complexa interdependência entre empreiteiras, partidos
políticos e a sociedade. Ao mesmo tempo em que, em nível micro, revela os
agentes que fazem essas estruturas funcionarem.
O espaço teatral é investido de máquinas, objetos reais da construção
civil, dispositivos tecnológicos, misturados a cenografias artificialmente
construídas. Imagens diversas são projetadas nas paredes acortinadas: gráficos,
estatísticas, maquetes, planta-baixa de projetos arquitetônicos reais; fotos
históricas e atuais de construções com sobreposição gráfica dos custos
previstos para cada uma e o valor real que elas custaram; vídeos documentais
de entrevistas e reportagens sobre o tema. Também imagens em tempo real
capturadas por câmeras posicionadas estrategicamente que mostram as
próprias estações cênicas em funcionamento. Por vezes, os especialistas são
atomizados individualmente em projeção, outras, uma câmera panorâmica aérea
mostra perspectivas diferentes dos lugares, como os caminhos que se
entrecruzam dos grupos ao se deslocarem de uma estação cênica à outra, como
um imenso formigueiro humano e suas trajetórias.

224

FIGURA 59 – Sociedade em Construção I.


Crédito: Captura de vídeo/registro

FIGURA 60 - Sociedade em Construção II.


Crédito: Captura de vídeo/registro

O tempo de cada relato e permanência nas estações é meticulosamente


controlado por uma sirene que soa alto, acompanhado de jogo de luzes e
cronômetros regressivos projetados, comunicando o momento exato para troca
de estação. No livreto disponibilizado, há informações dos especialistas: nome,
Idade, nacionalidade e todo histórico profissional de cada um acompanhado por
sua respectiva foto. A evidência documental e a performance ao vivo com a
promessa de sua “presença aurática no aqui e agora” (BENJAMIN, 1987, p. 184)

225

se interpenetram. Os currículos extensos descritos revelam que os participantes/


especialistas não possuem experiência no campo da representação teatral.
Destaco que a expressão estação cênica designa o lugar onde cada
grupo de espectadores permanece por breve período de tempo e que contém
todos os elementos e materiais necessários para o seu funcionamento de forma
independente uma das outras, mas que se interconectam pelas trajetórias
realizadas por cada grupo, assim como se criam interações ressignificantes
entre as estações através da interferência direta realizada pelos especialistas. A
metáfora de uma cadeia produtiva se estabelece na Sociedade em Construção,
onde um conjunto de etapas consecutivas acontece. Uma sucessão de
operações realizadas por diversas unidades interligadas como uma corrente.

1- Estação Construindo Tecnologia


O engenheiro italiano Alfredo di Mauro, responsável pela construção do
sistema de controle anti-incêndio do interminado Aeroporto Internacional de
Berlin (BER), entre os anos de 2006-2014, narra o fato que virou notícia nos
meios de comunicação configurando um escândalo nacional à época. O
orçamento crescente que hoje já ultrapassa 6,8 bilhões de dólares, teve como
principal motivo do atraso, segundo autoridades governamentais, uma falha na
construção do setor de controle de fumaça. Em virtude desse acontecimento, o
engenheiro perdeu o emprego e continua envolvido em longos processos
judiciais, com parlamentares alemães sendo chamados para explicar o atraso e
superfaturamento da obra.
Segundo o relato de Di Mauro, ele serviu de bode expiatório para
acobertar um imenso esquema de corrupção estatal. Ele alega que a construção
que ele projetou, depois de pronta, não foi testada antes de ser condenada.
Nesse momento, fotografias originais de diversos ângulos do aeroporto são
projetadas por todas as paredes da sala.

226

FIGURA 61 – Estação Construindo Tecnologia I.


Crédito: Rimini Protokoll/Divulgação

Ele conduz o grupo a um longo corredor de andaimes, fechados


lateralmente por cortinas de plástico, posiciona e instrui os espectadores como
utilizarem pranchas de madeira – que contêm o desenho gráfico do sistema
original do projeto que ele concebeu - como dispersoras de fumaça. Em seguida,
máquinas de fumaça são acionadas dentro desse espaço, simulando a função
do canal de extração que ele projetou, para demonstrar que seu sistema
funciona adequadamente. Toda a ação é filmada por câmeras e projetada em
um telão posicionado fora desse corredor, onde os demais podem acompanhar
a ação. O espectador colocado na posição de abanar a fumaça tem seu corpo
transformado de forma lúdica em peça de engrenagem, que no conjunto faz
funcionar o sistema. Uma ação feita em coletivo que experimenta de forma
prática o funcionamento da obra projetada.
Em seguida, o grupo é levado para fora do corredor para assistir, nesse
mesmo telão, a imagens documentais sobre a cobertura do escândalo pela

227

mídia à época. O especialista lê trechos de matérias publicadas em jornais,


posicionado agora no centro de uma montanha de terra cenográfica, como se
estivesse enterrado nela, como um típico personagem beckettiano incapaz de
agir frente à situação.
O especialista se apresenta de uma forma cotidiana, com modulação da
fala auxiliada por microfone de lapela, evitando, assim, a necessidade de
projeção vocal. A percepção de autenticidade aumenta pelo fato desse relato ter
gerado impacto midiático, sendo Di Mauro conhecido por muitos que estavam na
audiência. As matérias jornalísticas, fotos documentais e a planta baixa do
aeroporto projetadas ou materializadas nas mãos do especialista reforçam a
verdade do referencial. A presença concreta do especialista, a história narrada
conhecida, os documentos utilizados e a ação experimentada pelo espectador,
em conjunto, geram uma potência de real em relação aos elementos
apresentados que se torna difícil situá-los como irreais ou “aparentados ao
sonho” para retomar a expressão de Ubersfeld (2005).
Por outro lado, o jogo físico com os espectadores não acrescenta outra
camada de veracidade à narrativa, não mostra que o sistema de fumaça
realmente funciona fora do espaço da cena. Mas há uma tentativa de reparação
simbólica a potencial injustiça sofrida pelo especialista, que agora pode ver
funcionar sua construção. A ação perpetrada pelo espectador se torna bastante
concreta pois ele precisa dispersar a fumaça que se acumula ante seus olhos se
pretende sair do corredor onde se encontra.
É visível o processo de edição que os criadores profissionais
empreenderam com Di Mauro, mesmo que não esteja claro para os membros da
audiência em que medida Kaegi e o dramaturgo convidado Imanuel Schipper
serviram como escritores fantasmas. A narrativa se interrompe para dar espaço
à ação coletiva no canal de extração de fumaça, para depois ser retomada pela
imagem do expert enterrado em uma montanha de terra cenográfica. Mesmo
que o espectador não tenha referências teatrais precisas, percebe-se a situação
construída da cena.

228

Todavia, esses elementos não impedem de colocar o espectador em uma


situação em que ele se depara com alguém que está fora de um personagem
ficcional e dentro de um drama verídico apresentado por quem viveu e vive a
situação apresentada. Nesse sentido, a camada estética e simbólica que investe
a cena colabora para reforçar justamente o caráter de realidade que envolve o
acontecimento.
Assim como o relógio no pulso de cada expert que controla o tempo
narrativo individualmente, a sirene, luzes e cronômetro projetado que assinalam
o fim das oito narrações em conjunto, revelam o controle rígido do sistema
organizado da linguagem cênica, e remete, paradoxalmente, a um senso de
imediatismo sempre que se percebe que os performers são dependentes do
tempo metodicamente vigiado pelos seus relógios e pelos sons.
Por fim, a última frase de Di Mauro antes de conduzir os espectadores
para a estação cênica seguinte - que se encontra exatamente à frente do
cômodo de areia - é lançada:
- Não acreditem em tudo o que ele vai dizer a vocês!

229

FIGURA 62 – Estação Construindo Tecnologia II.


Crédito: Rimini Protokoll/Divulgação

2- Estação Advogado de Construção


O advogado especialista em leis de construção e direito de arquitetura,
Jürgen Mintgens, introduz a audiência em um esporte de combate enquanto
narra as estratégias dos advogados para defender as empresas estatais das
constantes reivindicações orçamentárias suplementares que surgem no decorrer
de construções de grandes obras. Os capacetes amarelos são substituídos por
capacetes vermelhos protetores para a prática de artes marciais. O grupo é
dividido e colocado frente a frente. O expert ensina técnicas de defesa e ataque
que precisam ser repetidas em sequência pelos dois grupos. Enquanto um
grupo representa os empresários que atacam exigindo mais verbas ou
indenizações, o outro grupo representa a força do estado que se defende.
O engajamento físico do espectador que realiza ações agressivas
divididos em uma espécie de ringue, a narrativa que não remete a história de
memória mas explica o funcionamento jurídico estratégico utilizado pelas

230

grandes corporações internacionais, todos esses elementos contribuem para a


imersão do espectador na proposta apresentada. Ao mesmo tempo, o
especialista não perde o protagonismo da cena. Ele está sempre no centro,
todas as atenções são direcionadas a ele, que exibe posições precisas de um
lutador de artes marciais, e demonstra conhecimento de vocabulário jurídico
assertivo.

FIGURA 63 - Estação Direito de Construção I.


Crédito: Rimini Protokoll/Divulgação

231

FIGURA 64 - Estação Direito de Construção II.


Crédito: Rimini Protokoll/Divulgação

3 – Estação Investimento de Capitais


Os espectadores são conduzidos para o interior de um container
transformado em sala de reuniões. A consultora financeira Sonja-Verena
Breidenbach faz análises custo-benefício para investimentos em ouro concreto,
acompanhada de vídeos e maquetes contendo grandes prédios em construção
nos centros das maiores cidades econômicas, ao redor do mundo. Os
espectadores, sentados à mesa de negócios, precisam fazer escolhas onde
investir o dinheiro cenográfico, que em determinado momento cai pelo teto
vazado da sala.
Prédios comerciais gigantes em Dubai e Abu Dhabi, investimentos de
risco no centro de Londres em virtude das flutuações econômicas provocadas
pelo brexit, um shopping center à venda em Istanbul, conjunto de prédios
modestos em Düsserldorf são algumas das possibilidades de investimentos que
fazem parte de um jogo de compra e venda imobiliária para gerar futuros lucros.
Cada opção envolve riscos e oportunidades de rendimentos que lidam com
valores que superam centenas de milhões de euros.
A sala situada no centro da instalação cênica catalisa todas as atenções.
É o espaço mais confortável e seguro, com paredes que a separam das outras

232

estações cênicas e pessoas, ocultando as ações que acontecem do lado de


dentro. Anúncios em forma de comerciais videográficos, revistas originais,
maquetes e fotografias estão voltados para atrair os espectadores, agora
colocados na posição de investidores.
Os vídeos são transmitidos em um monitor semicircular em forma de
globo terrestre posicionado no centro da mesa, as maquetes com rigor de
detalhes, as fotografias reais de prédios emoldurados na parede, as luzes
fluorescentes no teto da sala, todos os elementos conferem autenticidade para o
ambiente, assim como o conhecimento preciso da especialista confere a sua
apresentação pessoal veracidade.

FIGURA 65 - Estação Investimento de Capitais I


Crédito: Rimini Protokoll/Divulgação

233

FIGURA 66 - Estação Investimento de Capitais II.


Crédito: Rimini Protokoll/Divulgação

4- Estação Construção de Interiores


Os participantes ganham luvas e chapéu de mesmo modelo do
especialista, o imigrante de origem romena Marius Ciprian Popescu. Ele relata
suas histórias como trabalhador ilegal, explorado na construção civil na Romênia
e depois na Alemanha. Os turnos intermináveis de trabalho, a falta de
pagamento, a crise dos desempregados, resultante dos homens sendo
substituídos pelas máquinas, e sua paixão por retroescavadeiras. Enquanto ele
relata, fotos dos empreendimentos nos quais ele trabalhou e os modelos de
casas que construiu são projetados em uma das paredes da sala. Como um
mestre de obras, ele orienta a audiência a carregar tijolos de uma pilha à outra
diversas vezes até construir uma pequena parede. A ação carrega consigo
importantes elementos significativos que serão analisados em subcapítulo à
parte.

234

FIGURA 67 - Estação Construção de Interiores.


Crédito: Rimini Protokoll/Divulgação

5 – Estação Controle de Pestes


Os participantes são conduzidos por uma escadaria até o andar superior,
onde, sentados em uma arquibancada, ouvem o especialista em estudos de
insetos e controle de pestes, o doutor Reiner Pospischil. Ele realiza um discurso
sobre entomologia. Abaixo se transcreve a abertura de “sua” palestra:

- Durante muito tempo se acreditou que as formigas eram pestes. Hoje


se sabe que elas são benéficas para o meio ambiente. Ao longo de
séculos elas desenvolveram formas eficazes de construção de suas
casas embaixo da terra. Mas eu vou me deter na maneira em que outra
espécie constrói: a espécie humana. O homem trabalha cada um para
construir seu próprio ninho, enquanto que as formigas trabalham para
um ninho em comum. Trabalham em prol do coletivo. E suas
construções são autossustentáveis. Em termos ecológicos, a espécie
138
humana é entendida como uma peste (POSPISCHIL, 2018) .

O andar superior permite estrategicamente aos espectadores observarem


a instalação inteira, ao mesmo tempo em que se colocam à parte dela. O
especialista compara o movimento incessante dos outros grupos que transitam


138
Tradução realizada diretamente do registro videográfico do espetáculo, gentilmente cedido
pelo diretor Stefan Kaegi para esta pesquisa.

235

no espaço, como uma imensa colônia de formigas sobre o chão. Ele explica
cientificamente a ação coletiva das formigas que supera o trabalho humano em
termos de construção de espaços organizados. Os desenhos e cartazes revelam
labirintos de corredores construídos pelas formigas, em relação ao espaço
labiríntico do dispositivo cênico do espetáculo. Ele desce para o andar inferior,
interage com as demais estações, interrompe o caminho dos outros
participantes, faz aproximações e distanciamentos em relação ao trabalho dos
insetos e dos homens.

FIGURA 68 - Estação Controle de Pestes.


Crédito: Rimini Protokoll/Divulgação

6 - Estação Trabalhador Migrante


A coreógrafa chinesa Fan-Yun Lo solicita aos espectadores que deitem
lado a lado, em cima de cobertores. Ela se apresenta alegando que “não importa
realmente quem eu sou exatamente, pois eu represento os 170 milhões de
trabalhadores migrantes” (FAN-YUN LO, 2018). Em seguida ela pede para os
espectadores fecharem os olhos, e descreve um ambiente calmo perto da
natureza, em um pequeno vilarejo situado no interior da China, lugar onde ela

236

nasceu e passou sua infância. Uma tranquila música oriental com sons de
pássaros acompanha a narrativa.
Em seguida, ela pede para abrirem os olhos e descreve a súbita
mudança, para a barulhenta e sufocante capital chinesa, Beijing, em busca de
emprego. O fundo sonoro como que lhe acompanha: os sons de pássaros dão
lugar a sons de carros, buzinas, máquinas e despertadores, compondo uma
paisagem sonora ruidosa típica das grandes metrópoles. Os participantes
precisam então se levantar, alongar-se e caminhar sozinhos, aleatoriamente,
pelo espaço durante 4 minutos, enquanto ela (a especialista) descreve a caótica
cidade com trabalhadores por todos os lados. O espectador é agora o migrante
que trabalha para engenheiros alemães na construção de um estádio de
esportes no gelo para a próxima olímpiada chinesa, onde se trabalha muito e se
ganha pouco (imagens do estádio construído são projetadas). Ao final do tour
descritivo, somos informados por ela sobre sua especialidade de coreógrafa que
investiga a corporalidade dos operários da construção civil. Ela ensina uma
partitura composta de 5 movimentos inspirados na utilização de instrumentos
ligados à área da construção civil (martelo, pá, britadeira e pincel), e o
espectador é convidado a repetir a sequência por inúmeras vezes, ao som de
música eletrônica oriental. A estação resgata os audiotours, traçando um diálogo
com seus próprios procedimentos já utilizados em outras ações artísticas,
reunidos agora em Sociedade em Construção.

FIGURA 69 - Estação Trabalhador Migrante.


Crédito: Captura de vídeo /registro

7 - Estação Transparência Internacional

237

O público é conduzido a uma andar secreto, situado atrás dos painéis de


projeção. Um corredor que ao mesmo tempo permite ao espectador enxergar a
todas as estações cênicas em funcionamento, através de uma tela translúcida,
que impede que ele seja visto. O expert Andreas Riegel é um advogado e
investigador criminal que, situado em uma torre, no lugar mais alto da instalação
cênica, narra um dos escândalos de corrupção mais significativos da Alemanha,
o Trieneken Rubbish scandal, envolvendo altos escalões da política alemã. O
estado comprou toneladas de areia do rio Rhine, para reabastecer as praças de
recreação infantil ao redor de Berlim, e a areia estava contaminada por
substâncias tóxicas. Os fornecedores subornaram funcionários de inspeção
pública para certificar que a areia estava em perfeitas condições de uso.
Ele narra outros casos de superfaturamento de obras, desvio de dinheiro
público, transações comerciais virtuais obscuras, favorecimento de empresas
em processos de licitação pública, compra de materiais falsificados e toda a
discutível “mão invisível” do livre mercado, revelando que nenhum grande
projeto de construção está livre de corrupção, a qual prospera em silêncio. Em
determinado momento da narrativa, o especialista lança pilhas de cédulas
cenográficas que caem sobre o contêiner da sala de reuniões da Estação
investimento de capitais.

FIGURA 70 - Estação Transparência Internacional I.


Crédito: Rimini Protokoll/Divulgação

238

FIGURA 71 - Estação Transparência Internacional II.


Crédito: Rimini Protokoll/Divulgação

8 - Estação Desenvolvimento Urbano


A audiência é levada até um terraço onde se encontra um outdoor
publicitário com imagens urbanas da cidade de Adis Ababa, que projetam um
futuro moderno para a capital da Etiópia. À frente, vídeos projetados no telão
apresentam a cidade de Singapura. O professor de projetos urbanos
internacionais Dieter Läpple relata a crescente urbanização da capital da Etiópia,
que vem se espelhando nos modelos pós-colonialistas de desenvolvimento
urbano. Singapura é considerada um exemplo bem-sucedido de modelo
tecnocrático ocidental aplicado ao Oriente. Um estado-máquina que fornece
todas as condições de vida para seus habitantes, à custa de destruição da
natureza, de aumento da temperatura do planeta, do círculo vicioso do uso de
energia não renovável. Ele identifica imensos espaços de construção os quais
têm gerado o que ele chama de “guerra da areia”, pois necessitam de grande
quantidade de matéria-prima e por isso, acabam por explorar os países vizinhos.
Como opção para Adis Ababa, o especialista sugere um projeto de
otimização das cidades, denominado de Smart cities. Segundo ele, o futuro da

239

Etiópia não seria imitar Singapura. Mas reinventar o processo de urbanização


utilizando energia solar, substituir os recursos não renováveis por recursos
renováveis, como o bamboo e a produção de tijolos orgânicos, a valorização da
monocultura não dependente das multinacionais, elevando a cidade em
construção em direção à emancipação social. A trilha sonora apresenta um Dj
da Etiópia que mixa a tradição musical do país a produções musicais
tecnológicas.

FIGURA 72 - Estação Desenvolvimento Urbano.


Crédito: Rimini Protokoll/Divulgação

240

FIGURA 73 - Estação Desenvolvimento Urbano II.


Crédito: Rimini Protokoll/Divulgação

O espetáculo finaliza com um epílogo onde cada especialista comenta


possíveis alternativas para cada setor, com vistas a equilibrar o sistema
capitalista tão desigual. Em seguida, todos repetem a coreografia composta
anteriormente, e bebidas são distribuídas ao público que é convidado a
permanecer no espaço para conversar com a equipe sobre a experiência.

241

FIGURA 74 - Epílogo de Sociedade em Construção.


Crédito: Foto minha

4.3.2 Organização do espaço como convite à ação do espectador

A maneira como o espaço se organiza torna possível traçar relações com


a modalidade da instalação, onde “o espectador agora entra no espaço do
interior da obra de arte” (LICHT apud HUCHET, 2005, p.68). Em outras palavras,
a instalação convida o observador a se deslocar em um espaço predeterminado
onde estão dispostos os elementos que compõem a obra, semelhante ao
dispositivo criado em Sociedade em Construção139. Segundo a pesquisadora
Lúcia Santaella, a instalação:

Na maior parte das vezes, trata-se de uma sala já existente que a obra
transforma, mas espaços externos também podem ser manipulados e
recriados pelo artista. A instalação, portanto, é uma arte do espaço
tridimensional. Como tal, está na linha de continuidade da escultura e da
arte objetual. Todavia, enquanto estas só permitem o trânsito do
receptor ao redor da área por elas ocupadas, nas instalações, o receptor
penetra no interior de um espaço, habita esse espaço participando nele


139
De fato, em breve mirada histórica se percebe que é a instalação que se aproxima, muitas
vezes, do teatro. Para Allan Kaprow, as instalações eram uma oportunidade de “dar expressão
dramática a soldadinhos de chumbo, histórias e estruturas musicais que um dia tentei incorporar
apenas à pintura” (KAPROW apud GOLDBERG, 2006, p.117).

242

de corpo inteiro. Faz parte integrante das instalações a exploração do


espaço pelo espectador através do deslocamento de seu corpo entre os
dispositivos, imagens, objetos (SANTAELLA, 2003, p.145).

Na proposição híbrida do espetáculo analisado, o espectador se vê


imerso em uma forma específica de experiência estética. O olhar e o corpo são
capturados, na medida em que ele deve transitar pelo espaço abarrotado de
informações, objetos, imagens e sons. Essa condição dilui a fronteira entre palco
e plateia, sendo todas as posições espaciais passíveis de serem habitadas pelo
espectador. Ainda que cada grupo se concentre em uma estação de cada vez, o
espaço oferece multiplicidade de acontecimentos, que remete ao típico cotidiano
dos centros das grandes cidades, ou à dinâmica de um canteiro de obras. Essa
situação arquitetônica solicita que o espectador “participe de corpo inteiro”
disponibilizando múltiplos pontos de atenção de forma que ele precisa decidir
onde seu olhar vai incidir. Ao propor círculos de atenção simultâneos para o
espectador, obriga-o a “montar” o que vê a cada momento, tornando a
experiência diferente a cada um. Segundo Huchet:

A instalação assim funciona como cenário e uma teatralização da


proposta. Ela é como que um método cenográfico, para retomar as
palavras de Allan Kaprow, da proposta artística, teatro para pensar,
proposto ao olho pensante, nas galerias e nos espaços convencionais.
Esse caráter teatral da instalação é bem sublinhado pelo crítico francês
Regis Durand, que a coloca dentro da linha histórica das práticas
espectatoriais...a instalação por tanto é um cenário que constrói um
dispositivo que é um mundo enquanto tal, isto é, um conjunto que
provoca cesura. Um corte com relação ao resto ‘do mundo’ (HUCHET,
2005, p.69).

Essa cesura que gera o dispositivo cênico traz consigo característica


específica que é a de convocar o espectador a agir em determinados momentos,
a tomar parte ativa na construção do espetáculo através da realização de ações
no interior de cada estação. Especialistas e espectadores ativam as estações ao
colocar seus corpos em movimento e ação. O espectador habita o espaço mas
também contribui para o processo de sua construção.
Nesse sentido, se aproxima à prática histórica do happening, que eclodiu
nos anos 60, e que “deveria sugerir algo de espontâneo, algo que por acaso
acontecesse” (GOLDBERG, 2006, p.120). Recordemos o primeiro convite

243

impresso para 18 happenings em 6 partes, de Allan Kaprow, que incluia a


seguinte afirmação: “você se tornará parte dos happenings; irá vivenciá-los
simultaneamente” (KAPROW, 1959 apud GOLDBERG, 2006, p.118). A
performance histórica que aconteceu em Nova York em 1959 se constituía em
três partes compostas por vários acontecimentos simultâneos, onde era
fundamental seguir as instruções de forma criteriosa, tendo o início e fim de
cada acontecimento sinalizado por campainhas (GOLDBERG, 2006), se
aproximando da estrutura de Sociedade em Construção. Os deslocamentos, as
ações e as narrativas geram um tipo de interação específica onde o espectador
passa da contemplação para a ação. Pois esses espaços estão misturados,
borrados propositalmente com a intenção de colocar espectadores no mesmo
lugar dos especialistas, fazendo algumas vezes eles experimentarem atividades
que esses profissionais desempenham no seu dia a dia140 .
Como vem sendo abordado, em Sociedade em Construção o dispositivo
cênico lança um olhar para o mundo globalizado das megaconstruções. Onde
determinadas estações cênicas correspondem a diferentes etapas de produção
que acontecem simultaneamente, sobrepondo diversos acontecimentos. Nesse
sentido, faz parte de espetáculos que “procuram propor uma experiência
temporal por meio de concepções espaciais específicas” (LEHMANN, 2007,
p.227). Nesse ambiente interativo, onde o corpo dos participantes está em
constante movimento e ação, acompanhado a uma cornucópia visual e sonora,
torna impreciso estabelecer fronteiras entre o vídeo, o teatro e artes plásticas,
pois o dispositivo assim colocado excede as especificidades de cada área. Esse
dispositivo específico provoca no espectador uma experiência que se dá em
contexto pessoal (em relação às ações que ele realiza), e em contexto social
(em relação ao coletivo das ações no seu todo).


140
Cita-se o happening pela sua qualidade de arte participativa e de rompimento da convenção
teatral entre palco e plateia e a postura ativa do espectador. Por outro lado, em Sociedade em
Construção se percebe o refinamento visual, o “aumento de esteticidade”, em uma produção
mais sofisticada em relação a esses eventos da contracultura dos anos 60 onde se situa o
happening, assim como não se dá como acontecimento único, apresentando-se em temporada.

244

A dimensão estética é tecnológica, arquitetônica, narrativa e física, um


espaço híbrido em transformação constante. Essas dinâmicas geram um
acontecimento cênico de imersão que solicita engajamento do espectador, uma
atitude diferenciada frente à obra. Tradicionalmente, o espetáculo de palco
italiano, onde o espectador está fora da ação, torna-lhe mais suscetível ao que
lhe é apresentado, provocando uma transferência subjetiva, o processo de
identificação. Em Sociedade em Construção ocorre uma cooperação entre o
espectador e o espetáculo. O espectador se desloca em um espaço organizado
de maneira que não se consegue distinguir os espectadores dos especialistas.
Ao convocar a presença do corpo sensório-motor do espectador nesse espaço
de fronteiras imprecisas, gera um lugar intermediário, no qual este está
suscetível a preocupar-se menos em interpretar as cenas do que em maneiras
de habitá-las.
O diretor Kaegi destaca que a diferença entre a instalação cênica
proposta pelo seu coletivo em relação à instalação do campo das artes plásticas
se dá em termos temporais. Elemento chave para essa distinção, como ele
mesmo afirma: “Acho que para mim Sociedade em Construção é uma obra de
teatro, eu não diria que é uma instalação. É muito dominante essa sensação de
tempo, ou a sensação de narração ou liveness” (KAEGI, 2018). Enquanto numa
instalação das artes visuais, o espectador tem liberdade para permanecer por
tempo indeterminado no seu interior, no espetáculo, o tempo está dividido pelas
narrativas fragmentadas que se desenvolvem organizadas dentro de cada
estação cênica, rigidamente cronometrada. Destaco como outro elemento
fundamental que se distingue em relação à instalação é o fato de que o espaço
criado visa promover a ação, o “fazer-com” o espectador.
Por outro lado, a noção de imersão é comumente aplicada às instalações
interativas onde o observador se relaciona com ambientes virtuais. O jogo
imersivo em Sociedade em Construção inclui igualmente os efeitos provocados
pelas tecnologias da imagem e do som (projeção ao redor e paisagem sonora
polifônica constante), onde o espectador se encontra dentro de um ambiente

245

visual e acústico, mas a imersão se potencializa ao interagir efetivamente com


os objetos, com os especialistas e outros espectadores pelo viés do fazer.
Pois é o processo de intervenção em tempo real na construção das cenas
através das proposições físicas que intensifica a relação e potencializa o
sentimento de imersão. Nesse contexto, o corpo em ação do espectador tem
importância central no processo interativo e significativo. No momento em que o
corpo coloca-se como um elemento atuante na relação, essa interatividade
repercute em efeitos sensíveis sobre si e sobre os outros espectadores na
apreensão da cena realizada. A interatividade se concretiza pelo viés da ação.
Segundo Cassol e Primo (1999), retomando os estudos tradicionais da interação
humana, em uma “interação forte”, o que está em jogo é a valorização da
dinamicidade do processo, onde todos os participantes são atuantes na relação
(CASSOL; PRIMO, 1999). De acordo com Berlo, na interação mútua, “os
comportamentos são construídos pela pessoa durante o curso da ação” (1991,
p.121), nesse sentido se difere de um comportamento reativo ou mecanicista.
Em Sociedade de Construção, eu (espectador) posso realizar as ações ou me
recusar terminantemente a fazê-las141. Entre um polo a outro residem diversas
matizes comportamentais142. A qualidade de relações que o espaço cria acentua
um dispositivo de caráter mais aberto em termos de interação. O espectador se
encontra aqui na posição de agente (aquele que age), e seu comportamento
influi diretamente no andamento do espetáculo (se muitos decidem não realizar
alguma das atividades propostas, a estação se torna inoperante, ela não
acontece, influenciando, por sua vez, todas as outras estações que se
encontram em permanente relação)143.


141
Como alguns espectadores que optavam ficar de fora do grupo, apenas observando os
demais.
142
Determinados espectadores se engajavam efetivamente na atividade, vibrando com elas,
enquanto outros as realizavam de forma apática.
143
A noção de interatividade é geralmente utilizada para definir processos de comunicação entre
o homem e a máquina. Aqui, o processo de comunicação se encontra mediado pela ação física
entre os sujeitos. A interatividade, como aquilo que está no meio da atividade, no entre
atividades: entre o espectador e o especialista reside o trabalho das ações em Sociedade em
Construção.

246

O espaço está organizado de forma a desestabilizar a percepção do


espectador em relação aos relatos que são enunciados, pois a distância e a
posição do espectador muda a cada momento, fazem as narrativas oscilarem
igualmente144. A narrativa de um especialista se tenciona com as demais,
dependendo do ângulo de vista do espectador no espaço, propondo diferentes
olhares para uma mesma situação, e que permitem informar diferentes
características sobre cada acontecimento. As enunciações se colocam, portanto,
em confronto com o espaço e com os corpos, sendo constantemente
deslocadas.

4.4 Rimini Protokoll e a atualização de propósitos teatrais de Piscator e


Brecht

Recordemos que o teatro político de Piscator145 experimentou o trabalho


com não atores, colocando em cena a classe operária, a quem, em última
instância, se dirigiam seus espetáculos. Uma consequência dos tempos onde o
“direito exigido das massas à auto-representação” (BRECHT, 1967 apud
FINTER, 2003, p.1) se fazia constante. Nesse sentido, interessava-lhe que os
participantes do proletariado desenvolvessem a consciência crítica de seus
papéis como agentes de transformação dentro de um espetáculo de teatro:

A princípio vigorou o propósito de prescindirmos dos atores do teatro


burguês. Até surgirem alguns profissionais, simpatizantes da nossa
ideologia, trabalhei principalmente com proletários. Pareceu-me
necessário trabalhar com indivíduos que, como eu, vissem no
movimento revolucionário o impulso para a criação. [...] No curso ulterior
do trabalho prático não tardei em chegar a outra concepção: o primeiro
requisito em cada ator é a caracterização; ou seja, poder dar vida a uma
personagem tirando-a de suas leis. Não é verdade que um proletário
possa representar sempre de maneira digna de crédito o papel de um
proletário. Mal o amador tem de extrair uma personagem de um meio
que a ele é estranho, e cai inevitavelmente na caricatura, detendo-se em

144
Essas intervenções serão abordadas no subcapítulo a seguir.
145
Piscator encontra na revolução dos proletariados e dos camponeses da Rússia de 1917
elementos para fundamentar um conceito político e combativo de teatro. Não se tratava de fazer
teatro de forma tradicional, mas, de utilizar-se deste como uma ferramenta de propaganda
consciente direcionada aos proletários e burgueses (PISCATOR, 1968).

247

exterioridades exageradas. A melhor das disposições não garante


absolutamente que se atinja, por intermédio da personagem, o efeito
que se deve produzir, do ponto de vista politico. Um ator que elabore o
essencial do papel é capaz de conseguir, muito mais seguramente, o
efeito que pretendemos, mesmo que não possua qualquer "ideologia
política". Outra coisa se me afigura mais importante: exigir do ator, além
de todas as qualidades técnicas, também o domínio intelectual do papel.
Não deverá formar a personagem a partir do contorno exterior, e sim a
partir do seu cerne, do seu conteúdo mental, político e social. Deverá ter
consciência da função que lhe cabe desempenhar dentro da peça.
Somente com tal concepção surgirá uma objetividade no dramático: não
no sentido da palavra em moda, e sim objetivamente, por se achar a
serviço de uma causa (PISCATOR, 1968, p.54).

Dessa forma, constituía-se estratégico a utilização de pessoas oriundas


da própria classe social para a qual estava se dirigindo a enunciação, no desejo
comunicativo mais eficaz através de pessoas que tinham as mesmas
experiências e vivências em comum. Para Piscator, quem tinha as condições de
falar sobre o proletariado era o próprio proletariado. Recordemos que Piscator,
ao lado de Brecht, foi pioneiro na utilização de atores não profissionais no teatro
político e documental do início do século XX. Nas produções teatrais os não
atores apresentavam personagens históricos ou imaginados. Porém, Piscator
percebe que este, ao participar da linguagem do teatro de representação
realista, precisa de conhecimento técnico prévio para dominar os códigos da
representação vigente. Pois a participação dos não atores, normalmente,
aparecia na forma da interpretação de personagens ficcionais. Percebemos que
a “semente” do trabalho com os especialistas do cotidiano se encontram já nas
tentativas de Piscator. E, o que se pode afirmar, é que Piscator democratizou os
meios de produção do teatro ao incluir outras camadas da população, e nesse
sentido se aproxima da ótica do Rimini Protokoll.
O uso de não atores no teatro piscatoreano pode ser aproximado também
da noção de ator amador na medida em que se caracterizava por pessoas com
pouca ou nenhuma experiência teatral que se esforçavam para construir
personagens segundo parâmetros de um ator profissional; “na peça The Kaiser
Coolies (1930), Piscator selecionou o próprio autor do texto, Theodor Plivier para
interpretar o marinheiro Köbis, e cuja experiência naval aparentemente não
compensou a falta de habilidade de atuação” (WILLETT, 1986, p.103 apud

248

GARDE; MUMFORD, 2016, p.26)146 . Salienta-se que esses aspectos,


considerados pelo próprio Piscator como definidores de sua formação teatral,
vão de encontro às observações de Hall Foster (2017) sobre as posturas
artísticas em termos de políticas culturais, as quais nessa época se baseavam
em um modelo onde o sujeito era definido, exatamente, em termos de relações
econômicas147.
Mesmo integrando um movimento teatral de cunho político, o que se
percebe, em relação, especificamente, ao projeto político do coletivo Rimini é um
deslocamento do ponto de vista “relacional”, pois agora o sujeito é definido em
termos de “identidade cultural”. Característica significativa para a compreensão
das novas produções artísticas atuais. No ensaio O artista como etnógrafo, Hal
Foster atualiza a tendência do artista como sujeito da obra em sua relação com
o outro, onde “o artista comprometido batalha em nome de um “outro cultural
e/ou étnico” (2017, p. 160). É perceptível em muitas produções os artistas do
coletivo agirem como etnógrafos ao trabalharem em estreita relação dialógica
com grupos de especialistas que aportam importantes questionamentos da
reverberação dos efeitos do mundo globalizado sobre as questões identitárias e
de legitimação do espaço de fala do outro cultural (FOSTER, 2017), do
estrangeiro, daquele considerado desconhecido.
Mais do que despertar a luta de classes como objetivava Piscator,
interessa ao coletivo Rimini despertar o devido espaço de visibilidade desse
outro negado. Nesse sentido, é fundamental os procedimentos de suspender a
tendência do espectador à denegação, não fazê-lo recuar e se distanciar diante
da realidade desse outro desconhecido colocado em foco. “Denegar” essa
política da alteridade é colocar projetos artísticos desse porte, em pé de
igualdade com a da representação teatral “aparentada ao sonho”, que nos fala
Ubersfeld (2013, p.22)148 , afastando o espectador da cena e lhe conferindo certa


146
Tradução minha para “In the production of the Kaiser’s Coolies (1930), Piscator cast the
author of the playscript, Theodor Plivier, to play the World War sailor Köbis, whose firt-hand naval
experience apparently did not quite make up for his lack of acting skills”.
147
Foster cita como referência o texto de Walter Benjamin, O autor como produtor (1934), como
uma das célebres intervenções na relação entre autoria artística e política cultural.
148
Retomando a relação que a autora faz entre denegação e sonho.

249

imunidade a despeito das causas e consequências das condições sociais


excludentes. O teatro era uma ferramenta de propaganda para Piscator,
enquanto que o teatro do Rimini Protokoll se coloca como uma produção
artística de inclusão daqueles à margem da sociedade capitalista, pela exclusão
de princípios teatrais convencionais, deslocando-se em direção a uma “política
das formas” (BOURRIAUD, 2009, p.116) e suas possibilidades de reinvenção.
Ainda pode-se, a título de exemplo comparativo, trazer à memória, a
montagem do espetáculo Bandeiras, realizada por Piscator, onde a história
baseada em fatos reais de um julgamento em Chicago (no ano de 1886), de
chefes anarquistas condenados à forca, foi apresentada textualmente de forma
objetiva, sem exposição psicológica dos personagens, que trazia como subtítulo
a expressão drama épico (PISCATOR, 1968). Para a encenação, agora já
convidando atores profissionais, estes atuavam entre imensas telas erguidas em
ambos os lados do palco, recebendo projeções diversas: desde textos que
explicavam as cenas ou emitiam opinião sobre os fatos, passando por fotos
verídicas das personalidades representadas pelos atores, até imagens da
atualidade da época para ligar as diferentes cenas independentes. Verifica-se
aqui a encenação de uma história com referência no real que serve como mote
para a construção dramatúrgica de uma ficção onde os atores resgatam os
acontecimentos em forma de encenação dos fatos e dos personagens. Prática
que conforma determinado modelo de teatro documental, mas que se afasta da
prática do coletivo Rimini, que tenta um resgate ao real por meio de relatos e
depoimentos daqueles que vivenciaram o acontecimento. Por outro lado, o
método da atuação objetiva é adotado no comportamento dos especialistas do
cotidiano que se pauta por um comportamento não espetacular e comedido em
termos emocionais e de movimentos.
O uso deliberado de documentos também aparece como característica
importante, mas não única em Sociedade em Construção, já que a utilização
deles não está condicionada necessariamente à elaboração de um discurso
artístico interessado diretamente em documentar. O coletivo, em Sociedade em
Construção, não cria uma ficção baseada em fatos que ocorreram (como em

250

Bandeiras), mas traz à cena aqueles que a vivenciaram de fato. E os


documentos de toda ordem que aparecem tem a função de reforçar a
autenticidade dos relatos pessoais dos especialistas (estes mesmos um
documento vivo). Principalmente quando os dados trazidos à cena revelam
leituras contrárias as apresentadas oficialmente, como no relato de Di Mauro
que desmente os documentos (forjados, segundo ele) apresentados à mídia na
época, sobre o atraso da construção do aeroporto de Berlim.
Durante a entrevista com o diretor Stefan Kaegi, realizada por mim, no
mês de março de 2018, em Berlim, ele citou Piscator como referência da
utilização histórica de cenas simultâneas no teatro alemão. Logo, trago em
perspectiva comparativa, a planta baixa dos dois empreendimentos, no desejo
de perceber em que medida os projetos se assemelham ou não, contribuindo
para esclarecer o funcionamento da instalação em Sociedade em Construção.
Lembramos que Piscator guardava o desejo de construir um teatro próprio; o
Piscator-Bühne. O projeto foi apelidado de teatro sintético149, pela mistura de
palcos em um mesmo local: arena circular, anfiteatro grego, romano e palco
italiano. O encenador alemão enfatiza que o objetivo deste novo conceito era
criar meios para que o espectador fosse colocado no centro da ação cênica:

A casa de espetáculos [o teatro], oval, repousa sobre 12 colunas


delgadas. Por trás de três intervalos de colunas de uma ponta oval,
encontra-se disposto o palco em profundidade, de três partes, que
abraça as fileiras mais avançadas de espectadores. Pode-se
representar no palco central ou num dos palcos laterais, ou nos três ao
mesmo tempo. Um colar horizontal, duplo, de carros cênicos móveis,
possibilita rápidas e frequentes mudanças de cenários, evitando-se os
inconvenientes do palco giratório. Atrás das colunas da sala de
espectadores, prolongando "os palcos laterais, gira uma ampla galeria
que sobe com as filas de lugares em forma de anfiteatro, pela qual
podem deslizar os carros cênicos saídos do palco em profundidade, de
modo que determinados fatos podem ser representados em torno dos
espectadores. O disco dianteiro, menor, da plateia é rebaixável; assim,
na cave livre das filas de cadeiras, ele pode ser usado como plano de
representação à guisa de proscênio, em frente do palco em
profundidade, circundado pelas filas de espectadores da frente. No
corredor central o ator pode subir e entrar na massa dos espectadores
e, na galeria do grande disco da plateia, mover-se no meio deles em


149
O projeto arquitetônico Piscator-Bühne não foi construído pelo alto custo implicado. Acabou
sendo adaptado a um teatro já existente.

251

ambos os lados e recuar ao seu ponto de partida (PISCATOR, 1968,


p.149).

150
FIGURA 75 - A) Sociedade em Construção (2018) B) Teatro Sintético (1926)

Na ilustração “A” podemos ver as diferentes posições em que se


encontram as estações cênicas e a necessidade de deslocamento dos
participantes pela grande grande sala. Na ilustração “B” podemos ver os palcos
simultâneos dos quais falava Piscator, e suas possibilidades de deslocamento
pelo edifício teatral. Intui-se, ao lançar um primeiro olhar sobre a organização
arquitetônica de um empreendimento teatral e outro, que semelhanças espaciais
revelam que o projeto do teatro sintético serviu como referência à construção do
palco do coletivo Rimini. Essa sobreposição de acontecimentos se torna
perceptível pela configuração espacial específica em ambas as figuras acima.
Pode-se ver os diversos níveis cênicos, escadas, plataformas, corredores e a
capacidade de atuação ao redor da grande sala. Ainda, a utilização de jornais,
vídeos, e fotos documentais projetados, e o elenco de não atores na primeira
fase teatral de Piscator, são características que se relacionam à prática do
Rimini Protokoll. O que se pode afirmar é que mesmo distantes no tempo, os
dois diretores demonstram o desejo de renovação estética pelo resgate de
espaços que propiciam informações múltiplas e a mobilidade física do
espectador.

150
A figura “A” consta no prospecto do espetáculo Sociedade em Construção, e a figura “B” no
livro de Piscator, Teatro Político (1968).

252

Vejamos o projeto da figura da direita (ilustração B): o lugar do


espectador é um lugar fixo. Por mais que o desejo de Piscator fosse colocar o
espectador no centro da ação, no final das contas a planta baixa do palco
sintético reproduz a separação entre palco e plateia. Nesse desenho, em forma
de âncora com um vórtice em movimento centrípeto, é possível identificar
claramente o espaço reservado à plateia, mesmo que o desenho impressione
pela criatividade espacial labiríntica que o teatro se vê alçado nessa figura.
Ainda que desloque as cenas para os lados, para trás, em corredores que
aproximam a cena ao espectador, este permanece sentado a assistir aos
acontecimentos da peça.
Na planta baixa do espetáculo Sociedade em Construção, ao contrário do
teatro sintético, de Piscator, a primeira dificuldade é definir qual é o espaço
reservado para o espectador e qual o espaço reservado para a representação.
Isso porque o lugar do espectador não se configura como espaço fixo e estático,
mas um lugar de perpétuo movimento e transformação. Fica claro a importância
para os processos receptivos (palco/plateia) o estabelecimento dos lugares da
representação. Na planta baixa elaborada pelo Rimini Protokoll essa distinção
não existe. Todos os espaços podem ser ocupados tanto pelos especialistas,
como pelos espectadores. Nesse sentido, existe uma desorientação do
espectador devido às regras espaciais não serem claramente definidas. Pelo
contrário, as posições mudam de acordo com o jogo proposto pela encenação e
acionada por cada um dos especialistas envolvidos. Os espaços de
pertencimento se confundem, se fundem, se transformam.
Assim o título Sociedade em Construção também diz respeito ao espaço
em que se passa o espetáculo. Um lugar em constante construção sensorial.
Vejamos: das oito narrativas apresentadas, em três delas o público é conduzido
a espaços que ele não tinha conhecimento, que não lhe era dado ver com
antecedência, pois não figuravam no seu campo de visão. A Estação
Transparência Internacional (que pode ser visualizada pela barra horizontal de
cor rosa na parte superior esquerda do desenho da esquerda) se constitui por

253

um anexo secreto151, com acesso através de uma porta que leva ao andar
superior, em cima de uma estrutura de andaimes e fechada por um tecido opaco
que a esconde em relação ao restante do dispositivo. Na Estação Construindo
Tecnologia, a seção de extração de fumaça se localiza em um corredor no andar
térreo que nem sequer aparece na planta baixa reproduzida acima. O
espectador habita a parte “de dentro”, os interstícios do dispositivo cênico, como
se a ele fosse dado a ver lugares comumente proibidos do teatro, como os
espaços técnicos e funcionais.
Por outro lado, o ímpeto de transformação do teatro político de Piscator
não contemplava o espectador no centro da ação cênica como aquele que age
fisicamente. Toda a dinâmica do ator em volta do espectador não retira o último
da imobilidade física. É no final das contas as posições demarcadas que
divisionam palco-plateia. No caso do coletivo Rimini não somente se torna
inviável identificar a hierarquia espacial da representação, como não se
consegue sequer se identificar quem são os especialistas - há não ser quando
eles tomam a palavra para falar de si. Pois os espectadores, ao receberem
objetos típicos de uso comum em um canteiro de obras (luvas e capacetes), são
investidos de uma teatralidade que faz com que se confundam com os
especialistas, e todos os participantes envolvidos se tornam um coro uniforme e
de difícil dissociação.

De fato, é possível identificar elementos que aproximam o teatro do


coletivo Rimini Protokoll não somente ao teatro de Piscator, mas também ao
teatro de Bertolt Brecht. Algumas características apontadas por Anatol
Rosenfeld (2012) em relação ao teatro épico, podem ser encontradas em
Sociedade em Construção, tais como: a forma narrada, a cena funcionando de
forma independente, o recurso à montagem, o apelo ao raciocínio do espectador
em vez da emoção, sendo este colocado a tomar decisões frente ao que lhe é


151
A prática de espaço em constante construção se repete em outras propostas artísticas. Em
Estado -1, o audiotour que leva o espectador a se locomover dentro do museu, acaba revelando
espaços escondidos, “salas invisíveis” de acesso proibido para os demais espectadores do
museu.

254

apresentado152. Assim como no teatro de Piscator, o pensamento marxista


perpassou a produção teatral brechtiana, em conexão com o espírito
revolucionário da época. Pois bem, uma das soluções brechtianas para a
desmontagem do mecanismo dramático ilusionista é o chamado efeito V que
recorre a diferentes recursos na cena153, dentre eles, aquele acionado pelo ator
que sai do personagem que interpreta e lança comentários à plateia visando
interromper a ação e por consequência o mergulho cego na ficção representada.
O aspecto interessante para esta pesquisa é justamente o espaço em que
se encontra o ator épico no momento em que ele se distanciou para comentar
diretamente à plateia. Pois nesse momento, ele não é a personagem ficcional
nem é o ator expondo suas experiências de vida. Esse espaço intermediário,
essa “zona liminar” (CABALLERO, 2011) é geradora de estranhamento para o
espectador. No caso do coletivo Rimini, pode-se inferir que não se trata do
“estranhamento brechtiano” que comenta uma situação que ele acabou de
apresentar, mas um estranhamento que remete à questão primeira suscitada
nos alunos-espectadores da Universidade de Giessen, ao assistir à performance
Peter Hale fala sobre avicultura154: mas quem é que está no palco afinal? Esse
estranhamento faz a função do mecanismo brechtiano se cumprir nesta
modalidade de teatro, sem no entanto se alinhar a ideologia do
verfremdungseffekttwerk, pois, segundo Brecht:

“Distanciar” um fato ou caráter é, antes de tudo, simplesmente tirar


desse fato ou desse caráter tudo que ele tem de natural, conhecido,
evidente, e fazer nascer em seu lugar espanto e curiosidade (BRECHT,
1967, p.137).


152
Características que, segundo Rosenfeld, apresentam-se no teatro épico de Brecht. Mais
informações acessando o quadro comparativo entre o modelo épico e dramático, proposto por
Rosenfeld (2012, p. 149).
153
Recursos tais como o uso de cartazes, projeções, descontinuidade entre cenas, songs, e
conversas entre o ator (que abandona temporariamente seu personagem) e o público.
154
Retomamos o exemplo descrito no subcapítulo 4.1 - Nascimento do coletivo e a origem dos
especialistas.

255

Essa noção de distanciamento apresentada por Brecht pode ser um efeito


desejado pelo coletivo Rimini no caso dos audiotours que, como visto155 ,
revestem de estranhamento os lugares conhecidos da cidade, a partir das
narrativas em áudio, no interesse de provocar o olhar do espectador a ver seu
cotidiano sob outros pontos de vista. Por outro lado, tudo aquilo que é familiar ao
espectador, muitas vezes, é buscado no caso dos especialistas do cotidiano, de
forma a tornar o estrangeiro, o desconhecido que aparece em cena, próximo ao
espectador. Outro elemento que difere o efeito V, do teatro do coletivo Rimini, é
o fato de que essa quebra é ensaiada e prevista pela encenação brechtiana. No
caso de espetáculos como Sociedade em Construção, essa quebra pode
acontecer de forma não intencional, seja pela falta de habilidade, seja pelo erro
concreto do especialista em cotidiano sem especialidade de palco. Essas
semelhanças e diferenças corroboram com o pensamento de Lehmann sobre o
legado de Brecht, ao afirmar que:

Partes de sua teoria e prática no novo teatro são desviadas dos seus
conexos originais, sendo-lhes dado novo sentido e usadas para outros
fins, como o próprio Brecht gostava de sentir-se frente aos clássicos
(LEHMANN, 2009, p. 232).

De fato, observa-se que essa tática de distanciamento, em poéticas que


não operam pela noção de personagem, nem pelo uso do ator profissional,
tornam-se inoperante. Pois tal efeito é desnecessário em poéticas que não lidam
com determinada dimensão necessária para poder dela se distanciar, como no
caso do Rimini Protokoll.
Ressalto outro traço estético em relação ao trabalho dos especialistas do
coletivo Rimini que se aproxima às ideias brechtianas: o fato de Kaegi afirmar
que não trabalhando com atores profissionais ele evita a verve emotiva que
costuma acompanhar o ator dramático tradicional (KAEGI, 2018). Brecht, ao
utilizar-se da “serena e distante objetividade do narrador face ao mundo narrado”
(ROSENFELD, 2012, p.156), afasta-se do modelo dramático que geralmente


155
No subcapítulo 4.3 - Apresentando a Tetralogia Estado.

256

apresenta-se com a apaixonada subjetividade que arrasta o espectador para o


centro, sem lhe dar espaço para a análise fundamental, para sua emancipação
crítica-política. Ideia que aproxima a apresentação antivirtuosa e antiespetacular
encontrada nos experts do Rimini Protokoll.
Por mais que haja situações embaraçosas, como a dramática situação do
engenheiro Alfredo di Mauro (Estação Construindo Tecnologia) que teve seu
nome difamado ao servir de bode expiatório dos crimes velados de corrupção na
construção do aeroporto de Berlim, o que se vê, e por ele se toma como regra
para todos os experts, é um relato distanciado das emoções e dos sentimentos,
de forma a convidar o espectador a refletir sobre a situação apresentada. Helga
Finter identifica a distância da emoção direta e a preferência pela discrição e
comedimento da atuação do teatro alemão pós-segunda guerra, como resposta
à herança do “espetacular concentrado do nazismo” (FINTER, 2003, p. 2),
opondo-se a qualquer expressionismo e grandiloquência, perpetrados pelos
líderes políticos onipresentes, tal qual a atuação e voz afetadas de Adolf Hitler.
Ainda em relação ao uso das ideias brechtianas contemporaneamente no
que tange à encenação Sociedade em Construção, o fato do dispositivo cênico
se repetir inúmeras vezes, de forma a contemplar todos os grupos de
espectadores, permite que a cada nova estação os relatos anteriores sejam
ressignificados pela visão pessoal dos especialistas. A ação é “cortada” para ser
ressignificada, abrindo um lugar de multissignificações. Ou seja, dependendo da
posição do espectador a cada momento, os significados se modificam para uma
mesma cena ou ação. Estão, pois, em contínuo deslocamento, assim como
todos os demais elementos do dispositivo.
Não apenas modifica-se o ângulo de vista do espectador - já que a
maioria das estações é visível de todos os lugares - mas devido às intervenções
narrativas diretas dos experts, que lançam diferentes percepções às demais
estações que ocorrem simultaneamente. Uma estação pode contradizer outra,
estabelecendo um discurso dialético que coloca o espectador em pontos de vista
sempre renovados. Uma consciência de que os fatos têm múltiplas
possibilidades de visão. Cada estação se configura como portadora de inúmeras

257

realidades estilhaçadas e até contraditórias.


O dinheiro que cai do teto da sala na Estação Investimento de Capitais,
onde a expert Sonja-Verena auxilia o público a investir seu dinheiro em ouro
concreto, adquire significados diferentes na Estação Controle de Pestes, quando
o professor Reiner Pospischil explica como as formigas se organizam para
construir seus túneis. Ele desce através de um elevador de carga e, utilizando
uma câmera Go-Pro anexada a um bastão, demonstra via vídeo, ao vivo, como
se dá o comportamento da “formiga rainha dentro do formigueiro”. Diferentes
significados para a mesma imagem cênica, dependendo da forma que cada
especialista agencia o que se passa ao seu entorno.

FIGURA 76 - Pospischil posiciona a câmera e analisa.


Crédito: Captura de vídeo

FIGURA 77 - O comportamento das abelhas na Estação Setor de Investimentos


Crédito: Captura de vídeo

Na Estação Transparência Internacional, após a terceira repetição dessa


performance, a origem e o destino do dinheiro que chove do céu dentro da
Estação Setor de Investimentos é revelado pelas mãos do investigador criminal
Andreas Riegel; situado no alto de uma torre, ele joga a pilha de notas sobre o
container. Um recurso de teatralidade que abre multissignificados para a mesma

258

ação. Da mesma forma, o cômodo de areia cenográfica, no qual o especialista


Di Mario se afunda na cena inicial, é utilizado em outro momento (na Estação
Trabalhador Migrante), pelos próprios espectadores, como arquibancada. A
seguir, na Estação Desenvolvimento Urbano é ressignificada como “a montanha
de lixo” produzida pelo capitalismo, entre outros significados ao longo do
espetáculo.
Para além dos recursos cênicos das projeções de textos, mapas e fotos
da construção civil que num plano documental esboçam, comentam e reforçam
a posição dos especialistas do coletivo Rimini, o recurso de separação das
cenas em estações, constituem-se como ilhas que criam redemoinhos de
reflexão. Ao mesmo tempo, a sirene, que alerta para o início e fim de cada
relato, adquire tripla função: uma funcional, que permite o controle temporal das
cenas que precisam estar organizadas de forma a fazer a dinâmica de
simultaneidade funcionar; outra função significante que remete ao sinal típico
dos inícios e final de turnos de trabalho das fábricas de produção em série e, a
reboque, torna-se um mecanismo de distanciamento. Pois a cada novo disparo,
a sirene se assemelha aos sinais típicos do teatro que antecedem o início de
cada representação. Dessa forma, o espectador fica ciente de que a narrativa
acabou e deve se dirigir à próxima estação.
Ao mesmo tempo o cenário não é anti-ilusionista, ao contrário, ele apoia a
ação, e não se vê reduzido ao máximo como previa Brecht (ROSENFELD,
2012). O excesso de recursos tecnológicos é visível em Sociedade em
Construção, mas ao mesmo tempo essa instalação cênica imersiva de fato, está
a serviço de revelar o complexo problemático que se oculta atrás do
funcionamento da sociedade capitalista.

4.5 Ações para o espectador

O espectador é levado a executar ações, como explanado na descrição


em Sociedade em Construção. Procedimento que reforça a experiência de real:
ele carrega tijolos, sarrafos, escala monte de areia cenográfica, difere golpes de

259

defesa e ataque, participa de apostas em transações comerciais, desce e sobe


escadas, age como parte de uma engrenagem anti-incêndio, realiza partitura de
movimentos inspirados no trabalho do operário da construção civil. Sempre
orientados ao estilo Rimini Protokoll, com os experts conduzindo os
espectadores pelos espaços e protocolando como as ações devem ser feitas e
seus objetivos.
Segundo Lehmann, em determinadas experiências teatrais
contemporâneas, “a tarefa do espectador deixa de ser a reconstrução mental, a
recriação e a paciente reprodução da imagem fixada; ele deve agora mobilizar
sua própria capacidade de reação e vivência a fim de realizar a participação no
processo que lhe é oferecido” (2007, p. 224). Essa participação do espectador
no processo de construção de Sociedade em Construção passa a ser elemento
fundamental que aciona o espetáculo. Sem a mobilização desse elemento nas
atividades solicitadas o espetáculo não progride. Nesse circuito proposto ao
espectador, cabe investigar como ele se comporta quando colocado como
agente da ação, que mudanças perceptivas se dão ao ser impelido a agir,
quando ele poderia estar sentado assistindo ao espetáculo.
O espectador ao experimentar, por exemplo, uma atividade que diz
respeito ao trabalho do operário - como carregar tijolos repetidas vezes de um
local a outro, de modo a construir uma parede156 – uma experiência se adquire
sobre esse universo pelo viés físico. Pode-se inferir que o espectador age por
procuração: ao realizar essa ação, ele experimenta um comportamento referente
ao domínio do fazer do outro, do especialista, investindo-se de características
que são inerentes a essa atividade (esforço e repetição da ação, equilíbrio ao
empilhar os tijolos, ação coordenada com os demais do grupo). A narrativa
enunciada oralmente pelo especialista se amplifica no espectador habitando seu
corpo e se estendendo para o espaço em movimento. Ao realizar uma ação
conectada à história contada, investe em uma “produção de uma presença” para
o espectador. Uma dimensão perceptiva desse universo se dá pelo viés físico,
diferentemente àquela percepção subjetiva do espectador que assiste a uma

156
Como na Estação Construção de Interiores.

260

história na plateia escura. Agora, em espetáculos estilo Rimini, o espectador,


pelas atividades engendradas, experimenta de forma tátil as narrativas.
Se em espetáculos anteriores as ações conferiam uma espontaneidade e
senso de presença para o especialista157 , agora o espectador experimenta essa
condição junto ao especialista. Aproximando-se das reivindicações de
Gumbrecht que nos alerta sobre a tendência moderna de desconsiderar as
relações com o mundo fundadas na produção de presença, onde a ditadura dos
sentidos impede a “capacidade de lidar com o que está à nossa frente, diante
dos olhos e no contato com o corpo” (GUMBRECHT, 2011, p. 10). O espectador
não somente experimenta a condição física do discurso enunciado, como
também experimenta a condição do especialista que realiza uma ação. Essa
passagem para a posição de protagonista da ação por curto tempo, faz refletir
sua própria condição de espectador que se modifica. O questionamento a
respeito da autenticidade do especialista se torna reflexivo nessa situação
inversa.
O especialista não desaparece (como em Home Visit: Brasil em casa,
citado anteriormente), mas ele toma a posição do espectador ao assistir às
tarefas sendo feitas e também se coloca no lugar de um organizador, pois ele
define a ação que deve ser feita e em qual lugar do espaço cênico. Nesse
sentido se observa a flutuação das funções dentro do acontecimento teatral.
Pois tal inversão delega um poder, um lugar de comando e voz, que seria o do
encenador em termos teatrais, e do “patrão” em termos capitalistas, agora
espelhados na figura do especialista.
Investido de objetivos e ações a serem realizadas, o espectador vivencia
um processo performativo. Ao realizar ações, o espectador se coloca na
construção desse universo e das questões que dele fazem parte. Nesse sentido,
torna-se menos provável que o espectador “denege” essa experiência física por
qual ele experimenta, ao interagir no interior do espetáculo. Salienta-se, ainda,
que outro dado importante em relação ao processo de ativação do espectador é
o fato de que essa dinâmica física impulsionada pelo dispositivo acontece dentro

157
Como visto no subcapítulo Procedimento cênico 1 (p.180-189).

261

de grupos pré-organizados de pessoas, onde todos realizam as ações,


participam dos jogos, locomovem-se conjuntamente. Um senso de coletividade
se institui. Como um coro grego que comenta os acontecimentos das antigas
tragédias gregas, o “coro” em Sociedade em Construção comenta fisicamente as
narrativas enunciadas pelos especialistas através da realização de ações em
conjunto. Os círculos de atenção propostos pela instalação cênica da mesma
forma driblam a capacidade de denegação do espectador na medida em que
não se denega seus pares. Dessa forma eu, enquanto espectador, não denego
outro espectador fazendo ações ao meu lado e nas demais estações.

4.5.1 O espectador-performer

O espectador age dentro de um dispositivo cênico que lhe oferece um


espectro circunstancial influenciando o modo de este agir. Ao receber luvas,
capacetes, tijolos, um caminho a percorrer demarcado por fita crepe no chão, ele
se torna ciente das circunstâncias em que deve realizar a ação. Assim, ao ouvir
a narrativa do operário, ele se torna cônscio da função a desempenhar e o
objetivo. Nesse sentido, pode-se falar do retorno violento do real pelo viés do
trabalho de ação física do espectador. Não uma violência da guerra, dor e
crueldade direcionada ao corpo do outro, mas uma violência que retira o
espectador de seu lugar cômodo. A instalação cênica estruturada da forma
descrita em Sociedade em Construção impede o espectador de se colocar no
espaço da plateia, separada do acontecimento espetacular, que ele domina e
tem conhecimento pela tradição. Mas colocá-lo em um dispositivo nem sempre
claro ou estabelecido em termos espaciais, onde sua posição está em
permanente transição e ação.
Temos, então, ações que são executadas por esse espectador-performer.
E, aqui, abro um parêntese e justifico que não percorrerei, dentro do vasto
campo da filosofia, buscar diferenças e especificidades que o conceito de ação
pode adquirir dependendo das lentes as quais são escolhidas para focá-lo.
Minhas lentes para analisar esse espectador-performer, que realiza ações, são

262

postas a partir da noção de ação física desenvolvido/investigado pelo diretor e


teórico russo Constantin Stanislávski (1863-1938). No início do século passado,
Stanislavski, insatisfeito com seu próprio desempenho como ator em cena, que
reproduzia o modo de representação vigente à época, pautado por estereótipos
e formas exteriores artificiais, vai proceder a uma investigação em busca da
organicidade do ator e de uma cena crível para o espectador.
Com o objetivo de estabelecer contato entre o ator e o papel que ele
representa, inicialmente, o mestre russo parte dos processos interiores de
criação, os quais envolviam estratégicas para dar ao papel sentido de verdade
como o estudo das circunstâncias dadas, a capacidade imaginativa ao se
colocar na situação do personagem, e o uso da memória emotiva. Por exemplo,
o modelo da linha das forças motivas foi construído e aplicado na primeira fase
dos seus estudos, e visava despertar o trabalho criativo do ator - o sentimento, a
mente e a vontade. O sistema de crença no personagem pelo ator, nessa etapa
investigativa, estava ancorado na tríade ascendente imaginar – acreditar - sentir.
Todavia, a dificuldade de fixação desses elementos, faz a investigação do
russo se deslocar dos processos interiores, guiados pela memória emotiva, para
a segunda etapa em que a ação física executada pelo ator em cena está no
centro. O método das ações físicas (que foi problematizada desde o início da
elaboração do seu sistema) toma à frente no processo criativo e se revela como
o ponto de coincidência entre ator e personagem:

A única coisa que o ator pode realmente fazer como personagem é uma
simples ação física, afirma S. Moore. Note que se Salvini, interpretando
Otelo, observa Otelo chorando, ao nível físico, não encontramos a
mesma ruptura entre ator e personagem. Se Otelo abre a porta, Salvini
abre a porta, se Otelo quebra o vidro contra a parede, Salvini quebra o
vidro contra a parede. É, portanto, apenas no nível da ação que o ator
não está dividido e que ele pode encontrar uma ligação absoluta com o
158
personagem (ISAACSSON, 1991, p.306) .


158
Tradução minha para "La seule chose que l'acteur puisse véritablement faire en tant que
personnage est une simple action physique, affirmera même S. Moore. Il faut noter que si Salvini,
en jouant Othello, observe Othello pleurer, au niveau physique, nous ne trouvons pas la même
rupture entre acteur et personnage. Si Othello ouvre la porte, Salvini ouvre la porte, si Othello
casse le verre contre le mur, Salvini casse le verre contre le mur. C'est donc dans l'action seule
que l'acteur ne se trouve pas divisé et qu'il peut trouver un lien absolu avec le personnage”.

263

Nesse sentido, a ação psicofísica é vivenciada em cena como uma


potente realidade para o ator; “nos mantemos no terreno mais firme e acessível
das ações físicas, atendo-nos à sua lógica e coerência” (STANISLAVSKI, 2000,
p. 248). Assim, a ficção, para ser crível, tem de tornar-se uma realidade possível
no aqui-agora. Nessa acepção, uma ação real é aquela que efetivamente
acontece envolvendo as questões entre interior e exterior do corpo, pois ao se
concentrar na ação física, o ator atinge o estado de disponibilidade no presente
e desperta sua credibilidade para as situações proposta pela fábula. Isso não
quer dizer que ele “encarna” o personagem, pois este pertence ao campo da
ficção, e o ator, ao campo da realidade; um jamais será o outro. Dessa forma,
sendo impossível se transformar em personagem, a ação física, como
demonstra o exemplo trazido por Isaacsson, torna-se elemento ativo que liga o
ator ao papel a ser vivido O ator ao fazer as ações que o personagem faz, cria o
elo palpável nessa relação. Nesse sentido, infere-se que a conexão entre o real
e o ficcional se encontra na cena pelo viés do fazer.

Experimentando as transformações do nosso estado físico descobrimo-


nos constantemente um novo estado de espírito e condições
diferentes. Vemos de modo diferente os cenários e o que nos cerca,
mesmo o que é apenas imaginário. Tal como o viajante, conhecemos
outras pessoas e partilhamos a sua vida (STANISLAVSKI, 2000, p.
131).

Esse fazer com intenção vai se conectar à dimensão do real no teatro


dramático contemporâneo, pois compreende-se que a ação física é a potência
de realidade para o dramático. Uma ação física traz consequências
incontornáveis para o contexto, pois quando ela é efetivamente realizada, ela é
irreversível. No universo cênico, esse elemento do real irá colaborar para uma
maior adesão, por quem assiste, à ficção representada. Adesão da plateia, em
última instância, era o desejo de Stanislavski ao elaborar o seu sistema.
Logo essa perspectiva de credibilidade que a ação física carrega pode ser
experimentada pelo espectador ao ser solicitado a fazer ações em cena. Auxilia-
o a ser alçado ao plano do real através do fazer. Realizar atividades próximas ao
cotidiano dos experts não visa unicamente a gerar empatia, quer também

264

reforçar o plano do real. Pois a materialidade desse universo se potencializa


com engajamento do corpo do espectador na ação. É mais do que colocar o
espectador em situação de devir, de experimentar o outro pelo processo de
empatia. É proporcionar ao espectador a compreensão do mundo do outro pela
perspectiva de um fazer sem retorno. O espectador transformado em performer
faz com que ele experimente essa dimensão do real da ação física. Segundo o
diretor Kaegi, essa proposição tem relações com o desejo do coletivo de propor
um acesso imediato ao real:

Ou pode acontecer gerando alguma forma de interação, que coloca o


espectador numa situação real de ter que tomar decisões, ou ser
convidado a interagir com um espaço. Participar ativamente a tomar
decisões com o corpo dele, fisicamente, como na encenação Estado-2
onde o espectador é parte fundamental na cenografia (KAEGI, 2018).

O espectador-performer vai se confrontar com a potência real da ação


física: faz passar algo em seu corpo, gera forças que se relacionam e processos
psicofísicos se desenvolvem. Uma vivência possível dos processos interiores e
exteriores do corpo em ação irreversível como resultado da relação com o
mundo da cena no espaço-tempo presente. É o próprio espectador quem
constrói juntamente com os especialistas esses momentos, onde determinadas
hierarquias se dissolvem, aproximando-se do que Dubatti classificou de abdução
poética:

O lugar da expectação pode perder-se provisoriamente dentro de um


jogo específico da poética teatral. O espectador pode sair do espaço de
expectação e ingressar no campo do acontecimento poético de
linguagem (DUBATTI, 2003, p.23).

Dessa forma, Sociedade em Construção se torna uma obra processual ao se


construir no seu ato de fazer coletivo, onde a noção de especialista do cotidiano
se estende para ambos os polos da encenação.
Fernandes relembra que “as ações físicas hoje são consideradas
fundantes do fenômeno teatral” (FERNANDES, 2002, p.xiv). Isaacsson ressalta
que nem toda atividade física realizada em cena pelo ator se configura como
uma ação física: “toda atividade física guarda um objetivo pragmático e sua

265

transformação em ação física subentende a associação a uma intenção


relacionada à situação particular” ( 2004, p.9). Nesse sentido, o jogo de compra
e venda forjado pela especialista em consultoria financeira Sonja-Verena
Breidenbach na Estação Investimento de Capitais em Sociedade em
Construção, revela como funciona o teatro das especulações imobiliárias onde a
ação do espectador de investir no mercado imobiliário tem a intenção de obter a
maior margem de lucros possíveis na transação financeira.
A ação de abanar, na Estação Construindo Tecnologia, tem a intenção de
dispersar a fumaça que se acumula no espaço, fazendo o corredor de extração
de fumaça funcionar. Carregam-se tijolos com a intenção de erguer uma parede.
As atividades são simples e suas intenções são claras dentro do contexto de
cada estação cênica, a partir dos relatos e indicações dos especialistas.
Segundo Isaacsson, o estado de eu sou no pensamento stanislavskiano
pode ser traduzido “como uma condição psicofísica vivida pelo ator em que ele
acredita sinceramente na realidade imaginária” (1991, p. 302)159. Stanislavski
distinguia claramente os planos do real e do ficcional, desenvolvendo uma série
de estratégias pela via imaginária e física que fazia o ator experimentar
possibilidades de conexão entre os dois planos. Porém, de forma alguma
significava uma ruptura do ator com a realidade concreta :

Não se trata por exemplo, do ator tomar as árvores de papelão do


cenário como árvores reais. Em verdade, Stanislavski distinguiu a “fé
cênica” da “fé real”. Se essa última é a crença na verdade das coisas
que existem efetivamente, a “fé cênica” ao contrário, é a crença nas
coisas que não existem realmente mas que poderiam acontecer
160
(ISAACSSON, 1991, p.302) .

Se, para o trabalho do ator, a fé cênica é fundamento para seu processo


de crença, para o espectador, que realiza ações concretas em cena, essa fé se
apresenta a ele. Pois, ao construir uma parede de tijolos, o espectador, naquele

159
Tradução minha para “comme un état psychophysique éprouvé par l'acteur, dans lequel il croit
sincèrement à la réalité imaginaire”.
160
Idem “il n'est pas question pour l'acteur de prendre, par exemple, les arbres de papier mâché
du décor pour de véritables arbres. En réalité, Stanislavski a distingué la "foi scénique" de la "foi
réelle". Si cette dernière est la croyance dans la vérité de choses qui existent effectivement, la
"foi scénique" est, à l'inverse, la croyance dans la vérité de choses qui n'existent pas réellement
mais qui pourraient arriver”

266

momento do fazer, está com seu corpo direcionado em realmente levantar uma
parede161. Não se trata de fazer uma aproximação ao papel de um mestre de
obras, mas de realizar uma atividade física concreta.
A ação física se torna elemento ativo que liga o relato do especialista ao
espectador. Nesse processo de interatividade, a ação é o que se encontra entre
o especialista e o espectador. Elemento que ele faz no presente da cena.
Nessas situações, entendo como “denegação capturada” as ações físicas
realizadas pelo espectador. Pois seu corpo não está conectado à ideia de
imitação, seja de um personagem ou imitação de um especialista, mas
conectado a uma ação com intenção específica. Ou seja: uma experiência física
concreta é vivenciada pelo espectador. Não se pode tomar a situação por um
viés puramente fictício. Os tijolos são reais e a parede pode vir ao chão. Por
outro lado, não há um treinamento de como deve ser exatamente realizada essa
ação, cada um carrega o tijolo à sua maneira e à sua velocidade. Cada um
determina seu comportamento em relação a esse fazer.
Uma tensão nasce nesse corpo empenhado em realizar atividades
físicas, e por consequência uma organicidade advém desse fazer, pois a
atenção do espectador está direcionada ao objetivo proposto. Nesse sentido,
pode-se dizer que o espectador experimenta uma “fé cênica” (até o momento em
que o alarme soa avisando o final da atividade). Essas características conferem
ao corpo do espectador uma organicidade ativa, pois ele não está sentado de
forma circunspecta assistindo a um espetáculo, ele coloca seu corpo em tensão
ao realizar ações. Sociedade em Construção está construída para uma busca de
ativação não somente do corpo do especialista, mas do corpo do espectador
também.
O fato de estar engajado na ação aporta uma qualidade real no sentido
do êxito da ação, de conseguir executar a tarefa. Todavia, observa-se um
movimento oscilatório: o espectador-performer agora está sendo visto pelos
outros do grupo, pelos outros dos grupos à sua volta e pelos experts. Um


161
Experiência minha, pois naquele momento do espetáculo me interessava ver a parede
erguida da melhor forma possível.

267

movimento de ambiguidade entre o ficcional e o real se instaura. Pois outras


pessoas estão observando “esse fazer”, e se dá uma espécie de inversão da
relação da teatralidade. Recordemos que para Stanislavski, a técnica também
era para auxiliar o ator a transpor o estado contra-natureza que este adquiria ao
colocar-se em cena, frente ao olhar dos outros. Assim como temos o olhar de
teatralidade daquele que vê, temos o sentimento de teatralidade pela
consciência de estar sendo visto. O espectador, embora envolvido na
materialidade da ação, ele também está no lugar daquele que é observado.
Lugar de instalação de teatralidade. Logo esse espectador oscila entre as duas
instâncias; a de performer e de espectador.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

No curso desta tese, procurei reconhecer os procedimentos técnicos


explorados por Troubleyn e Rimini Protokoll que contribuem para afirmar ao
espectador a parcela de real do acontecimento cênico. Em Troubleyn o
investimento na fisicalidade dos praticantes propõe essa via de acesso. O
performer, ao acionar sua fisiologia dinâmica, que não opera pela mímese
enquanto cópia, mas que se realiza no presente do acontecimento, vê-se em
processo de uma performance biológica. Em Rimini Protokoll, verifica-se
conjunto de estratégias afirmativas que vai da inclusão em cena de relatos
trazidos por pessoas de fora do campo artístico até proposições cênicas que
acentuam a interatividade entre todos os participantes.
Neste espaço de conclusão eu me interrogo sobre as motivações
sociopolíticos e culturais das práticas que envolvem o real em campo cênico,
práticas não só dos artistas estudados mas de toda uma parcela significativa da
cena experimental contemporânea. De fato, a prática voltada a desnudar a
realidade do corpo acompanha determinados movimentos teatrais desde os
anos de 1960, encontrando uma sobrevida ainda hoje. Sem pretender a
resposta definitiva para a continuidade dessa modalidade cênica, uma questão

268

pulsante é o acirramento das tecnologias da comunicação, audiovisual e


internet, que permeiam todas as instâncias do cotidiano, apartando os sujeitos
do contato físico com o outro e do contato com o seu próprio corpo em primeiro
lugar162.
Os gritos de sofreguidão, os líquidos que emergem, o impacto dos corpos
nas tábuas do palco, uns sobre os outros, os gestos de carinho ou de crueldade
e todo o risco em potencial pelos quais se submetem os performers do
Troubleyn permite parafrasear Artaud, pois fazem “aparecer ante os olhares um
certo número de quadros, e imagens indestrutíveis, inegáveis” (ARTAUD, 2014,
p.38). Esse corpo inegável do performer, o espectador experimenta por empatia:
ele vibra, aplaude, cansa... ou se entedia, ele está igualmente em situação de
performance e precisa decidir o próximo passo frente à espetacularidade física
que se constrói, pois “em Fabre o encontro sagrado se estabelece na dor
coletiva do limite dos corpos. A tragédia dos limites dos corpos é o solo de nossa
comunhão” (BELLOTTO; ISAACSSON, 2019, no prelo).
O corpo em cena com essa intensidade resgata a possibilidade de
comunhão entre os sujeitos, cada vez mais individualizados no contexto social.
Para Dubatti, “quanto mais cultura tecnovivial exista, maior a necessidade de
estabelecer vínculos conviviais” (DUBATTI apud MENDONÇA, 2011, p.9). Se
concordarmos com essa resposta de resistência frente ao aumento considerável
dos “corpos plugados” (SANTAELLA, 2003, p.289), temos na performance
biológica aquela que promove esse ato de retorno ao funcionamento original do
organismo humano. O performer pode então afetar a percepção dos
espectadores graças a essa potência orgânica revelada, convidando estes, à
maneira grotowskiana, a fazerem o mesmo. A possibilidade de retomada do
contato entre os homens pode estar nesse retorno ao biológico.
Apesar de a palavra ser abundante no palco fabriano, ela aparece com
frequência à maneira pretendida por Artaud: enquanto potência vibratória, sólida
e carnal. Observa-se que, muitas vezes, em Mount Olympus, as palavras que

162
Motivo pelo qual os esportes radicais têm ganhado destaque na contemporaneidade,
segundo o filósofo Pierre Lévy. “Acima de tudo, intensificam ao máximo a presença física do aqui
e agora” (LÉVY, 2009, p.32).

269

são lançadas à plateia, aos gritos e solavancos, impedem a sua compreensão e


se prestam a reforçar a presença viva dos corpos. Esse teatro do corpo e do
grito se aproxima à busca de Gumbrecht pela defesa de “uma relação com o
mundo que não fosse exclusivamente fundada no sentido” (2010, p.78). O que
de forma alguma signifique eliminar o sentido, mas, justamente, propor, para
além de um equilíbrio, uma alternância constante.
Para Gumbrecht, uma obra de arte consegue revelar seus poderes
quando a sua presença é exteriorizada, concretizada, “ao mesmo tempo a forma
da obra de arte continua sendo uma forma de significação que produz uma
tensão contínua com a forma energizada” (2010, p.84). A alternância entre a
significação e a “energia” coloca a percepção do real para o espectador em
campo oscilatório, instaurando outras possibilidades de ver o mundo. Temos o
espectador chacoalhado e a possibilidade do seu comportamento
institucionalizado ser “desanestesiado”. A performance biológica pode dar a ver
aquilo que poderia estar sendo esquecido ou encoberto pela revolução virtual da
sociedade moderna; a própria natureza do homem.
Já a poética do Rimini Protokoll acena para a busca da alteridade pela
valorização dos discursos não hegemônicos ou que trazem consigo críticas
contundentes acerca do sistema capitalista. Tais artistas carregam consigo o
legado político da corrente estética alemã de colocar em evidência a vida de
pessoas comuns, inseriando-as em espaço de visibilidade artística. Entrevê-se
nessa prática o caráter de denúncia da exploração dos sujeitos na esfera
econômica, o desejo de transformação social, de garantia dos direitos humanos,
sem desconsiderar a individualidade que habita cada um desses sujeitos.
Podemos levar em conta, nessas estratégias de valorização do sujeito comum,
atos de resistência frente a “Sociedade do espetáculo” (DEBORD, 1967) que
vem institucionalizando um verdadeiro “deserto do real” (BAUDRILLARD, 1991,
p.8) com a propagação indiscriminada de reality shows televisivos e
entretenimentos cosmetizados, onde o cidadão comum é banalizado ou elevado
a status de celebridade relâmpago, colocando mais à margem a real parcela
excluída das sociedades.

270

Por outro lado, os procedimentos de interatividade apresentados ao


espectador em Sociedade em Construção são convites à retomada das relações
humanas pelo viés da ação. Esses formatos que esfumaçam a divisão entre o
espaço da representação e o do espectador podem promover o intercâmbio de
posições e de experiências que potencializam o teatro como um lugar de
convívio. O espaço de fronteiras desi-hierarquizadas, como o da instalação
cênica proposto em Sociedade em Construção propicia a interação entre os
participantes, e no final das contas, realiza o projeto visionário de Artaud163 de
substituição do palco por um “lugar único sem divisões ou barreiras de qualquer
tipo, e que se tornará o próprio teatro da ação” (ARTAUD, 2006, p.110)164.
Ao aproximar a atividade realizada pelo espectador em Sociedade em
Construção a uma técnica desenvolvida para o trabalho sobre a cena, como o
método das ações físicas de Stanislavski, tentou-se revelar o grau de indexação
ao real que uma ação tem, seja ela perpetrada pelo especialista, seja pelo
espectador. Pois a ação se configura como elemento concreto, segundo
Stanislavski, que vai trazer a experiência do real para o ator a partir das suas
experiências corporais. Ao dispor esse patamar de interatividade para o
espectador, propõem-se experiências corporais específicas a ele. Recordemos
que Pavis (2010) reconhece o fato de que o espectador hoje já se encontra
“midiatizado”, tornando mais difícil sensibilizá-lo dado o excesso de informação e
imagens que este lida no dia a dia. Propor uma experiência estética não
protegida pelo anteparo convencional que a arte traz consigo, configura-se como
estratégia do teatro contemporâneo, com vistas a provocar adesão sensorial do
espectador frente às questões político-sociais. Alertando-o para o funcionamento
da nossa sociedade, das relações de forças desiguais estabelecidas pela forma
do capitalismo.


163
Mesmo o coletivo Rimini Protokoll não sendo “artaudiano”, pode-se dizer que ele concretiza o
espaço teatral idealizado por Artaud.
164
Prosseguindo Artaud; “será restabelecida uma comunicação direta entre espectador e o
espetáculo, entre ator e espectador, pelo fato de o espectador, colocado no meio da ação, estar
envolvido e marcado por ela. Esse envolvimento provém da própria configuração da sala” (2006,
p.110).

271

Retoma-se que, nas duas poéticas, o real irrompe à cena a partir de uma
construção de presença original de seus praticantes. O coletivo Rimini Protokoll
se interessa pela identidade do indivíduo e suas relações em sociedade.
Presença que se constrói valorizando o comportamento cotidiano dos
participantes em cena e também pela dimensão pessoal dos relatos que trazem
consigo. Essa presença aurática potencializa a alteridade dos participantes,
tanto no momento da apresentação, quanto no momento do processo de
elaboração dramatúrgica, onde o especialista confronta seus conhecimentos
com a poética do grupo. Já no Troubleyn, o político se estabelece à maneira da
performance biológica, na medida em que o ser humano, dentro dessa
sociedade corrupta a qual o coletivo Rimini Protokoll muitas vezes descortina,
também tem seus impulsos instintivos e desejantes. Impulsos retomados pela
poética do Troubleyn, que encontra em uma linha artaudiana a resposta de
retorno ao sujeito e as relações.
Por outro lado, em âmbito nacional, espetáculos que esfumaçam as
fronteiras entre palco e plateia, deixando a descoberto a camada real das
relações inter-humanas, podem ser observados em determinadas proposições
artísticas, como a da diretora carioca Christiane Jatahí, no espetáculo A floresta
que anda165. O espetáculo transita entre as linguagens do teatro, do cinema e
artes visuais fusionando-se em um complexo dispositivo, tanto estrutural, como
narrativo. Dada a natureza híbrida do espetáculo, a sala na qual acontece é
atravessada por 4 telas suspensas onde se projetam pequenos filmes
documentais sobre a vida de excluídos sociais. É o espectador quem escolhe
qual das telas ele quer ver, a partir de qual distância e posição, se na íntegra ou
parcialmente, podendo circular livremente pela instalação cênica, trocando de
tela à sua vontade. Ainda, pode-se se deslocar a um bar posicionado ao fundo
da sala, sentar ao balcão, comer aperitivos, beber cervejas e conversar. Pode-se
dizer que o espetáculo é feito por não atores, pela plateia. Essa experiência
artística que questiona comportamentos e hábitos tradicionais de fruição
estética, traz a possibilidade de barrar a perda da dimensão corpórea e até

165
Assisti ao espetáculo em São Paulo, em julho de 2016, no SESC Pompéia.

272

espacial da existência no cotidiano. O dispositivo cênico dinâmico não só turva


os limites, inverte papéis, ressignifica funções, em consonância às tendências da
pós-modernidade de explosão do edifício teatral, da utilização das tecnologias
como possibilidade para comunicação diversificada e o entendimento do público
não mais como uma massa homogênia e passiva, mas “visando novos modos
de percepção” (BIDENT, 2016, p. 54).
Ao final do espetáculo acontece uma performance das próprias telas
projetivas, que avançam em direção aos espectadores que ficam acuados,
espremidos entre o balcão e as telas que se deslocam166 através de estrutura
tecnológica engenhosa, “turvando os limites entre realidade e ficção”, como
aponta Bident (2016). Observa-se que o dispositivo espacial específico da
Floresta que anda, se evade da sala tradicional frontal com sua divisão de
mundo entre espectadores e atores, em favor de um espaço que força o
espectador a se colocar em movimento. A plateia se desloca e contribui para a
realização do espetáculo, já que alguns espectadores recebem fones de ouvido,
indicações de ações e textos para serem lidos ao microfone em determinados
momentos do espetáculo, assemelhando-se ao manual de instruções, prática
usual do coletivo Rimini Protokoll.
O que pese em relação às semelhanças de procedimentos entre A
floresta que anda e Sociedade em Construção, ambos os espetáculos
confrontam aspectos de um teatro altamente tecnológico a propostas de
interatividade física que preveem estabelecer espaços de relação e convívio
entre os espectadores e entre espectadores e os performers da cena. Observa-
se mais uma vez a interatividade física sendo colocada como resposta à
interatividade virtual que se acentua no contemporâneo. Pois esses teatros se
confrontam com as tecnologias, sem implicar, contudo, a sustação dos corpos
envolvidos. Nesse sentido, as tecnologias audiovisuais e de comunicação estão
colocadas justamente para favorecer as relações e forçar uma tomada de atitude
dos espectadores. Estão poeticamente invertidas para promoverem encontros, o


166
Traduzindo poeticamente a floresta que avança sobre Macbeth, o rei assassino de
Shakespeare no penúltimo ato da obra de mesmo nome.

273

corpo a corpo que Dubatti classifica como “convivência aurática, determinada


pelas potências e pelas limitações do corpo” (MENDONÇA, 2011, p.3). Ao
colocar as telas documentais avançando contra os espectadores, Jathaí utiliza
as tecnologias audiovisuais como mecanismo de denúncia de uma situação
social brasileira. Ao investir na potência do real em campo cênico se instaura
espaços para renegociação dos acordos entre artistas e espectadores, propondo
zonas conviviais, e que podem resultar na mudança de percepção em relação
aos contratos estabelecidos na sociedade e na vida.

274

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282

ANEXOS

1. Entrevista com o diretor Stefan Kaegi - 4 de março de 2018 em Berlim

Na chegada ao teatro, Kaegi me levou para conhecer o dispositivo cênico


de Staat 4 – Davos State of the world, com estreia marcada para a semana
seguinte. Durante a subida ao 3º andar, ele contou que o prédio, depois da 2ª
guerra, foi utilizado pelos americanos para des-nazificar os alemães. Ao passar
por uma das enormes janelas envidraçadas ele apontou para o prédio do outro
lado da rua e comentou:
- Está vendo ali é a casa da Angela Merkel167, estou muito contente de
estar utilizando esse prédio com essa carga histórica em frente a casa dela para
fazer teatro. Ainda mais agora com o Partido Nacional Democrático de extrema
direita ganhando voz novamente na Alemanha.

A estrutura para o novo espetáculo consistia em um palco semiarena, com


arquibancadas e uma imensa tela panorâmica para projeção que fazia quase
toda a volta no dispositivo cenográfico. Após me contar sobre o projeto,
descemos para o primeiro andar para a entrevista.

Lisandro: Qual a origem e significado do nome Rimini Protokoll para o coletivo?

Kaegi: Nós simplesmente chamávamos de haugkegihratsul que são nossos


nomes. Mas ficou largo e complicado lembrar. O protocolo é uma palavra
significativa porque está ligado por um lado ao documentário, e por outro, aos
processos representativos na política. Como protocolo tem 3 “os”, pensamos
que Rimini, igualmente com 3 “is” poderia ser uma boa combinação. Rimini é
uma cidade na Itália. A gente nunca foi. Mas ela tem fama de ter sido uma praia


167
Chanceler da Alemanha desde 2005.

283

de férias baratas para os alemães nos anos 80, então eles iam para lá. Mas não
tem nada específico do significado do Rimini na verdade.
Lisandro: O coletivo fricciona o campo teatral com diversas linguagens e mídias,
resultando em espetáculos multimidiáticos, relacionais e participativos, como os
site-specifics, audiotours, peças radiofônicas, documentais e biográficas. Você
poderia comentar sobre essas “frentes” em que opera o coletivo de diretores?

Kaegi: Em geral nos interessamos pela realidade, que é o caso de muitas


formas de teatro, mas no nosso caso queremos dar um certo acesso imediato ao
real. Isso pode acontecer convidando pessoas que não são atores, mas pessoas
que falam de si mesmas, da profissão ou biografia delas, ou pelo cenário real
dentro do teatro. Ou pode acontecer levando o público lá para fora, na vida real.
De alguma forma entrando no espaço público. Ou pode acontecer gerando
alguma forma de interação, que coloca o espectador numa situação real de ter
que tomar decisões, ou ser convidado a interagir com um espaço. Participar
ativamente a tomar decisões com o corpo dele, fisicamente, como na encenação
Estado - 2 onde o espectador é parte fundamental na cenografia. O Brasil em
casa168 mostra um público que está lá sozinho, em torno de uma mesa e em
função de perguntas e suas respostas, os grupos e a narração da noite se
constroem.

Lisandro: Alguns espetáculos do coletivo guardam semelhanças com os jogos


de RPG169 , pois incluem a ampla progressão de história e elementos narrativos,
e até o desenvolvimento de personagens pelo espectador em estado de
imersão, como no caso de Estado - 1.

Kaegi: Eu acho que eu jogo playtheater em inglês, que mostra que tem algo
lúdico dentro do teatro, mas o jogo do teatro que criamos na maioria dos casos


168
Se referindo ao espetáculo Home Visit: Brasil em casa que em setembro de 2018 fez
apresentações dentro do 24º Festival Porto Alegre em Cena.
169
RPG é a sigla em inglês para role-playing game, um gênero de jogo no qual os jogadores
assumem o papel de personagens imaginários em uma narrativa.

284

não é um jogo competitivo, é mais um jogo de entrar em papéis próprios e de


outras pessoas, de personificar e de interagir.

Lisandro: No projeto 100% cities os participantes se movimentam a partir de um


jogo de perguntas e respostas que vai mobilizando eles espacialmente. Esse
jogo com os experts facilita a confecção do espetáculo? Parece uma tendência
do grupo. O audiotour também tem um jogo que mobiliza os corpos, fazendo a
narrativa progredir, e que varia dependendo da resposta a cada pergunta. Esse
dispositivo facilita a narrativa?

Kaegi: Acho que você está iluminando o perigo da arbitrariedade quando tem a
opção A, B ou C e não tem um autor superpotente que decide tudo para você...
Mas eu acho que nunca gostei, nem filmes, nem no teatro, nem na literatura um
autor que me define tudo o que ele quer que eu leia dentro da composição de
arte dele. Eu gosto de dispositivos que abrem uma complexidade, onde eu tenho
que escolher também onde eu quero olhar, o que que eu descubro, eu gosto do
imprevisível por exemplo que oferece o espaço público. Por isso não tenho
medo de fazer uma peça com um caminhão que transporta público, onde um dia
mostra a chuva e noutro a neve, mostra diferentes cenografias. O arbitrário
dentro de uma certa margem. A previsibilidade e imprevisibilidade do que vai
acontecer me interessa em trabalhos como Remote-X em que um dia acontece
algo, em outro não. Nunca se descobre a mesma coisa. Tem outros “extras”
parece, outros figurantes no cenário que é a cidade mesma. E as maiorias então
é que decidem um caminho dentro de uma certa “árvore”. Tem um limite esse
jogo, eu não posso escrever open route, para permanecer nos termos dos
videogames, onde você pode ir para qualquer lado e sempre vai descobrir
alguma coisa.... na verdade tem trabalhos open route, no Chile a gente fez
AppRecuerdos, que é uma forma de aplicativo que você pode mover-se pela
cidade e descobrir áudios a partir dos seus movimentos. Tinha mais de 10 horas
de material e você escolhe onde quer ir... aí sim, talvez um pouco se perde da

285

densidade de uma obra de teatro que captura os seus sentidos numa timeline, e
fica mais perto de ser quase uma exposição invisível no espaço público.

Lisandro: Falando em exposição, como as suas referências como artista


plástico influenciaram a criação do audioplay Estado - 1? Não somente pelo fato
de ser em um museu, mas por solicitar que o espectador caminhe pelos
corredores, veja as obras, ele também é alguém que se desloca fisicamente, tal
qual um observador de museu. Por outro lado, tem muitas informações do
universo jornalístico no conteúdo narrativo, aportando todo um outro quadro de
referências...

Kaegi: Acho que para mim tem mais a influência do jornalismo, que foi meu
trabalho anterior ao teatro.... no sentido de que eu gosto de pesquisa, de ir falar
com pessoas que não vêm do mundo do teatro. Mas me interessou mais a
invenção de meios de comunicação mais que repetir, como os jornais, as
emissões televisivas, a forma do mundo do jornalismo clássico. Mas nas artes
plásticas também tinha algo que me encheu um pouco o saco que foi a
sacralidade do artista. O objeto como fetiche. Eu gosto do teatro no sentido de
entertainment, no sentido de entreter os pensamentos que seguem uma fluidez
de comunicação, no melhor dos casos. Depois tem entertainment que é muito
chato também porque tem obras que me subestimam, me tomam como burro.
Mas eu gosto de bons timings de convidar pessoas a entrar em mundos
complexos que eles não entrariam por conta própria.

Lisandro: O espetáculo Estado - 2 opera borrando as fronteiras artísticas,


envolvendo teatro, artes visuais, vídeos documentais e a participação do
espectador. Como você nomeia esse dispositivo complexo?

Kaegi: Para mim é teatro. Mas é um teatro que não nega o espectador como
elemento do experimento. Na física se fala que não existe experimento que não
seja influenciado pelo observador e no teatro a gente esquece muito isso e

286

coloca o espectador em um buraco escuro, e fingimos que essa multidão não


está lá. Mas esse ritual de botar 50 pessoas para ver algo é também uma
chance de trabalhar com os elementos das pessoas que estão lá.
Lisandro: Ao solicitar que o espectador se engaje no acontecimento fazendo
ações, a relação com o espetáculo se intensifica, acaba por tornar o trabalho
mais imersivo...

Kaegi: Sim isso é verdade, o espaço é o entorno, mas o happening ou a


instalação cênica já existe faz tempo. Teatro frontal, que muitos chamam de
clássico é uma invenção do barroco. Na idade média tinha muitos espetáculos
acontecendo na rua, em forma de desfile, no grego tinha uma espacialidade
parecida com a que estamos construindo lá em cima170, com elementos lúdicos
participativos da plateia. Não sei por que em algum momento se achou que o
teatro deveria ser uma coisa escrita. Também essa ideia de que o teatro serve
para digerir ou transferir literatura também é uma ideia mais tardia. Essa coisa
que tem um diretor separado do escritor, especificamente na Alemanha produziu
uma certa forma de teatro que para mim não tem que ser o único tipo de teatro,
também não digo que não é teatro, vejo muitos espetáculos com esses
elementos e essa ideia atrás que eu posso gostar. Mas isso não quer dizer que
é a única forma de teatro, só porque que se industrializou muito, e que serve
muito bem para a admiração de atores que querem ser estrelas. E parece que
houve uma época em que o público adorava “adorar” e aplaudir as grandes
divas. Mas essa não parece ser mais nossa época. Os jovens hoje que crescem
com os jogos de RPG, eles vêm com outra demanda de interação. Não digo que
sempre é bom. Eu vejo muitas formas de teatro que utilizam essa modalidade
interativa e é muito chato também. Acho que para mim o Estado - 2 é uma obra
de teatro, eu não diria que é uma instalação. É muito dominante essa sensação
de tempo, ou a sensação de narração ou liveness.


170
Referência à Estado - 4.

287

Lisandro: Interessante porque a sensação de tempo é sobreposta. Se


experimenta vários estágios de uma grande construção, do operário ao consultor
financeiro durante 90 minutos. Se passa por todas essas etapas, então o tempo
se condensa e se sobrepõe.

Kaegi: E isso você tem com Piscator por exemplo, que trabalhou aqui no
Volksbürne nos anos 30 com cenas simultâneas. Tem um dispositivo clássico,
mas projetando filmes juntos aos atores, então acho que simultaneidade de
diferentes meios pode caber no teatro.

Lisandro: Em Estado - 2 tem um dispositivo de cenas que se repetem inúmeras


vezes, porque tem vários grupos experimentando cada uma das etapas de
forma alternada. E dependendo de onde eu vejo, os significados se modificam
para uma mesma cena. O dinheiro que cai do teto na sala de investimentos tem
significados diferentes para a investidora e para o expert em formigas.
Diferentes significados para a mesma imagem, dependendo de onde eu olho e
do tratamento narrativo que cada expert dá para ela. Reside aí uma questão
interessante da teatralidade que abre para multissignificados a partir de uma
mesma ação. Qual a diferença entre o ator que interpreta um personagem
dentro de uma ficção e o expert do cotidiano que fala de suas próprias
experiências?

Kaegi: É muito simples, a diferença é que o ator, o que você falou, ele
representa uma outra pessoa e não a si mesmo, quer dizer os seus critérios
para fazer uma ou outra coisa de certa forma vai ser em função do texto, da
direção, de uma forma de manipulação psicológica da percepção do espectador
e não em função de falar de si mesmo. Quando eu trabalho com um advogado
eu corrijo o texto dele em função do que eu acho mais interessante, mais justo,
faço essa intervenção, e ele vai me corrigir o texto de novo e vai me dizer, “não,
isso não é o texto da lei”, ou “eu não vivi essa experiência”. Pode ser que ele
censure coisas que ele mesmo falou um dia, ou que eu escrevo e ele diz: “mas
em público eu não posso dizer isso”. Então essa fricção com eles, como

288

representantes de si mesmos, cria um texto muito diferente do que eu poderia


imaginá-lo, e mesmo depois da estreia... Não é que eu entrevisto uma vez e
depois escrevo o texto e está pronto. Nós vamos refazê-lo nos ensaios,
descobre-se que eles não gostam de determinada coisa, eu também posso não
gostar de outras. Tem muito trabalho de edição com eles. Que é bem diferente
do trabalho do ator que vai perguntar como deve fazer o texto, que vai ensaiar
para fazer perfeitamente. A técnica para nós entra somente em segundo plano.
Primeiro é a criação em forma de coautoria com eles, de uma forma que eles
são quase como políticos e nós somos os ghostwriters ou speechwriters.

Lisandro: Como funciona essa “técnica que entra em segundo plano”?

Kaegi: Técnica de pronunciação, técnica de falar suficientemente alto que você


possa escutar. Mesmo que um expert seja super interessante, se o público não
entende porque ele fala baixo, isso não vai funcionar. Então às vezes entram
técnicas no sentido de utilizar microfones, no sentido de aproximar o público, ou
também pode acontecer, como no Estado - 4 que tem 2 estrangeiros que não
falam muito bem o alemão, então utilizamos um treinador de atuação que
trabalhou com eles para melhorar a pronúncia. Então isso é uma coisa técnica
que faz parte do trabalho do ator como também do expert. Mas isso entra só
realmente bem no final, muito mais importante é o primeiro trabalho sobre o
conteúdo e sua reescritura do que eles talvez poderiam dizer, ou em muitos
casos também coisas que eu gostaria que eles dissessem. Então é uma
negociação com eles, se eles estão de acordo em contar a história deles dessa
forma. É um processo de vai e vem. Eles me contam eu escrevo, eles
protestam, eu reescrevo, eles reescrevem, eu reescrevo e assim vai por meses.

Lisandro: Nos projetos do 100% cities as determinantes do processo seletivo se


dão a partir dos dados estatísticos oficiais da cidade e de anúncios no jornal. E
em relação ao processo de escolha do elenco para Estado - 2, quais foram as
balizas, as questões que definiram escolher uma pessoa e não outra?

289

Kaegi: Muitas pistas diferentes. No caso do Estado - 2 foram muitas chamadas


telefônicas para escritórios de arquitetura até achar o arquiteto, os urbanistas.
Em determinado momento estávamos com os sindicatos falando sobre assuntos
laborais, e eles começaram a contar que tem um forte problema com pessoas
que trabalham na Alemanha ilegalmente. Então pensamos: vamos encontrar
alguma pessoa, algum trabalhador nessa condição. Até que encontramos o
romeno Cipriano (Estação Construção de Interiores) através de um sindicato.

Lisandro: E como é processo de escolha final do 100% cities?

Kaegi: No 100% cities é diferente. Não é escolhido por nós. É uma pessoa da
cidade mesma que faz, que segue as estatísticas. Por que tem que ter uma
certa quantidade de mulheres, homens, de moradores de cada bairro e assim
por diante.

Lisandro: Não tem esse olho da direção que seleciona o que pode ser mais
interessante no palco?

Kaegi: Dentro de 100 pessoas você sempre tem uma certa quantidade de
pessoas interessantes. A gente tenta acertar nesses aspectos. O que a gente
procura corrigir no casting é em função de cuidar para não ter pessoas demais
da esquerda. Não sei por que mas pessoas da esquerda gostam mais de teatro
do que da direita, parece ou pelo menos gostam mais de processos integrativos
como é o 100% cities. Mas precisamos de pessoas que votam na direita, então
temos que corrigir nesse sentido. É assim no mundo todo. Por exemplo, é um
pouco mais difícil encontrar racistas que aceitem participar de projeto que tem
pessoas de todas as proveniências que têm na cidade.

Lisandro: No espetáculo 100% São Paulo todos os participantes se comportam


de uma forma parecida em termos de movimentos, de forma cotidiana. Ao
mesmo tempo eles têm que se relacionar com câmeras e microfones. Outros
espetáculos do projeto em países diferentes também seguem esse padrão. O
grupo vem criando um tipo de atuação para este projeto? Pois essas

290

determinantes tendem a gerar um estilo de atuação, mais despojado, cru e


direto.

Kaegi: Isso você pode dizer melhor do que eu. Atuar é uma coisa que nós todos
fazemos. Você atuando de científico para mim e eu atuando de artista para
você. Nós atuando para um produtor conseguindo dinheiro, pessoas normais
tentando conseguir um trabalho, nos comportamos de certa forma para servir o
contexto no qual desejamos aparecer. Isso vale para o 100% cities. Porque eles
se mostram no teatro, se vestem melhor do que normalmente, outros se vestem
de maneira mais trash, outros querem fazer piadas e serem engraçados, outros
querem contar histórias tristes que na vida ninguém quer escutar. Tem tantas
teatralidades diferentes, não sei se tem uma unidade nisso, uma linguagem em
comum. O que tem de parecido é o fato de que eles não vão ser exatamente
autênticos, porque estão à frente de um cenário, eles vão refletir, e acho
importante que eles façam isso. Como eles estão na frente do público, então
alguns não vão responder com sinceridade à pergunta sobre traição, se eles não
conversaram antes com seu parceiro ou parceira sobre isso. Eles não vão fazer
isso no teatro. Tem certas lógicas que se repetem.

Lisandro: Quais são as orientações mais comuns da direção em relação ao


trabalho da cena para os experts?

Kaegi: Coisas simples, como não virar as costas para o público, não fazer
barulho enquanto os outros falam, questões muito técnicas. O processo é longo
de produção mas no caso dos ensaios do 100% cities, são poucos, entre 5 ou 6.
E temos o teleprompter. Um telão atrás do público que indica o que eles
precisam fazer na hora certa, já que são poucos ensaios. No mais, existe um
espaço para eles jogarem livremente, faz parte desse projeto essa liberdade de
jogo.

Lisandro: Como o grupo equaciona a camada real trazida pelos especialistas e a


camada estética do espetáculo?

291

Kaegi: A arte também tem um pacote de beleza. A luz, a cenografia, a banda ao


vivo, o vídeo projetado. Tem algo muito espetacular nessa peça, é quase uma
ópera sem canto, com muitos “extras”, tem muita coisa para ver. E tem muito a
descobrir, muitos focos para olhar, é impossível perceber todos os detalhes de
movimento deles, afinal são 100 pessoas no palco. E isso ajuda o público a ver
e a escutar coisas que talvez ele acharia banal em outro contexto. Porque os
protagonistas em “100%” não são muito excepcionais na sua maioria, são
pessoas comuns, justamente pela estratégia de procurar a partir de estatísticas
da cidade. Então são pessoas que você poderia encontrar em qualquer lugar da
cidade. Mas o freaming artístico, estético, acho que aciona no público a vontade
de querer ver. Não somente um fato, mas o conjunto, as maiorias e minorias. E
como se trata da cidade onde o espectador mora, então interessa, porque de
repente está em jogo uma questão de se reconhecer ou não dentro dessa
cidade que está representada no palco. Se eu concordo ou não com esse
recorte.

Lisandro: E como foi o processo de ensaios de Estado - 2, que parece ter uma
diferença significativa em como o espetáculo se organiza, com os especialistas
trazendo relatos muito maiores, se comparados aos do 100% cities, por
exemplo.

Kaegi: É, teve muito mais ensaios. São 9 minutos para cada um dos
especialistas. Comecei a procurar as pessoas um ano antes de começar os
ensaios. Algumas foram fáceis de encontrar, outras demoraram mais. O di
Mauro, técnico em ventilação do aeroporto foi um dos primeiros. É bem
interessante contar a história dele em Berlim agora. Porque ele tem a
possibilidade de se reposicionar profissionalmente. Tivemos ensaios duas vezes
por semana durante dois meses e pouco. Um ensaio individualmente, com cada
um deles, e o outro era um ensaio coletivo. No ensaio individual a gente escrevia
os textos. No ensaio coletivo a gente sincronizava esses relatos, olhávamos
como combinar as coisas, e como funcionava essa forma de ilustração do que
uma pessoa diz pelo que a outra pessoa faz. Para cada uma dessas estratégias

292

tinha que se encontrar uma forma de ensaiar. Muito importante para nós são os
tryouts com o público (ensaios abertos). Um trabalho desses tem muitos tryouts
um mês antes da estreia. Um grupo de pessoas que vinha assistir
sistematicamente e assim a gente descobria o que funcionava e o que não.
Assim a gente se aproxima de uma simulação da realidade do próprio
espetáculo. E também saber quanto tempo os grupos precisam para chegar de
um lugar a outro, onde colocar as portas de acesso de forma a organizar o
espaço. Quantas pessoas são possíveis em cada grupo para todos poderem
enxergar por cima do contêiner o que acontece, por exemplo.



2. Entrevista com a performer Els Deceukelier171 no Troubleyn
Laboratorium – Antuérpia, em 25 de novembro de 2017

Lisandro: Você consegue descrever o que acontece no seu corpo quando você
realiza movimentos muito lentos durante longo período de tempo, como nos
espetáculos do Troubleyn?

Els – No início quando eu comecei a fazer esse tipo de movimento eu


praticamente congelava no sentido de que tinha medo desse tipo de trabalho.
Porque muitas emoções ganham liberdade, vem para fora, e que você sabe que
estão lá. E eu sempre me senti um pouco estranha por dentro, mesmo quando
eu era criança. E quando você faz tudo muito lentamente se chega muito perto
de você mesmo. Porque não é sobre os movimentos ou sobre a lentidão, mas é
como 2 pontos “entre”. Como a escrita e a carta, esse ponto ou a escrita sobre
seus sentimentos. O silêncio e a respiração que acompanha esses movimentos
é o que importa. No início eu tinha medo, então eu não conseguia controlar
meus movimentos quando eu era jovem, mas eu aprendi a controlar isso. Eu
atingi esse ponto de controlar meus movimentos, coordená-los com a respiração
e, ao mesmo tempo, paradoxalmente é libertador para os sentimentos que são

171
Trabalha com Jan Fabre desde os anos de 1980.

293

invocados nesses momentos de pura concentração. Então é essa balança que


você tem que aprender a conviver em cena quando executa esse tipo de
movimento. Caminhando nas bordas, como o trabalho do performer. Controle
também inclui liberdade. Você então tem que ser honesto consigo mesmo. Você
se move em cena, mas também fora dela. Por isso Jan Fabre trabalhava no
início com atores não profissionais, porque ele procurava pessoas reais,
lágrimas reais, movimentos reais, emoções reais, e não técnicas e essas coisas
que se aprende nos conservatórios. Porque ele quer que você realmente
coloque ou tire emoções do fundo de você mesmo. E eu acho que quanto mais
bagagem você tem da vida, mais misérias você teve na vida, mais possibilidades
de ser um grande performer, porque com Jan você tem a oportunidade de
colocar isso em cena. Então essas coisas por qual você passou são presentes
para o artista, porque quando você sobrevive a isso, você dá um lugar para isso
existir. Eu tenho muitas chaves na minha mente, eu abro de vez em quando,
mas quando eu não consigo abrir eu forço, e depois não consigo mais fechar,
não consigo parar e faço coisas loucas no palco, coisas que eu não tenho
controle. E no teatro e na vida você tem que ter algum tipo controle, então
quando mais você experiencia, experimenta esse tipo de coisa, mais consciente
e controlável ela fica, sem perder a fúria que mora nela.

Lisandro - Mas você acha que fazendo esse tipo de movimento por longo
período de tempo te traz algum outro tipo de presença no palco?

Els - Sim. Experimentei isso em Medeia e em Mount Olympus também. Por volta
de 3 horas de movimentos muito lentos, você chega a um estado mental que é
muito difícil de descrever, de colocar em palavras. É como se eu fosse para
outra dimensão. É lindo essa experiência. Nesses momentos eu tenho
consciência da plateia, dos meus colegas no palco e de mim mesma. Mas ao
mesmo tempo eu quase começo a alucinar. É mágico, é uma consciência quase
que total do que se passa internamente, externamente e algo mais; algo mágico.

294

Lisandro - Já que você falou de Mount Olympus, eu lembrei da cena do


“cachorro de rua” que você faz, onde você joga com uma qualidade de
movimentos que é completamente oposta a do slow motion, porque você
empenha muita força e velocidade para se movimentar no palco. Os sentimentos
que você descreveu se alteram? O que traz para o seu corpo esse estado físico
explosivo?

Els - De fato é oposto, mas também é junto com os sentimentos que te descrevi.
Porque você tem que sentir-se como um cachorro, como todos animais. Nós
somos pessoas, mas ao mesmo tempo sentimos essa animalidade em nós
mesmos. É também um tipo de transe. Mas com mais energia. Mas por outro
lado, os movimentos lentos podem demandar mais energia. Não tem a ver com
a qualidade de movimento lento que vai determinar a quantidade de energia
empenhada. Eu sinto o mundo em movimento quando faço movimentos lentos.
Quando eu faço a cena do cachorro de rua, é outra energia, todo mundo vê. Mas
de novo, essa transformação que está acontecendo em meu corpo demanda
energia igual, mental também, pois eu transformei esse cachorro durante as
improvisações em uma vítima dessa guerra que acontece no palco.

Lisandro - Você usa nessa cena pedaços de carne crua. Isso causa algo físico
em você, porque no público causa sentimentos diversos... por que não é apenas
um objeto cênico, mas algo real que você coloca na boca e morde.

Els - Sim, eu sou vegetariana. É muito estranho, porque eu me sinto um animal


selvagem. E eu não como carne. Eu odeio carne! Mas eu faço e mordo e engulo
essa carne em cena às vezes, e vomito nas coxias. Mas é algo que tem dentro
da gente, tem algo assassino no homem, esse algo toma conta de mim. É um
sentimento estranho, mas ao mesmo tempo eu tenho controle de tudo que faço.
Eu não sou louca, pode parecer, mas não. É muito difícil de colocar isso em
palavras.

295


Figura 78 - A performer Els Deceukelier em Mount Olympus.
Crédito: Captura de vídeo

Lisandro - Durante a performance de Mount Olympus, quando você começa a


ficar cansada e suada, o que acontece com seu corpo? Você acha que essa
qualidade física acrescenta algo para a cena?

Els - Quanto mais cansado seu corpo, mais honesto ele fica, porque você não
consegue mais lutar com emoções falsas, ou com aquilo que você acha que é.
Verdadeiros sentimentos vêm à tona, ao mesmo tempo em que você percebe
claramente a plateia e seus colegas de cena. Seu corpo está cansado, mas ao
contrário sua mente fica mais clara e direta em termos de reação, repleta de
energia. É como quando você acorda de um pesadelo profundo e aquela
sensação de sonho ainda está muito presente no seu corpo, mesmo com a
consciência de aquilo era um sonho. Jan fala muito da “hora azul”, entre 5 ou 6
da manhã, quando a noite está se dissipando mas o dia ainda não chegou. Tem
um silêncio, as aves silenciam, um pequeno momento de paz e de vazio, e esse

296

sentimento me acompanha nesses momentos de esgotamento físico e de


resistência.

Lisandro - E quando o Troubleyn costumava colocar animais vivos em cena


como, por exemplo, você contracenando com uma aranha em Elle était et elle
est, même Etants donnés (2004). Essa condição traz diferença no seu jeito de
se movimentar em cena? imagino que seu comportamento deve ser diferente,
porque não é um objeto inanimado, mas um ser vivo. É possível descrever como
seu corpo reage no palco à presença de animais reais?

Els - Tinha sempre um tipo de perigo, porque a aranha era realmente venenosa,
mesmo que as pessoas não soubessem.

Lisandro - Mesmo?

Els - Sim, usávamos as aranhas erradas. Ficamos sabendo disso depois,


através de um especialista. Então podia ter me machucado muito. Elas podiam
pular no seu pescoço! Mas esse perigo a gente usava no palco, era um perigo
real, e os espectadores podiam perceber isso. Quando o animal entrava em
cena gerava um certo desconforto na plateia. Porque os animais você não pode
controlar. Os atores você pode.

Lisandro: Sim, animais são imprevisíveis. Lembro de Jan Fabre dizer em


entrevista que, depois de muito tentar fazer um papagaio falar uma frase em
cena, ele se deu conta de que ele é que tinha virado um papagaio...

Els - Então você e seu corpo têm que se adaptar ao animal, pois é algo que
você não consegue controlar. Para mim é um teatro autêntico e quando você se
torna muitas vezes um coadjuvante, pois sua atenção está voltada para a
imprevisibilidade do animal. Essa peça trazia uma realidade que modificava o

297

meu corpo em cena, modificava todo o ambiente. Entender as relações entre


homem e o animal faz parte do vocabulário dos guerreiros da beleza.

Lisandro - Para você que trabalha com Fabre desde o início da sua fase teatral,
a noção de guerreiros da beleza vem se transformando ao longo dos anos, ou a
ideia permanece a mesma?

Els - A base é sempre a mesma. Porque a pergunta permanece sendo: o que é


beleza para você? Essa pergunta é a base para o conceito. Quando você vê ou
sente coisas que não consegue descrever em palavras, ou que não existem
palavras para descrever, isso para mim é beleza. Beleza é algo que você sente,
não descreve em palavras. Quando seu corpo está esgotado e ainda assim você
tem força para gritar, lutar contra a paralisia, contra a morte, para mim isso está
repleto de beleza.

Lisandro - Fabre repete inúmeras vezes que é um ditador e manipulador como


diretor teatral. Então onde fica o potencial criador para o performer? Você se
sente presa no universo dele?

Els - Eu preciso de ditadores para me sentir livre! É a luz do diretor. Em nossa


sociedade a gente precisa de leis para saber o que é liberdade. E eu preciso
disso. Se cada um pudesse fazer o que quisesse seria o caos, nada existiria.
Seria uma prisão às avessas. São nos espaços pequenos que você consegue
sentir liberdade. Se Fabre diz: “esse movimento não serve, essa direção não
serve, você tem que ficar imóvel...” Então é um ditador no sentido bom da
palavra. Leis te dão parâmetros para uma liberdade incrível.

298

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