Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Daniel Precioso**
Abstract: the theme of this study is the process of Africanization of Catholic devotional
objects in Brazil slavery, which occurred between the 18th and 19th centuries. Our goal
will be to describe and interpret the way Brazilian-born blacks (Creoles) have re-signi-
fied the use of small Marian Catholic scapulars (Bentinhos) from a typically African
cosmological point of view. We will try to demonstrate that, in parallel to the Christian
threat to the salvation of the soul, the blacks who carried the Bentinho worshiped him
as an effective “closing body” charm.
** Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense. Mestre em História pela Universidade Estadu-
al Paulista-Franca, SP. Graduado em História pela Universidade Federal de Ouro Preto. Docente do Pro-
grama de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual de Goiás, campus Morrinhos. Docente
do Curso de Licenciatura em História da Universidade Estadual de Goiás, campus Quirinópolis. E-mail:
daniel.precioso@gmail.com.
O
trecho acima foi retirado da obra O Ermitão de Muquem (1858), do escritor mineiro Bernardo
Guimarães. Apesar da condenação etnocêntrica à religiosidade africana, chamada de ‘gros-
seira feitiçaria’, o autor-narrador capta bem um traço da cultura popular brasileira que está
presente no seu romance e na realidade social de sua época, a africanização de objetos devocionais
católicos. O personagem Gonçalo traz em si duas religiosidades distintas, a cristã e a africana, que
tomam forma em dois diferentes objetos de devoção, a bolsa de mandinga no cinturão e o relicário
no pescoço. Ao ver-se diante de um perigo, Gonçalo leva o relicário cristão até a boca e o beija, ao
mesmo tempo em que segura devotamente sua bolsa de mandinga presa ao cinto. A mesma intenção
devocional, de fechar o corpo, explica o apego íntimo de Gonçalo aos dois objetos religiosos. Era assim
que, no juízo preconceituoso do autor-narrador, Gonçalo confundia em sua tosca imaginação o culto
da mãe de Deus com uma grosseira feitiçaria.
O tema desse artigo é o processo de africanização de objetos devocionais católicos pela po-
pulação negra do Brasil escravista. O objeto devocional enfocado é o chamado Bentinho, pequeno
escapulário de culto mariano que os crioulos, negros nascidos no Brasil, traziam preso ao pescoço
durante o século XVIII e que, no século seguinte, tornou-se um dos principais objetos devocionais
do catolicismo popular brasileiro. Nosso objetivo será descrever e interpretar esse processo de afri-
canização dos Bentinhos entre meados do século XVIII e do XIX. O problema que nos colocamos é:
como o Bentinho, objeto de devoção católico, tornou-se sinônimo de patuá ou amuleto africano no
Brasil do século XIX?
Como a africanização do Bentinho se deu antes pelo seu modo de uso que pela sua compo-
sição material, embora as duas coisas pudessem ocorrer simultaneamente, na primeira seção deste
estudo, revisitaremos os debates teórico-metodológicos travados entre crioulistas e revisionistas, de
modo a nos posicionar frente a eles. Na seção seguinte, apresentamos os modelos interpretativos da
religiosidade africana na diáspora, refutando a operacionalidade do conceito de sincretismo em nos-
so estudo. A próxima seção do estudo aborda o processo de africanização do catolicismo português a
partir do conceito de catolicismo afro-brasileiro proposto por Sweet (2007). Em seguida, analisamos
os usos do Bentinho pela população crioula da Capitania de Minas Gerais durante a segunda metade
do século XVIII, utilizando, para tanto, documentação manuscrita particular das associações reli-
giosas de irmãos leigos – irmandades - sob a invocação de Nossa Senhora das Mercês. Finalmente, a
partir de uma análise de periódicos de diversas regiões do Império do Brasil, consultados na heme-
roteca digital da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, demonstramos que a identificação do Benti-
nho com os patuás africanos já estava bem consolidada no século XIX, como também passou a ser
combatida na segunda metade do século tanto pelos pensadores positivistas quanto pelos defensores
do catolicismo ultramontano.
Procuraremos demonstrar que, ao africanizar o catolicismo popular brasileiro, os africanos e
seus descendentes ressignificaram alguns símbolos cristãos de acordo com a sua própria cosmologia,
o que nos ajuda a compreender o processo por meio do qual “algumas crenças africanas se tornaram
parte intrínseca do tecido social brasileiro” (SWEET, 2007, p. 255-256).
