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UNIJUÍ – UNIVERSIDADE REGIONAL DO NOROESTE DO ESTADO DO


RIO GRANDE DO SUL

FERNANDA VIERO DA SILVA

PANOPTISMO E A TEORIA DOS SISTEMAS SOCIAIS: A CONSTRUÇÃO SOCIAL


DO CRIMINOSO A PARTIR DAS COMUNICAÇÕES SOCIAIS

Ijuí (RS)
2019
1

FERNANDA VIERO DA SILVA

PANOPTISMO E A TEORIA DOS SISTEMAS SOCIAIS: A CONSTRUÇÃO SOCIAL


DO CRIMINOSO A PARTIR DAS COMUNICAÇÕES SOCIAIS

Trabalho de Conclusão do Curso de


Graduação em Direito objetivando a
aprovação no componente curricular Trabalho
de Conclusão de Curso – TCC.
UNIJUÍ – Universidade Regional do Noroeste
do Estado do Rio Grande do Sul.
DCJS – Departamento de Ciências Jurídicas e
Sociais.

Orientador: Prof. Dr. Mateus de Oliveira Fornasier

Ijuí (RS)
2019
2

A todos que desafiam o comum, ou simplesmente


duvidam do óbvio.
3

AGRADECIMENTOS

Primeiramente, a minha mãe, exemplo de


profissional e grande pesquisadora, por sempre me
encorajar a fazer parte da academia e da pesquisa
científica.

Ao meu orientador, Dr. Mateus de Oliveira


Fornasier, uma grande inspiração, pelos inúmeros e
preciosos ensinamentos e orientações ao longo dos
últimos anos; e principalmente por ter realizado
meu ingresso na pesquisa acadêmica através da
iniciação científica.

A Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de


Nível Superior (CAPES), FAPERGS e ao CNPq pela
participação indissolúvel em minha jornada na
pesquisa, bem como a financiamento dessa.

Aos demais docentes do curso por inspirarem


diariamente os alunos a serem profissionais
íntegros, e, principalmente, pela dedicação ao
ensinar.

Por fim, a todos que ao longo de minha jornada


acadêmica me acompanharam ou me ajudaram da
forma que for, meu muito obrigada.
4

Eu te peço, tira teus dedos da minha garganta;


Pois embora eu não seja raivoso ou violento,
Tenho em mim alguma coisa perigosa,
Que tua sabedoria fará bem em respeitar.
Tire as tuas mãos!

(Hamlet, Shakespeare)
5

RESUMO

A presente pesquisa monográfica tem como temática abordar a perspectiva da


construção da imagem e do perfil do criminoso em meio à sociedade atual que se encontra
organizada em diversos subsistemas, como o Direito, a Economia, a Política, etc. Este
trabalho surgiu a partir de uma pesquisa teórica de método procedimental monográfico,
pautado na premissa de conhecimento de bibliografias fundamentais para seu
desenvolvimento e a metodologia desenvolvida é a sistêmica construtivista a partir da qual se
entende que a sociedade é formada por comunicações produzidas por subsistemas sociais de
sentido. O método de abordagem é exploratório e qualitativo, onde: I: primeiramente foi
realizada a seleção de obras necessárias ao desenvolver da pesquisa; II: em seguida foi
efetuada a leitura e posterior compreensão de tais obras; III: na sequência foi realizado o
fichamento destes e por fim; V: a elaboração da presente monografia. Superada a questão
histórica de punir o corpo, explorar o físico a perspectiva a ser evidenciada no presente
projeto de pesquisa aborda o ideal conhecido como “moldar a alma”, pautado no princípio da
vigilância. Analisa-se então a teoria do Panóptico composta classicamente por Jeremy
Bentham, bem como as contribuições de Foucault a tal teoria, assim como o estudo do Super
Panóptico e o Sinóptico de Mark Poster e Thomas Mathiesen, respectivamente. Se investiga
na sequência, a Teoria Sistêmica de Niklas Luhmann, que entende que a sociedade é formada
por sistemas de comunicação; e neste viés analisa-se como a construção do perfil do
criminoso se compõe em alguns dos subsistemas de Luhmann, como o Direito, a Politica, a
Economia, a Mídia e a Ciência. Finaliza concluindo que na sociedade disciplinar (a partir da
perspectiva do panóptico portanto) o criminoso é construído como aquele que se comporta de
modo oposto àqueles que o observador, tido como onipresente, pelo observado deseja; porém,
o modo pelo qual se constrói a figura do criminoso é complexo, dependendo de comunicações
de tipos diversos em vários sistemas sociais para além da política e do direito; e na sociedade
em razão da comunicação, práticas como a da exclusão de agentes que não atendem as suas
exigências são comuns, e da mesma forma, uma exclusão serve de exemplo para as demais
acontecerem.

Palavras-chave: Panoptismo. Sistemas Sociais Autopoiéticos. Criminoso.


6

ABSTRACT

The present monographic research has as its theme to approach the perspective of the
construction of the image and the profile of the criminal in the current society that is
organized in subsystems, such as the law, the economy, politics, etc. This research emerged
from a theoretical research of monographic procedural method, based on the premise of
knowledge of fundamental bibliographies for its development and the methodology developed
is the constructivist system from which it is understood that society is formed by
communications produced by social subsystems, of meaning. The method of approach is
exploratory and qualitative, where: I: first it was made the selection of works needed to
develop the research; II: then the reading and subsequent comprehension of such works was
performed; III: following this, the file was done and finally; V: the elaboration of this
monograph. Overcoming the historical issue of punishing the body, exploring the physical
perspective to be evidenced in this research project addresses the ideal known as "shaping the
soul", based on the principle of vigilance. We then analyze Jeremy Bentham's theory of
Panopticon, as well as Foucault's contributions to that theory, as well as the study of the Super
Panopticon and the Synoptic of Mark Poster and Thomas Mathiesen, respectively. Following
is investigated Niklas Luhmann's Systemic Theory, which understands that society is formed
by communication systems; In this bias, we analyze how the construction of the criminal
profile is composed in some of Luhmann's subsystems, such as Law, Politics, Economy,
Media and Science. It concludes by concluding that in the disciplinary society (from the
perspective of the panopticon therefore) the criminal is constructed as one who behaves in the
opposite way to those whom the observer, regarded as omnipresent, by the observed desires;
however, the way in which the figure of the criminal is constructed is complex, depending on
communications of various kinds in various social systems beyond politics and law; and in
society because of communication, practices such as the exclusion of agents who do not meet
their requirements are common, and likewise, an exclusion serves as an example for others to
happen.

Keywords: Panopticon. Social Systems of Autopoiese. Criminal.


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RESUMEN

La presente investigación monográfica tiene como tema abordar la perspectiva de la


construcción de la imagen y el perfil del criminal en la sociedad actual que se organiza en
varios subsistemas, como la ley, la economía, la política, etc. Este trabajo surgió de una
investigación teórica del método de procedimiento monográfico, basado en la premisa del
conocimiento de las bibliografías fundamentales para su desarrollo y la metodología
desarrollada es el sistema constructivista a partir del cual se entiende que la sociedad está
formada por comunicaciones producidas por subsistemas sociales. de significado El método
de enfoque es exploratorio y cualitativo, donde: I: primero se hizo la selección de trabajos
necesarios para desarrollar la investigación; II: luego se realizó la lectura y posterior
comprensión de tales obras; III: después de esto, el archivo estaba hecho y finalmente; V: la
elaboración de esta monografía. Superando el problema histórico de castigar al cuerpo,
explorando la perspectiva física que se evidenciará en este proyecto de investigación aborda el
ideal conocido como “dar forma al alma”, basado en el principio de vigilancia. Luego
analizamos la teoría del panóptico de Jeremy Bentham, así como las contribuciones de
Foucault a esa teoría, así como el estudio del súper panóptico y el sinóptico de Mark Poster y
Thomas Mathiesen, respectivamente. A continuación se investiga la teoría sistémica de Niklas
Luhmann, que comprende que la sociedad está formada por sistemas de comunicación; En
este sesgo, analizamos cómo se compone la construcción del perfil criminal en algunos de los
subsistemas de Luhmann, como Derecho, Política, Economía, Medios y Ciencia. Concluye
concluyendo que en la sociedad disciplinaria (desde la perspectiva del panóptico, por lo tanto)
el criminal se construye como alguien que se comporta de manera opuesta a aquellos a
quienes el observador, considerado omnipresente, por los deseos observados; sin embargo, la
forma en que se construye la figura del criminal es compleja, dependiendo de las
comunicaciones de diversos tipos en varios sistemas sociales más allá de la política y la ley; y
en la sociedad debido a la comunicación, prácticas como la exclusión de agentes que no
cumplen con sus requisitos son comunes, y de la misma manera, una exclusión sirve como
ejemplo para que otros sucedan.

Palabras llave: Panopticon. Sistemas Sociales Autopoiéticos. Criminal.


8

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ......................................................................................................................... 9

PRÓLOGO ............................................................................................................................... 12

1 PANOPTISMO E O COMPORTAMENTO (NÃO) DESEJADO................................... 17


1.1 Panoptismo: gênese, aplicação e evolução ....................................................................... 17
1.2 Panoptismo de Jeremy Bentham ...................................................................................... 18
1.3 Panoptismo de Michael Foucault ..................................................................................... 25
1.4 Super panoptismo e sinoptismo ........................................................................................ 30
1.4.1 Super panoptismo de Mark Poster .................................................................................. 30
1.4.2 Sinoptismo de Thomas Mathiesen .................................................................................. 34
1.5 Big data, monitoramento por satélite e redes sociais ..................................................... 39
1.5.1 O desenvolvimento de tecnologias: big data e o super panóptico .................................. 40
1.5.2 Monitoramento por satélite ............................................................................................. 43
1.5.3 Inteligência artificial, perfis genéticos e algoritmos ...................................................... 44

2 A EXPECTATIVA DE ESTAR SENDO OBSERVADO, A CONSTRUÇÃO


SOCIAL SOBRE O COMPORTAMENTO (IN)DESEJADO E O CRIMINOSO ........... 50
2.1 Os sistemas de Niklas Luhmann ...................................................................................... 50
2.2 O panóptico a partir da leitura sistêmica ........................................................................ 54
2.3 A construção da comunicação social sobre a figura do criminoso ................................ 56
2.3.1 A inclusão e a exclusão das comunicações sistêmicas ................................................... 56
2.3.2 O criminoso no direito e na política ................................................................................ 62
2.3.3 O excluído da economia .................................................................................................. 73
2.3.4 O criminoso na mídia ...................................................................................................... 76
2.3.5 O criminoso na ciência .................................................................................................... 81

CONCLUSÃO.......................................................................................................................... 86

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................................................. 91


9

INTRODUÇÃO

A presente pesquisa monográfica tem como temática abordar a perspectiva da


construção da imagem e do perfil do criminoso em meio à sociedade atual que se encontra
organizada em diversos subsistemas, como o Direito, a Economia, a Política, etc.

Para essa construção teórica, será realizada uma breve analise e posterior reflexão de
duas grandes teorias: a teoria do panóptico e a teoria sistêmica. O panóptico será trabalhado
sobre a perspectiva de Jeremy Bentham e Michael Foucault, enquanto que a ideia do Super
Panoptismo e o Sinóptico serão abordados nas construções literárias de Mark Poster e Thomas
Mathiesen, respectivamente. Outra grande teoria a ser abordada é a teoria sistêmica de Niklas
Luhmann e suas aplicações aos moldes de construção social atual se tratando da visão que
temos do criminoso atualmente, e de que forma a própria construção sistêmica destes opera.

Em relação ao ideal da observação a ser trabalhado, é importante entender a psicologia


que envolve tal construção teórica, uma vez que quanto mais tempo as pessoas a serem
inspecionadas estiverem sob a ótica daqueles que as inspecionam melhor, afinal é a condição
para que o princípio funcione adequadamente e seu propósito seja efetivamente alcançado.

O Super Panóptico e o Sinóptico irão integrar tais contribuições teóricas com seus
respectivos apontamentos; já no segundo capitulo a pretensão é a de se explorar para além das
bases teóricas a questão central do comportamento humano, ou seja, de que forma a
observação e a vigilância exploram a capacidade de discernimento e a condução de
comportamentos daqueles que a envolvem. Será trabalhada igualmente a construção do
criminoso nas observações sistêmicas com ênfase em especial a constituição do perfil do
criminoso no Direito e a sobreposição de códigos.
10

Para além da compreensão de termos e nomenclaturas básicas para os estudiosos da


área, é necessário abordarmos o papel da comunicação neste meio para sucessiva realização
do que podemos chamar de autopoiese, afinal os sistemas tem um fim em si mesmos. A
complexidade como tema central na teoria de Niklas Luhmann será explorada bem como a
percepção de que estes sistemas dos quais iremos tratar são operativamente abertos, mas ao
mesmo tempo cognitivamente fechados.

A questão chave a ser explorada com base é como se dá a construção do perfil do


criminoso, ou seja, quase são os fatores objetivos ou subjetivos que norteiam a construção
desta imagem? Em relação a comunicação de tais conhecimentos e informações e posteriores
fatos que ensejam tais conclusões quais são as formas de se comunicar e como há a
propagação de tais conhecimentos em meio aos subsistemas, e quais são eles?

Temos o requisito psicológico como fundamental à execução e posterior efetivação do


princípio da vigilância. As teorias trabalhadas retomam reflexões profundas acerca da
confusão entre o subjetivo e o objetivo, o sujeito e o objeto, entre o observador e o observado,
e o referencial para esse estudo é, sobretudo, sociológico.

É intrínseca nossa concepção de justiça bem como nosso ideal de sociedade


constituída, e isso se dá em razão de fatores sociais e psicológicos que são consequentemente
atrelados a nossa percepção de mundo e os posteriores critérios que adotamos para observar e
julgar determinada conduta ou agente. O que hipoteticamente pode-se ponderar é que as
medidas apresentadas têm capacidade de preservar a segurança, e se tratam de princípios
gerais capazes de ampliar a visão humana sobre o que Jeremy Bentham, por exemplo, chamou
de “um novo estado de coisas” que é igualmente capaz de difundir-se pela sociedade
civilizada (BENTHAM, 2000, p. 84).

Superada a questão histórica de punir o corpo ou explorar o físico, a perspectiva a ser


evidenciada no presente projeto de pesquisa aborda o ideal conhecido como “moldar a alma”,
pautado no princípio da vigilância.

Temos como objetivo geral, portanto, estudar como o perfil do criminoso é construído
nas comunicações sociais, em concordância com o raciocínio da teoria do panóptico no que
tange a disciplina nos comportamentos da sociedade imersa na lógica dos sistemas sociais;
11

enquanto são dois objetivos específicos: a) entender o panoptismo e os modos pelos quais
essa estratégia de observação persegue o criminoso; e b) entender como a comunicação
constrói essa noção de criminoso, que se dá nos mais diversos sistemas sociais (Direito,
Política, Economia, etc.).

A presente monografia surgiu a partir de uma pesquisa teórica de método


procedimental monográfico, pautada na premissa de conhecimento de bibliografias
fundamentais para seu desenvolvimento; será do tipo exploratória afinal visa o aprimoramento
de ideias a partir da técnica bibliográfica-documental.

A metodologia desenvolvida é sistêmica construtivista a partir do qual se entende que


a sociedade é formada por comunicações produzidas por subsistemas sociais de sentido. O
método de abordagem é qualitativo, onde: I: primeiramente fora realizado a seleção de obras
necessárias ao desenvolver da pesquisa; II: em seguida fora efetuada a leitura e posterior
compreensão de tais obras; III: na sequencia ocorreu a elaborado o fichamento destes e por
fim; V: a elaboração da presente monografia de conclusão de curso com a exposição de tais
resultados obtidos.
12

PRÓLOGO

Primeiramente, antes de adentrarmos as discussões principais da presente pesquisa,


cabe destacar que inicialmente será narrada uma história ficcional, presente no mangá japonês
“Death Note” de autoria de Tsugumi Ohba, publicado pela primeira vez no ano de 2003. Tal
ficção trás consigo situações as quais podemos visualizar parte dos assuntos a serem
discutidos e analisados no decorrer da presente pesquisa monográfica.

Light Yagami era um promissor estudante do último ano do ensino médio na região
Kanto no Japão, detentor de notas consideradas perfeitas por seus colegas e também
professores, e por essa razão não era surpresa seu QI ser igualmente invejável. Por trás de
toda educação de ponta que recebeu ao longo da vida, bem como a estrutura familiar
favorável que lhe fornece um alicerce sólido quanto as suas perspectivas futuras, o jovem não
consegue desenvolver empatia com as demais pessoas. Embora consiga disfarçar em público
em seu interior ele sabe como é crescente sua insatisfação com a sociedade, que é vista por ele
como “podre” (OHBA, 2012, s.p.).

Para o jovem o próprio Direito Penal perdeu sua função e tornou-se meramente
simbólico, enquanto que autoridades policiais por sua vez não cumprem seu papel de proteger
os cidadãos “de bem” daqueles que causam o caos social, denominados por si como
“marginais”, “bandidos” ou simplesmente “criminosos” que são desnecessários em sua ótica.

O jovem estudante tem sua percepção social bastante objetiva e inflexiva, não
permitindo, portanto, que circunstâncias pessoais adentrem seus conceitos e saberes
concretos. Ao esboçar suas opiniões não oferece emoção, sendo impiedoso e implacável, o
13

que pode ser explicado também pelo estilo de vida que leva, regrado, cético e desprovido de
relações íntimas até mesmo com a própria família.

Tal insatisfação narrada e desencorajamento nos sistemas punitivos o levam a tomar


medidas drásticas, quando esse decide se intitular o “deus do novo mundo”. Ao final de mais
um turno letivo o jovem se depara com algo curioso em uma calçada, que parece inicialmente
se tratar de uma piada; mesmo em meio à chuva o jovem decide pôr as mãos em um caderno
intitulado como “Caderno da Morte”, que lhe demonstra possuir um poder inacreditável, e
que é duvidado inicialmente pelo jovem.

As regras expostas nas primeiras folhas do caderno são claras: escreva o nome de
qualquer pessoa e mentalize seu rosto que essa morrerá em 40 segundos, vítima de ataque
cardíaco; se preferir, no ato de escrever o nome de alguém poderá definir a forma com a qual
a pessoa virá a óbito, entretanto terá um tempo determinado para narrar as condições de sua
morte antes que ela aconteça, e assim será. Light, inicialmente duvida dos “poderes” do
caderno, achando ser realmente alguma “pegadinha de mau gosto” (OHBA, 2012, s.p.).

Horas depois, dominado pela fúria ao ver um telejornal retratar um crime em sua
cidade ele descobre que o tal caderno não se trata de uma simples brincadeira, e que ele tem
em mãos um verdadeiro instrumento de repressão social jamais visto antes, uma vez que o
aparentemente simples caderno dá ao seu detentor a façanha de matar aquele que escrever seu
nome ali, desde que este visualize o rosto da vítima em sua mente (para que pessoas com o
mesmo nome não sejam afetadas).

Tal proeza faz com que Light tenha a iniciativa de decidir “limpar a sociedade”
eliminando assim os “indesejados” por ele, ou seja, pessoas que ele considera infratoras e,
portanto, desnecessárias ao progresso e prosperidade social. O jovem inicialmente se limita a
matar aqueles criminosos aos quais aparecem em noticiários na mídia ou outros veículos de
informação, bem como nomes que se lembra em sua cabeça inicialmente, causando assim um
verdadeiro expurgo.

Em sequência decide anotar no caderno, com condições de óbito formuladas por si, os
criminosos mais procurados do mundo, bem como os que praticaram crimes que na visão dele
são repudiáveis, e já estão presos. Tendo suas ações devidamente impactadas à sociedade ele
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perde-se na própria mentalidade deficiente de que irá se proclamar o “deus do novo mundo” e
a partir daí se percebe um caráter sádico em sua fala e nas suas ações bem como sua frieza
emocional.

Light se utiliza justamente do princípio da vigilância para atribuir a si mesmo poder e


moldar as condutas da sociedade conforme seus parâmetros sociais, e passa a prevenir que os
índices de criminalidade subam, afinal as pessoas tem a consciência de que alguém está as
observando e as eliminando, alguém onipresente, onisciente e onipotente que elas inclusive
chamam de “Kira” (expressão decorrente do termo Killer, que significa matador).

Kira parece estar em todo lugar e é capaz de matar alguém sem ao menos estar diante
da pessoa e isso parece funcionar de fato, visto que estes índices realmente diminuem
tamanho o medo da sociedade. Inclusive, surgem blogs e paginas na internet de fãs de Kira,
que ameaçam seus desafetos dizendo que se eles não pararem de lhe incomodar, vão colocar o
nome e a foto deles online para Kira os eliminar, banalizando todo o contexto apresentado,
onde simples frustações e descontentamentos para a sociedade já servem como vitimas em
potencial.

É interessante ressaltar nesse momento da história a sociedade se divide, entre aqueles


que têm medo e aqueles que se sentem protegidos verdadeiramente e de certa forma,
vingados. Ao longo da trama, que teve diversas adaptações cinematográficas, Light encontra
uma forma de acessar dados policiais (em razão de seu pai ser um) onde constam nomes não
só de procurados, mas como de suspeitos e investigados e decide começar a “eliminar” essas
pessoas por prevenção.

Quando o Federal Bureau of Investigation (FBI) e a Central Intelligence Agency


(CIA) se envolvem decidindo investigar “Kira” por aceitarem que as mortes repetidas de
criminosos por ataque cardíaco (em sua maioria) não são apenas coincidências e possuem um
caráter criminal em seus resultados acabam por alimentar ainda mais a mentalidade sádica do
jovem que passa então a trabalhar na própria força policial por ironia. O investigador principal
do caso, o jovem antissocial “L” (que já desvendou muitos mistérios no passado) passa a
trabalhar diretamente com a polícia japonesa após conseguir descobrir que Kira curiosamente
se encontra no Japão.
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L percebe que as primeiras vítimas eram pessoas da região Kanto no Japão, e entende
que serviram como “testes” para Kira testar seus poderes (sejam eles quais forem) e então faz
uma transmissão nessa região, dizendo que se trata na verdade de uma internacional. Nessa
coletiva, um homem dizendo ser o detetive L expõe seu nome real, este sendo “L. Lind
Taylor” e monstra seu rosto ao ameaçar Kira dizendo que não irá descansar até descobrir
quem ele é.

Light assistindo a coletiva, irado ao ser desafiado escreve o nome do “suposto” L em


seu Death Note e acaba o matando de ataque cardíaco após 40 segundos; o que ele não
contava é que o homem que ele matou se tratava de um condenado que iria ser executado em
5 dias e que tudo foi forjado para ver se Kira realmente tinha a capacidade de matar alguém
sem estar no local. Posteriormente a isso, L revela que a coletiva só foi transmitida na região
Kanto, então Kira acabou de confirmar sua localização.

Com tal “afronta” Light decide descobrir quem é L para matá-lo, e continua a executar
criminosos apenas para irritá-lo e reforçar seu poder. Nesse contexto inicia-se uma batalha
psicológica entre ambas as partes, afinal Light agora também está sendo observado. Em
determinado ponto da história, Light conhece Misa Amani, uma jovem fã de Kira pelo fato
dele ter executado o assassino de seus pais, e assim decide usar a jovem como álibi perante a
família, dizendo se tratar de sua namorada.

Posteriormente, um segundo caderno entra em cena e para nas mãos de Misa, que
agora é capaz de identificar Light como Kira, e além de o idolatrar se apaixona pelo mesmo; o
que ocorre é que o rapaz nem sequer se preocupa com o bem-estar da mulher, e apenas a
mantêm perto por ela ser útil, afinal esta virou sua cúmplice e pode executar pessoas enquanto
ele está fazendo outros afazeres.

