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Artigo Erik. Eriksonnn
Artigo Erik. Eriksonnn
A Arte de Envelhecer: Um
Estudo Exploratório Sobre
a História de Vida e o
Envelhecimento
The Art of Aging: An Exploratory
Study on Life History and Aging
El Arte de Envejecer:
Un Estudio Exploratorio Sobre la
Historia de Vida y el Envejecimiento
Priscilla Melo
Ribeiro de Lima
Universidade Federal de
Goiás, bolsista CAPES
O presente artigo é
derivado da dissertação
de mestrado da primeira
autora sob a orientação da
segunda e contou com o
apoio financeiro do CNPq.
Resumo: O presente estudo objetivou, a partir da teoria epigenética do ciclo de vida e da perspectiva do
desenvolvimento ao longo da vida, (1) conhecer aspectos do envelhecimento à luz da história de vida de
oito idosos, (2) investigar o modo como estratégias de seleção, otimização e compensação e envolvimento
vital se manifestam e (3) explorar contribuições da geratividade e da participação social no processo de
envelhecer de oito idosos. Os idosos participaram de entrevista semiestruturada. A análise dos dados revela
que fatores como participação social, geratividade e relacionamento com filhos e netos influenciam a
construção de um envelhecimento bem-sucedido. Por outro lado, fatores como estagnação e ausência de
envolvimento social parecem contribuir para o aparecimento de sintomas psicopatológicos.
Palavras-chave: Desenvolvimento psicossocial. Envolvimento social. Geratividade.Envelhecimento.
Abstract: The present study, based on the life cycle epigenetic model and lifespan psychology, was designed
to (1) understand aspects of the aging process from eight elders’ life stories, (2) investigate the way selective
optimization with compensation strategies and vital involvement aspects appear in old age as well as (3)
the contributions of generativity and social participation to the aging process. The subjects participated in a
semi-structured interview. A qualitative analysis of the data pointed out the influence of several factors on
the construction of a successful aging such as generativity, social participation and relationship with their
children and grandchildren. Factors such as stagnation and lack of social involvement seem to contribute
to the development of psychopathology symptoms.
Keywords: Psychosocial development. Social involvement. Generativity. Aging.
Resumen: El presente estudio objetivó, a partir de la teoría epigenética del ciclo de vida y de la perspectiva
del desarrollo a lo largo de la vida, (1) conocer aspectos del envejecimiento a la luz de la historia de vida de
ocho personas de edad, (2) investigar el modo como estrategias de selección, optimización y compensación e
involucración vital se manifiestan y (3) explotar contribuciones de la generatividad y de la participación social
en el proceso de envejecer de ocho personas de edad. Estas personas de edad participaron de entrevistas
semi-estructuradas. El análisis de los datos revela que factores como participación social, generatividad
y relacionamiento con hijos y nietos influencian la construcción de un envejecimiento bien llevado. Por
otro lado, factores como estancamiento y ausencia de envolvimiento social parecen contribuir para el
aparecimiento de síntomas psicopatológicos.
Palabras clave: Desarrollo psicosocial. Participación parental. Generatividad. Envejecimiento.
a sintonia e a distonia. O êxito da sintonia ativas suas relações sociais. Erikson, Erikson, e
dependerá do contexto e das relações sociais Kivnick (1986) afirmam que essa capacidade
além da capacidade interna em vencer as de envolvimento habilita o indivíduo a
próprias limitações. As fases propostas por estabelecer relações recíprocas com o meio
Erikson (1950/1963; 1982/1998) e as forças social, e precisa ser sempre estimulada.
psicossociais a serem adquiridas são: (1 a)
confiança versus desconfiança: esperança; Na velhice, com o aumento da força do
(2 a ) autonomia versus vergonha: força elemento distônico desespero e a contínua
de vontade; (3 a) iniciativa versus culpa: sensação de estagnação, ou seja, de ausência
propósito; (4a) realização versus inferioridade: de propósito, a necessidade de vínculos
competência; (5a) identidade versus confusão sociais torna-se mais evidente. Compartilhar
de papéis: fidelidade; (6a) intimidade versus da vida dos filhos e netos, ensinar e deixar
isolamento: amor; (7a) geratividade versus algo para as próximas gerações e manter
estagnação: cuidado; (8a) integridade versus relações sociais pode gerar e aumentar o
desespero: sabedoria; (9a) ressurgimento das envolvimento vital. Muitas vezes fisicamente
crises anteriores: gerotranscendência. limitado e confrontado com a finitude da
vida, o idoso se encontra lutando para
Joan Erikson (1998) Durante todo o ciclo vital, o indivíduo é aceitar a inalterabilidade do passado e a
afirma que as desafiado a estabelecer novas relações consigo incognoscibilidade do futuro, reconhecer
virtudes adquiridas
e com o mundo e a superar limitações. Cada erros e omissões e balancear o consequente
ao longo do
desenvolvimento estágio envolve o indivíduo em um processo desespero com o senso de integridade que
são desafiadas de reintegração dos temas psicossociais é essencial para continuar vivendo (Erikson,
ao final da vida, Erikson, & Kivnick, 1986).
principalmente
experimentados em estágios precedentes a
na nona etapa, novos temas relacionados à idade (Erikson,
pelo declínio das Erikson, & Kivnick, 1986; Wadensten, 2006). Joan Erikson (1998) afirma que as virtudes
habilidades físicas
Os principais desafios associados à oitava e à adquiridas ao longo do desenvolvimento são
e mentais. desafiadas ao final da vida, principalmente
nona etapas são resolver conflitos do passado,
na nona etapa, pelo declínio das habilidades
investir nas relações sociais do presente e
físicas e mentais. O idoso que tiver superado
encarar a finitude da vida com serenidade.
anteriormente as crises e estiver inserido
Assim, a aquisição da virtude sabedoria
em um contexto psicossocial que o auxilie
corresponde à capacidade de equilibrar um
na superação das dificuldades dessa etapa
sentido de coerência e plenitude pessoal com
não permitirá que o desespero tome conta
o desespero perante a proximidade da morte,
de sua existência. Dessa forma, tenderá a
além da aceitação das falhas e omissões do
encarar a finitude da vida com serenidade
passado. Nessa perspectiva, o elemento
e sabedoria, experimentará envolvimento
sintônico do sétimo estágio, a geratividade, vital e, possivelmente, adquirirá a virtude
é um aliado na luta contra o desespero. da gerotranscendência (Yount, 2009). Esta
Esse fenômeno envolve a capacidade e a envolve transcender as limitações corporais,
necessidade produtiva inerente a todo ser experimentar nova compreensão do tempo,
humano, abrange a geração e o cuidado com de si mesmo e das relações sociais, sensação
os filhos e desafia o sujeito a se comprometer de conexão com as gerações anteriores e nova
com múltiplas esferas sociais, exercer compreensão da vida e da morte (Erikson,
função de liderança e orientação na relação 1998).
com filhos e netos, além de auxiliá-los a
desenvolver confiança, autonomia, iniciativa No outro extremo, temos o elemento
e identidade (Bradley & Marcia, 1998). É a distônico do desespero, que se contrapõe à
geratividade que suscita o envolvimento vital integridade. Esse elemento é experimentado
no idoso e o auxilia a sentir-se vivo e a manter quando o idoso, ao olhar sua trajetória,
vislumbra sua existência através dos erros sociedade. Dessa forma, concebem-se três
cometidos. A vida, sob o olhar do desespero, influências que atuam sobre o sujeito durante
é vista como um conjunto de tarefas não seu ciclo vital: (1) influências normativas
terminadas, falhas e limitações. Yount ontogenéticas, ou seja, eventos que ocorrem
sustenta que o idoso em desespero “abriga de forma relativamente homogênea entre
ressentimentos acerca da brevidade da os sujeitos, p. ex., infância, adolescência,
vida e do fato de que não pode começar menopausa, etc; (2) influências normativas
tudo de novo” (2009, p.79). O sujeito, históricas, que envolvem acontecimentos
portanto, é incapaz de integrar experiências macroestruturais que originam mudanças
positivas e negativas, erros e acertos, em uma
biossociais, como é o caso de guerras, crises
perspectiva ampla da vida. Muitas vezes, esse
econômicas, novas tecnologias, etc., e (3)
idoso acaba por desenvolver psicopatologias
influências não normativas, que podem
como fuga ante o desgosto de viver (Birman,
ter caráter biológico ou societário e são
1995; Goldfarb, 2004).
imprevisíveis, como doença grave, luto,
ganhar na loteria, etc. Esses fatores estão
Cada crise surge em resposta a uma demanda
continuamente compelindo o indivíduo e
psíquica e a uma demanda psicossocial.
Assim, Erikson faz um entrelaçamento dos seu ambiente a se adaptarem. O sujeito é,
mundos interior e exterior do indivíduo então, constantemente requisitado a buscar
e de suas influências em cada etapa equilíbrio entre limitações e potencialidades.
do desenvolvimento. Nas duas últimas O êxito desse balanceamento é o que
etapas, o ambiente social se faz ainda mais caracterizaria o desenvolvimento bem-
preponderante no auxílio à superação da sucedido (Baltes, 1987).
distonia. Erikson ressalta que “a falta de um
ideal culturalmente viável da velhice faz com A partir dessa concepção e com o foco
que nossa civilização não tenha realmente na plasticidade comportamental, Baltes
onde ancorar um conceito de totalidade da e Baltes (1990) propuseram um modelo
vida” (1982/1998 p. 114). Na medida em adaptativo composto de estratégias de
que a sociedade não consegue valorizar o seleção, otimização e compensação (SOC).
idoso e proporcionar-lhe ambiente saudável Essas estratégias são utilizadas pelo indivíduo
e motivador, ter um senso de completude e com o objetivo de manejar satisfatoriamente
de totalidade da vida se torna mais difícil. mudanças biológicas, psicológicas e sociais e
propiciam oportunidades e limitações (Neri,
A perspectiva da Psicologia do desen- 2006a). Objetivando um desenvolvimento
volvimento ao longo da vida (Lifespan bem-sucedido, a seleção abrange a busca
Psychology), desenvolvida por Paul Baltes e por melhor funcionamento psíquico ante
colaboradores (1987), também concebe o novos desafios, como o aprendizado de novos
desenvolvimento humano como um processo
comportamentos, englobando a minimização
contínuo, com seus ganhos e perdas em todas
das perdas de determinadas capacidades.
as etapas, como veremos a seguir.
Isso ocorre na velhice, por exemplo, quando
o sujeito buscará amenizar perdas físicas e
Perspectiva do desenvolver novas habilidades. É uma tarefa
desenvolvimento ao longo da adaptativa que abrange demandas ambientais
vida (Lifespan Psychology) e motivações e capacidades individuais. A
otimização inclui a aquisição ou a articulação
Essa perspectiva compreende o de meios, internos ou externos, para viabilizar
desenvolvimento a partir do indivíduo e do a conquista dos alvos estabelecidos pela
que é comum aos membros de determinada seleção. O indivíduo poderá utilizar recursos
Instrumentos, procedimentos e com mais saúde. Pelo tipo de vida que levo,
análise de dados não fiz tanto estrago assim pra merecer esse
AVC e estar com essas limitações. Era muito
Foi realizada entrevista semiestruturada, com serelepe, não tomava remédio nenhum”. Esse
ênfase na história de vida do idoso, cujos fato parece trazer-lhe um questionamento
tópicos abordaram: eventos marcantes na sobre o presente e talvez uma confusão de
vida pregressa e atual, vida social, história identidade ao se deparar com uma nova
ocupacional, relações familiares e conquistas situação em seu ciclo vital. O presente parece
e perdas passadas e presentes. O projeto foi ainda indefinido, um interlúdio entre o que foi
aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa e o que será: “Mas não me considerava velho
da Faculdade de Medicina da Universidade não, me achava garoto maduro, e, com o AVC,
de Brasília. As entrevistas foram gravadas com fiquei velho de uma noite... pro amanhã... me
a permissão dos participantes e analisadas a alertou que eu não tinha mais 17 anos”. Para
partir de uma análise qualitativa. O método quem sempre gozou de boa saúde, trabalhou
utilizado foi o estudo de caso devido às com disposição grande parte da vida, e se via
peculiaridades de cada história, e teve como um garotão parece estar sendo difícil
o intuito de preservar o caráter unitário reconhecer-se velho. Embora tenha parado
dos relatos (Minayo, 2007). A síntese das de trabalhar, Geraldo utiliza a internet para
histórias procurou identificar: geratividade e manter-se produtivo, escrever e publicar
estagnação, participação social, estratégias de artigos, entrar em contato com amigos e
SOC, integridade e desespero ante a finitude escritores. A produtividade intelectual e o
da vida e sabedoria. As informações pessoais trabalho são aspectos marcantes em sua vida.
e os nomes dos sujeitos foram alterados. Os
primeiros quatro sujeitos são pacientes do Uma das sequelas do AVC é a dificuldade
CMI, e os demais, moradores de Anápolis. em enxergar. Os olhos são seus instrumentos
de trabalho e se relacionam com atividades
Resultados que aprecia: ler e escrever. Diante disso, a
intervenção cirúrgica à qual foi submetido
Geraldo: a arte de vislumbrar um parece trazer-lhe alento e vislumbre de
futuro possível possibilidade de futuro e adiamento da morte:
“Tá parecendo agora que fiz operação de vista,
Geraldo tem 75 anos, é casado há 42 que posso ter tempo ainda pra terminar meu
anos e tem 3 filhas. Nasceu no interior de livro”. O assunto tratado pelo livro é segundo
Minas Gerais e mudou-se para a capital Geraldo, a relação do homem com a natureza
para terminar o ensino fundamental. Após e como será o futuro da humanidade e a vida
a conclusão do ensino médio, cursou das gerações futuras.
Sociologia. Aposentou-se como professor
universitário, mas continuou a trabalhar O tema família também é presente no
como sociólogo e articulista de alguns sites depoimento de Geraldo, que demonstra
de Sociologia e política quando sofreu um orgulho do seu casamento e das filhas, e de
acidente vascular cerebral (AVC) aos 73 ter lhes dado a melhor educação possível. Sua
anos. A partir de então, sua vida mudou. participação social atual envolve, sobretudo,
Apresenta dificuldades para caminhar, para eventos familiares. Relata que, quando
articular palavras e enxergar. Durante a jovem, era muito farrista, tocava violão e
entrevista, sua fala deixou transparecer certo fazia serenatas. Mas, atualmente, afirma não
desapontamento com a vida: “Eu podia estar ter hábito de sair.
Em relação ao casamento, afirma que viveu queria que eu casasse cedo. Gostava que eu
bem com o marido. Com a viuvez, afirma fizesse tudo (se emociona). Era muito apegado
ter sentido falta do marido, mas não esboça comigo...”
qualquer sentimento. A dificuldade em se
lembrar de datas e idades específicas foi Apesar de não ter tido um emprego formal,
marcante no discurso de Helen. Durante todo a produtividade fez parte de sua vida. Como
o depoimento, ocorreram confusões de datas relatado acima, cuidou dos afazeres da casa
e dificuldade em se localizar temporalmente. quando criança. Depois de casada, envolveu-
Parece que os esquecimentos já fazem parte se no cuidado dos filhos e em fazer alimentos
de sua vida. Afirma que se esquece de fatos para vender. Na velhice, confecciona e vende
do dia a dia: “Agora, depois de velha, é que tô toalhas bordadas.
esquecida. A gente acostuma”. Em momento
algum demonstrou aborrecimento em não se Outro aspecto importante na vida atual
lembrar de datas, de fatos importantes e do de Joana é o contato com os filhos. Tem o
nome dos netos e bisnetos. Atribuiu à velhice costume de visitar e almoçar com as filhas
os problemas de memória. regularmente, e filhos e netos frequentam sua
casa: “A casa não é tão grande, mas tem quintal
Joana e a manutenção do senso de que os meninos gostam, família grande quando
cuidado e produtividade ajunta...” O envolvimento e a participação
na comunidade foram presentes na vida de
Joana tem 68 anos de idade, é casada e Joana. Desde o início do casamento, participa
tem 7 filhos. Nasceu em uma fazenda no frequente e ativamente das atividades de sua
interior de seu Estado, e é a quinta filha igreja. Conta que, mesmo a pé e morando
de uma prole de sete. Vem de uma família longe, ia aos cultos semanais e levava os
de pequenos agricultores e quase não teve filhos. Provavelmente, a ausência do marido
acesso à educação. Estudou apenas a cartilha, no dia a dia da dinâmica familiar tenha levado
aprendeu a ler e a escrever, mas precisou Joana a buscar, na religião, o conforto de que
abdicar da escola para ajudar o pai na colheita precisava para continuar lutando por dias
de café e nos afazeres da fazenda. Relata que melhores em sua vida. Atualmente, continua
abandonou os estudos contra a sua vontade. participando de todas as programações da
Não ter tido a oportunidade de estudar e não comunidade religiosa.
ter retornado aos estudos mais tarde ainda a
entristece: “Teve época que fiz matrícula pra Joana afirma que sua saúde está boa, mas
começar a estudar, mas não tinha como deixar apresentou dois episódios depressivos nos
meus filhos”. últimos três anos. Esses episódios foram,
segundo a idosa, decorrentes de situações
Sua infância foi preenchida pelo trabalho, familiares que envolviam problemas de saúde
ajuda na roça e papel de cuidadora. Quando das filhas. Embora reconheça a necessidade
a mãe morreu, Joana tinha 8 anos e assumiu de ajuda especializada, apegou-se às crenças
as tarefas da casa: “Assumi a casa, toda a religiosas, que parecem lhe proporcionar a
responsabilidade. Gostava de fazer as coisas, certeza de que tudo vai se resolver.
aprender, aprendia com minha avó”. A morte
da mãe é marcante para Joana, que se A velhice, para Joana, possui aspectos
emociona ao relatar os detalhes. Igualmente, positivos e negativos, e alegra-se por estar com
o relacionamento com o pai parece ter sido saúde, apesar de querer mais vigor. A crença
assinalado por cuidado mútuo: “Demorei religiosa parece auxiliá-la a encarar os desafios
mais a casar porque parecia que meu pai não e as debilidades da velhice: “Queria ter mais
vigor, gente mais nova supera as coisas mais com poucos meses de vida. Este, apesar de
fácil. Muitas coisas se passaram e tem que casado, é o mais próximo a Ivonete, e do
chegar nessa idade, não sou desesperadora qual ela demonstra sentir muito orgulho.
com isso. Tenho alegria de ter a força que Esse filho ajuda o pai na oficina mecânica,
Deus tem me dado”. faz as refeições do dia na casa de Ivonete e
é quem lhe dá assistência quando adoece.
Ivonete: superação das perdas Há quase 20 anos esse filho foi preso. Narra
corporais com detalhes os episódios desse fato e afirma:
“Deus me ajudou muito, eu fui com Deus
Ivonete tem 68 anos, é casada e tem 4 filhos, e minha Bíblia e com o advogado, sempre
sendo um adotado. Afirma que sua mãe não falava: ‘o Senhor tá junto comigo’”. Como
gostava muito de crianças e a deu para a avó. consequência de todas as emoções que sofreu
Não conheceu o pai e nunca se interessou para libertá-lo da prisão, Ivonete desenvolveu
em conhecê-lo. Diz ser resignada com isso, angina. Foi internada várias vezes com
não lamentar e ser grata por ter sido criada anemia, necessitando de transfusão de
pela avó e ter tido a vida que teve. Conta que, sangue há pouco tempo. A religiosidade
durante a infância, precisou auxiliar a avó no é presente em seu depoimento. A crença
sustento da casa. Ajudava a vender hortaliças religiosa lhe proporciona participação em
que cultivavam em casa e doces que a avó uma comunidade, além de esperança de que
fazia. “Tudo que sei, agradeço minha avó, ela os problemas se resolverão.
era lavadeira de roupa, estudei em escolas
públicas e nunca reclamei de nada. Vivi muito Isaura e o envolvimento social
bem, minha infância foi muito boa, minha
educação também”. Fez o curso de técnico Isaura tem 70 anos, é a quinta dentre 6 filhos,
em enfermagem e trabalhou em hospitais viúva e mãe de um filho adotivo. Nasceu
locais. Devido à escassez de mão de obra na Bahia, e mudou-se para Goiás quando
especializada na época, assumiu cargos de tinha um ano. Sua infância foi marcada pela
chefia no hospital psiquiátrico e coordenou pobreza e pela constante luta dos pais e dos
a maternidade até se aposentar após 30 de irmãos pelo sustento. Com muito esforço,
trabalho. Ainda mantém relacionamento seu pai conseguiu construir uma casa, mas
de amizade com pessoas que conheceu morreu logo depois: “Eu devia tá com uns
na época em que trabalhava no hospital. 12, por aí, foi logo que construiu a casa. Não
Atualmente, sua participação social envolve sei bem o que aconteceu”. Suas lembranças
atividades de sua comunidade religiosa e do da infância são poucas, mas parece não se
prédio onde reside. Demonstra satisfação em incomodar com isso. A vivência da pobreza,
falar sobre essas atividades. as dificuldades e as perdas enfrentadas
parecem estar bloqueadas ou ser evitadas.
No relacionamento com o marido, com quem Não se lembra de quando se mudaram de
é casada há 50 anos, parece haver diálogo e cidade, não soube falar como ficou a vida
respeito mútuo. Seu marido enfrentou câncer após a morte do pai e nem como foi a morte
de próstata há algum tempo, e, devido ao da mãe quando já estava na maturidade.
tratamento e à cirurgia, tornou-se impotente.
Demonstra ter orgulho do esposo: “Criou Ao relatar a morte do marido, há 11 anos, após
os filhos muito bem criados, eu sou muito complicações do tabagismo e alcoolismo,
feliz. Graças a Deus”. Seu relacionamento emocionou-se e chorou. Embora afirme que
com os filhos tem se caracterizado por seu casamento era normal, foi marcado por
proximidade maior com o caçula, adotado brigas, pelo alcoolismo e pela agressividade
física e verbal do marido. Após a sua morte, A aposentadoria é considerada ruim, pois não
o envolvimento e a participação social de encontrou outra ocupação que o satisfizesse:
Isaura aumentaram e parecem trazer-lhe o “No começo foi bom, mas não foi bom porque
sentido de pertencimento e a possibilidade a gente fica quieto, não tem o que fazer, sente
de cuidar das pessoas à sua volta. Faz parte falta daquilo que a gente ficava trabalhando e
de uma comunidade religiosa há muitos anos hoje não tem mais que ficar lutando”. Diante
da falta de projetos, Lúcio busca consolo na
e participa ativamente das atividades. Afirma
religião: “Acabou os afazeres, então tem uma
que gosta de “visitar porque as pessoas tá
esperança, a vida eterna”. Outro agravante
precisando de ser ouvida”. A satisfação em
parece ser a falta de participação social.
fazer algo por alguém pode ser percebida em
Atualmente, apenas freqüenta as reuniões de
seu relato, o que demonstra a permanência sua igreja sem envolver-se ativamente.
do senso de cuidado na velhice.
Discussão
A religiosidade é presente ao relatar situações
difíceis: “Quando meu marido morreu, eu já Tendo como base as teorias propostas e as
tava preparada, Deus tinha me avisado”,“Tem histórias dos idosos, articularemos algumas
hora que passa por isso porque Deus questões que possam contribuir para a
permitiu”. As crenças religiosas parecem compreensão do envelhecimento. Dentre os
trazer explicação e aceitação para a morte. participantes, percebeu-se que alguns estão
Alega receber carinho e respeito das pessoas vivenciando uma velhice bem-sucedida.
da igreja e sentir-se amada, mas diz não Outros, porém, não conseguiram superar
perdas e manter o senso de engajamento e
ter amizades. Mora sozinha e possui boas
luta por um futuro possível.
expectativas futuras: “Vou longe, se Deus
quiser. Peço a Ele qualidade de vida”.
Um dos elementos sintônicos que parecem
contribuir para que Geraldo, Joaquim e
Lúcio e a falta de objetivos pelos
Joana experimentem um envelhecimento
quais lutar
com satisfação é a geratividade. Como
consequência do desenvolvimento e do
Lúcio tem 75 anos de idade, é casado e tem
fortalecimento desse senso, surge a força
3 filhos. Nasceu e morou na zona rural até
psicossocial do cuidado que contribui para o
a idade adulta. Trabalhou com o trator de
envolvimento vital. Esses três idosos cuidam
seu pai onde moravam e na construção de
e se preocupam com as pessoas próximas a
igreja na região. Sua infância foi assinalada
eles e com o futuro. Dentre esses três idosos,
pelo trabalho, por problemas de alcoolismo,
Geraldo parece exemplificar uma velhice bem
pela violência do pai e por nenhum acesso
adaptada. Enfrentar um trauma aos 73 anos
à educação. A morte da mãe foi um dos
e manter certo grau de satisfação consigo
eventos marcantes na vida de Lúcio: “Ela
mesmo e com a vida tem sido uma dentre suas
e minha esposa era muito ligada, morava
muitas conquistas. A psicologia do Lifespan
perto, e ficou muito abatida, e eu também
discorre sobre três tipos de envelhecimento:
fiquei muito triste, foi uma das coisas mais
patológico, normal e ótimo. Este último é
difícil, aí resolvi mudar pra cá”. Ao chegar caracterizado, principalmente, pela ausência
em Anápolis, trabalhou no beneficiamento de patologias físicas e psíquicas (Baltes &
de arroz e assumiu funções de pastor em Baltes, 1990). No entanto, a história de
igreja local. Manteve essa jornada dupla por Geraldo demonstra a possibilidade de usufruir
aproximadamente 40 anos. de envelhecimento bem-sucedido mesmo na
Os demais sujeitos, Geraldo, Luiza, Joaquim, social e não mais se projeta para o futuro,
Joana, Ivonete e Isaura, indicam ter utilizado, adoece.
no decorrer da vida, estratégias de seleção,
otimização e compensação, e, portanto, Outro fator observado na narrativa dos
parecem ter desenvolvido a sabedoria. participantes foi o relato sobre os filhos.
Conforme Baltes e Staudinger (2004), a As participantes Luíza, Joana e Ivonete
sabedoria abrange formas de adaptação mencionaram o cuidado com os filhos e os
que propiciam maximização de ganhos sacrifícios feitos para criá-los. Com exceção
e minimização de perdas. Assim, Ivonete de Ivonete, as outras idosas não seguiram
investe em relacionamentos e não permite carreira profissional e desenvolveram
que limitações físicas a impeçam de realizar a geratividade e o cuidado a partir da
atividades que a contentem. Luíza, ainda maternidade. Ivonete fortaleceu esses
diante de queixas do passado, encontra elementos junto à profissão. Helen, apesar
satisfação nos filhos e nas atividades religiosas. de duas filhas e da carreira, não fala sobre
Joana mantém seu envolvimento com a vida esse tema. Entre os homens, apenas Geraldo
através de pequenos projetos como bordar falou sobre as filhas. A criação e o cuidado
toalhas. Joaquim conservou a produtividade com os filhos parecem receber mais atenção
e o cuidado através da manutenção de de mulheres (Santos & Diniz, 2006). Cabe
atividades da sua profissão e do contato com ressaltar que os participantes da pesquisa
os netos. Isaura tenta superar um casamento nasceram na primeira metade do século
conturbado através da participação social. passado, quando o papel de cuidador era
Geraldo sonha e se empenha para publicar quase exclusivo da mulher. Percebe-se
seu livro e construir sites na internet. que, com a mudança socio-histórica que
vem ocorrendo, esse papel tende a estar
A religiosidade esteve presente nos relatos mais distribuído entre homens e mulheres.
de Luíza, Joaquim, Joana, Ivonete, Isaura e Certamente, os velhos das próximas gerações
Lúcio, ou seja, tanto em participantes do CMI terão vivenciado o cuidado com os filhos
como da instituição religiosa de Anápolis. A de forma diferente. Investigar os papéis
experiência religiosa parece ser elemento familiares e sociais através do viés do gênero
comum na velhice. Pesquisas realizadas por é essencial para melhor compreensão
Erikson, Erikson e Kivnick (1986), Monteiro da influência da dinâmica familiar no
(2004) e Yount (2009) constataram que, no envelhecimento.
fim da vida, a religião pode oferecer consolo
e sensação de continuidade existencial. Assim, a partir do que foi discutido, sugestões
Além disso, pode ser um recurso facilitador de intervenções psicossociais podem ser
na compreensão e na aceitação de perdas. feitas. A assistência a idosos, grupal ou
Apesar de esse tema não ser tratado no individual, parece trazer resultados muito
referencial teórico deste estudo, parece ser positivos. Pesquisas realizadas no Centro de
um aspecto presente na vida do idoso e digno Medicina do Idoso do Hospital Universitário
de pesquisa posterior. da Universidade de Brasília demonstram a
eficácia do suporte social e afetivo oferecido
Esses idosos nos ensinam que a vida vai além através da convivência de idosos em trabalhos
dos traumas e das dificuldades e precisa ser grupais. De igual modo, a psicoterapia de
vivida com intensidade e com a busca por indivíduos na maturidade pode resultar na
relacionamentos. Py (2004) afirma que o superação de sintomas depressivos e na
percurso existencial necessita ser um projeto aceitação dos efeitos do tempo sobre o corpo
individual que se articula com outros projetos e o psiquismo (Campos & Coelho, 2010).
da coletividade. Viver requer compromisso Auxiliar idosos-jovens a manter a geratividade
e envolvimento com o contexto relacional. e a participação social pode contribuir para o
Quando o sujeito se aliena de seu contexto bem-estar na velhice (An & Cooney, 2006).
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