Para John K. Thornton a similaridade existente entre certos aspectos cosmológicos, a contra-
posição entre: mundo dos vivos e mundo dos mortos e aspectos simbólicos: cruz, água batismal, etc.,
do catolicismo e da religião banto permitiu o estabelecimento de um campo de equivalência entre os
dois sistemas religiosos, dando origem a um catolicismo africano. Em The development of an African
Catholic Church in the Kingdom of Kongo, 1491-1750, artigo publicado em 1984 no Journal of African
History, Thornton afirmou que foram os missionários que, ao trazerem a mensagem cristã ao Reino
do Congo, tentaram moldá-la à cosmologia congolesa. Porém, ideias fixas da religião congolesa resis-
tiram à mudança, o que ocasionou o sincretismo (THORNTON, 2004)6. Em Afro-Christian Syncre-
tism in the Kingdom of Kongo, artigo publicado no mesmo jornal em 2013, Thornton retomou o tema,
adotando, dessa vez, a perspectiva dos congoleses que receberam a doutrina cristã, afirmando que foi
a própria elite congolesa educada em Lisboa que disseminou o catolicismo no Congo, acomodando-o
no seu próprio sistema de crenças local o que teria resultado em um sincretismo incorporado7. Esse
tipo de sincretismo permitiu que “uma grande parte da religião original permanecesse e aceitasse a
mistura resultante como apropriadamente católica” (THORNTON, 2013, p. 55).
Não obstante a mudança de perspectiva, dos missionários para os congoleses convertidos, em
ambos os trabalhos citados, Thornton (2013, p. 53) afirma que “o Cristianismo e a religião do Congo
se fundiram para produzir um resultado sincrético”. No artigo de 2013, procurando rebater as crí-
ticas ao seu trabalho feitas por historiadores como Sweet, Thornton elabora melhor o seu conceito
de sincretismo. Assinala que o aspecto fundamental é o que Fromont (2011, p. 111-3) chamou de
“espaço de correlação”, ou seja, as similaridades simbólicas e cosmológicas existentes entre o cristia-
nismo e a religião banto, que permitiram a incorporação inteligível do catolicismo pelos congoleses
(THORNTON, 2013, p. 57). Foram justamente esses pontos de contatos entre as duas religiões que
tornaram possível um sincretismo, dando origem a uma catolização da religiosidade banto e a uma
africanização do catolicismo8.
MacGaffey também apontou para a existência de um catolicismo africano no Congo, que teria
se desenvolvido ao longo dos dois séculos seguintes à chegada da expedição de Diogo Cão à foz do
Rio Zaire (1485). Porém, diferente de Thornton, MacGaffey relativizou as correlações entre as religi-
ões cristã e congolesa afirmando que um diálogo entre elas não se estabeleceu, caindo assim, no va-
zio as mensagens dos missionários. Um “diálogo de surdos” (1994, p. 259) teria pautado os contatos
entre portugueses e congoleses nos séculos XV e XVI, sendo essencialmente africano o catolicismo
praticado no Congo. Prova disso é o movimento antoniano encabeçado no Congo da segunda me-
tade do século XVII por Kimpa Vita, versão ainda mais africana do catolicismo, que repudiava os
sacramentos, a cruz e os missionários (MACGAFFEY, 1986)9.
A recusa mais veemente da hipótese de sincretismo afro-cristão foi elaborada por Sweet, Se-
gundo ele a religião católica e as africanas não sofreram qualquer intercâmbio na diáspora. Os africa-
nos e os seus descendentes não teriam aceitado facilmente os preceitos católicos e, quando o faziam,
desenvolviam uma forma peculiar de catolicismo africano.
No Brasil dos séculos XVII e XVIII, as religiões africanas não eram sincréticas ou crioulas, mas
sim sistemas de pensamento independentes, praticados em paralelo com o catolicismo. Quando
ocorriam de fato misturas religiosas significativas, como se verificou a partir do século XVIII,
este sincretismo era especialmente evidente entre ganguelas e minas, ou entre ndembos e ardas
– e não entre africanos e católicos portugueses (Sweet, 2007, p. 21).