Ao ingressar na faculdade, Light segue executando pessoas, só que dessa vez de forma
mais elaborada para confundir as forças policiais, enquanto que L está no Japão trabalhando
ao lado do pai do mesmo. Alguns agentes americanos por indicação de L são enviados para o
caso, mas Light consegue executá-los ao acessar seus dados em uma pasta, e no caso de um
em especial, decide matar a sua noiva também “por precaução”. Nesse momento, Light passa
a matar impiedosamente qualquer pessoa que cruzasse seu caminho, com ou sem ficha
criminal.
16

L ao começar a desconfiar que algum dos membros das famílias de um dos policiais
do caso poderia ser Kira instala câmeras na casa destes para observar o comportamento de
todos os membros (obviamente sem estes saberem, apenas com a anuência dos policiais).
Light, entretanto, descobre que está sendo observado e passa a “driblar” o sistema de
vigilância através de Misa, e do caderno da mesma.

L, ao desconfiar da rotina “impecável” do jovem, passa a tê-lo como principal suspeito


e assim, decide se apresentar pessoalmente como L, mas sem lhe dizer seu nome para que o
mesmo não seja capaz de lhe matar; e se mesmo assim isso acontecer seus funcionários
saberão exatamente quem é Kira. Assim, Light além de não saber o real nome de L, não pode
o matar para não se “entregar” automaticamente.

Assim, se instaura uma grande batalha psicológica entre ambos, onde Light
desenvolve novas formas de utilizar o Death Note, bem como se utiliza de outras pessoas para
cumprir seus desejos, e assim segue com suas convicções. A situação apenas se complexifica
quando ele passa a trabalhar como investigador policial ao lado de L, após se graduar na
faculdade, e assim passa a investigar a “ele mesmo” sendo constantemente observado por L.

Quando questionado pelo verdadeiro dono do caderno, um ser mitológico denominado


“Ryuk” que se entretém por toda a trama, Light lhe responde de forma sádica o porquê ter
iniciado tudo aquilo: porque ele estava “entediado” (OHBA, 2012, s.p.).
17

1 PANOPTISMO E O COMPORTAMENTO (NÃO) DESEJADO

O presente capítulo da pesquisa monográfica tem como objetivo abordar a perspectiva


da construção da imagem e do perfil do criminoso em meio a sociedade, e para essa
construção teórica será realizada uma breve análise e posterior reflexão de uma grande teoria:
a teoria do Panóptico, afim de estudarmos o princípio da vigilância e como essa opera no
indivíduo observado.

O Panóptico será trabalhado sob a perspectiva de Jeremy Bentham e Michael


Foucault, enquanto que a ideia do Super Panóptico e Sinóptico serão retratados nas
construções literárias de Mark Poster e Thomas Mathiesen respectivamente; onde objetiva-se
o estudo da observação em meio à sociedade contemporânea.

Ainda, serão trabalhadas noções básicas do que podemos entender como vigilância
contemporânea através da análise, por exemplo, da big data, redes de comunicação, sistemas
de monitoramento em presídios e até bancos de perfis genéticos a fim de contextualizarmos a
sociedade atual em meio a evolução da tecnologia.

1.1 Panoptismo: gênese, aplicação e evolução

É intrínseca nossa concepção de justiça bem como nosso ideal de sociedade


constituída, e isso se dá em razão de fatores sociais e psicológicos que são consequentemente
atrelados a nossa percepção de mundo e os posteriores critérios que adotamos para observar e
julgar determinada conduta ou agente.

Embora trabalhado por diversos autores, ao estudarmos a teoria do Panóptico,


precisamos nos pautar em quem classicamente lhe compôs: Jeremy Bentham. Somos
introduzidos a essa lógica através de uma série de cartas do mesmo, cujo autor relata nunca ter
tido como propósito sua publicação, mas assim feito, ressalta que não houveram quaisquer
alterações profundas nestas; e que tal acontecimento se deu por meio da imprensa irlandesa -
que atenta as observações trazidas no escopo das cartas, emitiu assim uma disposição
favorável do governo em fazer um teste em seu sistema penitenciário.
18

A gênese do panóptico de Bentham inclui o excluído como mão de obra da indústria


preliminarmente e assim, vislumbramos inicialmente, de forma crua o que temos como o
Panóptico clássico, que mais adiante é equipado com as noções de Foucault ao incorporar à
temática seus apontamentos e constatações.

Entretanto, a lógica do desenvolvimento é implacável e embora o princípio da


vigilância se demonstre atual, suas implicações e posteriores aplicações se vislumbram de
forma diferente no pós-modernidade, como Mike Poster e Thomas Mathiesen são capazes de
nos ensinar, criando por assim dizer, suas releituras do que seria uma nova forma de se
observar o princípio da vigilância.

1.2 Panoptismo de Jeremy Bentham

A ideia do princípio de inspeção de Jeremy Bentham parte da premissa das “casas de


correção” e de qual forma as sugestões do autor poderiam agregar a tal modelo, sendo assim
válidas para quaisquer estabelecimentos cuja faixa territorial não seja extensa – já que estes
devem ser controlados e dirigidos por edifícios que devem ser inspecionados (BENTHAM,
2000, p. 18).

Sob a ótica de Bentham (2000, p. 19) vários podem ser os propósitos para a inspeção
de um determinado número de pessoas, “[...] seja o de punir o incorrigível, encerrar o insano,
reformar o viciado, confinar o suspeito, empregar o desocupado, manter o desassistido, curar
o doente [...]”. O autor salienta também, que tais razões pelas quais os sujeitos foram para
estas casas podem inclusive ser controversas e incompatíveis entre si, mas que devem sofrer
os mesmos efeitos da principiologia da observação uma vez que todos esses objetivos podem
ser alcançados em conjunto, e ainda conquanto eles estejam lá, saber quais os motivos que os
levaram até lá é completamente irrelevante (BENTHAM, 2000, p. 20-34) desde que
observados os rigores necessários e a finalidade de sua inspeção seja atingida.

Em relação ao ideal da observação é importante entendermos que quanto mais tempo


as pessoas a serem inspecionadas estiverem sob a ótica daqueles que as inspecionam melhor,
afinal é a condição para que o princípio funcione adequadamente e seu propósito seja
efetivamente alcançado. Bentham (2000, p. 20) destaca que um suposto ideal de perfeição
19

dentro desta teoria seria se cada indivíduo realmente estivesse nesta condição de observação
contínua, mas sendo isso inviável o que se deseja, portanto, é que o sujeito acredite
efetivamente que está nessa condição, ou seja, sendo observado a todo momento e assim se
crie uma sistemática onde não haja razão para o indivíduo pensar o contrário.

A ideia geral do autor sobre a estrutura da casa de inspeção é de que esta se trata de
um edifício circular, onde os apartamentos ou simplesmente celas dos prisioneiros ocupam os
arredores deste e que essas celas, são separadas entre si, para que não haja de forma alguma
comunicação entre os prisioneiros; o alojamento do inspetor fica no centro e a distância entre
este mesmo alojamento e as demais celas seria chamado de área anular ou intermediária. A
ideia é de que cada cela tenha uma janela grande o suficiente não só para permitir a entrada da
luz como também para que seja possível uma boa visão por parte do inspetor, além de
partições prolongadas que devem servir ao propósito de não permitir que haja possibilidade
dos presos terem contato visual. Ainda sobre as celas, elas serão naturalmente mais espaçosas
ou menos espaçosas de acordo com o uso que se planeja fazer delas (BENTHAM, 2000, p.
21-24).

No interior das celas se localizam grades de ferro, preferencialmente finas, que não
dificultem a visão do inspetor e entre estas um espaço razoável para uma porta, por onde se
dará a entrada do prisioneiro em um primeiro momento e que servirá também para o inspetor
e seus possíveis assistentes. É importante ressaltarmos a presença de lâmpadas próximas às
janelas e tubos de metal que passariam pela área anular e comunicariam o espaço onde o
prisioneiro se encontra e o alojamento do inspetor, bem como serviria também para atender as
possíveis instruções dadas pelo observador em questão ao prisioneiro. Estes tubos além de
evitarem o esforço de voz excessivo por parte do inspetor, resguardam o silêncio necessário
que se deve ter nas casas de inspeção e também, a possibilidade de haver uma multiplicidade
de inspetores e inspecionados (BENTHAM, 2000, p. 22).

Um sino, que funcionaria como espécie de alarme estaria suspenso no que o autor
denominou “campanário” e se comunicaria através de uma corda com o alojamento do
inspetor; acerca do aquecimento das celas, esse fenômeno ocorreria da seguinte forma: através
de tubos aos arredores destas cujo funcionamento (e a necessidade da criação do calor
artificial por si só) seria semelhante ao que ocorre nos viveiros, e as correntes de ar aquecidas,
20

produzidas pelas fornalhas, entrariam em contato com os presos através de tubos internos
(BENTHAM, 2000, p. 23).

Bentham (2000, p. 24) discorre sobre as dimensões que acredita serem essenciais à
casa de inspeção e ainda salienta que se o edifício que for demasiadamente pequeno, a
circunferência não será grande o suficiente para permitir um número suficiente de celas.
Sobre a profundidade dos alojamentos, seria de 13 pés (aproximadamente 4 metros), enquanto
que, a distância do exterior do edifício ao alojamento seria de 32 pés (em torno de 10 metros).
Ainda temos que, segundo o autor, essa hipótese de edifício contará ainda com elevações e
medidas diferenciadas logo, cada andar comportará um número diverso de presos
(BENTHAM, 2000, p. 25-26).

O autor dispõe sobre a capacidade de lotação dos edifícios e entende que o número de
presos deve atender a finalidade ou propósito da instituição à qual tal edificação é dedicada; o
que é pertinente entendermos neste momento é o que Bentham (2000, p. 27) chama de “força
inspecional”, ou seja, a possibilidade de substituição de inspetores e suas respectivas rondas,
além da ideia de gratificação que seria criada aos presos com a existência de oportunidades de
se ter um arejamento através de áreas como, por exemplo, um “jardim-cozinha”. Ressalta-se a
todo momento a necessidade de uma vigilância constante também para a custódia segura dos
presos, vista como indispensável, uma vez que esta é o alvo de severas críticas a outras
proposições feitas na história.

De forma geral, é possível entendermos a partir dos apontamentos de Bentham (2000,


p. 29) que o ponto essencial da sua proposição se foca justamente na centralidade da
vigilância, bem como do inspetor, uma vez este é o único que tem uma visão ampla dos
inspecionados; e ainda é importante, em todos os casos, que o inspetor possa ter a satisfação
de saber que a disciplina realmente tenha o efeito para o qual é planejada.

Por mais que se crie uma ideia essencial de observação à qual o preso se condiciona
(mesmo que em um determinado momento ele não esteja sendo inspecionado) é necessário
que a inspeção seja feita sempre na medida em que atenda sua demanda de eficácia, afinal nas
palavras do autor “quanto maior for a probabilidade de que uma determinada pessoa, em um
determinado momento, esteja realmente sob inspeção, mais forte será a sua persuasão”
(BENTHAM, 2000, p. 30) e assim mais intenso será o sentimento que ele tem de estar sendo
21

observado e maior será a constância de durabilidade destes efeitos e do propósito geral da


ideia da observação.

O Panóptico de Jeremy Bentham traz consigo edificações diversificadas, mas que


ainda atendem ao propósito de vigilância e sob o que seria considerado para o autor como o
mecanismo ideal de controle social. Baseado nos detalhes fornecidos ao longo de sua
bibliografia é possível entendermos que falamos sobre alguns aspectos sob o panorama da
observação geral e assim, a incapacidade do observado de ver o inspetor é justamente onde se
dá a finalidade da teoria. Dificilmente o observado se verá livre de imaginar coisas, e a
experiência advinda da diferença do rigor e no tratamento das inspeções (por delitos leves ou
mais graves) ensinará o inspecionado efetivamente sobre seus atos e respectivas repercussões
(BENTHAM, 2000, p. 30).

É de extrema importância salientarmos que a aparente onipresença do inspetor


combinada com a sua real presença é uma das vantagens que o plano institui, entretanto, o
planejamento estabelecido tem como efeito colateral o número de inspetores exigidos e a
existência de subinspetores, afinal: quem guarda os próprios guardas? Para essa pergunta
podemos nos arriscar em uma breve resposta: dominar o guarda requer uma união de mãos e
um concerto entre mentes (BENTHAM, 2000, p. 31-36).

Outra vantagem na ótica do autor é a grande carga de problemas e desgostos que tira
dos ombros daqueles ocasionais inspetores de uma posição superior, tais como juízes e outros
magistrados (BENTHAM, 2000, p. 32). É interessante salientarmos que sob o ponto de vista
de Bentham a eficácia na vigilância não deve ocasionar enfermos (que poderia ocorrer por
exemplo pela alta quantidade de detentos); mas o receio que se cria entre os inspecionados já
é o suficiente para as medidas de coerção subsidiárias à inspeção se cumpram. Neste contexto
também, é necessário entendermos as diferentes finalidades as quais a inspeção pode se
destinar (BENTHAM, 2000, p. 35).

A casa penitenciária para Bentham (2000, p. 36) deveria ser planejada ao mesmo
tempo como um local de custódia segura e como um local de trabalho. Todos esses locais
devem necessariamente ser sob a ótica do jurista inglês, um hospital, uma vez que no mínimo
haverá pessoas doentes (mesmo que não se ofereçam meios para sua cura). Entre seus
propósitos devemos destacar seu caráter combatente a fugas, permitindo assim um grau de
22

segurança que é raramente obtido na prática. Destaca-se também entre seus benefícios a não
aglomeração e tumulto de inspecionados.

Em termos econômicos o autor estudado afirma que faria tudo por contrato, como uma
cessão dos lucros, dos não lucros ou das perdas, àquele que, sendo em outros aspectos pouco
excepcional, oferecesse as melhores condições e ainda destaca a existência de contadores
responsáveis por relatórios que, quando publicados serão verdadeiros porque tendo o poder
para fazer qualquer coisa que lhe seja vantajosa, não há nada que seja de seu interesse
esconder; dada a punição por perjúrio, é evidente seu interesse em nada esconder
(BENTHAM, 2000, p. 39). Seria essa uma forma de inspeção dos próprios gestores do
Panóptico?

Ainda sobre os contadores surge o seguinte questionamento: que poderes ele terá em
suas mãos como meio de persuadi-los a adotar aqueles ofícios? Para Bentham (2000, p. 49):
“[...] a forma mais breve de responder a essa questão será dizendo-lhe que poderes ele não
terá [...] pois ele não poderá deixá-los (os inspecionados) morrerem de inanição e outros
descuidos por exemplo”. Sobre os responsáveis pela fiscalização e inspeção é necessário que
incida sobre estes uma lógica então de que sejam recompensados ou castigados por seus atos;
sem castigo ou sem lucro obtido por meio dos frutos de seu trabalho, como se pode assegurar
que um homem faça um único gesto de trabalho? (BENTHAM, 2000, p. 50).

Sobre a aplicação de punições aos detentos é possível percebermos a concepção da


ideia do livro de correções, afinal a casa de correção não deve tornar-se um centro de tirania,
sendo este método aplicado somente a casos onde se tem devida necessidade, como podemos
observar neste excerto extraído:

Se [...] necessário insistir na ideia de que algum poder corretivo é absolutamente


necessário – por exemplo, no caso de um prisioneiro atacar um guarda [...] esse
poder, embora menos necessário aqui do que em qualquer outro lugar, poderá, por
outro lado, ser concedido com menos risco. Que tirania poderia subsistir sob um
sistema tão perfeito de reclamação quanto o que resulta de um sistema tão perfeito
de inspeção? (BENTHAM, 2000, p. 51).

Ao dissertar sobre os meios de se extrair o trabalho dos inspecionados, a lógica de


Bentham (2000, p. 53) é a seguinte: “se um homem não trabalhar, ele não tem nada a fazer, da
manhã à noite, a não ser comer seu duro pão e tomar sua água [...] se ele trabalhar, seu tempo
23

será ocupado, e ele terá sua carne e sua cerveja, ou seja, lá o que mais seus ganhos lhe
permitirem”. Neste raciocínio o que resta então é pensar em formas que possibilitariam que os
observados aplicassem seu potencial máximo em seus ofícios, e para responder este
questionamento temos que o sujeito não fará um gesto sem conseguir alguma coisa, a qual ele
não obteria de outra forma e esse estímulo é necessário para que ele dê o máximo de si.

O trabalhador, por causa do estigma que lhe é atribuído em virtude de sua reclusão,
provavelmente terá dificuldade em obter emprego em outro lugar (BENTHAM, 2000, p. 54),
logo o autor prevê a possibilidade da manutenção do vínculo de trabalho, principalmente
àqueles que vieram de localidades mais pobres, cuja percepção da realidade é naturalmente
mais dura e escassa. Essa visão de certa forma pode ser analisada inclusive como uma medida
para economizar com este plano, afinal equipar uma casa penitenciária gera custos, mas
equipar igualmente a força motriz humana traz benefícios que sobrepõem estes gastos.

Sobre a custódia de sujeitos antes da sentença, resta dissertamos sobre o


funcionamento de casas penitenciárias para a custódia segura, e sobre a custódia dos
“insanos” ressaltada a necessidade de estes estarem distantes dos demais inspecionados por
crimes levianos por exemplo. Por óbvio os hospitais tem a função do alívio do enfermo e tem
em sua equipe além de curandeiros, parteiros e médicos que por fim poderão controlar com a
menor dificuldade possível tanto quanto eles quiserem o progresso da doença e da influência
do remédio, bem como determinarão a separação de celas, que nestes casos não será somente
por conforto, mas também por decência (BENTHAM, 2000, p. 71).

Uma prisão nesta lógica, como podemos observar então incluí um hospital; em prisões
construídas de acordo com este plano toda cela pode receber as características de um hospital,
sem que para isso seja necessária qualquer mudança (BENTHAM, 2000, p. 73).

Uma das cautelas que podemos destacar obviamente é a do estudo e de sua aplicação,
que decorrerá do ato de corrigir o rigor das inspeções entre os sujeitos, e ocorre com o
confinamento dos inspecionados divididos por telas a horas de estudo. Em relação a isso
Bentham (2000, p. 75) destaca que: “[...] aqueles pensamentos de arrependimento pela tarefa
irrealizada, aquelas lutas cruéis entre a paixão pelo brinquedo e o temor da punição não terão
vez aqui”.
24

Neste ponto podemos concordar que a teoria certamente se difere da prática, e tal
entendimento é inclusive firmado pelo próprio autor que esteve sempre aberto a sugestões. O
que concluí é que as medidas apresentadas tem capacidade de preservar a segurança, e se trata
de um princípio geral e capaz de ampliar a visão humana sobre o que chamou de “um novo
estado de coisas” que é igualmente capaz de difundir-se pela sociedade civilizada
(BENTHAM, 2000, p. 84).

O modelo clássico de custódia pode até parecer natural para alguns, entretanto quando
consideramos a ampla variedade de propósitos aos quais este princípio pode ser aplicado e a
eficácia certa que ele promete cumpri-los, o que é passível de se questionar é que não só esse
plano nunca foi até o momento posto em prática de forma eficaz, mas que não se tenha em
algum momento sequer pensado em outro modelo (BENTHAM, 2000, p. 83).

De acordo com Perrot (2000, p. 127), o panóptico não é apenas um modelo de prisão,
mas também um plano exemplar para todas as instituições educacionais de assistência e de
trabalho, e se trata também de uma solução econômica para os percalços do encarceramento.
Nesse raciocínio o caráter mais surpreendente do panóptico é de fato a sua pretensão de servir
como uma espécie de solução uniforme para todas as instituições possíveis arquiteturas de
vigilância (PERROT, 2000, p. 159).

Para Miller (2000, p. 89), o panóptico não se trata de uma prisão, mas sim em um
princípio geral de construção através da vigilância, uma “maquina óptica universal” das
massas sociais. A leitura de Bentham para o autor sugere de forma clara e prática que o
panóptico não terá destinação única, servirá não apenas para aprisionar os indivíduos, mas
também servirá como escolas, asilos, hospitais etc.

A configuração do Panóptico instaura para Miller (2000, p. 90) uma dissimetria


brutal de visibilidade, onde o olhar do observado se dissimula e no edifício opaco e
circular, “é a luz que aprisiona” e justamente nessa lógica é que podemos entender
os dois princípios fundamentais do panoptismo: a posição central da vigilância e sua
invisibilidade ante ao olhar. Que o olho veja, sem ser visto – aí está o maior ardil do
Panóptico. Se posso discernir o olhar que me espia, domino a vigilância, eu a espio
também, aprendo duas intermitências, seus deslizes, estudo suas regularidades,
posso despistá-la. Se o Olho está escondido, ele me olha, ainda quando não me
esteja vendo. Ao se esconder na sombra, o Olho intensifica todos os seus poderes
[...] (MILLER, 2000, p. 91).
25

O panóptico gera a situação onde todos os destinatários de sua aplicação, quais sejam:
o prisioneiro, o pobre, o louco, o estudante, o doente estão entregues a racionalidade e aos
dispositivos, afinal o panóptico acolhe os constrangidos e os leva a renunciar a toda iniciativa
(MILLER, 2000, p. 94).

1.3 Panoptismo de Michael Foucault

Foucault inicia sua contribuição ao relatar o que chamou de “medidas necessárias” no


regulamento do fim do século XVII, período marcado pela peste, e apresenta então, um
modelo de vigilância sindical onde há um policiamento espacial estrito e a proibição de sair
por parte dos moradores sob pena de morte (FOUCAULT, 1999, p. 162). Segundo o autor,
nessa sistemática cada rua é colocada sob a responsabilidade de um síndico, que deverá
responsabilizar-se igualmente pelos relatórios acerca da situação de sua vigilância, chamados
de registros permanentes. Este mesmo síndico também está sob o encargo de trancar as portas
das residências das famílias.

O ato de circular é vedado, mas se necessário deve se dar por meio de turnos para que
não haja contato entre os habitantes, e essa é justamente a sistemática colocada em questão
pelo o autor: o ato da não comunicação, inclusive com os fornecedores, que estarão a cargo de
fazer o abastecimento dos cidadãos. O ato da inspeção é constante, há uma milícia
responsável por isso, logo torna-se imprescindível o funcionamento do que podemos chamar
de “quarentena”.

A vigilância assim se constrói justamente através de relatórios e de uma “apuração” de


dados dos habitantes, os organizando por raça e gênero para que haja um maior controle e
firmeza na observação (FOUCAULT, 1999, p. 163).

As casas são purificadas logo no início da quarentena e mesmo os espaços fechados


são vigiados a todo instante através da lógica da inserção dos moradores em pontos
estratégicos dos locais que habitam, limitando-os também a movimentos controlados.
Segundo a ótica de Michel Foucault isso gera de certa forma disciplina e o que podemos
extrair de sua visão clara sobre o assunto é que a disciplina faz valer seu poder, que é de
análise (FOUCAULT, 1999, p. 164). Ainda nessa lógica, ocasiona-se um esquema disciplinar
26

que decorre justamente de separações múltiplas a distribuições individualizantes, que geram


um policiamento tático meticuloso.

O que é possível extrairmos destas constatações é que há uma diferença entre um


grande fechamento e o bom treinamento; enquanto que um segrega, o outro disciplina. Um
funciona através de “marcas” e o outro é uma lógica onde justamente se analisa e se reparte a
sociedade; entretanto, Foucault (1999, p. 164) sobrepõe ambas as ideias ao analisar que, a
peste por um lado é a forma de se exercer um certo poder disciplinar, que ele inclusive
denomina de “utopia da cidade perfeitamente governada”.

É interessante ressaltar que em uma das discussões suscitadas Foucault relata que para
concretizar-se o chamado “estado de natureza” pensado pelos juristas e magistrados os
governantes idealizavam a realidade pestilenta, afinal a peste segundo suas conclusões está na
base do esquema da exclusão, criando uma habitação humana simbólica. Ele aborda também
que o poder disciplinar utilizado no século XIX, como as casas de correção, penitenciárias,
asilos e institutos de ensino vigiados eram, mesmo com seus funcionamentos destinados a
finalidade diversas, formas de vigilância e controle individual funcional que operavam de um
modo duplo: o da marcação com a da divisão binária e da determinação coercitiva
(FOUCAULT, 1999, p. 165).

