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Lavagem
de Dinheiro
• Pareceres jurídicos
•Jurisprudência selecionada e comentada

Ademar Borges | Alaor Leite | Alamiro Velludo Salvador Netto


André Luís Callegari | Ariel Weber | Bruno Buonicore | Dias Toffoli
Fausto de Sanctis | Gilmar Mendes | Gustavo Badaró | Heloísa Estellita
^José Lunardelli | Juliano Breda | Luís Greco | Maria Thereza de Assis Moura
Nino Toldo | Paulo Fontes | Pierpaolo Cruz Bottini | Ricardo Lewandowski
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(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Lavagem de dinheiro : pareceres jurídicos : jurisprudência selecionada e comen­


tada / coordenação Pierpaolo Cruz Botlini e Ademar Borges. - São Paulo : Thomson
Reuters Brasil, 2021.

Vários autores.
Bibliografia.
ISBN 978-65-5991-898-0

1. Jurisprudência - Brasil 2. Lavagem de dinheiro 3. Lavagem de dinheiro - Leis e


legislação - Brasil 4. Pareceres jurídicos I. Boltini, Pierpaolo Cruz. II. Borges, Ademar.

21-67839 CDU-343.3(094.56)

índices para catálogo sistemático:


1. Leis : Lavagem de dinheiro : Comentários : Direito penal 343.3(094.56)
2. Leis comentadas : Lavagem de dinheiro : Direito penal 343.3(094.56)
Cibele Maria Dias - Bibliotecária - CRB-8/9427
Coordenação
Pierpaolo Cruz Bottini
Ademar Borges

Lavagem
de Dinheiro
° Pareceres jurídicos
° Jurisprudência selecionada e comentada

Ademar Borges | Au\or Leite | Alamiro Velludo Salvador Netto


André Luís Callegari | Ariel Weber | Bruno Buonicore | Dias Toffoli
Fausto de Sanctis | Gilmar Mendes | Gustavo Badaró | Heloísa Estellita
José Lunardelli | Juliano Breda | Luís Greco | Maria Thereza de Assis Moura
Nino Toldo | Paulo Fontes | Pierpaolo Cruz Bottini | Ricardo Lewandowski
Rogério Schietti Cruz

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REVISTA DOS
TRIBUNAIS
LAVAGEM DE DINHEIRO
• Pàreceres jurídicos
° Jurisprudência selecionada e comentada
Autores
Ademar Borges | Alaor Leite | Alamiro Velludo Salvador Netto
André Luís Callegari | Ariel Weber | Bruno Buonicore | DiasToffoli
Fausto De Sanctis | Gilmar Mendes | Gustavo Badaró | Heloísa Estellita
José Lunardelli | Juliano Breda | Luís Greco | Maria Thereza de Assis Moura
Nino Toldo | Paulo Fontes | Pierpaolo Cruz Bottini | Ricardo Lewandowski
Rogério Schietti Cruz
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Pierpaolo Cruz Bottini e Ademar Borges
© desta edição [2021]

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ISBN 978-65-5991-898-0
AGRADECIMENTOS

Agradecemos a todos que, de forma direta ou indireta, colaboraram com a


presente obra. A nossas famílias, antes de tudo, pela paciência e pelo apoio, e aos
autores, que apresentaram seus trabalhos, votos e análises para a composição do
livro: Bruno Buonicore, Luís Greco, Alaor Leite, Heloísa Estellita, Gustavo Henri­
que Righi Ivahy Badaró, André Luís Callegari, Ariel Weber, Juliano Breda, Alamiro
Velludo Salvador Netto, Ministro Dias Toffoli, Ministro Ricardo Lewandowski,
Ministro Gilmar Mendes, Ministro Luís Roberto Barroso, Ministra Maria Thereza
de Assis Moura, Ministro Nefi Cordeiro, Ministro Rogério Schietti Cruz, Ministro
Reynaldo Soares da Fonseca, Ministro Sebastião Reisjúnior, Desembargador Federal
Nino Toldo, Desembargadora Federal Mônica Sifuenies, Desembargador Fede­
ral Paulo Fontes, Desembargador Federal José Lunardelli, Desembargador Federal
Fausto de Sanctis.
Agradecemos ainda o empenho dos editores e, em especial, de Pedro Barros
Dávila, pelo auxílio durante a organização e produção desta obra.

Pierp/XOLo Cruz Bottini


Ademar Borges
SUMÁRIO

AGRADECIMENTOS 5

1. INTRODUÇÃO 11

2. PARECERES
2.1. Corrupção ativa em transação comercial internacional - Lavagem de dinheiro -
Concurso de leis e de crimes
Luís Greco e Alaor Leite 29

2.2. Recebimento de honorários maculados: quebra de sigilo bancário e fiscal, lavagem


de dinheiro e receptação
Heloísa Estcllita 63

2.3. O momento consumativo dos crimes do caput e do inciso I do § Io do art. Io da


Lei n° 9.613/1998: lavagem de dinheiro como “crime de estado”
Gustavo Henrique Badaró 85

2.4. Lavagem de dinheiro, ordem cronológica de infrações e peculato: excerto de


parecer acerca da possibilidade de imputação penal
André Luís Callegan c Aiicl Webcr 107

2 5. Tomada ou devolução de mútuo como lavagem de dinheiro?


Alaor Leite 125

2.6. O crime licitatório como antecedente da lavagem de dinheiro


Pierpaolo Cruz Bottini 143

2.7. Inépcia da denúncia por lavagem de dinheiro em razão da atipicidade das infrações
penais antecedentes
Ademar Borges 163

2.8. Crimes de corrupção passiva e lavagem de capitais


Alamiro Velludo Salvador Netto c Juliano Breda 199
8 | LAVAGEM DE DINHEIRO

3. JURISPRUDÊNCIA COMENTADA
3.1. Habeas Corpus n° 132.179/SP
Da necessária descrição das infrações penais antecedentes no crime de lavagem
de dinheiro
Dias Toffoli 233

3.2. Ação Penal n° 1.015/DF


A inviabilidade de imputação do delito de lavagem de dinheiro pelo mero recebi­
mento da vantagem ilícita no contexto da prática do delito de corrupção passiva
Ricardo Lewandowski 247

3.3. Recurso Especial n° 1.720.267/CE


A organização criminosa como delito antecedente à lavagem de dinheiro: legalidade
e segurança jurídica
Maria Thereza de Assis Moura 253

3.4. Apelação Criminal n° 0014918-27.2007.4.03.6181


A desnecessidade de comprovação do crime antecedente para a configuração do
crime de lavagem de dinheiro
Nino Toldo 269

3.5. Apelação Criminal n° 0007457-47.2016.4.03.6000


A especificidade da prova dos crimes antecedentes
Paulo Gustavo Guedes Fontes 277

3.6. Habeas Corpus n° 0038099-34.2011.4.03.0000/SP


Controle de convencionalidade da Lei de Lavagem: incompatibilidade do artigo 2.°,
§ 2.°, Lei n.° 9.613/98 com o Pacto de Sanjosé da Costa Rica
José Marcos Lunardelli 281

3.7. Apelação Criminal n° 0001906-77.2016.4.03. 6003/MS


Crimes antecedentes ou subjacentes na lavagem de dinheiro?
Fausto Martin De Sanctis 293

3.8. Medida Cautelar no Habeas Corpus n° 180.567/MG


Lavagem de dinheiro e crime fiscal: consequências na imputação do crime de
lavagem de dinheiro da atipicidade do delito fiscal antecedente por incidência da
SV 24 do STF
Gilmar Mendes e Bruno Tadeu Buonicore 335
SUM/XRIO 9

3.9. Habeas Corpus n° 349.945/PE


Lavagem de dinheiro: comentários sobre o decidido no HC 349.945/PE
Rogério Schietti Cruz 345

4. JURISPRUDÊNCIA SELECIONADA
4.1. Voto
Recurso em Habeas Corpus n° 73.599-SC
Relator: Ministro Neji Cordeiro 355

4.2. Voto
Ação Penal n° 965/SP
Voto-Vista: Ministro Luís Roberto Barroso. 361

4.3. Voto
Recurso em Habeas Corpus n° 57.703/DF
Relator: Ministro Reynaldo Soares da Fonseca 403

4.4. Voto
Habeas Corpus n° 516.079/SP
Relator: Ministro Sebastião Reis Júnior 415

4.5. Voto

Apelação Criminal n° 0000503-15.2007.4.01.3200/AM


Relatora: Desembargadora Federal Mônica Sifuentes 423
1
INTRODUÇÃO
1. A obra coletiva: pareceres jurídicos e decisões judiciais sobre
lavagem de dinheiro

A obra que ora vem de ser apresentada ao público foi gestada, inicialmente,
com o objetivo de apresentar à comunidade jurídica brasileira uma síntese das con­
tribuições que um grupo de docentes têm produzido acerca da temática da lavagem
de dinheiro por meio de pareceres jurídicos. Em um segundo momento, pensou-se
que a obra ficaria mais completa se apresentasse ao público não apenas um retrato
da produção acadêmica traduzida pelos pareceres jurídicos, mas também alguns dos
mais importantes votos e decisões proferidos por Ministros do Supremo Tribunal
Federal, do Superior Tribunal de Justiça e também por Desembargadores Federais
sobre as principais controvérsias em torno do delito de lavagem de dinheiro. A ideia
que inspirou a presente coletânea foi a de transmitir aos profissionais do direito,
estudantes e pesquisadores um amplo panorama sobre o modo como a academia
e a jurisprudência têm enfrentado as principais questões envolvendo a aplicação
da lei de lavagem de dinheiro. A partir de uma leitura conjunta dos pareceres, de
um lado, e dos votos e das decisões judiciais, de outro, é possível extrair uma visão
mais precisa da qualidade do diálogo entre doutrina e jurisprudência no Brasil
acerca das mais variadas dimensões da interpretação e aplicação da legislação sobre
lavagem de dinheiro.
A atividade consultiva realizada por advogados dedicados à vida acadêmi­
ca contribui para o desenvolvimento da dogmática penal, conferindo aplicação
prática à literatura especializada e propondo parâmetros mais claros e racionais
para o exercício da jurisdição criminal no país. Como bem alertou Alaor Leite,
recuperando a advertência de Schúnemann, é preciso que a doutrina cumpra o
seu mister como “quarto poder”,1 com vistas a auxiliar a enunciação de critérios
interpretativos para o porvir, controlando, a partir da produção científica do direito
penal, a legitimidade e a correção da atividade jurisdicional.
Tal como afirmou Heloísa Estellita na introdução do parecer com que contri­
buiu para esta obra coletiva, “a estrutura de um parecer se aproxima bastante daquela de
artigos científicos que se propõem a analisar um grupo de casos ou uma matériajurídica
a partir de problemas que se manifestam na vida real, e, assim, é capaz de demonstrar
que as contribuições da dogmática se dirigem à solução de problemas concretos, da
vida cotidiana”. Os pareceres jurídicos oferecidos por Professores universitários
dedicados à pesquisa e à produção acadêmica procuram concretizar a ideia, sinte­
tizada por Luís Greco, de que as teorias jurídicas, ao menos as de qualidade, não

1. Na expressão de SCHÚNEMANN, Bernd. Direito Penal no Estado Democrático de


Direito, in: SCHÚNEMANN, Bernd (TEIXEIRA, Adriano, org.), Direito Penal, raciona­
lidade e dogmática, São Paulo, 2018, p. 21 e ss., p. 44 e ss.
14 LAVAGEM DE DINHEIRO

surgem no limbo, para satisfazer capricho de algum acadêmico, mas respondem


a indagações concretas.2
Nesse contexto, pode-se antever que os pareceres jurídicos consubstanciam
meio qualificado para o desenvolvimento da dogmática penal, uma vez que se
dedicam a aplicar aos casos concretos examinados teorias e categorias jurídicas
desenvolvidas pela acadêmica. Tais pareceres, além de sintetizarem grande parte
das reflexões científicas formadas pela doutrina em torno da temática da lavagem
de dinheiro, dedicam-se a qualificar a crítica que a ciência jurídica é predisposta
a fazer sobre a atividade jurisdicional. Acredita-se que o aprofundamento do diá­
logo entre a ciência jurídica e a jurisprudência é uma tarefa essencial para o aper­
feiçoamento do direito penal entre nós. Não seria diferente em relação ao delito
de lavagem de dinheiro, cujos desafios para sua aplicação dependem, em grande
medida, da imprescindível tarefa realizada pela academia de conferir racionalidade
e integridade à interpretação da lei penal.