As cosmologias africanas possuem traços gerais comuns e, a partir do século XVIII, quando
os centro-africanos se misturaram aos provenientes da África Ocidental no Brasil, desenvolveu-se
uma cultura pan-africana, que se manteve a parte da portuguesa. Porém, ao mesmo tempo em que
os dois sistemas religiosos, cristão e africano, se desenvolveram paralelamente, “ao longo de várias
gerações, a mistura de aspectos das duas tradições acabou por levar ao desenvolvimento de uma for-
ma africanizada de Cristianismo” (SWEET, 2007, p. 140). Os africanos e seus descendentes no Brasil
continuaram birreligiosos11. Embora o catolicismo afro-brasileiro tenha se processado através de
uma africanização de símbolos e crenças católicas que aliás, também irradiou o seu campo de influ-
ência para o universo de fiéis brancos. Doravante, demonstraremos como os africanos escravizados
interpretaram os rituais cristãos através de seus próprios sistemas cosmológicos, africanizando o
catolicismo praticado no Brasil12.
Nas cosmologias africanas distinguia-se mundo dos vivos e mundo dos mortos. Após a morte,
as almas eram enviadas para a morada dos mortos e de lá exerciam influência sobre a vida dos
parentes vivos. Comunidades de vivos e mortos continuavam, assim intrinsicamente ligadas. A bem-
aventurança -força vital- dos parentes vivos dependia das oferendas, preces e oblações prestadas aos
antepassados mortos. Para além do culto aos antepassados, havia o culto aos espíritos da natureza.
Apesar dos povos africanos conceberem a noção de uma divindade suprema, esta era incomunicável13.
Apenas as divindades secundárias, criadas pela divindade suprema, e os antepassados mortos
exerciam influência sobre os vivos, intercedendo por eles quando invocados. Disso resultava um
panteão com diversas divindades, invocadas para controlar o cotidiano dos vivos e reestabelecer o
equilíbrio social14. Essa cosmologia “enfatizava a importância do pragmatismo terreno sobre a fé”
(SWEET, 2007, p. 140) servindo como antídoto para as ameaças do mundo temporal doenças, secas,
esterilidade e, o maior dos infortúnios, a escravidão nas Américas.
Assim, nas cosmologias africanas os crentes não dependiam da misericórdia de um Deus úni-
co, tampouco concebiam a morte como julgamento entre a redenção – Céu- e a condenação -Inferno.
Todavia, o catolicismo popular que frutificou no Brasil escravista, impregnado de um culto afetivo
aos santos, propiciou zonas de contato entre as cosmologias africanas e o catolicismo.
Muitos estudiosos assinalaram que, assim como os santos católicos intercediam perante Deus
para a salvação dos fiéis, os espíritos menores africanos exerciam influência como intermediários
entre o crente e a divindade suprema (SWEET, 2007, p. 132). O culto aos santos, portanto, constituiu
uma porta de entrada dos africanos no catolicismo popular do Brasil escravista.
Os africanos escravizados no Brasil vislumbraram semelhanças entre os santos católicos e o
panteão de suas divindades: sob um prisma africano, como se dava com os espíritos ancestrais e os
espíritos da natureza, os santos católicos podiam ser invocados para resolver problemas cotidianos
dos fiéis, usando, para tanto, seus poderes sobrenaturais. Nossa Senhora do Parto, da Expectação ou
do Ó, era invocada pelas mulheres para propiciar um bom parto; Santo Antônio era invocado para
assegurar bons casamentos; São Brás para a cura de males da garganta e assim por diante.
Embora os santos não substituíssem os espíritos ancestrais africanos, assumiam um lugar ad-
jacente15 o que criou um ponto de contato entre as crenças africanas e o catolicismo – acabando
por contribuir para a formação de um catolicismo afro-brasileiro (SWEET, 2007, p. 242).
Souza (1986), em seu estudo da religiosidade popular no Brasil colonial, assinalou o caráter
pragmático, mundano e cotidiano do culto aos santos. Esse tipo de religiosidade se distanciava da
escatologia cristã e dos preceitos tridentinos. Embora o catolicismo popular, permeado por caracte-
rísticas mágicas, estivesse impregnado de reminiscências pagãs europeias, foi moldado pela africani-
zação de rituais e crenças católicas16. Símbolos católicos também foram agregados ou ressignificados
à luz das estruturas cosmológicas africanas.