Para Foucault (1999, p. 166), o panóptico de Bentham é a “figura arquitetural” de toda


essa composição, afinal traz em um de seus princípios a noção da construção material de um
sistema lógico de observação onde os vigiados se encontram nas extremidades, e uma torre
central acomoda inspetores; e ainda, segundo o mesmo essa principiologia trouxe a
automatização e desindividualização do poder (FOUCAUT, 1999, p. 167). A grande
sistemática do panoptismo é, portanto, o nascimento de uma sujeição real decorrente de uma
mecanização fictícia, afinal não é necessariamente a força que fará o indivíduo a sujeitar-se ao
bom comportamento, além de que concede uma certa leveza ao sistema por não se findar
apenas no uso de grades e correntes.

É possível extrairmos dos ensinamentos de Foucault que o panóptico “funciona como


uma espécie de laboratório do poder” em decorrência de seus mecanismos de observação e
controle, e tem sua eficácia sustentada na capacidade de penetração no comportamento dos
homens na superfície em que se desenvolve. Desta forma, é correto afirmarmos que o autor
27

através destes apontamentos desenvolve a ideia de que o panóptico é, portanto, um modelo


generalizável de funcionamento, afinal se trata de uma maneira de definir as relações
humanas e tem poder sobre a vida e cotidiano dos indivíduos (FOUCAULT, 1999, p. 169-
170).

Logo podemos concluir que o panóptico é sim uma forma de projeção mesmo que
variável de uma realidade, e tem uma polivalência de aplicações e destinos. O esquema
panóptico é destinado a se “difundir no corpo social” e tem por objetivo tornar-se uma função
generalizada (FOUCAULT, 1999, p. 171).

A extensão das instituições disciplinares passa por diversos processos mais profundos
segundo Foucault (1999, p. 173-176) como: a) a inversão funcional da disciplina (com a
neutralização de perigos); b) a ramificação de mecanismos disciplinares (com
desinstitucionalização dos mecanismos em contrapartida da multiplicação da disciplina); e c)
a estatização dos mecanismos de disciplina – com a instrumentalização da vigilância
permanente.

O autor entende em meio as suas constatações que o ponto ideal da penalidade seria a
disciplina infinita, um interrogatório sem termo, um inquérito sem limite, fruto de uma
observação minuciosa e cada vez mais analítica (FOUCAULT, 1999, p. 187); a observação
por si só, prolonga-se, e a justiça então é “invadida” por métodos disciplinares e seus
processos. O que podemos questionar, portanto, é: Seriam as instâncias de vigilância uma
nova forma de encarar o instrumento moderno da penalidade? (FOUCAULT, 1999, p. 189).

Conclui-se com a leitura que a disciplina não é uma forma de instituição afinal, nem
um aparelho desta; mas sim, uma forma de poder (FOUCAULT, 1999, p. 177); e que neste
poder existem instâncias capazes de reforçar ou reorganizar seus mecanismos. Tal poder de
certa forma assume a presunção de espetáculo como também contribuí com profundas
mudanças no sistema jurídico através de sua capacidade de dar desuso a problemas de massa
(FOUCAULT, 1999, p. 183).

Aprofundando-se neste panorama, sempre se ressalta que a disciplina exerce seu


controle, não sobre o resultado de uma ação, mas sobre seu desenvolvimento e que a
disciplina é uma técnica de poder que acaba por ser uma forma de vigilância perpétua e
28

constante dos indivíduos. Foucault (1979, p. 62-63) entende que para que a disciplina ocorra,
é preciso vigiar o indivíduo durante todo o momento o submetendo ao que ele chama de
“perpétua pirâmide de olhares”. Desta forma, podemos entender a partir destes apontamentos
que a disciplina se trata, portanto, de um registro contínuo.

De fato, o poder em seu exercício vai muito mais longe, passa por canais muito mais
sutis, é muito mais ambíguo, porque cada um de nós é, no fundo, titular de um certo
poder e, por isso, veicula o poder. O poder não tem por função única reproduzir as
relações de produção. As redes da dominação e os circuitos da exploração se
recobrem, se apoiam e interferem uns nos outros, mas não coincidem (FOUCAULT,
1979, p. 92).

O sistema do direito, o campo judiciário são canais permanentes de relações de


dominação e o direito para Foucault (1979, p. 102) deve ser visto como um procedimento de
sujeição, que ele desencadeia e não como uma legitimidade a ser estabelecida. Para o autor, o
momento em que se percebeu ser (segundo a economia do poder) mais eficaz e mais rentável
vigiar do que punir, “estabeleceu-se um novo tipo de exercício do poder” (FOUCAULT,
1979, p. 74).

É interessante demonstrarmos que o filósofo tem uma hipótese: a de que a prisão


esteve, desde sua origem ligada a um projeto de transformação dos indivíduos e desde o
começo e a prisão deveria ser um instrumento tão aperfeiçoado quando a escola, a caserna ou
o hospital, e agir com precisão sobre os indivíduos (FOUCAULT, 1979, p. 75). Em uma de
suas colocações, Foucault (1979, p. 76) ressalta que a prisão foi um grande instrumento de
recrutamento e a partir do momento que alguém entrava na prisão se acionava um mecanismo
que o tornava infame, e quando saía, não podia fazer nada senão voltar a ser delinquente.

Foucault (1979, p. 92) visa com o panoptismo um conjunto de mecanismos que ligam
os feixes de procedimentos de que se serve o poder e entende que este foi “uma invenção
tecnológica na ordem do poder, como a máquina a vapor o foi na ordem da produção”, e essa
invenção foi utilizada inicialmente de forma com que se fez uma vigilância experimental. O
panoptismo não foi confiscado pelos aparelhos de Estado, mas estes se apoiaram nessa
espécie de pequenos panoptismos regionais e dispersos.

Foucault conta que estudando os problemas da penalidade se deu conta de que todos
os grandes projetos de reorganização das prisões retomam a temática de Jeremy Bentham,
29

mas que ao mesmo tempo é importante ressaltar que antes do panóptico de Bentham já
existiam “modelos de visibilidade isolante” que ocorreram nos dormitórios da Escola Militar
de Paris em 1751, onde os alunos eram dispostos em celas que não permitiam seu contato com
os demais colegas. Mas, o autor conclui a partir disto que mesmo que o cerne do panóptico
seja anterior a Jeremy Bentham, ele efetivamente formulou a teoria a qual conhecemos hoje
(FOUCAULT, 1979, p. 115).

Devido ao efeito de contraluz, pode-se perceber da torre, recortando-se na


luminosidade, as pequenas silhuetas prisioneiras nas celas da periferia. Em suma,
inverte-se o princípio da masmorra; a luz e o olhar de um vigia captam melhor que o
escuro que, no fundo, protegia (FOUCAULT, 1979, p. 115).

Bentham logo não teorizou somente uma figura arquitetural destinada a resolver um
problema específico, como o da prisão, o da escola ou o dos hospitais; para Foucault (1979, p.
116) ele anunciou uma verdadeira invenção que ele diz ser o “ovo de Colombo” e descobriu
uma tecnologia de poder própria para resolver os problemas de vigilância. O filósofo francês
entende também que Bentham é o complemento de Rousseau e nos traz o seguinte
questionamento: qual é o sonho rousseauniano presente em tantos revolucionários? Para isso
podemos ter como resposta prévia:

O de uma sociedade transparente, ao mesmo tempo visível e legível em cada uma de


suas partes; que não haja mais nela zonas obscuras, zonas reguladas pelos privilégios
do poder real, pelas prerrogativas de tal ou tal corpo ou pela desordem; que cada um,
do lugar que ocupa, possa ver o conjunto da sociedade (FOUCAULT, 1979, p. 118).

Entretanto, ao compará-lo com Rousseau, Foucault (1979, p. 118) entende que ao


mesmo tempo Bentham é o contrário e afirma: “[...] ele coloca o problema da visibilidade,
mas pensando em uma visibilidade organizada inteiramente em torno de um olhar dominador
e vigilante [...] e faz funcionar o projeto de uma visibilidade universal, que agiria em proveito
de um poder rigoroso e meticuloso”.

O que podemos captar da sistemática do panoptismo de Bentham através dos


ensinamentos que Foucault é que estamos falando de um sistema que através da vigilância
constante que não só possibilita a perda da capacidade do indivíduo de fazer o mal, como
também o auxilia na perda do pensamento desta prática. Além disso, a disciplina moderna
responde às exigências da produção e de trabalho (FOUCAULT, 1979, p. 124). Descrevem-se
30

tais elementos assim na utopia de um sistema geral, de mecanismos específicos que realmente
existem (FOUCAULT, 1979, p. 126).

Na sociedade disciplinar (a partir da perspectiva do panóptico), portanto, o criminoso é


construído como aquele que se comporta de modo oposto àqueles que o observador, tido
como onipresente pelo observado deseja. Porém, o modo pelo qual se constrói a figura do
criminoso é complexo, dependendo de comunicações de tipos diversos em vários sistemas
para além da política e do direito.

1.4 Super panoptismo e sinoptismo

Se torna necessário neste ponto contarmos com os brilhantes ensinamentos de um viés


diferente do panóptico clássico abordado previamente, através da ótica de dois estudiosos da
história e filosofia, que contribuem com suas novas abordagens acerca do que podemos
entender como vigilância contemporânea.

1.4.1 Super panoptismo de Mark Poster

Para Poster (1990, p. 69), a mídia contemporânea representada pela televisão


classicamente instituí uma nova linguagem, que opera através da manipulação de contextos
com posterior redução da conversação, para um monólogo autoconstrutivista; nessa lógica, os
meios de comunicação em massa derivados do início de século XX são formas de construção
de um novo discurso, agora moderno. Destas construções podemos entender amparados pelo
saber do autor, que se instituí a construção de novos sujeitos, determinados por discursos que
lhes transformam (POSTER, 1990, p. 109).

Para Poster (1990, p. 95), as diferenças entre discurso, escrita e linguagem eletrônica
estão amplificadas e esclarecidas em relação à temática da vigilância, a maior forma de poder
dentro do modo de informação; e ainda, a própria análise deste princípio é capaz de ilustrar a
importância da linguagem teórica e o papel dos meios eletrônicos na construção da sociedade
contemporânea.
31

Sem fronteiras ou noção de tempo/espaço para designar as linguagens sociais diárias,


cria-se um problema para os grupos dominantes já que dessa globalização movimentos de
oposição podem surgir, enquanto que outras instituições clássicas podem desaparecer de
forma instantânea (POSTER, 1990, p. 95). Sob a ótica de Poster (1990, p. 96) podemos
entender a existência então de um modo de informação subversivo que desenvolve operações
básicas, e a mecanização do trabalhador ou simplesmente do serviço, que implica em
desenvolvimentos e anormalidades pelas controvérsias que sugere.

A linguagem promovida pelo modo de informar é onisciente para Poster (1990, p. 97),
que entende que em associação a isso o crescimento da tecnologia – que propiciou meios
eletrônicos – mediou linguagens, e novas formas de poder emergiram. Essas são formas que
enganam o conceito liberal de tirania e o conceito de exploração marxista, afinal a tirania é
um ato político de exercício do poder arbitrário.

Poster (1990, p. 97) esclarece que para os marxistas de forma geral a economia em si é
um ato de exploração que busca poder sem compensação, e que as formas de dominação
crescentes relativas ao modo de informar são formações linguais derivadas de complexas
manipulações de símbolos. Obviamente a tirania pressupõe um discurso, e a ideologia dos
marxistas busca traduzir tais noções de regras em interesse cru e nu das classes dominantes. O
que é pertinente destacarmos de seus ensinamentos em meio a tais alegações é que liberais
essencialmente buscam atos sociais ditos “reais”.

O banco de dados instaurado pelo modo informacional contemporâneo na visão de


Poster (1990, p. 97) gera estruturas novas de dominação, e imersos nessa lógica os discursos
de Foucault na década de 70 acerca da disciplina e formas de punição são derivados de
suposições e constatações que são encontradas no próprio modo de informar, particularmente
em bancos de dados.

Para Poster (1990, p. 97-98), a verdade discursiva é essencial na operação do poder na


esfera social e Foucault na verdade nunca esclareceu de forma adequada a específica relação
entre discurso e sociedade moderna. Dessa forma, o que se constata é que Foucault buscou
dominação pela ciência da disciplina ao contrário de Max Weber, por exemplo, que trabalhou
pautado na subjetividade da linguagem de consciência.
32

Poster (1990, p. 98) entende que a intenção da posição de Foucault é focar na interna
complexidade e os efeitos práticos da linguagem organizada, e a partir disso a comunidade
disciplinada se torna seu alvo. As análises de Foucault são convictas, porem podem ocultar
padrões de comunicação que associados a pratica podem definir caminhos à padrões de
dominação.

A disciplina e punição são conceitos que operam em pé de oposição para Poster (1990,
p. 99), que entende haver duas outras estratégias de interpretação na história das prisões: a) a
dos liberais, que entendem a prisão como melhoria de outras formas de punição; e b) dos
marxistas, que clamam a reforma de princípios basilares no sistema prisional.

Jeremy Bentham com um rigor propôs transformações institucionais dos infratores em


utilitaristas (POSTER, 1990, p. 100), e sobre o aparato administrativo, instituiu um discurso
acerca do antigo problema da aglomeração de corpos, que agora recebiam diferentes
tratamentos.

Foucault por sua vez não se baseou em ideias ou ações quanto à origem das prisões, já
que se pautou na complexa articulação da “tecnologia o poder” (POSTER, 1990, p. 99-100).
Para ele a prisão opera de forma com que produz normas para dividir a população entre
aprisionados e não aprisionados, e que o objetivo da prisão é finalmente devolver aos
prisioneiros o status de não aprisionado novamente.

Poster (1990, p. 101) constata que Foucault pegou “emprestado” o termo panóptico de
Bentham, que se traduz na noção de que um vê muitos, mas denota todo um aparato de
definição de normas, observando a mudança entre o negativo em positivo e, estudou o
processo para se aperfeiçoar. Bentham por sua vez ilustrou no panóptico um artifício de
desmotivação da mente criminal e da “irracionalidade da transgressão” para moldar normas.

Para Poster (1990, p. 101) não há escape no panóptico, afinal mesmo quando o
indivíduo não está sendo observado ele deve aceitar a autoridade a ele imposta, afinal é um
sistema de imposição e de dominação que não opera de forma racional como espera-se de
perspectivas humanistas. Bentham na perspectiva do americano é um idealizador cuja obra
prima fracassou, e ele ainda questiona qual seria a utilidade de tal teoria se não reforma
efetivamente os prisioneiros. Para que serviria então?
33

Quais são os efeitos do discurso do panóptico? Os argumentos dele – Bentham – é


que a prisão no contexto liberal capitalista de sociedade, que celebra a anarquia do
mercado [...] que persegue seus infinitos desejos, cuja racionalidade nega o
subjetivo, a prisão impõe a tecnologia do poder, das “micropolíticas” normativas. Na
sociedade capitalista a regulação ganha forma nos discursos e práticas que produzem
e reproduzem normas; a escola, o asilo, a fábrica são apenas variações que imitam o
panóptico (POSTER, 1990, p. 102).

Em meio à sociedade moderna, vislumbra-se em razão dos ensinamentos de Poster


(1990, p. 103) que o poder é imposto não pela presença física e pela força bruta de uma casta
de nobres (como já fora um dia), mas na sistemática dos discursos contínuos que monitoram a
vida em seu cotidiano e que são capazes de ajustar e reajustar perspectivas e até mesmo as
normas individualmente.

O panóptico pensado no século XIX para Poster (1990, p. 101) teve incompletudes
quanto sua vigilância, pois falamos de um momento histórico onde a presença física ainda era
muito importante. A criminologia foi capaz de aperfeiçoar a lógica do panóptico no que tange
a análise do progresso dos observados, entretanto Foucault ignorou os avanços do século XX
na ótica do autor, onde mesmo em meio a condições de vigilância mais avançadas as pessoas
tornaram-se dados, números e a disciplina veio apenas logo em seguida.

Atualmente, para Poster (1990, p. 102), os circuitos de comunicação e os bancos de


dados constituem o que podemos entender como “Super panóptico” (ou Superpanopticon),
que pode ser traduzido como um sistema de vigilância sem muros, janelas, torres ou guardas,
onde a tecnologia avançada resulta em mudanças qualitativas na microfísica do poder.

A sociedade participa desta forma da vigilância, afinal cartões de crédito, cartões da


seguridade social, carteiras de estudante, por exemplo, são objetos de uso contínuo pelo
indivíduo que ao mesmo tempo em que lhe diferenciam, lhe gravam e registram. Faturas de
cartão, transações, o ato de “bater ponto” são formas de gravar informações, e até mesmo a
carteira de habilitação é capaz de indicar a localização de muitos sujeitos através de infrações
cometidas.

O próprio fenómeno do consumismo alimenta o superpanóptico para Poster (1990, p.


103) afinal o usuário conectado acaba por inserir informações próprias em um sistema de
dados em uma compra por exemplo – que lhe caracteriza, lhe identifica e lhe localiza. o super
34

panóptico impõe ainda disciplina a sociedade em se auto observar impondo uma nova
situação social e nova linguagem. Poster (1990, p. 104) afirma que:

A vigilância contemporânea pautada em bancos de dados confia no meio digital para


prover a informação [...] e a nova tecnologia de reprodução da linguagem reproduz
facilmente a eliminação de erros, deficiências do que é antigo, provendo assim a
transparência do conhecimento ou da reprodução de dados sem perdas de
significado.

Em meio a similaridades ao discurso dos bancos de dados o Super panóptico significa,


portanto, para Poster (1990, p. 107), o controle das massas no pós-moderno e pós-industrial
em meio ao modo de informação que de forma desconfortável a população participa através
da sua autoconstituição; e que pode implicar em posteriormente nos guiar a uma situação
onde o dado tido como real pode não refletir em nada do que realmente acontece.

O componente principal do que podemos chamar de “autoconstituição” são os bancos


de dados abastecidos de informações e transações de crédito, e que se feitas em primeiro
momento em um local geral, as informações e os rastros são capazes de preencher
computadores com linguagens que retomam a didática da vigilância e do controle (POSTER,
1990, p. 107). Do panóptico clássico nos guiamos enfim até a noção de que a informação está
em todos os lugares a todo momento.

1.4.2 Sinoptismo de Thomas Mathiesen

Mathiesen (1997, p. 216) ao ilustrar o sistema de regras que regulam a vida do homem
pensado por Foucault, que controlam cada detalhe do aspecto comportamental humano se
questiona: o por quê dele ilustrar contrastes? Os contrastes citados se referem a diferentes
perspectivas de lidar com o cenário criado pela figura do “criminoso” ao longo das décadas;
agora, vislumbrava-se a punição observacional para além do corpo humano e da barbárie que
costumava instaurar-se em meio à sociedade.

A primeira conclusão admitida por Mathiesen (1997, p. 216-217) é de que a pretensão


de Foucault é de fato ele querer trabalhar a temática da mudança na natureza de punir, do
físico às prisões; em seguida entende a transição entre punir o corpo e moldar a alma. Uma
35

terceira hipótese é admitida, a de que Foucault por fim, tinha como objetivo trabalhar a
perspectiva da mudança na ordem social e que, certamente esse era o seu ponto essencial.

Para o autor, o apelo às prisões na modernidade pode ser observado de certa forma
como uma “técnica de poder” e transforma o crime em objeto da intervenção penal; com as
transformações propostas a partir do panóptico e as sucessivas e divergentes visões de se
encarar questões acerca da vigilância é que se estabeleceu por consequência uma nova
construção social, pelo menos de forma introspectiva.

Para Mathiesen (1997, p. 217) o panóptico apresentado por Foucault representa um


movimento fundamental ou a transformação de uma situação onde muitos veem os poucos
para o cenário onde os poucos é que veem a grande maioria. É interessante ressaltarmos como
o panóptico é analisado pelo autor em relação aos efeitos que produz nos observados, afinal
suas constatações nos guiam a uma noção de que pautados no princípio da vigilância, estamos
produzindo de maneira subjetiva formas de autocontrole, que por consequência da informação
e da comunicação disciplinam os demais seres sociais a se enquadrarem no que ele chamou de
“capitalismo da sociedade democratizada” (MATHIESEN, 1997, p. 218).

A perspectiva do Sinoptismo (ou Synoptism) surge na linguagem de autor ao abordar o


que entendeu ser as próprias ramificações do panóptico de Foucault; de certa forma o que se
coloca em debate a partir destas questões é o ênfase que a sobrevivência tem no processo
teorizado, um vez que há a necessidade de permanência do indivíduo em meio à observação
constante. Mathiesen (1997, p. 219) ao observar o desenvolvimento moderno na Noruega,
conta que foi capaz de perceber o princípio do panóptico, onde os poucos veem os muitos, e
que de certa forma, a polícia europeia ao se “computadorizar” adquiriu um sistema que opera
de forma semelhante à temática pensada em princípio para operar somente nas casas de
correção e penitenciárias.

Mathiesen (1997, p. 220) nos ensina que o desenvolvimento contemporâneo é um


extensivo sistema que possibilita a vigilância, e que tal noção se instaurou a partir da
comunicação em massa e da mídia especializada, decorrentes do período moderno. São
questões implícitas e explicitas que mudaram os traços sociais enquanto que a vigilância se
expande. O sistema da mídia pode corresponder em paralelo ao panoptismo em sua estrutura,
uma vez que opera de forma onde muitos veem os poucos, agora sob a lógica da camada
36

majoritária ver os VIP’s, os repórteres, as estrelas e quase uma nova classe de atmosfera
projetada (MATHIESEN, 1997, p. 219).

Para Mathiesen (1997, p. 219) não apenas o panoptismo como o sinóptico


caracterizam a transição moderna da nossa sociedade atual, sendo o panoptismo composto
pelo “sin” derivado da palavra grega “syn” que significa “juntos/unidos” ou “ao mesmo
tempo” e é silaba visual, ao unir-se com o termo “óptico” que representa a vigilância, em
sentido oposto ao clássico, pois agora, muitos observam os poucos.

É necessário salientarmos que o panóptico e o sinóptico de Mathiesen (1997, p. 218)


possuem paralelos, que este último chamou de “paralelos no desenvolvimento” e que tais
estruturas basilares que sustentam ambas percepções precisamente juntas controlam o
funcionamento da sociedade moderna.

Ao falar de paralelos o autor demonstra que com a aceleração de ambos ao se


vislumbrarem no período moderno, afinal o crescimento do jornal, por exemplo, pressupõe
uma ciência de caráter compreensivo e desenvolvimento técnico que facilitou historicamente
a distribuição de periódicos e a troca de notícias que por consequência ampliou a
comunicação entre os cidadãos instaurando assim mudanças políticas (MATHIESEN, 1997,
p. 220). Essas transformações sociais podem ser atreladas, sob a ótica do autor, ao surgimento
de uma larga classe média abarcada pela noção de funcionamento dos grandes mercados.

A inovação social traz consigo novas condições sociais e com a comunicação em


massa e o consequente sucesso do cinema (que passou do preto e branco até a entrega de
cores e som) impulsionou a mobilidade das famílias e problematização de temáticas e
abordagens ao lotar teatros e cinemas, lógica essa que contraria para Mathiesen (1997, p. 220)
a tese de Foucault, que afirma que na modernidade nos distanciamos de uma situação onde
muitos veem os poucos como prevê o sinóptico.

O pós-segunda guerra trouxe consigo inúmeros avanços, entre eles, os alçados pela
televisão, afinal o sinóptico básico caracterizado pela mídia até então, foi fundamentalmente
aperfeiçoado pela televisão que desenvolveu centenas de milhões de telespectadores que
poderiam ver os poucos nos palcos (MATHIESEN, 1997, p. 221). Primeiramente esse
37

fenômeno se deu através da captura de câmeras, que se transformou na possibilidade da


observação presencial através da realização de grandes eventos.