2. Os pareceres jurídicos reunidos nesta obra coletiva


Esta obra coletiva reuniu pareceres jurídicos sobre os mais diversos aspectos
da Lei de Lavagem de Dinheiro dos seguintes Professores: Luís Greco, Alaor Leite,
Heloísa Estellita, Gustavo Badaró, André Callegari, Pierpaolo Botlini e Ademar
Borges. São sete pareceres selecionados com o objetivo de transmitir uma ampla
visão sobre temas de grande relevância envolvendo a aplicação da Lei brasileira
de Lavagem de Dinheiro.
O parecer conjunto dos Professores Luís Greco e Alaor Leite examina a com­
plexa questão acerca da imputação de lavagem de dinheiro na hipótese em que
o crime antecedente é a corrupção ativa. Além de apresentarem uma importante
distinção no tratamento legal e jurisprudencial dado aos crimes de corrupção ativa
e passiva - para destacar que em relação ao primeiro a própria lei brasileira exige
que o oferecimento, promessa ou dação de vantagem indevida visem a determinar
um funcionário público a praticar, omitir ou retardar ato de ofício -, os autores
assinalam que a proveniência criminosa de determinado bem, direito ou valor
(objeto da ação de lavagem de dinheiro) pressupõe um delito já praticado, de modo
que tal relação de proveniência nunca pode ser de concomitância temporal. Tal
conclusão é particularmente relevante para revelar a impossibilidade de imputação
do delito de lavagem de dinheiro por condutas que constituem elementos típicos
do delito antecedente. Os Professores Luís Greco e Alaor Leite recordam que, na
hipótese de corrupção ativa, embora a propina seja mero meio utilizado para a
prática do delito de corrupção, e não o seu produto ou consequência, bastaria

2. GRECO, Luís. Duas formas de fazer dogmática jurídico-penal. Boletim do Instituto


Brasileiro de Direito Penal Económico, Ano 1, Fascículo I (2009), p. 3 e s.
INTRODUÇÃO 1 15

para afastar a imputação do delito de lavagem de dinheiro o reconhecimento de


que faltaria, nesse caso, a necessária relação de antecedência causal entre o delito
antecedente (e seu produto patrimonial) e o de lavagem de dinheiro. Com base em
amplo referencial doutrinário, especialmente alemão, concluem os autores que a
dação indireta da vantagem indevida - principalmente no caso da corrupção ativa
internacional (art. 337-B do CP) - estão compreendidas pelo injusto de corrup­
ção, e não apresentam o necessário injusto autónomo de lavagem de dinheiro. Em
outro capítulo do estudo apresentado. Luís Greco e Alaor Leite demonstram, com
base na doutrina nacional e estrangeira e até mesmo com base na jurisprudência
brasileira, a possibilidade de o conteúdo do injusto da lavagem de dinheiro ser ab­
sorvido pelo injusto da corrupção, mesmo diante da diversidade de bens jurídicos
tutelados. Por fim, examinam o problema da chamada autolavagem, destacando
que apenas em casos muito específicos seria possível identificar um conteúdo de
injusto autónomo na conduta de lavagem praticada pelo mesmo autor do crime
antecedente, que ocorreria, por exemplo, quando os bens ou os valores fossem
efetivamente reintroduzidos na economia formal.
O parecer da Professora Heloísa Estellita aborda a importante controvérsia
sobre o recebimento de honorários maculados por advogados que efetivamente
prestaram o serviço objeto da contratação. É particularmente relevante o modo
como a Professora demonstra que, nas hipóteses de recebimento dos valores como
contraprestação de serviços na área de especialidade dos contratados, a própria
transparência quanto à utilização dos valores é contrária à intenção de ocultar ou
dissimular a natureza e a origem de tais valores. O tema é desenvolvido, ainda, sob
outras duas perspeclivas: da inserção da conduta dos advogados dentro do risco
juridicamente permitido e da inexistência de simultaneidade do dolo. Para a autora,
a falta de coincidência temporal entre a data do recebimento dos honorários e o
momento que se deu o conhecimento de que tais valores podem ter origem crimi­
nosa impede a imputação do delito de lavagem de dinheiro aos advogados, já que
o dolo subsequente é penalmente irrelevante. O trabalho esclarece, ainda, que a
referência à experiência comparada - especialmente da Alemanha e da Espanha -
não pode obscurecer o faio de que no Brasil não se criminaliza o mero recebimento
ou guarda de produto de prática delitiva anterior. O parecer de Heloísa Estellita
consubstancia, portanto, um robusto referencial doutrinário imprescindível para
fazer frente ao risco de criminalização da advocacia pelo recebimento de honorá­
rios advocatícios.
O Professor Gustavo Badaró selecionou para esta obra coletiva um parecer
que examina controvérsia da maior importância: a natureza instantânea ou per­
manente do delito de lavagein de dinheiro nas modalidades de ocultação ou a
dissimulação da origem criminosa de bens (art. Io, caput, da Lei n° 9.613/1998).
Depois de apresentar um panorama completo sobre a distinção entre os delitos
instantâneos e permanentes na doutrina nacional e estrangeira, Gustavo Badaró
16 LAVAGEM DE DINHEIRO

conclui que o crime de lavagem de dinheiro, na modalidade da cabeça do art. Io da


Lei n° 9.613/1998, é crime de estado (ou crime instantâneo, de efeitos permanentes,
na linguagem mais tradicional), que se consuma com a conduta de escamotear ou
esconder “a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou proprie­
dade de bens, direitos ou valores” que sejam produto direto ou proveito de infração
penal ou, na redação originária da referida lei, dos crimes antecedentes nela então
previstos. Ao classificar o crime de lavagem de dinheiro previsto no caput do art. Io
daLein09.613/1998 como “crime de estado”, afirma que o momento consumalivo
se dá no instante em que se cria o novo estado - ainda que os efeitos ou, o novo
estado, perdure no tempo -, pois o que a lei penal criminaliza não é, como parte da
doutrina nacional sustenta, a ocultação ou a dissimulação do produto ilícito, mas
sim a ocultação ou a dissimulação de algumas de suas características. O Professor
Gustavo Badaró afirma, ainda, que o crime de lavagem de dinheiro, na modalidade
do inciso I do § Io da Lei n° 9.613/1998 (conversão), é inegavelmente um crime
instantâneo ou, como bem advertiu, um crime de estado. As conclusões a que
chegou Gustavo Badaró nesse excepcional parecer impactam decisivamente não
apenas o regime de prescrição do delito de lavagem de dinheiro - uma vez que o
início da sua contagem seguirá, a partir da classificação do delito como “crime de
estado”, a regra geral do inciso 1 do art. 115 do Código Penal - como também pode
impactar a própria tipicidade da conduta já que a sua completa realização pode ter
ocorrido antes da vigência da lei penal incriminadora.
Na sequência, apresenta-se o parecer do Professor André Callegari que exami­
na hipótese de imputação do delito de lavagem de dinheiro que teria como prática
delitiva antecedente o delito de peculato na modalidade desvio. Alguns aspectos
notabilizam o trabalho de André Callegari e o tornam parlicularmente relevante no
contexto atual: o debate sobre a necessidade de anterioridade cronológica do delito
antecedente como condição para a imputação do delito de lavagem de dinheiro —
somente depois de consumado o primeiro delito seria possível cogitar da punição
pela lavagem-, e a impossibilidade de realização do delito de lavagem pelo simples
desvio de recursos públicos para fins eleitorais, já que o desvio, ainda que de forma
oculta, constitui elementar típica do delito de peculato. O autor recupera, com
proficiência, a ideia de que a lavagem de dinheiro só pode ser punida autonoma­
mente quando a verdadeira intenção do acusado seja a reinserção dos bens, valores
e direitos na economia formal. Por fim, André Callegari defende que a autolavagem
não pode ser criminalizada nas hipóteses em que o delito antecedente também
tutela a administração pública, sob pena de se incorrer em ilegítimo bis in idem.
O parecer de Alaor Leite intitulado “Tomada ou devolução de mútuo como
lavagem de dinheiro” apresenta sofisticado e original tratamento dogmático
sobre os diversos elementos típicos do delito de lavagem de dinheiro. Primeiro,
enfatiza-se a necessidade de precisa identificação da infração penal antecedente,
sem a qual não se pode determinar o objeto material da lavagem de dinheiro,
INTRODUÇÃO ! 17

até mesmo porque o dolo deve ter como referência todos os elementos típicos
e também deve estar presente no momento da prática da conduta, não sendo
penalmente relevante nem o dolo antecedente nem o subsequente. Segundo,
a determinação do objeto material da lavagem - o “dinheiro sujo”, se assim se
preferir - é fundamental para determinar o grau de contaminação do capital
de determinada pessoa, sobretudo porque apenas muito excepcionalmente se
poderia cogitar da contaminação total do património do sujeito. Terceiro, Alaor
Leite desenvolve a original formulação de que as condutas neutras previstas no
inciso II do § Io do art. Io da lei de lavagem de dinheiro, precisamente porque não
estão no mesmo plano das ações descritas no caput- afinal constituem formas até
mesmo simplórias de se mover na vida negociai — e não agridem o bem jurídico
na mesma medida, só devem ser criminalizadas na medida em que se destinarem
unicamente à ocultação ou dissimulação. Por isso, na visão do autor, “no § 1°,
inciso II as exigências subjetivas são ainda mais elevadas, eis que se constituiu um
elemento subjetivo especial, que mais se assemelha a um propósito delilivo seguro
(‘para ocultar ou dissimular") "". Por fim, o parecer de Alaor Leite coloca luzes sobre
a importância do desenvolvimento da categoria da cumplicidade por meio de ações
neutras na tarefa de excluir do âmbito de incidência da norma penal de lavagem
de dinheiro ações colidianas ínsitas à vida negociai.
O parecer do Professor Pierpaolo Bottini examina os crimes licitatórios como
antecedentes da lavagem de dinheiro e os requisitos para identificar a correspondên­
cia entre o produto das infrações e aqueles bens ocultos ou dissimulados. Parte da
discussão sobre o conceito de produto de delito, discorre sobre as teorias a respeito
da mescla de capitais, para avaliar a procedência de denúncia que não descreve com
precisão a origem de bens pretensamente mascarados. Em um segundo momento,
analisa o significado da ocultação, núcleo do crime em análise e seus desdobra­
mentos em casos concretos.
Na sequência, apresenta-se o erudito parecer da lavra dos Professores Alamiro
Salvador Netlo e Juliano Breda que discute, além de interessante controvérsia
sobre os requisitos exigidos para a tipificação do delito de corrupção passiva no
Brasil, dois importantes aspectos do delito de lavagem de dinheiro. Em primeiro
lugar, afirmam que o crime de lavagem de dinheiro é instantâneo de efeitos per­
manentes, consumando-se no momento da efetiva ocultação ou dissimulação da
“origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou
valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal”, conforme descreve
o caput do art. Io da Lei 9.613/1998, com alterações dadas pela Lei 12.683/2012.
Por isso mesmo, concluíram que o simples fato de o autor seguir se aproveitando
da lavagem perpetrada, não significa afirmar que exista permanência delitiva,
pois não são praticados, diariamente, novos atos de ocultação e dissimulação. Tal
conclusão é particularmente relevante para a contagem da prescrição, como tam­
bém alertaram com percuciência os pareceristas. Em segundo lugar, os Professores
18 LAVAGEM DE DINHEIRO

Alamiro Salvador Netto e Juliano Breda não apenas recordam neste trabalho a
exigência, como pressuposto à configuração da lavagem de capitais, de uma ação
capaz de atribuir o que se denomina de “aparência de legalidade” ao produto do
crime antecedente, como também chamam a atenção para a impossibilidade da
prática do delito de lavagem de dinheiro por mera omissão.
E, por fim, o parecer do Professor Ademar Borges trata da atual controvérsia
acerca da (im)possibilidade de imputação do delito de lavagem de dinheiro na
hipótese em que o suposto delito antecedente de sonegação fiscal ainda não se
consumou pela falta de lançamento tributário definitivo (Súmula Vinculante 24 do
STF). Depois de inventariar os elementos típicos do delito de lavagem de dinheiro
à luz da doutrina nacional c estrangeira assim como da jurisprudência atual do
STF e do STJ, o parecer destaca a importância da identificação precisa do objeto
material do delito de lavagem de dinheiro e também da descrição da sua relação
empírica com as posteriores ações típicas de branqueamento como condições de
aptidão da denúncia pelo crime de lavagem de dinheiro. Tais premissas conduzem
à conclusão de que a imputação do delito de lavagem de dinheiro como injusto
autónomo em face do delito antecedente de sonegação fiscal exige que a acusação
delimite com precisão a “cota defraudada” que teria sido objeto material de poste­
riores ações de ocultação ou dissimulação. Isso porque, na esteira da experiência
comparada, não se mostra legítima a afirmação da contaminação total do patrimó­
nio do contribuinte que exerce atividade empresarial lícita apenas pelo fato de ter
praticado atos de sonegação fiscal. Ainda mais relevante no trabalho apresentado
por Ademar Borges é a demonstração de que, enquanto não forem definitivamente
constituídos os créditos tributários, o delito de sonegação fiscal não foi consumado,
de modo que a atipicidade da conduta antecedente impede a imputação do delito
de lavagem de dinheiro. Em linha com as conclusões expostas nos pareceres de
Luís Greco, Alaor Leite, Heloísa Estellita e André Callegari, o autor defende que
o delito de lavagem de dinheiro exige a consumação prévia de um delito anterior
do qual tenha resultado bens, valores ou direitos passíveis de atos autónomos de
ocultação ou dissimulação.

3. Os votos e as decisões dos Ministros do STF, do STJ e dos


Desembargadores Federais

Como se disse, a ideia de reunir nesta obra coletiva não apenas os pareceres
jurídicos sobre lavagem de dinheiro mas também um importante repertório de
decisões e votos proferidos por ilustres Desembargadores Federais, Ministros do
STJ e do STF teve como objetivo fornecer ao leitor um panorama atual do estado
da arte das principais controvérsias que envolvem a aplicação da Lei n° 9.613/1998
pelos Tribunais brasileiros. Esse importante conjunto de decisões e votos aqui re­
unidos- por meio da indicação pelos próprios magistrados dos pronunciamentos
INTRODUÇÃO • 19

que julgavam mais atuais e relevantes nessa temática - realiza também a função
de enunciar as bases atuais do diálogo entre doutrina e jurisprudência no campo
do debate sobre o delito de lavagem de dinheiro. É preciso destacar, desde logo,
que a jurisprudência brasileira tem dado especial relevância à produção acadêmica
nessa área, o que se revela não apenas pela expressa citação de destacados trabalhos
dogmáticos sobre o tema como também pelo modo deferente e atento com que os
Tribunais têm enfrentado as principais leses defensivas-eventuaimente subsidiadas
por pareceres jurídicos - apresentadas em casos envolvendo lavagem de dinheiro.
Convém advertir, ainda, que alguns trechos dos votos dos Ministros e Desem­
bargadores foram suprimidos desta publicação na exata medida em que exploravam
aspectos fáticos específicos dos casos concretos ou abordavam controvérsias não
relacionadas ao debate sobre a interpretação da lei de lavagem de dinheiro. A seleção
dos principais trechos dos votos teve, portanto, o objetivo de tornar a obra coletiva
mais coesa e direcionada ao exame do modo como os Tribunais têm interpretado
as principais dimensões do delito de lavagem de dinheiro.
Vale destacar, ainda, que o capítulo dedicado ao estudo da jurisprudência na­
cional sobre os temas mais relevantes em torno da interpretação da lei de lavagem
de dinheiro acabou sendo dividido em duas partes: na primeira - denominada de
jurisprudência comentada os Ministros Dias Toffoli, Ricardo Lewandowski,
Gilmar Mendes, Maria The reza de Assis Moura e Rogério Schietti bem como os
Desembargadores Paulo Fontes, Fausto de Sanctis e Nino Toldo produziram arti­
gos por meio dos quais comentaram votos por eles proferidos em casos relevantes
sobre a matéria; e, na segunda - denominada jurisprudência selecionada - outros
Ministros do STF, do STJ e Desembargadores Federais somaram-se à obra por meio
da disponibilização de votos e decisões que expressam a mais atualizada interpre­
tação do delito de lavagem de dinheiro nas duas variadas dimensões.