[...] devotamente ortodoxos, exigindo que os seus fiéis obedecessem às leis da Igreja Romana,
outros encorajaram nos seus rebanhos o envolvimento simultâneo em práticas africanas e cató-
licas. Outros ainda procederam a uma africanização dos rituais católicos, como forma de fazer
face aos desafios colocados pelas religiões africanas (SWEET, 2007, p. 23).
A exemplo do que faziam os jesuítas em suas atividades missionárias de catequização das po-
pulações indígenas, os capelães das confrarias negras procuravam conhecer aspectos cosmológicos
africanos para, por meio de analogias e sobreposições semânticas, dotar de significado os símbolos
e as doutrinas católicas. Afinal, como esclareceu Baczko (1985), para que uma mensagem seja trans-
mitida com sucesso, é necessário que haja uma “comunidade de sentido” entre emissor e receptor,
sem a qual o diálogo não se estabelece. Ao procurar essa comunhão de significado, os capelães das
irmandades negras atuavam como espécie de antropólogos, buscando uma prévia compreensão da
religiosidade dos confrades negros para depois integrarem símbolos e doutrinas católicos às estrutu-
ras cosmológicas africanas. E, ao fazê-lo as tornavam, progressivamente, afro-brasileiras.
as mais formidáveis tormentas acalmam-se; salvam-se os infelizes sepultados no seio das mais
furiosas ondas; alcançam a margem da corrente os que por ela são arrebatados; e até encontram-
-se vivas pessoas que jazem no fundo dos poços ou nos abismos do mar. Despenha-se a gente do
alto das torres, das casas, das árvores mais elevadas sem sofrer sequer uma leve contusão; pode
um indivíduo ser atirado com balas candentes sem perigo; o raio perde a violência, os incêndios
não queimam, as moléstias mais rebeldes e a própria morte cedem ante a virtude poderosa do
santo escapulário (JORNAL DO RECIFE, 1876, p. 2)28.
Ao ouvirem que os amuletos de Nossa Senhora das Mercês protegiam os seus portadores de
todas essas ameaças temporais, os negros brasileiros certamente os associavam às bolsas de man-
dingas, tão populares no espaço atlântico português e que tinham o poder de fechar o corpo. As
próprias irmandades mercedárias forneciam, mediante pagamento de uma esmola, os saquinhos de
pano ligados por dois cordões –Bentinhos- para os seus irmãos. Era facultado ao ingressante, porém,
trazer o seu próprio escapulário para ser bento e lançado pelo sacerdote-capelão.
Na Irmandade das Mercês da Vila de Sabará, de acordo com o seu regimento interno de 1778,
a esmola do Bentinho era de meia pataca e deveria ser paga junto com a taxa de entrada. A irman-
dade cobrava uma anuidade de meia oitava de ouro, mas permitia a redução dessa taxa para quatro
vinténs de ouro àquele que trouxesse o Bentinho29. Nesse caso o Bentinho trazido pelo ingressante
poderia ser fabricado por um mandingueiro ou mesmo confeccionado pelo próprio ingressante, o
que torna ainda mais plausível nossa hipótese de africanização desses objetos devocionais católicos.
O baiano Oliveira Mendes, que no século XIX esteve no Reino do Daomé, relatou que “os afri-
canos faziam uma bolsa, semelhante ao ‘breve’ católico, que levavam consigo”. No interior dela, os
negros punham alguns objetos que consideravam como relíquias: cabelos, dentes, bicos de animais e
aves, alfinetes, pontas de lanças, penas e entranhas secas de aves, cascavéis de cobras, etc. (SANTOS,
2013, p. 23). Vimos que, no Brasil escravista, na medida em que se proliferava o uso de objetos e ora-
ções ligados aos santos, os rosários e os Bentinhos católicos foram ressignificados de acordo com a
cosmologia africana. “Os próprios objetos ligados ao culto do Santíssimo Sacramento, a eucaristia,
haviam sido convertidos em elementos capazes de trazer a cura e a proteção para o corpo de quem os
trouxesse junto a si” (SANTANA, 2010, p. 234). Com essa finalidade, pedras d’aras e pedaços de hós-
— Achamos ridículo senão estúpido que se diga na atualidade que um homem inteligente e ilus-
trado se converta ao catolicismo unicamente por virtude de um Bentinho ou de uma medalha
milagrosa39.