A partir dos anos 80 tivemos grandes avanços com as tecnologias de vídeo bem como
as chamadas “tecnologias digitais”, que criaram novos caminhos de comunicação e formas
para tal e essa noção nos guia ao que Mathiesen (1997, p. 221) chama da privatização destes
canais com consequente descentralização deles em polos que desenvolveram assim muitos
sinópticos; porém, há de se ponderar que igualmente a esses sinópticos se demonstraram
muitos panópticos e sistemas de vigilância.

Para o autor neste ponto a sociedade estava se desenvolvendo de uma situação onde
muitos veem os poucos para uma concretude onde poucos veem muitos (MATHIESEN, 1997,
p. 222). Fica claro para Mathiesen (1997) que a visão histórica do panóptico de Foucault bem
como sua estrutura pode estar incorreta, uma vez que se trata de um resgate dos anos 1700 e
1800 onde a sociedade se portava de outra forma.

Historicamente a abordagem da vigilância se colocava como medida de sucesso para


controlar medidas, mas também há de se salientar que ocorreram momentos em que falhou ao
atingir seu objetivo, sendo essa uma caraterística dos sistemas de dados moderno. Para
Mathiesen (1997, p. 223), o sinóptico é igualmente antigo, mas com ênfase na máxima
difusão de impressões visuais, de som etc., enquanto que Foucault enfatiza sua estrutura na
ausência da mídia. Entretanto, o panóptico e o sinóptico se desenvolveram através de uma
interação íntima, até mesmo através de uma fusão uma com a outra afinal, nas mesmas
instituições que se pautaram no panóptico, havia a presença do sinóptico.

Mathiesen (1997, p. 223) entende que o panóptico era inquisitorial, mas dele provia-se
a manifestação do sinóptico por consequência, traçando assim uma interação ou fusão entre
ambos.

O Panóptico e o Sinóptico podem ser vistos nas antigas capelas das prisões dos anos
1800. Havia o panóptico, pois o ministro poderia ver todos os prisioneiros sentados
e isolados em seus estandes, mas ao mesmo tempo havia o sinóptico nestes
prisioneiros, que de seus estandes poderiam ver uma pessoa, o ministro no seu posto
(MATHIESEN, 1997, p. 223).
38

Nos tempos modernos essa interação se demonstrou de forma diversa já que agora em
segundo momento ambos se desenvolveram como base de métodos da articulação das
tecnologias, que “controlam os consumidores” (MATHIESEN, 1997, p. 224).

Atualmente configurou-se uma situação onde coletam informações necessárias e as


combinam com outras peças informacionais nas páginas da web, que é acreditada como algo
feito para todos. Entretanto, Mathiesen (1997, p. 224) observa que inicialmente os usuários
destinatários destas informações e destas combinações de dados eram seletos, a começar por
um percentual de 75% de homens geradores de um perfil que em um segundo momento era
vulnerável a um controle econômico e político por meio da internet.

Para Mathiesen uma importante questão a ser estudada atualmente é se a mídia


realmente representa poder. Foucault nos demonstra que a soberania extraída da vigilância é
uma manifestação de poder, mas pensar nessa soberania a partir do gradual exercício de
vigilância para Mathiesen (1997, p. 225-226), se trata de um poder que se dissipa
gradualmente. Se isso é verdade, e todos que conhecemos na mídia são apenas figuras
ornamentais sem poder, a omissão de Foucault acerca do sinoptismo pode não ser tão séria.

O que é possível de ficar claro é que para Mathiesen (1997, p. 226) o poder se
encontra na delimitação de grupos dentro da representação da nossa mídia em massa, logo o
que foi pensado por Foucault passa a ser uma microforma de poder, logo, um “micro poder”
que é necessário igualmente.

O que nos é pertinente ressaltar ainda dos apontamentos de Mathiesen (1997, p. 229) é
que vigilância é mais uma forma de controle, ou seja, implica na regulação do comportamento
ou atitude dos indivíduos; e assim, a disciplina pensada por Foucault é novamente mais um
sinônimo de tais termos.

Logo o aspecto principal do panoptismo para Mathiesen (1997, p. 230) consiste no


crescimento da modernidade velada de forma secreta na indústria da vigilância, e o que deve
nos preocupar são os controles ou disciplinas impostas, ou seja, nossos comportamentos; e
nesse sentido o sistema de vigilância moderna é muito distinto das antigas prisões panópticas.
39

Para Mathiesen (1997, p. 229-230) mesmo que Foucault tenha encerrado questões
acerca da punição física com seus discursos ele não “cessou o corpo dócil” do homem em ser
um objeto de atenção, o colocando em uma posição onde esse mesmo corpo se tornou a
máquina de poder a qual o princípio da vigilância explora. O sinóptico por sua vez, se utiliza
de outra máquina, a mídia em massa e a atenção que gera controlando não somente a
disciplina humana, como sua consciência (MATHIESEN, 1997, p. 230-231).

Por fim, há de se concluir que o panóptico moderno mantem a vigilância da qual o


sinóptico se fortifica e isso pode implicar no fato de que o panóptico e o sinóptico se
alimentam um do outro (MATHIESEN, 1997, p. 231).

Notícias dessas partes do panóptico – sobre prisioneiros, roubos, assassinatos – são


as melhores peças informativas que o sinóptico – televisão e os tabloides dos jornais
– podem encontrar. Dentro do sinóptico, esse material é purgado, transformado em
puramente criminal – e o que já foi originalmente um pequeno segmento da
experiencia humana, cria estereótipos e se traduz em parte relevante, mas oculta do
processo penal (MATHIESEN, 1997, p. 231).

Logo, podemos entender que o sinóptico possibilita a criação de um padrão


comportamental na mídia que vai ser comunicado como algo a ser seguido. Na sequencia
estudaremos como peças informativas atuam no sinóptico e em como esse material pode ser
refletido na esfera penal.

1.5 Big data, monitoramento por satélite e redes sociais

O que podemos conceituar de “sociedade da informação” na ótica de Ferreira (2014, p.


110) está longe de se consagrar como uma experiência homogênea uma vez que este entende
que cada país (mesmo dentro de uma mesma nação) tem suas tendências e comportamentos
manifestados de maneira diversa e, além disto, contam com investimentos, custos,
normatividades e culturas diversificadas. As promessas decorrentes do surgimento da internet
(a maior representante das atuais tecnologias) e de sua sucessiva proposição de liberdade, traz
consigo questionamentos acerca da privacidade dos “internautas” e utilizadores destes
serviços.
40

1.5.1 O desenvolvimento de tecnologias: big data e o super panóptico

Ao analisar a obra Vigiar e Punir de Foucault, Ferreira (2014, p. 111) observa que se
tem a articulação da justiça criminal com a ciência na conformação de uma epistemologia
científico-jurídica que se funda em um conhecimento capaz de se apropriar do sujeito não
mais em seu corpo físico com se tratava nos tribunais anteriores; observa que o jurista francês
traz consigo um saber distinto de tudo até então, que toma por objeto a figura do delinquente e
o submete ao que chamou de “controle menos bárbaro e agressivo”, gerando assim efeitos
psíquicos que são internalizados de maneira com que o próprio corpo do sujeito comanda a
função da prisão, e sua mente tem papel fundamental na formulação de pretensões.

Com a substituição do poder de punir pelo poder de vigiar, a figura do carrasco, do


sentinela, do carcereiro ou do policial se torna desnecessária nas sociedades
modernas na medida em que, pelo olhar constante, os indivíduos inspecionam os
gestos, as atividades, os discursos e os comportamentos uns dos outros e, também,
de si mesmos (FERREIRA, 2014, p. 112).

Em sua análise acerca do panoptismo, Ferreira (2014, p. 113-114) entende que a


teoria:

Se propõe a desconstruir a visão do poder como algo hierarquizado, unilateral,


formal e científico e afirma ainda que Foucault converte o panóptico na própria ideia
do poder disciplinar, substanciando assim um tipo de poder modesto, discreto,
calculado e permanente, que tem como objetivo adestrar as singularidades que
compõem as multidões.

É importante ressaltar que podemos ver como a disciplina (quando aplicada com toda
sua eficiência) sob os indivíduos é capaz de se disseminar de maneira com que se torna imune
a singularidades, e ainda, é capaz de controlar a potência criadora humana para Ferreira
(2014, p. 113). O autor entende que hoje ninguém participa das experiências sociais e info-
comunicativas no ciberespaço sem que possua uma conta de e-mail e uma senha, ou seja, sem
que deixe rastros digitais para trás e que há inclusive riscos ao quais os usuários muitas vezes
não tem conhecimento; sobretudo quando se trata de aplicativos que se utilizam da
localização geografia do sujeito (FERREIRA, 2014, p. 117).

É de extrema importância ressaltar ainda que as permissões que os usuários aceitam


online podem trazer termos que muitas vezes se operam dos dados pessoais de seus
utilizadores, que muitas vezes nem os leem ou ao menos os compreendem; e isso acaba por
41

acarretar na outorga da privacidade e dos direitos sobre os usos que serão feitos destes dados
pessoais (FERREIRA, 2014, p. 118).

Com todas essas percepções, para Ferreira (2014, p. 118-119) o que somos capazes de
enxergar ainda é “ponta do iceberg”, que de certa forma é um problema que irá somente se
agravar na medida em que as liberdades individuais e a privacidade forem cada vez mais
ameaçadas pelo Estado e pelo mercado quanto à utilidade futura dos dados e das informações
que os indivíduos colocam em circulação sobre seus modos de pensar, de ser e de viver.

Logo é possível concluirmos que na sociedade contemporânea, cada vez mais a


responsabilidade da disciplina é deslocada das instituições e ao se tratar de vigilância
podemos perceber que esta se demonstra da forma ininterrupta, bem distribuída, geral e, ao
mesmo tempo, individual e o que se verifica é um novo regime de vigilância, cujas regras de
funcionamento se descolam de grandes coletas de dados digitais e/ou digitalizáveis
(FERREIRA, 2014, p. 115-116). Com uma percepção destas não nos parece errado então
fomentarmos a discussão de que o poder disciplinar tão bem desenvolvido por Foucault e todo
o controle teorizado por Bentham hoje, são progressivamente despidos em meio a tanta
informação.

Durante muito tempo os Estados, através de seus respectivos governos, buscaram


formas e medidas de controle social de acordo com Cella e Rosa (2013, p. 224), e o
surgimento das tecnologias modernas ampliou a necessidade destes em “estender” seus braços
para abarcar eventos decorrentes destas – o que de certa forma é uma preocupação
justificável, afinal se busca harmonia nas relações sociais e nas interações humanas.

A evolução na forma do ser humano em comunicar-se, em função das tecnologias,


acarretou diversas mudanças na sociedade em si, agora denominada “sociedade do
conhecimento” (CELLA; ROSA, 2013, p. 218). A contemporaneidade (e seus respetivos
instrumentos) impacta as relações humanas de maneira com que a agilidade e a rapidez da
internet geram desdobramentos que devem buscar alternativas para solucionar possíveis
intransigências, uma vez que isto se tornou uma exigência de nossa sociedade.

O surgimento da rede internet na ótica de Cella e Rosa (2013, p. 222) alargou as


possibilidades de comunicação e suscitou a explosão de um grande número de questões
42

ligadas à privacidade, e a rede de computadores apresenta dificuldades quanto ao controle do


denominado “tráfico de dados” afinal se trata de um protocolo de comunicações interligado
através de vários meios de comunicação de dados existentes (CELLA; ROSA, 2013, p. 223).

É interessante ressaltar que Foucault, em Vigiar e Punir dissertava sobre o que Cella e
Rosa (2013, p. 223) chamaram de mudanças no exercício do poder e trouxe consigo questões
pertinentes a uma mudança no paradígma penal com o modelo do panóptico através de
conceitos como a vigilância, o controle e a correção. A partir das ideias de Bentham, e os
ensinamentos de Foucault segundo os autores, se deu a inspiração para as formas de vigilância
atuais com um único observador que tudo vê, mas sem ser visto, de forma onipresente e
onisciente (CELLA; ROSA, 2013, p. 225).

Exemplos da vigilância moderna são recorrentes, mesmo que muitas vezes não
pareçam óbvios, e os autores destacam para ilustrar essa percepção a existência de programas
televisivos como o “Big Brother” cujo controle se estabelece pela ideia de necessidade
relativamente ao veículo de informação (CELLA; ROSA, 2013, p. 226). A web 2.0 por sua
vez possibilitou a inserção nas redes sociais, que conectam o mundo em que se tem acesso e
interação com outras culturas, realidades, costumes etc.; e ainda hoje, estar conectado é uma
tendência que se enraíza cada vez mais de forma profunda, tanto que:

[...] as pessoas conscientemente divulgam informações que, a princípio, seriam


confidenciais e as lançam à rede aberta, sem cogitarem a hipótese de que suas ações
podem repercutir negativamente na esfera social, além de poderem ser chamarizes
de crimes que venham a ser cometidos contra elas (CELLA; ROSA, 2013, p. 226).

Cella e Rosa (2013, p. 219) nos ensinam que a rapidez das informações supera a falta
de segurança, uma vez que são diários os casos de condutas ilícitas online, mesmo que muitas
vezes falte previsão legal para estas; e desta forma se coloca então a necessidade de se realizar
um estudo acerca da proteção de dados pessoais nestas condições. No Brasil, projetos de lei,
como a “lei de Azeredo” foram ceifados, entretanto já demonstravam uma preocupação com a
proteção destes dados pessoais em ambiente virtual, e esta lei especificamente tinha como
proposta o monitoramento cibernético (por parte das provedoras) dos usuários online
devidamente cadastrados. É preciso não só pensar o direito, mas também pensar se a
legislação que existe é eficaz e se o pensamento incorporado na sociedade atual a respeito do
tema dá suporte às necessidades sociais (CELLA; ROSA, 2013, p. 219).
43

Os bancos de dados para Poster (1990, p. 85): “são discursos em primeira instância,
por que eles afetam a constituição do subjetivo, são formas de escrever traços simbólicos que
se estendem a sua diferenciação, distanciação até serem colocados de forma digital em espaço
transferível e preservável”. Fidalgo (2001, p. 6), entretanto entende que do Super panóptico
pensado por Poster podemos vislumbrar nas plataformas virtuais disponíveis o crescente
desenvolvimento tecnológico pelo qual surgem novas identidades ou ao menos a resistência
às estruturas de dominação, o que é um risco que pode levar a desconstrução da racionalidade.

1.5.2 Monitoramento por satélite

Para Vasconcellos e Sousa (2018, p. 400) deve haver duas hipóteses para considerar
atualmente o cumprimento da pena de um indivíduo por meio do monitoramento eletrônico,
ou seja, “uma liberdade vigiada”; esses são: a)a crise da pena na prisão tradicional ou b) uma
efetiva transformação no entendimento do estado acerca de qual seria a finalidade da pena.

É possível constatarmos que tal medida é alvo de discussões, uma vez que mesmo uma
tornozeleira, por exemplo, não implique em dano físico, ainda pode ser vista com uma marca
no corpo do apenado, ou mesmo um estigma (VASCONCELLOS; SOUSA, 2018, p. 401).

É interessante que, na domiciliar monitorada eletronicamente senão proporcionado o


trabalho e/ou estudo, teremos resgatado duas, das três funções da masmorra de
outrora, pois os presos, além de trancados em suas residências, estarão “escondidos”
inclusive dos estatísticos que aferem a lotação carcerária do país. O déficit de vagas
é um dos grandes problemas que tem esteado denúncias contra o Brasil na Corte
Interamericana de Direitos Humanos. A transferência das unidades prisionais para a
domiciliar, nesses casos, poderá representar uma camuflagem da ineficiência estatal,
pois apenas retirará os presos das unidades estatais, mas ainda assim, representará
uma pessoa sob a custódia do Estado e, nesta condição, remanescem todas as
obrigações do Estado (VASCONCELLOS; SOUSA, 2018, p. 401).

Vasconcellos e Sousa (2018, p. 401-402) entendem que o poder disciplinar já convive


com o exercício do poder de controle e a proposição do monitoramento por satélite tem
similaridades ao panóptico de Bentham, afinal o mecanismo eletrônico pode intervir no
cotidiano do apenado e tem alarmes passíveis de serem acionados, portanto, gera obrigações e
uma pressão constante. Instaura-se assim a percepção de que o monitoramento eletrônico
pode ser interpretado como uma nova linguagem de poder.
44

A vigilância eletrônica para Vasconcellos e Sousa (2018, p. 403) opera atualmente


pautado no ideal que sugere uma forma de unir o que se chama de “Estado Punitivo” e
“Estado Restituitivo” – que por sua vez defende os direitos humanos. Entretanto, para
Vasconcellos e Sousa (2018, p. 403-404) “o monitoramento por satélite não insere uma
perspectiva mais humana da pena, mas no contexto de uma sociedade insegura e com medo,
que expressa desejo de controle independente de práticas ressocializadoras, o objetivo é tão
somente minimizar riscos”.

A vigilância, portanto, nos estudos realizados até o momento se apresenta como


barreira inconsciente nas pretensões e suposições humanas, inaugurando um cenário interno
disciplinar que se estende a toda sociedade; desta forma, a teoria do panóptico até o presente
momento se trata de uma maneira de definir as relações humanas e tem poder sobre a vida e
cotidiano dos indivíduos.

1.5.3 Inteligência artificial, perfis genéticos e algoritmos

O ser humano carrega consigo o desejo de conhecimento, e tal inquietude faz parte de
sua natureza; esse fenômeno não é apenas relativo à autossatisfação humana, mas sim o
anseio de constituição do homem como pessoa. Agamben (2010, p. 46) nos ensina que o
termo “persona” significa máscara, e que é através dela que o indivíduo desempenha seu
papel na sociedade, juntamente com sua linhagem genética. Nessa lógica temos que a persona
se transforma em personalidade, que irá por fim ditar o espaço de desenvolvimento do agente
na vida em sociedade.

A persona pode eventualmente significar a capacidade jurídica ou até mesmo a


dignidade política do homem, e esse anseio por reconhecimento é por fim, um anseio pela
máscara, que através da personalidade atrelada a si, constrói o indivíduo (AGAMBEN, 2010,
p. 46). Imersos nessa esfera, outros indivíduos são necessários a partir da lógica de que eles
são capazes de reconhecer outros, e sua identidade pessoal.

Na segunda metade do século XIX técnicas utilizadas pela polícia se atrelavam de


forma decisiva na transformação do conceito de identidade humana, e a partir desse ponto, a
45

identidade já não era mais atrelada essencialmente ao reconhecimento e prestigio social do


homem, mas se tratava de uma resposta a necessidade de garantir outra forma de repressão a
reincidência criminal pelos oficiais da polícia (AGAMBEN, 2010, p. 47-48).

Nesse cenário desenvolvem-se os “defensores da sociedade”, que muitas vezes operam


contra a aparência humana e acabam por constituir uma ofensiva persistência. A necessidade
de ser capaz de identificar determinada pessoa reclusa por um crime nesse ponto foi condição
necessária para o funcionamento do sistema judiciário das penas contemporâneo
(AGAMBEN, 2010, p. 49).

A identidade para Agamben (2010, p. 50) passou de representar a função social da


“persona” para o reconhecimento biológico do ser humano, pertencente a um banco de
dados; a máscara humana é removida em troca de formas de reconhecimento identificáveis
advindos das tecnologias, penetrando assim no cerne íntimo do homem. Técnicas
antropométricas desenvolvidas para o manejo de criminosos historicamente evoluíram para o
recolhimento de digitais, e assim, as técnicas estipuladas no contexto do criminoso e
estrangeiros com a chegada do século XX se disseminaram na sociedade (AGAMBEN, 2010,
p. 50). Assim, técnicas aplicáveis a reincidentes criminais tendem a se expandir a todos os
cidadãos.

Com o desenvolvimento de tecnologias biométricas que são capazes de obter as


digitais do indivíduo ou até mesmo escanear opticamente a retina ou a íris humana
ultrapassam o alcance das delegacias e demais métodos policiais, se disseminando no
cotidiano dos homens. O ingresso em estabelecimentos, industrias etc. estão condicionados
sob o desenvolvimento frenético de tais tecnologias, e assim cabe ao homem fazer parte desse
meio (AGAMBEN, 2010, p. 51).

Países Europeus por exemplo, estão desenvolvendo tecnologias pautadas no


reconhecimento de digitais e de traços faciais humanos para a realização de transações
bancárias por parte do indivíduo, enquanto que, países ocidentais, especialmente, se preparam
para estabilizar bancos de dados de perfis genéticos de seus cidadãos em nome da saúde
pública e como forma de segurança social ao reprimir a criminalidade (AGAMBEN, 2010, p.
51).
46

Em razão da expansão das taxas de encarceramento derivadas da política repressivista


americana surgiram as penas ditas “intermediarias”, como a prisão domiciliar, os centros
disciplinares, a vigilância eletrônica ou até mesmo telefônica (com o auxílio de “grampos”); e
com isso houve uma proliferação deste sistema carcerário para além das grades, uma
vigilância penal que perseguia o indivíduo atribuindo ao sistema uma autoridade superior a
que tinha até então (WACQUANT, 2004, p. 54).

A proliferação de bancos de dados criminais e a expansão dos meios de controle a


distância permitiram dar um impulso da noção de “luta contra a criminalidade” para o tema
que embasou campanhas eleitorais posteriormente (WACQUANT, 2004, p. 54). A
implantação de bancos de dados informatizados logo se deu nas mais diversas esferas, e a
conexão entre a “captura” e a “observação” para Wacquant (2004, p. 54) no sistema penal
possibilitou o que hoje conhecemos como fichas criminais, conforme o explica o excerto
abaixo:

[...] existem hoje perto de 55 milhões de “fichas criminais” (contra 35 milhões há


uma década), referentes a cerca de 30 milhões de indivíduos, ou seja, quase um terço
da população adulta masculina do país! Têm acesso a esses bancos de dados não
apenas as administrações públicas, como o FBI ou o INS (encarregado da
fiscalização dos estrangeiros) e os serviços sociais, mas também, em certos casos, as
pessoas e os organismos privados. Esses “rap sheets” são corriqueiramente
utilizados, por exemplo, pelos empregadores para descartar os aspirantes a emprego
com antecedentes. E não importa que os dados que aí figuram sejam frequentemente
incorretos, prescritos ou anódinos, até mesmo ilegais. Sua circulação coloca não
apenas os criminosos e os simples suspeitos de delito na mira do aparelho policial e
penal, mas também suas famílias, seus amigos, seus vizinhos e seus bairros.

Com os bancos de dados, Wacquant (2004, p. 54) narra uma situação onde diversos
estados, que eram detentores de tais dados passaram a disponibilizar tais informações em sites
da internet, permitindo assim que qualquer indivíduo tivesse acesso sem a menor barreira
eletrônica quanto a informações judiciais de um condenado. Em outubro do ano de 1998, o
FBI (federal bureau of investigation) colocou em funcionamento nestes bancos de dados o
perfil genético de centenas de milhares de condenados, que com o encarceramento inseriam
ao sistema um conjunto de amostras de sangue e saliva à administração das penitenciárias, e
tal situação narrada na concepção do autor, é o que podemos chamar de fichamento genético
(WACQUANT, 2004, p. 55).
47

Para Fornasier e Wermuth (2015, p. 9), as informações genéticas humanas combinadas


aos crescentes avanços científicos instituem uma situação onde o homem se torna
“vulnerável” e “transparente” em meio à exposição informacional que os bancos de dados são
capazes de coletar.

A partir destas noções é possível entendermos que os dados genéticos podem ser
considerados “dados sensíveis” e derivados de questões “extraordinariamente delicadas”
(FORNASIER; WERMUTH, 2015, p. 10) e podem incidir diariamente na rotina dos
indivíduos apresentando-se assim como ferramentas para arbitrariedades, que podem nos
levar a práticas discriminatórias.