3.1. A jurisprudência comentada

Nesse capítulo do livro, seis artigos apresentaram diferentes aspectos con­


temporâneos do debate acerca do delito de lavagem de dinheiro.
Em seu artigo, o Ministro Dias Toffoli comenta voto que constitui um marco
na jurisprudência nacional a respeito da exigência de descrição precisa - com
base em fatos específicos, concretos e determinados - do delito antecedente como
condição de aptidão da denúncia que imputa o delito da lavagem de dinheiro. Não
é incomum encontrar decisões judiciais que, com base na noção de acessoriedade
limitada que caracteriza a relação entre o delito de lavagem e o delito anteceden­
te, afirmam a desnecessidade de descrição específica do delito antecedente, das
suas circunstâncias e do proveito económico dele resultante. Daí a relevância
dessa diretriz jurisprudencial firmada a partir do voto do Ministro Dias Toffoli
segundo a qual “o fato de o processo e julgamento dos crimes de lavagem de dinheiro
20 LAVAGEM DE DlN11E1 RO

independerem do processo e julgamento dos crimes antecedentes (art. 2o, II, da Lei
n° 9.613/98) não exonera o Ministério Público do dever de narrar em que consistiram
esses crimes antecedentes”.
Na sequência, o artigo do Ministro Ricardo Lewandowski aborda o candente
tema da lavagem de dinheiro nas hipóteses de recebimento de doação eleitoral
oficial, de importância fundamental para a compreensão dessa nova fronteira da
jurisprudência brasileira. Além de problemalizar de maneira particularmente
interessante os aspectos relativos à demonstração de que vantagem indevida, no
caso do crime antecedente de corrupção passiva, deve ter relação com a função
pública exercida pelo acusado e também à exigência de robusta corroboração
probatória externa da colaboração premiada para a superação do estado de ino­
cência do acusado, o voto do Ministro Ricardo Lewandowski coloca em xeque a
possibilidade de condenação pelo crime de lavagem de dinheiro com base no mero
recebimento de doação eleitoral proveniente de corrupção passiva, na medida em
que a lei brasileira exige o que Alaor Leite chamou de elemento subjetivo especial
consistente na inequívoca intenção de ocultar ou dissimular a origem desses va­
lores, camuflando sua origem espúria com o objetivo de reinseri-lo no marcado
com aparência lícita. Nesse sentido, o Ministro Ricardo Lewandowski conclui que
“o mero proveito económico do produto do crime de corrupção passiva não configura o
delito de lavagem de dinheiro, o qual exige, como visto, a prática das condutas típicas
e autónomas de ocultar ou dissimular o produto de crimes antecedentes, com o intuito
de branquear capitais”.
O artigo do Ministro Gilmar Mendes - em coautoria com Bruno Tadeu Buo-
nicore - comenta decisão monocrática proferida acerca da relevante controvérsia
acerca necessidade de constituição definitiva do crédito tributário em casos de
sonegação fiscal como requisito para a imputação do delito de lavagem de dinheiro
pelo suposta ocultação ou dissimulação dos valores obtidos a partir do delito fiscal
antecedente. Depois de apresentar um importante panorama sobre os delitos mate­
riais e de resultado, o artigo explora a ideia de que a independência processual do
crime de lavagem não pode ser levantada como argumento válido para a sustentação
do crime de lavagem quando o suposto delito antecedente configura conduta que
sequer é típica. Partindo dessa premissa, o artigo rememora a conclusão a que o
Ministro Gilmar Mendes chegou ao proferir a decisão comentada no sentido de que
se o suposto crime fiscal antecedente revela conduta manifestamente atípica em
razão de incidência da SV 24 do STF, não há que se falar na configuração do crime
de lavagem de dinheiro, que perde ele mesmo o substrato material exigido para a
subsunção dos fatos ao tipo penal, ou seja, se o delito antecedente padece de atipia,
então o mesmo ocorre com o crime de lavagem. A decisão comentada pelo Minis­
tro Gilmar Mendes e por Bruno Buonicore constitui importante parâmetro para a
construção de uma jurisprudência mais segura sobre essa específica controvérsia.
É interessante notar que o parecer do Professor Ademar Borges apresentado nesta
introdução i 21

obra coletiva trilha o mesmo raciocínio empregado nessas decisões, oferecendo,


ainda, importantes subsídios de direito comparado que sustentam essa consistente
diretriz jurisprudencial que começa a ser desenhada no Brasil.
Convém destacar, ainda, o artigo da Ministra Maria Thereza de Assis Moura,
que comenta voto de sua lavra que consubstancia um marco na consolidação da
orientação jurisprudencial segundo a qual não é viável imputar o delito de lavagem
de dinheiro que aponta como delito antecedente a organização criminosa antes da
definição legal desse crime pelo legislador brasileiro por meio da Lei n° 12.850/13.
Esse voto também contribui decisivamente para a afirmação da compreensão de
que a Lei n° 12.683/12, ao dispor sobre a persistência da imputação do crime de
branqueamento de capitais ainda que o delito antecedente tenha sido alcançado
pela prescrição (artigo 2o, § Io) não pode ter aplicação retroativa por configurar
norma penal mais grave. O voto da Ministra Maria Thereza recupera a importân­
cia da observância da legalidade estrita na definição do delito antecedente e por
isso representa enorme contribuição para o desenvolvimento judicial do tema da
lavagem de dinheiro.
Em seu artigo, o Ministro Rogério Schietti registra comentário a respeito do
voto da sua lavra que conduziu o importante precedente por meio do qual o STJ
examinou a conhecida controvérsia sobre se o relatório de inteligência financeira
produzido pelo COAF, uma vez que indique a possibilidade da prática de crime
por determinada pessoa, serve para subsidiar, por si só, eventual pedido do Mi­
nistério Público ou da autoridade policial de quebra de sigilo bancário e fiscal. O
STJ decidiu, acompanhando voto proferido pelo Ministro Rogério Schietti, que o
relatório produzido subsidia e justifica eventual pedido de quebra de sigilo bancá­
rio e fiscal, porquanto os dados que lhe subjazem são exatamente aqueles que são
protegidos pelo sigilo. Por isso mesmo que, tal como concluiu o STJ no precedente
comentado, o relatório produzido pelo COAF se revela suficiente, por si só, para
subsidiar o pedido de quebra de sigilo bancário e fiscal a fim de apurar possível
prática de crime. Esse leadingcase do STJ, comentado no artigo do Ministro Rogério
Schietti, afirmou, de um lado, que o RIF deve ser acompanhado “de informações
que permitam a autoridade policial ou ao Ministério Públicoformular algum juízo de
plausibilidade ou de probabilidade da prática delitiva”. Por outro lado, reconheceu
que “a obtenção integral dos dados que subsidiaram a produção do relatório (da co­
municação feita à autoridade competente) depende de autorização judicial”. O artigo
do Ministro Rogério Schietti apresenta indispensável comentário a respeito de
voto que representou uma virada najurisprudência do STJ a respeito do tema, cuja
atualidade é comprovada pela utilização do precedente comentado em múltiplas
decisões dos mais diversos tribunais nacionais.
Já o artigo do Desembargador Federal Fausto de Sanctis apresenta impor­
tante reflexão sobre voto por meio do qual desenvolveu importante parâmetro
22 LAVAGEM DE DINHEIRO

para aplicação da noção de autonomia do delito de lavagem de dinheiro. Depois


de reafirmar a máxima de que não é necessária a demonstração cabal de todos os
elementos do delito subjacente como condição para a configuração do delito de
lavagem, Fausto de Sanctis reafirmou a exigência de imputação clara, precisa e
individualizada do delito antecedente até mesmo como requisito formal de aptidão
da denúncia. No voto do Desembargador Federal Fausto de Sanctis - objeto de seu
artigo -, enfatiza-se também a exigência de que tal descrição do delito antecedente
deve estar acompanhada de justa causa, ou seja, de lastro probatório mínimo. Mas
o expressivo voto do Desembargador Fausto de Sanctis não se limita a organizar
os requisitos de aptidão formal e substancial da denuncia que imputa a prática do
delito de lavagem de dinheiro, notadamente no que diz respeito à necessidade de
descrição precisa e de lastro probatório mínima em relação ao delito antecedente.
Tal voto apresenta, ainda, com outras duas importantes contribuições ao estudo
do tema: (i) defende, com base em artigo doutrinário de autoria do culto juiz
federal Marcelo Cavalli, a desnecessidade de precedência cronológica do delito
subjacente em relação à lavagem de dinheiro; e (ii) reafirma a ideia de que o mero
aproveitamento da vantagem proveniente da infração subjacente consiste em
desdobramento natural (exaurimento) daquela prática delituosa e, portanto, não
basta para a caracterização do crime de lavagem de dinheiro.
Por outro lado, o artigo da lavra do Desembargador Federal Paulo Fontes
apresenta uma síntese das reflexões que conduziram importante voto por meio do
qual estabeleceu importante inovação em relação ao precedente firmado pelo STF
no julgamento dos embargos infringentes na conhecida AP 470, na medida em
que esse ilustre magistrado federal entende que é possível cogitar da imputação de
lavagem de dinheiro mesmo na hipótese de recebimento de propina no contexto
da prática do delito de corrupção passiva, desde que tal recebimento envolva com­
plexo esquema de dissimulação. Tal compreensão se afasia da posição defendida
pela maioria da doutrina brasileira no sentido de que a contemporaneidade entre
o recebimento do produto do delito antecedente e os supostos atos de ocultação
afasta a possibilidade de identificação de um injusto autónomo de lavagem de
dinheiro. Apesar disso, no caso concreto examinado pelo Desembargador Federal
Paulo Fontes em seu voto - em torno do qual seu artigo foi construído - não havia
indicação de qualquer esquema mais sofisticado de dissimulação no recebimento
da suposta propina, o que fez com que se fizesse aplicável a tradicional jurispru­
dência do STF segundo a qual o mero recebimento da vantagem indevida, ainda
que indiretamente, não configura lavagem de dinheiro.
Por sua vez, o artigo de autoria do Desembargador Nino Toldo, do TRF da 3a
Região, se debruça sobre a decisiva questão relativa ao Standard probatório sobre
a existência do delito antecedente necessário para a condenação pelo delito de
lavagem de capitais. A respeito do tema, o ilustre magistrado defende, ao comen­
tar voto da sua lavra, a ideia de que “a prova da infração penal prévia não precisa
INTRODUÇ/XO : 23

ser direta, pois, pelo princípio do livre convencimento, o juiz forma sua convicção em
razão de todo o conjunto probatório, que é constituído por provas diretas e indiretas ou
exclusivamente por uni desses tipos. Esse conjunto deve ser robusto o suficiente para
permitir ao juiz formar sua convicção acerca da existência do crime antecedente, a
fim de que possa julgar o delito de lavagem. Deve o juiz, enfim, mostrar claramente
as razões pelas quais fundamenta sua convicção sobre a existência da infração ante­
cedente.” É conhecido o debate sobre o grau de autonomia material e probatória
entre os delitos de lavagem de dinheiro e os crimes antecedentes. O artigo e voto
do Desembargador Nino Toldo são relevantes na medida em que esclarecem que
a autonomia processual do delito de lavagem de dinheiro em face do delito an­
tecedente não afasta a necessidade de prova robusta (ainda que indireta) sobre
a existência desse delito bem como do seu produto que posteriormente sofre as
ações de ocultação ou dissimulação.
E, por fim, o artigo do Desembargador Federal José Lunardelli destaca a ne­
cessidade de que a denúncia pelo delito de lavagem de dinheiro não apenas apre­
sente descrição suficiente do delito antecedente como também seja acompanhada
de arcabouço probatório mínimo que permita identificar ajusta causa material
relativamente a esse delito antecedente. O artigo é fruto de formulação por ele
apresentado em voto particularmente importante para a jurisprudência nacional
na medida em que é conhecida certa tendência recente de supor que a autonomia
processual entre os delitos de lavagem de dinheiro e os delitos antecedentes per­
mita a apresentação de denúncias que não descrevem adequadamente a prática do
delito antecedente (arl. 41 do CPP) e tampouco apresentam material probatório
inicial que dê suporte material à alegada existência desse delito antecedente. Além
disso, e na esteira de importantes contribuições da doutrina brasileira, o voto do
Desembargador Federal José Lunardelli, comentado em seu artigo, recupera a
centralidade da exigência de que os atos de ocultação ou dissimulação tenham o
intuito de posterior reinserção na economia formal sob a aparência de licitude. Por
isso mesmo, mero transporte ou uso simples dos valores provenientes de conduta
delitiva não configuram lavagem de dinheiro.

3.2. A jurisprudência selecionada

Nessa segunda parte do livro - dedicada ao estudo da jurisprudência sobre o


delito de lavagem de dinheiro recebemos contribuições de grande importância
para a compreensão do quadro atual de entendimento sobre os mais destacados
aspectos da interpretação da Lei de Lavagem de Dinheiro.
O voto do Ministro Luís Roberto Barroso revela, igualmente, importante con­
tribuição para a consolidação da jurisprudência nacional sobre aspectos relevantes
do delito de lavagem de dinheiro. Com efeito, o voto explora as consequências
práticas da orientação jurisprudencial segundo a qual a autonomia do delito de
24 LAVAGEM DE DINHEIRO

lavagem de dinheiro dispensa, para a sua caracterização, a efetiva condenação do


acusado (da lavagem) pelo crime antecedente. O caso concreto examinado tem
interessante especificidade consubstanciada no fato de que a denúncia formulada
contra o paciente pelo delito antecedente (crime contra a administração pública)
havia sido rejeitada por inépcia formal. O voto do Ministro Luís Roberto Barroso
enfatizou, entretanto, que outros corréus haviam sido condenados pela prática
do crime antecedente, o que seria suficiente para a condenação do paciente pelo
delito de lavagem de dinheiro. Esse importante voto-vista do Ministro Luís Ro­
berto Barroso acabou angariando a adesão da maioria da Ia Turma e, portanto,
sinaliza a interpretação daquele órgão colegiado a propósito do § Io do art. 2o da
Lei n° 9.613/1998.
A jurisprudência do STJ sobre os mais diversos aspectos do delito de lavagem
de dinheiro também tem tido importância fundamental para a uniformização de
controvérsias fundamentais em torno do delito de lavagem de dinheiro.
Já o voto do Ministro Reynaldo Fonseca examina a importante questão con­
cernente às exigências formais de aptidão da denúncia pelo crime de lavagem de
dinheiro na hipótese de crime antecedente de corrupção passiva. A conclusão de
que a denúncia deve descrever de maneira precisa os atos de ocultação ou dissi­
mulação dos valores de maneira autónoma e para além do simples recebimento da
propina de maneira insidiosa constitui um marco na afirmação de uma jurispru­
dência contrária ao automatismo da imputação do delito de lavagem nos casos de
corrupção passiva. O voto do Ministro Reynaldo Fonseca realiza uma importante
síntese da diretriz jurisprudencial firmada sobre o tema no âmbito do próprio
Superior Tribunal dejustiça, o que auxiliar enormemente na compreensão sobre
o estado da arte a respeito dessa importante temática.
Ainda no âmbito do STJ, o voto proferido pelo Ministro Sebastião Reis, ao
afirmar a insuficiência do relatório de inteligência do COAF para subsidiar a de­
núncia pela prática do crime de lavagem de dinheiro, antecipou a visão que anos
depois veio a ser afirmada pelo STF no julgamento do RE n. 1.055.941 -submetido
ao regime de repercussão geral - segundo a qual “é estreme de dúvidas [...] que a
Unidade de Inteligência Financeira não é um órgão investigativo e, portanto, sua base
de dados e seus relatórios de inteligência (RIF) não constituem prova criminal. Na
verdade, os relatórios de inteligência disseminados pela UIF constituem um meio de
obtenção de prova”. Embora o voto do Ministro Sebastião Reis não tenha prevalecido
no julgamento realizada pela 6a Turma do STJ, é provável que o tema volte a ser
discutido à luz do precedente recentemente firmado pelo STF no sentido de que o
relatório de inteligência constitui mero meio de obtenção de prova, de modo que
não poderia amparar, por si só, uma denúncia criminal pelo delito de lavagem de
dinheiro. Daí a atualidade do debate travado pelo Ministro Sebastião Reis nesse
importante voto que vem de ser publicado.
r

INTRODUÇÃO 25

O voto do Ministro Nefi Cordeiro, do STJ, aborda a controvérsia relativa à


necessidade de constituição definitiva do crédito tributário em casos de sonega­
ção fiscal como requisito para a imputação do delito de lavagem de dinheiro pelo
suposta ocultação ou dissimulação dos valores economizados com o delito fiscal
antecedente. A decisão, como se verá, adota a compreensão de que se a conduta
do suposto delito fiscal antecedente é atípica - precisamente pela falta de consti­
tuição definitiva do crédito tributário (Súmula Vinculante 24) -, torna-se inviável
a imputação do delito de lavagem de dinheiro. Cumpre observar, ademais, que o
comentário do Ministro Gilmar Mendes e de Bruno Buonicore, nesta obra, acolhe
expressamente as conclusões do precedente da lavra do Ministro Nefi Cordeiro
bem assim a abalizada lição doutrinária de Pierpaolo Bottini e Gustavo Badaró.
O voto da Desembargadora Federal Mônica Sifuentes enfrenta controvérsia
pouco explorada na jurisprudência nacional e que diz respeito à relação entre o
delito previsto na primeira parte do parágrafo único do art. 22 da Lei n. 7.492/86 e
a o delito de lavagem de dinheiro. Em tal voto, a ilustre Desembargadora Federal
do TRF da Ia Região alerta para a circunstância de que a remessa de divisas ao
exterior, por si só, não é crime, constituindo o injusto penal precisamente na falta
de comunicação ao Banco Central do Brasil. Nesse sentido, se o acusado remete
ao exterior recursos de origem presumivelmente lícitos, mas não declara tal ope­
ração, não pratica o delito de lavagem de dinheiro, afinal, como lembrou a culta
magistrada, “não se lava a transferência, e sim aquilo que ela pode encobrir, caso seja
ilícito”. Esse importante voto da Desembargadora Federal Mônica Sifuentes põe
luzes sobre a dificuldade de imputar o delito de lavagem de dinheiro nos casos em
que o delito antecedente não produz resultado pecuniário palpável.

4. A relevância da presente obra coletiva

Os pareceres, artigos e votos apresentados não exaurem os temas e as refle­


xões sobre a lavagem de dinheiro, mas constituem um importante instrumento
para estudo e análise, uma vez que partem de casos concretos, de situações reais,
e sobre elas constroem avaliações jurídicas aplicáveis a casos similares. São peças
que juntas oferecem um panorama daquilo que há de mais recente e controverso
em matéria de lavagem de dinheiro, sob o ponto de vista acadêmico e sob uma
perspectiva jurisprudência!.
Espera-se que esse material sirva de base para novas discussões e aprimo-
ramento, e que auxilie no enfrentamento de questões cada vez mais complexas e
sofisticadas que se apresentam nesse terreno.
2
PARECERES
Parecer
2.2. RECEBIMENTO DE HONORÁRIOS
MACULADOS: QUEBRA DE SIGILO BANCÁRIO
E FISCAL, LAVAGEM DE DINHEIRO E
RECEPTAÇÃO

Heloísa Estellita1

Sumário: I. Introdução. II. O caso. III. Embasamento legal. III.1. Delimitação


das questões jurídicas. III.2. Tipicidade à luz do art. 1o, Lei 9.613/98?. III.2.1 Es­
clarecimentos introdutórios. III.2.2. Modalidades de conduta típica. III.3. Tipi­
cidade à luz do art. 180, caput e § 3o, CPB?. III.3.1. Aspectos ligados ao tipo
objetivo. III.3.2. Aspectos ligados ao tipo subjetivo. IV. Conclusão. Referências
bibliográficas.

I. Introdução

O texto que a leitora e o leitor têm em mãos foi concebido como um parecer,
elaborado em 2016. Foi publicado como artigo2 e selecionado para compor esta
obra em virtude da generosidade dos organizadores. O texto foi mantido em sua
formulação original, inclusive no que tange à literatura consultada e existente na
época3, tendo sido anonimizado para impedir a sua conexão com o caso concreto
que motivou sua elaboração.

II. O caso
Em certa data, advogados foram procurados por jornalista que afirmou co­
nhecer teor de certa delação premiada, no bojo da qual o delator relatara ter pago
propina a um funcionário público em troca de auxílio na aprovação de projetos, e

1. Profa. da Escola de Direito de São Paulo da Fundação GetulioVargas. Pós-doutoramen-


to pelas Universidades de Munique e Augsburg, na Alemanha. Doutora em Direito
Penal pela Universidade de São Paulo.
2. O parecer foi publicado em na Revista do Instituto de Ciências Criminais, v. 5, 2020,
p. 165-189.
3. A literatura produzida após a elaboração do parecer confirma os argumentos nele
desenvolvidos, seu exame nesta oportunidade, porém, transformaria o parecer em
artigo e trairia a razão pela qual foi selecionado para compor esta obra.
64 LAVAGEM DE DINHEIRO

que parle destes valores teriam sido usados por referido funcionário público para
pagar honorários advocatícios devidos ao escritório de advocacia.
Tendo em vista que seu escritório patrocinava os interesses desse funcioná­
rio público na seara criminal, os advogados realizaram pesquisa em documentos
bancários e contábeis da sociedade e identificaram estas informações: a) houve
contratação formal, devidamente documentada, anos antes da data da delação,
cujo objeto contratual era a representação do funcionário público em um in­
quérito policial; b) os serviços prestados por referida sociedade de advogados
desde aquela data até a elaboração da consulta para parecer foram: estudo dos
autos, elaboração de estratégia de defesa, participação em reuniões, audiências
com autoridades públicas atuantes nos feito, elaboração e protocolo de petições,
com o escopo de defender da melhor forma possível o interesse do cliente; c) os
honorários contratados foram parcialmente pagos por meio de depósito bancário
de cheque na conta de titularidade da sociedade de advogados em determinado
banco de grande porte. O extrato bancário não indica, como de praxe, o emis­
sor do cheque, mas apenas o depósito por meio de cheque, o valor e a data do
“crédito”, sem qualquer informação adicional; d) diante do depósito bancário
referente ao pagamento parcial dos honorários, foi emitido recibo, comutado
no diário geral do mesmo mês, não sendo necessária a elaboração de nota fiscal,
bastando a nota de honorários, nos termos da legislação municipal de cidade
onde fica a sede do escritório; e) os impostos referentes à receita foram devida­
mente pagos na forma da lei; D não havia qualquer indício de que o pagamento
realizado tivesse origem suspeita ou ilícita, uma vez que o valor era compatível
com os vencimentos do cliente (funcionário público) e nada no depósito indicava
a origem do título de crédito.
Diante desse quadro, os Consulentes questionaram (quesitos): existe irregu­
laridade ou ilegalidade no recebimento de honorários na forma exposta? É lícita
a quebra de sigilo bancário da pessoa jurídica do escritório de advocacia diante
de tais fatos?

III. Embasamento legal


III. 7. Delimitação das questões jurídicas
A Lei Complementar n. 105, de 10 de janeiro de 2001, estabelece em seu artigo
inaugural o sigilo das operações financeiras: “As instituições financeiras conser­
varão sigilo em suas operações ativas e passivas e serviços prestados”. No § 4o do
mesmo artigo, lê-se: “a quebra de sigilo poderá ser decretada, quando necessária
para apuração de ocorrência de qualquer ilícito, em qualquer fase do inquérito ou
do processo judicial, e especialmente nos seguintes crimes (...)”.
RECEBIMENTO DE HONORÁRIOS MACULADOS 65

O termo necessidade traduz metonímia dos pressupostos ligados a quaisquer


medidas restritivas de direitos fundamentais, como é o caso, posto que a quebra dos
sigilos fiscal e bancário traduz restrição imediata ao disposto no artigo 5o, X, CF
Esses requisitos são a necessidade, a adequação e a proporcionalidade em sentido
estrito,4 objeto de remansosa e firme jurisprudência do Supremo Tribunal Federal,5
da qual colho, por sua pertinência e concisão, o seguinte precedente:
“A jurisprudência firmada pela Corte, ao propósito do alcance da
norma prevista no arl. 58, § 3o, da Constituição Federal, já reconheceu
a qualquer Comissão Parlamentar de Inquérito o poder de decretar
quebra dos sigilos fiscal, bancário e telefónico, desde que o faça em ato
devidamente fundamentado, relativo a fatos que, servindo de indicio
de atividade ilícita ou irregular, revelem a existência de causa provável,
apta a legitimar a medida, que guarda manifestíssimo caráter excepcio-
nal (MS n° 23.452-RJ, Rei. Min. Celso de Mello; MS n° 23.466-DF, Rei.
Min. Sepúlveda Pertence; MS no 23.619-DF, Rei. Min. Octavio Gallotti;
MS n° 23.639-DF, Rei. Min. Celso de Mello; etc.)” (STF, MS 25.966-MC,
DJe 22/05/2006).
No que interessa ao caso, o primeiro passo é verificar se os fatos narrados pelos
Consulentes traduzem indício de conduta ajustável, prima Jacie, a algum tipo penal,
que revele causa provável de sua prática, em conformidade coma excepcionalidade
da quebra de sigilo anteriormente reproduzida.
Muito embora não exista, até o momento e pelo que se extrai dos dados con­
cretos do caso, qualquer comprovação de que os valores utilizados para o depósito
bancário eram comprovadamente oriundos da prática do crime de corrupção pas­
siva, trabalharei a partir da premissa hipotética da veracidade da afirmação que o
jornalista fez sobre o suposto conteúdo das informações prestadas pelo delator, as
quais, fique claro, desconheço.
Nos três passos de análise do caráter criminoso de uma conduta, aquele que
examina se uma conduta é ajustável, prima facie, a algum tipo penal é o primei­
ro, o da tipicidade, que traduz, na linguagem da dogmática penal, a exigência
do princípio da legalidade (arl. 5o, XXXIX, CF)°. Onde não há conduta típica,

4. Sobre a proporcionalidade no processo penal, cf. BADARÓ, Gustavo Henrique. Pro­


cesso penal. 1 ed. E-book, Saraiva, 2015, capítulo 1, item 1.13.
5. Emblemático o MS 22.801, DJe 14/03/2008 (Tribunal Pleno).
6. "Diese Funktionen sind unterschiedlicher Art: DerTatbestand steht unter dem Leitmotiv
der Gesetzesbestimmtheit, auf das die Legitimation der Dogmatik oft allein reduziert
worden ist; die Tatbestãnde dienen wirklich der Erfullung des nulIum-crimen-Satzes,
66 ' LAVAGEM DE DINHEIRO

porque não subsumível a algum tipo legal de crime, não há conduta proibida,
nem mesmo culpável.
Portanto, para afirmar a existência, ou não, do pressuposto legal que au­
toriza a quebra dos sigilos bancário e fiscal, o primeiro passo é estabelecer se a
conduta narrada pelos Consulentes se subsome, primafacie, a algum tipo penal,
a evidenciar, nas palavras do STF, causa provável de sua prática. Dado que se trata
de analisar o recebimento de valores pelos Consulentes em virtude de relação
contratual formal entre as partes, a punibilidade deve ser analisada à luz do crime
de lavagem de capitais (art. Io, Lei 9.613/98) e do crime de receptação (art. 180,
caput e § 3o, CPB).7 Feita essa análise, chega-se à conclusão, na qual se retorna
ao disposto no § 4o do artigo Io da LC 105/200, para, então, de forma sintética,
responder aos quesitos.
Como se verá adiante, a regularidade ou não do recebimento de honorários,
sob o ponto de vista penal, é elemento de análise da própria tipicidade, razão pela
qual não será examinada autonomamente.

III.2. Tipicidade à luz do art. Io, Lei 9.613/98?