O ataque à crença nos Bentinhos ocorreu no contexto da notícia dada pela redação do Jornal
A Cruz, da conversão de um filho do célebre Wilberforce em consequência de trazer ao pescoço tal
medalha, o que os editores julgavam um absurdo, depondo contra o espírito do jornal que a publi-
cou. Sobre o significado de tal medalha, o jornal afirmava que solapava os princípios da religião e
descatolizava o Brasil. Pelo que continha de idólatra, afeição a relíquias, o Bentinho insultava a razão.
O jornal ressalvava:
— Não negamos nem afirmamos a eficácia dos milagres, limitamo-nos a estranhar que se ensinem
ao povo práticas fanáticas, em vez de verdades reveladas”40.
O tom era de extirpação do que havia de mágico no catolicismo popular brasileiro, alinhando
o catolicismo aos ditames ultramontanos.
A mesma censura aos Bentinhos aparece em outro periódico na mesma década de 1860, o que
demonstra que, durante a segunda metade do século XIX, os portadores de talismãs passaram a ser
acusados de crendice e deturpação da religião católica. A título da razão, pretendia-se extirpar do
catolicismo o que havia de encantamento. Assim, o Jornal do Recife, em 1868, noticiava:
Apareceu aqui nesta vila uma carta que dizem ter sido feita por Jesus Cristo ao povo; e tem isto
de tal sorte entrado na cachola de uma meia dúzia de devotos e devotas – verdadeiras hipócritas
– deste lugar, que já tem extraído diversas cópias para trazerem penduradas no pescoço como
relíquia ou Bentinho41.
Tal como o Jornal do Rio de Janeiro, o Jornal de Recife condenava a veneração de relíquias e,
sobretudo, a utilização delas para a confecção de talismãs para fechar o corpo. O racionalismo da
segunda metade do século XIX pretendia realizar o desencantamento do mundo, em especial, do
mundo católico popular africanizado. O mesmo ocorria em Portugal, sendo emblemática a crítica
— Se não fosse a declaração de que esse impresso é para distribuir gratuitamente entre os de-
votos, bem podíamos desconfiar que não passava de algum Bentinho feito par ser trocado por
500 réis aí pelo interior43.
A mais veemente censura à venda de Bentinho veio da pena de um padre chamado Mariano,
que assinou um artigo escrito para O Noticiador Catholico, jornal baiano, em uma edição de 1850.
Dando sequência a um artigo em que criticava homens falsários que, vestindo opas de irmandades,
pediam esmolas nas ruas das cidades baianas, no artigo da sexagésima segunda edição do jornal,
mirou as mulheres que, em andores ambulantes, vendiam Bentinhos, verônicas e rosários. Não se-
riam mulheres como estas, a exemplo da calunduzeira Luzia Pinta e das pretas minas estudadas por
Sheila Faria (2004), as fornecedoras de Bentinhos usados pelos confrades mercedários, como vimos
na seção anterior desse estudo?
Voltando à matéria jornalística de 1850, o padre Mariano advertiu que estas mulheres vive-
ram, na juventude, escandalosamente e, com o avançar da idade, passavam a vender esses Bentinhos
pelas ruas da Bahia, dando ainda consulta às donzelas em suas aflições. Para o padre, essas práticas
eram em tudo destoantes do século XIX, que caminha em progresso [...], difundindo luzes e levando
a perfeição das ideias”. O padre defendia a destruição de tais instituições e lamentava que, apesar de
reprovadas pela maior parte, contudo continuam a subsistir44.
Em 1869, a Semana Ilustrada, jornal satírico carioca, escarnecia a venda de Bentinhos nos
seguintes termos:
O mais eloquente relato que relaciona os Bentinhos aos patuás africanos é dado por Carmo
Gama na conclusão de seu conto da roça, intitulado O ermitão de Matozinhos, publicado em 1899
n’O Pharol. Em nota à conclusão, adverte o autor: “como todos os contos, todas as lendas populares
têm um fundo histórico, remoto ou próximo,” o que sugere que o relato a seguir estava presente na
tradição oral. O conto faz referência ao costume de fiéis visitarem o santuário de Bom Jesus de Mato-
zinhos, em Congonhas do Campo (MG), para pegar pedaços de uma pedra milagrosa e metê-las em
seus Bentinhos, exatamente como os africanos faziam com a pedra d’ara das igrejas na composição
de suas bolsas de mandinga.