O Direito Penal atualmente vive uma expansão quanto sua aplicação, afinal
presenciamos diariamente a flexibilização das garantias criminais com o desrespeito à
princípios constitucionais no que tange a antecipação da intervenção punitiva de nosso Estado
(FORNASIER; WERMUTH, 2015, p. 11). Para Fornasier e Wermuth (2015) busca-se na
contemporaneidade a análise de provas por intermédio de tecnologias avançadas, estas que,
aplicadas ao âmbito da criminologia buscam identificar, por exemplo, autores de fatos
delitivos por meio da criação de bancos de dados genéticos em países europeus e nos EUA.

No Brasil, podemos vislumbrar o uso de dados deste gênero por meio da lei nº
12.654/2012 (Lei de Execução Penal, para prever a coleta de perfil genético como forma de
identificação criminal), que para os autores acima citados está em fase experimental, afinal a
criação de bancos de dados de perfis genéticos pode ser vista sob uma ótica onde vislumbra-se
a criminologia atuarial, que buscava punir, intimidar ou reabilitar o indivíduo (FORNASIER;
WERMUTH, 2015, p. 13).

Entretanto, é necessário destacar que é passível de entendermos uma outra ótica da


implantação destes perfis de dados genéticos no âmbito da persecução penal, através do
paradoxo estadunidense da superlotação, já que Fornasier e Wermuth (2015, p. 14) entendem
que há por trás disso uma lógica econômica que incide na incapacitação dos criminosos
habituais de alto risco, com a atenção voltada em evitar que os presídios venham a ser
ocupados por delinquentes eventuais, traçando perfis seguros.
48

Fornasier e Wermuth (2015, p. 14) nos ensinam que a criminologia atuarial busca por
si só características recorrentes de um comportamento humano que seria tido como criminoso,
sob forma de preveni-lo; evidencia-se, entretanto, nestas categorizações uma racionalização
do homem em meio ao Estado.

Neste sentido, o sistema penal brasileiro alçado pelo Estado sempre esteve a favor dos
interesses das hegemonias conservadoras, sendo a imposição da ordem necessária para o
progresso e tendo o Direito penal sido um importante instrumento para gerir e disciplinar as
classes populares (FORNASIER; WERMUTH, 2015, p. 15).

É interessante ressaltarmos que, enquanto os discursos acerca da criminologia na


Europa ocorreram como formas de crítica à ordem Estatal da repressão, no Brasil o cenário se
inverteu, pois de acordo com Fornasier e Wermuth (2015, p. 16-17) esse discurso se pautou
na tentativa de legitimar a afirmação da burguesia. A tipificação da vadiagem, como
exemplifica os autores, é um ótimo exemplo para encararmos como mesmo após a abolição da
escravatura, ainda se remanesceu um estigma a comunidade negra, que continuava sujeita à
permanecer como classe servil.

Nesse sentido, se o sistema punitivo brasileiro já foi pensado/estruturado a partir de


um objetivo bem definido, qual seja, a segregação/eliminação dos riscos
representados pela existência de classes perigosas (pobres), dita seletividade foi
incrementada com as reformas neoliberais que se verificam na sociedade brasileira
nas ultimas décadas, e, no campo penal, pelas recentes novações que se busca
consolidar, a exemplo do caso dos bancos de perfis genéticos (FORNASIER;
WERMUTH, 2015, p. 18).

Logo no Brasil atualmente, para Fornasier e Wermuth (2015, p. 19) há um modelo de


ordenamento social onde a delinquência das classes subalternizadas é atribuído o papel de
criação de medo e insegurança, logo cria-se um ambiente propício para o controle e
eliminação dos setores da população em desafeto com os interesses hegemônicos.

Nessa lógica podemos questionar: qual a relação podemos estabelecer, portanto, entre
as digitais e a biometria humana e seu código genético? O que fica claro, desde já, é que a
nova identidade que emerge na contemporaneidade é a identidade sem pessoa. A redução do
homem à vida nua é atualmente a sua base de identidade no que tange seu reconhecimento
como cidadão; perde-se o nome ou nacionalidade para tornar-se logo, um número pertencente
49

a um banco de dados e reduzido por fim ao nível de criminoso em potencial. A identidade


sem pessoa nos guia então à ilusão de que não há, portanto, uma unidade social, mas sim, uma
multiplicação infinita de máscaras (AGAMBEN, 2010, p. 52-53).

Podemos vislumbrar que por fim, o etiquetamento do indivíduo está associado


classicamente a posição social por ele ocupada (FORNASIER; WERMUTH, 2015, p. 23) e
assim, dada a necessidade quantitativa do sistema penal em conter certos indivíduos, e em
meio a uma sociedade que é fruto da miscigenação, Fornasier e Wermuth (2015, p. 21) nos
questionam: quantos não serão inseridos em tais bancos genéticos?
50

2 A EXPECTATIVA DE ESTAR SENDO OBSERVADO, A CONSTRUÇÃO SOCIAL


SOBRE O COMPORTAMENTO (IN)DESEJADO E O CRIMINOSO

Como vimos no capítulo anterior, a expectativa de estar sendo observado para os


autores estudados são formas de moldar as pretensões dos indivíduos, ou seja, moldar seus
comportamentos.

Agora, partimos da premissa de que essa realidade vigilante está inserida em um


mundo formado por sistemas de comunicação, pensados pelo alemão Niklas Luhmann, que
em 1984 publicou sua obra “Os Sistemas Sociais” e mais adiante equipou a teoria, que agora
será analisada de maneira breve.

2.1 Os sistemas de Niklas Luhmann

Ao tratarmos de uma teoria complexa como essa, torna-se imprescindível entendermos


inicialmente os conceitos básicos para sua compreensão. Inicialmente é necessário partirmos
da premissa de que à luz da teoria dos sistemas sociais, a sociedade em si é comunicação; e os
sistemas são constituídos desta.

Para Luhmann (1997, p. 73), o elemento primordial para reprodução, funcionamento e


interação dos sistemas sociais é o processo de comunicação, afinal a sociedade em si é
comunicação; e essa passa por um processo, o da informação, o ato em si da comunicação e a
compreensão (ROCHA, 2013, p. 337). Ao falarmos em sociedade, podemos pensar a mesma
em um sistema global de sociedades regionais ou uma sociedade global para efeitos de
comunicação, onde o sistema autopoiético é capaz se adaptar ao seu ambiente. Essa é a razão
pela qual a sociedade caminha em direção aos problemas individuais (LUHMANN, 1997, p.
74). A oscilação entre autorreferências são formas claras de se perceber como o sistema
autopoiético na medida em que se abre para a percepção de novos estímulos (abertura
cognitiva) é ao mesmo tempo um sistema operativamente fechado.

De acordo com Fornasier e Silva (2018) sobre a teoria sistêmica, é necessário


entendermos que a complexidade e a diferenciação funcional são temas centrais sob a ótica de
51

Luhmann, uma vez que segundo o mesmo, a sociedade moderna é marcada por funções
diferenciadas que assumem a forma de subsistemas (LUHMANN, 1997, p. 67). Em sua teoria
ele apresenta uma visão distinta do mecanicismo ao entender que apesar da existência de
contingências no mundo certas funções e estruturas se condensam em ordens que acabam por
formar um sistema.

Trabalha-se então a visão de que há três tipos de sistemas basilares (LUHMANN,


1997, p. 73) e que se diferenciam pelos tipos de operações realizadas por estes, quais sejam:
a) os sistemas vivos (de operações básicas, que transformam a matéria em vida), b) os
psíquicos (da transformação de estímulos em pensamentos) e, por fim, c) os sociais (relativos
a produção de comunicação). Além disso, admite-se a existência de subsistemas que se
englobam nestas mesmas categorias, como o Direito e a Economia por exemplo.

É possível entendermos, portanto, que imersos nesta lógica podemos conceber a noção
da sociedade como um sistema cognitivamente aberto a possíveis estímulos, mas ao mesmo
tempo operativamente fechado, e essa percepção é fundamental para a compreensão da
terminologia da autopoiese utilizada na teoria de Luhmann (FORNASIER; SILVA, 2018,
s.p.).

Rocha (2013, p. 336) nos ensina que os sistemas de Luhmann a partir da diferenciação
constroem o sentido, que parte da premissa da diferenciação funcional em meio aos sistemas
sociais e ainda que, o sistema é operativamente fechado para manter sua unidade e
cognitivamente aberto para poder observar sua diferença constitutiva.

O conceito de fechamento operativo não exclui a evolução, embora a evolução em si, e


para fins sistémicos, não se trate necessariamente de uma melhora, mas sim de uma mudança;
as estruturas do sistema foram estabilizadas de maneira com que se tornaram subjetivas ao
impacto da evolução. Luhmann (1997, p. 69) apresenta seu estudo dissertando que a
sociedade não deve ser vista como uma raça apenas, e sim um grande e complexo sistema de
comunicações dividido em subsistemas funcionais e autopoiéticos que são estruturados
através de uma programação própria e são, portanto, comunicações.

Resta-nos a seguinte pergunta então: o que diferencia a essência de um sistema da de


outro? A resposta para tal questionamento está na existência de um código binário de sentido
52

(LUHMANN, 2000, p. 17). O direito irá dissertar, por exemplo, acerca da lógica do legal e do
ilegal enquanto que a ciência, por exemplo, é mais pragmática e irá falar sobre verdades e
falsidades, afinal a mesma é baseada em seu alto grau de falseabilidade e a possibilidade de
confrontação com o inverídico.

O ambiente é construído pela própria sociedade dentro das condições fornecidas pela
comunicação (se distanciando da normatização através de soluções); nem tudo que
individualiza o homem pertence à sociedade, afinal ela não se trata da soma das liberdades
individuais humanas, mas sim, de suas concordâncias e posteriores complementariedades.
Unicamente a consciência pode guiar a comunicação no caminho da autopoiese, e unicamente
a consciência pode realizar o “ruído necessário” para emergência e evolução social de acordo
com Luhmann (1997, p. 73), e acerca destas colocações é possível percebermos o caráter
evolucionista de seu discurso.

É importante destacarmos também o modo de comunicar, afinal o processo da


comunicação não gira em torno somente do fato; visa-se a compreensão ao final desta
operação, já que a informação se torna parte de um processo que por intermédio do modo de
comunicar leva a compreensão (LUHMANN, 1997, p. 68). Outro conceito chave de tal teoria
é o paradoxo, ou seja, uma argumentação circular (ex.: Direito é baseado na lei, pois o próprio
Direito afirma isso; mas o direito pode rever o que ele mesmo diz). Os subsistemas se auto
justificam e assim realizam uma autopoiese, que para Rocha (2013, p. 338) caracteriza-se
como a redefinição da perspectiva da produção do sentido originária da linguagem, para um
ênfase na comunicação e autorreprodução com autonomia ante ao ambiente na ideia
sistêmica.

É de extrema importância o respeito entre os indivíduos para a reprodução da


sociedade operacional e o desenvolvimento de sua própria autopoiese; estes indivíduos não
são e nem devem ser “partes” de uma sociedade, e assim não faz sentido afirmar que sua
existência se restringe a uma mera participação dentro do sistema global, dada sua
importância na produção de comunicação através da consciência (LUHMANN, 1997, p. 69).

De acordo com Fornasier e Silva (2018), teorias legais que são produzidas pela
educação prática e a aplicação de leis objetivadas através de textos determinam a maneira a
qual o Direito se apresenta hoje, que não é nada a mais do que o resultado da interpretação, ou
53

seja, mais uma forma de comunicar. Neste contexto, é um produto do sistema legal
observando a si mesmo; entretanto, isso não significa que a capacidade reflexiva é a
definidora de sua unidade sistêmica ou do seu significado em si (LUHMANN, 2008, p. 84).
Estas teorias legais citadas são criadas em resposta à prática legal e sua necessidade de
concretização sendo combinadas a uma determinada expectativa gerada pela própria
existência da mesma, e assim, podemos a considerar mero produto de uma necessidade
humana.

Luhmann (1997, p. 67) trabalha com a ideia de um “sistema global”, onde as redes de
comunicação estão interligadas e as informações são parte de um processo de programação
atemporal. O mercado financeiro é volátil, derivado de instrumentos de maximização de
segurança instantânea; e assim ultrapassa as barreiras nacionais com a comunicação de fatores
econômicos e políticos dentro do sistema, trazendo consigo uma nova concepção da palavra
“internacional”.

Mas do que se trata a sociedade? O que queremos dizer com essa terminologia?
Luhmann (1997, p. 69) explica que a sua conceituação tem sido um dos estudos mais difíceis
da sociologia, e por esse motivo acredita que seu conceito deve abranger aspectos além dos
tradicionais, que desafiam os parâmetros de diferença e da unidade, que com a sedimentação
da hierarquia se tornaram um princípio secundário. Em sua construção teórica, ele apresenta a
ideia de que a sociedade não deve ser vista como uma raça apenas, e sim na implicação de que
se trata de algo que tem por objeto o bem comum de todos logo, o sistema formado por
comunicações, já mencionado.

Podemos observar a enorme flexibilidade estrutural no sistema, que pode ser chamado
de sistema racional, pois se trata da distinção e do espaço entre o sistema e o meio ao redor.
Nesse contexto se justifica o “preço da vida moderna” quanto aos impactos ao ambiente
externo e ao próprio homem no seu sistema natural; e em contrapartida se buscam soluções
para torna-la mais razoável. Porém, a nova concepção de modernidade emergiu e distinguiu
separando as funções sistêmicas de razoabilidade mencionadas anteriormente, e proclamou o
desenvolvimento e o custo necessário para o mercado se desenvolver cada vez mais
(LUHMANN, 1997, p. 75).
54

De acordo com Fornasier e Silva (2018), ao falarmos em sociedade podemos pensar


em um sistema global de sociedades regionais ou uma sociedade global para efeitos de
comunicação. Obviamente o sistema autopoiético pode se adaptar ao seu ambiente, e essa é a
razão pela qual a sociedade caminha em direção a problemas ecologicamente individuais
(LUHMANN, 1997, p. 74); assim a oscilação entre referências externas e autorreferências são
formas claras de se perceber como o sistema autopoiético na medida em que se abre para a
percepção de novos estímulos é, ao mesmo tempo um sistema fechado operativamente.

Teubner (1993, p. 19) entende que o Direito, por exemplo, como subsistema se
autodetermina em razão de sua autorreferência, e com isso assevera na ideia da circularidade
das relações jurídicas. O Direito, assim, iria recair em um ciclo contínuo que perpassa pela
evolução da comunicação até o saber legal jurídico.

2.2 O panóptico a partir da leitura sistêmica

Primeiramente, para vincularmos ambas teorias precisamos entender o que é a


observação para Luhmann e como esta opera no Panóptico.

Para Philippopoulos-Mihalopoulos (2015, p. 73-74) uma visão global do campo de


observação é a responsável por observações que são contingentes; neste ponto, o autor
entende que era isso que Niklas Luhmann se referia quando ele menciona o ponto cego da
observação, afinal é a “coisa em si, o corpo como um todo que ilude a observação”. De
acordo com o autor todo corpo é atraído não somente pela observação, mas também por si
mesmo, afinal:

[...] não conhecemos os limites de um corpo, seja visto como uma compreensão
positiva do poder hipnótico ou como uma compreensão Luhmanniana da ignorância
das miríades de pontos cegos produzidos a cada movimento. O pós-humanismo
requer humildade epistemológica e ambição ontológica (PHILIPPOPOULOS-
MIHALOPOULOS, 2015, p. 73).

A organização do ambiente social e físico pode vir a causar uma irritação dos sistemas
psicológicos, e assim, a partir de uma alteração nos sistemas psicológicos o indivíduo pode
alterar sua forma de se comunicar na sociedade (a ação do indivíduo é uma forma de
comunicar, via compartilhamento de sentidos).
55

Nicola (2013, p. 262) ao estudar Luhmann narra que as estruturas sociais são
concebidas como complexos sistemas que devem desmistificar uma expressiva quantidade de
problemas entre os sistemas e o ambiente, e que a abordagem de Luhmann é interdisciplinar,
afinal são utilizados inúmeros conceitos nos mais variados domínios do conhecimento
humano.

Uma observação muito pertinente acerca da teoria sistêmica à luz dos ensinamentos de
Luhmann é que as propostas do mesmo dizem respeito à observação sociológica, e que a
produção da comunicação é considerada a produção da sociedade em si; neste ponto a teoria
torna-se parte do objeto do qual se ocupa (NICOLA, 2013, p. 263).

Rocha (2013, p. 331) assevera que a concepção sistêmica de Luhmann parte do


pressuposto de que a sociedade, em razão de suas características permite a compreensão de
fenômenos sociais por intermédio de laços de interdependência que os unem em uma
totalidade. Para Luhmann em um mundo complexo e contingente, o comportamento social
requer “reduções” que irão representar expectativas comportamentais recíprocas e que são
orientadas a partir das “expectativas sobre tais expectativas” (ROCHA, 2013, p. 334).

A mídia por sua vez observa o crime e cria um espetáculo, e os sistemas selecionam de
acordo com o seu código. Logo, determinados tipos de crime são espetacularizados porque ao
serem observados pelo sistema social da mídia são por estes considerados como tendo alto
valor informativo (ou seja, estão adequados ao polo positivo do código informativo, não
informativo), e essa decisão é embasada em outras decisões passadas já tomadas pelo sistema,
que acabou criando para si próprio aquilo que é espetacularizavel.

O panóptico se transformou, e outros sistemas complementares estão observando a


sociedade, como o super panóptico. Este cria uma sensação de vigilância constante e essa
sensação vai causar reflexo nos sistemas psíquicos; o panóptico é o modo de manipular a
observação de forma a obter um comportamento desejado, ou seja, é uma forma política.

O super panóptico vai se utilizar de técnicas de observação para criar o perfil de uma
pessoa através do recolhimento extenuante de dados, enquanto que o sinóptico vai criar um
modelo de comportamento na mídia que vai ser comunicado como modelo a ser seguido.
56

Entretanto, o sinóptico realiza o que se propõe a fazer? Possivelmente uma resposta para tal
pergunta se encontre nas discussões a seguir.

2.3 A construção da comunicação social sobre a figura do criminoso

Para Wacquant (2004, p. 42) existe a penalização da insegurança social, e a crescente


comunicação internacional passa a explorar o tráfico derivado destas comunicações em
âmbito cientifico. Por intermédio de intervenções e publicações agora, de caráter
universitário, é que os “transmissores” intelectuais atraem as esferas de decisão política e os
jornalistas preocupados em ater-se à realidade, aquela projetada pela visão autorizada da
mídia, deixam escapar um contexto social e demais peculiaridades de um flagrante na mídia.

Para Nicola (2013, p. 260), a modernidade fez surgir uma sociedade emancipada,
alienada e desencanada, e que tais características indicam uma nova mentalidade social cujo
espírito recai na “desnaturalização” das relações sociais. Nesse cenário a sociologia como
ciência dessa sociedade passa a buscar seus fundamentos, e olhar sociologicamente para o
direito.

É por meio da comunicação que a sociedade se estrutura (ROCHA, 2013, p. 337) e em


meio às comunicações sistêmicas, que os sistemas em si adquirem sua identidade em uma
permanente diferenciação com o ambiente e os demais sistemas.

Rocha (2013, p. 342) ao estudar Luhmann se dá conta que ao analisar campos


heterogêneos como a ciência, o direito, a economia e a política colocam-se em evidência
estruturas que podem ser comparadas em relação à observação das diversidades destes.

2.3.1 A inclusão e a exclusão das comunicações sistêmicas

Em uma de suas retomadas históricas, Luhmann (2008, p. 24) conta que nos séculos
XVII e XVIII muito se falava sobre a principiologia da felicidade, que funcionava da seguinte
maneira: se você era satisfeito com sua condição desde o nascimento, poderia ser feliz em
toda sua caminhada ao longo da vida, afinal há mais chances de felicidade em si mesmo (e se
57

adaptando a suas condições) do que qualquer status pode oferecer. Ao fim deste período, se
deu a comercialização do mercado, inicialmente com a agricultura e por fim com a produção;
e com ela, a Revolução Industrial, que trouxe consigo uma “nova ordem social” com uma
nova “estrutura de classes” que não dependia mais da origem, mas sim da carreira e de seu
contingente de visibilidade. Essas mudanças trouxeram um novo panorama social: o da
legitimação do interesse, que com a variedade de produção gera a expectativa; e este aliás, é o
discurso da sociedade moderna.

O século XX para Luhmann (1997, p. 70) não trouxe felicidade, muito menos
solidariedade, e a reprodução da mídia de massa ocasionou uma maior discrepância entre
estes; em vão se disseminaram discursos de unidade alimentando utopias, gerando novos
desapontamentos, e assim carências pareceram reafirmar a necessidade na unidade do sistema,
mesmo entre tantas reformas estruturais.

As grandes massas, que almejam condições básicas de existência e que não têm acesso
a nenhuma das funções sistêmicas são suprimidas pelas classes dominantes, agora não mais
no fenômeno de hierarquização, mas sim, dentro dos conceitos de “exclusão” e “inclusão”. As
sociedades tradicionais exercem essas práticas “aceitando ou não” certo grupo em seu meio de
convívio, e elas excluem aliás, as massas através das funções do sistema; uma de suas funções
de acordo com o Luhmann (1997, p. 70) seria a de incluir os indivíduos em sua
movimentação, através da exclusão daqueles que não atendem as suas exigências.

Uma exclusão serve de exemplo para as demais acontecerem e, nesse momento, a


sociedade se encontra integrada, mas não de uma forma positiva; neste contexto Luhmann
(1997, p. 70) garante: os valores modernos servem para preservar uma ilusão de inocência,
onde há equidade de oportunidade.

Outra característica que serve para descrever a sociedade moderna como um sistema
funcional diferenciado sob a ótica de Luhmann (1997, p. 71) é que gera classes sociais, e
essas funcionam como um subproduto sem utilidade para as operações seletivas desse sistema
funcional. O pressuposto da estabilidade de fronteiras resulta como uma condição de evolução
que o torna ainda mais complexo. Neste ponto se chega à conclusão de que a sociedade deve
ser definida não por um estado idealizado de funções compensatórias, mas por limites de
operações, onde estes produzem diferenças entre o sistema e o ambiente.
58

Quanto à autonomia do sistema e ao seu grau elevado de indiferença juntamente com


um elevado nível de irritabilidade e sensibilidade que ele traz consigo, cada vez mais
justificamos nossos hábitos diariamente como desculpa para progredir, gerando assim
distinções a respeito do meio ambiente social. Então se gera o questionamento: como
podemos progredir quando isso depende da negligência? (LUHMANN, 1997, p. 75). Uma
possível resposta para tal pergunta para o autor depende de uma pesquisa sociológica
aprofundada, que seja capaz de abarcar as mudanças sociais que acompanham o homem
dentro de sua sistemática.

A sociedade gera fronteiras externas através de operações elementares, recursos de


comunicação internos que posteriormente se expandem para o globo; e a terminologia da
comunicação pode ser explicada entre o lapso temporal do passado (e, portanto, daquilo que
já ocorreu) e de suas possibilidades futuras (do que pode ser) e não acontece em um único
evento, pois necessita justamente desse lapso temporal para que o sistema possa progredir
(LUHMANN, 1997, p. 73).

Olhando para o futuro não podemos encerrar a lista de possibilidades; entretanto para
Luhmann (1997, p. 76) o pior cenário possível é pensar que em alguns séculos a sociedade
pode de fato aceitar o fator de exclusão, e isso guiaria a ocorrência de que alguns de nós
seriam pessoas de fato, e outros apenas indivíduos. Em diversas cidades, sobretudo as
grandes, podemos observar já a incidência desse fato com as favelas (que se organizam às
margens da construção do padrão ideal). Neste ponto, não é irreal esperarmos que a migração
de pessoas para esses espaços irá alimentar uma diferenciação, que irá ultrapassar questões
regionais, pois irá se tratar de um problema entre a sociedade sistêmica e a sociedade
mundial; e o próprio desenvolvimento humano e do meio que o cerca (LUHMANN, 1997, p.
77).