111.2.1. Esclarecimentos introdutórios

O objeto de análise deste tópico é exclusivamente a hipótese de advogado


contratado para a defesa de investigado, suspeito ou acusado de infração penal,
cuja contratação reflete a efetiva prestação de serviços e a questão do recebimento
de honorários, cujo pagamento pode ser feito com recursos oriundos, direta ou
indiretamente, da prática de crimes8.
A discussão sobre o tema não é nova e tem sido objeto, inclusive, de pro­
nunciamentos judiciais em países ocidentais com os quais nosso ordenamento
jurídico-penal tem alguma familiaridade, como é o caso da Alemanha,9 por exemplo.

und von ihm her muB die dogmatische Aufgliederung eríolgen" (ROXIN, Kriminalpolitik
und Straírechtsystem, De Gruyter, 1974, p. 15). Também em ROXIN, Strafrecht -
Allgemeiner Teil, Band I, 4. Auflage, § 7, n. 62.
7. Não será analisada a conduta à luz do crime de íavorecimento real, posto que não
há qualquer elemento indicando que o recebimento dos honorários pudesse ter se
destinado, ainda que hipoteticamente, a "tornar seguro o proveito do crime" (art. 349,
CPB).
8. A confecção de contrato de honorários por serviços não efetivamente prestados para
encobrir transações financeiras nada tem a ver com o exercício regular da advocacia
e pode configurar prática de diversas figuras penais, a depender da situação concreta
(cf. STJ, APn 458, DJe 18/12/2009).
9. A última decisão de que se tem notícia é a proferida pela 2a Câmara do Segundo Se­
nado do Tribunal Constitucional alemão em 28 de julho de 2015, na qual a Câmara
RECEBIMENTO DE HONORÁRIOS MACULADOS 67

No Brasil, recebeu trabalho monográfico específico já em 2010,10e tem sido objeto


de diversas publicações.11
Não raro, portanto, consulta-se a literatura e a jurisprudência de países como
a Alemanha ou a Espanha em busca de subsídios para compreender o conteúdo dos
tipos penais relativos à lavagem de capitais e, até, proceder à exegese de nossa pró­
pria legislação na matéria à luz desse referencial. Esse procedimento é inadequado
para a hipótese ora analisada, posto que, tanto na Alemanha12 como na Espanha,13
incrimina-se (também) o puro e simples recebimento ou guarda de produtos oriun­
dos da prática de infração penal anterior, ainda que oriunda de culpa (grave).14

reafirmou a orientação já adotada pela Corte em casos similares (cujo primeiro foi o
BVerfG 110, 226, de 2004), segundo a qual o tipo penal, relativamente aos advogados,
deve ser interpretado de forma restritiva, só podendo alcançar o advogado que, quan­
do do recebimento dos honorários, saiba seguramente que os valores provêm de um
dos crimes antecedentes apontados no art. 261, par. 1o, n. 2 (BVerfGE 110, 226; NJW
2015, 2949). Comentários à decisão faz RASCHKE, NZWiST 12/2015, p. 476-480.
10. SÁNCHEZ RIOS, Advocacia e lavagem de dinheiro: questões de dogmática jurídico-
-penal e de política criminal, Saraiva, 2010. (Direito penal económico. GVIaw).
11. Algumas já citadas no decorrer deste texto. Pode-se indicar, ainda, sem nenhuma
pretensão de exaustividade: AMBOS, La aceptación por el abogado defensor de hono­
rários maculados: lavado de dinero. In: GUZMÁN DÁLBORA, josé Luis. El penalista
liberal: controvérsias nacionales e internacionales en derecho penal, procesal penal y
criminologia : Manuel de Rivacoba y Rivacoba homenaje, Hammurabi, 2004, p. 55-94;
CARO CORIA (Trad.); AMBOS; HINESTROSA, La aceptación por el abogado defensor
de honorários ,maculados': lavado de dinero?: intentos de restricción del tipo penal
de lavado (blanqueo) de dinero a la luz de los derechos internacional y extranjero,
Universidad Externado de Colombia, 2002; CHOCLÁN MONTALVO, Blanqueo de
capitales y retribución del abogado. El pago de honorários con cargo al património pre-
suntamente criminal, La ley penal, v. 5, n. 53, p. 43-50, out. 2008; DIAS, Recebimento
de honorários maculados e os crimes de lavagem de dinheiro e de receptação: análise
sob a perspectiva das ações neutras, Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo,
v. 22, n. 110, p. 147-174, set./out. 2014; GRECO FILHO, RASSI, Lavagem de dinheiro
e advocacia: uma problemática das ações neutras, Boletim IBCCRIM, São Paulo, v. 20,
n. 237, p. 13-14, ago. 2012; MASSUD, SARCEDO, O exercício da advocacia e a lavagem
de capitais: panorama brasileiro. In: OLIVEIRA, William Terra de et al. (Org.). Direito
penal económico: estudos em homenagem aos 75 anos do Professor KlausTiedemann,
LiberArs, 2013, p. 263-289; LUCCHESI, O confisco penal de honorários advocatícios nos
Estados Unidos da América e seu impacto no sistema jurídico-penal acusatório, Revista
Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 22, n. 108, p. 349-384, maio/jun. 2014.
12. Recente: KRAATZ, Erik, Geldwãscherisiken fúr Anwãlte, NJ 4/201-5, p. 149-157.
13. Recente: BLANCO CORDERO, El delito de blanqueo de capitales, 4a ed., Aranzadi,
2015, p. 772 ess.
14. Abordando, em conjunto, a situação espanhola e alemã, WIRTZ, B^RMEJO, Strafver-
teidigerhonorar und Geldwãsche aus europãischer Perspektive: Gleiches Problem,
gleiche Lõsung?, ZIS, 10/2007. Na Espanha, vide por todos blANC^^ORDERO, °^ra
68 | LAVAGEM DE DINHEIRO

Essa, contudo, não é a situação legal brasileira. Aqui não há figura típica cri­
minalizando a mera guarda ou recebimento, sem mais, de valores provenientes da
prática anterior de infração penal.15 Também não está prevista a punibilidade da
forma culposa, de qualquer das modalidades típicas da lavagem de capitais.

111.2.2. Modalidades de conduta típica

Dito isso, cumpre analisar os fatos narrados pelos Consulentes à luz do direito
positivo, ou seja, do disposto no artigo Io da Lei n. 9.613/98.
Tal dispositivo incrimina diversas condutas, que têm em comum o objeto
material sobre o qual recaem: bens, direitos ou valores provenientes, direta ou in­
diretamente, de infração penal. Entendo que do caput ao § 2o, I, há a incriminação
de uma crescente gravidade no ataque ao bem jurídico,10 da conduta de menor para
a de maior gravidade, em conformidade com a clássica tripartição das etapas do
processo de lavagem (colocação, ocultação e integração),17 no que o dispositivo
presta tutela penal (extremamente) abrangente ao bem jurídico, especialmente
tendo-se em vista a questionável homogeneidade dos marcos penais para condutas
de lesividade diversa.

citada, local citado. Na Alemanha, Schrõke/Schrõder/Hecker/Stree, StGB, § 261, nr.


24 e ss.; HERZOG, Geldwãschegesetzt, 2. Aufl., 2014, StGB § 261, nr. 99 e ss.; KIN-
DHÀUSER/NEUMANN/PAEFFGE/ALTENHAIN, Strafgesetzbuch, 4. Aufl., 2013, §261,
n. 124 e ss.; LACKNER/KÚHL, StGB, 28. Aufl., 2014, § 261, nm. 5a; NEUHEUSER,
Múnchener Kommentar zum StGB, 2. Aufl., 2012, § 261, nr. 78 e ss. Estudos mono­
gráficos posteriores à decisão do BVerfG de 2004: BEULKE/RUHMANNSEDER, Die
Strafbarkeit des Verteidigers, 2. Aufl., C. F. Muller, 2010; GLASER, Geldwãsche
(§ 261 StGB) durch Rechtsanwãlte und Steuerberater bei der Honorarannahme, Herbert
Utz, 2009; SCHRADER, Die Strafbarkeit des Verteidigers wegen Geldwãsche (§ 261)
durch Annahme bemakelter Honorarmittel, Tectum, 2008.
15. É a mesma razão que inspira a afirmação, mas na outra ponta da relação, de que "a
conduta de pagar contas diretamente, usando dinheiro ilícito, mas de forma aber­
ta e não camuflando ou transmudando a natureza do numerário, não se subsume a
qualquer das figuras típicas do crime de lavagem de dinheiro, sendo, no máximo,
pós-fato impunível e natural ao agir desde o início planejado pelo criminoso" (TRF4,
1999.70.00.013518, DE 05/07/2007; no mesmo sentido, ainda, TRF4, HC 2009.
04.00.015092-0, j. 02/06/2009).
16. A identificação do bem jurídico protegido pelo crime de lavagem de capitais é alvo de
acesa discussão, tanto em nosso País (ilustrativo SÁNCHEZ RIOS, obra citada), como
na Espanha (ilustrativo BLANCO CORDERO, obra citada, p. 289 e ss.), na Alemanha
(ilustrativo ALTENHAIN, §261, KINDHÂUSER/NEUMANN/PAEFFGEN, NK, 4.Auflage,
nr. 7-14) ou mesmo em outros países latino-americanos (ilustrativo GARCIA CAVERO,
EI delito de lavado de activos, Segunda edición, B de F, 2015, p. 49 e ss.), mas cuja
discussão foge ao escopo deste exame.
17. Embora não de forma expressa, esse parece ser também o entendimento de BALTAZAR
JÚNIOR, obra citada, p. 1104.
RECEBIMENTO DE HONORÁRIOS MACULADOS 69

O caput tipifica a conduta de ocultar ou dissimular a natureza, origem, locali­


zação, disposição, movimentação ou propriedade do objeto material anteriormentc
indicado. Enquanto o ocultar tem o significado de esconder, o dissimular tem o
significado de disfarçar. Aqui não é necessário seguir na interpretação do significado
dos verbos nucleares, objeto de vívida crítica,18 posto que os fatos, como narrados,
não se ajustam a nenhuma dessas modalidades de conduta.19
Se os valores depositados na conta do escritório de advocacia foram obtidos,
pelo depositante, com a prática de corrupção passiva (segunda figura do 317,
CPB), estaria configurada a existência de objeto material do tipo de lavagem. Sobre
esse objeto, porém, não agiram os Consulentes de forma a ocultar ou dissimular
sua natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade, posto
que todos esses dados constam expressamente do contrato de honorários, que
justifica e documenta a natureza do recebimento por parte dos Consulentes; o
depósito na conta bancária do escritório, dado que é de registro permanente por
instituição financeira, fornece não só os dados sobre a origem (o depositante),
como a disposição e movimentação (a operação de depósito bancário), como, ainda
a localização (conta bancária da sociedade de advogados, constituída regular­
mente) e a propriedade (sociedade de advogados com personalidade jurídica) de
referidos valores.20
A existência de honorários e a prestação efetiva dos serviços contratados, por
seu turno, afastam, prima facie, que o recebimento dos valores pudesse se ajustar
às figuras típicas do § Io:
§ Io. Incorre na mesma pena quem, para ocultar ou dissimular a
utilização de bens, direitos ou valores provenientes de infração penal:
I - os converte em ativos lícitos;
II - os adquire, recebe, troca, negocia, dá ou recebe em garantia,
guarda, tem em depósito, movimenta ou transfere;
III - imporia ou exporta bens com valores não correspondentes
aos verdadeiros.

18. A crítica se dirige contra a modalidade típica de ocultar e, a meu ver, merece ser
acolhida: cf. VILARDI, O crime de lavagem de dinheiro e o início de sua execução,
Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 12, n. 47, mar./abr. 2004, p. 18.
19. No mesmo sentido, afirmando a inaplicabilidade do § 261 Abs. 1, que contempla as
condutas de ocultação e dissimulação, para hipóteses de recebimento de honorários
pelo defensor Schrõke/Schrõder/Hecker/Stree, StGB, § 261, nr. 24.
20. Para COSTA, sequer há de cogitar da incidência destas modalidades típicas no rece­
bimento de honorários (COSTA, Honorários advocatícios e lavagem de dinheiro, em
MALAN, Diogo; MIRZA, Flávio (Coord.). Advocacia criminal, direito de defesa, ética
e prerrogativas, Lumen Juris, 2014, p. 165).
70 LAVAGEM DE DINHEIRO

Isso, porque o recebimento dos valores se deu como contraprestação por pres­
tação de serviços na área de especialidade dos contratados,21 ou seja, para pagamento
por sciviços prestados e não, como exige o elemento subjetivo especial do tipo, para
“ocultar o dissimular” sua utilização.22 De resto, como visto, a forma do pagamento
e a natureza da operação bancária nela envolvida implicam transparência quanto
à utilização do bem, e não em sua ocultação ou dissimulação.
Não se ajusta, igualmente, à figura típica inscrita no art. Io, § 2o, I, da Lei
n. 9.613/98 o recebimento de honorários por serviços efetivamente prestados.23
Trata-se da modalidade típica de utilização, na atividade económica ou financeira,
de bens direitos ou valores provenientes de infração penal. É evidente que não se
pode interpretar isoladamente esta modalidade típica e isso por três razões funda­
mentais: (a) a própria interpretação sistemática do artigo Io, como dito, indica uma
gradação de ataque ao bem jurídico, que caminha das menos graves às mais graves:
desde a mera ocultação (caput), passando pela transformação (§ Io) até a integração
(§ 2o)24; (b) se se tratasse aqui da mera “utilização” para qualquer finalidade de
produtos de infração penal antecedente, estar-se-ia negando vigência à limitação
típica imposta pela cláusula “na atividade económica ou financeira”, justamente a
que evidencia que se cuida aqui da punibilidade da última fase da lavagem - a mais
grave sob o ponto de vista do (na verdade, da dificuldade de) alcance dos ativos cri­
minosos por implementação de medidas cautelares patrimoniais do processo penal
ou tutela da ordem económica a integração: a incorporação formal dos ativos ao
sistema económico por, para ou no interesse do titular dos ativos criminosos; (c) a
interpretação de que se trataria também de puro e simples recebimento conduziria
a ter de afirmar a atipicidade quando o receptor dos valores não os utilizasse em
sua atividade económica, mas, sim, em outras atividades privadas (ou, não eco­
nómicas), o que não faria o menor sentido fosse o intento do legislador proibir o
recebimento de valores oriundos da prática de crime por si só.25

21. Cuja notoriedade dispensa demonstração.


22. Ainda, no mesmo sentido COSTA, obra citada, p. 166.
23. No mesmo sentido, especificamente COSTA, obra citada, p. 167 e ss. Em sentido
congruente quanto à modalidade típica que mais se aproximaria da incriminação do
recebimento de honorários maculados, cf. GRANDIS, O exercício da advocacia e o
crime de 'lavagem" de dinheiro, em Dl CA RU (et al.), Lavagem de dinheiro: preven­
ção e controle penal, Verbo, 2011, p. 135, o qual, todavia, conclui pela atipicidade
por não ver configurados os pressupostos de imputação objetiva (cf. especialmente
p. 140-141).
24. BALTAZAR JÚNIOR também vê, nesta conduta típica, a incriminação da fase de inte­
gração (obra citada, p. 1104).
25. O que ainda obrigaria aquele que pretendesse sustentar tal interpretação a uma ne­
cessária discussão acerca da derrogação do tipo de receptação para determinadas
RECEBIMENTO DE HONORÁRIOS MACULADOS I 71

Os fatos narrados pelos Consulentes, portanto, não se ajustam, já em juízo


sobre a tipicidade objetiva, e, pois, primafacie, aos tipos legais de crime descritos
no artigo Io da Lei 9.613/90.26

111.3. Tipicidade à luz do art. 180, caput e § 3o, CPB?

Resta examinar a punibilidade da conduta à luz do disposto no artigo 180 do


CPB, especificamente em seu caput e em seu § 3o:27
Receptação
Art. 180. Adquirir, receber, transportar, conduzir ou ocultar, em
proveito próprio ou alheio, coisa que sabe ser produto de crime, ou influi r
para que terceiro, de boa-fé, a adquira, receba ou oculte:
Pena - reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.
(...)
§ 3o - Adquirir ou receber coisa que, por sua natureza ou pela des­
proporção entre o valor e o preço, ou pela condição de quem a oferece,
deve presumir-se obtida por meio criminoso:
Pena - detenção, de 1 (um) mês a 1 (um) ano, ou multa, ou ambas
as penas.

III.3.1. Aspectos ligados ao tipo objetivo

II1.3.1.1. Ausência de objeto material


Se verdadeira a afirmação do delator no sentido de que o valor utilizado pelo
cliente dos Consulentes para o depósito bancário era produto de crime de corrup­
ção passiva (art. 317, CPB), falta o necessário objeto material sobre o qual devem
recair as condutas descritas nos dois dispositivos.
Um dos critérios hermenêuticos para identificar o objeto da tutela penal é,
sem dúvida, a seção na qual o legislador alocou a figura típica. Nesse sentido, o

constelações de casos, com o consequente ônus de legitimar a extravagante diferença


entre as penas cominadas para condutas dotadas da mesma lesividade (1 a 4 anos
para a receptação; 3 a 10, para a lavagem).
26. Independentemente de qualquer hipótese fática, conclui COSTA: "Conforme anali­
sado, atualmente não há espaço na legislação brasileira para a aplicação do crime
de lavagem de dinheiro ao advogado que recebe honorários como contraprestação
de atuação profissional lícita, ainda que lais honorários tenham sabidamente origem
ilícita" (obra citada, p. 175).
27. Descartada a figura do § 1o, posto que a prestação de serviços de advocacia não se
ajusta ao conceito de atividade comercial ou industrial.
72 ! LAVAGEM DE DINHEIRO

artigo 180 do Código Penal está inserido dentro do Título II - Dos crimes contra
o património,28 a indicar que concede tutela de segundo grau ao património29-
público ou privado -30 já ofendido pelo crime anterior (p. ex., furto, apropriação
indébita, estelionato etc.).
Esse critério tem sido um entre os invocados para distinguir o âmbito de apli­
cação do crime de lavagem de capitais do de aplicação do crime de receptação,31
especialmente naqueles países, como a Alemanha, nos quais as duas figuras foram
alocadas uma em seguida da outra32 e/ou a lavagem de dinheiro só se aplica a bens
oriundos de um rol taxativo de crimes.33 No direito positivo alemão, a referência
expressa no tipo penal a uma coisa oriunda de um crime contra o património34

28. Sobre a importância científico-pragmática da estruturação da Parte Especial a partir


dos bens jurídicos protegidos, v. GRECO, Lo vivo e lo muerto en la teoria de la pena
de Feuerbach, Marcial Pons, 2015, p. 275. É evidente que a localização topográfica de
um artigo, por si só, não determina necessariamente o seu objeto de tutela. Exemplo
disso é o disposto no art. 1 68-A, CP, o qual, apesar de também estar alocado entre
os crimes contra o património, volta-se à tutela da arrecadação tributária. O mesmo
fenômeno ocorre com o artigo 337-A; críticas específicas à alocação dessas figuras
em ESTELLITA, Crimes previdenciários: arts. 168-A e 337-A do CP: aspectos gerais,
Revista Brasileira de Ciências Criminais, n. 36, p. 309-350, out./dez. 2001. Todavia,
a alocação de um tipo penal dentro de um capítulo no qual o legislador afirmar pro­
teger este ou aquele bem jurídico deve ser o ponto de partida do intérprete e, caso
identificada disparidade, haverá o ónus de demonstrar que o objeto de tutela difere
daquele atribuído àquela seção ou capítulo.
29. Nesse sentido, BUSATO, Direito penal: parte especial I, Atlas, 2014, p. 607.
30. Nesse sentido, BITENCOURT, Tratado de direito penal - parte especial, 8 ed., Saraiva,
2012, v. 3 edição eletrónica, Crime de receptação, item 2.
31. Cf. ROBLES PLANAS, PASTOR MUNOZ, Delitos contra el património, em SILVA
SÁNCHEZ/RÁGUES I VALLÉS, Leciones de derecho penal, Atelier, 2015, p. 299.
Outro critério que mereceria melhor exame é o da circunstância de o crime de re­
ceptação ter por objeto coisas móveis, no sentido da lei civil, e não valores. Em nosso
país, BALTAZAR JÚNIOR é um dos poucos que, acertadamente, também estabelece
a distinção entre o crime de lavagem e o de receptação com base diversa natureza
do objeto material: bens ou valores, inclusive provenientes indiretamente do crime
antecedente, no primeiro caso, coisas, móveis ou mobilizadas, no segundo (Crimes
federais, 10ed., Saraiva, 2015, p. 1093).
32. No Código Penal alemão (StGB), a receptação está definida no § 259 e a lavagem de
dinheiro, no § 261.
33. StGB, § 261, nr. 1.
34. Em alemão, "§ 259 Hehlerei. (1) Wer eine Sache, die ein anderer gestohlen oder sonst
durch eine gegen fremdes Vermõgen gerichtete rechtswidrige Tat erlangt hat, ankauft
oder sonst sich oder einem Dritten verschafft, sie absetzt oder absetzen hilft, um sich
oder einen Dritten zu bereichern, wird mit Freiheitsstrafe bis zu fúnf Jahren oder mit
Geldstrafe bestraft" Em espanhol: "§ 259. Receptación. (1) Quien compre, o de otra
manera obtenga para si o para un tercero, comercialice, o ayude a comercializar una
RECEBIMENTO DE HONORÁRIOS MACULADOS I 73

indica, claramente, sua natureza patrimonial, com o que se define a finalidade da


tutela fornecida por esta figura criminosa como a de evitar a agravação do dano pa­
trimonial causado pela prática criminosa anterior. Não por outra razão, a receptação
é ali denominada “crime de conexão” (Anschlussdelikt), tal qual o favorecimento
real.35 O injusto da receptação residiria na perpetuação da ilegal situação patrimonial
alcançada pela prática do crime antecedente, que se expressa na nova separação entre
o bem e seu titular legítimo representada pela transferência do poder de disposição
sobre o bem a uma terceira pessoa (o receptador).30
Muito embora não haja expressa menção a “coisa oriunda de um crime contra
o património” na figura típica brasileira, os verbos utilizados pelo legislador, espe­
cialmente aqueles agregados aos tipos penais do caput e do § Io em 1996, indicam
claramente que a coisa referida em cada um dos enunciados (desde o caput até o
§ 6o37) é de ser entendida como um objeto corpóreo móvel com valor económico.
Tanto assim que o legislador agregou às modalidades típicas as condutas de trans­
portar, conduzir, montar, desmontar, remontar, as quais, evidentemente, somente
se aplicam a coisas com existência corpórea, e não a direitos, como o direito de
crédito que os Consulentes tinham contra o banco no qual têm conta corrente de
depósito38 - o qual, por sua vez, tinha um direito de crédito contra a instituição
financeira emitente do cheque (sacada). Trata-se de interpretação sistemática
dentro do mesmo dispositivo legal,39 que não permite aplicar o verbo transportar

cosa, que otro se haya hurtado o de otra manera haya obtenido por medio de un hecho
antijurídico dirigido contra el património ajeno de un tercero, con el fin de enrique-
cerse o enriquecer a un tercero, será castigado con pena privativa de la libertad hasta
cinco anos o con multa".
35. WESSELS/HILLENKAMP, Strafrechl - BesondererTeil 2, 37.Auflage, C.F. Muller, 2014,
§ 23, nr. 832; RENGIER, Strafrecht - BesondererTeil I, 17. Auflage, 2015, § 22, nr. 1.
O favorecimento real está definido no § 257 do StGB, dentro da mesma seção onde
se encontram alocados os crimes de receptação (Hehlerei, § 259) e de lavagem de
capitais (Geldwãsche, § 261). No Brasil, no mesmo sentido, BALTAZAR JÚNIOR, obra
citada, p. 1091.
36. WESSELS/HILLENKAMP, obra citada, § 23, nr. 823; KINDHÂUSER, Strafrecht- Beson-
dererTeil II, 4. Auflage, 2005, § 47, nr. 1; RENGIER, obra citada, § 22, nr. 1.
37. No parágrafo 6o, inclusive, há expressa menção a bens do património da União, em
clara referência a coisas corpóreas.
38. O contrato de conta-corrente bancário se rege pelas normas dos artigos 645 c.c. 586
do Código Civil: "Art. 645. O depósito de coisas fungíveis, em que o depositário se
obrigue a restituir objetos do mesmo gênero, qualidade e quantidade, regular-se-á pelo
disposto acerca do mútuo", "Art. 586. O mútuo é o empréstimo de coisas fungíveis. O
mutuário é obrigado a restituir ao mutuante o que dele recebeu em coisa do mesmo
gênero, qualidade e quantidade".
39. Sobre as três classes de formação jurídica de conceitos, v. SCHÚNEMANN, Funda­
mentos y limites de los delitos de omisión impropia, Marcial Pons, 2009, p. 55-57.
74 LAVAGEM DE DINHEIRO

a um direito dc crédito cm conta corrente de depósito, assim como não o admitem


os verbos montai; desmontai; remontar ou conduzir.40
A interpretação em sentido contrário obrigaria afirmar, por coerência, que, na
verdade, quem teria praticado o crime de receptação teria sido a instituição finan­
ceira (a pessoa nela encarregada, a rigor) na qual o cheque foi depositado, pois foi
ela quem recebeu, após a compensação interbancária (serviço prestado, entre nós,
pelo Banco do Brasil), os valores da instituição sacada representados pelo cheque
e supostamente oriundos da prática de crime de corrupção. Aliás, levando-se ao
pé da letra o sistema de compensação de cheques no Brasil, a rigor, a “coisa” pode
sequer ter entrado na esfera de posse/propriedade da instituição financeira onde
depositado o cheque, porque a compensação de cheques no Brasil é feita pelo
sistema de movimento compensatório entre instituições sacadas e acolhedoras,
assim, é possível que sequer tenha havido transferência de valores entre instituição
sacada e instituição acolhedora, se, na data da compensação, esta última tivesse
mais débitos do créditos diante da sacada.
Por fim, atribuir à “coisa” que é objeto material do crime de receptação o
sentido de “valor” ou “direito” implicaria colocar, potencialmente, no espectro de
alcance deste tipo penal também o dono do supermercado, o da empresa forne­
cedora de energia elétrica, o dono do posto de abastecimento de combustíveis, os
funcionários públicos responsáveis pelo recolhimento de tributos, os funcionários
públicos encarregados do recebimento dos valores pagos a título de fiança (pro­
cessual penal) ou multa penal etc., que recebem o pagamento por seus produtos/
tributos/fiança/pena com valores (dinheiro em espécie, transferência bancária,
pagamento via cartão de crédito ou de débito, cheque etc.) oriundos da prática
anterior de crime (contra o património).41 Uma tal interpretação levaria a uma am­
pliação tão incontrolável da incidência do tipo, que poderia, no limite, inviabilizar
o próprio tráfego económico. Esses argumentos evidenciam que a “coisa” objeto
destas figuras típicas é um bem corpóreo móvel.
Ademais, no caso de corrupção passiva na modalidade de recebimento, não há
a subtração de uma coisa móvel (corpórea) daquele que faz o pagamento, pois a
entrega dos valores ao funcionário público é espontânea, não havendo que se falar

40. Sobre os limites da interpretação das elementares do tipo de acordo com o texto da
lei, especialmente em matéria penal, onde proibida a analogia in malam partem,
v. PUPPE, Kleine Schule des juristischen Denkens, p. 120 e ss., especialmente p. 123.
41. Cf. SÁNCHEZ-VERA GÓMEZ-TRELLES, Blanqueo de capitais y abogacía, InDret, enero
2008, p. 31. O argumento é utilizado por KULISCH com relação à modalidade de
recebimento do tipo penal de lavagem na Alemanha, referindo-se ao juiz que recebe o
pagamento das custas processuais e da multa penal de condenado que tenha praticado
um dos crimes antecedentes apontados no parágrafo 1o do § 261 do StGB (KULISCH,
StraFo 1999, 337 (339)).
RECEBIMENTO DE HONORÁRIOS MACULADOS 75

em dano infligido injustamente ao património daquele que paga a “propina”, o que


ocorreria em caso de concussão (art. 316, CPB42), hipótese sequer ventilada nos
fatos que motivam a presente consulta.
Por todas essas razões, a conduta narrada pelos Consulentes não se ajusta,
já por este primeiro fundamento objetivo, às figuras típicas do caput e do § 3o do
artigo 180 do CPB.

II1.3.1.2. Risco permitido

Outro elemento comum às duas figuras típicas ora examinadas é o do conteúdo


do risco juridicamente desaprovado pressuposto para a imputação do resultado ao
autor, o que permite a análise conjunta à luz de dois dispositivos que se diferenciam
quanto ao aspecto subjetivo - exigência de dolo no caput, e de culpa no § 3o43-, pois
desde que se passou a compreender o tipo como descritor de condutas perigosas
para bens jurídicos,44 a imputação objetiva do resultado passou a operar dentro do
tipo objetivo cie qualquer modalidade típica, e, com isso, a estrutura objetiva do tipo
culposo45 - e, no que nos interessa, a violação do dever objetivo de cuidado, agora
nomeada de criação de risco juridicamente desaprovado - foi incorporada ao tipo
objetivo também dos delitos dolosos: todo crime doloso contém um crime culposo.
Um exemplo tomado de Herzberg ilustra o acerto dessa afirmação: a secretária
gravemente gripada que comparece ao trabalho sem sequer pensar que poderia
contaminar seu chefe, não comete um crime de lesões corporais culposo, posto
que cria um risco permitido. Mas e se ela não só conhecesse a possibilidade como
desejasse (dolo) ardentemente contaminar seu chefe? Mesmo assim sua conduta,
já no exame do tipo objetivo, seria atípica, posto que o risco criado (apesar da má
intenção) é permitido, e nem sua má intenção poderia ser qualificada penalmente
como dolosa,46 pois, se o dolo deve abarcar todos os elementos do tipo objetivo,

42. O excesso de exação está evidentemente fora do horizonte de análise (art. 316, § 1o).
43. Embora divergindo da técnica comum de tipiíicaçào das condutas culposas (empregada,
por exemplo, no art. 121, § 3o, CPB), o legislador criou, neste § 3o do art. 180, a forma
culposa da receptação, assim BITENCOURT, obra citada, Crime de receptação, item 10.
44. Em oposição a uma concepção de tipo como descrição da causação de resultados, cf.
GRECO, Imputação objetiva: uma introdução, em ROXIN, Funcionalismo e imputação
objetiva no direito penal, Renovar, 2002, p. 1-180.; ROXIN, Strafrecht Allgemeiner
Teil I, 4 Auflage, 2006, § 11, nr. 1 e ss.
45. Como afirma Greco, "a imputação objetiva e seus conceitos básicos nada mais são do
que a teoria do crime culposo" (GRECO, Imputação objetiva: uma introdução, obra
citada, p. 44).
46. HERZBERC, Das vollendete vorsãtzliche Begehungsdelikt ais qualifiziertes Versuchs-,
Fahrlãssigkeits-und Unterlassungsdelikt, juristische Schulung, v. 5, p. 377-384, 1996,
p. 381.
76 LAVAGEM DE DINHEIRO

entre eles, a criação do risco juridicamente desaprovado, ausente este, ausente


o dolo. Em outras palavras: conhecer e querer o risco permitido não se qualifica
como dolo. Com outros exemplos: dar uma moto a um maior de 18 anos habilitado
torcendo para que ele morra em um acidente, não consubstancia conduta dolosa;
como não o consubstancia operar uma usina nuclear dentro de todos os parâmetros
de segurança desejando ardentemente que ela exploda.47
Isso quer dizer que a criação do risco juridicamente desaprovado pertence tan­
to ao tipo objetivo culposo, como ao doloso. Concordar com essa afirmação implica
aceitar suas consequências lógicas: o crime culposo é um (dos) pressuposto(s) do
crime doloso, ou, o que é o mesmo, não há um crime doloso sem um comportamen­
to culposo.48 A correção dessa afirmação está, inclusive, positivamente regulada
em nosso direito penal, dado que o legislador estabeleceu, no caput do artigo 20
do CPB, que o erro de tipo, que fulmina o dolo, permite a punição por culpa, se
sua punibilidade estiver prevista em lei (art. 18, parágrafo único, CPB), em outras
palavras, dentro de um crime doloso há sempre um crime culposo.
Um exemplo permite concretizar essas afirmações: um motorista que circula
em velocidade muito acima da permitida em uma via urbana na qual há pedestres
e causa, com isso, lesões corporais, cria, com isso, um risco que é juridicamente
desaprovado porque não observou as regras de trânsito (omitiu fazer o que de­
terminam tais regras). Se a ocorrência lhe era previsível, agiu culposamente, e, se
além de previsível, aceitou o risco e desejou a consequência (lesão corporal), agiu
dolosamente. Fica clara, assim, a presença do crime culposo dentro do crime doloso
e, consequentemente, do risco juridicamente desaprovado (= não observância do
dever objetivo de cuidado) dentro de ambos.49
Com isso, chego ao ponto que interessa. Supondo que o recebimento de ho­
norários por serviços efetivamente prestados na área criminal seja conduta criadora
de risco,50 se demonstrada a ausência de criação de risco juridicamente desaprovado
pela conduta concreta dos Consulentes- no caso, recebimento de depósito em sua
conta bancária como contraprestação por serviços prestados ou a prestar-, estarão
fulminadas, já no âmbito da tipicidade objetiva, as duas modalidades típicas acima
indicadas. E é o que sucede aqui.
A ideia de que a imputação objetiva do resultado pressupõe a criação de um
risco juridicamente desaprovado assenta-se no reconhecimento de uma ponderação

47. A disciplina do artigo 17 do Código Penal brasileiro oferece um amparo legal a essa
afirmação.
48. GRECO, Imputação objetiva: uma introdução, obra citada, p. 44.
49. Por isso, ressente-se Herzberg do fato de que os manuais de direito penal normalmente
examinam a estrutura do crime culposo depois da dos dolosos (obra citada, local citado).
50. O que absolutamente não é evidente e mereceria análise própria em outra sede.
RECEBIMENTO DE HONORÁRIOS MACULADOS 77

entre interesses de proteção de bens jurídicos e interesse geral de liberdade.51 Essa


ponderação já se encontra, muitas vezes, estabelecida em normas específicas. Os
três critérios de concretização de um risco juridicamente desaprovado são a exis­
tência de normas de segurança, a violação do princípio da confiança e o comportamento
contrário ao Standard geral dos homens prudentes.52
A advocacia é atividade regulada por lei e resoluções de seu órgão regulador e
fiscalizador, a Ordem dos Advogados do Brasil. Muito embora as regras do Estatuto
da Ordem dos Advogados do Brasil (Lei 8.906/94; adiante, tão somente, EOAB) e
de seu Código de Ética e Disciplina (adiante, CED) não sejam normas de seguran­
ça no sentido da tutela penal ora analisada, isto é, não tenham sido criadas com o
fim de controlar os riscos que as atividades típicas da advocacia possam criar para
o património alheio,53 elas servem para dar conteúdo ao terceiro dos critérios de
avaliação: o comportamento conforme ou contrário ao Standard geral dos homens
prudentes, na medida em que indicam as regras de prudência na contratação de
honorários.54
Pouco diz o EOAB sobre o tema das formalidades que devem cercar o contrato,
limitando-se, no que nos interessa, a afirmar que a prestação de serviço profissional
assegura aos inscritos na OAB o direito aos honorários convencionados (art. 22).
O CED é mais generoso e contém ao menos três dispositivos relevantes para
esse caso:
An. 35. Os honorários advocatícios e sua eventual correção, bem
como sua majoração decorrente do aumento dos atos judiciais que
advierem como necessários, devem ser previstos em contrato escrito,
qualquer que seja o objeto e o meio da prestação do serviço profissional,
contendo todas as especificações e forma de pagamento, inclusive no
caso de acordo.
Art. 36. Os honorários profissionais devem ser fixados com mode­
ração, atendidos os elementos seguintes:
I - a relevância, o vulto, a complexidade e a dificuldade das ques­
tões versadas;
II - o trabalho e o tempo necessários;

51. GRECO, Um panorama da teoria da imputação objetiva, 3 ed., RT, 2013, p. 52, quem
agrega um outro fundamento, não consequencialista: o núcleo de liberdade de cada
cidadão (p. 51).
52. GRECO, Um panorama..., obra citada, p. 46 ess.; ROXIN, Strafrecht, obra citada, §11,
nr. 65 e ss; FRISCH, Strafrecht: AlIgemeinenTeil, 6. Auf., C.H. Beck, 2013, p. 127-128.
53. Sobre o objeto da tutela do crime de receptação, v. supra.
54. No mesmo sentido, COSTA, obra citada, p. 164.
■70 i
78 I LAVAGEM DE DINHEIRO

III - a possibilidade de ficar o advogado impedido de intervir em


outros casos, ou de se desavir com outros clientes ou terceiros;
IV - o valor da causa, a condição económica do cliente e o proveito
para ele resultante do serviço profissional;
V - o caráter da intervenção, conforme se trate de serviço a cliente
avulso, habitual ou permanente;
VI - o lugar da prestação dos serviços, fora ou não do domicílio do
advogado;
VII - a competência e o renome do profissional;
VIII - a praxe do foro sobre trabalhos análogos.
Art. 38. Na hipótese da adoção de cláusula quota litis, os honorários
devem ser necessariamente representados por pecúnia e, quando acres­
cidos dos de honorários da sucumbência, não podem ser superiores às
vantagens advindas em favor do constituinte ou do cliente.
Parágrafo único. A participação do advogado em bens particulares
de cliente, comprovadamente sem condições pecuniárias, só é tolerada
em caráter excepcional, e desde que contratada por escrito.

Os documentos exibidos pelos Consulentes atendem integralmente ao dispos­


to no artigo 36, tratando-se de contrato escrito, que delimita o objeto e o alcance
dos serviços detalhadamente, bem como o preço estabelecido para cada ato/fase
processual e a forma de pagamento respectiva. Embora o CED não estabeleça, como
nem mesmo poderia, patamares quantitativos para os honorários, posto que, salvo
raríssimas exceções, a ordem jurídica opera sobre a regra do livre estabelecimento
de preços (art. 170 e ss., CF),55 aponta elementos que poderão fundamentar esses
valores. No caso concreto, alteram positivamente o valor da prestação de serviços
pelo menos cinco dos oito fatores ali indicados, nomeadamente os de n. I, II, IV: a
relevância, a complexidade e a dificuldade das questões envolvidas; o trabalho e o
tempo necessários para a representação em casos do objeto do contrato; a condi­
ção económica do cliente e o proveito para ele resultante do serviço profissional;
o lugar da prestação dos serviços, fora do domicílio do advogado; e a competência
e o renome do profissional, as quais se comprovam pela própria apresentação dos
Consulentes no bojo do contrato. Por fim, os Consulentes receberam os valores
em pecúnia, na forma de transferência bancária, não incidindo a censura do art. 38

55. Verdade que tanto o EOAB como o CDE estabelecem um patamar mínimo para a
cobrança de honorários, abaixo do qual considera-se aviltante a remuneração dos
serviços jurídicos. Os dispositivos são questionáveis, todavia, a discussão é irrelevante
para a solução deste caso.
RECEBIMENTO DE HONORÁRIOS MACULADOS 79

a contrario sensu. Sob o ponto de vista das normas regulamentadoras da profissão,


atuaram, pois, dentro do Standard profissional de prudência.
Mas há mais. Duas outras circunstâncias indicam atuação dentro do padrão
do homem prudente: i) os honorários foram recebidos por meio de depósito em
conta corrente em instituição financeira de renome, o que, graças ao ambiente
particularmente regulado no qual operam as instituições bancárias,56 permite o
controle, supervisão e manutenção das informações relativas a quaisquer operações
financeiras;57 e, ii) emitiram o respectivo recibo e escrituraram o recebimento em
seus registros contábeis, tendo submetido tanto a renda como as informações a
ela relativas às autoridades tributárias, e procedido aos pagamentos dos tributos
devidos.
Embora fosse desnecessário, o legislador fez constar do tipo penal do § 3o do
art. 180 as circunstâncias objetivas que indicam a necessidade da observância dos
deveres de cuidado: natureza da coisa, desproporção entre o valor e o preço e a
condição pessoal de quem a oferece. Como se viu, estes elementos do tipo culposo
estão contidos - são uma parte - do próprio tipo doloso, posto que conformam a
criação do risco não permitido e, assim, já foram analisados anteriormente. Toda­
via, não custa confrontar brevemente os dados do caso com essas circunstâncias:
quanto à natureza da coisa, tratou-se de depósito bancário de cheque, meio legal,
comum e autorizado para o pagamento de serviços; não houve desproporção entre
o valor do serviço e o preço estabelecido contratualmente;58 e, finalmente, a condi­
ção pessoal de quem a ofereceu (a rigor, de quem contratou os Consulentes) era
compatível com o objeto do contrato de prestação de serviços e com o valor dos
honorários pactuados.
Mesmo na Alemanha, onde, como dito, o tipo legal de lavagem de capitais
contempla como modalidade típica o mero recebimento de valores oriundos dos
crimes antecedentes, a atenção a certas medidas no recebimento de honorários
é apontada como padrão de conduta prudente para fins de afastamento do tipo
objetivo: a razoabilidade do valor estabelecido, a documentação da contratação e
do recebimento dos valores, recebimento direto do contratante ou, se assim não
for, documentação fundamentando a razão do pagamento estar sendo feito por

56. Lei 4.595/64 e arcabouço normativo emitido pelo BACEN e pelo CMN.
57. No que tange à supervisão para fins de prevenção do crime de lavagem de capitais,
confira-se a Circular 3461/2009.
58. Essa circunstância coloca em evidência que o tipo de receptação tem por objeto ma­
terial um bem móvel e não valores ou bens. A rigor, neste caso, não há que se falar
em desproporção entre o preço pago (pelo receptador) e coisa (recebida do vendedor)
uma vez que, aqui, o advogado "vende seu serviço" e o cliente faz o pagamento por
esse serviço, na mão contrária, portanto, do que indica o texto legal.
78 ! LAVAGEM DE DINHEIRO

III - a possibilidade de ficar o advogado impedido de intervir em


outros casos, ou de se desavir com outros clientes ou terceiros;
IV - o valor da causa, a condição económica do cliente e o proveito
para ele resultante do serviço profissional;
V — o caráter da intervenção, conforme se trate de serviço a cliente
avulso, habitual ou permanente;
VI - o lugar da prestação dos serviços, fora ou não do domicílio do
advogado;
VII - a competência e o renome do profissional;
VIII - a praxe do foro sobre trabalhos análogos.
Art. 38. Na hipótese da adoção de cláusula quota litis, os honorários
devem ser necessariamente representados por pecúnia e, quando acres­
cidos dos de honorários da sucumbência, não podem ser superiores às
vantagens advindas em favor do constituinte ou do cliente.
Parágrafo único. A participação do advogado em bens particulares
de cliente, comprovadamente sem condições pecuniárias, só é tolerada
em caráter excepcional, e desde que contratada por escrito.

Os documentos exibidos pelos Consulentes atendem integral mente ao dispos­


to no artigo 36, tratando-se de contrato escrito, que delimita o objeto e o alcance
dos serviços detalhadamente, bem como o preço estabelecido para cada ato/fase
processual e a forma de pagamento respectiva. Embora o CED não estabeleça, como
nem mesmo poderia, patamares quantitativos para os honorários, posto que, salvo
raríssimas exceções, a ordem jurídica opera sobre a regra do livre estabelecimento
de preços (art. 170 e ss., CF),55 aponta elementos que poderão fundamentar esses
valores. No caso concreto, alteram positivamente o valor da prestação de serviços
pelo menos cinco dos oito fatores ali indicados, nomeadamente os de n. 1, II, IV: a
relevância, a complexidade e a dificuldade das questões envolvidas; o trabalho e o
tempo necessários para a representação em casos do objeto do contrato; a condi­
ção económica do cliente e o proveito para ele resultante do serviço profissional;
o lugar da prestação dos serviços, fora do domicílio do advogado; e a competência
e o renome do profissional, as quais se comprovam pela própria apresentação dos
Consulentes no bojo do contrato. Por fim, os Consulentes receberam os valores
em pecúnia, na forma de transferência bancária, não incidindo a censura do art. 38

55. Verdade que tanto o EOAB como o CDE estabelecem um patamar mínimo para a
cobrança de honorários, abaixo do qual considera-se aviltante a remuneração dos
serviços jurídicos. Os dispositivos são questionáveis, todavia, a discussão é irrelevante
para a solução deste caso.
RECEBIMENTO DE HONORÁRIOS MACULADOS |
79

a contrario sensu. Sob o ponto de vista das normas regulamentadoras da profissão,


atuaram, pois, dentro do Standard profissional de prudência.
Mas há mais. Duas outras circunstâncias indicam atuação dentro do padrão
do homem prudente: i) os honorários foram recebidos por meio de depósito em
conta corrente em instituição financeira de renome, o que, graças ao ambiente
particularmente regulado no qual operam as instituições bancárias,56 permite o
controle, supervisão e manutenção das informações relativas a quaisquer operações
financeiras;57 e, ii) emitiram o respectivo recibo e escrituraram o recebimento em
seus registros contábeis, tendo submetido tanto a renda como as informações a
ela relativas às autoridades tributárias, e procedido aos pagamentos dos tributos
devidos.
Embora fosse desnecessário, o legislador fez constar do tipo penal do § 3o do
art. 180 as circunstâncias objetivas que indicam a necessidade da observância dos
deveres de cuidado: natureza da coisa, desproporção entre o valor e o preço e a
condição pessoal de quem a oferece. Como se viu, estes elementos do tipo culposo
estão contidos - são uma parte - do próprio tipo doloso, posto que conformam a
criação do risco não permitido e, assim, já foram analisados anteriormente. Toda­
via, não custa confrontar brevemente os dados do caso com essas circunstâncias:
quanto à natureza da coisa, tratou-se de depósito bancário de cheque, meio legal,
comum e autorizado para o pagamento de serviços; não houve desproporção entre
o valor do serviço e o preço estabelecido contratualmente;58 e, finalmente, a condi­
ção pessoal de quem a ofereceu (a rigor, de quem contratou os Consulentes) era
compatível com o objeto do contrato de prestação de serviços e com o valor dos
honorários pactuados.
Mesmo na Alemanha, onde, como dito, o tipo legal de lavagem de capitais
contempla como modalidade típica o mero recebimento de valores oriundos dos
crimes antecedentes, a atenção a certas medidas no recebimento de honorários
é apontada como padrão de conduta prudente para fins de afastamento do tipo
objetivo: a razoabilidade. do valor estabelecido, a documentação da contratação e
do recebimento dos valores, recebimento direto do contratante ou, se assim não
for, documentação fundamentando a razão do pagamento estar sendo feito por

56. Lei 4.595/64 e arcabouço normativo emitido pelo BACEN e pelo CMN.
57. No que tange à supervisão para fins de prevenção do crime de lavagem de capitais,
confira-se a Circular 3461/2009.
58. Essa circunstância coloca em evidência que o tipo de receptação tem por objeto ma­
terial um bem móvel e não valores ou bens. A rigor, neste caso, não há que se falar
em desproporção entre o preço pago (pelo receptador) e coisa (recebida do vendedor)
uma vez que, aqui, o advogado "vende seu serviço" e o cliente faz o pagamento por
esse serviço, na mão contrária, portanto, do que indica o texto legal.
80 LAVAGEM DE DINHEIRO

terceiro etc.50 Essas medidas são vistas como critérios objetivos caracterizadores
do recebimento de honorários como conduta adequada a um papel profissional,
ou socialmente adequadas,60 ideia contida, justamente, na categoria do risco permi­
tido.01 Embora, como dito, não tenhamos em nosso direito positivo a modalidade
de mero recebimento como hipótese de lavagem, a discussão se coloca, aqui, no
âmbito do recebimento na figura típica da receptação, onde pode ser aproveitada.
O comportamento dos Consulentes está em conformidade com o Standard
geral dos homens prudentes, e, se risco objetivo foi criado, a conduta a eles atribuída
manteve-se dentro do riscojuridicamentepennitido, razão pela qual não há de se lhes
imputar o resultado, não havendo que se falar em preenchimento dos pressupostos do
tipo objetivo do crime de receptação, nem na forma do caput, nem naquela do seu § 3o.

II1.3.2. Aspectos ligados ao tipo subjetivo

Por fim, há óbice impedindo a configuração do tipo subjetivo: a incongruência


temporal entre a data do fato e a data do conhecimento da elementar típica “coisa
que sabe ser produto de crime” (art. 180, caput).
O dolo, como conhecimento e vontade da prática de todas as elementares
objetivas do tipo legal de crime, deve ser contemporâneo à execução da conduta
proibida, ou seja, desde o início da tentativa até a consumação do crime.62 É o que
se chama de princípio da simultaneidade ou da coincidência.03 O dolo antecedente,

59. BeckOK StGB/RUHMANNSEDER, StGB, 29. Aufl., 01.12.2015, § 261, nr. 45.2; BEULKE/
RUHMANNSEDER, obra citada, nr. 193. A jurisprudência, contudo e como dito,
resolveu o problema do recebimento dos honorários advocatícios no plano do tipo
subjetivo, afirmando uma punibilidade apenas na hipótese de conhecimento seguro
da origem criminosa dos valores, cf. supra nota 6, ressaltando-se, uma vez mais, que
o § 261 define como crime o mero recebimento da coisa objeto dos crimes antece­
dentes, o que não ocorre na legislação brasileira.
60. MÚSSIG procura demonstrar que a decisão do BVerfG de 2004, na qual a corte afastou
a punibilidade por lavagem no recebimento de honorários por defensor supostamen-
te no âmbito do tipo subjetivo (exigindo dolo direto), teria, em verdade, depois de
devidamente "traduzida" para a linguagem das categorias da dogmática penal, solu­
cionado a questão no âmbito do tipo objetivo, indicando quando o recebimento de
honorários é entendido como conduta social adequada e, pois, objetivamente atípica
(MÚSSIG, Strafverteidiger ais "Organ der Rechtspflege" und die Straíbarkeit wegen
Geldwãsche - Zu (strafrechtsdogmatischen) Perspektiven der Strafverteidigung nach
dem Geldwãscheurteil des BVerG, Wistra, 6/2005, p. 201-206).
61. Vide GRECO, Imputação objetiva: uma introdução, em: ROXIN, Claus, Funcionalismo
e imputação objetiva no direito penal, Renovar, 2002, p. 30-34.
62. ROXIN, Strafrecht..., obra citada, § 12, nr. 89. No Brasil, cf. SANTOS, Juarez Cirino
dos. Direito penal: parte geral, 3 ed., 2008, p. 152.
63. RENGIER, obra citada, § 14, nr. 55.
RECEBIMENTO DE HONORÁRIOS MACULADOS 81

tanto quanto o subsequente, são penalmente irrelevantes. Aquele que, depois de


atropelar culposamente um pedestre, percebe nele seu inimigo e se regozija inter­
namente com o ocorrido, não pratica, por isso, o crime de lesões corporais dolosas
(art. 129, caput, CPB),W assim como não será punido aquele que causa um dano
culposo ao património alheio (impunível), percebendo posteriormente tratar-se
de seu rival, a quem sempre quis causar danos patrimoniais.65
Pois bem, ainda que se pudesse ultrapassar os óbices que afastam já a tipici-
dade objetiva da conduta dos Consulentes, anteriormente discutidos, não haveria
a necessária coincidência temporal entre a conduta incriminada receber e a cons­
ciência de que a coisa era produto de crime. Essa consciência sobre a elementar
do tipo objetivo, designada como componente cognitivo do dolo, é o requerimento
mínimo para a configuração do tipo subjetivo dos crimes dolosos. Mesmo aqueles
que sustentam a prescindibilidade do elemento volitivo,66 afirmam a imprescindi-
bilidade do cognitivo.07
Em nosso ordenamento jurídico, a imprescindibilidade do elemento cognitivo
para a afirmação da conduta dolosa está expressamente disposta no Código Penal:
An. 20. O erro sobre elemento constitutivo do tipo legal de crime
exclui o dolo, mas permite a punição por crime culposo, se previsto em lei.
Em outras palavras, o desconhecimento (erro) de qualquer elementar típica
afasia a ocorrência do dolo.
Segundo as informações e documentos fornecidos pelos Consulentes, o
recebimento do depósito bancário ocorreu quatro anos antes da notícia acerca da
possibilidade de que a “coisa” (quantia depositada) pudesse ser produto de crime,
que chegou ao conhecimento dos Consulentes quando, anos depois do recebimento,
foram procurados por jornalista que afirmara conhecer teor de delação premiada
no bojo da qual o delator teria relatado ter pago propina ao funcionário público
em troca de auxílio na aprovação de projetos, e que parte destes valores teriam
sido usados por referido funcionário público para pagar honorários advocatícios.
Não há coincidência, portanto, entre a data da conduta objetivamente incri­
minada - “receber” - e o conhecimento da elementar típica coisa “que sabe ser
produto de crime”. Bem o contrário, há o transcurso de mais de três anos entre esses
marcos temporais, razão pela qual impossível afirmar a coincidência entre tipo

64. O exemplo é de ROXIN, Strafrecht..., obra citada, § 12, nr. 91.


65. O exemplo também está em RENGIER, obra citada, § 14, nr. 60.
66. Um panorama da discussão em GRECO, Dolo sem vontade, em SILVA DIAS e outros,
Liber Amicorum de José de Sousa e Brito, Almedina, 2009, p. 885 e ss.
67. Ainda que seja possível discutir o que se entende por conhecimento, cf. GRECO, Dolo
sem vontade, obra citada, p. 889 e ss.
82 LAVAGEM DE DINHEIRO

objetivo e o tipo subjetivo, ou, em outras palavras, a presença do dolo no momento


da suposta prática delituosa. Formulando o mesmo juízo de outra maneira, quando
do recebimento da coisa produto de crime não tinham - e nem podiam ter - os
Consulentes conhecimento da origem criminosa do valor depositado em sua conta
corrente, com o que se afirma a incidência do disposto no artigo 20, caput, do CPB.68

IV Conclusão

Em suma:
(i) O artigo Io, § 4o, da LC 105/01, ao veicular pressuposto de necessidade da
medida de quebra de sigilo bancário (e, por analogia) fiscal, deve ser interpretado
como exigência de indício de conduta ajustável, prima facie, a algum tipo penal,
que revele causa provável de sua prática, a qual, existente, autoriza o afastamento
do sigilo.
(ii) O exame da tipicidade traduz o caráter prima facie criminoso de uma
conduta no âmbito da subsunção do fato à norma incriminadora, pois a tipicidade
traduz, na linguagem da dogmática penal, a exigência do princípio da legalidade,
primeiro passo da análise de subsunção.
(iii) O recebimento de honorários por serviços efetivamente prestados ou
contratados, cujos valores foram obtidos por meio de prática criminosa, não se
ajusta a qualquer das modalidades típicas do artigo Io da Lei 9.613/98.
(iv) A conduta igualmente não se ajusta aos tipos penais de receptação dolosa
ou culposa (art. 180, caput e § 3o, CPB), seja por ausência de objeto material, seja
por não criar risco juridicamente desaprovado, seja pela incongruência temporal
entre os fatos e a configuração do elemento cognitivo do dolo, seja pela ausência das
elementares objetivas ligadas à coisa ou à pessoa que a transmite que disparariam
o dever objetivo de cuidado (para a figura culposa).
(v) Inexistindo, prima facie, indício de conduta típica, não está configurado
pressuposto legal para a aplicação do disposto no § 4o do artigo Io da LC 105/01,
ou seja, a decretação da quebra dos sigilos bancário e fiscal.

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68. Esse mesmo argumento afastaria a tipicidade subjetiva, necessariamente dolosa, no


âmbito da análise das condutas tipificadas pelo artigo 1 ° da Lei 9.613/98, cuja análise
se mostrou desnecessária dada já a patente atipicidade objetiva.
RECEBIMENTO DE HONORÁRIOS MACULADOS 83

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