A pedra milagrosa lá está. Quando chegarem à frente da igreja [do Bom Jesus de Matozinhos],
subam pelo lado da mão esquerda e, lá em cima, de um lado da porta que dá para o Sancta sanc-
torum, de lado, aí vê-la-eis, parte no alicerce da parede e parte sobressaindo. Nessa parte que
Sem dúvida o Bentinho era muitíssimo popular no Brasil do século XIX, como o comprova
a recorrência com que literatos caracterizam as suas personagens populares, sertanejos, tropeiros,
ermitões, etc., com o objeto no pescoço. No conto O tropeiro, publicado no jornal carioca Revista
Popular em 1862, encontra-se a seguinte caracterização da personagem do tropeiro:
era uma figura severa e lhana: uma barba cerrada e preta, a fronte alta e queimada, os cabelos lisos
e pretos de caboclo, davam-lhe uma certa distinção de fisionomia. A camisa vermelha se lhe abria
ao pescoço, e deixava ver um peito largo e valente, e aos seus latejos se agitava o Bentinho; - quem
não o tem de nossos patrícios?47
Considerações Finais
Procuramos demonstrar que a população negra, durante a segunda metade do século XVIII,
associou os pequenos escapulários marianos, conhecidos como Bentinhos, aos patuás ou talismãs
africanos. Para além da salvação/retirada da alma do purgatório, os Bentinhos foram usados como
amuletos que protegiam dos males mundanos, fechando o corpo e banindo infortúnios. Frente a um
perigo, o portador do Bentinho costumava leva-lo à boca e beijá-lo com devoção, tal como nos versos
do poema Convulsões de um moribundo, publicado em 1885 no jornal maranhense O Estandarte.
Esse uso africanizado do Bentinho é retratado em muitos romances do século XIX, época em que a
sua associação aos patuás negros já estava consagrada e passou a ser criticada pelos racionalistas e
defensores de um catolicismo desmagicalizado.
É certo que o uso de pedras d’ara e hóstias para fazer feitiços era um costume antigo entre
os próprios ibéricos (OLIVEIRA MARQUES, 1974, p. 171) e que, no Brasil colonial as feitiçarias
Notas
1 Com certo exagero, Lovejoy (Apud PRICE, 2003, p. 388) afirmou que o modelo crioulo presume que a
história africana não atravessou o Atlântico.
2 Luis Nicolau Parés, procurando aclimatar esse debate aos estudos da história e cultura afro-brasileira,
afirmou que, na Bahia escravista, esse modelo pendular operava entre os polos da ladinização (crioulização)
e da boçalidade (africanização).
3 As guerras angolanas de 1579 e 1580 foram responsáveis pelo início da primeira corrente do trato negreiro
africano para o Brasil. A desintegração do Reino do Congo a partir da Batalha de Ambuila (1665) e da
guerra civil que se seguiu permitiu o envio de muitos bakongos escravizados para o Brasil. A partir
de inícios do XVIII, a rota da Baixa Guiné enviou muitos escravos “minas”, sobretudo, para a Bahia,
Pernambuco e Minas Gerais. Finalmente, em inícios do XIX, a desintegração do império de Oió e as
guerras na região produziram um grande número de cativos falantes de iorubá (chamados de “nagô” na
Bahia), malês ou não, e hauçás (SWEET, 2007, 29-48).
4 Os princípios cosmológicos fundamentais (explicação, previsão e controle) partilhados pela maioria destes
povos africanos permitiram-lhes elaborar concepções comuns e continuar a desafiar a sua escravidão.
Desta forma, ganguelas, minas e ardas tornaram-se verdadeiramente africanos (SWEET, 2007, p. 142).
Sweet chama essa crioulização interafricana de processo de africanização.
5 Na tradição centro-africana, o termo “kalunga” designa as águas que separam o mundo dos vivos do
mundo dos mortos. Como os centro-africanos associavam o tráfico transatlântico à morte prematura, e a
América à terra dos mortos, o oceano atlântico passou a ser identificado à kalunga (SWEET, 2007, p. 192).