Teorias evolucionárias, segundo o entendimento de Luhmann (2008, p. 231), não


devem ser utilizadas como argumento por analogias, pois podem ter diversas aplicações; ele
afirma ainda que, prefere uma abordagem teorética. Desenvolvimentos recentes da teoria dos
sistemas não tornam fácil expressar ou resolver algum problema, pelo contrário, tornam essa
missão ainda mais difícil, pois inicialmente se deve partir da presunção de que os sistemas
estão fechados e suas estruturas são determinadas.
59

Neste contexto é ainda mais difícil de entender como estruturas podem ser mudadas e
por que é possível às vezes detectar a direção destas mudanças na diversificação de “espécies”
que amplificam a complexidade da sociedade. Com o crescimento da intensidade do
problema, a demanda instrumental utilizada para resolver o problema também aumenta e
assim surgem critérios. Evidentemente a evolução acontece apenas se a diferença e a
adaptação são preservadas no relacionamento entre o sistema e o seu entorno, meio ao qual
está inserido (LUHMANN, 2008, p. 231).

Para Philippopoulos-Mihalopoulos (2015, p. 283), Luhmann chama a justiça de


“formula de contingência” uma vez que a sua emergência é sempre contingente dentro de
condições específicas, mas ao mesmo tempo não são previsíveis. Ainda por cima, o autor nos
conta que o futuro do direito, incluindo seu funcionamento espacial e contemporâneo é parte
do sistema legal, afinal o direito em si é a operação principal da autopoiese do sistema legal,
já que não “há direito antes de haver direito” (PHILIPPOPOULOS-MIHALOPOULOS, 2015,
p. 80).

O infame ditado de Niklas Luhmann de que os seres humanos são excluídos da


sociedade foi criado como um desejo de abandonar a efígie e começar a pensar no ambiente,
considerado tradicionalmente “fora” do ser humano como o principal local de atividade
humana. Nesse sentido, o cenário jurídico é uma “ecologia mental, natural e cultural”, a
natureza (no sentido da terra) e o movimento social (PHILIPPOPOULOS-
MIHALOPOULOS, 2015, p. 93).

De acordo com Philippopoulos-Mihalopoulos (2015, p. 113), o direito está mudando


de direção, de ser a coisa que obstruí um corpo contra outro, para ser a algo que repele um
corpo específico, não apenas de um determinado espaço, mas de forma mais clara, de um
comportamento determinado. O direito se coloca como arcada de autodefesa, rendendo todo
aquele cuja presença é potencialmente suspeita. Neste contexto falamos da ampla
visibilização que o direito ganha, em detrimento da invisibilidade dos espaços
(PHILIPPOPOULOS-MIHALOPOULOS, 2015, p. 114).

O espaço adiciona a si mesmo um parâmetro singular cuja preocupação legal com o


tempo, história e espera força o direito a lidar com uma nova forma de contingência: a
decorrente da peculiaridade das características espaciais, quais sejam: a simultaneidade, a
60

repetição, a desorientação, a materialidade e exclusão da colocação corporal


(PHILIPPOPOULOS-MIHALOPOULOS, 2015, p. 37).

Para Neves (2012, p. 285), o Direito Ambiental e o Direito Social, dirigidos a inclusão
são formas de constituição secundárias de Direito da sociedade mundial, isso tudo em razão
dos preceitos jurídicos dos Direitos Humanos ainda serem muito frágeis, afinal na medida em
que são encaixados discursos morais acerca da inclusão da pessoa ou exclusão do homem
esses são barrados por discursos cuja mentalidade é voltada ao mercado e ao poder “regular e
sistemático”. Assim, estes mesmos discursos permanecem como simbólicos
predominantemente em plano internacional.

De acordo com Neves (2012, p. 288) essa fragmentação exposta, não significa nada
sob o ponto de vista da integração sistêmica e a questão que se coloca é: como integrar esses
fragmentos em uma ordem diferenciada de comunicação? Como se podem construir relações
de interdependência entre os fragmentos? Para o autor, essa é a questão fundamental da
integração sistêmica.

Neves (2012, p. 289) cita Luhmann ao mencionar que para ele a integração sistêmica
se tratava da “redução dos graus de liberdade de subsistemas ou para seleções” e assim,
trabalhava afinco a interdependência dos sistemas bem como a dependência dos agentes para
com os sistemas sociais.

Considerando a dependência das pessoas relativamente aos sistemas sociais,


Luhmann afirma que a sociedade mundial é superintegrada e, portanto, precisa de
desintegração. Mas, em relação à interdependência entre sistemas sociais, caberia
afirmar que ela aponta fortes tendências negativas à fragmentação, que também
importa um perigo de desdiferenciação (NEVES, 2012, p. 287).

O autor sustenta que um certo grau de desintegração intersistêmica contribui para a


integração e dependência excessiva de pessoas aos sistemas sociais, mas quanto ao excesso de
integração destas a questão perpassa a problemática da integração social da inclusão e
exclusão (NEVES, 2012, p. 288) e, desta forma, o conceito inicial de integração é a
interdependência sistêmica.

Logo, o transconstitucionalismo para o autor pode oferecer uma transição entre ordens
jurídicas, bem como se apresentar como uma estrutura reflexiva que poderá guiar o sistema
61

jurídico à solução de problemas complexos no que tange a sociedade mundial por oferecer
modelos normativos para sanar relações conflitantes entre os sistemas (NEVES, 2012, p.
288).

A alta complexidade da sociedade mundial importa na exigência de diferenciação


funcional, mas esta só se realizou de forma limitada no contexto social, e esse é um dos
grandes paradoxos da nossa atual sociedade mundial. É um problema que diz respeito tanto à
corrupção sistêmica quanto a fragmentação, que de certa maneira atuam em conexão
(NEVES, 2012, p. 289-290).

Disso decorrem estruturas normativas elementares relacionadas à sociedade


multicêntrica e altamente complexa. O transconstitucionalismo apresenta-se como
um contraponto normativo básico tanto em relação à primazia expansiva das
estruturas cognitivas da sociedade mundial (vinculadas à economia, à técnica e a
ciência) quanto também a respeito da semântica de controle das informações (e do
saber) pelos órgãos de comunicação de massas (NEVES, 2012, p. 290).

Neves (2012, p. 290) apresenta uma perspectiva muito interessante ao afirmar que
apesar de se reconhecer que o Direito internacional constitui uma técnica hegemônica em
relação aos interesses e privilégios, propõe-se uma compreensão do mundo internacional
como uma comunidade política.

Para Neves (2012, p. 292), o que se exige da sociedade mundial atualmente é a


promoção da inclusão e com isso, a redução da exclusão; a inclusão mencionada deve dar
acesso às pessoas aos benefícios dos sistemas funcionais enquanto que na exclusão falta
acesso. As camadas sociais periféricas da modernidade dependem atualmente de restrições,
como a falta de capacidade de diversos sistemas e isso é uma forma de desintegração social
destes. Neste sentido, o autor aponta o que Luhmann já mencionava ser a corrupção sistêmica,
um problema moral da sociedade mundial.

O autor nos ensina que a promoção da inclusão juntamente com a confrontação do que
mencionamos ser a corrupção sistêmica em meio à sociedade mundial encontra melhores
condições no transconstitucionalismo do sistema jurídicos (NEVES, 2012, p. 293).

[...] o que se exige, no âmbito do transconstitucionalismo, não é pertinência ou


comunidade, mas sim uma promoção de inclusão generalizada, ou melhor, a redução
62

da exclusão primária crescente, especialmente em relação ao direito, no contexto de


uma estrutura heterogênea e diferenciada e comunicações (NEVES, 2012, p. 293).

Logo, a partir do descrito, podemos entender que a falta de condições mínimas de


sobrevivência para grande parte da população da sociedade mundial implicam em uma
exclusão social absoluta de respectivos grupos humanos e com tal fenômeno uma violação
gritante da dignidade humana e aos direitos Humanos enquanto inclusão jurídica generalizada
(NEVES, 2012, p. 252).

2.3.2 O criminoso no direito e na política

A história do Direito dos tempos mais remotos até agora para Luhmann é comparável
com a própria existência da sociedade em si, que sempre teve que coexistir de forma
ordenada, e por isso é algo facilmente memorável. Inicialmente os debates eram acerca dos
procedimentos que o Direito se utilizava para se materializar, mas hoje o foco se concentra na
preocupação em relação as decisões judiciais e suas motivações (LUHMANN, 2008, p. 53). A
experiência social advinda de casos que passaram por uma corte são utilizados de forma com
que motivarão decisões ou conflitos futuros, e embasarão argumentos e teses.

Na visão do autor é possível fazermos duas alternativas de distinguir e de observar o


Direito: um meio jurídico e um sociológico (LUHMANN, 2008, p. 59). Sociólogos observam
as leis de fora e os advogados e operadores do Direito observam o mesmo de dentro;
sociólogos estão ligados pelo seu próprio sistema, que pode demandar uma conduta de
pesquisa empírica e os juristas por sua vez também estão ligados pelo seu próprio sistema,
entretanto, falamos do sistema legal e das leis em si. Uma teoria sociológica do direito nos
guia então a uma descrição externa do próprio sistema legal, desta forma é importante
entender a ligação de ambos ramos.

Nessa lógica temos que Rocha (2013, p. 335) por sua vez, assevera que: “o direito é
assim, a estrutura de um sistema parcial da sociedade que se baseia na generalização
congruente e expectativas comportamentais normativas”.
63

As teorias jurídicas legais têm se desenvolvido ao redor do mundo com base na


tradição da civil law e da common law, e tudo isso se dá através da necessidade de uma
educação legal voltada para o pensamento do Direito e de sua aplicação prática. Inicialmente
os debates eram acerca dos procedimentos que o Direito se utilizava para se materializar, mas
hoje o foco se concentra na preocupação ou debate em relação às decisões judiciais e suas
motivações (LUHMANN, 2008, p. 53).

De um lado, essas teorias e conceitos deveriam manter sua identidade ao serem


processados, e serem condescendentes com sua materialização; mas em outra mão, um
preceito pode ser usado em ocasiões diversas, criando situações inéditas que muitas vezes
variam sua estrutura ao ampliar sua devida aplicabilidade (LUHMANN, 2008, p. 84). Teorias
legais são criadas em resposta à pratica legal e sua necessidade de concretização sendo
combinadas à uma determinada expectativa, criada pela noção da existência da mesma, e
assim podemos considerar um mero produto de uma necessidade humana que aterrissa em
momentos de cegueira.

As teorias classificam matéria subjetiva em face de um problema relacionado, ou uma


situação consequente advinda deste, e é necessário que uma instância regule o conflito de
interesses quando há de se fazer o balanço necessário de falhas ou debilidades, e para isso,
“regras” devem ser desenvolvidas, juntamente com critérios de interpretação (LUHMANN,
2008, p. 54).

Uma segunda base fundamental para a organização conceitual de abstrações e


sistematizações de teoria é a educação legal; sua relevância pode ser avaliada em diferentes
perspectivas, desde sua relevância teórica, a sua prática (LUHMANN, 2008, p. 84). Teorias
legais que são produzidas pela educação prática e a aplicação de leis objetivadas através de
textos formam a maneira com a qual o Direito se apresenta hoje, que não é nada a mais do que
o resultado da interpretação (LUHMANN, 2008, p. 85). Neste contexto, é um produto do
sistema legal observando a si mesmo.

Neste contexto, Phillippopoulos-Mihalopoulos assevera que:

O infame ditado de Niklas Luhmann de que os seres humanos são excluídos da


sociedade foi criado como um desejo de abandonar a efígie e começar a pensar no
ambiente, considerado tradicionalmente “fora” do ser humano, como o principal
64

local de atividade humana. Nesse sentido, o cenário jurídico é uma “ecologia mental,
natural e cultural”, a natureza (no sentido da terra) e o movimento de o social
(PHILIPPOPOULOS-MIHALOPOULOS, 2015, p. 93).

O trabalho em torno de teorias legais, doutrinas, princípios e noções não devem ser
vistas como o trabalho de um profissional defendendo a si do criticismo, ou o ato de justificar
suas próprias ações através de um simbólico processo de legitimação de funções. Essas
interpretações teóricas não querem se restringir à dogmática, pois passam a combinar a
hermenêutica, teorias sistêmicas, a retórica e a argumentação (LUHMANN, 2008, p. 85).

A falta de um perfil “limpo” não significa que a de teoria legal dispensa um conceito
básico, por conceito básico Luhmann (2008, p. 86) explica que se refere a um conceito que é
definido por si mesmo, ou seja, um curto e rotativo que leva ao caminho da autorreferência.
Desta forma, entre normas e fatos há uma distinção que não deve ser confundida ou tratada
levianamente, e essa acepção nos mostra que a teoria legal é subordinada a si mesma no
sistema legal.

Os filósofos de vários períodos diferentes para Luhmann (2008, p. 87) têm estado
preocupados com questões que eram tão abstratas que ninguém imaginou que advogados ou
juristas (e até mesmo pessoas envolvidas de certa forma com questões jurídicas) estariam
interessadas, e uma destas questões, por exemplo, é a própria obediência ao Direito. Isso é
uma questão que definitivamente ninguém espera que o sistema legal vá responder
positivamente, afinal há a obrigação quase que implícita de se obedecer à lei, caso contrário o
“direito” e a “lei” iriam entrar em colapso em si mesmos. Nessas situações a classificação
teórica da questão da obrigação pode ser de grande ajuda para entender até o mais concreto
caso.

Este problema na opinião de Luhmann é agudo no caso do relacionamento entre o


conhecimento legal e a sociologia, afinal o conhecimento legal se preocupa com a
normatividade da ordem legal enquanto que a sociologia se preocupa com a orientação
teorética social, suas instituições sociais e comportamentos (LUHMANN, 2008, p. 57).

Talvez seja possível concordarmos que pelo menos em um ponto não há nada que se
possa ganhar discutindo acerca de natureza ou essência das leis enquanto que a questão que
deveria ser respondida é: há limites para o Direito? (LUHMANN, 2008, p. 57). Essa questão
65

aponta para o velho e bom dilema dos limites analíticos e concretos, sendo que eles são
definidos por quem os observa ou pelo objeto em si. Chegamos assim em um ponto onde
passamos a tratar da interdisciplinaridade e a abordagem internacional da teoria legal, que
pode ser exercida ou extraída de grandes distâncias.

Em um contexto biopolítico distintamente foucaultiano de multidões contra supostos


criminosos, o que se observa socialmente não é a causa, mas o fim; a presença do direito para
Philippopoulos-Mihalopoulos (2015, p. 114) obriga ao agente a se ver como potencial
criminoso e se esconder atrás de um estereótipo inocente. Essa imperatividade para o autor diz
servir ao propósito da “segurança pública”, mas na maioria das vezes serve como estratégia
para intensificar uma separação social delineada pelo fator da violência. A separação da dita
igualdade exterior, chamada de paz. Isso implica em uma forma de provocação do público,
que faz com que essa mesma violência seja inflamada (PHILIPPOPOULOS-
MIHALOPOULOS, 2015, p. 124).

As forças policiais, por exemplo, podem ser vistas como organizações internas do
sistema da política, agindo conforme ideologias que são direta ou indiretamente endossadas
pelo Estado. No Brasil, em especial, além da forte presença no sistema político de racismo e
conservadorismo, a insegurança criminal tem a característica de ser agravada pela “invenção
das forças da ordem”, ou seja, o uso contínuo e diário da violência letal pela polícia miliar, e a
tortura mascarada por artefatos que fazem os suspeitos “confessarem”, o que poderia explicar
também o alto índice de desaparecimentos (WACQUANT, 1999, p. 5).

Em países cuja miscigenação é notável outro fator é preponderante: a hierarquia de


classes e a estratificação social, cuja discriminação se baseia na cor (WACQUANT, 1999, p.
6) e proporciona uma situação onde as pessoas cuja posição social se encontra mais favorável
acabam beneficiadas pela vigilância policial. As pessoas “de cor”, segundo o autor, atrás das
grades são submetidas às condições mais duras de detenção sofrendo assim violências mais
duras.

De acordo com Wacquant (1999, p. 6) penalizar a miséria significa tornar invisível o


problema do negro e assentar a dominação racial dando-lhe um aval de Estado. Sobre o
flagrante e a incapacidade dos tribunais em fazer cumprir-se a lei, ele disserta:
66

[...] encorajam todos aqueles que podem buscar soluções privadas para o problema
da insegurança – barricadas em bairros fortificados, guardas armados, vigilância
tolerada e até encorajada por parte dos justiceiros e das vítimas de crimes – o que
tem por principal efeito propagar e intensificar a violência (WACQUANT, 1999, p.
6).

Tal inclusão sistemática em alojar-se ou recolher-se gera ainda mais exclusão, e a


violência continua das autoridades, que perpassa desde as brutalidades do dia a dia até as
matanças em massa onde se institucionaliza a tortura; e nesse cenário instável o aparelho
carcerário apenas serve para agravar a instabilidade e a pobreza bem como, alimenta a
mentalidade de desprezo da lei e da justiça como um todo (WACQUANT, 1999, p. 7).

Wermuth (2011, p. 29) nos ensina que na medida em que cresce a insegurança entre a
sociedade, cresce a preocupação com a criminalidade e principalmente com o crime
organizado; e os atentados de 11 de setembro de 2001, provam por si só como o sentimento
de insegurança modificou o cenário mundial. Desde então as políticas norte-americanas se
voltaram para a segurança e a prevenção para estas espécies de eventos.

Para Philppopoulos-Mihalopoulos (2015, p. 36) em relação à questão da


marginalização do espaço do direito, podem-se atribuir algumas características, tais como o
medo em nome do direito, das peculiaridades que o espaço pode importar, e esse “medo” nos
ensinamentos do autor, significam uma ansiedade que habita toda essa complexidade da
legalidade e que, de certa forma age como limitação textual e usual de fronteiras.

O medo da criminalidade pode gerar graves consequências ao comportamento da


sociedade, entre eles a mudança de conduta dos indivíduos para com os outros, e isso
certamente afeta a forma com a qual os agentes se relacionam, e como nossas interações
informais se dão. A cultura da emergência gera uma proclamação do direito penal e de todas
as instituições de sistema punitivo como os efetivos eleitos para responder a estes anseios por
segurança (WERMUTH, 2011, p. 30-31).

No discurso público ao mencionarmos a violência urbana, os centros de irradiação são


os bairros sensíveis cujos primeiros culpados sempre se presumem serem seus habitantes
(WACQUANT, 1999, p. 10). Essas noções de acordo com Wacquant (1999, p. 11) não
surgiram do nada, visto que são reforçadas pelo endurecimento da intervenção penal onde se
67

pune arbitrariamente para o reforço da segurança, em termos físicos, e não em termos


relativos à seguridade social, como, por exemplo, a educação, a saúde etc.

A direita americana entre os anos 80 e 90 assentada na ambição de “civilizar a cidade”


para garantir uma maior qualidade de vida consagrou a noção de que o caráter soberano dos
espaços públicos deve ser mantido e preservado, colocando-se em debate a desordem
provocada pelas classes desfavorecidas e as minorias não representadas na política
(WACQUANT, 1999, p. 15).

As eleições americanas, por exemplo, instauraram um cenário de perseguição dos


pobres nos espaços públicos, estes mesmos que deveriam ser “preservados” e cuja aplicação
inflexível da lei sobre delitos de baixo potencial ofensivo foram vistos como soluções sociais
e prerrogativas de campanhas eleitorais. Wacquant (1999, p. 16) conta que George Kelling em
um artigo publicado pela revista “Atlantic Monthly” adaptou um ditado popular crescente na
década de 80: “quem rouba um ovo, rouba um boi”. Essa noção serve como “álibi” para o
reforço policial empreendido pela polícia americana, principalmente nos espaços públicos e
transportes coletivos.

De Nova York, a doutrina da “tolerância zero”, instrumento de legitimação da


gestão policial e judiciaria da pobreza incomoda – a que se vê, a que causa
incidentes e desordens no espaço público, alimentando, por conseguinte, uma difusa
sensação de insegurança, ou simplesmente incomodo (...) e com ela a retórica militar
da “guerra” ao crime e da “reconquista” do espaço público, que assimila os
delinquentes (reais ou imaginários), sem-teto, mendigos, e outros invasores
estrangeiros (WACQUANT, 1999, p. 19).

No início dos anos 2000, Wacquant (1999, p. 20) nos conta que a o tratamento policial
da miséria fascinou um leque de eleitos enquanto que uma série de assassinatos no centro de
Milão deu um novo impulso ao pânico midiático ao redor da “criminalidade dos imigrantes”.
Assim, deu-se origem a uma série de medidas repressivas inspiradas na legislação recente da
Inglaterra, que adotava por sua vez uma alta criminalização dos delitos, mesmo que de baixo
potencial ofensivo, e assim surgiu a “tolleranza zero” (WACQUANT, 1999, p. 21).

O nivelamento da Europa com o enfraquecimento das proteções coletivas contra os


riscos advindos do desemprego, da doença, da aposentadoria foi acompanhado pelo
nivelamento penal (WACQUANT, 2004, p. 93) e com isso, somam-se os feitos do
68

encarceramento sobre as populações e os locais estigmatizados e desestabilizados – o alvo da


máquina penal. Nos bairros deserdados onde a prisão se banaliza surge uma cultura de
resistência até mesmo desafiando as autoridades, dos sofrimentos e violências associadas a
passagem pelo cárcere (WACQUANT, 1999, p. 94).

Para Wacquant (1999, p. 94), a máquina varredora da precariedade não se contenta em


recolher e armazenar os tidos como inúteis, indesejáveis ou perigosos e, assim ocultar a
miséria e neutralizar seus efeitos mais perceptíveis, e assim é esquecido que ela própria é que
coopera ativamente para estender a insegurança e o desamparo social que a nutre e lhe serve
de garantia.

De acordo com Wacquant (1999, p. 83), o deslizamento do social para o penal na


Europa ficou mais evidente nos discursos públicos, onde eram dissimulados discursos como:
“tough on crime, tough on the causes of crime” (“atacar o crime, atacar as causas do crime”).

Wermuth (2011, p. 31) destaca que o direito penal passa então a ser visto como órgão
orientador, visto que vivemos em uma sociedade onde as dificuldades de orientação cognitiva
são cada vez maiores; neste contexto, a sociedade se alarma ao constatar a urgência de
controle e vigilância, construídos socialmente como obsessões, e por consequência gera a
busca pela segregação de grupos de risco, e tais exclusões são vistas como urgências. Essas
exclusões também geram grande distinção entre os indivíduos que podem ou não participar
destes processos, afinal é em um momento destes em que as camadas sociais são reafirmadas:
entre aqueles que podem custear sua segurança e aqueles que são vistos como a insegurança
em si (WERMUTH, 2011, p. 32).

Assim, o futuro para Wermuth (2011, p. 33) é uma marcante ideia de risco de forma
com que é com base nele que as ações presentes sempre são pensadas também para evitar
futuros riscos. Neste contexto, o autor aborda a ideia de “administrativização do direito
penal”, que traz uma valorização do incremento punitivo e assim a política criminal ganha seu
espaço para então dar respostas a nosso apelo pelos riscos que sentimos.

Como produto da sociedade se torna necessário a existência de medidas que


satisfaçam às demandas por segurança das camadas sociais estratificadas, que estão
efetivamente inseridas nesta nova lógica social, lógica social essa que norteia se você é o
69

causador do perigo ou aquele que adquire aversão a ele; se você é o causador ou se é


efetivamente aquele que é punido (WERMUTH, 2011, p. 41).

Logo, da mesma forma como acontece no campo das comunicações, na política a


valorização da intervenção penal atua como mecanismo de ocultação de contradições sociais,
apropriando-se do medo e o racionalizando para a política (WERMUTH, 2011, p. 55).

Wacquant (1999, p. 49) nos ensina que os Estados Unidos pós-guerra se consagrou
como potência econômica e com isso gerou fascínio com sua prosperidade econômica a redor
do mundo, se tornando até mesmo um padrão econômico a ser seguido; entretanto, é
necessário considerarmos que houve uma forte redução de gastos sociais para tal feito,
mudança nos critérios de avaliação para a contratação de funcionários, a instituição da
inflexibilidade salarial e da própria demissão, bem como a erradicação de sindicatos e de
benefícios sociais. Com isso, por consequência, ocorreu o que podemos chamar de “dumping
social” onde em contrapartida ao avanço econômico estatal, a precariedade e a pobreza de
massa aumentaram; a insegurança social foi generalizada bem como a prosperidade perdeu
espaço para o crescimento das desigualdades e da forte segregação, que historicamente
sabemos que gera a criminalidade em razão do desamparo das instituições públicas
governamentais (WACQUANT, 1999, p. 49).

Incidentes com a polícia americana se multiplicaram desde a implantação da política


de “qualidade de vida” e a maioria das queixas feitas dizem respeito a incidentes de patrulhas
de rotinas onde 53% destas queixas partiam de vítimas cujo perfil era afro-americano e 20%
da população latina do país. 80% destes requerimentos contra violências e abusos de
autoridade policial partiram dos distritos mais pobres das cidades (WACQUANT, 1999, p.
23).

Não bastando somente elencarmos o preço das consequências sociais e humanas do


crescimento da primeira economia do mundo, esse sistema de insegurança social que os
Estados Unidos ofereceu como modelo, de acordo com Wacquant (1999, p. 51) corresponde a
“hipertrofia distópica” do Estado Penal, onde a miséria e a extinção de um têm como
contrapartida direta e necessária a grandeza e a prosperidade do outro.
70

Uma das justificativas mais plausíveis para a utilização política do direito penal para
Wermuth (2001, p. 57) encontra-se no fato de por meio dele o legislador adquirir uma "boa
imagem” em face da sociedade, bem como o simbolismo penal que se apresenta como
alternativa barata para a articulação de problemas sociais. A legislação penal logo, se
apresenta como matéria conveniente à política que assume sua forma de espetáculo ao parecer
sanar os problemas sociais, ou buscar resolvê-los (WERMUTH, 2011, p. 59).

De acordo com Wacquant (1999, p. 24) uma das consequências dessa tolerância zero
já propagada internacionalmente é a desconfiança gerada entre as comunidades afro-
americanas, afinal pesquisas da época revelavam que 72% das pessoas pertencentes a essas
comunidades consideravam as forças policiais locais agressivas, hostis, violentas e perigosas.

Os países importadores dos instrumentos americanos de uma penalidade


resolutamente agressiva, adaptada às missões ampliadas que competem às
instituições policiais e penitenciárias na sociedade neoliberal avançada – reafirmar a
autoridade moral do Estado no momento em que ele próprio é atingido pela
impotência econômica, impor ao novo proletariado um salário precário, engaiolar os
inúteis e os indesejáveis da ordem social nascente não se contentam todavia em
receber passivamente essas ferramentas. Eles as tomam emprestadas,
frequentemente por iniciativa própria, e as adaptam às suas necessidades e às suas
tradições nacionais, tanto políticas como intelectuais, sobretudo por meio dessas
“missões de estudos” que se multiplicam já há uma década através do Atlântico
(WACQUANT, 2004, p. 35).

Com a política da tolerância zero propagada pela política da qualidade de vida ocorre a
sobrecarga dos tribunais (WACQUANT, 1999, p. 25) e ao mesmo tempo os índices de
encarceramento sobem nos Estados Unidos, principalmente de infratores que praticaram
delitos de menor potencial ofensivo.

Para os membros das classes populares reprimidas à margem do mercado de


trabalho e abandonadas pelo Estado assistencial, que são o principal alvo da
“tolerância zero”, o desequilíbrio grosseiro entre o ativismo policial e a profusão de
meios que lhe é consagrada, por um lado, e a sobrecarga dos tribunais e a
progressiva escassez de recursos que os paralisa, por outro, tem todas as aparências
de uma recusa de justiça organizada (WACQUANT, 1999, p. 26).

Logo, para Wacquant (1999, p. 34) fica claro que a exportação destes temas acerca de
teses sobre a segurança incubada nos Estados Unidos serve apenas para reafirmar a influência
moral da sociedade sobre os “maus” pobres e de disciplinar o subproletariado; tal situação
gerou apenas a ramificação de sistemas de segurança privada onde as classes menos abastadas
sofrem novamente pela impotência econômica e vexame social (WACQUANT, 1999, p. 35).
71

Se os guetos negros e os barrios mexicanos e porto-riquenhos dos Estados Unidos


concentram em seu seio tanto “patologias humanas”, é em razão da dupla rejeição
de casta e de classe, de que padecem de saída de seus habitantes, e do
desinvestimento urbano e social levado a cabo durante 25 anos pelo Estado
americano – e não por efeito de uma dinâmica behaviorista endógena que veria os
riachos dos “pequenos delitos” irem naturalmente fazer transbordar o rio caudaloso
das grandes “violências urbanas” (WACQUANT, 1999, p. 40).

A política do encarceramento vem acompanhada da história da discriminação racial,


uma vez que conforme Wacquant (1999, p. 61) o homem negro em todos os seus estudos de
dados tem mais chance sobre quatro de ser condenado pelo menos a um ano de prisão, um
latino, uma chance sobre seis enquanto que o branco, uma sobre vinte e três. Essa
desproporção é ainda mais evidente entre os jovens, que são o primeiro alvo da penalização
da miséria.

[...] a todo momento, mais de um terço dos negros entre 18 e 29 anos é ora detido,
ora colocado sob a autoridade de um juiz de aplicação de penas ou de um agente de
probation, ou ainda está à espera de enfrentar um tribunal. Nas grandes cidades, essa
proporção ultrapassa frequentemente a metade, com picos em torno de 80% no seio
do gueto (WACQUANT, 1999, p. 61).

Wacquant (1999, p. 71) nos conta que uma ocorrência muito similar de exclusão é
notada na Alemanha com os “ciganos” provenientes da Romênia, uma vez que os índices de
encarceramento destes era mais de vinte vezes superior a dos cidadãos locais, os marroquinos
oito vezes e os turcos até quatro vezes. Na França foi possível observar uma crescente leva de
estrangeiros da mesma forma, e houveram também pesquisas acerca do tratamento
diferenciado dos estrangeiros e dos nativos no sistema carcerário, o que Wacquant (1999, p.
72) chama de “desproporcionalidade etno-nacional”.

Esse processo é fortemente amplificado pela mídia e pelos políticos, de todos os


lados, ávidos por explorar os sentimentos xenófobos que obcecam a Europa desde a
reviravolta neoliberal da década de 80, fazendo, de maneira sincera ou cínica, direta
ou indireta, mas sempre mais banalizada, o amálgama entre imigração, ilegalidade e
criminalidade. Incessantemente colocado no índex, suspeito por antecipação se não
por princípio, relegado às margens da sociedade e perseguido pelas autoridades com
um zelo sem par, o estrangeiro (não europeu) se transforma no “inimigo cómodo” –
suitable enemy, segundo a expressão do criminologista norueguês Nils Christie –, ao
mesmo tempo símbolo e alvo de todas as angústias sociais, como o são os afro-
americanos pobres das metrópoles em sua sociedade (WACQUANT, 1999, p. 75).

Outro fator relevante da repressão penal a ser destacada, é a penalização ativa do


consumo de drogas, e pelo movimento de encarceramento de usuários (WACQUANT, 1999,
72

p. 76) onde tal face jurisdicional serve contra aqueles percebidos pela camada bem inserida
socialmente como “potencialmente perigosos”, “sem-teto”, “sem-documento”, mendigo,
vagabundo etc.

A persecução a megacriminalidade para Wermuth (2011, p. 61) se consagra como


afronta a eficiência do direito, afinal qual punição pode ser imposta, por exemplo, a um
terrorista disposto a amarrar explosivos ao próprio corpo? O terrorismo presente na sociedade
figura como o molde ideal do “monstro humano” narrado por Foucault, uma vez que eleva a
infração ao seu nível máximo, a incorporando.

De acordo com Wermuth (2011, p. 62) o direito penal na contemporaneidade não pode
mais deixar de dar respostas à sociedade, e justamente dessa noção surgem teorizações como
a do Direito Penal do Inimigo, de Gunther Jakobs. Nessa ótica, portanto, podemos perceber
que é através da sanção penal atribuída ao criminoso que a sociedade pode seguir confiando
no direito, dada a imposição da pena (WERMUTH, 2011, p. 63).

As características do Direito Penal do inimigo são, portanto, uma extensa


antecipação da intervenção penal, sem a respectiva redução da pena cominada, bem
como a restrição das garantias penais e processuais penais do Estado de Direito (...)
a diferenciação entre inimigos e cidadãos decorre da compreensão de Jakobs de que
os primeiros, pelo fato de se constituírem uma ameaça ao sistema social, não podem
ser tratados como pessoas, mas sim combatidos como não pessoas (WERMUTH,
2011, p. 65).

Entretanto, através dos ensinamentos de Wermuth (2011, p. 67) podemos entender que
há uma grande controvérsia no discurso do direito penal do inimigo, uma vez que esse
entende que o infrator não é reconhecido como pessoa por ser receptor de seus preceitos; mas,
neste ponto reside um grande problema: para o direito ser infringido para o posterior
aparecimento da figura do inimigo este só pode ser infringido por quem seja destinatário de
suas normas, ou seja, um cidadão.

Diante das exposições acima fica claro que grande parte das intervenções punitivas da
contemporaneidade antes de almejar a solução dos problemas da criminalidade buscam
diminuir as inquietações populares frente à insegurança (WERMUTH, 2011, p. 75).
Atualmente não se considera mais o pequeno delinquente como um ser socialmente
desprovido de recursos e marginalizado muitas vezes pelo contexto social que vive e da
73

opressão social que sofre, mas sim são percebidos como inimigos internos, ou seja,
proprietários de interesses egoístas e imorais.

Para Wermuth (2011, p. 79), a desumanização do delinquente implica na perda de


sensibilidade, ou crença de ressocialização do delinquente, e tal noção conduz a demanda da
punição. Logo conclui-se que a atuação do sistema punitivo a partir do paradigma da
segurança cidadã reforça os estereótipos que sempre estiveram presentes na sociedade,
revelando assim a real função desempenhada pelo sistema punitivo (WERMUTH, 2011, p.
89).

2.3.3 O excluído da economia

O surgimento do capitalismo não só causou uma reforma drástica na economia


mundial, como também no modo de vida das pessoas. Reformou a maneira com a qual nos
relacionamos e como estamos inseridos em nossa sociedade, gerando assim de certa forma
uma “reinvenção social”, que agora tem novas exigências. O cenário político se altera
também, e essa mobilização gera riscos que muitas vezes podem permanecer invisíveis,
porem suas consequências é que determinam aquilo que nos tornamos (WERMUTH, 2011, p.
27).

O sistema econômico se mantém em movimento onde aquele que tenta manter sua
propriedade, irá perder sua fortuna, enquanto que aquele que procura mantê-la e ao mesmo
tempo aumenta-la terá que investir de maneiras diferentes no mercado dia após dia
(LUHMANN, 1997, p. 68). Essa plataforma nos leva a problemas de diversas naturezas
dentro das políticas sociais, e os intelectuais estão desenvolvendo cada vez mais instrumentos
dentro deste “denominador comum” que é a pós-modernidade.

Uma das razões pelas quais o presente continuo se difere dos séculos passados é a
inclusão da ruptura, uma vez que o presente necessita de tal ruptura; a ruptura é necessária à
técnica da sobrevivência em troca de inclusão (PHILIPPOPOULOS-MIHALOPOULOS,
2015, p. 19) e viver junto (seja uma família ou grupo de pessoas) sempre foi um paralelo da
própria exclusão; até mesmo nos tempos mais remotos, o perdão e a serventia divina ditavam
parâmetros de exclusão e inclusão social.
74

A partir do momento em que a propriedade privada é incluída na atmosfera humana há


um cercamento social de forma com a qual podemos vislumbrar uma clara ruptura, e exclusão
no exterior, agora imaginário (PHILIPPOPOULOS-MIHALOPOULOS, 2015, p. 176). São
propriedades que delimitam faixas territoriais e por consequência geram inclusões e
exclusões, dentro e fora das paredes e disso surgem julgamentos decorrentes da exclusão que
se espalham imediatamente; tal atmosfera é uma direção pré-determinada onde ao mesmo
tempo reforça os corpos a desejarem-se ou repelirem-se (PHILIPPOPOULOS-
MIHALOPOULOS, 2015, p. 185).

Wermuth (2011, p. 37) narra que a sociedade complexa, com incrementados riscos
sociais em decorrência de sua contingência configurada na contemporaneidade é uma forma
de gerar mais medo, porém combateremos o medo gerando mais medo? Em virtude disso que
a desigualdades globais são cada vez mais evidentes, criando dois status de seres humanos: os
incluídos em uma economia globalizada de um lado, e do outro os carentes de identidade; e
essa dicotomia resulta em “aqueles que produzem o risco” versus “os que consomem
segurança” (WERMUTH, 2011, p. 38).

Para Wacquant (1999, p. 4), a penalidade neoliberal apresenta um paradoxo muito


interessante: o de remediar com um status de “mais estado” policial e penitenciário com o
“menos estado” econômico e social, que é a causa da ampliação generalizada da insegurança
objetiva e subjetiva nos países; e tal paradoxo é uma forma de reafirmar a onipotência do
domínio e da manutenção da ordem pública.

A penalidade neoliberal é mais sedutora quando aplicada em países atingidos por


fortes desigualdades, enquanto que as elites do Estado, cuja ideologia converteu-se na visão
de mercado global, reforçam suas missões na matéria de segurança, relegada a dimensão
criminal (WACQUANT, 1999, p. 4).

Isso é dizer que a alternativa entre o tratamento social da miséria e de seus correlatos
– ancorado numa visão de longo prazo guiada pelos valores de justiça social e de
solidariedade e seu tratamento penal – que visa às parcelas mais refratárias do
subproletariado e se concentra no curto prazo dos ciclos eleitorais e dos pânicos
orquestrados por uma máquina midiática fora de controle [...] (WACQUANT, 1999,
p. 4).
75

A sociedade brasileira, por exemplo, se pauta nas disparidades sociais advindas da


pobreza de massa derivada das décadas de industrialização e posterior marginalização social;
a pobreza de massa ao se combinar ao contexto social provoca um aumento exacerbado da
violência criminal, principalmente no cenário das grandes cidades (WACQUANT, 1999, p.
5).

A partir de 1989, a morte violenta é a principal causa de mortalidade no país, com o


índice de homicídios no Rio de Janeiro, em São Paulo e Recife atingindo 40 para
cada 100.000 habitantes, ao passo que o índice nacional supera 20 para cada 100.000
(ou seja, duas vezes o índice norte-americano do início dos anos 90 e 20 vezes o
nível de países da Europa Ocidental) (WACQUANT, 1999, p. 5).

De acordo com Wacquant (1999, p. 5), a difusão das armas de fogo e o


desenvolvimento da economia voltada ao tráfico internacional, a junção do crime organizado
e a polícia acabaram por divulgar o crime e o medo do crime por todo espaço público; e na
ausência de amparo ou qualquer espécie de proteção social torna-se quase que automático que
os jovens de bairros populares sejam confrontados com o desemprego, e continuarão a buscar
meios de sobrevida para esquivar-se da miséria do cotidiano (WACQUANT, 1999, p. 5).

O contexto no qual o direito penal se suplanta através do sentimento de insegurança


modifica nosso bem-estar social marcado por assimetrias (WERMUTH, 2011, p. 36). A sua
capacidade de participar de um sistema de consumo é capaz de ditar em que posição da
“pirâmide social” você se encontra, desta forma, estas desigualdades criam novos status de
“seres-humanos”, que segundo Wermuth (2011, p. 98) criam de um lado uma economia
globalizada e de outro lado uma camada carente de identidade em consequência de sua falta
de competência.

Neste cenário se legitimam as campanhas de Lei e Ordem que se fundamentam na


hipersensibilização de alarmes sociais específicos e constituem políticas de
repressão (...) estas políticas se concentram mais nas consequências do que nas
causas da criminalidade. Na medida em que o estado buscar eximir-se de suas
tarefas enquanto agente social de bem-estar, surge a necessidade de novas iniciativas
de seu aparto repressivo em relação às condutas transgressoras da ordem levadas a
cabo pelos grupos que passam a ser considerados ameaçadores (WERMUTH, 2011,
p. 40).

A estética dos bairros das grandes cidades brasileiras revelam as desigualdades sociais
na qual encontramos no Brasil por exemplo. Os bairros centrais são mais valorizados
enquanto que as áreas marginais são caracterizadas pela crescente degradação. As áreas mais
76

abastadas são fruto de investimento e logo se transformam em importantes pontos turísticos


(WERMUTH, 2011, p. 122).

Para Wacquant (1999, p. 11), a supressão do Estado econômico, enfraquecimento do


Estado social, fortalecimento e glorificação do Estado penal geram a coragem civil, a
modernidade política e a própria audácia progressista, e seria necessário reconstituir a visão
definida deste novo senso peal que visa criminalizar a miséria, normatizar o trabalho precário
alimentar as práticas intervencionistas (WACQUANT, 1999, p. 12).

Os agentes e instituições de poder para Wacquant (1999, p. 12) seriam as detentoras de


posições de poder no âmbito político, econômico, jornalístico e universitário; em suas
manifestações e textos podem trazer um novo regime internacional de conhecimento, e o
florescimento da exportação do conhecimento e do surgimento de institutos aparecem novas
profissões derivadas da insegurança social proliferada pelas camadas dominantes
(WACQUANT, 1999, p. 12).

2.3.4 O criminoso na mídia

Luhmann (2000, p. 1) nos ensina que muito do sabemos sobre nossa sociedade temos
conhecimento da informação em razão da mídia em massa, e nós sabemos tanto sobre a
mesma que não sabemos confiar nela, afinal a maneira com a qual a sociedade a conduz gera
a suspeita de manipulação. Ela é, nada mais além um efeito da diferenciação funcional da
sociedade moderna.

Quando falamos de mídia em massa, para Luhmann (2000, p. 2) isso inclui todas as
instituições da sociedade das quais fazemos o uso de tecnologias para copiar e posteriormente
disseminar comunicação, ou seja, livros, revistas, jornais e quaisquer plataformas de
comunicação, até mesmo transmissões ao vivo. A disseminação da tecnologia dentro das
mídias em massa impactou a economia e foi capaz de construir operações comunicativas que
permitem a diferenciação e o fechamento operacional do sistema (LUHMANN, 2000, p. 2).

Para Luhmann (2000, p. 15), o sistema da mídia em massa traz consigo consequências
que geram diferenças sistêmicas ao ambiente, que se fecha operacionalmente. Para a
77

diferenciação do sistema da mídia em massa a conquista decisiva foi a disseminação das


tecnologias que geram mais possibilidades do que a comunicação oral.

As organizações que produzem as mídias em massa são dependentes de suposições


que se preocupam com a recepção do público e tal fenômeno nos guia a noção que neste
momento surge a diferenciação destes programas (LUHMANN, 2000, p. 3). O modo de
operação da mídia em massa consiste nas suas próprias operações conforme Luhmann (2000,
p. 3), afinal as coisas são transmitidas ou impressas, e coisas são lidas bem como programas
são recebidos. Essas comunicações numerosas cercam as atividades humanas que irão
propagar discussões em seus subsistemas.

Considerando que a mídia em massa opera justamente com a noção de comunicação


social, Luhmann (2000, p. 3) nos lembra que o processo de compreensão e informação nos
sistemas é complexo e passa por fases, afinal não é simplesmente uma sequência de
operações. Ele narra que aparece para os outros – pelos outros, para ser real, afinal a mídia em
massa gera uma “ilusão transcendental”.

Quanto mais complexo os sistemas se tornam mais eles expõem a si mesmos a


irritação, que pode variar, sem renunciar a realidade (LUHMANN, 2000, p. 4). Estudos acerca
da comunicação produzida pela mídia em massa nas últimas décadas para Luhmann (2000, p.
5) indicam a influência que ela exerce sobre os sistemas principalmente mediante as crises, e
nesse contexto observação e a critica já se tornaram comum para tais veículos.

O que alimenta a estrutura de comunicação gerada pela mídia, para Luhmann (2000, p.
9) é a necessidade da sociedade em obter informação. Cada sistema da mídia em massa
funciona de forma com que se presume que cada comunicação irá continuar dentro da
próxima hora ou do próximo dia, e cada programa gera a promessa da existência de outro
programa (LUHMANN, 2000, p. 11).

A mídia em massa em meio a teoria sistêmica trata da observação de operações para


Luhmann (2000, p. 3), e evolui até o ponto onde “nós observamos eles observando”. Se trata
de uma cognição onde existe uma reprodução de um sistema que apenas pode ser observado
pela diferenciação entre autorreferências, ou seja, gera diversas suposições que não podem ser
78

garantidas no sistema em si como verdadeiras ou exatas já que diferentes observações podem


ter impressões diversas.

Para Wermuth (2011, p. 25), o processo de globalização causou grandes


transformações em nosso cenário mundial, e a sociedade que surgiu em consequência deste
fenômeno pode ser classificada como “sociedade de risco” que gera cada vez mais um
sentimento de insegurança diariamente.

Se utilizar do termo risco de acordo com Wermuth (2011, p. 28), é em parte


insuficiente, afinal, risco é aquilo que se pode ser calculado. E a partir deste pensamento é que
o autor pode entender claramente o porquê de Zygmunt Bauman substituir o termo “risco” por
“incerteza”, que além de não se permitir ser calculada é de certa forma expandida junto com a
sociedade.

Para Bourdieu (1997, p. 24), os jornalistas têm “óculos” especiais que lhe servem para
verem coisas determinadas e não outras, e até mesmo as enxergar a partir de um viés e não
considerar outros; assim eles trabalham ativamente na seleção do que é publicado. O autor
ainda considera que a televisão em especial busca a dramatização, exagerando a importância
ou gravidade de certos eventos, elevando o teor trágico de outros, e assim segue.

As rebeliões em subúrbios sempre foram um prato cheio para a mídia,


tradicionalmente representada pela televisão, onde se faz um trabalho em cima de palavras
pejorativas; para Bourdieu (1997, p. 26) o mundo da imagem é sem dúvida dominado pelas
palavras, afinal uma imagem sem legenda é incompleta para quem busca noticiar algo. As
palavras podem causar estragos, por exemplo, em questões étnicas, sociais e religiosas.

No cerne da mídia jornalística ocorre um fenômeno denominado pela incessante busca


e perseguição do grande “furo” (BOURDIEU, 1997, p. 27), afinal em tempos onde tudo se
copia cabe aos profissionais fazerem diferente dos outros e buscarem exclusividade, que em
outros campos produz originalidade e até mesmo singularidade, mas que neste apenas gera
banalização.

Para Bourdieu (1997, p. 27), a visão cotidiana de um subúrbio normalmente não


encanta o olhar de ninguém em razão de sua monotonia e tons cinzentos, entretanto a partir do
79

momento em que se gera um interesse nele por parte da mídia é necessário então tecer ou
simplesmente moldar o perfil do mísero.

O campo da mídia assim como o da economia é um espaço onde há uma dicotomia de


forças: há os dominantes e os dominados, que existem dessa relação constante de
desigualdade; e nesse contexto há as lutas para conservar ou reformar esse espaço
(BOURDIEU, 1997, p. 57).

Nunca se teve tanto medo como hoje, e nunca se gerou tanta incerteza entre as
pessoas, e a mídia se apresenta desta forma como veículo que anuncia os novos perigos que se
apresentam diariamente e que conseguem escapar de nossas percepções e desafiam nossa
atenção. Para Wermuth (2011, p. 37), na realidade contemporânea, com o advento de novas
tecnologias se prescinde-se os “corpos dóceis” narrados por Foucault.

Wermuth (2011, p. 43) nos ensina que se as prisões panópticas testaram os limites da
rotinização da conduta humana, as prisões contemporâneas constituem “laboratórios da
sociedade globalizada”. O crime na sociedade contemporânea bem como a segurança podem
ser transformados em produtos (WERMUTH, 2011, p. 44) enquanto que uma das principais
características da sociedade globalizada é a grande influência dos meios de comunicação de
massa nos processos de informação de opinião pública.

Para Wermuth (2011, p. 44), em meio à sociedade de consumo contemporânea os


meios de comunicação são mecanismos próprios para fomentar crenças, culturas, valores
entre outras coisas; neste contexto o medo de ser vítima de um delito se transforma em
mercadoria para a indústria cultural e tal mercadoria é espetacularizada.

Wacquant (1999, p. 43) conta que na obra de Sophie Body-Gendrot “As cidades diante
da insegurança: guetos americanos nos bairros franceses” sugere um pensar ainda mais
rigoroso dentro da esfera penal, e em um dos excertos do texto sugere a opção da pura
repressão apontando demais pesquisas. Para o autor, neste contexto se encontra dados iniciais
não comprovados afinal uma pesquisa por si só pode geral falsas alternativas, correspondentes
de uma lógica pautada na repressão, e assim interpela o cidadão-leitor (WACQUANT, 1999,
p. 44).
80

As representações midiáticas dos “problemas sociais” permitem grandes recortes na


realidade, ou seja, apresenta ao público consumidor apenas os fatos que interessam a todos
(BOURDIEU apud WERMUTH, 2001, p. 46). A busca sensacionalista e espetacularizada do
“furo” jornalístico define aquilo que deve ou não ser mostrado, bem como os índices de
audiência.

A televisão traz consigo o poder de mobilizar a sociedade, já que a imagem


transmitida implica no efeito real de se “fazer crer” (BOURDIEU, 1997, p. 28), e ela é capaz
de desenrolar sentimentos por parte dos telespectadores através de questões que geram
implicações políticas.

As variedades, os incidentes ou os acidentes cotidianos podem estar carregados de


implicações políticas e éticas etc. capazes de desencadear sentimentos fortes,
frequentemente negativos, como o racismo, a xenofobia, o medo-ódio do estrangeiro
e a simples narração, o fato de relatar como repórter implica sempre uma construção
social da realidade capaz de exercer efeitos sociais de mobilização ou
desmobilização (BOURDIEU, 1997, p. 28).

Bourdieu (1997, p. 29) afirma que a televisão, por exemplo, se desprende de ser
apenas um instrumento de registo para tornar-se um de criação de realidades, se tornando o
“árbitro do acesso a existência social” buscando um índice de audiência – o “deus oculto”
desse universo que reina sobre consciências (BOURDIEU, 1997, p. 34). A televisão é um
universo em que se tem a impressão de que os agentes sociais são marionetes de uma
necessidade que é preciso descrever, de uma estrutura que é preciso tornar manifesta e “trazer
a luz” (BORDIEU, 1997, p. 54).

Para Wermuth (2011, p. 46), as imagens aliadas às legendas dizem o que é preciso
compreender e assim, aqueles que trabalham na mídia se transformam em “pequenos diretores
de consciência”. O autor nos ensina que desse fenômeno surge um perigo, diretamente do fato
de que a mídia em massa impõe a sociedade uma forma “peculiar” de enxergar o caso fático;
e esse perigo se potencializa, pois o poder midiático é capaz de gerar mobilização social. Se
trata da sociedade que traça o perfil do criminoso que quer ver atrás das grades e vibra quando
isso acontece, e da mídia que por sua vez transforma isso em mercadoria.

Em relação à espetacularização do crime, é importante para Wermuth (2011, p. 47)


entendermos que por trás dessa visão mercadológica dos meios de comunicação de massa há
81

sempre a possibilidade do falseamento de dados para gerar alarde ou vender o produto, e isso
implica novamente na comoção ou repressão social.

Para Wermuth (2011, p. 49) o caso Isabela Nardoni no Brasil ilustra muito bem e de
forma clara como a mídia em massa, na perspectiva nacional, explora o crime e a
criminalidade e serviu como espetáculo midiático por meses consecutivos – marcados
especialmente pelas pressões populares. Exemplos como esse nos demonstram como o
discurso midiático acerca da criminalidade se move por si próprio (WERMUTH, 2011, p. 50).

A utilização para fins mercadológicos do medo que a criminalidade gera, e a busca


pelo instrumento punitivo de repressão transforma os meios de comunicação e a mídia em si
não somente na plateia para o espetáculo, mas também representam a privatização parcial do
poder (BATISTA apud WERMUTH, 2011, p. 52).

2.3.5 O criminoso na ciência

Para Luhmann (1997, p. 75), a ciência já não se diferencia ou se divide de acordo com
fatores étnicos, culturais ou regionais, mas sim em disciplinas e núcleos de pesquisa, e estas
mudanças ao redor do mundo merecem atenção, pois ocorrem simultaneamente, trazendo
consigo inovações nos mais variados campos do conhecimento como a tecnologia por
exemplo. Os grupos religiosos e fundamentalistas emergem no cenário global trazendo
consigo conflitos de interesse, e cabe ao Estado usar de seus aparatos para buscar meios com
os quais possa se adaptar a estes acontecimentos.

Dadas essas condições, não é mais garantido que esses desenvolvimentos estruturais
vão permanecer compatíveis com a função dos sistemas; a ciência, por exemplo, não tem
conhecimento certamente de todos os riscos de suas decisões, e a física, por sua vez tornou
possível a construção da bomba atômica. Assim a economia encontra vantagem na utilização
de tecnologias de ponta (LUHMANN, 1997, p. 76), e abre com um oceano de novos riscos,
sobretudo sociais. A nova centralidade dos mercados internacionais (que correspondem à
marginalização da produção) nos guiam a uma perda de empregos, e seduz os políticos a
prometerem trabalhos.
82

Podemos atrelar a construção do perfil do criminoso à ciência quanto aos estudos de


Lombroso (2006, p. 45), que procurou buscar cientificamente quais seriam as características
físicas do homem criminoso; em sua obra, com esse nome inclusive, ele inicia suas
constatações acerca de crânios analisados, que pertenciam aos criminosos de diversos locais.
Estudando as medidas e a circunferência destes concluiu que estes eram particularmente
largos enquanto que em treze de cinquenta e seis crânios apresentavam anomalias sérias
(LOMBROSO, 2006, p. 47).

Em seus estudos científicos Lombroso (2006, p. 50) observou que nas regiões
mediterrâneas da Itália, os criminosos pesavam cerca de cinco quilos a menos que a média de
homens local com um peso considerado saudável para a época, podendo assim serem
considerados indivíduos franzinos. Também se trabalha a visão de que ladrões eram notáveis
por suas expressões faciais suspeitas, testas inclinadas, pequenos olhos, poucos pelos faciais,
entretanto grossas sobrancelhas; enquanto que estupradores geralmente possuem orelhas de
“jarro” para o autor (LOMBROSO, 2006, p. 51).

Para Lombroso (2006, p. 52) assassinos possuem olhares frios, narizes largos e
maxilar “forte”, bem como bochechas “amplas”; a característica mais notória em tal estudo
cientifico e amplamente divulgada até hoje, são os caninos protuberantes, característica mais
comum entre todos os seres analisados em sua pesquisa. Outra observação interessante na
época foi a conclusão de que a maioria desses sujeitos possuíam peles “macias” e algumas
características até mesmo infantis (LOMBROSO, 2006, p. 53).

Lombroso (2006, p. 54) entende que a antropologia necessita de números e não de


descrições isoladas especialmente para utilização da medicina forense, logo ele passa a prover
estatísticas pautadas em trezentos e noventa criminosos para chegar a tais conclusões.

Para Santos (2012, p. 7209), o homem delinquente apresentado por Lombroso acarreta
perigos provenientes de uma ciência sem consciência, que permitiu que o sistema penal se
direcionasse para a punição de indivíduos determinados como os pobres, os negros, e os
considerados feios e indesejáveis.

Embora a teoria de Lombroso nunca tenha sido comprovada por ter sido situada no
século XIX não foi pelo seu caráter cientifico que ganhou tanta notoriedade (SANTOS, 2012,
83

p. 7210); seu sucesso teria se dado a utilidade social e política por permitir aos Estados
totalitários mecanismos viáveis ao controle social punitivo, eficazes para eliminação e
posterior exclusão de pessoas.

Para Santos (2012, p. 7210) em razão da teoria do criminoso nato, muitos são vistos
como incorrigíveis e assim a responsabilidade penal passa a ser social onde o direito penal se
desprende do fato para se apegar a periculosidade oferecida pelo criminoso.

Em uma época onde o evolucionismo de Darwin com a seleção natural das espécies,
pesquisas em torno da transmissão genética de características dos indivíduos bem como com a
criação do conceito de “eugenia”, estatística e antropometria existiam veio Lombroso (2012,
p. 7213).

Assim, o método utilizado por Lombroso estava em consonância com o que se fazia
numa época em que se necessitava racionalizar as desigualdades sociais e reformular
o conceito de liberdade. O desenvolvimento do capitalismo demonstrou as
contradições sociais e precisava de novas bases ideológicas para sustenta-las. Para
cumprir esse objetivo, conforme Rosa Del Olmo, o racismo teve um papel
importante: os pobres eram pobres porque eram biologicamente inferiores. E essa
afirmação poderia ser feita agora, apoiando-se na ciência (SANTOS, 2012, p. 7214).

As ideias difundidas pela escola de Lombroso para Santos (2012, p. 7214) se


pautavam no determinismo biológico que negava o livre arbítrio ao considerar que não havia
liberdade de escolha diante da biologia, logo restaria ao direito penal a prerrogativa de deter o
criminoso.

De acordo com Santos (2012, p. 7216), Lombroso “imprimiu” um pré-conceito acerca


do homem delinquente; a autora acrescenta ainda que atualmente nenhum dos campos da
moderna criminologia (que estuda a ciência do crime) torna o homem como delinquente,
afinal:

A análise das principais investigações criminológicas, realizadas


preponderantemente na área biológica, que estudam o componente biológico da
conduta humana (e aqui estamos falando de pesquisas nas áreas da Biologia
Criminal e da Medicina, tais como a neurofisiologia, endocrinologia, sociobiologia,
bioquímica e genética criminal), demonstram que elas evolucionaram para
paradigmas cada vez mais complexos, capazes de ponderar cada vez mais a
pluralidade de fatores que interatuam no fenômeno delitivo e estão cada vez mais
distantes das concepções de Lombroso (SANTOS, 2012, p. 7216).
84

Com a modernidade surgem novas derivações da ciência aplicada ao Direito Penal;


para Wacquant (1999, p. 54) em seu discurso sobre bancos de dados e perfis genéticos
previamente mencionados, se instaura uma discussão acerca do perfil do criminoso agora
pautado na genética. Os Estados são detentores de dados e perfis genéticos que agora passam
a estar disponíveis na internet, e esse cenário propícia que qualquer indivíduo seja capaz de
deter informações de outro eletronicamente.

Foi estudada por uma ministra americana nos anos 90 a possibilidade de estender esse
“fichamento genético” de criminosos comprovados ao conjunto de pessoas detidas pela
polícia, que seriam cerca de 15 milhões de americanos por ano (WACQUANT, 1999, p. 55),
entretanto isso acarretaria em ocasionar o que o Wacquant (1999) chama de “apertar o laço do
nó penal” ao redor de parcelas subdesenvolvidas, e da classe trabalhadora que se encontrava
desestabilizada em razão da falta de amparo e proteção social.

Para Wacquant (1999, p. 55) essa situação, portanto, acarretava em uma inversão de
valores, afinal não mais servia para inserir um agente infrator novamente a sociedade, mas
sim a submeter as pessoas de um determinado grupo social a uma vigilância intensiva e a uma
disciplina meticulosa, que alimenta a iniciativa do setor privado no encarceramento, conforme
o seguinte trecho:

Ao mesmo tempo, a implantação das penitenciárias se afirmou como um poderoso


instrumento de desenvolvimento econômico e de fomento do território. As
populações das zonas rurais decadentes, em particular, não poupam esforços para
atraí-las: “Já vai longe a época em que a perspectiva de acolher uma prisão lhes
inspirava esse grito de protesto: Not in my backyard. As prisões não utilizam
produtos químicos, não fazem barulho, não expelem poluentes na atmosfera e não
despedem seus funcionários durante as recessões”. Muito pelo contrário, trazem
consigo empregos estáveis, comércios permanentes e entradas regulares e impostos.
A indústria da carceragem é um empreendimento próspero e de futuro radioso, e
com ela todos aqueles que artilham do grande encerramento dos pobres nos Estados
Unidos (WACQUANT, 1999, p. 60).

Para Santos (2012, p. 7219) com o advento da Criminologia Crítica abandona-se o


paradigma “causal-explicativo do crime”, onde o enfoque dos estudos criminológicos deixou
de se preocupar com as causas do crime para indagar sobre o processo de criminalização:
quem são os criminalizados? Logo, o conceito do homem criminoso para a autora é um
conceito social e político, e não um jurídico.
85

Não há indivíduos aos quais podemos apontar e dizer: “este é um homem


criminoso”. Ninguém “é” criminoso. Mesmo os efetivamente condenados, mesmo
depois da sua morte, podem ser beneficiados com uma revisão criminal que apague
o caráter criminoso do fato ou que ele declare que não foi ele o autor de tal feito
(SANTOS, 2012, p. 7219).

Logo, para Santos (2012, p. 7220), o “criminoso” até mesmo na ciência, é um


carimbo, uma etiqueta ou um rótulo aplicado a determinado agente, em determinado momento
histórico e local, e ao invés de falarmos em homem criminoso precisamos falar sobre o
homem criminalizado.
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CONCLUSÃO

Podemos entender a importância da presente pesquisa monográfica como algo para


além de uma pesquisa de conclusão de curso. É o resultado de anos de estudo e especialização
na área do direito e é o mais claro reflexo da mudança de percepção que uma estudante é
capaz de ter no meio acadêmico através da inserção na pesquisa acadêmica. Se trata do tipo de
trabalho que se deseja realizar e entregar a sociedade, pautando-se em princípios importantes
a serem discutidos não só na academia, mas em meio a sociedade – que está em constante
evolução.

Trata-se de uma pesquisa pertinente não só aos profissionais voltados a pesquisa na


área do direito como também aos seus operadores. Posteriormente demonstra-se sua
relevância nas outras áreas do conhecimento e na sociedade em si por trazer consigo em seu
escopo mais do que simplesmente termos provenientes de teorias complexas, mas sim uma
profunda reflexão do estado social das coisas e das pessoas bem como a evolução das
comunicações sociais. Se trata de uma reflexão sobre os comportamentos da sociedade e a
etiquetação proveniente das acepções introspectivas e psicológicas desenvolvidas no cidadão
das mais distintas formas. É, portanto, uma investigação histórica comportamental e teórica.

Acredita-se de que também se trata de um projeto importante ao programa de


graduação da Unijuí por possibilitar a releitura de temáticas complexas sob um viés de grande
relevância social, com um olhar distinto. Se apresenta como mecanismo de incentivo a todos
que pretendem seguir na área da pesquisa, como também aos que se interessam a investigar
tais temáticas, que em diversas ocasiões podem parecer abstratas. É um importante pontapé ao
pesquisador que agora dá seus primeiros passos ao universo acadêmico, e posterior docência -
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agora com um olhar mais cientifico acerca das teorias sociológicas voltadas as questões
acerca da penalidade em nossa sociedade.

Por fim, representa de forma geral o resultado de um longo período estudando a


temática e resta aqui, para além das considerações trazidas, o incentivo a quem pretender se
desafiar na área com um olhar crítico não só à sociedade, mas a si mesmo.

Quanto os resultados finais, retomando Niklas Luhmann, as grandes massas que


almejam condições básicas de existência, afinal não têm acesso a nenhuma das funções
sistêmicas, são suprimidas pelas classes dominantes. Dentro dos conceitos de “exclusão” e
“inclusão” e de ambos fenômenos, surgem conceitos como aceitação social. Uma exclusão
serve de exemplo para as demais acontecerem e assim constitui-se uma utopia quanto a
equidade social.

Historicamente temos que as classes sociais se organizaram através de hierarquias


ditadas por políticas intervencionistas e repressivas, que respingaram no subsistema do
Direito, visto como órgão que deve dar uma resposta à sociedade. Historicamente se
marginalizou o pobre, o negro, o latino ou simplesmente o “indesejável” lhe derrogando as
periferias e a miséria; e tais agentes vivendo em determinadas condições escassas tiveram de
se adaptar a tais condições, agora como alvos do direito penal, da politica e da sociedade em
si.

A constante vigilância a esses núcleos acarretou extremas campanhas politicas


intervencionistas e de tolerância zero; o avanço econômico se pautou na redução de garantias
sociais, a politica pautou-se em “atender” o medo que suas campanhas geraram na sociedade e
assim uma verdadeira perseguição se iniciou ante aqueles considerados culpados pelo “caos
social”.

O crescimento de diversas potências se deu em cima da exclusão, e a economia passou


a ditar os padrões sociais e a excluir ainda mais quem não se encaixa nos novos ditames
sociais. A sociedade com medo da criminalidade buscou no direito a resposta para seus medos
e assim visou-se no enrijecimento do direito penal a contraprestação adequada.
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Este sentimento de que haja uma “punição” pode ser visto como razoável em meio a
toda esta emergência em nome do medo, o direito penal passa a então a ser visto como órgão
orientador, visto que vivemos em uma sociedade onde as dificuldades se apresentam de
formas cada vez mais expressivas. Neste contexto, a sociedade se alarma ao constatar a
urgência de controle e vigilância e isso agrava por si só a exclusão social, que é uma forma de
resposta ao medo.

Estas exclusões também, conforme os estudos até o momento realizados, geram


grande distinção entre os indivíduos que podem ou não participar destes processos. Afinal
como relatado, em meio a presença da privatização da segurança as camadas sociais são
reafirmadas: entre aqueles que podem custear sua segurança e aqueles que são vistos como a
insegurança em si.

O Direito Penal se politiza ao se utilizar da política como noção de segurança; as


atividades punitivas, conforme demonstradas, sempre são pensadas também para evitar
futuros riscos, ou seja, as ações presentes se estruturam em uma iminente ameaça futura.
Neste contexto é favorável a ocorrência da “administrativização do direito penal”, que trouxe
consigo uma valorização do incremento punitivo.

O contexto no qual o direito penal se suplanta é através do sentimento de insegurança


que modifica nosso bem-estar social marcado por assimetrias. A sua capacidade de participar
de um sistema de consumo é capaz de ditar em que posição de “pirâmide social” você se
encontra e desta forma, essas desigualdades criam novos status de “seres-humanos”. Neste
cenário surgem, como havia anteriormente mencionado, aqueles que produzem a insegurança
e aqueles que consomem (pelo menos a ideia) de segurança.

Vivemos em uma sociedade transgressora no seu contexto, onde em função da posição


social, nível de escolaridade ou até de desigualdades naturais constrói um padrão daquilo que
é errado ou perigoso. Ensina aos seus aquilo que se deve ter certa aversão e aquilo que se
teme. No fim do dia fugimos do “perigo”, tememos o mal, mas não ponderamos que na
verdade tudo isso citado anteriormente pode ser mera construção social, conforme os estudos
até o momento indicam.
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A mídia por sua vez exerce um papel fundamental neste cenário por ser capaz de
espetacularizar o crime, agravar situações e dar sua leitura particular de determinada situação;
a busca incessante pelo “furo” é capaz diversas vezes de obstruir certos limites. Existe uma
grande diferença entre as inseguranças diárias provocadas por delitos e crimes e todo o
sentimento folclórico criado socialmente, e a mídia evidencia.

A liberdade de imprensa mudou a forma com a qual a política passou a ser promovida,
e revelou a hipocrisia dentro do meio; o estado de produção contou com novos problemas de
supervisão legal que guiou à deformação de doutrinas que disciplinavam a previsibilidade de
tais legalidades e, em outra mão, a legislação correspondente das cortes afetou a política de
formas com que tornam mais difícil continuar conceituando-a como “democrática”.

Se já não bastasse toda essa estratificação social que nossas inseguranças geraram, a
sociedade é marcada pelo preconceito. Convivemos com as diferenças as negando
diariamente e as criminalizando.

Sobre as questões relativas à construção do perfil do criminoso é sugestivo já a


proposição de que isso se dá através dos subsistemas e suas comunicações, em razão das mais
diversas implicações, conforme evidenciadas ao longo da monografia, como a mídia, a
economia etc. Na sociedade disciplinar (a partir da perspectiva do panóptico portanto) o
criminoso é construído como aquele que se comporta de modo oposto àqueles que o
observador, tido como onipresente, pelo observado deseja. Porém, o modo pelo qual se
constrói a figura do criminoso é complexo, dependendo de comunicações de tipos diversos
em vários sistemas sociais para além da Política e do Direito.

O que foi possível de se evidenciar é que o campo judiciário é um canal de dominação


e que a vigilância, pautada classicamente no panóptico se segmentou em novas formas na
contemporaneidade, estabelecendo assim uma nova forma de exercício do poder. A vigilância
se coloca como delimitação de determinados grupos e pessoas, e implica na regulação de
comportamentos por não visarem especificadamente combater a conduta, mas sim incidir nas
pretensões dos agentes.

Os exemplos de vigilância moderna são inúmeros, e são televisionados por veículos de


informação que diversas vezes são tendenciosos. A vigilância opera como uma forma de unir
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o estado punitivo ao restitutivo, e o enrijecer. Até o presente momento nos estudos realizados
a vigilância se coloca como barreira inconsciente nas pretensões humanas.

Em relação à construção do perfil do criminoso temos que o etiquetamento do


indivíduo está pautado classicamente a posição social do mesmo. A mídia observa o crime e o
espetaculariza sendo observado pelos sistemas sociais; o panóptico de fato se transformou, e
os sistemas por sua vez observam a sociedade através do super panóptico, e a sensação de
vigilância constante causa reflexo nos sistemas psíquicos. Logo, reafirma-se que o panóptico
é uma forma de manipular a observação de forma a se obter um comportamento desejado, ou
seja, se trata de uma forma política.

O super panóptico vai se utilizar da vigilância para traçar o perfil de uma pessoa
através de um banco de dados, enquanto que o sinóptico vai gerar um modelo de
comportamento na mídia a ser seguido. Tal questionamento feito ao longo da monografia foi
capaz de ser respondido na sequência, e sim, o sinóptico pode operar de forma a moldar um
molde comportamental principalmente através da mídia.

A vigilância policial por sua vez incide nas consequências históricas da hierarquização
de classes e da intensa estratificação social conforme as pesquisas, e nesse contexto as pessoas
“de cor” são submetidas a condições mais duras e severas.

Historicamente penalizar a miséria, conforme o relatado nesta monografia, significa


tornar invisível os problemas e as necessidades das minorias, e assentar a dominação social da
maioria com o aval do estado. A persecução da mega criminalidade é uma forma de afrontar a
eficiência do Direito enquanto que a televisão é capaz de mobilizar a sociedade e fazê-la
temer o criminoso, e assim buscar sua repressão extrema.

Por fim, conceitos impressos acerca do perfil do homem delinquente são conceitos
sociais e políticos, e que acabam por se propagar ao judiciário, entretanto não são capazes de
serem constatados por outras áreas da ciência. Não há perfil concreto, e o criminoso não
existe verdadeiramente, apenas em circunstâncias derivadas do etiquetamento social do
criminoso; o que temos em meio ao caos social que existe em meio aos sistemas e pautado na
vigilância não são criminosos e sim criminalizados, cujas condições pessoas muitas vezes se
comunicam com suas posteriores condutas.
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