6 De acordo com Thornton (1984, p. 147-167), desenvolveu-se no Reino do Congo um “sincretismo aberto”,
uma vez que o reino era independente e que os missionários cristãos procuraram moldar sua mensagem
às estruturas religiosas locais, aceitando a mistura resultante como católica. A esse modelo de sincretismo
mais tolerante, Thornton opõe um “sincretismo fechado”, que teria ocorrido nas colônias onde os
missionários cristãos procuravam impor a religião oficial sem fazer concessões às religiões tradicionais
dos africanos escravizados.
7 Segundo Thornton (2013, p. 57), ao adotarmos o ponto de vista dos receptores da mensagem cristã,
“podemos dividir o sincretismo como sendo “rejeitado” (rejecting) ou “incorporado” (embracing). No
“sincretismo rejeitado”, as pessoas da área cristianizada adotam apenas as características superficiais da
religião dos missionários a fim de continuar ou talvez esconder a religião original. [...] Porque sua própria
elite tomou a liderança na moldagem da nova religião, o Congo adotou o “sincretismo incorporado” – um
sistema que procura um terreno comum com outra religião de modo a incorporar suas características de
um modo inteligível dentro de uma religião existente” (tradução livre).
8 As expressões são dos historiadores Ronaldo Vainfas e Marina de Mello e Souza. A partir das obras de
Thornton e MacGaffey, Vainfas & Souza (1998, p. 17) concluíram que a “congolização” do cristianismo e a
cristianização da religiosidade congolesa foram “nós imbricados de um mesmo processo”.
9 Para Thornton (1983, p. 106-107), o movimento antoniano combinou a religião tradicional congolesa com
a doutrina cristã transmitida pelos missionários, mas devidamente africanizada. Tratava-se, portanto, na
visão desse autor, de um “catolicismo congolizado”, mas não anti-cristão (ainda que tenha sido categorizada
como herética pelos padres capuchinhos no Congo).
10 Segundo Sweet (2007, p. 142), a religião centro-africana “emergiu como uma força contra-hegemônica” nas
sociedades escravistas portuguesas.
11 Ao falarmos em dualidade religiosa pretendemos enfatizar que “mesmo absorvendo gradualmente
algumas crenças católicas, os africanos continuaram bastante ligados às práticas espirituais africanas das
suas terras de origem” (SWEET, 2007, p. 244).
Referências
BACZKO, Bronislaw. A imaginação social. In: LEACH, Edmund et al. Anthropos Homem. Lisboa:
Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1985.
BERLIN, Ira. From Creole to African: Atlantic Creoles and the Origins of African-American
Society in Mainland North America. William and Mary Quartely, v. 53, n. 2, p. 251-288, 1999.
CALAINHO, Daniela Buono. Metrópole das mandingas: religiosidade negra e inquisição
portuguesa no Antigo Regime. Rio de Janeiro: Garamond, 2008.
COSTA, Hulda Silva Cedro da. Umbanda, uma religião sincrética e brasileira. Tese (Doutorado) -
Pontifícia Universidade Católica de Goiás. Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Ciências
da Religião, 2013.
EXPILLY, Charles. Mulheres e costumes do Brasil. São Paulo: Editora Nacional, 1977.
FARIA, Sheila de Castro. Sinhás pretas, damas mercadoras. As pretas minas nas cidades do Rio
de Janeiro e de São João Del Rey (1700-1850). Tese (concurso para professor titular em História do
Brasil) - Universidade Federal Fluminense, 2004.
FROMONT, Cécile. Under the sign of the cross in the Kingdom of Kongo: religious conversion and
visual correlation in early modern Central Africa. Res: Anthropology and Aesthetics, 59/60, p. 111-
113, 2011.
GUIMARÃES, Bernardo. O ermitão de Muquém. Historia da Fundação da Romaria de N. S.
da Abbadia de Muquém na província de Goyaz. In: Constitucional. Jornal Politico, Litterario e
Noticioso, ano 1, n. 5, 15 de setembro de 1866, p. 1.
HALL, Gwedolyn Midlo. Escravidão e etnias africanas nas Américas: restaurando os elos.
Petrópolis: Vozes, 2017.
LINDLEY, Thomas. Narrativa de uma viagem ao Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1969.
MACGAFFEY, Wyatt. Dialogues of the deaf: europeans and the Atlantic coast of Africa. In: