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Estudos sobre leitura:

Psicolinguística e interfaces
Chanceler
Dom Dadeus Grings

Reitor
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Vice-Reitor
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Conselho Editorial
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Bettina Steren dos Santos
Eduardo Campos Pellanda
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Ir. Armando Luiz Bortolini
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Lauro Kopper Filho
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Renato Tetelbom Stein
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EDIPUCRS
Jerônimo Carlos Santos Braga – Diretor
Jorge Campos da Costa – Editor-Chefe
Organizadores

Vera Wannmacher Pereira


Ronei Guaresi

Estudos sobre leitura:


Psicolinguística e interfaces

Porto Alegre 2012


© EDIPUCRS, 2012

Lucas Costa

Ronei Guaresi

Rodrigo Valls

E82 Estudos sobre leitura: psicolinguística e interfaces [recurso


eletrônico] / Vera Wannmacher Pereira, Ronei Guaresi
(Organizadores). – Dados eletrônicos. – Porto
Alegre : EDIPUCRS, 2012.
206 p.

Sistema requerido: Adobe Acrobat Reader


Modo de Acesso: <http://www.pucrs.br/edipucrs>
ISBN 978-85-397-0133-9

1. Psicolinguística. 2. Linguagem. 3. Leitura.


4. Leitores – Formação. I. Pereira, Vera Wannmacher.
II. Guaresi, Ronei.
CDD 401.9

TODOS OS DIREITOS RESERVADOS. Proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio ou processo, especialmente por sistemas gráficos, microfílmicos, fotográficos, reprográficos, fonográficos,
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busca e apreensão e indenizações diversas (arts. 101 a 110 da Lei 9.610, de 19.02.1998, Lei dos Direitos Autorais).
Sumário Processamento de leitura: predição e inferências em
pôsteres de paródias de filmes de terror.......................................96
Apresentação...............................................................................6 Luiza Helena Müller dos Santos
Estudos sobre Leitura: Psicolingüística e interfaces.......................7 Palabras frecuentes y comprensión de lectura en L2: ¿Puede el
Vera Wannmacher Pereira computador contribuir?................................................................107
Elba Beatriz Lami
A linguagem e a memória operacional..........................................12
Ângela Inês Klein Inferências e compreensão leitora...............................................115
Rafaela Janice Boeff Elisangela Kipper
Metacognição e metalinguagem....................................................21 Processamento de leitura: cultura digital e processos
Jésura Chaves inferenciais...................................................................................127
Marília Lopes Daisy Pail
Leitura e atenção: um olhar sobre o input linguístico sob a Uma discussão sobre estratégias metacognitivas em
perspectiva psicolinguista..............................................................31 leitura na escola..........................................................................142
Karine Souza Kelli da Rosa Ribeiro
Ronei Guaresi Concepção de leitura: abordagens psicolinguísticas em
O impacto da aquisição da leitura no cérebro: o que os interface com abordagens da neurociência...............................152
estudos com neuroimagem têm a dizer........................................42 Samanta Demetrio da Silva
Fernanda Knecht Nível de compreensão de leitura de um aluno colombiano no
Resumo: a relevância do objetivo de leitura..................................50 processo de aprendizagem do português: um estudo de caso..159
Cláudia Strey Vanessa Nery Souza
Influência da leitura ao desenvolvimento da escrita: Como vender para quem não compreende o que lê?................167
uma incursão pela (in)consciência................................................63 Luciana Braun Reis
Ronei Guaresi Uma nova proposta de ensino de estratégias de leitura: a
Fatores compartilhados no processamento de leitura utilização da teoria dos blocos semânticos em sala de aula......177
em L1 e L2.....................................................................................76 João Henrique Casara Borges
Lisiane Neri Pereira A interferência das otites médias no processo de alfabetização...185
Aspectos cognitivos envolvidos no processamento da leitura: Fernanda Dias
contribuição das neurociências e das ciências cognitivas............84 Neurofisiologia do uso da segunda língua através
Gislaine Machado de estudos por imagem.........................................................197
Ramon Gheno
Apresentação

Esta publicação reúne artigos elaborados por alunos


na disciplina Compreensão e processamento da leitura do
Programa de Pós-Graduação em Letras da PUCRS, e por
participantes do Grupo de Estudos de Psicolinguística, am-
bas as situações realizadas em 2010/2, sob a orientação da
Profa. Dr. Vera Wannmacher Pereira.
Sob a perspectiva psicolinguística, os autores, jovens
pesquisadores, desenvolvem o tema da leitura, focalizando
metacognição, memória, atenção, compreensão e proces-
samento, estratégias, inferência. Alguns deles apóiam suas
análises fazendo conexões da Psicolinguística com outros
campos da Linguística e com outras áreas de conhecimen-
to, valorizando, assim, a perspectiva de interface.
No final de cada artigo há um formulário em que o
leitor poderá fazer observações, questionamentos, comen-
tários sobre o artigo. Uma vez enviado, o autor receberá a
mensagem e, na medida do possível, responderá. Dentre os
objetivos dessa iniciativa estão o de aproximar escritor e leitor
e o de estimular debate acadêmico em torno dos temas.

Os organizadores
Estudos sobre leitura: Psicolinguística como tópicos centrais: a) Psicolinguística: histórico, objeto
e interfaces de estudo, interfaces, processos investigativos; b) leitura:
aquisição/ aprendizado, memória, funcionamento no cérebro,
cognição e metacognição; c) linguagem e consciência; d)
Vera Wannmacher Pereira1
Fale com a autora compreensão da leitura: concepção, variáveis intervenientes,
procedimentos e instrumentos de investigação; e) estratégias
A publicação “Estudos sobre leitura: Psicolinguística de leitura: concepção, tipos, frequência de uso, relação
e interfaces” tem como objetivo disponibilizar à comunidade com a compreensão; f) predição e inferência; g) resumo e
acadêmica artigos produzidos por jovens pesquisadores que compreensão; h) processamento da leitura: concepção,
participaram da disciplina “Processos de compreensão leitora” variáveis intervenientes, procedimentos e instrumentos
do Programa de Pós-Graduação em Letras da PUCRS e do de investigação; i) pesquisa em Psicolinguística: objetivos,
Grupo de Estudos de Psicolinguística, ambas as situações tendências, caminhos, possibilidades; j) Psicolinguística no
realizadas em 2010/2, sob a orientação desta autora. ensino: objetivos, tendências, caminhos, possibilidades.
O presente artigo inicia esta publicação. Primeiramente, Na segunda situação, os estudos estiveram voltados
essas duas situações são caracterizadas, em relação aos para os seguintes tópicos, considerando o objetivo de
conteúdos e aos procedimentos desenvolvidos. A seguir, é verticalização de conhecimentos: memória; atenção;
apresentada a área sobre a qual os estudos estão assentados, emoção; processamento da leitura e da escrita; estratégias
em sua evolução histórica, evidenciando as perspectivas de leitura; procedimentos e instrumentos de pesquisa
disciplinar e de interfaces. Posteriormente, são desenvolvidos psicolinguística; interfaces para estudos psicolinguísticos.
alguns tópicos sobre leitura, eixo deste e-book, sendo O grupo de participantes da disciplina, mestrandos
esclarecidos os caminhos seguidos pelos autores. e doutorandos do PPGL em Letras com concentração
em Linguística, apresentam algumas diferenças em sua
1 Situações de produção dos textos formação – embora predominantemente de Letras, são
alguns originários da Comunicação, da Fonoaudiologia,
Os artigos foram produzidos em duas situações da Medicina e do Direito. Além disso, seus interesses
diferentes – ao final de uma disciplina e ao final dos trabalhos específicos estão voltados para eixos diversos da
de um grupo de estudos. Linguística – Psicolinguística, Teoria da Enunciação, Análise
Na primeira situação, os estudos estiveram voltados do Discurso, Sintaxe, Semântica, Pragmática, Fonologia,
para a compreensão e o processamento da leitura, tendo Variação Linguística. Considerando essas características,
1
Doutora em Letras/Linguística Aplicada. Professora Permanente do PPGL da a proposta de escrita de artigo possibilitou, ao participante,
FALE/PUCRS.
8 Estudos sobre Leitura: Psicolingüística e interfaces

desenvolver um tópico psicolinguístico associado à sua área homem. Esse movimento de compreensão do pensamento
específica de interesse. Desse modo, os artigos produzidos e dos sentimentos tem sua raiz, na verdade, no desejo de
nessa situação trazem esses traços. conhecimento da essência humana – seu passado, seu
O Grupo de Estudos Psicolinguísticos acolheu presente e seu destino.
bolsistas do Centro de Referência para o Desenvolvimento A busca desse entendimento tem provocado
da Linguagem - CELIN, mestrandos e doutorandos com explicações diversas ao longo dos tempos – míticas,
interesse voltado diretamente para a Psicolinguística, religiosas, filosóficas, psicológicas, linguísticas e, mais
tendo já realizado pesquisas nessa área e pretendendo recentemente, neurocientíficas. Nesse emaranhado, a
dar-lhes continuidade. Diante dessas características, a ciência tem tropeçado, apresentando primeiramente análises
proposta de escrita de artigo direcionou o participante para abrangentes, posteriormente específicas e segmentadas,
o desenvolvimento de um tópico psicolinguístico ao mesmo chegando, atualmente a explicações ao mesmo tempo
tempo desenvolvido nos seminários e vinculado aos seus verticais, valorizando a visão disciplinar, e horizontais,
interesses de continuidade dos estudos. Desse modo, os buscando as interfaces (COSTA E PEREIRA, 2009a e 2009b).
artigos produzidos nessa situação trazem essas marcas. Nesse andar, há, na história do pensamento
Sendo essas as circunstâncias de geração deste humano, sinalizações importantes em favor do
e-book, tem como foco tópicos psicolinguísticos direcionados delineamento da Psicolinguística.
à leitura, em perspectivas disciplinar e de interfaces internas Com base em reflexões filosóficas, essa disciplina é
e externas. Na sequência deste artigo, essas perspectivas de certo modo anunciada no Mundo das Ideias de Platão,
são explicitadas. indicando concepções prévias no pensamento. Em sua
argumentação está o Mito da Caverna, gerando inúmeras
2 Psicolinguística: disciplina e interfaces em estudo interpretações e atravessando os tempos. Esse anúncio está
também na Maiêutica Socrática, em que o conhecimento
A Psicolinguística consiste na área de estudos dos se revela na parturição das ideias. Com Descartes, século
artigos deste e-book, vista disciplinarmente e nos contactos XVII, isso se faz pelo racionalismo, sendo o pensamento
de interfaces. Neste item, ela é apresentada em seu indicativo da existência humana - “Penso, logo existo”.
processo de definição. Em Humboldt, século XVIII, a língua, mesmo sendo inata
Sua configuração como uma disciplina tem seus e mental, não deve ser considerada uma obra acabada
primeiros sinais na curiosidade sobre o pensamento – sua (energeia), mas sim uma atividade (ergon).
origem, seu lugar de realização, sua construção – que, por Essas reflexões filosóficas marcam pressupostos
sua vez, se associa à curiosidade sobre os sentimentos do da Linguística que se inicia formalmente no século XX –
9 Vera Wannmacher Pereira

assumindo-as ou negando-as. Saussure (início do século que se refere à compreensão e à produção, com um lugar
XX), embora enfatizando o social, traz a palavra “mente” para a aquisição. O seu desenvolvimento abriu pontos
como um repositório em que estão as regras linguísticas de de curiosidade científica que, para serem examinados,
um grupo social (langue). Menciona também a linguagem conduziram-na naturalmente para o estabelecimento de
(langage) como algo que está na capacidade de todos os interfaces internas com outras áreas da Linguística (Linguística
falantes. Refere ainda o aspecto individual (parole), próprio do Texto, Análise do Discurso, Teoria da Enunciação,
de cada falante. Chomsky (segunda metade do século Pragmática) e interfaces externas com outras áreas do
XX) faz importante ruptura com o estruturalismo linguístico conhecimento (Psicologia Cognitiva, Fonoaudiologia,
e retoma Descartes, defendendo o ponto de vista do Biologia, Medicina, Computação, Comunicação, Educação
inatismo. Nesse entendimento, a linguagem se apresenta e, mais recentemente, Neurociências).
como competência e desempenho, sendo a competência Neste momento de sua evolução, a Psicolinguística
constituída de condições universais pré-existentes e o busca espaço entre os estudos sobre a linguagem percebida
desempenho, de natureza individual, sua realização. pelo ângulo da cognição (EISENCK; KEANE, 2007), com
Podem ser ainda incluídos em seus antecedentes ênfase no processamento cognitivo (SMITH, 2003) da
os estudos da linguagem humana oriundos da Psicologia leitura e da escrita.
que se apoiavam metodologicamente em procedimentos Essas novas interfaces trouxeram junto novas
interpretativos. No entanto, na medida em que a Psicologia, possibilidades de instrumentos de pesquisa, absorvendo
assim como todas as áreas do conhecimento impulsionadas tecnologias avançadas, que trazem importantes acréscimos
pelo positivismo, definiu contornos mais precisos em torno aos até então utilizados (DEHAENE, 2007).
de seu objeto, na direção da autonomia e do estatuto
científico, a Linguística também o fez (CABRAL, 1991). 3. Leitura: objeto de estudo dominante
Essa condição gerou metodologias próprias, referenciais
teóricos específicos, tratamento de dados próprios. As Os estudos sobre leitura vêm sendo dominantes
disciplinas que até então buscavam associações naturais na Psicolinguística e constituem-se também assim no
com disciplinas externas sofreram redefinições, absorvendo presente e-book. Esses estudos abrangem frequentemente
elementos externos, assumindo novos rótulos e promovendo compreensão, processamento e estratégias de leitura
internamente suas interfaces. (KLEIMAN, 2008).
A Psicolinguística buscou então seu próprio A concepção de leitura é a de processamento
contorno, desenvolvendo um percurso no que se refere cognitivo (GOODMAN, 1991), constituindo-se em
ao seu objeto de estudo – o processo comunicativo, no procedimentos de natureza ascendente e/ou descendente.
10 Estudos sobre Leitura: Psicolingüística e interfaces

O ascendente caracteriza-se por movimentos das partes da leitura no desenvolvimento da escrita; inferências e
para o todo, em que o leitor privilegia a observação das compreensão leitora. Na sequência, três artigos exploram
marcas linguísticas do texto. O descendente caracteriza- relações entre a Psicolinguística e a Pragmática – a
se por movimentos do todo para as partes, em que os relevância do objetivo da leitura no resumo; a cultura
conhecimentos prévios do leitor preponderam. digital e os processos inferenciais no processamento de
Esses tipos de processamento se realizam por meio leitura; predição e inferências na leitura de pôsteres de
de estratégias de leitura, como o skimming, o scanning, paródias de filmes de terror. Após, três artigos tratam da
a seleção, a leitura detalhada, o automonitoramento, a leitura na escola, utilizando diferentes interfaces com a
autoavaliação, a autocorreção e a predição. Psicolinguística: estratégias metacognitivas no trabalho de
A escolha, pelo leitor, do processamento e das leitura na escola; uma proposta de ensino de estratégias
estratégias está associada aos seus conhecimentos de leitura, fazendo interface Psicolinguística e Teoria dos
prévios, ao seu estilo cognitivo, ao seu objetivo e à Blocos Semânticos; a interferência das otites médias na
natureza do texto (KATO, 1999). alfabetização, desenvolvendo interface da Psicolinguística
Os procedimentos de leitura contam com a com a Fonoaudiologia; na continuidade, quatro artigos
consciência linguística do leitor, o que exige o confronto abordando L2 - Neurofisiologia do uso da segunda língua
dos seus conhecimentos prévios com as marcas fônicas, através de estudos por imagem; compreensão de leitura de
morfossintáticas e semântico-pragmáticos do texto, e um aluno colombiano no processo de aprendizagem do
com os diversos tipos de memória, sendo os resultados português; fatores compartilhados no processamento de
de compreensão fortemente influenciados pela atenção e leitura em L1 e L2; palavras frequentes e leitura em L2. Por
pela emoção. último, fechando a sequência, um artigo estabelece interface
Os artigos deste e-book desenvolvem diferentes Psicolinguística e Comunicação, analisando a relação entre
aspectos da leitura, tomando como perspectiva dominante a venda de produtos e usuários que não leem.
a de interfaces. Este, que inicia a publicação, define a Assim organizado, o e-book disponibiliza artigos
Psicolinguística em seu percurso histórico, como disciplina científicos produzidos por jovens pesquisadores do PPGL
e em suas interações. Os dois seguintes focalizam tópicos da FALE/PUCRS, focalizando tópicos sobre leitura sob
fundadores - metacognição e metalinguagem. Os seis a perspectiva da Psicolinguística em interfaces internas
posteriores tratam da leitura, buscando conexões entre e externas.
a Psicolinguística e as Neurociências – leitura e atenção;
impacto da aquisição da leitura no cérebro; aspectos RESUMO – O presente artigo busca a) situar os textos
cognitivos da leitura; concepção de leitura; influência deste ebook no universo da Psicolinguística com suas
11 Vera Wannmacher Pereira

interfaces possíveis e b) definir a Psicolinguística em seu Keywords: Psycholinguistics. History. Interfaces.


percurso histórico, como disciplina e em suas interações. A
Psicolinguística, ao longo desse percurso histórico, definiu Referências
seu objeto de estudo – o processo comunicativo, no que
se refere à compreensão e à produção, com um lugar CABRAL, Leonor Scliar. Introdução à Psicolinguística. São
para a aquisição. A explicação desses processos suscitou Paulo: Ática, 1991.
o estabelecimento de interfaces internas com subáreas
COSTA, J. C.; PEREIRA, V. W. (orgs.). Linguagem
da Linguística e interfaces externas com outras áreas
e cognição: relações interdisciplinares. Porto alegre:
do conhecimento. Atualmente, a Psicolinguística busca
EDIPUCRS, 2009a.
espaço entre os estudos sobre a linguagem percebida
pelo ângulo da cognição (EISENCK; KEANE, 2007), com COSTA, J. C.; PEREIRA, V. W. (orgs.).. Letras de Hoje.
ênfase no processamento cognitivo (SMITH, 2003) da Linguagem, cognição e interfaces. Porto Alegre: EDIPUCRS,
leitura e da escrita. v.44, n.2, jul.-set. 2009b.
DEHAENE, Stanislas. Les neurones de La lecture. Paris:
Palavras-chave: Psicolinguística. Histórico. Interfaces. Odile Jacob, 2007.

ABSTRACT – This article tries to: a) place the texts of this EYSENCK, Michael W. ; KEANE, Mark T. Manual de
e-book in the world of Psycholinguistics, in its possible Psicologia Cognitiva. Porto Alegre: Artes Médicas, 2007.
interfaces; and b) determine Psycholinguistics as a discipline GOODMAN, K. S. Unidade na leitura – um modelo
and as interacting with other fields.  Along this historical psicolingüístico transacional. Letras de Hoje, n. 86, p. 9-43.
trajectory, Psycholinguistics defined its object of study - the Porto Alegre: EDIPUCRS, dez. 1991.
communicative process concerning comprehension and
KATO, Mary. Aprendizado da leitura. São Paulo: Martins
production, and reserving a position for acquisition.   The
Fontes. 1999.
account for these processes has led to the establishment
of internal interfaces, including subareas in Linguistics KLEIMAN, Angela. Leitura: ensino e pesquisa. Campinas:
and external interfaces with other fields of knowledge.  Pontes, 2008.
Nowadays, Psycholinguistics searches for a place among SMITH, F. Compreendendo a leitura. Porto Alegre: Artes
language studies from the point of view of cognition Médicas, 2003.
(EYSENCK; KEANE, 2007), laying emphasis on cognitive
processing (SMITH, 2003) of reading and writing.
A linguagem e a memória operacional1 Essa memória é composta de multicomponentes,
segundo Baddeley (2003), que integrados garantem um
Ângela Inês Klein2 gerenciamento do input recebido pelo cérebro, fazendo
um link entre essas informações novas e aquelas já
Rafaela Janice Boeff3
Fale com as autoras armazenadas nas demais memórias, a fim de encontrar
sentido, como veremos adiante. Passemos, primeiro,
As lembranças que guardamos em nossa memória para uma breve explanação sobre o que é memória e sua
são determinantes para a formação de nossa personalidade, classificação nos diferentes tipos.
pois influenciam diretamente o âmbito cognitivo. É a partir da
evocação de nossas memórias que a vida adquire significado. 1 Memória
Sem elas, perdemos a identidade, sequer recordaríamos as
pessoas mais próximas e todas as habilidades que usamos Memória é a aquisição, conservação e evocação de
no cotidiano teriam que ser reaprendidas, ou melhor, nem informações e pode ser avaliada por meio de sua evocação.
seria possível aprendermos. O conceito de memória, conforme Izquierdo (2004), envolve
Essa faculdade humana é de vital importância para abstrações, uma vez que o cérebro converte a realidade
qualquer processo de obtenção e elaboração de informação. em códigos e a evoca por meio desses códigos. Segundo o
Segundo Colomer e Camps (2002), não se pode pensar a autor, pode-se dizer que há um processo de tradução entre
não ser por meio dos dados de que nosso cérebro dispõe, a realidade das experiências e a formação da memória
ou seja, informações introduzidas, retidas e possíveis de respectiva; e outro processo de tradução entre esta e a
serem recuperadas quando necessário. correspondente evocação. Esses processos de tradução,
Nossas memórias provêm de nossas experiências tanto na aquisição quanto na evocação, devem-se ao fato
e, portanto, podemos dizer que existem diferentes tipos de que em ambas as ocasiões, assim como durante o longo
de memórias, que podem ser classificadas de acordo com processo de consolidação ou formação de cada memória,
seu conteúdo e sua duração. Entre elas, destacamos a são utilizadas redes complexas de neurônios.
memória operacional, fortemente ligada à linguagem, Os códigos e os processos utilizados pelos neurônios
entre outras funções cognitivas. não são idênticos à realidade da qual extraem ou à qual
revertem as informações. Ao converter a realidade em um
1
Este artigo é resultado da comunicação proferida pelas autoras no minicurso complexo código de sinais elétricos e bioquímicos, são os
Leitura e Cognição: uma perspectiva psicolinguística, em 28/10/2010. neurônios os responsáveis por essas traduções. Novamente
2
Doutoranda em Linguística pela PUCRS, bolsista CNPq. Email: angela.ines@
argosauto.com.br essa tradução ocorre no momento da evocação, quando os
3
Doutoranda em Linguística pela PUCRS. Email: rafaela_jb@yahoo.com.br
13 Ângela Inês Klein e Rafaela Janice Boeff

neurônios reconvertem sinais bioquímicos ou estruturais após sua aquisição, o processo que leva à sua fixação
em elétricos, de maneira que nossos sentidos e nossa definitiva, da maneira que poderão ser evocadas dias ou
consciência possam interpretá-los como pertencendo a um anos mais tarde, denomina-se consolidação. A memória de
mundo real. Nós, humanos, usamos muito da linguagem curta duração é aquela que dura minutos ou poucas horas,
para fazer essas traduções (IZQUIERDO, 2004). justamente o tempo necessário para que as memórias de
Nossas memórias provêm das experiências e por longa duração se consolidem. As memórias de curta e a
isso é mais sensato falar em memórias e não em memória, de longa duração envolvem processos paralelos e até certo
uma vez que há tantas possíveis quanto são as experiências ponto independentes. Elas requerem as mesmas estruturas
possíveis. Os mecanismos nervosos de cada um desses nervosas, mas envolvem mecanismos próprios e distintos.
tipos de memória não são os mesmos e tampouco os O conteúdo das memórias de curta e longa duração
componentes emocionais de cada um. Dessa forma as é basicamente o mesmo, a informação aferente aos dois
memórias podem ser classificadas quanto ao seu conteúdo sistemas mnemônicos é a mesma, e a resposta também é
em declarativa e não declarativa e, quanto a sua duração, a mesma. A diferença entre os dois tipos de memória (de
em memória de longo prazo, memória de curto prazo e curta e de longa duração), que faz com que sejam sensíveis
memória operacional. a diferentes tratamentos e respondam a processos distintos,
As memórias que registram fatos, eventos ou não reside no input nem no output, mas sim nos mecanismos
conhecimentos são chamadas declarativas e são subjacentes a cada uma delas (IZQUIERDO, 2006).
consideradas explícitas, porque permitem evocar Finalmente, a memória operacional que, segundo
conscientemente fatos e eventos mediante verbalização, o autor, é muito breve e fugaz, serve para “gerenciar a
sendo exclusiva dos seres humanos. Entre elas, as realidade” e determinar o contexto em que os diversos
referentes a eventos aos quais assistimos ou dos fatos, acontecimentos ou outro tipo de informação
quais participamos são denominadas episódicas; as de ocorrem, e se é válido ou não fazer uma nova memória
conhecimentos gerais, semânticas. Por outro lado, as disso ou se esse tipo de informação já consta dos
memórias procedimentais são memórias de capacidades arquivos. Ela serve para manter durante alguns segundos,
ou habilidades motoras e sensoriais e são consideradas no máximo poucos minutos, a informação que está sendo
não declarativas, implícitas. processada no momento e se diferencia das demais,
Como mencionado anteriormente, as memórias porque não deixa traços e não produz arquivos. Sendo
também podem ser classificadas pelo tempo que duram. essa memória foco deste estudo, na próxima seção nós a
As memórias de longa duração não ficam estabelecidas abordaremos mais detalhadamente.
em sua forma estável ou permanente imediatamente
14 A linguagem e a memória operacional

2 Memória operacional se é uma informação nova e, neste caso, se é útil ou não.


Para fazer isso, a memória operacional deve ter acesso
Segundo Izquierdo (2006), a memória operacional rápido às memórias preexistentes no indivíduo; se a
é processada fundamentalmente pelo córtex pré-frontal informação que lhe chega é nova, não haverá registro dela
e depende, simplesmente, da atividade elétrica dos no resto do cérebro, e o sujeito pode aprendê-la (formar
neurônios dessas regiões, sendo acompanhada de poucas uma nova memória); caso contrário, a memória operacional
alterações bioquímicas. Essa atividade elétrica neuronal a relacionará aos conhecimentos prévios, na tentativa de
percorre os axônios e, ao chegar a sua extremidade, estabelecer sentido.
libera neurotransmissores sobre proteínas receptoras dos As possibilidades de que, diante de uma situação
neurônios seguintes, comunicando as traduções bioquímicas nova, ocorra ou não um aprendizado estão determinadas,
da informação processada. O córtex pré-frontal recebe ainda de acordo com Izquierdo (2006), pela memória operacional
axônios procedentes de regiões cerebrais vinculadas à e suas conexões com os demais sistemas mnemônicos,
regulação dos estados de ânimo, dos níveis de consciência através de conexões do córtex frontal, via córtex entorrinal,
e das emoções. Os neurotransmissores liberados por esses com o hipocampo e com as demais áreas envolvidas nos
axônios, que vêm de estruturas muito distantes, modulam processos de memória em geral.
intensamente as células do lobo frontal que se encarregam Baddeley (2003) propõe o modelo de memória
da memória operacional. operacional de multicomponentes, sendo composta
Baddeley (2009) afirma que a memória operacional por quatro subsistemas. O primeiro deles refere-se às
envolve armazenamento temporário e manipulação de informações verbais e acústicas – trata-se da alça fonológica;
informação. Além disso, o autor sustenta que ela é capaz de o segundo se interessa pelas informações visuais e espaciais
realizar tarefas cognitivas, tais como raciocínio, compreensão – é o componente viso-espacial. Ambos os componentes
e resolução de problemas. Sua duração é de segundos dependem de um terceiro, o executivo central, um sistema
ou poucos minutos, o tempo suficiente para examinar as de controle limitado de atenção. Finalmente, o quarto
informações novas e compará-las às já existentes no acervo componente, mais recentemente proposto pelo autor, o
de memórias de curta ou longa duração, declarativas ou não buffer episódico, é responsável por conectar as informações
declarativas de cada indivíduo. da memória operacional à memória de longo prazo, como
O papel gerenciador da memória operacional decorre mostra a figura abaixo.
do fato de que, no momento em que recebe qualquer tipo de
informação, ela analisa o input e o compara às informações
já armazenadas nas demais memórias ou ainda determina
15 Ângela Inês Klein e Rafaela Janice Boeff

As informações auditivas que chegam à memória


operacional são processadas pela alça fonológica, sendo
analisadas e alimentadas em um armazenamento de curto
prazo. Essas informações podem manifestar-se na fala ou
no ensaio subvocal que permite reciclar as informações.
Visualmente o material apresentado pode ser transferido de
código ortográfico a código fonológico e assim ser registrado
no buffer de saída fonológica.
As bases neuroanatômicas da alça fonológica
encontram-se basicamente no hemisfério esquerdo. Baddeley
e Wilsom (1985), a partir de estudo com neuroimagem,
sustentam a hipótese de que o sistema de armazenamento
temporário e o sistema de ensaio subvocal estão localizados
em áreas distintas do cérebro, sendo o primeiro associado à
área de Brodmann, área 44, e o segundo, à área de Broca,
correspondente às áreas de Brodmann 6 e 40. Em alguns
casos particulares, no entanto, se percebe ativação em áreas
homólogas no hemisfério direito.
O componente visoespacial, por sua vez, tem a
Figura 1 – Modelo de memória operacional de multicomponentes proposto por
função de integrar informações visuais e espaciais em
Baddeley (2003). uma representação unificada que pode ser armazenada e
manipulada (BADDELEY, 2003). Esse componente pode ser
A alça fonológica, segundo o autor, compreende um mais bem explicado por meio de um exemplo, tal como quando
sistema de armazenamento temporário de informações verbais nos é pedido para dizermos quantas janelas há em nossa
e acústicas e pode ser dividida em dois subcomponentes: um casa. Para realizar essa tarefa, utilizamos o componente
sistema de armazenamento temporário que realiza traços de visoespacial da memória operacional e percorremos
memória em segundos e outro subcomponente que mantém e mentalmente a casa, contando as janelas de cada cômodo.
registra a informação no armazenamento desde que possa ser Com auxílio de neuroimagem, Della Sala e Logie (2002)
nomeada, realizando um processo ativo de ensaio articulatório observaram que esse subsistema depende principalmente,
verbal, denominado de sistema de ensaio subvocal. mas não exclusivamente, do hemisfério direito.
16 A linguagem e a memória operacional

Ambos os subsistemas, acima mencionados, são memória operacional e a memória de longo prazo estão
controlados pelo executivo central, que é responsável conectadas. Tendo visto um pouco sobre o funcionamento
pelo controle atencional da memória operacional e baseia- da memória operacional e seus quatro subcomponentes,
se fortemente, mas não exclusivamente, do lobo frontal passemos agora para suas relações com a linguagem.
(BADDELEY, 2003).
Baddeley (2009) afirma que o executivo central coordena 3 Memória operacional e linguagem
o sistema que é responsável por selecionar os estímulos a
serem codificados e armazenados temporariamente; tem a A memória operacional e a linguagem encontram-se
capacidade de combinar o desempenho de duas atividades; em estreita relação, uma vez que tanto a produção quanto a
controla a atenção, permitindo a atenção dividida e a troca recepção da linguagem exigem grande demanda dos recursos
de atenção quando se realizam duas ou mais tarefas ao cognitivos da memória operacional, para seu processamento
mesmo tempo, estando ligado à inibição da atenção. Os (reconhecer itens lexicais, especificações sintáticas e
processos executivos são, para Danemann e Carpenter semânticas, interpretações do significado) e armazenamento
(1980), provavelmente os principais fatores determinantes das (representação imediata desses processamentos).
diferenças individuais da memória operacional. A alça fonológica está ligada à compreensão, como
O último subsistema do modelo de multicomponentes mostram os estudos realizados por Baddeley (2003), em que
de memória operacional, proposto por Baddeley (2003), pacientes com distúrbios nesse componente apresentaram
é o buffer episódico, um sistema de armazenamento dificuldades na produção e compreensão de sentenças longas
temporário de informações em um código multidimensional, e complexas, cuja compreensão depende da manutenção da
que conecta os subcomponetes da memória operacional às estrutura da superfície da sentença no início, para permitir a
informações da memória de longo prazo. desambiguação posterior.
O buffer episódico combina as informações verbais, Esse sistema também parece estar associado a
semânticas e visoespaciais e reúne essas informações aos facilidades na aquisição de linguagem. Indivíduos com boa
conceitos da memória de longo prazo, construindo novas memória verbal imediata – alça fonológica – são melhores
combinações, manipuladas pela memória operacional. Todas aprendizes de língua estrangeira que outros com baixa
essas informações são combinadas de modo consciente capacidade nesse componente da memória operacional,
dentro do buffer, que apresenta uma capacidade limitada e é tanto na aquisição de vocabulário, quanto na aquisição
controlado pelo executivo central (BADDELEY, 2009). da sintaxe como indicam os estudos de Atkins e Baddeley
Atualmente esse subsistema tem sido objeto de (1998), Hitch e cols (1999).
pesquisa para Baddeley, que procura investigar como a
17 Ângela Inês Klein e Rafaela Janice Boeff

Em relação à aquisição de língua materna, Baddeley executivo central podem ser hábeis em manter uma
(2003) cita suas pesquisas com crianças que apresentam conversa com uma pessoa, mas se perdem quando há
distúrbio específico da linguagem (DEL), comparadas a várias pessoas envolvidas na conversa, pois apresentam
dois grupos de controle, um com crianças de mesma idade dificuldades em inibir o pensamento sobre o que estavam
cronológica e outro com crianças mais jovens e, teoricamente, discutindo com o primeiro interlocutor para começar um
com linguagem menos desenvolvida. Os achados mostram novo raciocínio com o segundo.
uma performance significativamente inferior à do grupo Em relação ao buffer episódico, o autor afirma que
de controle, tanto no critério idade, quanto no critério componente permite novas combinações, criando conceitos
desenvolvimento linguístico, indicando que essas crianças irreais, como, por exemplo, a combinação de patinação
com DEL têm um atraso de 4 anos no desenvolvimento mais cachorro, a qual nos permite imaginar a exibição de
da linguagem. O autor atribui esse déficit à insuficiência um cachorro patinando. O buffer episódico é responsável
no componente de armazenamento da alça fonológica. No também por fazer as ligações de palavras dento das
entanto, ele salienta que, à medida que as crianças crescem, sentenças com o seu significado. Durante a leitura, o
a relação torna-se mais recíproca, pois no caso de haver retentor episódico ainda armazena temporariamente o
melhora no desempenho da memória fonológica, há também modelo mental recém construído do significado do texto
melhora no aprendizado de vocabulário. lido e o associa a memórias constituídas anteriormente, os
O componente visoespacial apresenta menor conhecimentos prévios, construindo novas combinações.
influência na linguagem, se comparado à alça fonológica, Para medir o span da memória operacional,
entretanto esse componente está diretamente envolvido na Danemann e Carpenter (1980) criaram um paradigma de
leitura, sendo responsável pela manutenção e retenção do avaliação, que consiste na leitura de uma série de sentenças,
layout da página, o movimento preciso dos olhos do começo tendo que relembrar a última palavra de cada uma delas
ao fim da linha e até o começo da próxima, o que torna esse imediatamente após a leitura. Seus estudos revelam que
componente importante para a compreensão leitora. uma boa capacidade de memória operacional prediz a
O executivo central, por controlar todo o sistema de realização de uma ampla gama de atividades cognitivas
manipulação e armazenamento de informações da memória complexas, tal como compreensão oral e escrita, facilitando
operacional, seleciona os estímulos que serão codificados a recuperação de referentes pronominais e a resolução de
e armazenados temporariamente. As pesquisas mostram ambiguidades lexicais em sentenças.
que o executivo central está relacionado com a atenção A memória operacional pode ser um forte potencial
dividida e a inibição. Baddeley (2009) observou em seus de diferenças em compreensão leitora, pois se o indivíduo
estudos que pacientes com déficits no componente executa os processos específicos à compreensão em
18 A linguagem e a memória operacional

leitura – decodificação de letras e palavras, acesso lexical, das informações em questão, o leitor precisa utilizar os
segmentação sintática, construção e monitoramento de recursos da memória operacional, seja para manter a
inferências e integração de texto – de maneira ineficiente, informação anterior ou para reativá-la na memória de longo
consome grande parte dos seus recursos de memória, prazo para a memória operacional, e então contrastá-la
consequentemente tem menos recursos disponíveis para com a informação mais recente advinda do texto, para daí
armazenar os produtos parciais da compreensão e para poder perceber a contradição.
executar os processos de compreensão em linguagem, A relação entre a memória operacional e a leitura,
que envolvem a memória operacional (DANEMANN e mais especificamente entre memória operacional e
CARPENTER, 1980). habilidade de construir as ideias principais em textos
Tomitch (2003), ao analisar a habilidade de leitores mal sinalizados em língua materna e língua estrangeira,
mais ou menos proficientes em monitorar sua compreensão também foi pesquisada por Torres (2003). Seus achados
durante a leitura de textos completos e incompletos, percebeu mostram que não há uma diferença significativa entre a
que leitores mais proficientes utilizaram seu conhecimento média do teste de alcance de leitura (Reading Span Test)
da estrutura do texto para organizar o fluxo de informação. entre a língua materna e a língua estrangeira, bem como
Assim não sobrecarregaram a memória operacional com para a habilidade de construir a ideia principal em textos
o processamento da informação, sendo mais capazes de mal sinalizados em língua materna e língua estrangeira.
monitorar sua compreensão de forma mais apropriada. Os A pesquisadora observou ainda que a capacidade da
leitores menos proficientes, por sua vez, tenderam a aplicar memória operacional está positivamente correlacionada à
um processamento excessivamente ascendente (bottom- habilidade de construir a idéia principal. Leitores com maior
up) ou excessivamente descendente (top-down), não sendo capacidade de memória foram capazes de construir a ideia
capazes de captar a distorção e ficando com uma percepção principal com mais frequência do que leitores com menor
de que compreenderam os textos. capacidade, tanto em língua materna quanto em língua
A autora salienta ainda que a capacidade da estrangeira.
memória operacional está diretamente envolvida nesse Essas pesquisas têm corroborado a tese de Baddeley
processo, pois para que uma contradição seja detectada, é (2003) de que a memória operacional é capaz de realizar
necessário que o leitor tenha as informações contraditórias tarefas cognitivas, tais como raciocínio, compreensão e
ativadas na memória ao mesmo tempo e, mesmo havendo resolução de problemas.
detectado a contradição, o leitor ainda precisa reestruturar
a interpretação anterior para que a coerência seja
estabelecida no texto. E para haver a ativação concomitante
19 Ângela Inês Klein e Rafaela Janice Boeff

Conclusão na interpretação do significado, além da representação


imediata desses processos.
Vimos, neste trabalho, que memória é aquisição, Problemas na capacidade da memória operacional
conservação e evocação de informações, as quais provêm de podem trazer déficits na aquisição tanto de língua
nossas experiências e que, portanto, podem ser de diversos materna quanto estrangeira; na produção e compreensão
tipos, sendo classificas de acordo com seu conteúdo em da linguagem, seja oral ou escrita; na manutenção
declarativa e não declarativa e, de acordo com sua duração, do diálogo; na criação de novos conceitos; enfim, na
em memória de longo prazo, curto prazo e operacional. aprendizagem em geral.
Essa última, processada fundamentalmente pelo
córtex pré-frontal, a partir da atividade elétrica dos neurônios RESUMO – Pretendemos neste trabalho trazer algumas
dessas regiões, é muito breve e não produz arquivos. questões sobre a relação entre a linguagem e a memória
Ela serve para gerenciar o input recebido pelo cérebro, operacional. Para tanto, partimos dos diferentes tipos de
realizando um armazenamento temporário e manipulação memória, conforme a classificação sugerida por Izquierdo
dessas informações, durando apenas o tempo necessário (2006), focando-nos na memória operacional, a partir do
para examinar as informações novas e compará-las às já modelo de multicomponentes, proposto por Baddeley
consolidadas na memória de longo prazo. e finalmente fazemos um levantamento de relações
Apresentamos, então, o modelo de memória importantes entre a memória operacional e a linguagem,
operacional multimodal, composto por alça fonológica, dentro desta, em especial, a leitura.
responsável pelo armazenamento temporário e
processamento de informações verbais; alça visoespacial, Palavras-chave: Memória. Memória Operacional.
responsável pelo armazenamento temporário de informações Linguagem. Leitura.
imagéticas; executivo central, sistema de controle atencional;
e buffer episódico, elo entre a memória de trabalho e a ABSTRACT – We intend to bring some questions about
memória de longo prazo. the relationship between language and memory. For this,
A memória operacional é capaz de realizar tarefas we start from different types of memory, according to the
cognitivas, tais como raciocínio, compreensão e resolução classification suggested by Izquierdo (2006), we focus on
de problemas. Ela está envolvida no processamento working memory, from the multicomponent model proposed
das informações durante a produção e compreensão by Baddeley and finally we do a survey of important links
da linguagem, auxiliando no reconhecimento dos itens between working memory and language, within this, in
lexicais, nas especificações sintáticas e semânticas e particular, reading.
20 A linguagem e a memória operacional

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Metacognição e Metalinguagem percepções do indivíduo sobre o mundo ao seu redor, sobre
suas imagens visuais, comentários silenciosos com ele
Jésura Chaves1 mesmo, lembranças de fatos de sua vida, crenças sobre o
Marília Lopes2 mundo, planos para atividades posteriores e atitudes perante
Fale com as autoras outras pessoas. Sternberg (2008), por sua vez, estabelece
uma distinção entre atenção e consciência, que estão
Estudos no campo da metacognição e da intimamente ligadas, mas apresentam processos diferentes.
metalinguagem perpassam as áreas da Psicologia, da Atenção consiste no meio pelo qual se processa ativamente
Linguística e da Psicolinguística. Contemplam, sobretudo, uma quantidade limitada de informação a partir da enorme
operações mentais que envolvam consciência, pois, quantidade disponível através dos sentidos, das memórias
como elucida Gombert (1992, p. 9), “toda consciência é armazenadas e de outros processos cognitivos. Em
necessariamente meta do ponto de vista do observador”. contrapartida, consciência inclui o sentimento de percepção
Nesse sentido, o presente artigo objetiva traçar um consciente e o conteúdo da consciência, parte do qual pode
recorte de conceitos e de objetos de estudo concernentes estar sob o foco da atenção. Sob esse prisma, trata-se de
à metacognição e à metalinguagem, uma vez que dois conjuntos sobrepostos.
consistem em ferramentas que podem trazer importantes Importa destacar ainda quatro questões inter-
contribuições a áreas de investigação interessadas no relacionadas à consciência que têm despertado a atenção
desenvolvimento cognitivo dos indivíduos. de psicólogos cognitivistas. Como explica Matlin (2004), a
Num primeiro momento, importa estabelecer primeira diz respeito à consciência dos processos mentais
reflexões a respeito da consciência, elemento presente tanto superiores, ou seja, à capacidade do ser humano de remeter
na metacognição quanto na metalinguagem. A consciência os pensamentos à consciência. Segundo estudos recentes,
insere-se, primeiramente, no campo de estudos da é possível ao homem estar plenamente consciente dos
Psicologia; mais recentemente tem sido focalizada também produtos de seus processos de pensamento, mas, em geral,
em pesquisas linguísticas. Verifica-se, sobretudo, uma ele não consegue mostrar-se consciente dos processos que
variedade de definições para o termo. Matlin (2004), sob criaram esses produtos. Se for indagado, por exemplo, sobre
a perspectiva da Psicologia Cognitiva, adota um conceito o nome de solteira de sua mãe, a tendência é de a resposta
amplo: consciência significa saber que as pessoas possuem logo emergir na sua consciência; todavia, se a pergunta
imagens e sentimentos sobre o mundo exterior e suas remeter a como ele chegou à resposta dada, provavelmente
percepções. Sendo assim, seu conteúdo pode tanto incluir não saberá explicar o processo de pensamento transcorrido.
A segunda questão reside na supressão do pensamento:
1
Doutoranda do curso de Linguística da PUCRS. Email: jesuralc@gmail.com
2
Doutoranda do curso de Linguística da PUCRS: Email: liamarilopes@gmail.com muitas vezes há dificuldade em eliminar algumas informações
22 Metacognição e metalinguagem

da consciência. Quando se imprime esforço para controlar reflexão, de manipulação e de descrição. Nesse patamar, o
mentalmente um pensamento, a tendência é de que seu conhecimento pode ser explicitado.
conteúdo retorne insistentemente à consciência. A terceira Neste estudo, interessa particularmente entender
denomina-se questão cega, que representa visão sem a capacidade do indivíduo de trazer o pensamento à
percepção. Em alguns casos, as pessoas podem executar consciência. Como visto, parece mais fácil tomar consciência
uma tarefa cognitiva com bastante exatidão, sem qualquer do produto desse pensamento do que de seu processo. Com
tomada de consciência de que seu desempenho seja exato. efeito, torna-se relevante distinguir dois processos básicos
Trata-se de uma condição em que uma pessoa vítima de que envolvem a consciência: o cognitivo e o metacognitivo.
um dano no córtex cerebral (parte mais externa do cérebro) Segundo Poersch (1998), a cognição é um processo
alega não ser capaz de ver um objeto. O quarto e último mental que permite a apreensão, o processamento e a
ponto refere-se ao inconsciente cognitivo, que tem sido recuperação de conhecimento, de informação. Nesse
tradicionalmente mais explorado por estudos que seguem a sentido, os processos cognitivos dizem respeito aos aspectos
linha de Sigmund Freud. Para Matlin, trata-se de informações automáticos e inconscientes ou aos aspectos pré-conscientes
processadas fora da percepção consciente, cujo tratamento utilizados pelos indivíduos quando desempenham alguma
científico é bastante dificultado pela falta de evidências de tarefa. Como não são conscientes, não podem ser controlados
seu funcionamento. Deve-se enfatizar, sobretudo, que o ou monitorados. Os processos metacognitivos, por sua vez,
consciente e o inconsciente não estão divididos em duas são aspectos conscientes. O ser humano, ao mesmo tempo
categorias inteiramente separadas; são dois processos que que desempenha uma atividade cognitiva, utiliza estratégias
se conectam num continuum. de ação e de reflexão para atingir o propósito desejado.
Nessa perspectiva, importa distinguir os níveis de Ele estaria monitorando seu comportamento, utilizando,
consciência. Conforme explica Poersch (1998), a escala de assim, estratégias metacognitivas. Ou ainda, como elucida
conscientização inicia-se no nível inconsciente, que implica Kato (2007), se estratégias cognitivas em leitura designam
ausência de conhecimento, remetendo a tudo que está os princípios que regem o comportamento automático e
totalmente fora da consciência. Num nível intermediário, por inconsciente do leitor, as metacognitivas remetem aos
sua vez, há uma vasta gama de graus de conscientização princípios que regulam a desautomatização consciente das
que constitui o pré-consciente, ou o que os psicolinguistas estratégias cognitivas.
denominam sensibilidade. Refere-se ao dar-se conta de que Deve-se destacar, no entanto, que existem divergências
algo existe, sem reflexões que levem o sujeito a explicitar quanto a essas delimitações. Alguns autores defendem
o como e o porquê. Trata-se, assim, de um conhecimento que as atividades metacognitivas são inconscientes; outros
tácito. No outro extremo, há a consciência plena, nível que sugerem que são conscientes. Mas o que se observa é
permite que o objeto focalizado seja controlado, alvo de que a metacognição pode incluir aspectos tanto conscientes
23 Jésura Chaves e Marília Lopes

como automatizados, ou inconscientes, como afirmou Flavell Gombert (1992), não há um consenso a respeito de os
(1979). Já Brown (1980) defende os critérios consciente/ estudos metalinguísticos se inserirem ou não no campo da
inconsciente para distinguir a metacognição da cognição. metacognição. Deve-se considerar, no entanto, que objetos
Essa definição não leva em conta que a cognição envolve da metalinguagem são mais perceptíveis e, provavelmente,
não somente tarefas automatizadas durante a leitura, mas manipulados com maior frequência pelos sujeitos, sendo
também aquelas que exigem certo nível de consciência. importantes para o desenvolvimento do pensamento e da
Leffa (1996) propõe uma visão que não adota o critério de metacognição. Segundo Poersch (1998), metacognição
“atividade consciente”, mas considera o tipo de conhecimento tem como objeto de interesse a cognição: busca-se saber
exigido para determinada tarefa, que pode ser declarativo como se conhece, refletir sobre os processos envolvidos nas
(atividade cognitiva) ou processual (atividade metacognitiva). atividades cognitivas. Saber como se adquire o conhecimento
O conhecimento declarativo diz respeito ao sujeito saber de mundo, como se formam os conceitos, como se abstrai e
o tipo de tarefa que deve realizar; já o processual envolve se generaliza, como se transferem conhecimentos ou como
saber o que deve fazer e também ter consciência de que se solucionam problemas são atividades específicas da
sabe. Pode ser visto como uma instância superior a qualquer metacognição. No que tange à metalinguagem, trata-se de usar
tarefa cognitiva, ou seja, o sujeito sabe os meios e os fins na a linguagem para compreendê-la. A descrição dos diversos
medida em que ele não só conhece o resultado da tarefa, níveis linguísticos, das variedades dialetais, dos desvios e das
mas sabe o que pode fazer para chegar a esse resultado. interferências linguísticas, da linguagem infantil, dos estilos e
A pesquisadora portuguesa Ribeiro (2003) defende que das tipologias de discurso, dos tipos de argumentação ilustra
as ações em benefício do aumento e da avaliação do progresso atividades de metalinguagem. Embora os objetos de ambos
cognitivo podem ser, respectivamente, estratégias cognitivas e os campos muitas vezes se correlacionem, a perspectiva
metacognitivas. Assim, o leitor aprende estratégias cognitivas estabelecida é diferente: enquanto a metacognição focaliza
de modo a progredir em termos cognitivos; e aprende as o processo, a metalinguagem detém-se sobre o produto
metacognitivas para poder monitorar o progresso cognitivo. de variadas atividades, sendo a consciência um elemento
O indivíduo que conhece os próprios recursos cognitivos tem imprescindível que estabelece um elo entre elas.
condições de melhor regular o próprio conhecimento por meio Não obstante se reconheçam as diferenças entre
de planificação, verificação e avaliação dos próprios avanços. ambos os enfoques, assume-se aqui a posição de que
Recentemente, a metacognição pode ser tratada como tendo tanto habilidades metalinguísticas como metacognitivas
caráter consciente ou inconsciente, e inclui também aspectos dependem do desenvolvimento cognitivo. Todavia,
afetivos e intuitivos. tomando como pressuposto a primeira questão levantada
Outra distinção necessária a se fazer diz respeito à por Matlin (2004) – consciência dos processos mentais
relação entre metacognição e metalinguagem. Conforme superiores – é preciso considerar que é mais fácil o acesso
24 Metacognição e metalinguagem

à metalinguagem do que à metacognição. No que concerne ao conhecimento desses termos propriamente. Nesse
à metalinguagem, deve-se especificar que tal noção é sentido, uma criança consciente metalinguisticamente pode
definida de forma diferente sob o prisma da Linguística executar bem uma tarefa que envolva manipulação de
e da Psicolinguística. Como elucida Gombert (1992), na fonemas sem saber o significado dessa palavra.
perspectiva linguística, a metalinguagem é entendida como Feito esse rápido recorte conceitual, procura-se agora
uso da linguagem para referir a ela mesma, acepção que elucidar peculiaridades da metacognição e da metalinguagem,
tem por base o postulado de Jakobson (1963) sobre as bem como possíveis formas de exploração dessas áreas.
funções principais e secundárias da linguagem. Nesse No que concerne à metacognição, várias têm sido
sentido, a metalinguagem é considerada uma função as instâncias de tratamento: no âmbito da inteligência
secundária, cujo foco de interesse é a autorreferenciação artificial, do aprendizado de matemática, do trabalho com
da língua, sendo a linguagem usada para descrever a a memória, dos estudos sobre retardo mental, entre outros.
própria linguagem. Na perspectiva psicolinguística, deve- Também tem sido abordada ao se tratar de problemas
se entender metalinguagem como uma atividade realizada na leitura. John Hurley Flavell foi o pioneiro nos estudos
por um indivíduo que trata a linguagem como um objeto da metacognição, sendo que suas teorias a respeito dos
cujas propriedades podem ser examinadas a partir de um aspectos metalinguísticos da inteligência têm por base o
monitoramento intencional e deliberado. Essa atividade pensamento de Piaget. O teórico suíço, por sua vez, tratou
requer do indivíduo um distanciamento em relação aos do pensamento formal, que indicaria o máximo grau de
usos da linguagem e em relação ao seu conteúdo, para equilíbrio - processo contínuo e progressivo de adaptação
aproximar-se de suas propriedades. Em outras palavras, ao meio, que orienta a coordenação das ações.
é necessário afastar-se do significado veiculado pela Após Piaget, os estudos sobre a metacognição
linguagem para aproximar-se da forma como a linguagem trataram do desenvolvimento de sistemas para o benefício da
se apresenta para transmitir um significado. metamemória. Flavell (1979) utilizou o termo metacognição
Importa ainda distinguir as concepções de para referir-se à habilidade do indivíduo para manejar e
metalinguagem e de consciência linguística. Conforme monitorar o input, o armazenamento, a busca e a recuperação
explica Tunmer et al. (1984), embora consciência linguística de conteúdos de sua memória. Juntamente com seus
esteja relacionada à acepção do termo metalinguagem, há colaboradores, afirmava que, para que ocorra a memorização,
uma diferença pontual. Enquanto esta se refere à linguagem o sujeito deve saber identificar as situações viáveis para
usada para descrever a linguagem e inclui vocábulos adotar certas estratégias e desenvolver conhecimento sobre
como fonema, palavra, frase, etc. (os autores estariam aspectos como sujeito, tarefa e meios para realizá-la.
aqui assumindo a concepção linguística), aquela remete A metacognição tem sido abordada, a partir dos anos
à sensibilização para a instância desses termos, mas não 70, como uma terceira categoria, ao lado das capacidades
25 Jésura Chaves e Marília Lopes

cognitivas e dos fatores motivacionais que


visam ao desempenho na escola. Refere-
se ao monitoramento da compreensão do
indivíduo ao longo da leitura, quando ele
faz observações sobre o entendimento do
assunto e decide adotar alguma atitude ao
encontrar dificuldades. Nesse momento,
o conteúdo fica em segundo plano, dando
lugar aos processos que o leitor usa para
compreendê-lo. Os pesquisadores da
área voltaram-se à monitoração cognitiva,
que inclui conhecimento metacognitivo,
experiências metacognitivas, objetivos da
cognição e ações ou estratégias para a avaliação
do progresso cognitivo. As estratégias cognitivas
objetivam o progresso da própria cognição,
enquanto as metacognitivas, por sua vez, avaliam
a eficácia das estratégias cognitivas.
A metacognição, para Flavell
(1979), compreende duas dimensões: 1)
conhecimento metacognitivo, ou elaboração de
conhecimento; 2) experiência metacognitiva,
ou a utilização desse conhecimento
para gerenciar os processos mentais. O
conhecimento metacognitivo manifesta-se
em três categorias diferentes, que podem ser
esquematizadas da seguinte forma:
26 Metacognição e metalinguagem

O conhecimento metacognitivo consiste numa atenção aos itens mais importantes; d) avaliação da qualidade
interação entre essas variáveis. Já as experiências da compreensão; e) adoção de atitudes de modo a sanar
metacognitivas ocorrem antes, durante e depois de o sujeito dificuldades na leitura; f) verificação quanto aos objetivos –
realizar uma tarefa. Cita-se, como exemplo, o planejamento, se foram atingidos ou não; g) correção dos rumos da leitura
a realização propriamente dita de uma tarefa e a avaliação de modo a sanar interferências, como estados de dispersão.
da tarefa, como a releitura de um texto para melhor Essas atividades metacognitivas, além de se desenvolverem
compreensão. Essas experiências são importantes porque de acordo com o aumento natural da capacidade reflexiva do
é com elas que se podem avaliar dificuldades e criar meios sujeito, também são relacionadas aos contextos de educação
para solucioná-las. formal, em que o educador atua de modo mais específico no
Flavell também identificou as três “metas” desenvolvimento das habilidades de raciocínio do aluno.
adquiridas gradualmente pela criança em contextos de Há divergências a respeito do surgimento da
armazenamento e de recuperação de informações: a) a capacidade de refletir sobre a organização do conhecimento
criança aprende a identificar situações em que será útil, no da criança. Alguns pesquisadores afirmam que somente
futuro, o armazenamento consciente e intencional de certas aos 11 anos de idade a criança adquire essa capacidade.
informações; b) ela aprende a reter informações que possam Para outros, ela começa a surgir aos cinco anos, tendo
ser úteis na resolução de problemas; c) aprende também como precursora a “linguagem interior” da criança; aos
a fazer buscas sistemáticas e deliberadas de informação onze anos, inicia-se propriamente a metacognição, que
útil para resolver problemas, mesmo quando a necessidade corresponde ao nível de operação formal.
não foi prevista. A primeira tentativa desse pesquisador de Para tratar a metalinguagem, tendo em vista a
criar um modelo de metacognição foi feita em 1979, quando proximidade de sua definição, pelo viés psicolinguístico,
reconheceu sua importância em inúmeras aplicações como com a consciência linguística, ilustram-se as várias formas
leitura, habilidades orais, escrita, aquisição da língua, de abordá-la. Citam-se, a título de exemplo, a consciência
memória, atenção, interações sociais, autoinstrução, fonológica, cuja unidade tomada para análise é o fonema; a
desenvolvimento da personalidade e educação, em geral. consciência morfológica, que focaliza sua atenção sobre o
Pode-se acrescentar a pesquisadora Brown morfema; a consciência sintática, que tem como unidade de
(1980), que cerca a questão da compreensão em leitura análise a frase; a consciência lexical, cujo foco de interesse
de modo mais detalhado, destacando algumas atividades é a palavra. Mais recentemente, novas pesquisas têm
relacionadas com estratégias de controle/monitoramento da voltado sua atenção à consciência pragmática (relação entre
leitura: a) definição do objetivo da leitura; b) identificação dos o sistema linguístico e o contexto no qual a linguagem se
elementos mais e menos relevantes; c) direcionamento da insere) e a consciência textual, que trata do monitoramento
27 Jésura Chaves e Marília Lopes

intencional do sujeito sobre o texto. Ressalva-se que, visuais reconhecíveis, tornando possível o progresso para a
muitas vezes, são utilizadas expressões como consciência leitura de textos que utilizam essas palavras. Já a segunda
metalinguística, metapragmática, metalexical ou metatextual estratégia, analítica, envolve a relação entre componentes
na literatura, evitadas aqui por se considerar que toda ortográficos da palavra escrita e a estrutura do segmento da
atividade meta já pressupõe a presença de consciência. palavra falada. Conhecendo a unidade fonêmica da palavra
Com o objetivo de compreender a consciência falada, a criança pode, quando confrontada com a palavra
linguística quanto às suas ramificações, procura-se aqui escrita, mapeá-la. Sendo assim, a criança que não adquire
especificá-las sob a perspectiva dos estudos de Tunmer, a habilidade de fazer análises fonêmicas pode apresentar
Pratt e Herriman (1984). Os autores subdividem-na em dificuldades na leitura. Em contrapartida, aquela que recebe
consciência fonológica, lexical (ou da palavra), sintática algum treinamento quanto à conscientização fonêmica é
e pragmática. Gombert (1992), por sua vez, acrescenta a impulsionada, de forma significativa, à realização da leitura.
essa classificação a consciência textual. Quanto ao desenvolvimento da consciência lexical,
No que tange à consciência fonológica, trata- deve-se considerar, primeiramente, a dificuldade existente
se de uma sensibilização que diz respeito à unidade em torno da definição do termo palavra, o que sugere que
mais elementar do idioma: a unidade fonológica. Nesse essa sensibilização pode não ser facilmente adquirida. Se
sentido, interessa saber em que medida jovens e crianças a habilidade para defini-lo envolve um nível extremamente
podem segmentar a palavra falada em seus componentes alto de consciência linguística, é preciso estar ciente de
fonológicos e sintetizá-los no intuito de produzir palavras. que a criança não necessariamente partilha o mesmo
Conforme os autores, uma série de estudos recentes tem entendimento que o adulto a respeito desse termo. Segundo
mostrado o papel significativo da consciência fonológica Tunmer, Pratt e Herriman (1984), há três componentes
como um facilitador para que as crianças aprendam a envolvidos na consciência lexical que não emergem
ler. Para ler corretamente uma linguagem alfabética, a simultaneamente. São eles: a) consciência da palavra
criança, primeiramente, precisa saber falar e discriminar como uma unidade da linguagem; b) consciência da palavra
as unidades ortográficas do alfabeto. Mais tarde, ela pode como um rótulo fonológico arbitrário; c) compreensão do
seguir pelo menos duas estratégias para aprender a ler, termo palavra pela metalinguística. É preciso, em cada
as quais exigem uma ou mais habilidades adicionais. A componente, diferenciar graus de consciência da palavra.
primeira estratégia requer que se aprendam as formas Toma-se, como exemplo, o fato de a categorização dos
auditivas e visuais correspondentes no nível das palavras. objetos preceder a habilidade para nomeá-los.
Consiste em um procedimento holístico que propiciaria É preciso considerar ainda que estudos relacionados
às crianças aprender um vocabulário a partir de formas à habilidade das crianças para definir o termo palavra
28 Metacognição e metalinguagem

têm recebido sérias críticas. Ainda que as mais jovens apropriados para avaliar a habilidade dos sujeitos de refletir
demonstrem pleno entendimento do conceito de palavra, sobre propriedades sintáticas e semânticas nas sentenças
não conseguem definir um termo abstrato da mesma forma. por eles produzidas e compreendidas.
As mais velhas, por sua vez, ao formular respostas sobre o A consciência pragmática, por sua vez, refere-se tanto
termo, são influenciadas a desenvolver sua capacidade de às relações obtidas dentro do sistema linguístico quanto às
fornecer definições. Nesse sentido, estudos que requerem obtidas entre esse sistema e o contexto em que a linguagem
que crianças compreendam o termo palavra a fim de se insere. Diferentemente da consciência fonológica e da
executar alguma tarefa experimental tendem a subestimar sintática, abrange aspectos que vão além dos componentes
a sua compreensão a respeito de outros aspectos lexicais. do sistema linguístico. As pesquisas nessa área têm se
Já a consciência sintática centra-se na habilidade concentrado especialmente em três campos de estudo: a)
das crianças para refletir sobre a estrutura gramatical sensibilização das crianças para perceber mensagens não
interna das sentenças, medida, geralmente, por tarefas adequadas em virtude da ambiguidade; b) habilidade para
que envolvam julgamentos de aceitabilidade, sinônimos e detectar inconsistências nas informações que lhes forem
ambiguidades, bem como discriminação entre sentenças apresentadas; c) habilidade para modificar seu discurso a
bem formuladas ou não. Segundo os autores, pesquisas fim de atender as demandas específicas da situação.
sugerem que essa habilidade emerge a partir dos cinco Resultados de pesquisas revelam que a idade pode
anos de idade. No entanto, há alterações surpreendentes determinar diferenças de performances entre as crianças,
no desenvolvimento de crianças entre quatro e oito anos, visto que as mais velhas monitoram seus conhecimentos
o que apoia a hipótese de que competência linguística na mais facilmente que as mais novas. Apesar da aparente
média infância desenvolve-se de forma distinta. obviedade dessa constatação, ela deve ser levada em
Deve-se considerar, sobretudo, a dificuldade que conta no momento em que os desempenhos forem
elas apresentam para emitir julgamentos estáveis sobre avaliados. Crianças mais novas frequentemente não
sua linguagem. Sendo assim, a capacidade das crianças notam sinais em uma situação comunicativa, o que não
para fornecer tais juízos torna-se uma questão crucial nos deve ser compreendido como falha de avaliação quanto às
estudos sobre consciência sintática. Jovens crianças tendem insuficiências ou às inadequações da linguagem.
a aceitar sentenças cujo sentido elas compreendem e a No que concerne à consciência textual, Gombert
rejeitar as não compreendidas. Nessa perspectiva, o fator (1992) postula a respeito da existência de operações
semântico predomina, uma vez que encontram dificuldades metatextuais envolvidas no controle deliberado, na
para emitir julgamentos sobre aceitabilidade sintática. compreensão e na produção, bem como na ordenação
É necessário, então, usar técnicas e procedimentos de frases em unidades linguísticas maiores. Trata-
29 Jésura Chaves e Marília Lopes

se, sobretudo, de uma instância de funcionamento concebida como uma atividade realizada por um indivíduo
metalinguístico pouco explorada em abordagens teóricas, que trata a linguagem como um objeto cujas propriedades
visto que focaliza a reflexão de um indivíduo sobre a podem ser examinadas a partir de um monitoramento
estrutura e a organização de textos e de variados gêneros. intencional e deliberado. Com efeito, o presente artigo
Consciência textual, portanto, deve ser entendida como objetiva traçar um recorte de conceitos e de objetos de
uma atividade realizada por um indivíduo que tem como estudo concernentes à metacognição e à metalinguagem,
objeto de análise o texto, cujas propriedades podem ser uma vez que consistem em ferramentas que podem
examinadas a partir de um monitoramento intencional. trazer importantes contribuições a áreas de investigação
Levando-se em conta essas breves reflexões, parece interessadas no desenvolvimento cognitivo dos indivíduos.
plausível afirmar que o desenvolvimento de habilidades
metacognitivas e metalinguísticas consiste em um eficiente Palavras-chave: Metacognição. Metalinguagem.
instrumento para potencializar o aprendizado. Tendo em vista Consciência.
estarem diretamente envolvidas em operações cognitivas,
como desenvolvimento do raciocínio, aprendizagem ABSTRACT – Studies on metacognition and metalanguage
da leitura, aprimoramento da memória, conhecimento are present in Psychology, Linguistics and Psycholinguistics.
linguístico, entre outros, tornam-se mecanismos que podem Broadly, metacognition refers to conscious aspects involved
ser utilizados em diferentes áreas do conhecimento. Sendo in cognitive activities, like the use of strategies and reflections
assim, áreas de pesquisa interessadas no desenvolvimento to reach some purpose. In psycholinguistics perspective,
cognitivo devem, cada vez mais, atentar para a capacidade metalanguage is conceived as an activity done by a
dos indivíduos de refletir sobre a natureza e as propriedades person who sees language as an object whose properties
da linguagem, bem como sobre os processos que levam ao can be analyzed through an intentional monitoring. This
domínio dessas habilidades. article intends to show concepts and objects of study
related to metacognition and metalanguage, once they
RESUMO – Estudos no campo da metacognição e da consist of instruments which can contribute considerably to
metalinguagem perpassam as áreas da Psicologia, da investigations of individual cognitive development.
Linguística e da Psicolinguística. A metacognição, em
linhas gerais, remete aos aspectos conscientes envolvidos Keywords: Metacognition. Metalanguage. Conscience.
numa atividade cognitiva, como utilização de estratégias
de ação e de reflexão para atingir o propósito desejado. A
metalinguagem, na perspectiva psicolinguística, deve ser
30 Metacognição e metalinguagem

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psicolinguística. Coleção Ensaios. Porto Alegre: Sagra-
Luzzatto, 1996.
Leitura e atenção: um olhar sobre o input dá por meio da consciência plena do objeto de ensino. A
atividade cognitiva responsável por elevar esse objeto ao
linguístico sob a perspectiva psicolinguista1
nível da consciência é a atenção, atividade cognitiva que
seleciona alguns dos inúmeros estímulos – input – que
Karine Souza2 ocorrem em nossos sentidos. Em experimento, Boujon e
Ronei Guaresi3 Quaireau (2000, pag. 97) mostraram que a recordação de
Fale com os autores
questões repetidas com indivíduo plenamente consciente
foi bastante elevada; de indivíduos em adormecimento (fase
O PISA é uma avaliação internacional que objetiva
do sono em que o indivíduo pode ser facilmente acordado)
verificar como as escolas estão preparando os jovens
a recordação cai acentuadamente (no experimento em
para os desafios futuros nas áreas de leitura, matemática
torno de 5% de acerto) e de indivíduos em sono profundo o
e ciências. Isso se dá através da aplicação de um teste a
número de respostas corretas foi quase nulo.
adolescentes com 15 anos em países membros da OCDE
É quase consenso entre profissionais da educação
(Organização para Coordenação e Desenvolvimento
que um dos aspectos que compromete a qualidade do ensino
Econômico) e convidados. Na compreensão em leitura, o
é a falta de atenção dos alunos nas atividades pedagógicas.
Brasil (com 412 pontos em 2009) figura entre os últimos
A falta de atenção dificulta o aprofundamento de questões
lugares, tanto no resultado de 2000 quanto no de 2009.
salutares das disciplinas. De maneira geral, os alunos não se
Neste último, comparando com países latinoamericanos,
sujeitam a discutir determinada questão com profundidade
atrás de Chile (449 pontos), Uruguai (426), México (425)
e nem se dispõem, em muitas escolas deste país, a escutar
e Colômbia (413), e à frente de Argentina (398), Panamá
as propostas dos professores. As experiências dos autores
(371) e Peru (370).4
deste estudo permitem afirmar que muitos destes docentes
Embora possa ocorrer em diferentes níveis da escala
que conseguem condições de trabalho o fazem de forma
de consciência, a aprendizagem com nível satisfatório se
autoritária através do estabelecimento do comportamento
1
O presente texto foi apresentado em Minicurso de Psicolinguística para docentes como um dos critérios de avaliação.
da Educação Básica, na PUCRS, promovido pelo Grupo de Estudos de Psico-
linguística coordenado pela Profa. Dr. Vera Wannmacher Pereira. Por isso, esse Também é fato que em contrapartida desse
texto tem finalidade mais informativa não concentrando sua discussão em torno
de uma tese específica.
argumento está o fenômeno do controle químico tanto da
2
Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da PUCRS. E-mail: atenção quanto da hiperatividade, atualmente com ampla
kakal_ms@yahoo.com.br
3
Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da PUCRS. E-mail: administração pelos profissionais da saúde no Brasil. É
roneiguaresi@yahoo.com.br assustador o número de estudantes que fazem uso de
4
Dados disponíveis no site do INEP: http://www.inep.gov.br/download/in-
ternacional/pisa/2010/pisa2009_apresentacao_resultados_divulgacao. medicamentos com essa finalidade. Segundo Boujon
ppt#265,6,Desempenho Brasil
32 Leitura e atenção: um olhar sobre o input linguístico sob a perspectiva psicolinguista

e Quireau (2000), nos EUA, entre 3 e 10% das crianças foram codificadas em um nível semântico, comparado aos
avaliadas como desatentos ou hiperativos fazem uso regular níveis fonético e perceptivo. Ou seja, a informação com maior
de metilfenidato (Ritalina) ou dextroanfetamina (Dexedrina). intensidade de processamento é mais bem consolidada
Ao ser percebido pelo cérebro, o input pode receber que as outras informações ficando mais disponível para o
diferentes níveis de processamento. Segundo Craik e indivíduo evocá-la. Enfim, uma codificação semântica é mais
Tulving (1975), o nível de processamento determina o grau profunda, mais bem elaborada e favorece armazenamento
de consolidação de uma informação. Uma das classificações a longo prazo. Os autores, ainda, registraram o tempo que
possíveis sugerida pelos autores compreende os níveis: os indivíduos empregaram para responder às perguntas
perceptivo, fonético e semântico. Considere as questões e constataram que as respostas mais imediatas foram do
envolvendo o termo sol: nível perceptivo e as mais demoradas para o semântico.
Ainda sobre o tempo de processamento, numa leitura
(A) A primeira letra da palavra sol é maiúscula? proficiente, o tempo gasto para decodificar e dar sentido a um
(B) A palavra sol rima com chão? texto depende da importância dada a cada uma das frases.
(C) A palavra sol pode completar a frase: Pesquisa de Gaonac’h e Passerault (1990) in Boujon e Quaireau
o _____ brilha? (2000) indica que o leitor passa mais tempo observando as
frases que julga difíceis, ambíguas ou importantes.
Ao termo sol diferentes perguntas são possíveis Boujon e Quaireau (2000), numa posição radical,
dependendo do nível requerido. A pergunta (A), em relação ao afirmam que a atenção é condição para que se possa
nível, pode ser classificada como nível perceptivo, pois, sob memorizar. Segundo eles, perceber, memorizar e aprender
a perspectiva do processamento, basta um leitor proficiente são ações que necessitam da atenção. Essa posição, no
olhar o termo para responder à pergunta. A pergunta (B) entanto, não é consenso. Muitos pesquisadores admitem
envolve um segundo nível de processamento, denominado que o cérebro percebe estímulos fora dos domínios da
por Craik e Tulving (1975) como de nível fonético. A pergunta consciência e naturalmente da atenção, processa esses
(C), denominada pelos autores de nível semântico, promove estímulos e utiliza esses conhecimentos. A respeito da
no indivíduo maior intensidade de processamento. Em cronologia e do processamento, Dehaene (2007) em Les
(C) é necessário que o leitor pense algum tempo antes de neurones de la lecture trata da cronologia do estímulo até a
responder. Esse tempo requerido é usado pelo cérebro para consciência do mesmo. Segundo ele, o cérebro leva entre
processar, analisar e produzir uma resposta. 30 e 50 milissegundos para perceber o estímulo, enquanto
Os pesquisadores constataram que os indivíduos o início da consciência daquele estímulo se dará entre os
reconhecem mais facilmente as palavras quando estas 270 e 300 milissegundos. Um estímulo apresentado ao
33 Karine Souza e Ronei Guaresi

indivíduo num tempo inferior aos 270 milissegundos pode e Quaireau (2000); e c) teste dos números de Bakan (1959)
ser considerado uma mensagem subliminar, ou seja, uma in Boujon e Quaireau (2000).
mensagem captada pelo cérebro, mas não processada O teste de Rosvold, 1956, consistia na apresentação
conscientemente pelo indivíduo. da letra X e, em seguida, da sequência AX em duas séries
Os psicólogos já acreditaram que atenção era o de 10 minutos de 600 letras cada. O teste de Bakan, 1959,
mesmo que consciência. Hoje, contudo, reconhecem que na identificação da sequência de três números ímpares
parte do processamento ativo de atenção da informação sucessivos numa série de 4800 números durante 80
sensorial, da informação lembrada e da informação cognitiva minutos. Mackworth, 1958, concebeu um relógio no qual
acontece sem consciência. Boujon e Quaireau (2000) definem o ponteiro faz 100 deslocamentos numa volta completa.
a atenção como a disposição para selecionar e controlar Por vezes, esse ponteiro faz deslocamentos duas vezes
objetos, informações, ações de maneira voluntária ou não. maiores que os outros. Cabe ao sujeito contar o número de
Segundo eles, a eficácia e a rapidez da atenção dependem deslocamentos duplos. O teste tem duração de duas horas
do nível de vigilância ou de alerta no momento em que se em que o ponteiro faz 7152 deslocamentos dos quais 48
exercita, mas também de nossa capacidade de mantê-la. são deslocamentos duplos (BOUJON e QUAIREAU, 2000).
A capacidade de prestar atenção está estreitamente Com a aplicação dos testes citados foi possível verificar
relacionada ao desenvolvimento do lobo frontal, que, depois de meia hora, a capacidade de prestar a
responsável pelo controle, pela orientação e pela seleção, atenção da maioria dos indivíduos reduziu drasticamente.
feita pelo indivíduo, de uma ou mais formas de atividade. A atenção dividida remete à ideia de situação rica
Essa capacidade não pode ser mantida indefinidamente de estímulos, sejam eles auditivos, visuais ou outros,
(BOUJON, 1996). que necessita de utilização conjunta de várias operações
Várias classificações são possíveis quando tratamos cognitivas. As pesquisas têm mostrado que a realização
da atenção. Neste texto só abordaremos a atenção conjunta de atividades leva a importante redução ou atraso
contínua ou sustentada e atenção dividida por serem as das respostas corretas, pois a atenção está dividida.
mais pesquisadas. A atenção contínua ou sustentada não Deduz-se daí que a capacidade de atenção humana,
pode se dar indefinidamente. A continuidade da atenção também chamada de recursos de tratamento ou recursos
gera redução na eficácia dos comportamentos. Esse tipo atencionais, é limitada. A maior parte das pesquisas
de atenção pode ser testada pelos chamados “testes sobre atenção dividida se dá com motoristas que têm que
de barragem”, nome genérico de três testes: a) tarefa gerenciar a divisão da atenção nas manobras ao volante.
de performance contínua de Rosvold (1956) in Boujon e Ao desenvolverem pesquisas sobre atenção, Boujon
Quaireau (2000); b) relógio de Mackworth (1958) in Boujon e Quaireau (2000) fizeram descobertas interessantes: a)
34 Leitura e atenção: um olhar sobre o input linguístico sob a perspectiva psicolinguista

o relógio biológico afeta o comportamento de um ser vivo Ribaupierre e Ludwig (2003) estudaram 81 jovens
(pag. 114); b) o sono é necessário para a aprendizagem e 96 idosos e observaram diferenças entre os grupos na
(pag. 114); c) a capacidade atencional varia ao longo do execução de tarefas simples e duais.
dia: aumenta regularmente mas tem uma queda no início Anderson, Iidaka, Cabeza e Craik (2000) avaliaram a
da tarde (pag. 114); d) a presença de outra pessoa facilita relação entre idade e atenção dividida, por meio da análise
as provas mais simples, mas dificulta as mais complexas de variância, entre dois grupos: o primeiro de 17 sujeitos com
(pag. 120); e) crianças dissipadas não necessariamente idade entre 21 e 31 anos e outro grupo de 12 sujeitos com
apresentam distúrbios de atenção (DADH) (pag. 141); idade entre 63 e 76 anos. A tarefa compreendia uma lista de
f) a capacidade de automatizar é determinante para a 20 pares de palavras moderadamente relacionadas como
aquisição das competências escolares; e g) as crianças dentista/luva. Os pesquisadores observaram que o primeiro
que apresentam um distúrbio grave de atenção podem grupo, o dos jovens adultos, obteve melhor desempenho
automatizar, embora mais lentamente (pag. 141). em relação ao segundo grupo, o dos adultos mais velhos.
Fonseca, Ferreira, Liedtke, Muller, Sarmento e Com a finalidade de investigar se a atenção
Parente (2006) associam atenção, percepção, memória dividida melhoraria com a idade, Tun e Wingfield (1995)
visuoespacial, esquema corporal, dentre outros, ao aplicaram o teste de atenção divida DAQ (Divided Attention
hemisfério direito. Myers (2001) em seus estudos corrobora Questionnaire) a 83 sujeitos entre 18 e 27 anos e 245
tal associação. Segundo esse autor, lesões no hemisfério entre 60 e 91. Ainda, os pesquisadores investigaram se a
direito dificultam tarefas simples da vida diária que exigem habilidade de atenção dividida influenciaria a performance
manutenção da atenção (sustentada) ou distribuição dela dos indivíduos. Os resultados mostraram que não houve
em dois ou mais estímulos concorrentes (dividida). mudanças sistemáticas ou diferenças significativas,
Chan (1999) sustenta o que parece obvio no caso da embora as pessoas mais velhas tenham indicado as
atenção dividida, quando os sujeitos são estimulados em tarefas como mais difíceis.
situações distintas, recursos cognitivos são dispensados Korteling (1993) investigou se os efeitos da idade
para cada estímulo concorrente. A hipótese de que a em tarefas duais iriam depender do nível de similaridade
performance de alocação de recursos cognitivos para cada entre tarefas independentes. Foram testados 26 sujeitos
estímulo seja distinto entre jovens e adultos foi estudada adultos divididos em dois grupos: 19-30 anos e 64-77 anos.
por Dywan, Segalowitz e Webster (1998). Os pesquisadores Eram apresentados dois estímulos não relacionados. Os
observaram que a performance foi similar nos dois grupos resultados indicaram que, com o aumento de similaridade
tanto comportamental como eletrofisiologicamente. dos estímulos, a performance na tarefa de sujeitos mais
velhos foi pior que dos mais jovens.
35 Karine Souza e Ronei Guaresi

Zeef e Kok (1993) testaram a atenção dividida No gerenciamento da atenção assumem papel
e sustentada em dois grupos de 12 sujeitos, o primeiro fundamental os processos automáticos e os controlados.
de sujeitos com idade média de 22 anos e o segundo Processos automáticos são importantes, necessários e
de sujeitos com idade média de 72 anos. Os resultados não envolvem controle consciente. Eles demandam pouco
mostraram que os sujeitos mais jovens eram mais rápidos, ou nenhum esforço atencional ou mesmo intenção e são
contudo, erraram mais. implementados como processos paralelos aos processos
McDowd e Craik (1998) também compararam o monitorados pela atenção. As ações podem ocorrer
desempenho de jovens e adultos em tarefas perceptuais- ao mesmo tempo ou sem qualquer ordem sequencial
motoras envolvendo atenção dividida. Os pesquisadores específica, sendo relativamente rápidas.
observaram evidência de decréscimo na atenção dividida Os processos controlados são acessíveis ao controle
com a idade. As diferenças de idade foram altas quando a consciente e até mesmo o requerem. Esses processos
complexidade da tarefa também o era. ocorrem em série. Em comparação aos processos
Ponds, Brouwer e Van-Wolffelaar (1988) automáticos, levam tempo para serem executados e podem
investigaram a hipótese do decréscimo da habilidade de ocorrer paralelamente. Com prática suficiente, até mesmo
atenção dividida pela idade numa tarefa de simulação tarefas extremamente complexas, a leitura é um dos principais
de direção com 3 grupos: 17 sujeitos com idade entre 21 exemplos de atividade amplamente complexa, são possíveis
e 37 anos; 17 sujeitos com idade entre 40 e 58 anos; e de serem automatizadas. Para John Anderson (2005, p.
41 sujeitos com idade entre 61 e 80 anos. A tarefa dos 245), a linguagem é “talvez o sistema mais complexo que
sujeitos era compensar o traçado do veículo no simulador as pessoas têm que aprender” e se dá pela aprendizagem
e reagir de forma rápida a estímulos visuais apresentados. predominantemente implícita.
Os sujeitos mais velhos apresentaram pior desempenho É razoável entender os processos como um contínuo
nas atividades quando comparados com os sujeitos mais em que determinada atividade cognitiva com prática
jovens e de meia idade que não diferiram entre si. suficiente vai da extremidade de processos controlados
Noronha, et al (2008) realizaram estudo com para a extremidade dos processos automáticos.
369 sujeitos com idade entre 18 e 73 anos. Esse estudo A passagem de determinada atividade cognitiva
encontrou correlações significativas e negativas entre da extremidade controlada para a automática está
as medidas de atenção dividida e a idade, indicando que ligada à frequência e intensidade do input. Através
conforme aumentava a idade, havia uma diminuição nas dos nossos órgãos dos sentidos, os estímulos chegam
pontuações de atenção dividida. ao cérebro. Os neurônios, por meio de uma complexa
cadeia eletroquímica, recebem os estímulos e provocam
36 Leitura e atenção: um olhar sobre o input linguístico sob a perspectiva psicolinguista

grande ou pequena excitação dos neurônios seguintes memória. Sob esse aspecto, podemos nos dar conta de que
numa relação de equivalência da estimulação recebida. as memórias declarativas que temos apresentam-se com
O “armazenamento” da informação se dá através de algum grau de alteração da realidade.
uma rede neuronial engramada num determinado padrão Quando tratamos do input linguístico, surgem
de ativação (freqüência / potencial de ação) e sua questões que têm polemizado os estudiosos nas últimas
disponibilidade para evocação depende do quão forte décadas: a linguagem é inata ou adquirida? Ou mesmo o
essa informação está engramada nos neurônios. Uma andar, nas pessoas, é inato ou adquirido?
vez que algum dos elementos da rede for ativado naquele
padrão de ativação, então toda rede será ativada e a a possibilidade de aprender a andar
é inata. Mas para que saiba caminhar
informação, recuperada.
é preciso que faça as experiências
A aprendizagem de uma informação, portanto, necessárias no momento adequado.
compreende a criação de conexões sinápticas, (...) Não acredito que a aprendizagem
estabelecendo novo padrão de ativação integrado a se desenvolva de forma muito
conexões já existentes. Alguns pesquisadores consideram diferente noutros campos (SPITZER,
aceitável a ideia de empregar o termo aprendizagem para 2007, p. 185).
o reforço de conexões/conhecimentos já existentes no
cérebro. A simples lembrança de um evento altera a força Segundo o autor, para aprender a andar, o cérebro
sináptica de determinada rede neuronial e a torna ainda da criança aprende a coordenar os 600 músculos do
mais disponível. Quanto maior ativação neuronial, maior corpo sem esforço e sem o conhecimento explícito de
serão as alterações na força das sinapses deixando mais leis de alavancas, forças, medidas, pesos e acelerações,
disponível aquele conhecimento a tal ponto de a evocação ou seja, sem representações explícitas das equações
ser automática. Vale lembrar que essas ativações neuroniais diferenciais necessárias.
podem ocorrer no âmbito da consciência ou não. Pesquisas
Se concordarmos com o pesquisador, então
mostram que mesmo em estados avançados do sono há devemos aceitar que a aprendizagem da língua nativa
algum tipo de processamento de estímulos. ocorre predominantemente por meio da aprendizagem
Outro fenômeno amplamente estudado sob o jugo implícita, informal, não intencional, sem esforço, como
de falsas memórias é o da evocação, especialmente do defende Smith (1983). O fato é que sem input linguístico
universo do conhecimento declarativo, que pode alterar a não há aprendizagem do idioma que, de acordo com Spitzer
memória evocada. Ou seja, a evocação se dá num contexto (2007) começa antes mesmo de nascer. Cabe a lembrança
de estímulos que podem alterar minimamente aquela da descrição da linguagem dos inúmeros casos de crianças
selvagens que, ressalvadas os exageros, apresentam
37 Karine Souza e Ronei Guaresi

dificuldade de comunicação com outras pessoas pela os elementos linguísticos – signos – que adaptaram-se
ausência de input adequado. ao cérebro e não o contrário.
Sobre esse aspecto Cerutti-Rizzatti (2009),
em pesquisa com alunos e famílias nas periferias de O fato de a leitura parecer, para a
Florianópolis constatou que as famílias colocam como maioria das pessoas, tão isenta de
dificuldades, é o resultado de milhares
prioridade as condições mínimas de sobrevivência.
de horas de exercício e mostra, mais
Nesse caso, é mais importante a merenda na escola em uma vez, como o cérebro humano é
detrimento da apropriação da leitura e da escrita. Nas flexível (SPITZER, 2007, p. 215).
famílias e nos professores entrevistados foi identificada
uma subutilização da linguagem escrita se considerado seu O ato de ler está ligado diretamente
potencial na sociedade grafocêntrica atual. Ainda segundo com o ganho de conhecimentos
Cerutti-Rizzatti (2009), não é possível, em se tratando quando lemos, não somos passivos,
pois produzimos – de forma mais
das discussões entre aprendizagem e desenvolvimento
evidente do que noutros processos
cognitivo, denegar a importância da dimensão social, perceptivos – significados (SPITZER,
cultural e histórica do input que alimenta o processamento 2007, p. 216).
neural. A pesquisadora afirma, ainda, que, em se tratando
especificamente da língua escrita, parece notório que o Dificuldades em leitura estão relacionadas com
entorno de letramento em que vivem as crianças oferece ou alterações nos percursos das fibras conectivas, alterando
não a eles o input de que precisam para a ressignificação os fluxos de informação na leitura (PAULESCU e col.,
de suas redes neurais. 1996; SHAYWITZ e col., 1998). Estão relacionadas com
Diante do contexto concebido acima, é consenso pior coordenação da ativação das zonas implicadas no
entre pesquisadores das diversas áreas o papel instrutivo processo de leitura (HORWITZ e col., 1998), havendo
da leitura para a formação linguística, cultural e pessoal uma perturbação das “ligações” entre os centros da
do indivíduo. Seguramente uma iniciativa que poderia linguagem do hemisfério cerebral esquerdo (BASSER,
contribuir para a modificação do cenário descrito pelo 1995; CONTURO e col., 1999).
PISA seria o hábito de leitura. Segundo Dehaene John Anderson (2005) cita a leitura como importante
(2007) e Spitzer (2007), nosso cérebro não teve tempo fonte de aprendizagem indireta ou indutiva. Em seu
suficiente para adaptar-se biologicamente à leitura. artigo sobre aprendizagem indutiva, o autor defende que
Dehaene hipotetiza que alguns núcleos neuronais foram a maior parte do aprendizado de estruturas e de regras
reciclados para o processamento da leitura e que foram de determinado campo de conhecimento ocorre sem o
38 Leitura e atenção: um olhar sobre o input linguístico sob a perspectiva psicolinguista

recebimento de instruções diretas. Para ele a indução é mais rapidamente do que aqueles que receberam o
o processo pelo qual o sistema faz inferências prováveis treinamento em 4 horas diárias. O grupo treinado em 1
sobre o ambiente com base na experiência (p. 227). A hora aprendeu em 55 horas o que o grupo treinado em 4
maior parte da aprendizagem humana implica indução. horas aprendeu em 80. Esses resultados mostram que o
Ex.: operação de utensílios domésticos sem quaisquer aprendizado é mais efetivo quando o input é distribuído.
orientações diretas. As crianças nesse aspecto são Manfred Spitzer (2007, p. 200) chama especial
prodigiosas: a) aprendem a diferenciar cães e gatos sem atenção ao risco que o computador representa como
orientação; b) aprendem o idioma nativo praticamente sem input ostensivo para a criança. Segundo ele, as imagens
instruções diretas. Quem já ensinou uma criança a diferença e os sons fornecidos pelo computador fornecem um
entre uma cadeira e uma mesa? Segundo esse autor, meio empobrecido, porque os sinais estão muito mal
“ninguém instrui explicitamente as crianças sobre quais correlacionados e não beneficiam em nada a criança na
são as regras da língua. As crianças têm que inferir essas aprendizagem da vida. O significado das coisas só surge
regras ouvindo a língua que é falada com elas” (p. 245). quando nos relacionamos com ela. A realidade é que
Estudos psicolinguísticos apontam a leitura como fornece imagens em três dimensões, sons e imagens de
o caminho para a escrita, entendendo leitura não apenas vários locais. O cérebro precisa dimensionar isso. Só a
como apreensão temática, mas como desvelamento do realidade fornece estímulos para o pleno desenvolvimento
funcionamento linguístico do texto (ORLANDI, 1983). normal da visão e da audição. A televisão não estimula
Quem lê também escreve, pois faz uma busca de o aparelho motor. O pesquisador faz, ainda, alguns
reconstituição do caminho linguístico do autor e, portanto, questionamentos sobre esse tipo de input tão comum
dos sentidos produzidos (SMITH, 1983, 1999 e 2003). nos lares: a) como seriam aprendidas no computador
Segundo Braine (1971) e MacWhinney (1993), pesquisas as competências sociais? b) como queimar as energias
sugerem que eventuais correções de adultos não ajudam mobilizadas? c) como ficaria o aprendizado com a ausência
as crianças que as recebem. de treino de autoridade?
John Anderson (2005) cita Alan Baddeley, Michael W. Até o final da escola secundária um estudante
Eysenck e Michael C. Anderson, em que os pesquisadores fica aproximadamente 13 mil horas na escola e 25 mil
submeteram carteiros ingleses (British Post Office) a uma horas em frente a um televisor. Segundo Spitzer (2007, p.
rotina de treinamento. Os treinados por somente 1 hora 310), deve-se ter cuidado, pois pesquisa de conteúdo de
por dia aprenderam em menos horas de treinamento e 180 horas de televisão incluíram 1846 atos de violência
melhoraram suas performances mais rapidamente do que explícita, dos quais 751 com situações de ameaça de
aqueles treinados por 2 horas ao dia, os quais aprenderam morte e 175 com desfecho de morte.
39 Karine Souza e Ronei Guaresi

Spitzer argumenta que in Brazil is, in our view, the (lack of) attention in the classroom,
which is widely divided, and the lack of reading habits.
Se a televisão nunca tivesse sido
introduzida, existiriam atualmente, Keywords: Attention. Reading. Linguistic Input. Teaching.
nos EUA, anualmente, menos 10 mil
homicídios, menos 70 mil violações e
menos 700 mil delitos com ferimentos Referências
(SPITZER 2007, p. 315 apud
CENTERWALL, 1992). ANDERSON, N.D., LIDAKA, T., CABEZA, R., & CRAIK, F.I.M.
. The effect of divided attention on encoding and retrieval –
RESUMO – Baseado em pesquisadores e teóricos, a related brain activity: a PET study of younger and older adults.
saber, Spitzer (2007), Anderson (2005), Smith (1983, Journal of Cognitive Neuroscience 12, 5, p. 775-792, 2000.
2003), Cerutti-Rizzatti (2009), Boujon e Quaireau (2000),
ANDERSON, John. Aprendizagem e memória: uma
Dehaene (2007), entre outros, o presente texto trata do
abordagem integrada. 2ª edição. Rio de Janeiro: LTC, 2005.
input, especialmente o linguístico, e a atenção no contexto
escolar. Em se tratando de input linguístico entende-se a BASSER, P. J. Inferring microstructural features and the
leitura como input linguístico privilegiado e, normalmente, physiological state of tissues from diffusion-weighted
de qualidade. Duas das causas da baixa qualidade do images. NMR Biomed, 8, p. 333-444, 1995.
ensino no Brasil residem, a nosso ver, na (falta de) atenção
BOUJON, C. L’attention chez I’enfant in A. Lieury et coll.
que, em situação de sala de aula é amplamente dividida, e
Manuel de psychologie de l’éducation et de la formation.
na falta do hábito de leitura.
Paris: Cunod, 1996.
Palavras-chave: Atenção. Leitura. Input Linguístico. Ensino. BOUJON, Christophe; QUAIREAU, Christophe. Atenção
e aproveitamento escolar. Tradução Ana Paula Castellani.
ABSTRACT - Based on researchers and theorists, namely, São Paulo: Loyola, 2000. Título original: Attention et
Spitzer (2007), Anderson (2005), Smith (1983; 2003) Cerutti- réussite scolaire.
Rizzatti (2009), Boujon Quaireau (2000), Dehaene (2007), CERUTTI-RIZZATTI, M.E. Apropriação sociocognitiva da
among others, this paper deals with the input, especially the escrita: uma discussão sobre a dimensão intrassubjetiva da
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O impacto da aquisição da leitura no cérebro: o no cérebro humano. Portanto, todos os estudos discutidos
que os estudos com neuroimagem têm a dizer aqui foram desenvolvidos com técnicas de neuroimagem,
ou, pelo menos, têm como base estudos realizados com
Fernanda Knecht1 essa técnica (como, por exemplo, Standardized Low
Fale com a autora Resolution Electromagnetic Tomography – SLORETA;
Functional Magnetic Resonance Imaging – fMRI; Event-
A leitura é uma das habilidades mais importantes related Potential – ERP; Positron Emission Tomography –
que somente nós, seres humanos, temos a capacidade de PET). As principais perguntas a que pretendo responder
aprender. Não é surpreendente, então, que a leitura tenha com esta revisão são:
se tornado o foco de inúmeros pesquisadores, que utilizam
as mais variadas metodologias para alcançar os mais I- a aquisição da habilidade de leitura modifica
diversos propósitos. Há estudos sobre leitura focados no
o cérebro?
ensino e aprendizagem de línguas; há aqueles de caráter
II- em caso positivo, de que maneira e em que
mais clínico, que se dedicam a estudar o processamento da
leitura em pessoas disléxicas ou que sofreram algum dano medida isso ocorre?
cerebral; há também aqueles que envolvem pessoas que
não têm nenhum distúrbio ou dano cerebral. Todas as pesquisas ilustradas neste artigo pertencem
Nas últimas décadas, as técnicas de neuroimagem à mesma base de dados, o Portal de Periódicos Capes.
têm sido amplamente utilizadas como parte integrante Entretanto, elas foram retiradas de diversos periódicos. O
de diversas metodologias e objetivos, no que se refere a estudo mais antigo data de 1998 e, o mais recente, de 2010.
pesquisas sobre leitura. Elas proporcionam a análise, in Ao final do artigo, procuro relacionar esses estudos
vivo, do que está acontecendo no cérebro do participante com questões concernentes à sala de aula de língua
no momento em que este está desempenhando uma tarefa materna e / ou estrangeira.
requisitada pelo pesquisador. Além disso, a neuroimagem
possibilita que os pesquisadores façam uma espécie de A leitura no cérebro
mapeamento das áreas do cérebro que estão relacionadas
com atividades de leitura e de que forma elas são ativadas. A leitura é uma aquisição cultural recente. Segundo
O objetivo deste artigo é fazer uma breve revisão de Dehaene (2009), nosso cérebro é produto de milhões de
estudos que tratam do impacto da aprendizagem da leitura anos de evolução em um mundo onde não havia escrita.
1
Mestranda em Linguística na PUCRS, bolsista CAPES. Email: fernanda. Essa afirmação leva, inevitavelmente, à seguinte pergunta:
knecht@gmail.com
43 Fernanda Knecht

como, então, o cérebro se adapta a ponto de reconhecer de Ventura, Morais e Kolinsky (2007) vão ao encontro dos da
palavras e símbolos? Em outras palavras: se o cérebro pesquisa anterior. Em uma série de experimentos realizados
humano não foi projetado para a atividade de ler, de que com crianças leitoras e não leitoras e adultos leitores, os
maneira ele consegue dar conta dessa habilidade? Voltarei autores afirmam que há evidências de que a aprendizagem
a essa questão em breve. do sistema ortográfico da língua influencia em grande
No que se refere ao nível auditivo, estudos relatam escala o reconhecimento da palavra falada. Nesse sentido,
que a alfabetização leva à consciência fonêmica e à a habilidade de leitura parece alterar o processamento da
habilidade de manipular as menores unidades da língua fala. Os resultados do estudo de Perre et al. (2009), realizado
falada, os fonemas (MORAIS et al., 1986 apud DEHAENE com adultos, também corroboram com os de Castro Caldas
et al., 2010). et al. (1998) e os de Ventura, Morais e Kolinsky (2007).
Já em relação à fala, Castro-Caldas et al. (1998) Entretanto, os pesquisadores vão além da investigação
desenvolveram um estudo com PET envolvendo mulheres do efeito da aprendizagem da ortografia na língua falada.
adultas alfabetizadas na infância e não alfabetizadas e seus De acordo com eles, não há nenhuma explicação precisa
principais resultados, assim como os de vários estudos de como, exatamente, o conhecimento ortográfico afeta o
descritos anteriormente, indicam que aprender a ler e escrever reconhecimento da palavra falada. Então, os autores discutem
na infância influencia a organização do cérebro adulto. Os duas hipóteses: a primeira diz que a informação ortográfica
estudiosos constataram que o aprendizado da forma escrita é ativada no cérebro sempre que ouvimos uma palavra.
da palavra interage com o funcionamento da linguagem De acordo com essa hipótese, aprender a ler e a escrever
oral do indivíduo. A esse respeito, os autores citam modelos cria fortes e permanentes associações entre as principais
cognitivos que lidam com os mecanismos do processamento áreas cerebrais relacionadas com a língua falada e regiões
da língua falada e que consideram o conhecimento da escrita responsáveis pelo processamento de informação ortográfica,
como um caminho de processamento paralelo. Isso indica cujo principal representante é o giro fusiforme esquerdo2,
que os sistemas escrito e oral da língua estão intimamente que contém a área visual da forma da palavra3, proposta por
relacionados. Os resultados também evidenciam que certos Dehaene, Cohen e colegas (2001; 2004). A esse respeito,
aspectos da habilidade de lidar com unidades fonéticas da Ventura et al. (2007) argumentam que a especialização
fala não são adquiridos espontaneamente, mas, sim, resultam funcional progressiva dessa área parece estar intimamente
da aprendizagem da leitura. Nesse sentido, aprender a ler e relacionada com a habilidade de decodificação. A segunda
a escrever modifica o sistema fonológico humano, pois esse hipótese diz que a ortografia influencia a fonologia durante
aprendizado adiciona uma dimensão visual-gráfica, ou seja, a o processo de aprendizagem de leitura e escrita, alterando,
correspondência entre o grafema e o fonema. Os resultados 2
Tradução minha para left fusiform gyrus.
3
Tradução minha para visual word form area.
44 O impacto da aquisição da leitura no cérebro: o que os estudos com neuroimagem têm a dizer

dessa forma, a natureza das representações fonológicas. A pesquisa de Gaillard et al. (2003) apresenta resultados
Os resultados da pesquisa corroboram com a segunda que vão na direção oposta. Os pesquisadores realizaram o
hipótese, ou seja, os autores acreditam que acontece uma estudo com crianças de seis e sete anos de idade e adultos. Os
reestruturação da representação fonológica ao longo do resultados sugerem que as redes neuronais que processam a
aprendizado da leitura e escrita, assim como Castro-Caldas leitura estão fortemente estabilizadas e regionalizadas quando
et al. (1998). Interessantemente, os resultados mostraram a criança tem apenas sete anos. Nesse sentido, os autores
que não houve ativação cerebral na área visual da forma da afirmam que as redes neuronais de crianças dessa idade são
palavra, embora os próprios pesquisadores atribuam isso a semelhantes às de adultos. Entretanto, os pesquisadores
possíveis problemas com a técnica de neuroimagem utilizada. reconhecem que parte desses resultados pode estar ligada
Em relação ao nível visual, o estudo de Schlaggar ao fato de que os cérebros das crianças são menores que
et al. (2002) teve o objetivo de investigar a relação os cérebros dos adultos e que, com isso, há diferenças na
entre idade e ativação cerebral durante atividades de maturação de algumas regiões cerebrais.
reconhecimento de palavras escritas. Para tanto, o estudo O estudo longitudinal de Maurer et al. (2006)
foi desenvolvido com crianças e adultos. Os resultados envolveu crianças, antes e depois de aprenderem a ler
indicam que o cérebro de crianças entre sete e dez anos e, posteriormente, comparou resultados provenientes
de idade utiliza, em partes, uma neuroanatomia funcional desses participantes com os resultados de procedimentos
diferente da dos adultos, ao desempenharem a mesma desenvolvidos com adultos leitores. Os resultados mostram
atividade. Segundo os autores, uma explicação possível que as crianças que ainda não sabem ler, quando expostas
para isso é que as crianças dessa idade não possuem a uma palavra escrita, não possuem ativação cerebral
algumas regiões cerebrais completamente desenvolvidas na área visual da forma da palavra que, como já disse
e, por esse motivo, o cérebro ativa outras regiões para antes, é considerada a principal área de processamento
auxiliar na resolução da tarefa. Já nos adultos, apenas da palavra impressa. O objetivo da pesquisa foi investigar
algumas áreas são ativadas porque elas já estão maduras se o desenvolvimento dessa área cerebral aconteceria de
o suficiente para dar conta da tarefa sem auxílio de outras maneira rápida, assim que a criança aprendesse a ler, e
regiões. Outra explicação seria que as crianças dessa continuaria se desenvolvendo na fase adulta. Mesmo no
idade ainda não teriam adquirido algumas estratégias de início da aprendizagem da leitura, as crianças já mostraram
leitura, e os adultos, sim. De maneira geral, os resultados de ativação cerebral na área visual da forma da palavra.
Schlaggar et al. (2002) permitem afirmar que a maturação Esse resultado, de acordo com os autores, evidencia uma
do cérebro da criança, nos primeiros anos escolares, entre reestruturação plástica muito rápida do cérebro durante a
sete e dez anos de idade, ainda não está completa. infância. Além disso, percebeu-se uma ativação muito maior
45 Fernanda Knecht

em resposta a palavras impressas do que a uma sequência a influência do treino de leitura, uma extensa rede neuronal
de símbolos impressos, por exemplo. Os resultados do se torna sensível à palavra escrita em recém leitores
estudo também sugerem que as crianças que apresentam (principalmente na fase que vai do jardim de infância até
ativação cerebral muito maior quando expostas a palavras, o segundo ano). Com a prática posterior, a sensibilidade a
em comparação a quaisquer outros símbolos, se tornam alguns aspectos impressos pode diminuir em partes nessa
leitoras mais fluentes rapidamente. Os pesquisadores rede neuronal, resultando numa ativação cerebral mais
afirmam que semelhante investigação pode ser útil para seletiva por parte dos adultos. Esse resultado se opõe aos
determinar, por exemplo, déficits de aprendizagem em estudos de Cohen e Dehaene (2004) e Simos et al. (2001),
crianças disléxicas, permitindo ao professor ou educador que evidenciam que o desenvolvimento da sensibilidade
o uso de diferentes abordagens de ensino que levem em e, por sua vez, especialização de uma área do cérebro
consideração os resultados dos testes. mais relacionada com a palavra escrita se desenvolve de
Ainda sobre dislexia, Shaywitz et al. (2002) confirmam maneira linear, com o aumento da proficiência na leitura.
que crianças disléxicas apresentam uma disfunção em Os resultados de todos os estudos descritos
sistemas neuronais relacionados com o reconhecimento acima, de acordo com Dehaene et al. (2010), deixam
de palavras escritas e afirmam que, quanto mais jovem importantes perguntas a serem respondidas. Por
a criança, mais essa deficiência pode ser percebida. Em exemplo, a alfabetização leva a efeitos cooperativos
suma, os resultados de Maurer et al. (2006) evidenciam ou competitivos no processamento cortical? Ou seja: o
que aprender a ler leva, aproximadamente um ano e cinco cérebro se desenvolve para desempenhar novas funções
meses depois dos primeiros contatos com a palavra escrita, decorrentes do aprendizado da leitura ou deixa de
a uma notável especialização neurofisiológica para a palavra desempenhar funções que outrora desempenhava para
impressa. Entretanto, essa especialização das crianças passar a exercer outras? Volto também à pergunta que
difere, em certos aspectos, da dos adultos, principalmente destaquei no início desta seção: se o cérebro humano
no que tange a características neurofisiológicas e a não foi projetado para a atividade de ler, de que maneira
sensibilidade a novas palavras. ele consegue dar conta dessa habilidade?
Ao contrário da aquisição da habilidade de leitura, A esse respeito, Dehaene (2009) introduz o conceito
que melhora e se desenvolve durante a trajetória escolar de reciclagem neuronal, ao assumir a perspectiva de
e com a prática, a sensibilidade da área visual da forma que a leitura é uma invenção cultural demasiadamente
da palavra parece não se desenvolver no mesmo ritmo, recente para envolver genética ou mecanismos de
ou seja, há um decréscimo na especialização conforme o desenvolvimento. De acordo com o autor, o que acontece
tempo passa. Nesse sentido, de acordo com os autores, sob é que, durante a alfabetização, processos relativos à leitura
46 O impacto da aquisição da leitura no cérebro: o que os estudos com neuroimagem têm a dizer

reciclam neurônios que, anteriormente, eram responsáveis Conforme os estudos anteriores, a pesquisa de Dehaene
por outras funções, como, por exemplo, o reconhecimento et al. (2010) também mostra que a alfabetização aprimora
de faces, casas e objetos. Isso possibilita dizer que tais o processamento da linguagem falada, reforçando a região
funções sofrem impacto com a aquisição da leitura. Ou fonológica, o plano temporal e fazendo com que o código
seja, aprender a ler causa mudanças na organização do ortográfico seja disponível de modo top-down, ou seja,
cérebro, como evidencia também o estudo mais recente de maneira holística. Os autores argumentam que essas
de Dehaene et al. (2010). A pesquisa, realizada com mudanças corticais, embora altamente positivas, levam,
brasileiros e portugueses não alfabetizados, alfabetizados assim como outras habilidades que se tornam especialidades,
na infância e alfabetizados na fase adulta, mostrou que a efeitos competitivos no cérebro. Por exemplo, na região do
todas as pessoas que aprenderam a ler apresentam cérebro que, entre outras partes, possui a área responsável
semelhanças na organização de seu córtex. O objetivo dos pela forma das palavras, os resultados mostram que
autores era entender quais estímulos, especificamente, são houve uma diminuição significativa do reconhecimento de
processados na área visual da forma da palavra antes do faces por parte das pessoas alfabetizadas em relação às
aprendizado da leitura e, em que medida sua representação não alfabetizadas. Como identificar rostos, assim como
cortical (que é sabido, aumenta durante o período escolar) palavras escritas, é uma parte essencial da comunicação
é afetada pela alfabetização. Os resultados evidenciam e da interação social significativa (TURKENTAUB et al.,
que aprender a ler causa um enorme impacto nas redes 2005), Dehaene et al. (2010) sinalizam que essa intrigante
neuronais relacionadas à visão e à fala, independentemente possibilidade de que o reconhecimento de rostos possa
da idade em que a pessoa foi alfabetizada. Tais estudos sofrer danos proporcionais às nossas habilidades de leitura
corroboram os resultados de outras pesquisas apresentadas será explorada em futuras pesquisas.
anteriormente. A alfabetização aumenta a organização O estudo de Turkeltaub et al. (2005), assim
do córtex visual, particularmente através da indução de como o de Castro-Caldas et al. (1998), defende que a
respostas para um estímulo escrito no idioma já conhecido organização cerebral é modificada com a aquisição de
pela área do cérebro responsável pela forma da palavra. qualquer habilidade, não somente a leitura. Para tanto,
Além disso, a alfabetização permite que toda a rede neural os pesquisadores desenvolveram um estudo utilizando
do hemisfério esquerdo, relacionada à linguagem falada, técnicas de neuroimagem com adultos e crianças com
seja ativada por sentenças escritas. formação musical. Os pesquisadores discutem a formação
Dessa forma, a leitura, que é uma invenção musical, argumentando que, assim como a leitura, aquela
social recente, aproxima-se da eficiência do canal de também é adquirida somente por seres humanos, através
comunicação mais evoluído da espécie humana, a fala. de anos de estudo e esforço, que, normalmente, se iniciam
47 Fernanda Knecht

na infância. O estudo envolveu diferentes e diversas mesmo concordam com essa nomeação. Em relação a isso,
atividades de leitura. Os resultados evidenciam que há Turkeltaub et al. (2005) argumentam que mais pesquisas
regiões do cérebro que apresentam mais modificações são necessárias para confirmar se a área visual da forma
do que outras, comparando um leitor adulto e um leitor da palavra é exclusivamente dedicada ao processamento
criança. Por exemplo, o córtex temporal superior esquerdo de palavras ou se esta área tem outra função concomitante.
não apresentou muitas mudanças, visto que tanto no adulto
quanto na criança as ativações foram similares. No entanto, Conclusão
o giro frontal inferior esquerdo apresentou mais mudanças:
seu desenvolvimento aumenta consideravelmente durante Muitos dos estudos descritos neste artigo
o processo de aquisição da leitura. Essa área do cérebro apresentam resultados semelhantes, que permitem
é comumente dividida em duas: a área dorsal fonológica conclusões semelhantes. Por outro lado, pode-se perceber
e a área ventral semântica (BOKDE et al., 2001). O que existem pesquisas que mostram resultados bastante
estudo mostrou que, nas crianças, essas duas regiões diferentes, até mesmo opostos. Isso pode estar relacionado
praticamente não são ativadas, enquanto que nos adultos com a metodologia utilizada, com as perguntas que os
a ativação é forte. No que se refere à anatomia do cérebro pesquisadores se propuseram a responder e, também, com
dos participantes, notaram-se diferenças em relação aos diferenças individuais entre os participantes dos estudos.
músicos mais habilidosos comparados com outros não Em vista disso, mais pesquisas se fazem necessárias para
tão habilidosos. Com base nisso, os autores sugerem que que seja possível comprovar ou descartar hipóteses, assim
diferenças anatômicas também poderiam ser observadas como acrescentar novas. Entretanto, mesmo os estudos
em cérebros de bons leitores, leitores medianos e pessoas mais discrepantes entre si apresentam, em certa medida,
não alfabetizadas. Outro resultado interessante apontado alguma semelhança: todos mostram que algo acontece no
pelos pesquisadores é que não houve nenhuma evidência cérebro com a aprendizagem da leitura. Volto agora, então,
direta que apontasse que os mecanismos de processamento às perguntas que me moveram na construção deste artigo:
das palavras, dentro da área visual da forma da palavra, se
desenvolvem durante o período de aquisição da leitura. Nesse I- a aquisição da habilidade de leitura modifica
sentido, os resultados parecem ir ao encontro de pesquisas, o cérebro?
como a de Price e Devlin (2003), que mostram que várias II- de que maneira e em que medida isso ocorre?
áreas do cérebro são responsáveis pelo reconhecimento de
palavras, e não apenas a região conhecida com área visual Como as duas perguntas se complementam, tentarei
da forma da palavra. Na verdade, os referidos autores nem respondê-las concomitantemente. O aprendizado da leitura
48 O impacto da aquisição da leitura no cérebro: o que os estudos com neuroimagem têm a dizer

causa profundas alterações no cérebro, tanto em sua indivíduo manipular com mais facilidade todos os fonemas
anatomia quanto em sua funcionalidade. Essas alterações de sua língua. Nesse sentido, a aprendizagem da leitura
acontecem, principalmente, no plano visual e no que se tem impacto no processamento da fala.
refere à fala. Além disso, há evidências, ainda que em O conhecimento de pesquisas dessa natureza pode
pouco número, se levarmos em consideração a quantidade ser bastante relevante para o trabalho do professor de língua,
de estudos sobre isso, de que a aquisição da leitura também que utiliza muito a leitura de textos como base para as aulas.
tem impacto no plano auditivo. Resultados de experimentos como os relatados aqui podem

Em relação ao plano visual, algumas pesquisas auxiliar no entendimento de como se dá a aprendizagem do
mostram que a criança, assim que aprende a ler, começa a aluno e até mesmo do porquê de alguns alunos apresentarem
ativar áreas do cérebro, relacionadas com o reconhecimento dificuldades para aprender com determinadas atividades.
da palavra impressa, que não ativava antes de adquirir essa No caso de alunos que apresentam algum distúrbio, como
habilidade. Além disso, constatou-se que essa área cerebral se por exemplo, a dislexia, o conhecimento de pesquisas que
desenvolve de maneira muito rápida ainda quando a criança relatam o impacto da aprendizagem da leitura no cérebro
está na fase inicial da aquisição da leitura. Isso sugere uma parece ser ainda mais relevante.
capacidade plástica e de adaptação do cérebro muito rápida
nas crianças. Mais estudos são necessários para investigar RESUMO - O objetivo deste artigo é fornecer uma breve
como, de fato, esse desenvolvimento continua acontecendo revisão teórica acerca de estudos com neuroimagem
na fase adulta. As pesquisas existentes que abordam esse sobre a aprendizagem da leitura e seu impacto no cérebro
tema não apresentam resultados similares: em alguns estudos humano. Resultados evidenciam que aprender a ler,
o desenvolvimento da região do cérebro responsável pelo independentemente da idade, causa profunda reorganização
reconhecimento da palavra escrita continua acontecendo na do córtex, principalmente no que se refere à fala e à visão.
fase adulta, com a prática e a experiência; em outros, esse
desenvolvimento ou especialização tem seu auge na infância Palavras-chave: Leitura. Cérebro. Neuroimagem.
e parte da adolescência e depois disso começa a diminuir.
De acordo com as pesquisas, a aquisição da leitura, ABSTRACT - The aim of this paper is to provide a brief
ou seja, o conhecimento ortográfico da língua causa review about neuroimage studies that involve reading
mudanças relacionadas aos aspectos fonológicos. Em acquisition and the impact it may have on the human brain.
outras palavras, aprender a ler leva a uma reestruturação Results show that learning to read, independently of the age
do sistema fonológico no cérebro humano. Além disso, of acquisition, causes deep restructuration on the cortex,
acredita-se que a aprendizagem da leitura possibilita ao mainly related to speech and vision.
49 Fernanda Knecht

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Resumo: a relevância do objetivo de leitura escolar: atualmente, em relação a obras literárias, os
jovens parecem preferir ler resumos a ler o texto original.
Cláudia Strey1 As perguntas norteadoras emergem dessa constatação:
Fale com a autora por que, na escola, a maior parte dos alunos tem essa
preferência de leitura? Como explicar a diferença de leitura
Para que se faça uma definição apropriada do que entre esses dois gêneros (obra literária e resumo)? Qual
é leitura, é necessário que se defina a interface2 em que o papel dos objetivos de leitura e da avaliação feita pelos
se trabalha. Se a área de interface é a Social, pode-se professores? Como a Teoria da Relevância pode ajudar a
entender leitura como uma prática de inclusão social, em explicar essa escolha?
que se trabalha com conceitos de capacidade crítica e de Partindo desses questionamentos e do objetivo
exercício da cidadania. Se a área é a Cognitiva, leitura principal – construir uma interface entre Psicolinguístca
passa a ser definida como processo cognitivo, em que se e Pragmática –, algumas hipóteses são construídas: (a) o
estudam aspectos como inferência, predição, memória. objetivo de leitura e o tipo de avaliação parecem guiar a
Por fim, se a área de interface é a Ciência Formal, leitura leitura feita pelos alunos; (b) o princípio da Relevância ajuda
pode ser estudada no sentido de observar como questões a explicar a escolha de qual forma de leitura é mais relevante
lógicas interferem a compreensão leitora. de acordo com o seu objetivo; (c) a leitura é determinada pelo
Nesse estudo, o objeto contruído se dará na interface menor custo cognitivo, e não pelo maior benefício.
entre Psicolinguística (uma interface entre Linguística e O artigo que se segue está organizado da seguinte
Psicologia) e Pragmática (uma subárea da linguística), forma: primeiro, aborda-se como a leitura pode ser
em que se assumem hipóteses de leitura (SOLÉ, 1998) compreendida no aporte teórico da Teoria da Relevância,
e de comunicação (Teoria da Relevância - SPERBER & para, em seguida, mostrar a perspectiva de leitura à luz da
WILSON, 1995) para derivar conclusões que possam ser Psicolinguística. A terceira e a quarta seção são destinadas
interessantes para ambas as áreas envolvidas. O artigo à construção da interface: qual o custo cognitivo envolvido
procura abordar um problema evidente no atual cenário na leitura de resumos e de obras literárias, e qual sua
relação com os objetivos de leitura e de avaliação escolar.
1
Mestranda em Linguística – PPGL-PUCRS e bolsista CNPq. Artigo apresentado
para a cadeira de Compreensão e Processamento da Leitura. Email: claudiastrey@
Utiliza-se, como exemplo ilustrativo para demonstrar a
yahoo.com.br. interface, trechos da obra Iracema de José de Alencar e
2
A visão de que o estudo das ciências deve ser feito por meio de interfaces está
de acordo com a Metateoria das Interfaces, desenvolvida por Campos (2007), de alguns resumos dessa obra, encontrados na internet.
que argumenta que, somente através de interfaces, consegue-se explicar uma
maior quantidade de fenômenos adequadamente. Para a Filosofia da Ciência (e,
consequentemente, da Linguística), isso implica construir um objeto de acordo com
a perspectiva adotada, e não observar um objeto pré-existente a essa perspectiva.
51 Cláudia Strey

1. Da leitura na perspectiva da Relevância contextual alcançado. Essa característica refere-se ao fato


de que os seres humanos prestam atenção àquilo que lhes
Após o desenvolvimento de teorias que abordam parece relevante, desencadeando um processo inferencial.
aspectos pragmáticos da linguagem, a comunicação verbal Para tal, Sperber e Wilson (1995) propõem dois princípios:
deixou de ser compreendida apenas como um processo o primeiro é o Princípio Cognitivo: “A comunicação humana
de codificação e de decodificação, baseado no modelo tende a ser dirigida para a maximização da relevância”
de código (SHANNON e WEAVER, 1949). A comunicação (SPERBER & WILSON, 1995, p. 260). Isso não significa
passou a ser entendida como inferencial, em que não dizer que os seres humanos sempre alcançam a relevância
somente o dito tem papel fundamental para a compreensão, máxima (maiores efeitos cognitivos com menores efeitos
mas também o implicado. Grice3 foi um dos filósofos que contextuais), mas, ao contrário, significa que a mente
mais contribuíram para esse processo, pois reconheceu o humana possui uma tendência a escolher os estímulos,
papel da intencionalidade e da inferência na comunicação, a ativar o conjunto de informações mais relevantes e a
além de criar um modelo de pesquisa abrangente, capaz de processá-los da maneira mais produtiva.
dar estímulos a investigações futuras. O segundo princípio fundamental é o Princípio
Partindo do modelo griceano, Sperber e Wilson Comunicativo: “Todo estímulo ostensivo comunica a
(1986/1995) desenvolvem a Teoria da Relevância, que presunção de sua própria relevância ótima” (SPERBER &
busca explicar a linguagem na interface entre comunicação WILSON, 1995, p. 260). Em relação à noção de relevância
e cognição. A Teoria da Relevância é um modelo de ótima, os autores afirmam que um estímulo será otimamente
comunicação ostensiva, no qual o falante tornará manifesta relevante se, e somente se, ele for relevante o suficiente
a sua intenção informativa e comunicativa; e inferencial, em para merecer esforço de processamento da audiência;
que o ouvinte deverá construir o contexto para chegar à e o mais relevante compatível com as habilidades e
interpretação do enunciado. A teoria fundamenta-se em duas preferências do comunicador.
propriedades que não podem ser dissociadas: a ostensão por Outro conceito fundamental da teoria e importante
parte do comunicador e a inferência por parte do receptor. para a interface com a Psicolinguística refere-se à noção
A ideia principal da teoria, como enfatiza Silveira de contexto, que não é dado de antemão, mas construído
(2005), está no conceito de Relevância, em que se estabelece a partir do processo comunicativo. O contexto pode ser
uma relação entre custo cognitivo despendido e efeito definido como um conjunto de premissas usadas para
3
Grice propôs uma teoria baseada no modelo inferencial de comunicação. Para interpretar um enunciado, que se referem a um subconjunto
ele, as inferências resultantes no processo de comunicação são derivadas a partir de crenças do ouvinte sobre o mundo. A seleção do
de um acordo entre falante e ouvinte, chamado de Princípio da Cooperação e
ligado a quatro máximas (quantidade, qualidade, relação e maneira). Seus contexto é parte do processo de interpretação, ou seja,
trabalhos mais conhecidos são Meaning (1957) e Logic and Conversation (1975).
52 Resumo: a relevância do objetivo de leitura

as “suposições são acrescentadas a partir do enunciado de leitura; é a soma dos fatores
a ser interpretado, indicando que o contexto não é dado mínimos como grafemas em sílabas,
de antemão, mas construído no curso da informação” palavras e sentenças, tudo dentro de
uma certa ordem de boa formação, que
(SILVEIRA & FELTES, 2002, p. 46). gera o processo em pauta. Dizendo
A partir da noção principal de relevância – relação de outro modo, ler não é adivinhar, é
custo-benefício –, pode-se transpor a comunicação oral decodificar e compreender.
para a escrita, e se analisar o processo de leitura através
da relação entre ouvinte-leitor e falante-autor. Dessa forma, Compreender o texto significa, portanto, ser capaz
Silveira e Feltes (2002, p. 64) afirmam: de produzir inferências relevantes, com o menor custo
para maiores efeitos. Como se dá, então, a produção
Se, conforme Sperber e Wilson, o
de inferências durante o processo da leitura? Há algum
papel do ouvinte é tão importante
nesse processo [comunicativo], e se outro fator que pode influenciar a geração de inferências?
o comportamento verbal dos falantes Qual o papel da predição e das hipóteses construídas ao
é restringido pela expectativa de longo da leitura, por exemplo? Essas perguntas serão
Relevância do ouvinte, então, em abordadas na próxima seção, que abordará a perspectiva
termos de autor e leitor, tal expectativa Psicolinguística da leitura.
deve ser considerada a base para a
análise do texto/discurso.
2. Da leitura na perspectiva da Psicoloinguística
Assume-se, assim, que a leitura também é baseada
Na maior parte dos estudos de Psicolinguística,
no princípio inato da Relevância, que parece ser determinante
a leitura é compreendida como um processo complexo,
para explicar a comunicação humana. Nessa perspectiva,
que ocorre de maneira ascendente (bottom up) ou
Campos (2009, p. 58-59) afirma que
descendente (top down). A escolha de qual processo
será utilizado envolve algumas variáveis, como tipo de
Ler consiste, essencialmente, num
texto, objetivo de leitura, conhecimentos prévios do leitor
processo de construir cognitivamente
uma espécie de código mental a e estilo cognitivo (PEREIRA, 2010).
partir de um código escrito, em que O modelo ascendente de leitura (bottom up) é um
de grafemas visuais chegamos a modelo centrado no texto, desenvolvido por Gough (1972),
representações isomórficas internas. que considera a leitura como um processo linear, serial,
(...) A noção de composicionalidade que vai da identificação de letras e palavras à extração do
sintático-semântica é vital no processo
53 Cláudia Strey

significado no texto. A leitura é vista como um processo inferências multiformes4, que vão desde inferências
passivo, no qual o leitor é apenas um decodificador do fonológicas até inferências pragmáticas.
significado que o próprio texto carrega. Assumindo-se a importância do processo
No modelo descendente (top down), proposto por inferencial, é importante observar quais outros fatores
Goodman (1970), o leitor utiliza seus conhecimentos prévios influenciam a formação de inferências. A Psicolinguística
para fazer antecipações e predições sobre o conteúdo do descreve alguns fatores, como o tipo de texto, o objetivo
texto, fixando-se para verificá-las. Segundo Solé (1998), de leitura e os conhecimentos prévios. Em relação
esse processo também é hierárquico, embora descendente, aos objetivos de leitura, Solé (1998) afirma que eles
pois, a partir de hipóteses e antecipações prévias, o texto é determinam como o leitor se situa perante um texto para
processado para verificação. que haja uma melhor compreensão. Segundo a autora,
Há, no entanto, um terceiro modelo que faz uma síntese parece haver um acordo geral de que os bons leitores
dos outros dois enfoques para explicar o processamento leem textos diferentes de diferentes maneiras, sendo
da leitura. Segundo a teoria dos esquemas de Rumelhart esse fato um indicador da competência leitora, ou seja,
(1981), o leitor constrói o texto a partir de informações da capacidade de se utilizar distintas estratégias em
linguísticas (lexicais, sintáticas, semânticas) associadas ao distintas leituras.
conhecimento de mundo. Os processamentos ascendente Solé ainda afirma que os objetivos de leitura podem
e descendente seriam não-excludentes e aconteceriam ser muito variados, sendo impossível elencar todos.
simultaneamente ou em paralelo. Entretanto, a autora propõe alguns objetivos genéricos,
A perspectiva assumida nesse artigo é que, durante cuja presença é importante na vida adulta e podem ser
a leitura, é necessário utilizar diferentes estratégias trabalhados na escola: (a) ler para obter uma informação
inerentes a cada tipo de processamento. Ou seja, não há precisa; (b) ler para seguir instruções; (c) ler para obter
predomínio somente de um ou de outro processo, mas a uma informação de caráter geral; (d) ler para aprender;
forma como se dá a compreensão depende de níveis de (e) ler para revisar um escrito próprio; (f) ler por prazer;
relevância. Além de a decodificação ser imprescindível, (g) ler para comunicar um texto a um auditório; (h) ler para
é preciso que se assuma a importância do processo praticar a leitura em voz alta; (i) ler para verificar o que se
inferencial (através de construção de contexto e de compreendeu (SOLÉ, 1998, p. 93-101).
acesso à memória enciclopédica), de acordo com a Vários estudos na Psicolinguística abordam a
Teoria da Relevância. A hipótese que se assume é que, relação entre objetivo de leitura e quantidade e tipos de
independente do processo, a compreensão envolve 4
Inferências multiformes são inferências que podem ser geradas por diversas
fontes (lógicas, lexicais, semânticas, pragmáticas). Para mais detalhes, ver
Campos (disponível em http://www.jcamposc.com.br/O_Texto_Juridico.pdf)
54 Resumo: a relevância do objetivo de leitura

inferências, como, por exemplo, Narvaez et al. (1999), Como explicar a preferência dos jovens em
Vivas (2004), Sponholz, Gerber e Volker (2006), Gerber ler os resumos ao invés da obra literária? Ao propor
e Tomitch (2008). A maior parte dos estudos utiliza o uma leitura, a maior parte dos professores quer que os
Protocolo de Pausa (CAVALCANTI, 1989), em que os alunos leiam o texto literário para estudá-lo. Entretanto, a
informantes devem verbalizar qualquer pensamento que avaliação feita não é compatível com a intenção inicial dos
ocorra durante a leitura. Entretanto, deve-se observar que professores, pois, ao fazer questões que abordem apenas
a própria metodologia é passível de questionamento, pois as informações gerais do texto, os alunos ajustam sua
há várias inferências que são praticamente automáticas. leitura para que ela seja a mais relevante possível. Dessa
Ou seja, ao ler, fazem-se inferências que muitas vezes forma, a relação objetivo-relevância-avaliação parece ser
não são verbalizadas, mas são de extrema importância essencial para explicar a leitura na escola.
para a compreensão de como se dá a leitura. Suponha que o objetivo inicial de leitura seja ler
Para tentar solucionar esse problema, intrínseco aos para aprender. Segundo Solé (1998), a finalidade desse
estudos da Psicolinguística, recente área da Linguística, objetivo é ampliar, de forma explícita, os conhecimentos a
propõe-se explicar como os objetivos de leitura influenciam partir da leitura de determinado texto. O aluno estará em
na construção das inferências, em uma interface entre a um processo em que irá estabelecer relações com o que
Psicolinguística e a Teoria da Relevância. já sabe, rever o que já conhece, formular novas hipóteses.
Entretanto, para esse objetivo, o aluno precisa ter claro o
3. Da relevância dos objetivos de leitura: resumos que ele deve aprender (SOLÉ, 1998. p. 95-96).
O objetivo de ler para aprender pode estar ligado a
A leitura de obras clássicas da literatura parece, outro: ler por prazer. O professor pode associar a leitura
hoje, nas escolas, estar perdendo espaço para a leitura para um trabalho ao hábito de ler literatura. Solé (1998,
dos resumos das obras. Como explicar essa escolha? Em p. 97) ressalta que
um primeiro momento, é preciso observar como a leitura
está sendo encaminhada na sala de aula, ou melhor, quais (...) seria útil distinguir entre ler literatura
só para ler e ler literatura – e aqui tem
objetivos de leitura estão sendo propostos pelos professores.
sentido, por exemplo, que todos os
Em um segundo momento, há que se pensar na relação alunos leiam o mesmo fragmento –
custo-benefício, em que o custo cognitivo (a quantidade de para realizar determinadas tarefas que,
esforço demandada) de ler um clássico, cuja linguagem pode se abordadas adequadamente, não só
ser muito distante daquela vivenciada pelos jovens, parece ser interfirão no primeiro objetivo, como
muito alto para os benefícios (efeitos cognitivos alcançados). também ajudarão a elaborar critérios
pessoais que permitam aprofundá-lo.
55 Cláudia Strey

Entretanto, apesar de muitos professores terem 4. Do custo cognitivo das inferências


esses objetivos iniciais, suas avaliações supõem outro tipo
de leitura, cujo objetivo é ler para obter uma informação de Em termos de relação custo-benefício, se o objetivo
caráter geral. de leitura for claro e a avaliação coerente com esse objetivo,
Segundo Solé, a leitura do texto original se justifica. Ou melhor, o alto custo
será compensado com altos efeitos cognitivos, como pode
Quando lemos para obter uma informação ser visto nas análises a seguir. Observe os textos abaixo,
geral, não somos pressionados por uma
um trecho do primeiro capítulo de Iracema, de José de
busca concreta, nem precisamos saber
Alencar e um resumo desse capítulo, retirado da internet.
detalhadamente o que diz o texto; é
suficiente ter uma impressão, com as
A – Iracema, de José de Alencar
ideias mais gerais (SOLÉ, 1998, p. 94).
Três entes respiram sobre o frágil lenho que vai singrando
Apesar desse objetivo de leitura ser também veloce, mar em fora;
essencial para a contrução de uma leitura crítica, ele não Um jovem guerreiro cuja tez branca não cora o sangue
é devidamente trabalhado na escola. Não parece haver americano; uma criança e um rafeiro que viram a luz no berço das
um cuidado para que se desenvolvam estratégias em que florestas, e brincam irmãos, filhos ambos da mesma terra selvagem.
o aluno consiga, durante a leitura, perceber o que está A lufada intermitente traz da praia um eco vibrante, que
ressoa entre o marulho das vagas:
relacionado às suas ideias e o que não está, por exemplo.
— Iracema!...
Além disso, esse objetivo parece estar ligado a textos mais O moço guerreiro, encostado ao mastro, leva os olhos
informativos do que literários. Dessa maneira, caso se presos na sombra fugitiva da terra; a espaços o olhar empanado
entenda que o resumo é mais informativo e objetivo do que por tênue lágrima cai sobre o jirau, onde folgam as duas inocentes
a obra literária, que possui inúmeras figuras de linguagem criaturas, companheiras de seu infortúnio.
e passagens mais sugestivas do que objetivas, pode-se Nesse momento o lábio arranca d’alma um agro sorriso.
Que deixara ele na terra do exílio?
afirmar que ele é mais apropriado para o tipo de avaliação
Uma história que me contaram nas lindas várzeas
que é feita pelos professores: obter uma informação de onde nasci, à calada da noite, quando a Lua passeava no céu
cunho mais geral. argenteando os campos, e a brisa rugitava nos palmares.
O argumento parece simples: se a avaliação feita <http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bn000014.pdf>
fragmento
acerca da obra literária aborda os fatos e se o resumo
apresenta-os objetivamente, então os alunos leem os
resumos. Mas como explicar cognitivamente que o resumo
é mais relevante em termos de custo-benefício?
56 Resumo: a relevância do objetivo de leitura

B – Resumo de Iracema, de José de Alencar é necessário buscar na memória enciclopédica informações


lexicais sobre o que significa, por exemplo, ente, lenho, tez,
Martim está numa jangada com seu filho e o seu
singrando, rafeiro, o que já implica certo custo cognitivo.
cachorro de estimação. De repente, ele ouve alguém gritar o
nome de Iracema e chora. Entretanto, caso o leitor não conheça essas palavras,
<http://pt.wikipedia.org/wiki/Iracema> fragmento provavelmente terá que procurá-las no dicionário, o que irá
aumentar consideravelmente o custo cognitivo.
O Princípio Cognitivo da Relevância (SPERBER e Após a decodificação, parte-se para a construção da
WILSON, 1995, p. 260) postula que a cognição humana explicatura e da implicatura6:
tende a ser guiada à maximização da relevância, ou seja, - Dito (após a decodificação): Três entes (seres)
maiores efeitos cognitivos com menores custos cognitivos. respiram sobre o frágil lenho (barco de madeira) que vai
Partindo da suposição de que a leitura também é regida singrando (navegando) veloce, mar em fora. Um jovem
pela maximização da relevância, podem-se explicar as guerreiro cuja tez (pele) branca não cora o sangue
preferências de leitura dos alunos. americano; uma criança e um rafeiro (cachorro) que viram
Primeiro, comparar-se-á, em termos de custo- a luz (nasceram) no berço das florestas, e brincam irmãos,
benefício, o texto original (A) com o resumo5 (B). A filhos ambos da mesma terra selvagem.
linguagem do texto de José de Alencar é muito rebuscada, - Explicatura: Três seres (jovem guerreiro, criança e
sendo que várias palavras não são usuais e muitas outras cachorro) respiram sobre o frágil barco que vai navegando
são desconhecidas pelos jovens. Considere as duas veloz, mar em fora. Um jovem guerreiro (Martim) cuja
primeiras frases do fragmento, que fazem parte do primeiro pele branca não cora o sangue americano (dele); uma
capítulo do livro: criança (Moacir) e um cachorro que nasceram no berço
das florestas (no Brasil), e brincam irmãos, filhos ambos
Três entes respiram sobre o frágil lenho que vai singrando da mesma terra selvagem.
veloce, mar em fora; - Premissas implicadas:
Um jovem guerreiro cuja tez branca não cora o sangue
S1: Três seres estão no mar viajando de barco: duas
americano; uma criança e um rafeiro que viram a luz no berço das
pessoas e um cachorro.
florestas, e brincam irmãos, filhos ambos da mesma terra selvagem.
S2: O jovem guerreiro não é brasileiro.
Provavelmente, para que se consiga decodificar (note S3: O jovem guerreiro estava lutando no Brasil.
que essa é uma primeira parte do processo de compreensão), S3: A criança e o cachorro nasceram no Brasil.
6
Segundo Sperber & Wilson (1995, p. 182), entre o código (ou dito) e aquilo que é
5
Não se trata, aqui, de discutir como o resumo é formado ou qual sua relação com implicado, está a explicatura, proposição explicitamente comunicada e base para
a obra original em termos de escrita. Trata-se apenas sobre a leitura, em que se raciocínios inferenciais. Parte-se das explicaturas para as implicaturas, que se
compara o resumo com um outro texto, no caso literário. desdobram em premissas e conclusões implicadas.
57 Cláudia Strey

Conclusão implicada 1: Jovem guerreiro, criança e cachorro É preciso observar que, nesse resumo, não aparece a
estavam no Brasil e estão indo embora de barco. descrição de quem são Martim e Iracema, o que faz com que,
O que pode ser visto nessa passagem é que o custo caso o leitor não saiba quem são as personagens, busque
cognitivo é alto, principalmente por causa da decoficação essa informação, o que levará a um maior custo cognitivo.
(palavras desconhecidas) e do processamento sintático, Ao comparar o processo inferencial de um trecho do
semântico e pragmático. Os efeitos cognitivos são altos, primeiro capítulo com o seu resumo, percebe-se que:
também, pois há várias premissas e suposições implicadas. - a quantidade de esforço mental exigido pelo
Observado o processo inferencial necessário para texto original é alta, pois os léxicos não são usuais, o
que se compreenda a primeira passagem da obra literária, que compromete, de certa maneira, o processamento
passa-se para a análise do resumo do capítulo em que o sintático e semântico;
fragmento está localizado (B): - não há quase esforço cognitivo no processamento
do resumo, pois as informações são ditas, não implicadas,
Martim está numa jangada com seu filho e o seu cachorro ou seja, quase não há necessidade de inferências;
de estimação. De repente, ele ouve alguém gritar o nome de
- há mais efeitos cognitivos no texto original, pois se
Iracema e chora.
derivam mais implicaturas, como a de que o jovem guerreiro
O processo de decodificação parece ser automático, não é brasileiro e a criança e o cachorro são – algo que não
pois não há palavras desconhecidas. Esse custo cognitivo é, é implicado no resumo;
portanto, praticamente nulo. Passa-se a analisar o processo - a primeira frase do resumo corresponde ao trecho
inferencial, com a construção da explicatura e da implicatura. analisado da obra literária em que as implicaturas são do tipo
- Explicatura: Martim está numa jangada com acarretamento (nota-se que a informação de que o jovem
seu filho (de Martim) e com seu cachorro (de Martim). guerreiro e a criança são parentes não é possível de ser
De repente, ele (Martim) ouve alguém gritar o nome de derivada no trecho observado. Somente após a leitura de
Iracema e (Martim) chora. toda a obra, pode-se fazer essa inferência, pois o primeiro
- Premissas implicadas: capítulo corresponde ao último acontecimento da narrativa);
S1: Martim tem um filho e um cachorro (por - poder-se-ia afirmar, segundo os princípios da Teoria
acarretamento). da Relevância, que ler a obra original é mais relevante, pois
S2: Martim, seu filho e seu cachorro estão viajando. há mais efeitos do que custos cognitivos.
S3: Martim sente saudade de Iracema (acessado Entretanto, mesmo que, na perspectiva da Teoria da
pelo léxico chora). Relevância, a leitura do texto original seja mais relevante,
Conclusão Implicada: Martim não queria deixar Iracema. como explicar que os jovens prefiram ler o resumo? Essa
58 Resumo: a relevância do objetivo de leitura

resposta pode ser dada caso se considere o objetivo D – Questão de vestibular


de leitura e, consequentemente, a avaliação feita dessa
leitura. Para tal, considere a análise entre um resumo da (UFU-MG/2001) Sobre Iracema, de José de Alencar, podemos
obra (C) e uma questão de vestibular (D), abaixo. dizer que:
1) As cenas de amor carnal entre Iracema e Martim são de tal
forma construídas que o leitor as percebe com vivacidade, porque
C – Resumo de Iracema, de José de Alencar tudo é narrado de forma explícita.
2) Em Iracema temos o nascimento lendário do Ceará, a história
Lenda criada por Alencar, Iracema explica poeticamente de amor entre Iracema e Martim e as manifestações de ódio das
as origens de sua terra natal. A ‘virgem dos lábios de mel’ tornou- tribos tabajara e potiguara.
se símbolo do Ceará, e o filho Moacir, nascido de seu amor com 3) Moacir é o filho nascido da união de Iracema e Martim. De
o colonizador branco Martim, representa o primeiro cearense, maneira simbólica ele representa o homem brasileiro, fruto do
fruto da integração das duas raças. Em Iracema, a relação índio e do branco.
amorosa entre a jovem índia e o fidalgo português Martim, 4) A linguagem do romance Iracema é altamente poética,
domina toda a obra. Toda a força poética do livro advém dessa embora o texto esteja em prosa. Alencar consegue belos efeitos
relação amorosa; os demais, a saber, a natureza, a bravura lingüísticos ao abusar de imagens sobre imagens, comparações
selvagem, a lealdade do índio etc., são elementos já tratados sobre comparações (sic).
em O Guarani e posteriormente em Ubirajara. Por outro lado, a
ação é reduzidíssima, o que dá ao livro um notável espaço lírico Assinale:
de que se valeu Alencar para escrever sua obra mais poética. A (A) se apenas 2 e 4 estiverem corretas.
desorientação inicial de Martim, jovem fidalgo português, que se (B) se apenas 2 e 3 estiverem corretas.
perdera nas matas, o surpreendente encontro com a jovem índia, (C) se 2, 3 e 4 estiverem corretas.
a hospitalidade do selvagem brasileiro, o ciúme do guerreiro, o (D) se 1, 3 e 4 estiverem corretas.
amor entre os representantes das duas raças - Iracema e Martim,
In: DESTRO, I. O CPV ajuda a ler FUVEST, UNICAMP e PUC 2007. São Paulo:
a rivalidade entre as tribos tabajara e potiguara, a nostalgia de CPV Editora, 2007.
Martim por sua terra natal, suas viagens e a tristeza de Iracema
com a mudança inesperada de seu amado, o nascimento de
Moacir, filho de dor, e a morte de Iracema. A questão de vestibular envolve conhecimentos gerais
Essa é praticamente a síntese da fábula do livro. sobre a obra literária, ou seja, é necessário que o leitor/aluno
Destaca-se, nesta obra, a linguagem bem elaborada de tenha um conhecimento amplo sobre o que a obra representa,
Alencar. O estilo é artisticamente simples, procurando recriar sua história e seus personagens. Não há necessidade de
a poesia natural da fala indígena, plena de comparações e conhecer os detalhes, as inferências vagas veiculadas pelo
personificações, o que dá ao livro as características de um
dito. Isso significa que, se o aluno tiver como objetivo de leitura
verdadeiro poema.
http://www.algosobre.com.br/resumos-literarios/iracema.html obter uma informação de caráter geral (SOLÉ 1998, p. 94), ele
59 Cláudia Strey

poderá ler somente o resumo, que, como visto anteriormente, - A ‘virgem dos lábios de mel’
possui linguagem mais direta e menor custo cognitivo. 3) Moacir é o filho nascido da tornou-se símbolo do Ceará,
Certamente, para responder à questão, são união de Iracema e Martim. e o filho Moacir, nascido de
De maneira simbólica ele seu amor com o colonizador
necessárias diferentes inferências e relações com o que foi
representa o homem brasileiro, branco, Martim representa o
lido. Entretanto, o resumo é mais objetivo e aborda aspectos fruto do índio e do branco. primeiro cearense, fruto da
amplos da obra; enquanto a obra em si possui uma linguagem integração das duas raças.
não usual, em que o próprio processo de decodificação já
- Destaca-se, nesta obra, a
demanda alto custo cognitivo. O resumo, assim, é suficiente 4) A linguagem do romance
linguagem bem elaborada de
para responder à questão, sem que haja necessidade da Iracema é altamente poética,
Alencar. O estilo é artisticamente
embora o texto esteja em
leitura da obra literária (e maior esforço de processamento), simples, procurando recriar a
prosa. Alencar consegue
como pode ser visto no quadro ilustrativo a seguir: poesia natural da fala indígena,
belos efeitos linguísticos ao
plena de comparações e
abusar de imagens sobre
Questão Trecho do Resumo personificações, o que dá ao
imagens, comparações sobre
livro as características de um
1) As cenas de amor carnal comparações.
verdadeiro poema.
entre Iracema e Martim são
de tal forma construídas Não há correspondência com Ao fazer uma análise entre os dois fragmentos,
que o leitor as percebe com o resumo
percebe-se que o resumo é suficiente para responder à
vivacidade, porque tudo é
narrado de forma explícita. questão. Ou seja, para uma questão cujo objetivo é verificar
aspectos gerais do texto, o objetivo de leitura também será
- A ‘virgem dos lábios de mel’
tornou-se símbolo do Ceará, esse: lê-se para ter uma ideia ampla do assunto. Caso
2) Em Iracema temos o houvesse questões que necessitassem de uma leitura com
e o filho Moacir, nascido de
nascimento lendário do
seu amor com o colonizador o objetivo de ler para aprender ou, até mesmo, ler literatura,
Ceará, a história de amor
branco, Martim representa o talvez a leitura da obra literária compensasse.
entre Iracema e Martim e as
primeiro cearense, fruto da Algumas considerações podem ser feitas:
manifestações de ódio das
integração das duas raças.
tribos Tabajara e Potiguara. - apesar de, segundo os princípios da Relevância,
- A rivalidade entre as tribos
Tabajara e Potiguara a obra literária ser mais relevante (maior custo, mas maior
benefício), na realidade escolar, os resumos são mais lidos,
pois estão relacionados a aspectos gerais do texto, assim
como a maior parte das avaliações;
- nesse contexto, o resumo parece ser mais
relevante, pois não haveria necessidade de tantos efeitos
60 Resumo: a relevância do objetivo de leitura

cognitivos. Em outro momento escolar, talvez a obra Levando em consideração que o estudo em interface
literária fosse mais relevante. deve ser feito de forma a gerar impactos nas áreas envolvidas,
Essas constatações trazem um grande problema para pode-se afirmar que o artigo trouxe importante questionamento
a Teoria da Relevância: a cognição humana parece ser dirigida para a Teoria da Relevância: a mente humana parece não ser
pelo baixo custo, e não pelo impacto do maior benefício. Isso guiada pelo maior benefício, mas pelo menor custo, o que
significa que a leitura de obra literária, muitas vezes, implica implicaria diretamente o Princípio Cognitivo da Relevância.
um custo cognitivo muito alto, que, apesar de gerar mais Além disso, pode-se questionar sobre o que é benefício, pois,
benefícios, não compensa. O resumo, porém, que apresenta em situações de sala de aula, ele parece não ser cognitivo,
menos benefícios, possui um custo também mais baixo. Para mas altamente real e objetivo (ir bem na prova, por exemplo).
que a leitura da obra literária compense (ou seja, o alto custo Em relação à Psicolinguística, uma das
seja compensado) na realidade escolar, há necessidade de um contribuições do artigo encontra-se no fato de que outra
benefício externo que também compense, como, por exemplo, variável parece ser essencial para saber como se dá o
ir bem em uma prova, ou passar no vestibular (lembrando que processamento de leitura na sala de aula. Além do tipo
para isso ocorrer, é necessário que a prova seja elaborada de texto, conhecimentos prévios e objetivo de leitura,
de forma a compensar custo). Assim como afirma Campos parece essencial que o tipo de avaliação da leitura seja
(2005), o princípio da inércia parece se impor, e não somente considerado. Como demonstrado, o leitor (e estudante) irá
em momentos de lazer, mas também de estudo. definir o modo como a leitura será feita de acordo com o
A maior parte dos alunos, portanto, parece despender que ele espera da avaliação. Cabe ao professor, assim,
energia cognitiva até que determinado objetivo seja direcionar a avaliação de acordo com o objetivo de leitura
alcançado. Se uma inferência resolve a questão proposta, que ele quer (obter informação geral, aprender).
para que concentrar esforços em duas? O objetivo central do trabalho – a construção da
interface – foi essencial para que o estudo pudesse ser
Considerações Finais feito. Sem a perspectiva de uma ou de outra área, talvez
os resultados não fossem tão elucidativos para o problema
Este artigo buscou demonstrar a necessidade construído. Dessa forma, o que se apresentou não foi uma
de construção de interfaces na Linguística para que se verdade absoluta sobre o objeto, mas uma perspectiva teórica
compreenda um objeto de estudo de forma diferenciada. Na interessante e que merece mais estudos e aprofundamentos.
interface entre Psicolinguística e Pragmática, procurou-se
mostrar que a leitura feita por estudantes do Ensino Básico RESUMO – O seguinte artigo objetiva demonstrar a construção
é guiada pelo menor custo cognitivo, aliado ao objetivo de de uma possível interface interna entre Psicolinguística e
leitura e ao tipo de avaliação feito.
61 Cláudia Strey

Pragmática a fim de explicar o processo inferencial durante Keywords: Psycholinguistics. Pragmatics. Relevance.
leitura. Para tal, constrói-se o objeto de estudo a partir da Purpose of reading. Evaluation.
observação da realidade: por que os estudantes parecem
preferir ler resumo a obra original? Argumenta-se que essa Referências
escolha se dá pelo menor custo cognitivo e não pelo maior
benefício, o que vai de encontro ao Princípio Cognitivo ALENCAR, José. Iracema. Disponível em <http://www.
proposto pela Teoria da Relevância (SPERBER & WILSON, dominiopublico.gov.br/download/texto/bn000014.pdf>.
1995). Além disso, o objetivo de leitura e o tipo de avaliação Acesso em 25 de novembro de 2010.
feita parecem interferir na escolha do que é mais relevante CAMPOS, Jorge. A teoria da relevância e as irrelevâncias
(em termos de custo-benefício). Por fim, mostra-se que a da vida cotidiana. Linguagem em (dis)curso – Teoria da
interface feita é uma interessante perspectiva teórica para Relevância. Editora Unisul, v. Esp., n. 5, 2005.
explicar os processos inferenciais envolvidos na leitura.
______. Ciências da Linguagem: Comunicação, Cognição
Palavras-chave: Psicolinguística. Pragmática. Relevância. e Computação – Relações Inter/Intradisciplinares. In:
Objetivo de leitura. Avaliação. AUDY, J. L. N. & MOROSINI, M. C. (Orgs.) Inovação
e Interdisciplinaridade na Universidade. Porto Alegre:
ABSTRACT – The following article aims to demonstrate a EDIPUCRS, 2007.
possible construction of an interface between Psycholinguistics ______. Leitura, cognição e inferência. IN: PEREIRA, V.
and Pragmatics in order to explain the inferential process in W.; SILVA, A. J. (et al.). Leitura e cognição: teoria e prática
reading. For this purpose, the object of study raises from the nos anos finais do ensino fundamental. Porto Alegre:
observation of reality: high-school students seem to prefer EDIPUCRS, 2009.
reading summaries than reading the original literary text. We
______. O texto jurídico. Disponível em <http://www.
argue that this choice is lead by lower cost and not greatest
jcamposc.com.br/O_Texto_Juridico.pdf>. Acesso em 10 de
cognitive benefit, which goes against the Cognitive Principle
novembro de 2010.
proposed by Relevance Theory (SPERBER & WILSON,
1995). Furthermore, the purpose of reading and the type CAVALCANTI, M. C. Interação leitor-texto: aspectos de
of evaluation might influence the choice of what is most interpretação pragmática. Campinas: UNICAMP, 1989.
relevant (in terms of effort-benefit). Finally, we show that this DESTRO, I. O CPV ajuda a ler FUVEST, UNICAMP e PUC
interface is an interesting theoretical perspective to explain 2007. São Paulo: CPV Editora, 2007.
the inferential processes in reading.
62 Resumo: a relevância do objetivo de leitura

GERBER, R. M. & TOMITCH, L. M. Leitura e cognicao: RUMELHART, D.E. Schemata: the building blocks of
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­­­
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UNISUL, 2010 . trabajos/c154.htm>. Acesso em 15 de novembro de 2010.
Influência da leitura no aprendizado da a leitura como a fonte em que o indivíduo adquire
escrita: uma incursão pela (in)consciência conhecimento linguístico, sem esforço ou intenção, de
maneira natural.
Com o exposto, partindo da pressuposição de que a
Ronei Guaresi1 leitura influencia a escrita, hipótese que buscarei confirmar
Fale com o autor
neste estudo, surgem algumas questões instigantes: a)
a leitura influencia na aquisição e no aprimoramento de
O desempenho dos alunos brasileiros no PISA2
elementos de todos os planos linguísticos? b) em todas as
deixa a todos os que prezam pela educação deste país pelo
faixas etárias? c) qualquer material de leitura pode influenciar,
menos constrangidos (INEP, 2010). Embora de 2000 para
mesmo textos com alto índice de informações novas, já
2006 tenha havido uma diferença positiva de 16 pontos,
que esses textos não encontrarão conhecimentos prévios?
os resultados dos alunos brasileiros devem, no mínimo,
(Ausubel e colegas (1983) chamam de subsunçores, ou
nos preocupar. Também constatando esse problema e
seja, elementos no cérebro que ancoram informações
buscando razões para os problemas do aproveitamento
novas); d) o objetivo de leitura é variável distintiva para essa
escolar, Gastaldo (2000, p. 104) em estudo sobre a
questão, já que é elemento que determina a(s) estratégia(s)
produção escrita de alunos do 1º ano do Ensino Médio
de leitura? e) essa influência pode ser explicada pela
concluiu que a escassez de leitura também pode ser uma
aprendizagem indireta, fora dos domínios da consciência?
das causas mais importantes dos desvios do registro
Sem a pretensão ingênua de acreditar que há, ou
formal escrito dos estudantes. Segundo o pesquisador, a
haverá, alguma resposta definitiva para as questões acima,
habilidade de expressão, sobretudo da expressão escrita,
o estudo em questão pretende contribuir com elementos
não se pode adquirir sem a leitura. Vocabulário mais amplo
para a discussão de respostas possíveis a algumas
e domínio de estruturas linguísticas mais complexas, tais
dessas questões. Isso se dará através de a) levantamento
como o uso da coordenação e da subordinação, são
bibliográfico de pesquisas que envolvam leitura e escrita
elementos linguísticos adquiridos predominantemente
e b) desenvolvimento, aplicação e análise de instrumento
pela leitura, antecipou o pesquisador.
cujo objetivo principal é verificar a aquisição de termos
Com uma linha de reflexão semelhante, Smith
lexicais e de estrutura de voz passiva por meio de leitura
(1983) sugere que é precipitado acreditar que a instrução
exclusivamente. A hipótese que norteia este estudo é de
prescritiva possa ser suficiente para transmitir o que um
que a leitura é importante ferramenta de aquisição da
escritor precisa saber. O pesquisador também aponta
escrita por meio de aprendizagem implícita.
1
Doutorando em Linguística pela PUCRS. Email: roneiguaresi@yahoo.com.br
2
Para uma análise mais criteriosa desse teste internacional ver em http://
www.inep.gov.br.
64 Influência da leitura ao desenvolvimento da escrita: uma incursão pela (in)consciência

Com esse intento, abordam-se a) os principais A compreensão do sentido em leitura, finalidade


elementos cognitivos envolvidos no ato de ler, b) a buscada pelo leitor, pressupõe automatização de uma
potencial influência da leitura à escrita, c) a (in)consciência série de processos, entre eles recodificação, decodificação
como fenômeno presente em nossas atividades diárias e, e interpretação. Segundo Poersch (1993), a recodificação
naturalmente, nos momentos de leitura, d) como o cérebro é o processo de substituição dos signos verbais escritos
percebe estímulos nos diferentes graus de consciência e pelos signos verbais sonoros e a decodificação é o
e) análise de uma experiência em leitura e seu reflexo em processamento e atribuição de significado aos signos
ditado e mostras de produção escrita. verbais. Segundo o autor, a interpretação envolve os
aspectos pragmáticos ligados ao ato de fala. A automatização
Leitura sob a perspectiva cognitiva desses processos permite que eles ocorram no cérebro
em paralelo, permitindo que os recursos atencionais do
Entender os elementos cognitivos envolvidos na leitor, amplamente limitados e seriais, possam ser levados
leitura permitem compreender, analisar e reforçar as a abstrair o sentido pretendido pelo escritor.
hipóteses deste trabalho. A bibliografia sobre o assunto A automatização desses processos está relacionada
sugere como hipótese mais provável de que quem lê mais à direção dos processamentos cognitivos que ocorrem no
escreve melhor, ou seja, de que a leitura é importante processamento da leitura, top-down e botton-up. O primeiro
ferramenta de aprendizagem da língua (GUARESI, 2004; tipo de processamento, top-down, ocorre na direção do mundo
FLORIANI, 2005). – elementos pragmáticos, conhecimentos prévios, entre outros
A leitura é uma das atividades cognitivas mais – às unidades menores do texto. No segundo, botton-up, o
impressionantes do cérebro humano. Afinal, através de processo é inverso, a direção é das menores unidades textuais
pistas linguísticas, absolutamente arbitrárias, o leitor é para fora do texto. Um aprendiz da leitura está tão preocupado
levado a reconstruir, pelo menos proximamente, o sentido na decodificação do texto, através do processamento botton-
pretendido pelo escritor. É uma atividade tão intensa e tem up, que a reconstituição do sentido fica comprometida pela
impacto tão significativo no cérebro que o pesquisador falta de recursos atencionais para tal processo.
Iván Izquierdo, diretor do Instituto do Cérebro do Hospital A compreensão de um texto lido decorre, dentre
São Lucas, a defende como uma atividade que atrasa o outros aspectos, de dosagem adequada de informações
aparecimento de problemas de memória. Segundo ele, “a novas e dadas. Quando todas as informações são dadas,
melhor recomendação possível para o exercício da prática ou conhecidas pelo leitor, a leitura de um texto torna-
da memória é ler, ler, ler” (IZQUIERDO, 2004, p. 51). se enfadonha e, sob o ponto de vista informacional, sem
benefícios, já que nada há de novidade. Por outro lado,
65 Ronei Guaresi

quando as informações são demasiadamente novas, o leitura. Muitas pesquisas apontam que a consciência de
leitor não encontra no cérebro conhecimentos prévios para determinado fenômeno potencializa a memorização do
significar aquela leitura e reconstruir o sentido pretendido mesmo. Contudo, pouco ainda se sabe sobre a influência
pelo escritor. A adequada dosagem pelo escritor na relação da leitura no aprendizado de múltiplos aspectos linguísticos
entre informações dadas e novas permite que o leitor, nem sempre possíveis de serem adequadamente
durante a leitura, faça antecipações, formule hipóteses que abordados no ensino formal, dada a complexidade que
ao longo da leitura são confirmadas ou não, ou seja, participa envolve o aprendizado da escrita. Como é possível ensinar
ativamente do processo de leitura (GOODMAN, 1976). formalmente todas as sutilezas que envolvem circunstâncias
O conhecimento prévio do leitor, portanto, é importante formais, tipologias textuais adequadas para cada momento
elemento na reconstituição do sentido. e intenção, estilo, entre outros aspectos?
O aprendizado da leitura representa impacto Smith argumenta a favor da tese de que as convenções
importante no cérebro. Segundo Dehaene, aprender da escrita penetram na mente sem que o sujeito se aperceba
a ler aumenta a nossa competência, adicionando uma do aprendizado que está ocorrendo. A aprendizagem para
representação ortográfica de nossas representações Smith (1983, p. 561) “(...) é inconsciente, sem esforço,
existentes da palavra falada. Esse aumento no espaço acidental, indireta e essencialmente cooperativa”. Para ele,
mental dedicado à codificação de idioma, talvez, consiste é cooperativa no sentido de que se aprende pela ajuda,
noutra grande diferença entre alfabetizados e analfabetos normalmente inconsciente, dos professores, dos pais,
- aprender a ler aproximadamente dobra a capacidade dos colegas mais competentes, dos clubes e de outros.
de memória de curto prazo3 (DEHAENE, 2010). Mesmo crianças muito pequenas aprendem as sutilezas
Segundo esse autor, o cérebro de um leitor proficiente foi de gesticulação, de entonação, de coesão, de níveis
profundamente transformado pela escolarização precoce de linguagem, e sem qualquer educação formal. Ainda
e intensa que caracteriza a nossa sociedade. Segundo o conforme o mesmo autor, as crianças instruem-se nos
autor, aprender a ler profundamente humaniza o nosso clubes a que pertencem, ou seja, aprendem primeiramente
cérebro, especialmente num setor especializado da via com os pais, com os coleguinhas, mais tarde com os heróis
ventral visual esquerda, que lida eficientemente com preferidos, com os ídolos, sempre com base no critério de
símbolos escritos, sendo um dos pontos de entrada do seletividade desses clubes. Ela aprende a língua sem que
sistema de linguagem no hemisfério. ninguém precise ensiná-la formal e explicitamente e sem
Smith (1983) defende a ideia de que muito dos que trabalhe conscientemente para isso.
conhecimentos necessários para a escrita se devem à O autor estende esse conceito para o aprendizado
3
É possível ver mais sobre o impacto da leitura no cérebro em www.unicog.org – da escrita. Para ele, aprende-se a escrever, lendo. Na maior
uma unidade cognitiva de neuroimagem em Paris, dirigido por Stanislas Dehaene.
66 Influência da leitura ao desenvolvimento da escrita: uma incursão pela (in)consciência

parte do tempo dedicado à leitura, um leitor proficiente (In) Consciência e aprendizagem implícita
recebe informações a respeito da gramática que são
captadas sem que se perceba, de forma inconsciente. Os novos achados das neurociências sugerem
Os estudantes, na aprendizagem da escrita, precisam que os estímulos são percebidos pelo cérebro tanto pela
encontrar e assimilar uma multiplicidade de fatos e exemplos via da consciência quanto pela via da inconsciência.
que variam desde grafias individuais à organização Estímulos percebidos pelo cérebro significam alterações
adequada de textos completos. Smith (1983) sugere que é das conexões sinápticas e essas alterações significam
precipitado acreditar que a instrução prescritiva possa ser aprendizagem. Aprender é, em última análise, alterar a
suficiente para transmitir pelo menos parte daquilo que um força das conexões sinápticas no cérebro.
escritor precisa saber. Diante disso, Smith (1983, p. 560) Nesse sentido, a todo o momento aprende-se em
conclui que “a prática e a orientação podem ajudar a refinar múltiplas atividades como assistir a um filme, conversar com
habilidades de escritura, mas não podem, de modo algum, alguém, escutar uma música, assistir à televisão, passear
explicar a sua aquisição”.4 Ou seja, segundo o autor, a no shopping, navegar pela internet, conhecer alguém, dirigir,
educação formal tem sua parcela de contribuição para o olhar e apreciar uma janta, um vinho, um perfume, ou seja,
aprimoramento da prática da escrita; porém, grande parte altera-se a força de conexões em tudo o que fazemos,
dos elementos constitutivos de qualquer texto é aprendida inclusive e especialmente durante a leitura. Ao olhar para
sem grande esforço. Segundo ele, os textos estão aí e alguém, ativam-se todas as conexões que particularizam
contêm todo conhecimento necessário para o domínio aquele indivíduo como a fisionomia, a cor do cabelo, o jeito de
prático da escritura. Para o autor, a leitura e a escrita são falar, o timbre de voz, a maneira de andar, etc. Esse conjunto
interdependentes, pois a escrita, de estímulos ativam e/ou reforçam as conexões existentes
que dão conta das particularidades desse indivíduo.
requer enorme bagagem de Esses estímulos, contudo, são percebidos pelo cérebro
conhecimentos específicos que não
predominantemente fora do domínio da consciência. Uma
podem ser adquiridos em palestras,
livro-texto, treinamento, tentativa e vez ativados reforçam as sinapses daquele conhecimento. A
erro, ou mesmo pelo próprio exercício simples visualização do indivíduo diariamente reforça aquele
da escrita5 (Smith 1983, p. 558). conhecimento a ponto de ficar plenamente disponível para
eventuais evocações. Lembrar-se de alguém que não vemos
4
Practice and feedback may help to polish writing skills, but cannot account for todo dia exige do cérebro maior esforço de processamento
their acquisition in the first place. para evocar o nome, por exemplo, o que nem sempre é
5
(...) I was left with the shattering conundrum that writing requires an enormous
fund of specialized knowledge which cannot be acquired from lectures, textbooks, possível. Por outro lado, é fácil e rápido lembrar-se do nome
drill, trial and error, or even form the exercise of writing itself.
67 Ronei Guaresi

de um irmão, por exemplo, cujas conexões sinápticas são da experiência, mas como aquisição de conhecimento, por
reforçadas diariamente. Como é possível esquecer, por processos tanto implícitos quanto explícitos. Tal posição,
exemplo, o nome de um irmão com o qual convivo? Quanto segundo eles, tem como vantagem uma visão não reducionista
mais reforçada determinada conexão mais disponível ela do processo de aprendizagem, diversa de perspectivas que
ficará. Ocorre também que assim como um músculo que a veem ou só como mudança de comportamento, ou apenas
se não usado se atrofia, nossos conhecimentos, se não como mudança de processos e representações. O primeiro
ativados, se esmaecem com o tempo. caso trataria dos processos implícitos, como a associação,
De qualquer experiência nosso cérebro abstrai algo, e os segundos dos explícitos, como a reestruturação. O
contudo, ele retém muito mais informações de nossas processamento tanto explícito quanto implícito é realizado
experiências do que aquilo que se pode falar a respeito. pelo cérebro de forma a detectar regularidades ambientais e
Aquilo que o cérebro adquire, sem que se tenha consciência, realizar cômputos probabilísticos acerca dos estímulos.
é chamado de conhecimento implícito e o processo de Nesse sentido, podemos ver que mesmo crianças
armazenamento desse tipo de conhecimento é chamado ainda não alfabetizadas em idade pré-escolar são
de aprendizagem implícita. A principal característica do capazes de identificar classes de palavras como verbos,
processo de aprendizagem implícita é a ausência da baseadas em regularidades como a sua terminação
consciência e da intenção sobre o processo de percepção (LITMAN e REBER, 2005). Como isso seria possível se
do conhecimento por parte do sujeito. não pudéssemos abstrair regularidades do input que
A crença de Smith sobre o aprendizado implícito recebemos? Entretanto, as crianças não permanecem
– aprendizado inconsciente – encontra respaldo em nesse estágio de mera discriminação ou associação
recentes estudos neurocientíficos. Cabe uma ressalva ao do som final com o tipo de palavra, pois aprendem a
termo aprendizagem que, a meu ver, não é prontamente identificar e extrair significado de verbos na escrita, de
adequado para a circunstância. A meu ver, o termo que modo flexível, estando eles expressos em terminações
mais bem responde para o que se quer é o termo aquisição, variadas como tempo, pessoa, entre outros aspectos. São
já que não pressupõe ensino. Adquirir pressupõe a ainda capazes, em um segundo momento, baseadas em
ocorrência de alterações na força das sinapses sem que seu conhecimento gramatical, de usar um verbo de modo
se queira ou que se faça algum esforço. Nesse sentido, correto, mesmo que nunca o tenha encontrado antes.
parece adequada a afirmação de que se adquire um O conhecimento procedimental é essencialmente um
primeiro idioma e aprende-se um idioma adicional. conhecimento adquirido pelo que se chama de aprendizagem
Dienes e Perner (1996) concebem a aprendizagem implícita. Grande parte do conhecimento declarativo, por sua
humana não só como um processo de mudança resultante vez, é adquirido pela aprendizagem explícita.
68 Influência da leitura ao desenvolvimento da escrita: uma incursão pela (in)consciência

Em se tratando da consciência, é notório que a no cérebro procura marcas da consciência. Em todas as


mesma tem sido negligenciada pela ciência, por sua vezes que o cérebro é estimulado, Dehaene mostrou
natureza imensurável e obscura. Segundo Flores (2009), que os participantes eram conscientes de apenas uma
um dos principais motivos foi de caráter religioso. Segundo parte muito pequena de todos os estímulos percebidos.
a pesquisadora, as crenças existentes nos vários períodos Na entrevista à Edge, Dehaene (2009) cita o exemplo de
da história da humanidade propiciaram que se criassem algumas garrafas em que há uma etiqueta vermelha. Muito
obstáculos e objeções as mais estapafúrdias às investigações dificilmente as etiquetas, se não citadas como exemplo,
em andamento, inclusive, problemas de aceitação social aos seriam processadas pelo cérebro no nível da consciência,
estudiosos da temática. Atualmente, contudo, especialmente embora a informação das etiquetas vermelhas estivesse
com o advento da tecnologia, alguns autores têm procurado presente na retina de todos o tempo todo.
desmitificar e desenvolver hipóteses sobre a consciência Então, quais seriam os limites da relação linguagem
humana (FLORES, 2009; DEHAENE, 2009) especialmente e consciência no cérebro? No que diz respeito à
de aspectos que Steven Pinker chama, ao tecer comentário inconsciência pode-se reconhecê-la em dois aspectos: a)
sobre a exposição de Stanislas Dehaene à Fundação Edge6, estímulos percebidos no tempo anterior ao processamento
de cientificamente tratáveis. consciente e b) estímulos percebidos em paralelo ao
Ao se falar de consciências, fala-se em graus de processamento consciente.
consciência, numa das extremidades da escala da consciência Dehaene afirma que ao piscar palavras em uma tela
é a inconsciência. Segundo Flores (2009), é impossível por um período de aproximadamente 30 milissegundos, não
ignorar que o ser humano pode apresentar diferentes haverá energia suficiente no estímulo para que se possa vê-
graus de consciência, equilibrando-se no limiar entre um lo. O cérebro, contudo, percebe o estímulo sem problemas.
processo interno inconsciente e um produto da consciência O pesquisador revela que ao considerar o tempo zero o
daí emergente, podendo, ainda, dar mostras de absoluta momento em que a primeira palavra aparece na tela, a
inconsciência. Deixar de lado a inconsciência significaria, de diferença entre o processamento consciente e inconsciente
acordo com a autora, adotar uma postura reducionista. está entre 270-300 milissegundos. Durante esse quarto
Nesse contínuo que caracteriza a consciência, de segundo pode-se observar uma série de instâncias de
claro está que a linguagem e a (in) consciência enredam- acesso lexical, acesso à semântica e outros processos sem
se em muitos aspectos. Dehaene ao estudar a linguagem que o sujeito se dê conta conscientemente do estímulo.
6
Entrevista concedida à chamada Fundação Edge em 17 de outubro de 2009. A Claro está que o processamento subliminar ou
Fundação Edge foi criada em 1988 como uma consequência de um grupo conhe- inconsciente pode mesmo continuar depois de um quarto
cido como The Reality Club que se caracteriza de uma reunião de caráter informal
com as mentes mais interessantes do mundo para discutir questões intelectuais, de segundo. Em qualquer atividade que façamos há muitos
filosóficas, literárias e artísticas. Ver mais em http://www.edge.org/about_edge.html
69 Ronei Guaresi

estímulos concorrentes e apenas uma fração destes é Segundo o autor, ao se fazer experiência com
percebido pelo cérebro de maneira consciente. A leitura é fMRI, o que se pode ver são duas grandes diferenças
atividade privilegiada como exemplo dessa natureza. Um entre o processamento consciente e o inconsciente. A
leitor proficiente que aparentemente lê para reconstruir o primeira diferença diz respeito à intensidade e localização
sentido, seguramente está processando paralelamente da ativação. É possível observar, no processamento
muitos estímulos sob a via da inconsciência. consciente, um aumento da ativação das mesmas áreas
Em relação às marcas da passagem da inconsciência do processamento subliminar ou inconsciente, contudo, a
para a consciência, Dehaene afirma que a ressonância ativação pode ser até dez vezes mais intensa. A segunda
magnética funcional (fMRI) só permite que se veja o diferença é que o processamento consciente ativa outras
padrão estático de ativação em uma escala de um ou áreas distantes do cérebro, incluindo o córtex pré-frontal;
dois segundos. Com outras técnicas, tais como eletro ou em particular, ativação na região frontal inferior e nos
magneto-encefalografia, no entanto, pode-se realmente setores parietal inferior do cérebro.
seguir em tempo, milissegundo por milissegundo, como
avança a ativação de um local para o outro. Pesquisas relevantes ao tema
Retornando à inconsciência, a apresentação de um
estímulo em condição subliminar não significa, segundo Além das pesquisas já citadas sobre o assunto em
Dahaene (2009), que o córtex não o processe. Algumas questão, há outras que merecem destaque. Dentre elas, Astrin
pessoas pensaram inicialmente que o processamento (1993), Johstrone, Ashbaugh e Warfield (2002) e Norman
subliminar significava processamento subcortical. Mailer (2003) mostraram através de estudos criteriosos que
Dehaene, nesse aspecto, afirma que essa defesa é a prática em escrita melhora a habilidade em escrita.
completamente falsa. Pesquisas com neuroimagem Reber (1967) mostrou que os sujeitos aprenderam
mostram que há ativação cortical de estímulos verbais as regras de uma gramática artificial, sem saberem explicar
subliminares. Os estímulos verbais subliminares ativam como eles haviam aprendido a tarefa. Os sujeitos foram
inicialmente o córtex visual, e percorre as áreas visuais da capazes, ainda, de transferir as habilidades aprendidas
face ventral do cérebro. Se as condições forem adequadas, para uma segunda gramática com estrutura equivalente,
uma palavra subliminar pode mesmo alcançar níveis mais mas com letras diferentes. Isso sugere que o que fora
altos de processamento, incluindo níveis semânticos. Para aprendido foram as regras e não as letras.
Dehaene (2009), a mensagem subliminar pode viajar todo A natureza implícita da aprendizagem também
o caminho até o nível do significado da palavra, tudo isso é mostrada pelo fato de que os sujeitos conseguem
sem qualquer forma de consciência. melhorar o desempenho na execução de tarefas abstraindo
70 Influência da leitura ao desenvolvimento da escrita: uma incursão pela (in)consciência

inconscientemente regularidades (NISSEN e BULLEMER, Guaresi (2004), em estudo com alunos de 8ª


1987; NISSEN, KNOPMAN e SCHACTER, 1987). série do Ensino Fundamental, mostrou que alunos com
A aprendizagem claramente tende a ser melhor maior experiência em leitura apresentavam desempenho
quando se está acordado. Embora que nem tudo possa linguístico melhor que alunos com pouca ou nenhuma
ser aprendido durante o sono, as pesquisas mostram que a experiência de leitura diária. Floriani (2005), em estudo
aprendizagem é possível na ausência da consciência normal. com alunos de 4ª série do Ensino Fundamental, observou
Há evidências, ainda, de que o sono pode ajudar a consolidar que a leitura influenciou na aprendizagem implícita de
o que já aprenderam (DRUCHMAN e BJORK, 1994, p. estruturas da voz passiva da Língua Portuguesa.
258-259). Medidas implícitas, como o priming, sugerem Os estudos acima sugerem clara influência da
que algumas aprendizagens podem ocorrer sob anestesia leitura no aprendizado da escritura. Igualmente, os
(ANDRADE, 2005; DEEPROSE e ANDRADE, 2006). estudos parecem sugerir que o aprendizado se dá de
Hazeltine, Grafton e Ivry (1995; 1997) mostraram forma indireta, implícita, sem que se deseje explicitamente
em um estudo de neuroimagem que aprendizagem com aprender aquela estrutura, ou seja, de forma inconsciente,
condição implícita envolveu área do córtex motor esquerdo situações que requerem menos ou nenhuma atenção e
e o córtex motor suplementar, ao passo que a passagem consciência às estruturas da gramática.
para o hemisfério direito ocorreu nas condições de tarefa
simples, com o córtex pré-frontal direito, córtex pré-motor e Metodologia
no lobo temporal direito.
Elley et al. (aput STOTSKY, 1983) mostraram Participaram deste estudo 30 alunos de uma escola
que alunos que estudaram exclusivamente literatura ou particular de Porto Alegre, de 5ª a 8ª séries, divididos em
dedicaram-se a leituras adicionais ao invés de frequentarem dois grupos de 15: grupo de controle e grupo experimental.
aulas de gramática, tiveram um desempenho melhor em Foram adaptadas 33 fábulas com as seguintes
atividades de escritura que aqueles que estudaram apenas alterações: a) 106 ocorrências de voz passiva (foram
gramática tradicional ou transformacional. agregadas 100 ocorrências, sendo que 6 faziam parte da
Heys (1962), Christiansen (1965) e De Vries (1970) escritura original); b) 100 ocorrências do termo todavia e c)
(aput STOTSKY, 1983) comprovaram uma maior eficiência 33 ocorrências do termo compreenção (propositalmente com
de programas adicionais de leitura sobre programas de ç) em substituição ao termo moral no final de cada fábula.
estudo especialmente direcionados à prática da escrita, O grupo controle leu as fábulas originais e o grupo
para o aperfeiçoamento da escritura. experimental leu as fábulas adaptadas. Após a leitura das
fábulas pelos alunos foi aplicado teste para levantamento
71 Ronei Guaresi

dos dados com as seguintes características: a) frases com Outro aspecto que chama a atenção é o baixo número
lacunas para serem completadas pelos participantes, sendo de ocorrências para o grupo experimental. Apesar de terem
que 50% delas eram distratoras e outras 50% para serem um input de 100 ocorrências do termo todavia, a opção
respondidas com alguma conjunção adversativa (investigou- na maioria das vezes foi pela conjunção mas. Contudo,
se aqui se os leitores usaram ou não o termo todavia); b) mesmo que de maneira não significativa estatisticamente,
breve ditado em que entre as palavras ditou-se a palavra observou-se que 2 sujeitos usaram o termo todavia. Um dos
compreensão (investigou-se aqui se os participantes sujeitos usou duas vezes. O uso do termo pelos sujeitos
escreveram o termo com s ou ç); c) escritura de breve texto pode ter sido influenciado pela leitura. É possível deduzir
tomando como motivação a história em quadrinhos Bolsa que essa quantidade de input é abaixo do requerido para
Amarela utilizada por Floriani (2005) também para motivar mostrar resultado significativo.
produção de texto. Essa história é constituída de 11 quadros Os dados a respeito da grafia do termo compreensão
e sugere uma menina jogando uma bolsa no lixo e uma e sua variação compreenção podem ser visualizados na
segunda menina ficando feliz em encontrar a bolsa. Tabela 2. O mesmo ditado foi feito a todos os participantes.

Resultados e discussões Tabela 2 – Grafia do termo compreensão e sua variação

Grupo controle Grupo experimental


Os dados levantados a respeito do uso do termo
todavia podem ser visualizados na tabela 1. Cada sujeito Grafia 1 – compreensão 7/15 6/15
poderia usar até 20 vezes o termo todavia. Como são 15 Grafia 2 – compreenção 8/15 9/15
sujeitos de cada um dos grupos, o número de ocorrências
possíveis era de 300.
Os dados da Tabela 2 chamam a atenção para
Tabela 1 – Ocorrências do termo todavia alguns aspectos: a) alto índice de desvio da norma culta
do Grupo Controle, mais da metade dos participantes: 8; b)
Grupo controle Grupo experimental
diferença não significativa dos resultados dos grupos.
Número de ocorrências 0/300 3/300 Os dados levantados tornam qualquer conclusão
Esses dados chamam a atenção para alguns definitiva como precipitada, uma vez que os dados do Grupo
aspectos. Dentre eles, a inexistência de ocorrências do Experimental não permitem sustentar a hipótese deste
termo para o grupo de controle. O uso do termo é incomum estudo, de maneira significativa, embora 9 sujeitos do grupo
pelos participantes avaliados. experimental tenham grafado a variação compreenção e 6
compreensão. O grupo controle 8 sujeitos grafaram a variação
72 Influência da leitura ao desenvolvimento da escrita: uma incursão pela (in)consciência

compreenção. Esses números podem ter sido influenciados em consideração a estrutura sintática e a diferença pouco
pelo input recebido pelos participantes. Seguramente há aqui significativa em relação a elementos lexicais?
uma questão metodológica, especialmente na quantidade de Os resultados deste estudo corroboram os achados
input e no número de participantes que deve ser reestruturada de Floriani (2005) em relação à aquisição da estrutura
para avaliação das hipóteses. da voz passiva. Em relação à influência da leitura no
Os dados a respeito da ocorrência de voz passiva, aprendizado de elementos linguísticos, mesmo a diferença
como podemos ver na Tabela 3, são mais esclarecedores. não sendo significativa, seguramente por questões
Enquanto na mostra de produção textual não se observou metodológicas, esses resultados estão de acordo com
nenhuma ocorrência de voz passiva no Grupo Controle, Guaresi (2004), Litman e Reber (2005), Reber (1967),
no Grupo Experimental 6 dos sujeitos somaram 16 Nissen e Bullemer (1987), Nissen, Knopman e Schacter
ocorrências de voz passiva. (1987), Heys (1962), Christiansen (1965), De Vries (1970),
os últimos três citados por Stotsky (1983).
Tabela 3 – Ocorrência de voz passiva Esses resultados, pelo menos parte deles, reforçam
Grupo controle Grupo experimental a tese de Smith (1983) sobre a influência da leitura no
Voz passiva 0 16 aprendizado da escrita que, segundo o pesquisador, ocorre
incidentalmente, sem esforço e de maneira indireta.
Esses dados permitem afirmar com mais segurança
Considerações finais
que os seis sujeitos foram influenciados pela leitura
realizada. Possivelmente aqui ocorreu aprendizagem
Embora os resultados não tenham sido significativos,
indireta e pela via da inconsciência.
a hipótese de que a leitura é importante ferramenta de
Expostos esses dados, cabem duas questões que
aquisição da escrita pode ser reforçada. A aquisição de
ficam para reflexão e debate: a) definiu-se metodologicamente
diferentes níveis da língua – neste estudo lexical e sintático
que a leitura das 33 fábulas pelos participantes ocorresse
– é possível por meio da chamada aprendizagem implícita.
a partir das três horas da tarde, enquanto a aplicação do
A maior parte dos estímulos são percebidos
instrumento para levantamento dos dados ocorresse a partir
pelo nosso cérebro sob a via da inconsciência. Esses
das oito horas. Diante disso cabe a questão: se o instrumento
estímulos, como cita Dehaene (2009), são processados
para o recolhimento dos dados fosse aplicado logo após
pelo cérebro humano não apenas subcorticalmente, mas
o término da seção de leitura, os resultados não seriam
também no córtex. A partir dessa afirmação é possível
diferentes? b) como explicar o fato de o mesmo material de
defender a tese de que parte do conhecimento declarativo
leitura mostrar boa diferença entre os dois grupos se levadas
73 Ronei Guaresi

que adquirimos é de forma implícita. Claro está que o cérebro processa estímulos tanto sob a via da consciência
conhecimento procedimental ou não declarativo é adquirido quanto sob a via da inconsciência. Nesse cenário, a leitura
predominantemente pela via da inconsciência. é importante instrumento, pois oferece múltiplos estímulos
A leitura é uma das importantes atividades de linguísticos, alguns dos quais não são possíveis de a
estímulos indiretos aos leitores. Os resultados confirmam educação formal dar conta, proporcionando aprendizado
que é importante a estimulação dos alunos para a leitura, implícito de elementos da língua. No presente estudo
devido aos benefícios por ela proporcionados, benefícios e foram adaptadas 33 fábulas de tal forma que tivessem
aprendizados nem sempre possíveis pela instrução formal. Se múltiplas ocorrências de estruturas de voz passiva e de
de fato acreditamos que as atividades de leitura e de escritura determinados termos lexicais. Os participantes, alunos
envolvem quantidade considerável de conhecimentos, então, de 5ª a 8ª série do Ensino Fundamental, foram divididos
cabe-nos concordar com a afirmação de Smith (1983) que em dois grupos: experimental e controle. Os resultados
pouco pode ser encontrado dentro da educação formal. sugerem que houve aprendizado implícito de parte dos
Isso não significa dizer que a consciência não seja elementos linguísticos manipulados.
necessária à aprendizagem. Dentro dessa perspectiva,
impõe-se, como tarefa fundamental do professor, repensar Palavras-chave: Aprendizagem Implícita. Inconsciência.
constantemente a abordagem da leitura em aula. É Leitura. Voz Passiva. Léxico.
necessário que se verifiquem os meios de que a escola
dispõe, para otimizá-los, incentivando os alunos a lerem. ABSTRACT - This study aims at arguing in favor of the view
Por isso, a reflexão sobre métodos de ensino que deem that reading is an important tool for learning writing. According
prioridade às habilidades efetivas de ler, escrever e a to Dehaene (2009), the brain processes stimuli both through
toda forma de expressão linguística devem sobrepor-se consciousness and unconsciousness. In this frame, the
ao ensino puramente gramatical. Talvez uma adequada reading is an important instrument since it offers multi-linguistic
abordagem da leitura seja uma das principais iniciativas para stimuli, some of which are not possible to formal education
o desenvolvimento da educação brasileira e a ascensão to approach them all, providing implicit learning of language
dos alunos brasileiros em testes internacionais como o elements. In the present study 33 fables were adapted so
PISA, referido anteriormente. that they had multiple occurrences of passive structures and
certain lexical terms. The participants, students from 5th to
RESUMO - O presente estudo objetiva argumentar em 8th grade of elementary school, were divided into two groups:
favor da tese de que a leitura é importante ferramenta para experimental and controlling group. The results suggest an
o aprendizado da escrita. Como mostra Dehaene (2009), o implicit learning of part of manipulated linguistic elements.
74 Influência da leitura ao desenvolvimento da escrita: uma incursão pela (in)consciência

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Fatores compartilhados no processamento examinássemos as diferenças cruciais entre os processos
de leitura em ambas as línguas, conferindo à leitura em
de leitura em L1 e L2
L2 o status de fenômeno único, considera-se importante
salientar os fatores em comum que sustentam a base para
Lisiane Neri Pereira1 leitura, seja em L1 ou L2.
Fale com a autora Primeiramente, colocaremos nossa compreensão
sobre o que é leitura, dentre tantas compreensões,
A habilidade de ler é reconhecida como sendo a assumindo os componentes de leitor, texto e sua interação
mais durável e estável dentre as habilidades de linguagem para definir o ato de ler ou decodificar um texto.
em uma segunda língua (BERNHARDT, 1991). Em
decorrência de ser uma atividade de linguagem, a leitura Leitura e leitor
não envolve somente a decodificação de sinais escritos
ou impressos, mas também, habilidades cognitivas, tais Quaisquer definições sobre leitura devem
como inferência e memória para a extração do sentido de considerar aspectos cognitivos, como por exemplo,
mensagens escritas. memória e inferência, para a extração de sentido de
Entendemos também que leitura em L1 e L2 mensagens escritas, além do simples ato de decodificação
compartilha de elementos básicos, ainda que ambos da linguagem escrita. A leitura é, portanto, uma habilidade
os processos variem significativamente, acalentando a linguística que recruta o engajamento de consciência e a
discussão sobre a existência de dois processos cognitivos familiaridade com aspectos óbvios da linguagem, como
paralelos em atividade ou de compartilhamento de estratégias sintaxe e conhecimento lexical. Resumidamente, uma
de processamento para a acomodação de ambas as línguas. definição abrangente de leitura recai sobre a interpretação
Ainda no âmbito da leitura, salientamos a bem sucedida de um texto envolvendo o leitor, o texto e a
marginalização de pesquisa em leitura em L2, no sentido interação entre leitor e texto (RUMELHART, 1985).
de que a maioria dos estudos colocam a leitura em L2 como O leitor, engajado como a parte ativa do processo,
sendo derivada da leitura em L1 ou, ainda, frequentemente baseia-se em suas experiências prévias sobre o aprendizado
vista como uma versão mais lenta da mesma tarefa em da leitura, educação e também na maneira em que a
língua nativa. Tais comparações nos levam a entender que leitura se ajusta às suas necessidades. Algumas fontes
tarefas em L2, principalmente de leitura, são tarefas de experienciais que podemos citar incluem a influência familiar,
mapeamento, ou seja, tarefas de substituição de um modo comunitária, escolar, cultural e influência de características
de comportamento por outro. Nesse sentido, ainda que individuais de cada leitor. Veremos, a seguir, como cada
1
Email: lisiane.neri@acad.pucrs.br ou lisilon@hotmail.com
77 Lisiane Neri Pereira

uma delas contribui com informações específicas, as quais A influência cultural, além de englobar os fatores
serão utilizadas no momento da decodificação de um texto. familiares, comunitários e escolares, é associada a fatores
Seja individualmente ou em conjunto, os hábitos de cognitivos de um grupo, ou seja, enfatiza a maneira pela
leitura de uma família, especialmente de pais e adultos, qual um grupo interpreta o ambiente em que vive. Indivíduos
são notados desde cedo, modelando o comportamento portam diferentes conhecimentos de mundo e estes se
de futuros leitores no âmbito de conferir à leitura uma refletem através de sua música, linguagem e expressão
importante ferramenta para a aquisição de informação pela arte. A cultura, portanto, caracteriza-se como um filtro
sobre profissões, eventos no mundo, lazer, manutenção que permite realçar padrões e atitudes aprendidos.
de equipamentos domésticos e explorar novos interesses. Devido à ampla gama de diferenciação entre os
Ao observar os hábitos de leitura em uma família, surge backgrounds individuais, tais características permitem uma
em futuros leitores a ideia de que a atividade confere percepção variada durante o processo de leitura. Essa
novas perspectivas, conhecimentos e ideias. percepção, então, é auxiliada pelos estilos individuais de
Complementando a estrutura familiar, a aprendizagem de leitura, níveis de motivação, atitude,
comunidade provê experiências sob diferentes aspectos, inteligência, inibição, ansiedade, autoestima e tomada de
ou seja, pessoas que crescem em fazendas, cidades, risco frente a novas situações. A influência de características
metrópoles, apropriam-se de suas diversas atividades, individuais retoma o debate natureza e ambiente, ou a
desde tarefas com agricultura a ida a eventos urbanos, dicotomia conhecida por nature versus nurture, ambos os
enraizando memórias específicas e conceitos mentais escopos operacionalizando na influência do aprendizado à
relacionados aos ambientes, formando um background leitura e auxiliando na formação de perspectivas que serão
de experiências que serão ressaltadas para um acesso formadas durante a leitura. Crenças e hábitos advindos
mais facilitado da informação. das experiências de vida formam conhecimentos que
Além das fontes mencionadas, a escola pode serão trazidos ao texto, criando um esquema particular que
proporcionar o contato dentre os diversos backgrounds definirá o grau de sucesso na compreensão de um texto.
ou, também, quando instituição de natureza homogênea, Dentre os modelos de processamento de leitura,
refletir valores compartilhados. Ainda assim, memórias bottom-up, top-down e o modelo interativo, descritos por
e formação de hábitos de leitura podem dar-se pelas Rumelhart (1985), entendemos que este último seja o
estratégias utilizadas na leitura escolar e seus objetivos, mais utilizado pelos leitores, uma vez que assume os dois
ou seja, leituras para avaliação de compreensão, para a primeiros componentes, propondo uma visão simultânea
identificação de léxico ou, ainda, objetivar conhecimentos dos processos de leitura. Respectivamente, os modelos
de passagens específicas no texto. bottom-up e top-down, referem-se à construção da
78 Fatores compartilhados no processamento de leitura em L1 e L2

leitura a partir de unidades menores do texto e à carga Além disso, sintaxe, gramática e vocabulário serão
de conhecimento trazida ao texto, confirmando ou não as utilizados para garantir a relação implícita ou explícita entre
expectativas do leitor em relação ao texto. as ideias de um autor, garantindo uma coesão expressiva
O modelo interativo de processamento de leitura peculiar em um texto. A familiaridade com os termos e
também pode ser denominado modelo interativo- estruturas utilizados contribuem também para as nuances
compensatório, proposto por Stanovich (1980), o qual interpretativas que surgirão a partir da leitura.
sugere que leitores utilizam de informação contextual
para compensar habilidades não satisfatórias para o Interação entre leitor e texto
reconhecimento de palavras. Dos componentes desse
modelo, a Facilitação Contextual ou Facilitação de Percepção Os elementos da leitura relacionados anteriormente,
de Palavras, não é característica comum de leitura normal; o leitor e o texto, ainda que cruciais, por si só não garantem
ao contrário, ao utilizar-se dessa estratégia, bons leitores a compreensão dos símbolos escritos. É necessário que
estariam desperdiçando capacidade cognitiva, uma vez que ocorra uma interação entre tais elementos, resultando então
leem com facilidade. Tal estratégia é utilizada por leitores não na colocação de sentido ao texto ou, visto sob outro prisma,
proficientes, compensando suas dificuldades ao tentarem a compreensão aproximada do que o escritor intencionou.
decodificar. Bons leitores percebem as palavras utilizando- Sugerimos compreensão aproximada, uma vez que o leitor
se de estratégias direcionadas pelos dados, economizando contribui inferencialmente na decodificação de um texto,
reservas cognitivas para monitoramento de compreensão. alternando a compreensão do mesmo de leitor para leitor,
conforme suas experiências de vida e de aprendizado.
Texto Os objetivos e a maneira com que um texto é lido
alteram a percepção leitora, bem como as estratégias de
A variedade de informação escrita presente na vida leitura utilizadas. Dentre esses fatores, mencionamos
diária modela-se em diferentes tipos de texto, compreendendo a rapidez com a qual um texto é lido, os objetivos, sejam
desde artigos em jornal a bulas de remédio. O conhecimento de focar informação específica (scanning) ou para
da estrutura destes antecipa expectativas e traz à tona compreensão de ideias (skimming), e as estratégias de
habilidades e estratégias para compreensão textual. Essa identificação de palavras chave, uso de títulos e subtítulos
organização de informação escrita pode ocorrer através de para antecipar conteúdo, tolerar ambiguidades lexicais,
estruturas retóricas funcionais para descrição, argumentação, distinguir ideias principais de informações complementares,
comparação, contraste, persuasão e informação, entre outros uso do contexto para auxiliar na compreensão e releitura de
objetivos aos quais podem propor-se um texto. partes do texto ou do texto como um todo. Ainda, salienta-se
79 Lisiane Neri Pereira

a importância do esquema de conhecimentos adquiridos, os Leitura em L1 e L2: diferenças e similaridades


quais proveem fundamentação para análise, comparação,
identificação e compreensão da informação. O ato da leitura em L1 e L2, como mencionado
Durante a interação, estratégias de leitura são na introdução deste artigo, varia significativamente,
utilizadas pelo leitor para o alcance do significado. primeiramente devido à cronologia de aquisição: L1 é
Muitas dessas estratégias são compartilhadas, derivando sempre masterizada antes da L2, salvo em casos de
compreensões similares de um mesmo texto por diferentes bilinguismo concomitante, em que dois sistemas linguísticos
leitores. Algumas estratégias incluem o reconhecimento são aprendidos simultaneamente, ainda assim com
rápido de palavras, uso de conhecimento de mundo, análise ressalvas sobre a aquisição simultânea de duas línguas,
de palavras não familiares, monitoramento de compreensão, sendo que uma delas geralmente domina, caracterizando-a
distinção entre ideias principais e adjacentes, paráfrase, como L1. Ainda, das distinções entre leitura em L1 e L2,
contextualização para construção de sentido, entre outras consideramos as bases linguísticas de sintaxe, fonologia,
(ANDERSON et al. 1991; BARNETT 1989; CLARKE 1979 semântica e retórica, as quais diferem de uma língua para
in AEBERSOLD and FIELD, 1997). a outra. Adicionalmente, leitores de L2, não familiarizados
Esquemas também proveem auxílio ao entendimento com o contexto cultural ou esquema de conteúdo da
bem sucedido de um texto. Esquemas de conteúdo auxiliam língua-alvo, podem enfrentar dificuldades na interpretação
com uma base de conhecimento que pode ser utilizada textual, colocando o leitor à mercê de uma compreensão
para comparação de experiências, esquemas formais fortemente baseada em dados linguísticos. Em contraponto,
elicitam estruturas retóricas e organizacionais de textos essa deficiência, aliada à falta de familiarização com dados
escritos e esquema linguístico, que inclui as características gramaticais da L2, aumenta a possibilidade de falha na
de decodificação necessárias para o reconhecimento decodificação e interpretação de um texto. Assim, a leitura
de palavras e de que forma essas encaixam-se em uma em ambos os contextos requer o conhecimento linguístico
sentença, por exemplo. A teoria de esquemas de leitura, e de conteúdo pertencentes a cada língua e, quanto maior
estudada desde a década de 70, inclui verificações sobre a diferença entre as línguas, maior o grau de dificuldade na
alunos com melhor compreensão textual quando estes se significação textual.
utilizam de esquemas de conteúdo (STEFFENSEN & JOAG- Conforme mencionado anteriormente, leitura é um
DEV 1984 in AEBERSOLD and FIELD, 1997) e, também, processo de construção de sentido, envolvendo a interação
estudos que investigam a interferência de esquemas na entre texto e leitor, o qual se utiliza de atividades mentais
leitura (CARRELL 1988 in AEBERSOLD and FIELD, 1997). para dar significação aos caracteres escritos ou impressos.
Tais atividades mentais, referidas como estratégias de leitura,
80 Fatores compartilhados no processamento de leitura em L1 e L2

estão engajadas no processo de leitura em ambas - L1 e L2 e Leitura e bilinguismo


incluem, além das mencionadas na seção anterior, predição
de informações, teste e confirmação de tais predições para Derivada da discussão na seção anterior, a relação
a compreensão do material escrito. Dessa forma, apontamos entre leitura e bilinguismo pode ser colocada caracterizando
um contraponto às diferenças entre o processamento de um leitor bilíngue como aquele que pode ler em duas
leitura diferenciado em L1 e L2, iniciando uma composição línguas. A habilidade de ler implica a compreensão textual e
similar de leitura para ambas as línguas. os conhecimentos de quais estratégias utilizar.
Estudos sobre leitura em L1 e L2 demonstraram que Leitores bilíngues utilizam estratégias como
a relação entre ambas é mais atuante em processos de aplicar contextualização a partir de subtítulos, figuras e
leitura do que no produto da leitura (YAMASHITA, J. p. 274). títulos, procurar por informações importantes ou focar
Nos processos de leitura, diversas atividades mentais estão atenção em diferentes aspectos, relacionar informações
engajadas, não somente processos linguísticos e cognitivos para o entendimento do texto com um todo, ativar e
tais como reconhecimento de palavras, construção de usar conhecimentos prévios, incluindo os esquemas de
proposições, predição, inferência e parsing - derivação de conteúdo, formal e linguístico, reconsiderar e revisar
representações através das relações sintáticas e semânticas hipóteses sobre o significado de palavras não reconhecidas,
de um texto ou de uma sentença - mas também processos monitorar compreensão textual, inferir ideias principais,
metacognitivos e aqueles que refletem fatores afetivos e de reconhecer a estrutura do texto, antecipar informação pelo
personalidade. Ainda que processos alterem, devido a fatores conhecimento advindo do texto, entre outras. Ainda que
como dificuldades do leitor ou objetivos da leitura, podemos essa lista de fatores não esteja completa, tais estratégias
acompanhá-los durante a aproximação de um leitor ao texto são comumente identificadas em leitores bilíngues e as
e como este sucede ou falha a cada passo da construção mesmas são compiladas de forma mais abrangente sob a
do sentido. O produto da leitura, no entanto, demonstra os seguinte classificação de Aebersold & Field (1997):
resultados das operações internas realizadas pelos leitores - desenvolvimento cognitivo e orientação de estilo
durante os processos, demonstrando a compreensão ou o cognitivo no início da aquisição de L2;
nível de entendimento do texto. A influência da leitura em - proficiência em L1;
L1 na leitura em L2, fortemente relacionada às atividades - proficiência em L2;
mentais envolvidas no processo sugere que estratégias - conhecimento metacognitivo de estrutura da L1,
em L1 podem não ser inteiramente úteis na construção de gramática e sintaxe;
uma representação em L2 devido a fatores como a fraca - grau de diferença entre L1 e L2: sistemas de escrita,
proficiência linguística de um leitor em L2. estruturas retóricas, estratégias apropriadas.
81 Lisiane Neri Pereira

Finalmente, leitores bilíngues, independente do tipo de em L1, e que frequentemente estarão disponíveis em ambas
texto, tipo de linguagem ou ortografia, desenvolvem esquemas as línguas. Nesse modelo, formas linguísticas são organizadas
para lidar com diferentes línguas e textos e caracterizam-se em mapas associativos para sílabas, léxico, construções e
como leitores flexíveis e possuidores de conhecimentos, modelos mentais. Durante o processamento, a seleção de
habilidades e estratégias que serão acomodadas em cada uma forma em particular é regida pela força de uma dica num
e toda a situação linguística, automatizando o processo de processador sintático central, o qual integra informação lexical
leitura em qualquer uma das línguas. e fonológica durante reconhecimento de palavras. Essa força
da dica como uma função de validação da mesma, integra
Modelo Unificado o modelo de Competição (BATES & MacWHINNEY, 1982;
MacWHINNEY, 1987a), adotado pelo modelo unificado.
Apesar das diferenças mencionadas entre a O modelo comporta, ainda, o fato de os processos de
aquisição de L1 e L2 e, principalmente as diferenças aquisição de L1 e L2 estarem fortemente relacionados, por
relacionadas ao ato da leitura, o modelo unificado, proposto exemplo: o método utilizado para o aprendizado de novas
por MacWhinney (2005), considera a relação entre várias palavras em L2 é basicamente uma extensão dos métodos
tarefas realizadas por aprendizes de L1 e L2. utilizados para o aprendizado de palavras em L1; similar, o
No caso de multilinguismo, há evidências de que, fato de que, ao combinar palavras para formar frases em
mesmo adquirindo as diferentes línguas como entidades L2, utiliza-se das mesmas estratégias usadas ao aprender
separadas, estas interagem através de processos de a L1. Não obstante, o fato de que o aprendizado de L2 é
transferência ou code-switching, ambos em crianças e adultos. fortemente influenciado pela transferência de L1, significa
Ainda, MacWhinney coloca que ambos os grupos que seria impossível construir um modelo de aprendizado
necessitam segmentar o discurso em palavras, aprender de L2 que não considerasse a estrutura da L1.
o significado das palavras, compreender os padrões que Este Modelo Unificado enfatiza o papel
governam construções sintáticas, desenvolver o conhecimento do armazenamento em mapas lexicais e a integração de
adquirido para apurar fluência, além dos objetivos principais construções durante o processamento de L1 e L2. Muitas
e adjacentes de leitura serem similares quando no intuito de partes desse modelo baseiam-se em diferentes teorias,
atingir o mesmo propósito, tornando o modelo unificado uma clamando por relações com abordagens construcionistas em
ferramenta eficaz na explicação dos processos anteriores. direção a uma ampla abordagem cognitivista.
A teoria do modelo unificado considera mecanismos de
aprendizagem em L1 como sendo um subgrupo que influencia
a aprendizagem em L2, ainda que alguns sejam mais fortes
82 Fatores compartilhados no processamento de leitura em L1 e L2

Conclusão a competência linguística de um indivíduo em determinado


contexto, momento ou situação, porém, apoia-se em
A análise dos processos de leitura em L1 e L2 nos um sistema cognitivo único, o qual serve de base para a
coloca frente a similaridades e diferenças entre ambos os compreensão textual.
sistemas. Procuramos aqui realçar as similaridades do
processamento de leitura em L1 e L2, uma vez que estas Palavras-Chave: Cognição. Leitura. Aspectos cognitivos.
recaem, principalmente, sob as habilidades e capacidades Leitura em L1 e L2. Modelo Unificado.
cognitivas da linguagem. O leitor bilíngue torna-se objeto das
reflexões, por possuírem, automatizados, os processos de ABSTRACT – This article reflects upon some cognitive
leitura similares tanto em L1 quanto em L2. Da definição de aspects existent in L1 and L2 readers, taking into
leitura, passando a seus componentes e considerando leitura consideration the assumption of the hypothesis of only one
e bilinguismo bem como as diferenças e similaridades entre cognitive system of language in the reading processing by
leitura em L1 e em L2, concluímos com uma breve exposição bilingual individuals – adapted from the Unified Model. The
do Modelo Unificado, proposto por MacWhinney, fornecendo aim of proposing this approach is to suggest complementary
um vasto território a ser explorado sobre a interdependência studies on the common language systems to L1 and L2
entre sistemas de processamento, especialmente de leitura readers. We understand that the use of language knowledge
em L1 e L2. Fatores considerados que contribuem para a for both L1 and L2 reading, reflects the linguistic competence
diferenciação entre os processos de L1 e L2 não apagam a of an individual in a certain context, moment or situation,
similaridade entre outros fatores, especialmente cognitivos, however, it finds support in only one cognitive system which
dos processos de leitura em ambas as línguas. servers as a basis for text comprehension.

RESUMO – Este artigo reflete sobre alguns aspectos Keywords: Cognition. Reading. Cognitive aspects. Reading
cognitivos presentes em leitores de L1 e L2, assumindo in L1 and L2. Unified Model.
a hipótese de um sistema cognitivo único de linguagem
no processamento da leitura em indivíduos bilíngues - Referências
adaptação da ideia do Modelo Unificado. O objetivo dessa
abordagem é sugerir a complementação de estudos sobre AEBERSOLD, J.A and FIELD, M.L. From Reader to Reading
os sistemas de linguagem comuns a leitores de L1 e L2. Teacher – Issues and strategies for second language
Entendemos que o uso dos conhecimentos de linguagem, classroom. Cambridge University Press. 1997.
tanto para a leitura em L1 quanto para leitura em L2, reflete
83 Lisiane Neri Pereira

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Aspectos cognitivos envolvidos no descendente e o modelo interativo (KLEIMAN, 1993). “Esses
modelos lidam com os aspectos ligados à relação entre o
processamento da leitura: contribuição das
sujeito leitor e o texto enquanto objeto, entre linguagem
neurociências e das ciências cognitivas escrita e compreensão, memória, inferência e pensamento”
(KLEIMAN, 1993, p. 31).
Gislaine Machado Jerônimo1 Partindo desses modelos, este artigo pretende
Fale com a autora problematizar a noção de compreensão do sentido/
significado2 na leitura, pois, segundo Kleiman & Moraes
Dentre as quatro habilidades linguísticas, a saber: (2002) e Machado (2006), um texto, por um princípio
fala, audição, leitura e escrita, é a leitura a habilidade que de economia, não carrega toda informação que se quer
mais tem recebido atenção nas pesquisas dos últimos comunicar por meio dele, já que grande parte do(s)
tempos. Tal fato se ancora na necessidade de pesquisas sentido(s) do texto repousa no conhecimento partilhado
darem conta da grande dificuldade de compreensão leitora pelos interlocutores, mas não explicitado. Sendo assim,
apresentada por estudantes de diversas partes do mundo, só as informações contidas no texto não são suficientes
em especial, do Brasil. para que o leitor possa compreendê-lo. Ao mesmo tempo,
No intuito de tentar explicar essa problemática, a não se pode desconsiderar o seu conteúdo semântico
comunidade científica em um trabalho, que engloba uma nem os mecanismos visuais utilizados, uma vez que são
grande interface entre diferentes áreas do conhecimento necessários para a apreensão rápida do material escrito.
como linguística, neurociência e psicologia cognitiva, une Ao longo do trabalho, tentaremos responder aos
forças e traz contribuições que podem esclarecer muitas seguintes questionamentos: O sentido da leitura está no
dúvidas e dificuldades encontradas pelos docentes a texto, no leitor ou em ambos? Qual é o papel da memória
respeito de como se dá o processamento da leitura. nos modelos botton-up e top-down? O que nos dizem os
A natureza cognitiva da leitura revela-se no fato de avanços da neurociência sobre o modelo ascendente?
a compreensão do texto ser realizada na mente do leitor. Apresentaremos nossa reflexão por meio das
Em linhas gerais, o processo de leitura pode ser explicado seguintes seções: na seção um mostraremos maiores
a partir de três modelos predominantes nas pesquisas detalhes sobre o modelo botton-up e recentes avanços das
de cunho psicolinguístico: o modelo bottom-up, também neurociências; o modelo top-down e fatores que interferem
chamado de ascendente, o modelo top-down, chamado de na compreensão leitora serão apresentados na seção dois;
a seção três apresentará o modelo interativo; enquanto a
1
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Linguística da Pontifícia Univer-
sidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS. Email: gisa.jeronimo@ig.com.br 2
No presente artigo, as palavras sentido e significado serão utilizadas indistintamente.
85 Gislaine Machado

seção quatro trará considerações advindas das ciências Evidentemente, há leitores que permanecem, ao
cognitivas a respeito da memória e, por fim, serão trazidas as longo da sua experiência de vida, realizando apenas uma
considerações finais envolvendo retomadas e perspectivas. leitura mecânica e não conseguem ultrapassar o nível da
Ao longo do trabalho, serão trazidas contribuições para o decodificação. Entretanto, nessa fase, é a criança - o leitor
ensino da leitura. iniciante - quem deve receber especial atenção.
Todos os leitores passam pelo processamento
1. O modelo botton-up e avanços das neurociências bottom-up, porém, o leitor proficiente demanda de muito
pouco tempo nessa tarefa, que passa a ser automática
No modelo ascendente (botton-up), a leitura é vista pela prática. No caso da criança em fase de aprendizado da
basicamente como uma questão de decodificação de uma leitura, esse estágio não se dá de forma tão automatizada
série de símbolos escritos em seus equivalentes orais. O e eficiente, visto que ela precisa de um grande esforço
texto, nessa perspectiva, é o depositário de um sentido cognitivo, a fim de processar as letras, no nosso caso - o
imanente, cabendo ao leitor, no processo de leitura, sistema alfabético. A escola, por sua vez, deve considerar
a tarefa de extrair o significado, exercendo, portanto, o grau de dificuldade aqui presente e proporcionar
um papel passivo, segundo Kleiman (1993). Essa visão atividades que estimulem e facilitem a compreensão da
alimenta a crença sobre a leitura como um processo linear, leitura nessa fase, através de textos simples que não
com base no qual o leitor constrói significados por meio demandem do conhecimento inferencial da criança para
das palavras do texto. o seu entendimento, já que o processamento pautado
Segundo Kato, a leitura aqui no conhecimento de mundo do leitor se desenvolve
posteriormente no processamento top-down, em outras
Constitui-se numa leitura minuciosa, palavras, não se pode exigir da criança mais do que aquilo
vagarosa, em que todas as pistas
que ela está apta a realizar.
visuais são utilizadas. É um processo
de composição, uma vez que as partes Para que essa decodificação ocorra e a palavra
gradativamente vão formando o todo escrita seja processada - segundo estudos advindos da
(KATO, 1999, p. 62). neurociência - é preciso esclarecer que há um processamento
anterior menos específico nas áreas visuais primárias da
Esse modelo é baseado em uma concepção região occipital que diz respeito ao processamento da
estruturalista da linguagem, pois “vê a leitura como um palavra pelo movimento ocular. Apenas a parte mais central
processo instantâneo de decodificação de letras em sons e da retina, denominada fóvea, é apta a processar as letras,
associação destes com o significado” (KATO, 1999, p. 50). por ser rica em células fotorreceptoras. De certo modo há
86 Aspectos cognitivos envolvidos no processamento da leitura: contribuição das neurociências e das ciências cognitivas

limitações nesse sistema, mas em cada fixação do olhar, processamos apenas uma pequena parte do nosso input
independe o tamanho das letras, importando apenas a visual (DEHAENE, 2009).
quantidade delas (SCLIAR-CABRAL, 2008; CRYSTAL, Grande parte da dificuldade de leitura, de acordo
2006, 2010, & DEHAENE, 2009). com Spitzer (2007, p. 215) reside no fato de que “o nosso
McConkie e Keith Rayner em 1975, nas palavras cérebro não está construído para ler”. E complementa: “[...]
de Scliar-Cabral (2008, p. 24) e Dehaene (2009), fizeram a pessoa que lê abusa, em primeiro lugar, do seu aparelho
um experimento muito engenhoso chamado “janela de percepção para uma atividade não apropriada à espécie”.
móvel”. Tal experimento acusa o movimento dos olhos Segundo Dehaene (2009), visto que o cérebro não
(“controlado pelas projeções do córtex pré-frontal sobre o foi desenvolvido para a leitura, de fato, aprender a ler parece
núcleo caudal” (MERCIER, FOURNIER, & JACOB, 1999, ser uma das mais importantes mudanças no cérebro de
p. 27 apud SCLIAR-CABRAL, 2008, p. 25)) ao detectar nossas crianças, pois o cérebro não evoluiu para a cultura,
as palavras, de modo que é possível detectar as letras mas a cultura evoluiu para poder ser apreendida pelo
que ficam à direita e à esquerda da fóvea. Scliar-Cabral cérebro. Desse modo, possuímos uma região no cérebro
adaptou o experimento utilizando à primeira página de que processa as letras, a qual o autor denomina “the letter
Os Maias de Eça de Queiroz, a fim de ilustrá-lo, o qual box”. Após seu processamento nas áreas primárias da visão,
segue abaixo: as letras são canalizadas em direção à região occípito-
temporal ventral do hemisfério esquerdo. Esses achados
A casa que xx xxxxx xxxxxx xxxxxxx xx xxxxxxx foram confirmados através das modernas técnicas de
A tela do computador vai sendo renovada, assim que neuroimagem como PET (Positron Emission Tomography),
o olhar se movimenta, resultando, no final, o seguinte: fMRI (Functional Magnetic Resonance Imaging) e EEG
x xxx xxx os Maias xxxxxx xxxxxx xx xxxxxx (Electroencephalography). Dehaene diz que é fascinante a
x xxx xxx xx xxxxx vieram xxxxxx xx xxxxxx ideia de haver esse lugar especializado em letras e ele ser
x xxx xxx xx xxxxx xxxxxx habitar xx xxxxxx o mesmo local em todos nós – independente se a leitura for
x xxx xxx xx xxxxx xxxxxx xxxxxx em Lisboa feita em chinês, hebraico ou inglês.
Dehaene (2007, 2009) propõe a hipótese da reciclagem
Por fim, ficou comprovado que os sujeitos dos neuronal. Scliar- Cabral (2008) ressalta a importância
experimentos não perceberam os x. O centro da fixação dessa descoberta. De acordo com essa hipótese, existe
também ficou nas palavras que continham conteúdo lexical: uma hierarquia de neurônios que respondem a estímulos
substantivos, adjetivos, verbos e advérbios. O experimento visuais quando aprendemos a ler, parte dessa hierarquia
de McConkie e Rayner mostrou que conscientemente nós de neurônios se ocupa da nova tarefa de reconhecer letras
87 Gislaine Machado

e palavras. Assim, a capacidade de ler, de acordo com o um leitor iniciante precisa de uma informação clara e de
autor, é resultado de um sofisticado processo evolucionário, um tipo de letra que seja legível, pois do contrário, pode
e não simplesmente fruto da plasticidade cerebral, que ficar confuso e não reconhecer a letra ou palavra.
muitas vezes é considerada como uma propriedade inata Tais considerações oriundas das Neurociências
do cérebro. Dehaene defende a ideia de que a plasticidade permitem refletir sobre o que ocorre nos bastidores da leitura
cerebral é fruto de evolução e do instinto para aprender que e do processo botton-up. E, desse modo, compreender a
os humanos possuem. forma como o cérebro processa a leitura, destacando as
Segundo o mesmo autor (2009), outro conceito maiores dificuldades e facilidade do percurso. Permite
fundamental que serve de base para a compreensão do ainda reflexões a respeito do ensino da leitura, pois o
processamento botton-up é o problema ou princípio de professor que tem conhecimento do complexo percurso
invariância. Scliar Cabral assim o define: que o aprendiz percorre até conseguir dominar esse tipo
de processamento pode preparar material didático mais
Sejam quais forem as variantes de apropriado às necessidades do leitor/aprendiz.
uma ou mais letras que constituem
um grafema e de cuja articulação
2. O modelo top-down e fatores que interferem na
depende o reconhecimento da palavra
escrita, a elas será acoplado sempre compreensão leitora
o mesmo valor fonológico que teria
naquele contexto grafêmico, no caso Enquanto o modelo botton-up trata do percurso
do português brasileiro (SCLIAR- ocular, do reconhecimento da palavra, da informação
CABRAL, 2008, p. 26). presente no texto e o leitor é visto de forma passiva, o
modelo top-down enfatiza o esforço cognitivo do leitor em
Em outras palavras, é por meio desse princípio
buscar informações extratextuais e esse passa a ser ativo
que reconhecemos que as palavras dois, dois, dois,
no processo de leitura e compreensão, pois o sentido é
dois, dOIS são a mesma palavra, pois o reconhecimento
construído a partir do seu conhecimento de mundo.
da letra independe o seu tamanho, tipo ou posição, visto
De acordo com Kato (1999), nesse tipo de
que nós negligenciamos as variações irrelevantes. Só
processamento, é o leitor que apreende facilmente as ideias
desenvolvemos essa capacidade porque o nosso sistema
gerais e principais do texto, é fluente e veloz, mas, por outro
visual não se detém nos contornos da palavra, mas está
lado, faz excessos de adivinhações. É o tipo de leitor que
interessado nas letras que ela contém (DEHAENE, 2009).
faz mais uso do seu conhecimento do que da informação
Cabe ressaltar que esse caminho é realizado pelo leitor
efetivamente dada pelo texto.
que já tem familiaridade com o sistema escrito. Entretanto,
88 Aspectos cognitivos envolvidos no processamento da leitura: contribuição das neurociências e das ciências cognitivas

Aqui, o centro do processo é o leitor, pois é ele percepção e identificação exata de letras, palavras, padrões
quem detém a chave para a construção do sentido do de escrita e unidades linguísticas maiores. Propõe, em
texto, já que “o significado de um texto não se limita ao que substituição a isso, a ideia de que a leitura é um processo
apenas está nele” (KLEIMAN & MORAES, 2002, p. 62). Isto seletivo, em outras palavras, que a leitura é um processo
é, o significado não é dado de antemão a espera de ser que envolve o uso parcial de pistas linguísticas selecionadas
compreendido, mas, ao contrário, o texto é um todo cheio a partir das expectativas do leitor, o qual durante o percurso
de lacunas, cujo preenchimento é feito pelo leitor, a partir de da leitura faz inúmeras previsões.
seu conhecimento de mundo. As previsões são realizadas por meio do conhecimento
Pesquisadores como Kenneth S. Goodman e, prévio do leitor, que, de acordo com Kleiman (1995), se
posteriormente, Frank Smith, lançaram bases teóricas para organiza em três tipos: linguístico, textual e de mundo. Para
romper com as teorias ascendentes sobre o processamento a compreensão dos textos lidos, acionamos a nossa memória
da leitura, cuja principal contribuição foi a de chamar a semântica3 para resgatar o conhecimento já adquirido.
atenção para fenômenos de “adivinhação”, comuns na Zakaluk (1988) pontua que, quanto mais
leitura de aprendizes, que até então eram considerados conhecimento de mundo o leitor tiver, melhor será sua
apenas erros de decodificação. compreensão, uma vez que, quando não se tem o
Segundo Smith, sentido completo de um texto, ele é preenchido com os
conhecimentos prévios do leitor para construir sentido.
a maneira como os leitores procuram Por outro lado, Randi et al. (2005) nos alerta que
os significados é não considerando para uma leitura bem-sucedida, apenas a suposição da
todas as possibilidades, não fazendo existência de um conhecimento prévio, não é suficiente,
“adivinhações” inconsequentes
visto que algumas atividades de leitura não ultrapassam o
somente quanto a um sentido, mas, em
vez disso, fazendo previsões dentro da nível literal, e, desse modo, não alcançam uma interação
faixa mais provável de alternativas. entre o conhecimento do leitor, a informação textual e as
Assim, os leitores podem superar motivações contextuais. Isso quer dizer que, em alguns
as limitações do processamento da casos, o leitor depende mais do processamento botton-
informação do cérebro e, também, a up do que do top-down para a compreensão do texto,
inerente ambiguidade da linguagem
visto que os textos se enquadram em gêneros e alguns
(2003, p. 192).
deles são mais informativos do que outros. “Pode-se
dizer que os próprios textos fornecem contextos para
Goodman (1967), por sua vez, propõe refutar a ideia
de que a leitura seja um processo preciso, que envolva 3
A definição desse tipo de memória será trazida na seção cinco.
89 Gislaine Machado

a sua interpretação” (KLEIMAN & MORAIS, 2002, p. interativista de leitura passou a propor a leitura como
62). É incumbência de o professor identificar o tipo de uma associação de processos cognitivos em que se
processamento necessário, isto é, as limitações do texto integram o processamento ascendente (bottom-up) com
e organizar tarefas que deem conta de sua necessidade. o processamento descendente (top-down), na qual o
Estudos que tratam do processamento da linguagem conhecimento prévio do leitor é acionado durante a leitura e
apontam que indivíduos com algum tipo de lesão cerebral as informações do texto interagem com esse conhecimento.
no hemisfério direito apresentam maior dificuldade em sua Desse modo, o modelo interativo une os dois
capacidade de empregar o conhecimento prévio ao abordar modelos apresentados anteriormente: top-down e bottom-
o texto de forma top-down (MOLLOY e colegas, 1990; up, pois considera que o fluxo da informação opera de modo
HUBER e colaboradores, 1990 apud SCHERER, 2009). descendente e ascendente, uma vez que os processos
Durante a leitura, o conhecimento prévio é peça top-down e bottom-up ocorrem alternativamente ou ao
fundamental para a realização de inferências. Conforme se mesmo tempo, dependendo das características do texto, do
mencionou anteriormente, o leitor, no momento da leitura, conhecimento prévio e da capacidade de previsão do leitor, da
deixa aflorar o seu conhecimento de mundo, as suas crenças, memória, da atenção e do domínio das estratégias de leitura.
as suas vivências, além de seu conhecimento linguístico e No caso da previsão, segundo Kato (1999, p. 102), a
textual, isto é, todo o seu conhecimento prévio. A partir desses qual ela denomina “adivinhação”, podemos dizer que esta “é
conhecimentos se dá a realização do processo inferencial, que parte da estratégia top-down, por ser mais preditiva, porém é
consiste no estabelecimento de conexões entre os enunciados, a estratégia bottom-up a responsável pela sua confirmação,
com o preenchimento de lacunas deixadas pelo texto. pelo refinamento e pela revisão da teoria”. Assim, calculamos
De acordo com Kleiman (1995), as inferências a importância da união entre as estratégias acima referidas,
ocorrem quando o leitor realmente assimila e agrega as uma vez que uma serve de base para a outra.
informações à sua memória semântica. A partir da interação Ainda sobre a predição, há estudos da neurociência
entre os saberes que traz e o que está disponível no texto é que mostram uma participação maior do hemisfério esquer-
possível a significação do texto. do, pois é ele o responsável: por fazer as relações entre a
informação nova e os elementos previstos; ativar os itens
3. O modelo interativo prováveis de serem encontrados; atuar sobre a atenção;
considerar o contexto; ser mais veloz, entre outros fatores
A partir da constatação de que nenhum dos (FEDERMEIER & KUTA, 1999 apud SCHERER, 2009).
tipos de processamento citados dava conta de explicar O significado/sentido, nessa perspectiva, é
a compreensão de um texto, a teoria interacionista ou construído através dos dados do texto que são percebidos
90 Aspectos cognitivos envolvidos no processamento da leitura: contribuição das neurociências e das ciências cognitivas

pelos olhos e logo transmitidos pelo nervo óptico até níveis de conhecimento, tanto gráfico, como linguístico,
o cérebro, o qual irá processá-los, juntamente com pragmático, social e cultural (KLEIMAN, 1993, p. 35-36).
informações previamente armazenadas. Caso não haja
informações no cérebro do leitor que possam ser ativadas 4. O papel da memória para o processamento da leitura
durante a leitura, então ele fará novas conexões que
permitam depreender o significado que o escritor quis O estudo da memória é uma das maiores contribuições
passar com o texto. Contudo, para isso, o leitor precisa ter das ciências cognitivas ao estudo da linguagem. Ela é uma
um conhecimento prévio que permita que ele faça essas função cognitiva que desempenha papel fundamental à
novas conexões (POERSCH, 2002). leitura, pois sem ela não conseguiríamos identificar as
Solé (1998) traz considerações bastante unidades mínimas das palavras, muito menos as mais
relevantes para esse modelo ao mostrar que o leitor complexas de significação. Desse modo, ela é recrutada
utiliza simultaneamente seu conhecimento de mundo tanto para o processamento ascendente como descendente.
e seus conhecimentos linguísticos para construir a No primeiro caso, utilizamos mais a memória de trabalho,
compreensão do texto. Desse modo, é o leitor maduro enquanto no segundo, fazemos mais uso da memória de
quem utiliza esse processo de forma adequada e no curto e longo prazo (memória semântica).
momento apropriado, pois sabe identificar os processos A rapidez com que os olhos se movimentam
bottom-up e top-down complementarmente. durante a leitura e processam o seu material visual, das
Já o leitor iniciante apresenta dificuldades para letras em sílabas e palavras, destas em frases, destas
realizar essa união, como é o caso da criança, que lê em proposições, chama muito a atenção. Esse fato só é
vagarosamente, sílaba por sílaba. Ao mesmo tempo, se o possível porque o material visual é estocado na memória
leitor iniciante for capaz de reconhecer instantaneamente de trabalho, que permite a organização em unidades
as palavras, ele poderá ler mais rapidamente, conseguindo, sintáticas, seguindo regras e princípios de nossa gramática
de tal forma, lembrar unidades passíveis de interpretação implícita (KLEIMAN, 1993). Quando reconhecemos uma
semântica, assim como detectar uma série de palavras palavra é o hemisfério esquerdo que desempenha papel
cuja ocorrência no texto é predizível pelo assunto. Cabe, dominante e é por meio do PET e fMRI que temos acesso
então, ao professor “a tarefa de ajudar esse leitor a prever a esse dado (DEHAENE, 2009).
e predizer focalizando, mediante diversas abordagens e Segundo Izquierdo (2002, p. 19-20), a memória
atividades prévias à leitura, as palavras-chave no texto”, de trabalho serve para manter durante alguns segundos,
bem como propiciar contextos a que o leitor deva recorrer, no máximo alguns minutos, a informação que está sendo
simultaneamente, a fim de compreendê-lo em diversos processada no momento. Usamos esse tipo de memória para
91 Gislaine Machado

conservar na consciência, por exemplo, a terceira palavra da A memória de curta duração, diferentemente da
frase anterior. “Tal retenção só serve para compreender o memória de trabalho, estende-se desde os primeiros
sentido dessa frase, seu contexto e o significado do que veio segundos ou minutos seguintes ao aprendizado e
a seguir”. Seu processamento se dá fundamentalmente no pode durar até 3-6 horas (IZQUIERDO, 2002). Ela é
córtex pré-frontal, a porção mais anterior do lobo temporal. fundamental para a aprendizagem e, portanto, para a
Essa região recebe axônios procedentes de regiões cerebrais leitura, pois todo o nosso conhecimento de mundo ou
vinculadas à regulação dos estados de ânimo, isso explica o conhecimento prévio, primeiramente, passa por ela e
fato de, em um estado de ânimo negativo, haver perturbações depois se consolida na memória de longo prazo.
na memória de trabalho como cansaço, por exemplo. Ao contrário da informação na memória de curto
Uma de suas limitações, no que tange ao texto, prazo, a informação na memória de longo prazo exige uma
se dá pelo fato de que ela não pode conter demasiada ação positiva para recuperá-la, é o que diz Smith (1999),
informação de uma vez só (SMITH, 1997). De acordo pois quando acrescentamos algo ao nosso conhecimento
com Kleiman (1993, p. 34), a memória de trabalho pode de mundo, modificamos a informação já existente. Isto é,
trabalhar com aproximadamente 7 unidades ao mesmo qualquer coisa que queiramos aprender exige que se faça
tempo. Caso o leitor esteja lendo letra por letra, ele não uma relação com o que já existe na memória. Se essa nova
conseguirá manter todas essas unidades na memória e informação não puder ser relacionada com algo que já temos
não poderá apreender essa sequência visto que as partes é bem possível que a mesma não faça sentido para nós.
não se integram num todo significativo. Assim, no início, a Assim, é somente por meio da organização que a informação
leitura será muito mais difícil para o leitor, ficando quase pode ser estabelecida, pois é ela a chave à lembrança.
que limitada à decodificação. Para o ensino, atividades de pré-leitura podem
Segundo a proposta de Goodman, a leitura deve ser uma sugestão ao professor. Pois elas facilitam a
ser vista como um jogo psicolinguístico de adivinhação, compreensão do aprendiz, uma vez que ativam a memória
por meio do qual ocorrem as predições sobre o significado, de longo prazo e diminuem a carga na memória de trabalho.
que o leitor retém na memória de curto prazo e compara
aquilo que lê com o repertório de linguagem guardado Considerações finais
na memória de longo prazo (GOODMAN, 1967, p. 108).
Trata-se, dessa maneira, de estabelecer um elo entre a A natureza cognitiva da leitura abarca os modelos
memória de curto e longo prazo, onde o leitor busca no botton-up, top-down e interativo. No primeiro, se assentam
seu conhecimento já adquirido uma relação possível com as práticas de leitura que enfatizam o processamento
aquilo que está presente no texto. ascendente do texto. Sua limitação se dá no momento em
92 Aspectos cognitivos envolvidos no processamento da leitura: contribuição das neurociências e das ciências cognitivas

que o texto não contém todas as informações necessárias a leitura. Nesse caso, “o professor deve ajudar o aluno
à compreensão. Por outro lado, se o texto é meramente leitor mediante diversas abordagens e atividades prévias
informativo e não necessita da atuação do leitor, ele se à leitura” (KLEIMAN, 1993, p. 36).
mostra bastante útil. O modelo top-down, por sua vez, O educador é peça chave para despertar no
responde às limitações do texto, complementando as aprendiz o gosto pela leitura e também ajudar na redução
suas lacunas com base no conhecimento de mundo, nas do insucesso dos leitores.
predições e inferências do leitor. Caso o texto seja de
cunho informativo, esse modelo se mostra ineficiente. É ele quem deve propiciar contextos a que
Tendo em vista as limitações dos modelos anteriores, o leitor deva recorrer, simultaneamente,
parece mais adequado optar pelo modelo interativo, uma vez a fim de compreendê-lo em diversos
que se apresenta mais relevante para o desenvolvimento níveis de conhecimento, tanto gráficos,
de estratégias flexíveis à leitura e considera como como linguísticos, pragmáticos, sociais
e culturais (KLEIMAN, 1993, p. 35).
complementares os dois modelos citados acima. Assim, o
sentido da leitura não está só no texto, nem só no leitor,
A memória, por sua vez, desempenha papel de
mas em ambos.
grande importância, tanto no modelo ascendente como
O leitor que faz uso do modelo interativo descendente de leitura. Pois, ela é responsável pelo
é considerado um leitor maduro, pois a processamento e retenção online da informação, no caso
escolha de um processo ou outro já é da memória de trabalho. E todo o processamento top-down
uma estratégia metacognitiva, isto é, é se apoia na memória de longo prazo aliada à de curto prazo
o leitor que tem um controle consciente
para o acesso ao conhecimento de mundo do leitor.
e ativo do seu comportamento (KATO,
1999, p. 51). Logo, fizemos aqui uma tentativa singela de
explicar onde reside o sentido na leitura, através de uma
No caso do leitor iniciante, haverá maior perspectiva cognitiva. Trouxemos uma visão de leitura
dificuldade em fazer essa união, que só se realizará a pautada na psicolinguística, bem como contribuições
partir do momento em que ele tiver domínio dos dois tipos das neurociências e ciências cognitivas. Contudo, a
de processamento. Do contrário, demandará de tempo compreensão plena do processo de leitura reside em
na decodificação, processo que, como visto a partir de um grande mistério que, aos poucos, com a interface de
dados das neurociências, não é tão simples quanto diversas áreas do conhecimento, irá se desvelando.
parece, já que o nosso cérebro não foi desenvolvido para
93 Gislaine Machado

RESUMO – A natureza cognitiva da leitura revela- (KLEIMAN, 1993). Based on these models, in this work it
se no fato de a compreensão do texto ser realizada na is intended to make a theoretical revision and also propose
mente do leitor. Em linhas gerais, o processo de leitura problems to the notion of meaning in reading. According to
pode ser explicado a partir de três modelos de cunho Kleiman & Moraes (2002) and Machado (2006), a text does
psicolinguístico: botton-up, top-down e interativo, os quais not bring all the information needed due to the fact that part of
lidam com os aspectos ligados à relação entre o sujeito the meaning of the text rests in the readers world knowledge.
leitor e o texto enquanto objeto, entre linguagem escrita So, we are going to try to answer these questions: Where is
e compreensão, memória, inferência e pensamento the meaning in reading, in the text, in the reader’s mind or in
(KLEIMAN, 1993). Partindo desses modelos, neste artigo both? What is the role of memory in the botton-up and top-
pretendemos problematizar a noção de compreensão do down models? What does the neuroscience tell us about the
sentido na leitura, pois, segundo Kleiman & Moraes (2002) ascendant reading model? Along this work, we are going to
e Machado (2006), um texto, por um princípio de economia, bring some contributions for teaching.
não carrega toda informação que se quer comunicar por
meio dele, já que grande parte do(s) sentido(s) do texto Keywords: Botton-up. Top-down. Reading. Memory.
repousa no conhecimento partilhado pelos interlocutores, Neuroscience.
mas não explicitado. Tentaremos responder aos seguintes
questionamentos: o sentido da leitura está no texto, no Referências
leitor ou em ambos? Qual é o papel da memória nos
modelos botton-up e top-down? O que nos dizem os CRYSTAL, David. (2006) How language works. Nova York:
avanços da neurociência sobre o modelo ascendente? Penguin Group.
Ao longo do trabalho, serão trazidas contribuições para o ______. (2010) The Cambridge Encyclopedia of Language.
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Palavras-chave: Botton-up. Top-down. Leitura. Memória. DEHAENE, Stanislas. Les neurons de la lecture. Paris:
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Processamento de leitura: predição informações explícitas para que sejam feitos processamentos
cognitivos pelo leitor, até chegar a uma conclusão implicada.
e inferências em pôsteres de paródias
de filmes de terror Leitura, predição leitora e inferências

Luiza Helena Müller dos Santos 1 Segundo Pereira (2009a e 2009b), a leitura é uma
Fale com a autora
atividade cognitiva significativa, dirigida a um objetivo,
dependendo de conhecimentos anteriores e encaminhada
O presente artigo trabalha com conceitos pelas expectativas do leitor.
psicolinguísticos de leitura, especificamente com a estratégia O processamento da leitura pode ocorrer
de leitura conhecida como predição leitora e conceitos ascendentemente ou descendentemente como afirma
pragmáticos de inferência presentes na Teoria da Relevância Pereira (2009b, p. 135):
de Sperber & Wilson (2005). O trabalho tem como objetivo
ilustrar os conceitos teóricos através de uma análise do Esse processamento ocorre de forma
processo de leitura de pôsteres de paródias de filmes de terror. ascendente (botton-up) e/ou de forma
descendente (top-down), sendo que,
A estrutura desenvolvida permite ao trabalho
no primeiro, o leitor faz o movimento
primeiramente elucidar conceitos de leitura, predição leitora das unidades menores para as maiores
e inferências segundo teorias e estudiosos (SMITH, 2003 e e, no segundo, o leitor realiza o
PEREIRA 2009a e 2009b), partindo do que consiste a leitura movimento das unidades maiores para
e suas ferramentas e estratégias principais até os conceitos as menores. A escolha do movimento,
de inferências como decorrentes de implicaturas griceanas pelo leitor, decorre de variáveis como os
conhecimentos prévios de que dispõe,
e base para a predição leitora. Logo após, é descrita a
o objetivo da leitura, o gênero e o tipo
Teoria da Relevância (TR) para melhor entendimento sobre de texto e os caminhos cognitivos já por
o papel das inferências na comunicação humana. ele desenvolvidos.
Assim, se segue um breve histórico sobre o objeto
de análise, sendo a paródia o foco principal. A análise dos Durante o processo da leitura, além do tipo material
pôsteres é feita de acordo com formulações das inferências, de leitura e planos linguísticos para a compreensão
juntamente com a estratégia de predição leitora, de forma posterior, a concepção de leitura é uma das bases
com que hipóteses sejam criadas a partir de um input de psicolinguísticas para o processo da leitura. A concepção
1
Mestranda em Linguística pela PUCRS, Bolsista CAPES, luizamuller.s@hotmail.com de leitura agrega tanto as estratégias de leitura como os
97 Luiza Helena Müller dos Santos

processamentos que se desencadeiam. Assim, tornam- O fator que leva o leitor a usar adequadamente
se ferramentas importantes para o leitor as estratégias de essas ferramentas é a relevância das pistas contidas
compreensão que possam ajudá-lo na identificação e no no material. A predição leitora se dá a partir da relação
processamento das informações, como seleção de tópicos, estabelecida entre cada pista, relevante para o leitor,
leitura detalhada, autocorreção, marcações, skimming entre encontrada no material de leitura.
outras. No presente artigo, as inferências e a predição leitora Dessa forma, a tipologia textual e o contexto
são as ferramentas exemplificadas através das análises de moldam o processo da leitura. Dependendo dessas
cartazes de paródias de filme de terror. variáveis, os planos (fonológicos, morfossintáticos ou
A predição leitora consiste na antecipação do semântico-pragmáticos) acionados pelo leitor construirão o
conteúdo e formulação de hipóteses que são derivadas processamento da leitura e a compreensão.
de processos inferenciais realizados pelo leitor. Segundo Durante a estratégia de predição leitora, voltar-se
Pereira (2009, p. 135), a predição pode ser considerada para a memória em busca de conhecimentos ‘de mundo’,
uma espécie de jogo psicolinguístico, já que o leitor ou seja, procurar conhecimentos previamente conhecidos
interage com o texto de maneira em que faz suas próprias é recurso utilizado por leitores que buscam contextualizar
formulações e as verifica e corrige ao longo do processo: as informações.
Assim, a estratégia de predição é configurada não
Associada a previsão, antevisão, apenas como uma decodificação das pistas encontradas,
antecipação, adivinhação, a predição mas sim um jogo de ‘quebra-cabeças’ no qual cada
consiste numa estratégia leitora que informação encontrada levará a uma suposição que ajudará
propõe uma interação entre o leitor, na compreensão do material.
por meio de seus conhecimentos
As inferências levantadas pelo leitor também
prévios, e o texto, por meio das pistas
linguísticas deixadas pelo escritor fazem parte do grupo de ferramentas utilizadas pelo
em todos os planos. Essa condição a leitor, assim como a predição. Neste artigo, as inferências
configura como um jogo psicolinguístico psicolonguísticas serão relacionadas com as inferências
de antecipação e de verificação da pragmáticas contidas na Teoria da Relevância, que se
correção do movimento realizado, isto é, seguirá no próximo tópico do artigo. Portanto, as inferências
de formulação e testagem de hipóteses
feitas pelo leitor são fundamentais para o processo da
de leitura. Trata-se, assim, de um jogo
de risco automonitorado, apoiado em predição leitora.
traços grafo-fônicos, morfossintáticos e As inferências decorrem de processos inferenciais
semântico-pragmáticos. que constroem o sentido das proposições e suas relações.
98 Processamento de leitura: predição e inferências em pôsteres de paródias de filmes de terror

Segundo Grice, podemos descrever e explicar os efeitos de de um falante até um conjunto de suposições que possam
sentido que vão além do que é dito. concluir a compreensão de um material.
As inferências provêm de implicaturas, que podem ser Prezando pelos elementos ostensivos das
convencionais, quando presas ao significado convencional informações, a TR estabelece que de um lado do ato
das palavras e conversacionais, quando não dependem da comunicacional uma pessoa está envolvida com a relevância
significação usual, sendo determinadas por certos princípios da informação através da ostensão e no outro lado uma
básicos do ato comunicativo (CAMPOS, 2009). pessoa está envolvida nas deduções. Segundo Campos
Durante o ato comunicativo, existe um princípio de (2008, p. 11):
cooperação que liga as proposições dos locutores para
que sejam geradas inferências, deduções e conclusões. Todo estímulo ostensivo (intenção
Grice descreve algumas máximas e implicaturas dentro do informativa e comunicativa) comunica
princípio, como refere Campos (2009). a presunção de sua própria relevância
É importante ressaltar que a relevância também ótima – o estímulo é relevante
é considerada por Grice. Sendo relevante, o locutor suficiente para merecer o esforço de
processamento da audiência e – é o mais
apresenta ao ouvinte suas ideias diretamente para que
relevante compatível com as habilidades
este possa obter o maior benefício em relação ao custo e preferências do comunicador. O
quando se comunicar. grau de relevância é diretamente
proporcional à relação entre esforço
Teoria da Relevância de processamento e efeito cognitivo
positivo. Em contextos idênticos,
tanto menor o primeiro e tanto maior o
A Teoria da Relevância (TR), de Sperber &
segundo, mais relevante o estímulo.
Wilson (1986), parte dos princípios de Grice (1975) para
trabalhar a comunicação humana e estabelece algumas
reformulações de seus apontamentos. As inferências feitas Logo, um falante A comunica intencionalmente a B
por um indivíduo sobre um material são importantes para através de um código linguístico, também apresentando
a conclusão de um processo cognitivo de formulações aspectos contextuais que geram inferências em B. A se
acerca da compreensão do mesmo. torna relevante para B quando apresenta suas informações
A TR considera aspectos sócio-contextuais e usa ostensivamente, e é criada uma relação entre A e B de
elementos da pragmática para se basear inteiramente nas menor custo de processamento da informação para maior
informações contextuais que lidam desde o comportamento benefício na conclusão e compreensão da informação.
99 Luiza Helena Müller dos Santos

Vemos a seguir em S&W (2005, p. 03): a compreensão é um processo de


inferência não demonstrativo, essa
Intuitivamente, um input (uma visão, hipótese bem pode ser falsa; porém,
um som, um enunciado, uma memória) ela é a melhor que um ouvinte racional
é relevante para um indivíduo quando pode fazer.
ele se conecta com informação de
background disponível, de modo a Durante o processo comunicativo, um ambiente
produzir conclusões que importam cognitivo envolve processos mentais dos indivíduos que
a esse indivíduo: ou melhor, para
tomam suposições como verdadeiras mutuamente.
responder uma questão que ele tinha
em mente, aumentar seu conhecimento Um falante pode supor as inferências do interlocutor,
em certo tópico, esclarecer uma também, as intenções do falante podem ser reconhecidas
dúvida, confirmar uma suspeita, ou pelo interlocutor mesmo quando implícitas durante o
corrigir uma impressão equivocada. processamento da informação já que o ambiente cognitivo
Nos termos da Teoria da Relevância, é conhecido dentro de um contexto cognitivo específico.
um input é relevante para um indivíduo
O contexto pode se dar de formas diferentes, como o
quando seu processamento, em um
contexto de suposições disponíveis, contexto físico em que se encontra o ato comunicacional
produz um efeito cognitivo positivo. (lugar) ou o contexto em que se insere o ato comunicacional
dependendo de discursos anteriores, logo, uma informação
A contextualização do ato comunicativo é passa a ser relevante somente quando ligada a um
fundamental para as formulações cognitivas de cada determinado contexto.
falante, logo, cada discurso representa um estímulo Figuras de linguagem como a ironia, por exemplo,
ostensivo que tem de ser adequadamente interpretado. Em pode levantar premissas específicas em determinados
S&W (2005, p. 13), vemos que o processo de interpretação contextos, podendo ainda ser relevante para a audiência
se dá naturalmente pelo caminho de menor esforço: de um comunicador desde que os contextos se apresentem
mutuamente, como em S&W (2005, p. 26):
...quando um ouvinte segue o caminho
de menor esforço, ele chega a uma A ironia verbal não envolve nenhuma
interpretação que satisfaz suas maquinaria especial ou procedimentos
expectativas de relevância que, na que não os já necessários para abordar
ausência de evidências contrárias, um uso básico da linguagem, o uso
é a hipótese mais plausível sobre o interpretativo, e uma forma específica
significado do falante. Uma vez que
100 Processamento de leitura: predição e inferências em pôsteres de paródias de filmes de terror

de uso interpretativo, o uso ecóico. Um mas não é, em si, essencial, porque


enunciado pode ser interpretativamente o enunciado sugere uma escala de
usado para (meta) representar outro implicaturas similares possíveis.
enunciado ou pensamento que se
assemelha a ele em conteúdo. O tipo Sendo alguns conceitos fundamentais da TR
de uso interpretativo mais conhecido
esclarecidos, a discussão da mesma, juntamente com
é a fala ou pensamento reportado. Um
enunciado é ecóico quando ele alcança os conceitos psicolinguísticos já citados, analisará o
a maior parte de sua relevância ao processo de leitura dos elementos presentes nos pôsteres
expressar a atitude do falante para de paródias de filmes de terror.
pontos de vista que ele tacitamente
atribui a outrem. Pôsteres de paródias de filme de terror

As explicaturas ou as implicaturas podem passar Os filmes de terror são expostos na cultura de


informações. As explicaturas tratam das inferências entre o massa há muito tempo, fazem parte da cultura mundial e
implícito e o dito, já as implicaturas tratam das suposições passíveis de avaliações e críticas por parte da audiência. A
implícitas contextuais que pretendem manifestar a paródia simboliza um tipo de crítica sobre o objeto.
relevância da informação do falante. Bakhtin (1987) apontou, em seu estudo sobre
Como as implicaturas tratam do contexto e não do carnavalização, que o festejo carnavalesco propiciava
expresso, elas variam de acordo com a interpretação que a criação de novos símbolos e linguagens sendo ligados
depende de vários aspectos como ambiguidade, modo ao riso. Afirmou, também, que a paródia é decorrente do
de elocução, comportamento do falante. Desse modo, em riso carnavalesco e da reformulação de uma referência. A
S&W (2005, p. 24) vemos que: paródia moderna seria puramente negativa e formal e o
riso ambivalente da época moderna, mesmo alegre, é ao
Uma proposição pode ser mais ou menos
mesmo tempo sarcástico.
fortemente implicada. Ela é fortemente
implicada (ou é uma implicatura forte) Com um caráter crítico, sarcástico e irônico, a paródia
se sua recuperação é essencial para moderna, por vezes, busca o humor através da reapresentação
se chegar a uma interpretação que satírica do mesmo. Logo, mostra uma semelhança ao objeto
satisfaça as expectativas de relevância de referência, entretanto, distorce características marcantes.
do destinatário. Ela é fracamente Sendo uma fuga do discurso e das normas
implicada se sua recuperação ajuda
tradicionais e mais conhecidas, a paródia dá liberdade
na construção de certa interpretação,
ao comunicador de passar sua intenção ao público de
101 Luiza Helena Müller dos Santos

forma indireta com o uso de ironias, mas também pode


ser direta, já que o público, inserido no contexto em que
conhece a referência, está apto a receber aquele tipo de
input e espera a realização da paródia satírica.
Trabalhando com a aplicação da paródia satírica nas
produções audiovisuais conhecidas da cultura de massa,
podemos aplicar o conceito de paródia moderna nos
filmes feitos a partir dos filmes clássicos e convencionais
de terror, uma vez que as paródias distorcem histórias,
personagens clássicos e/ou conhecidos e reformulam
o objetivo da película original. Assim, uma paródia pode
apresentar características dos filmes de terror, porém o
objetivo não é aterrorizar e sim divertir através do humor
proveniente da ironia.

Análises de pôsteres

Tendo em vista que as paródias possuem uma re-


ferência, vejamos o exemplo abaixo, sendo um pôster do
filme ‘A Bruxa de Blair: A Paródia’:

(Fo n te :h ttp ://i m g .m e rc a d o l i vr e .c o m.b r/j m /i m g ? s=M L B&f=7 2 2 9 5 2 6 6 _


6904.jpg&v=E)

Pode-se ver que o processo de leitura parte da


relevância e do contexto do leitor, se o mesmo é familiarizado
com o filme original, imediatamente o pôster trará a entrada
enciclopédica, indicando que esse pôster é similar a
102 Processamento de leitura: predição e inferências em pôsteres de paródias de filmes de terror

um cartaz de outro filme. Ao prestar atenção na imagem


principal, verá que a pessoa tem o dedo no nariz e lembrará
que indica falta de educação, inferindo, assim, que
possivelmente esse cartaz não seria sobre um filme sério
ou aterrorizante, e concluindo que não seria o mesmo cartaz
do filme original. O efeito cômico produzido pela imagem se
dá pela relação entre a seriedade do filme original e sua
paródia, uma vez que em nenhum momento esse tipo de
imagem seria vinculado ao original.
É importante também ressaltar que o texto indica
que não se trata do filme original, mas sim ‘A Paródia’, ou
seja, uma reformulação engraçada do filme original de
terror. Há uma quebra no texto que descreve o filme, o leitor
contextualizado com o conteúdo e seriedade do filme original,
ao ler ‘descubra o que pode acontecer com diretores novatos
que se perdem sozinhos em florestas’ pode remeter o texto
ao suspense e terror passado no filme original, entretanto,
o segmento ‘shopping centers e parques públicos’ quebra o
suspense causando um efeito cômico, cujo beneficio é o riso,
uma vez que invalidam o suspense do filme original. Após o
processamento da leitura do pôster, a conclusão implicada é
que o filme em questão usa o humor para distorcer o filme de
terror, logo, deve ser engraçado.
Também vemos que a paródia não necessariamente
(Fonte:http://2.bp.blogspot.com/_f7VsN7cr56s/TM4nhEEXWCI/AAAAAAAAAWg/
se desenrola sobre apenas um filme, mas pode envolver
A1M_pn59PBw/s400/Os+Vampiros+Que+se+Mordam.jpg)
muitos aspectos latentes e emergentes na cultura e no
período em que é produzido.
Nesse exemplo temos muitos elementos que
tratam de um tipo de personagem clássico do terror:
o vampiro. Um leitor contextualizado de que o pôster
se trata de uma paródia verá que cada personagem ali
103 Luiza Helena Müller dos Santos

retrata personagens conhecidos, por exemplo, que os Os textos presentes marcam que o tema é a
três principais personagens são muito similares aos da distorção humorística do vampiro, já que no lugar de um
saga de filmes ‘Crepúsculo’. Também, poderá inferir que nome conhecido como diretor, sarcasticamente é explicito
os personagens menores retratam tanto figuras populares que o filme é feito por ‘caras que não aguentam mais filmes
quanto vampiros conhecidos, estereótipos. de vampiros’. Um leitor contextualizado sobre o sucesso
O leitor começa a inferir que se trata de um cartaz e a popularidade da saga de filmes ‘Crepúsculo’ poderá
de um filme na medida em que foca a atenção em cada inferir o texto como um tipo de crítica.
elemento, e assim concluirá qual filme e seu conteúdo A indústria cinematográfica trabalha com algumas
assim que assimilar as informações. paródias de sucesso. Os pôsteres de ‘Todo Mundo em
Intencionalmente, as figuras destacadas farão o Pânico’ e suas sequências retratam paródias de muitos
leitor começar o processamento da informação. Algumas filmes diferentes, em sua maioria filmes de terror,
inferências começam a ser feitas já que as imagens suspense e ficção.
mostram similaridades com outros cartazes, retratando Muitos elementos textuais e imagéticos informam
personagens vampirescos. ao leitor pistas que o levarão a uma série de inferências
São inferências possíveis, por exemplo, sobre o e conclusões. Nas figuras abaixo, os quatro pôsteres
homem aparentemente nu na figura principal, mesmo que de ‘Todo Mundo em Pânico’ e suas sequências
possa representar o personagem de ‘Crepúsculo’, que a mostram caricaturas de diversos personagens, cada um
posição indica apelo sexual, porém, com características poderá criar uma inferência no leitor, este apoiado nas
homossexuais. Essa inferência acaba refletindo no resto entradas enciclopédicas e contextos necessários para o
da construção de sentido, já que rompe com a seriedade entendimento e compreensão de cada material.
do filme original, causando um efeito humorístico na
compreensão da leitura.
Outro elemento bastante estranho ao contexto
vampiresco é a figura do que seria a cantora Lady Gaga
juntamente com o elenco. O leitor poderá buscar em sua
memória enciclopédica e conhecimento de mundo sobre
a caricatura presente, reforçando a ideia de que o filme
não tratará sobre vampiros clássicos, e sim sobre uma
reformulação das histórias sobre vampiros ridicularizados de
maneira engraçada.
104 Processamento de leitura: predição e inferências em pôsteres de paródias de filmes de terror

No primeiro cartaz, alguns personagens representam


caricaturas de outros personagens em outros filmes. A
figura principal centralizada dá ao leitor contextualizado
pistas para fazer inferências acerca do conteúdo. De
acordo com o conhecimento de mundo do leitor, a máscara
pode ser uma clara referência à série de filmes de terror
‘Pânico’, no qual o assassino em série usa uma máscara
idêntica. Porém, o personagem aparece segurando um
pacote de pipoca, assim, a suposição de que o cartaz seria
de um filme de terror é cancelada, já que outra inferência é
produzida, a de que um assassino é perigoso e não segura
pipocas. Também, vemos que o homem negro expressando
medo e segurando algo que parece ser um lençol, em que
está escrito ‘I see dead people’; esses elementos podem
produzir inferências no leitor, que busca em sua memória
uma referência para a frase. Esta pode pertencer ao filme de
terror/suspense ‘O Sexto Sentido’ e é dita por um pequeno
menino caucasiano. Logo, pode ser inferido que o homem
negro está na mesma situação, com as mesmas emoções
do menino no filme ‘O Sexto Sentido’. A relação estabelecida
produz um efeito cômico, uma vez que o homem adulto é
completamente oposto ao menino frágil do filme original.
A conclusão implicada é de que o filme é uma
paródia de filmes de terror anteriores, e é reforçada pelo
texto ‘Você vai morrer... ’ que implica uma ameaça direta ao
leitor, porém o complemento dá suporte para a conclusão
de que o filme é engraçado já que diz que a forma da morte
do leitor seria ‘... de tanto rir!’.

(Fonte: http://uphunter.files.wordpress.com/2009/10/panico.jpg)
105 Luiza Helena Müller dos Santos

Conclusão realizados. As primeiras inferências auxiliam a conectar


o filme original com o pôster em questão; a partir daí,
O artigo trabalhou conceitos psicolinguísticos de efeitos cognitivos, geralmente produzindo humor, moldam
leitura, principalmente com a predição leitora e também o entendimento do material, já que algumas características
conceitos pragmáticos de inferência presentes na Teoria da dos personagens são distorcidas, rompendo a seriedade do
Relevância de Sperber & Wilson, para ilustrar os conceitos papel do personagem no filme original.
teóricos por meio de uma análise do processo de leitura de O leitor poderá concluir que o pôster que apresenta
pôsteres de paródias de filmes de terror. tais características seria sobre uma paródia de outros
A leitura, sendo uma atividade cognitiva significativa, filmes, assim, mesmo apresentando características dos
dirigida a um objetivo e dependente de conhecimentos filmes sérios, poderá ser engraçado. O riso, proveniente da
prévios do leitor, trabalha com diversos processos cognitivos. paródia, é um alto e relevante beneficio para o leitor, mesmo
Entre eles, a predição leitora consiste na antecipação do com os altos custos de processamento de leitura do pôster.
conteúdo e formulação de hipóteses que são derivadas de
processos inferenciais realizados pelo leitor. Os processos RESUMO – O presente artigo trabalha com conceitos
inferenciais, neste artigo, têm base na Teoria da Relevância. psicolinguísticos de leitura, especificadamente com a predição
Através de análises de determinados elementos e leitora e conceitos pragmáticos de inferência presentes na
pistas encontrados pelo leitor durante o processo de leitura Teoria da Relevância. O trabalho tem como objetivo ilustrar
de pôsteres de paródias de filmes de terror, vê-se que as os conceitos teóricos através de uma análise do processo de
figuras principais são os elementos fundamentais para focar leitura de pôsteres de paródias de filmes de terror.
a atenção do leitor, que julga a relevância da informação
para iniciar o processo de compreensão do material. Palavras-chave: Predição Leitora. Inferências. Teoria da
Os pôsteres, em geral, apresentam personagens que Relevância. Paródia.
se assemelham a personagens de filmes sérios, remetendo o
leitor a buscar seus conhecimentos anteriores, ou, ‘de mundo’ ABSTRACT – This article deals with concepts of reading and
em sua memória para situá-lo diante da informação. Assim, o psycholinguistics, specifically on the prediction reader and
contexto deverá ser reconhecido pelo leitor para se estabelecer pragmatic inference concepts present in relevance theory. The
a relação, caso contrário o leitor não identificará a intenção do paper aims to illustrate theoretical concepts through an analysis
material, não julgará as informações como relevantes ou até of the process of parodies of horror movies’ posters.
mesmo não conseguirá compreender o mesmo.
Estabelecida a relação por meio das imagens Keywords: Prediction Reader.  Inferences.  Relevance
semelhantes, os processos inferenciais começam a ser Theory. Parody.
106 Processamento de leitura: predição e inferências em pôsteres de paródias de filmes de terror

Referências ______. Estratégia de predição leitora nas séries iniciais:


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n. 3, p. 22-27, jul./set. 2009a.
Palabras frecuentes y comprensión de lectura de vocabulario”. ¿Qué significa conocer una palabra y cuánto
en L2: ¿Puede el computador contribuir? conocimiento es considerado suficiente y por qué?
Qian (2002, p. 514) cita una primera definición de
Elba Beatriz Lami Cronbach del año 1942, en donde dicho autor dividió el
Fale com a autora conocimiento de vocabulario en dos categorías principales:
conocimiento del significado de la palabra (generalización,
Muchas áreas dedicadas al estudio del lenguaje se amplitud de significado y precisión de significado) y los niveles
han beneficiado, en estos últimos años, de la explotación de acceso a este conocimiento (disponibilidad y aplicación). No
de los datos extraídos de corpus electrónicos y los obstante, como señala Qian, la pronunciación, la ortografía y la
estudios sobre la adquisición y procesamiento de segunda colocación parecen estar ausentes en este marco definitorio.
lengua no han sido ajenos a esta tendencia. Una de las En la última década, continúa el autor, ha habido
invaluables ventajas que el corpus proporciona es su tendencias en considerar al conocimiento lexical como
confiabilidad, basada esta en la autenticidad de los datos constituido por dos dimensiones primarias: amplitud y
de acontecimientos del lenguaje natural que pueden ser profundidad. La amplitud se refiere al tamaño del vocabulario
examinados por el investigador. o el número de palabras cuyo significado conocemos, por
Este texto tiene como objetivos: destacar la lo menos, superficialmente. Profundidad de vocabulario
importancia del conocimiento de vocabulario en el proceso involucra cómo correctamente uno conoce una palabra. La
de lectura en L2 y reflexionar sobre la conveniencia de la dimensión de la profundidad de vocabulario tanto cuanto
enseñanza explícita de las palabras frecuentes informadas su tamaño son indicadores de un buen desempeño en la
por herramientas computacionales para mejorar la lectura en L2, especialmente de textos académicos según
comprensión de textos en L2. lo afirma el mismo autor.

En el contexto de la investigación sobre


1. Conocimiento de vocabulario y comprensión de la lectura, la dimension de la profundidad
lectura. del vocabulario puede contener
componentes tales como pronunciación,
Se ha aceptado desde hace tiempo que el ortografía, significado, registro, frecuencia
conocimiento del léxico es instrumental en la comprensión y propiedades morfológicas, sintácticas y
colocacionales (QIAN, 2002, p. 515).
de la lectura. En la investigación en primera lengua (L1) tanto
como en segunda lengua (L2), se han escuchado varias
Estructuralmente y funcionalmente estos
propuestas en relación a qué se entiende por “conocimiento
componentes están interconectados. En el proceso de lectura
108 Palabras frecuentes y comprensión de lectura en L2: ¿Puede el computador contribuir?

ellos interactúan y se informan unos a otros para que de ese De lo expuesto hasta ahora, podemos observar
modo se pueda lograr el mejor resultado en la comprensión. la necesidad de ampliar el vocabulario para una mejor
Aprender vocabulario es un importante aspecto comprensión en la lectura de textos en L2. El conocimiento
del desarrollo del lenguaje. Así lo afirman Tozcu y Coady de las palabras más frecuentes en la lengua objeto de
(2004) quienes agregan que, para algunos estudiosos, el estudio es sinónimo de éxito en la comprensión lectora y
conocimiento de vocabulario es considerado el factor más requisito necesario para lograr la proficiencia. Pero ¿cómo
importante en los logros académicos en aprendices de podemos obtener información sobre las palabras más
lengua segunda o extranjera, y que esto está íntimamente frecuentes en las diferentes tipologías o géneros textuales
ligado a la proficiencia en la lectura. Todo esto conduce a un y en determinadas áreas especializadas? Las herramientas
mayor suceso en el ámbito escolar. ofrecidas por la nueva rama de la lingüística; la Lingüística de
Los mismos estudiantes de L2 piensan que el Corpus, a través de un proceso asistido por computadores
vocabulario es importante y ellos están entusiasmados parece darnos la respuesta a nuestro interrogante.
en aprender tantas palabras cuanto puedan. No obstante,
como Coady observó, los profesores tienen la tendencia 2. Breves consideraciones sobre la Lingüística de
en creer que el vocabulario es fácil de aprender y que Corpus y sus herramientas
la gramática es el desafío. El autor señala que muchos
académicos y maestros parecen concluir que “las palabras De acuerdo con Gries,
van a ser aprendidas naturalmente de la lectura y no
necesitan ser enseñadas”. En contra de este supuesto, él La expresión Linguística de Corpus
es partidario de la memorización directa de ítems lexicales se refiere a un método en lingüística
que comprende la recuperación
de “alta frecuencia” (TOZCU Y COADY, 2004, p. 477). De
computarizada, y subsecuente análisis,
esta manera, la automatización en el reconocimiento de la de elementos y estructuras lingüísticas
palabra puede ser lograda enfatizando la enseñanza explícita de los corpora (GRIES, 2008, p. 411).
de palabras en los primeros estadios de la adquisición,
en etapas posteriores, no obstante, el aprendizaje de Ahora bien, ¿qué es un corpus? John Sinclair (1991),
vocabulario será basado contextualmente. De acuerdo con uno de los primeros lingüistas de corpus, lo define como
Nation (1993), citado por Tozcu y Coady (2004):”learners “una colección de textos naturalmente producidos, elegidos
of a foreign language should learn the 2,000 most frequent para caracterizar un estado o variedad del lenguaje”.
words as quickly as possible by using any efficient means Es decir, nos encontramos frente a una disciplina
but especially including direct vocabulary learning”. que se alimenta de las informaciones extraídas de
109 Elba Beatriz Lami

datos del uso real de la lengua,


datos auténticos: producidos por
hablantes reales y no imaginarios o
hipotetizados. Toda esta significativa
fuente de gran porte cuantitativo es
accesible por computadores mediante
softwares especializados y ofrecida
al lingüista para poder analizarla y
hipotetizar sobre ella. La prioridad de
los datos empíricos y con ello la visión
probabilística de la lengua son, a prima
facie, los presupuestos teóricos de esta
metodología o disciplina.
¿Por qué esta vacilación entre
disciplina y metodología? Pues bien, los
estudiosos de esta área se encuentran
divididos en cuanto a considerarla
una disciplina autónoma o una simple
metodología. Debido al gran desarrollo
que este tipo de investigación
lingüística ha alcanzado en las últimas
décadas, se la considera una disciplina
de estudio en sí misma, conocida como Fig. 2. Ejemplo de una parte de una concordancia en el primer corpus compilado para investigación lingüística: El
Lingüística de Corpus; no obstante Corpus Brown. (Brown University Standard Corpus of Present-Day American English).

existen algunos académicos que la


consideran una metodología: text linguistics) No, because “corpus
linguistics” refers not to a domain of
[...] but is corpus linguistics really study, but rather to a methodological
comparable with these other basis for pursuing linguistic research
hyphenated branches of linguistics? (LEECH, 1992, p. 105).
(socio-linguistics, psycholinguistics,
110 Palabras frecuentes y comprensión de lectura en L2: ¿Puede el computador contribuir?

Habiendo presentado compendiosamente lo que la En las coligaciones o “collonstructions” como Gries


Lingüística de Corpus estudia, pasamos a mencionar las las denomina, nos encontramos frente a la co-ocurrencias
herramientas que ella nos ofrece. Existen tres tipos de de elementos lexicales con una gramática o estructura
métodos: la lista de frecuencias y lista de colocaciones; particular. Nesselhauf (2003, pag. 223) señala que “las
las coligaciones y las concordancias (GRIES, 2008, colocaciones, esto es, combinaciones de palabras como
p. 413). Las colocaciones constituyen el método más to make a decision o a bitter disappointment son una
descontextualizado con la posibilidad de búsqueda de una parte importante de la competencia del hablante nativo” y
expresión ignorando el contexto en donde la palabra o frase agrega también que “las colocaciones son de una particular
fue producida (Fig.1). importancia para los aprendices luchando por conseguir
un alto grado de competencia en la segunda lengua”. De
ahí, su importancia como metodología para estudios en
adquisición de vocabulario en segunda lengua.
El fenómeno de colocación ha sido el más
tradicionalmente enfocado en el estudio de corpus como bien
señala Beber Sardinha (2000, p. 360), quien cita a Firth (1957)
como el primero a acuñar la famosa frase “you shall judge a word
by the company it keeps”. Sardinha menciona tres principales
definiciones de colocación en la literatura. Una definición
textual, de Sinclair, donde “colocación es la ocurrencia de dos
o más palabras distantes un pequeño espacio del texto una
de las otras”. Otra definición psicológica de Leech, “ el sentido
colocacional consiste en las asociaciones que una palabra
hace a causa de los sentidos de las otras palabras que tienden
a ocurrir en el mismo ambiente”. Y la estadística de Hoey,
donde “colocación ha sido un nombre dado a la relación que
un item lexical tiene con ítems que aparecen con probabilidad
significativa en su contexto textual”.
Fig. 1. Ejemplo de una parte de una lista de frecuencia de palabras en el
Finalmente, las concordancias, con un contexto más
Protocolo de Kioto. Proyecto Termisul Univerdidad Federal de Rio Grande do
Sul. Accesible en: <http://www6.ufrgs.br/termisul/> amplio, generalmente con cuatro palabras a la derecha o a la
izquierda de la expresión (Fig.2). Y , así como Hunston (2002,
111 Elba Beatriz Lami

pag. 42), nos podemos preguntar: ¿Qué se puede observar La psicoliguística y las teorías cognitivas de la
de las líneas de concordancias? La respuesta será lo “central adquisición, como menciona el autor, sostienen que todas
y típico del uso” de esa expresión o palabra. las unidades linguísticas son abstraídas del uso del lenguaje.
Dependiendo del tipo de corpora a disposición, En esa perspectiva basada en el uso, la adquisición de
Gries (2008) afirma que estos diferentes métodos pueden la gramática es un aprendizaje por etapas de miles de
ser empleados en datos de interés para la investigación en construcciones y de la abstracción parcial de frecuencia
adquisición de L2 y observar todos los tipos de lenguaje que de las regularidades entre ellas.
influencian el resultado de los aprendices.
Language learning is the associative
learning of representations that reflect
3. Frecuencia y reconocimiento automático de
the probabilities of occurrence of form-
palabras. function mappings. Frequency is thus a
key determinant of acquisition because
Como hemos podido observar de lo expuesto hasta “rules” of language, at all levels of
el momento, la gran contribución de la metodología de analysis (from phonology, through
corpus son los datos de frecuencia de palabras. Ellis (2002) syntax, to discourse), are structural
regularities that emerge from learners’
afirma que el procesamiento del lenguaje está íntimamente
lifetime analysis of the distributional
ligado a la frecuencia del input y que la frecuencia es un characteristics of the language input.
componente necesario de las teorías sobre adquisición del Learners have to figure language out
lenguaje y su procesamiento, en el caso que nos interesa (ELLIS 2002, p. 144).
en este trabajo: el proceso de lectura. No obstante, el
autor nota, que ella no es la explicación que basta; existen La estrecha conexión entre la Lingüística de Corpus
también otros determinantes. y la Lingüística Cognitiva, como argumenta Stefan Gries
(2008, p. 412) se evidenciaría en el hecho de que la
Frequency is a necessary component Lingüística de Corpus trata básicamente sobre frecuencias
of theories of language acquisition and y es este tipo de datos los que están “en el corazón” de la
processing . . . Of course, frequency is
Lingüística Cognitiva. ¿Cómo podemos explicar mejor esto?
not a sufficient explanation; otherwise
we would never get beyond the definite Para la Gramática Cognitiva el único tipo de elementos que
article in our speech. There are many el sistema lingüístico contiene son las unidades simbólicas.
other determinants of acquisition Para una unidad ser considerada simbólica es necesario
(ELLIS, p. 178). que ella haya ocurrido con frecuencia suficiente para ser
112 Palabras frecuentes y comprensión de lectura en L2: ¿Puede el computador contribuir?

fijada en el sistema lingüístico del hablante / oyente. La impacto que esto tiene en las teorías sobre procesos de
Lingüística Cognitiva en general y la Gramática Cognitiva en lectura y automatización en el reconocimiento de palabras
particular son enfoques basados en el uso. El supuesto es considerado como crucial: “automatization (i.e., the process
el siguiente: la alta frecuencia de los tokens se correlaciona leading to automaticity) in word recognition is recognized as
con la fuerte fijación y, como argumenta Gries citando a a crucial role in reading development”. Asimismo, Wooley
Langacker (2008, p. 410) “ a mayor fijación mayor acceso a (2010, p. 110) salienta que muchos autores han postulado
la unidad simbólica de forma automática”. que la comprensión de la lectura mejora cuando hay una
Esta accesibilidad automática a la unidad simbólica, disminución en la carga cognitiva en la memoria de trabajo:
rápida y sin necesidad de analizar la estructura interna, sería
otro ejemplo de afinidad entre la Gramática Cognitiva y la during reading, the ability to comprehend is
Lingüística de Corpus. De acuerdo con la teoría interactiva enhanced when there is a reduction in the
overall cognitive load in working memory.
de la lectura, ambos procesos top-down y bottom-up ocurren It is asserted that memory load is affected
durante la lectura fluente. En otras palabras, como menciona by how attention is allocated within
Coady (1993) citado por Tozcu y Coady (2004, p. 478) and between the different component
subsystems of working memory during a
readers do graphophonemic processing particular reading episode.
of word-forms and retrieval of their
meaning, as well as inferencing from 4. Conclusiones
global and local context.’ The important
point is that with more fluent readers
vocabulary processing is automatic La metodología de corpus es una alternativa
which, in turn, allows for more cognitive moderna y eficaz en la producción de datos significativos
processing attention to be given to top- para la investigación lingüística. Diferentes ramas de
down interpretation (COADY, 1993, p. 18). la lingüística están haciendo uso fructífero de ella y los
estudios en el procesamiento de la lectura en L2 no pueden
Sintetizando, el autor afirma que enseñando desaprovechar la oportunidad que ella ofrece en la facilidad
las palabras más frecuentes aumentará la cantidad de de almacenamiento de datos y “visualización” de los mismos
vocabulario visual lo que resultará en más logros en la gracias a los sistemas computarizados.
proficiencia de la lectura. Igualmente, en relación a la El papel que juega la frecuencia en la adquisición
importancia de la automatización, Akamatsu (2008, p. del lenguaje ha sido ampliamente reconocido por los
175) nota la limitación en nuestros recursos cognitivos y el académicos especializados en el área. Los datos de
113 Elba Beatriz Lami

frecuencia obtenidos con gran facilidad de los corpus destacar la estrecha relación entre la automatización en el
computarizados abren las puertas para poder lograr una reconocimiento de palabras y la comprensión proficiente
profundidad de vocabulario que resultará en una mejora en de lectura.
el desempeño en la comprensión de la lectura.
El estudio individualizado de vocabulario aprendido Palabras claves: Comprensión de Lectura en L2; Lingüística
gracias al auxilio del computador ciertamente facilitará de Corpus; Frecuencia y automatización de palabras.
su adquisición. Además, el aumento del conocimiento de
vocabulario es probable de producir un efecto positivo ABSTRACT – The important role that vocabulary knowledge
significativo en la comprensión de la lectura y velocidad en plays in reading comprehension in academic context has
el reconocimiento de palabras frecuentes. been widely recognized by scholars of the field. The way to
La significativa influencia de la frecuencia del help L2 learners to incorporate the greatest amount of words
input en los aprendices de segunda lengua, como dato in less time and in an effective manner is the challenge that
importante obtenido en algunos estudios empíricos, debe foreign language teachers have to face.
ser profundizada y corroborada con nuevos estudios que This work is aiming at introducing the tools that Corpus
puedan abarcar diferentes grupos de hablantes de distintas Linguistics offers to gather data of word frequency; and
lenguas y con diferentes variables individuales. Estos pointing out the close relation between automatization in
resultados seguramente ayudarán en la reformulación de word recognition and proficient reading comprehension.
métodos de enseñanza de lenguas extranjeras en el marco
de un mundo globalizado. Keywords: L2 Reading Comprehension; Corpus Linguistics;
Word Frequency and automatization.
RESUMEN – La importancia del papel que el conocimiento
de vocabulario juega en la comprensión de la lectura en el Referencias
contexto académico ha sido ampliamente reconocido por los
estudiosos del área. La manera de ayudar a los aprendices AKAMATSU, Nobuhiko. The effects of training on automatization
de L2 a incorporar la mayor cantidad de palabras en menos of word recognition in English as a foreign language. Applied
tiempo y de forma efectiva es el desafío que se presenta a los Psycholinguistics Vol. 29, p. 175-193, 2008.
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Inferências e compreensão leitora mais experiente, não necessitar direcionar tanta atenção a
aspectos mais básicos da leitura, como é a decodificação,
irá fazer menos fixações durante os movimentos sacádicos2
Elisângela Kipper1
e essa atenção poderá ser focada na compreensão do
Fale com a autora
texto e na realização de inferências que o auxiliarão nesse
processo. Este seria um segundo nível de leitura, o da
Nas sociedades letradas a questão da importância compreensão, mais profundo que a simples decodificação.
da leitura é indiscutível visto que ela faz parte da vida Nesse sentido este artigo procurará refletir sobre a
cotidiana, desde as tarefas mais banais como tomar o ônibus, leitura como um processo de representação da realidade e
ler informações nas ruas, nomes de estabelecimentos como a busca de significado sobre os dois lados da leitura:
comerciais, até a leitura necessária nas mais diversas informação visual e não visual. Discorrerá também sobre o
profissões: o pintor precisa ler as instruções de seu material tema dos processos de leitura: ascendente, descendente e
de pintura a secretária lê e responde a diversos emails integrativo, por entender que essa discussão é pertinente para
durante o dia, a dona de casa lê uma receita nova, o chegar-se à questão da compreensão, a qual, por sua vez, é
professor, o estudante, todos precisam da leitura. Percebe- adquirida através da capacidade inferencial dos leitores.
se que nessas sociedades manusear o código escrito é uma A compreensão é o fator que relaciona os aspectos
questão de cidadania, porém existe uma grande parte da relevantes do mundo a nossa volta, estando diretamente
população que não possui acesso a esse tipo de código. Da ligada aos conhecimentos prévios e aos esquemas mentais.
mesma forma, existem aqueles que tiveram algum contato Sendo assim, este artigo também procurará discutir sobre
com a alfabetização, sendo considerados alfabetizados predição e inferências, duas estratégias fundamentais na
pelas estatísticas, mas que não compreendem o que leitura e que se inter-relacionam. Em se tratando de predição
leem, somente decodificam o código escrito, os chamados cabe destacar a relevância das pistas oferecidas pelo texto,
analfabetos funcionais. tanto o aspecto estrutural, quanto o aspecto da redundância
Por algum tempo o simples ato de decodificar era das pistas. O foco principal do trabalho será na estratégia
entendido como sinônimo de leitura, porém esse é apenas da inferência e, a partir dela, serão feitas algumas análises
um primeiro nível, embora fundamental, visto que possibilita de tiras do autor argentino Quino.
o acesso ao código por parte do leitor e sem ele não existiria
a leitura. Quanto mais experiente for o leitor, melhor será 2
Saccade (francês) = espasmo. Seriam os saltos rápidos, irregulares, mas
acurados do movimento ocular, importantes na leitura, os quais englobam em
sua habilidade de decodificação, pois esta acaba tornando- torno de sete palavras por vez nos leitores mais proficientes e um número bem
se um processo automático e à medida que esse leitor, menor de palavras durante a leitura por parte de um leitor não proficiente, ou
daquele que encontra problemas durante a leitura, por exemplo, ao se deparar
1
Mestranda em Linguística- PUCRS. Email:elisangela.kipper@acad.pucrs.br com termos desconhecidos.
116 Inferências e compreensão leitora

1. Reflexões sobre leitura tipos de informação: quanto mais informação não visual
o leitor possua, menos informação visual necessitará
Segundo Leffa (1996), a leitura seria um processo de durante a leitura, muito embora esta sempre envolverá uma
representação, sem se dar por acesso direto à realidade, combinação de informações visual e não visual. Na leitura
visto que existe a intermediação de outros elementos é importante aquilo que ocorre por trás dos olhos, onde se
incutidos nessa realidade. Então, ocorre um processo de localizam o conhecimento anterior, a finalidade, incertezas
triangulação da leitura, uma vez que, por meio da visão, e questões a serem feitas.
olha-se uma “coisa” e vê-se outra, pois a percepção está Percebe-se que ambos os autores citados
repleta de conhecimentos prévios que irão intermediar acreditam que a ‘bagagem’ trazida pelo leitor irá influenciar
e influenciar o que se vê. “Não se lê, portanto, apenas a diretamente no processo de compreensão do texto, visto
palavra escrita, mas o próprio mundo que nos cerca”. Ainda, que nela se encontram as representações mentais que
“ler é na sua essência, olhar para uma coisa e ver outra” darão significado ao que se lê. Através dessa perspectiva
LEFFA (1996, p. 10). verifica-se que a leitura não é uma tarefa fácil, ela exige do
Corroborando com o pensamento de Leffa, é possível leitor ampla atividade cognitiva que envolve os sentidos, a
perceber que Smith (2003), no capítulo titulado “Entre os memória, a atenção, a capacidade de decodificação, assim
olhos e o cérebro”, também alude à questão da leitura como como a familiaridade com aspectos linguísticos dos mais
algo muito além de somente decodificar. diversos níveis como fonológico, semântico, sintático e
Sob a perspectiva psicolinguista, Smith (2003) também pragmático que estarão implicados de uma forma
argumenta que os olhos não veem, eles observam, pois ou de outra no que Smith denomina “visão de mundo” do
são dispositivos de coleta para o cérebro, que por sua leitor, e que, por sua vez, implica diretamente no processo
vez, determina o que e como vemos. O autor aponta dois da compreensão leitora.
lados da leitura: o primeiro seria o da informação visual, Leffa (1996) propõe definições de leitura em que é
aquilo que vemos na página impressa e que desaparece possível verificar a dicotomia entre leitura como extração
quando as luzes se apagam; o segundo lado, ou a segunda de significado de um determinado texto e leitura como
percepção da leitura seria a informação não visual, que atribuição de significado ao texto. Na primeira visão de
ocorre por trás dos globos oculares e que está com o leitor leitura tem-se a direção do texto para o leitor e a ênfase é
o tempo todo, não desaparecendo quando as luzes se dada no objeto escrito, como se este tivesse um significado
apagam, pois essa informação é oriunda das experiências preciso, exato e completo a ser captado pelo leitor à medida
do leitor, ou seja, seus conhecimentos prévios. Assim, que este vai decodificando, linearmente, da esquerda para
para Smith, existe uma relação recíproca entre os dois a direita, palavra por palavra, a mensagem trazida pelo
117 Elisangela Kipper

texto. Nessa concepção o leitor estaria subordinado ao processo de leitura descendente, ou seja, desce do leitor ao
que aparece nas páginas escritas, o que ele recebe é o texto. Cabe salientar que, embora as diferentes realidades
centro da leitura, esta vai subindo do texto em direção ao possam inferir em múltiplas interpretações, existe um limite
leitor, de maneira ascendente e a compreensão acontece quanto ao número de inferências possíveis nesse diálogo
enquanto o leitor avança no texto. Pereira (2009, p.12) entre texto (que também implica autoria) e leitor. Esse
nomeia essa visão como um processamento cognitivo de movimento descendente, não linear é nomeado por Pereira
movimento bottom-up. (2009, p. 12), como movimento top-down.
Uma segunda visão de leitura entende que ler é Entender o processo de leitura apenas como uma
atribuir significado ao texto. Dessa forma, o centro do das visões mencionadas acima implicaria não perceber que
processo de leitura seria o próprio leitor, é ele quem atribui na maioria das vezes essa dicotomia torna-se una, havendo
e extrai significado do texto dependendo da bagagem e das um processo complexo de interação entre texto e leitor, em
experiências prévias que inferem no momento da leitura, o que ambos interagem em busca da compreensão, o que
que possibilita um mesmo texto provocar diferentes leituras vem, então, a gerar uma terceira visão, em via dupla: a de
dependendo da percepção da realidade de cada leitor. leitura como interação texto/leitor e entre uma concepção
ascendente e descendente de leitura. Nessa concepção,
A riqueza da leitura não está o leitor usa seu conhecimento prévio para interagir com a
necessariamente nas grandes obras informação do texto, processo conhecido como interativo.
clássicas, mas na experiência do leitor
ao processar o texto. O significado
Ao entender a leitura como um processo interativo,
não está na mensagem do texto, mas a visão de leitor passivo, que recebe informações do texto,
na série de acontecimentos que o deve ser abandonada, em direção a uma visão de leitor ati-
texto desencadeia na mente do leitor vo, atuante na completude do texto. Esse tipo de visão im-
(LEFFA, 1996, p. 15). plica diretamente o entendimento da compreensão como
o fator que relaciona os aspectos relevantes do mundo a
Essa segunda visão de leitura, ao contrário da nossa volta (Smith, 2003). Por meio da leitura é possível
primeira, acredita na possibilidade de o leitor prever agregar algo novo ao que já conhecemos e ao mesmo tem-
(“adivinhar”, segundo Leffa) o que as frases seguintes po modificar nossos conhecimentos anteriores, integrando
trazem, não sendo necessário buscar significados de o dito no texto e os conhecimentos prévios do leitor.
palavras desconhecidas no dicionário, visto que o contexto
Para entender um texto devemos
geralmente autoexplicará o vocábulo desconhecido. Nessa
relacionar os dados fragmentados do
concepção, o entendimento se efetiva através de um texto com a visão que já construímos
118 Inferências e compreensão leitora

de mundo. Todo texto pressupõe essa Outros dois conceitos relevantes em se tratando de
visão de mundo e deixa lacunas a leitura, entendidos também como estratégias, são a predição
serem preenchidas pelo leitor. Sem e a inferência. Segundo Pereira (2009) essas duas estratégias
o preenchimento dessas lacunas a
compreensão não é possível (LEFFA
seriam os “alicerces do raciocínio para compreensão leitora”.
1996, p. 25). Segundo Goodman (1991, p. 28), “os leitores utilizam
uma quantidade mínima da informação textual disponível
Para a compreensão do mundo, segundo Leffa (1996) necessária em comparação com os esquemas linguísticos e
e Smith (2003), o leitor necessita possuir uma representação conceituais do leitor existentes para obter o significado”.
mental do mesmo, que lhe é fornecida através de esquemas. A estratégia da predição, também entendida como
Esses são estruturas abstratas, construídas pelo próprio previsão, permite a fluência do processo de leitura, pois o
indivíduo para representar sua teoria de mundo, sendo leitor, à medida que vai adquirindo experiências, consegue
que aos poucos o indivíduo percebe que suas experiências perceber as pistas trazidas pelo texto que irão facilitar sua
possuem características comuns a outras e vão se capacidade antecipatória. Para Smith (2003), a previsão é a
estabelecendo convenções. Para Smith (2003), compartilhar eliminação anterior de alternativas improváveis e a projeção
a mesma cultura significa ter a mesma base categórica para de possibilidades, o que permite reduzir a ambiguidade e
organizar os conhecimentos; assim, a linguagem reflete a eliminar, de antemão, alternativas irrelevantes. Esse autor
maneira como certa cultura organiza a experiência. relaciona diretamente a estratégia em questão com a
Dentro da representação mental de um indivíduo compreensão. Para ele, previsão é “fazermos perguntas,
e de uma determinada sociedade, tem-se o esquema de e compreensão é respondê-las”. Também entende que
uma sala de aula, de um restaurante, de um almoço, de previsão significa que a incerteza do ouvinte ou leitor está
uma fazenda, etc. No esquema do almoço, por exemplo, limitada a umas poucas alternativas prováveis, visto que os
temos uma série de elementos comuns que nos dão essa diversos contextos - silábico, da palavra, da frase e o próprio
representação mental: a hora, o uso de talheres, a comida, sentido do texto - irão direcioná-lo para as pistas corretas.
etc. Leffa (1996) denomina esses elementos como sendo Várias são as pistas que o leitor poderá perceber,
variáveis, mutáveis e adaptáveis. Para ele “o que caracteriza Smith comenta a relevância da organização textual em
um determinado esquema é, portanto, uma determinada estruturas formais pré-estabelecidas, os esquemas de
configuração de variáveis” (p. 35). Dessa forma, segundo a gêneros, que auxiliam as previsões do leitor e também na
Teoria dos Esquemas, “a leitura não é nem atribuição nem recordação do lido. Segundo ele: “quanto mais um autor
extração de significados, mas a interação adequada entre conhece e respeita as formas que o leitor irá prever, mais o
os dados do texto e o conhecimento prévio do leitor” (p. 44). texto será fácil de ler e recordar” (SMITH, 2003, p. 61).
119 Elisangela Kipper

As estruturas também determinam a memória. eliminar vários substantivos e adjetivos que começam com
Quanto mais o leitor puder antecipar as estruturas formais “ân”, como ânfora (vaso grego), ânafe (trevo) uma vez que
que um autor utiliza, mais poderá compreender e recordar se entende que não são objetos que marujos lançam ao
o que lê. Da mesma forma, quanto mais um autor conhece mar, usa-se assim uma eliminação semântica. Para o autor,
e respeita as formas que o leitor irá prever, mais o texto essas formas de eliminação visual, ortográfica, sintática e
será fácil de ler e recordar. O leitor precisa conhecer os semântica fornecem informações sobrepostas, implicando
diferentes gêneros textuais para entender a leitura e o autor redundâncias que facilitarão no processo preditivo. Assim,
precisa usá-los para facilitar a compreensão e a memória, quanto mais redundância existir, menos informações visu-
diretamente relacionadas. ais serão necessárias para o leitor experiente.
Outras pistas são oferecidas ao leitor através da Goodman (1991) postula três sistemas de indícios,
redundância. Segundo Smith (2003) ela existe sempre de onde o leitor extrairia as pistas preditivas de informação
que a mesma informação está disponível em mais de uma na leitura: o sistema grafofônico (envolvendo os sistemas
fonte, ou seja, quando as mesmas alternativas podem ser ortográfico, fonológico e fonético); o sistema sintático (gra-
eliminadas através de mais de uma maneira e envolvendo mática da língua) e o sistema semântico (envolve o senti-
vários níveis linguísticos. Smith (2003, p. 76) explica a do, a pragmática).
redundância com o exemplo a seguir:
Os leitores utilizam uma seleção de
O capitão ordenou que o marujo lançasse a ân- indícios grafofônicos, sintáticos e se-
mânticos. Esses indícios estão dentro
do texto e do leitor. Os leitores devem
Para o autor existem diferentes modos (pistas) que ter esquemas para a ortografia, para a
possibilitam o leitor a prever (“reduzir a incerteza”) no que sintaxe da língua e para os conceitos
tange ao restante da sentença. Primeiro poderia ser feita pressupostos pelo autor, a fim de se-
uma eliminação visual, virando a página e seguindo a lei- lecionar, utilizar e fornecer os indícios
tura através da evidência propiciada pelo sentido da visão. apropriados para o texto dado (GOOD-
MAN, 1991, p. 35).
Outro modo de previsão seria através de uma pista orto-
gráfica, então não poderia ser “b, m, p, x,” uma vez que
Percebe-se que a estratégia da previsão fornece
não ocorrem após “ân”. Provavelmente o leitor pensaria
pistas para que o leitor vá lançando suas hipóteses sobre
que se trata de um substantivo ou adjetivo, uma vez que
o que está por vir no texto, tal estratégia está intimamen-
essas classes de palavras são precedidas pelo artigo, pro-
te relacionada com a inferência, visto que para prever ele
piciando então uma eliminação sintática. Pode-se, também,
parte de indícios do que já conhece, tanto no que tange
120 Inferências e compreensão leitora

a microestrutura (conhecimentos linguísticos), quanto a Segundo Madruga (2006), as inferências são o nú-
macroestrutura (sua visão de mundo). cleo do processo de compreensão e de comunicação hu-
Este artigo procurará, a seguir, focar as estratégias mana, servindo para unir a informação nova a um todo re-
inferenciais de leitura, pois entende que as interpretações lacionado. Ou seja, por meio delas o indivíduo consegue
de mundo possíveis estão diretamente ligadas ao que o lei- interligar o input recebido nas inúmeras situações de sua
tor infere durante a leitura. vida com a informação trazida pelo texto, gerando um novo
conhecimento e, este, por sua vez, irá interferir novamente
2. Inferências e compreensão leitora na aquisição de novas experiências, como em uma cadeia.
Entendendo esse processo é possível perceber por
Para entender o processo inferencial é necessário que leitores mais experientes conseguem fazer reflexões
ter presente a noção de esquema (estruturas para a re- mais profundas em suas leituras, enquanto os menos expe-
presentação de conceitos na memória), já discutida ante- rientes muitas vezes não conseguem compreender um tex-
riormente. Segundo os defensores dessa teoria, os esque- to em sua totalidade, pois a compreensão está intimamente
mas servem para preencher lacunas durante o processo relacionada com o acúmulo de experiências (na memória)
de compreensão e são acionados pela ativação inferencial que refletirão diretamente na capacidade de fazer inferên-
que é dada através de hipóteses. À medida que o texto vai cias. Por isso, para Madruga o conceito de inferência é vis-
se solidificando, tais hipóteses vão se concretizando, ou to como um processo de recuperação da informação na
não, dependendo das inferências a que o leitor recorreu. memória de longo prazo e como um processo de geração
Para que as hipóteses se concretizem é preciso ha- de novos conhecimentos, que irão posteriormente para a
ver uma espécie de “harmonia”, uma integração entre au- memória de longo prazo.
tor, texto e leitor. Madruga (2006) aponta três motivos que Para Pereira (2009), a inferência é definida como o
explicariam a interpretação incorreta de um texto: quando percurso cognitivo para a predição, no intuito de beneficiar a
não existem os esquemas apropriados ao leitor (a baga- compreensão leitora. A autora utiliza duas categorizações que
gem não é suficiente); quando o escritor não proporciona abarcam perfeitamente os processos inferenciais: a inferência
os indícios adequados; ou quando o leitor constrói uma re- linguística episódica (que envolve os níveis grafofônico,
presentação inferencial coerente, porém, incorreta. Nesse morfológico, sintático, semântico e pragmático, entendendo
sentido, a parte quatro deste artigo fará a análise prática que estes podem ocorrer simultaneamente) e a inferência
de algumas tiras da Mafalda, com o intuito de refletir sobre metalingüística, que se detém apenas nas pistas linguísticas.3
algumas das inferências possíveis, por parte do leitor.
3
Para uma análise mais profunda ver: Predição e inferência, PEREIRA
(2009, p. 14 - 17)
121 Elisangela Kipper

No que tange à classificação dos tipos de inferências, necessário abarcar o modelo situacional6 (o texto mais os
Madruga (2006) também apresenta uma categorização conhecimentos de mundo do leitor).
bastante interessante. Ele divide as inferências em duas De acordo com os aspectos discutidos até aqui se
maneiras de análise: a primeira considera o tipo de verifica que a inferência é importantíssima no processo de
processo mental implicado (inferências automáticas ou leitura, e, como mencionado anteriormente, as interpreta-
controladas), a segunda leva em consideração os tipos de ções de mundo possíveis estão diretamente ligadas ao que
tarefas e o nível de representação em que as inferências o leitor infere durante a leitura. No entanto, se faz necessá-
estão relacionadas (inferências com coerência local e rio evidenciar que a estratégia inferencial não ocorre sozi-
base no texto, inferências relacionadas com a coerência nha, estando diretamente envolvida com a predição e com
global, inferências relacionadas com o modelo situacional e a quantidade de esquemas mentais disponíveis no leitor,
inferências relacionadas com o gênero do discurso)4. sendo impossível separar essas noções.
Outra discussão interessante de Madruga diz
respeito às teorias sobre a realização de inferências, que 3. A estratégia da inferência na prática
nas últimas décadas geraram algum tipo de polêmica:
a teoria minimalista e a teoria construtivista.5 Essas Para uma maior reflexão prática no que tange à es-
duas visões divergem acerca do momento em que se tratégia da inferência, selecionaram-se três tiras do escri-
geram os diversos tipos de inferências. Segundo o autor, tor de histórias em quadrinhos Quino, o argentino Joaquín
a primeira teoria centra-se na distinção entre inferências Salvador Lavado, que em 1964 começou a publicar as
automáticas e estratégicas, estas últimas controladas histórias de Mafalda, uma menina muito esperta que com
pelos objetivos do leitor, sustentando que as inferências menos de oito anos faz análise dos problemas políticos,
automáticas estão disponíveis na coerência local (através odeia sopa, quer fazer faculdade (o que não era comum
das conexões do texto). às mulheres da época) e trabalhar na ONU, questiona sua
A segunda teoria sustenta que, além das inferências mãe pelo fato de dedicar-se apenas aos cuidados da casa
depreendidas pelas conexões do texto, geram-se inferências e não ter uma profissão. Enfim, a personagem faz uma
globais a partir do modelo mental que os leitores constroem relexão cômica e irônica dos problemas e acontecimentos
quando compreendem um texto. Nessa perspectiva, para da época em que eram escritos (1964 a 1973), mas que
a compreensão é preciso mais do que o texto em si, é são adequados e atuais para gerar reflexões nos dias de
6
“A principal função do chamado modelo de situação é estabelecer a coerência da
4
Para um estudo mais detalhado dessa classificação ver: MADRUGA (2006, rede, o que é feito por meio do preenchimento das lacunas textuais, o que o leitor
p. 81 - 91). realiza, ao mobilizar seu conhecimento prévio. Ou seja, é o conhecimento prévio
5
Para um aprofundamento na questão das teorias inferenciais ver: MADRUGA que permite ao leitor produzir inferências, construindo, dessa forma, a representa-
(2006, p. 92 -94). ção mental do texto” GABRIEL (2009, p. 06). Ver também MADRUGA (2006, p. 50).
122 Inferências e compreensão leitora

hoje, misturando o trágico com o cômico, ao passo que conhecedores das críticas do autor argentino, puderam
diverte e denuncia ao mesmo tempo. remeter-se ao período da ditadura quando os conflitos entre
As tiras em questão foram distribuídas para cinco universitários e policiais eram frequentes.
adolescentes cursando a oitava série do Ensino Fundamen- No que tange à segunda tira (anexo II) foi possível
tal (14 e 15 anos) e cinco estudantes do curso de pós-gra- perceber que a capacidade de abstração dos adolescentes
duação em letras (25 a 35 anos), com o intuito de perceber precisa ser mais trabalhada, visto que a maioria deles, mais
como as variáveis idade e escolaridade poderiam interferir uma vez, somente parafraseou o dito na tira, não fazendo
na quantidade e profundidade das inferências. inferência crítica com a realidade, o que se percebe na
Solicitou-se que os participantes escrevessem o interpretação de um dos participantes do grupo em questão:
entendimento que tiveram numa primeira e rápida leitu- “A aluna entendeu que a professora estava falando sobre
ra; posteriormente eles deveriam ler novamente as tiras e sua própria vida, mas sendo que na realidade ela estava
relatar de forma escrita as interpretações mais profundas apenas explicando a matéria”.
(geradas por um maior número de inferências, com uma Em se tratando dessa segunda tira, observou-se
maior refexão). Outra solicitação feita foi no sentido de pon- que, com o aumento dos conhecimentos prévios, adquiridos
tuarem as palavras ou ícones que serviram de pistas para a paralelamente com as variáveis idade e escolaridade, os
compreensão (pistas que auxiliaram o direcionamento das estudantes do segundo grupo, mais uma vez, mostraram
inferências). Importante salientar que a tarefa foi solicitada capacidade inferencial mais elevada, percebendo a intenção
sem nenhuma atividade de pré-leitura. de crítica ao sistema educacional vigente.
Com relação à primeira tira (anexo I) verificou-se que A capacidade de fazer inferências é condicionada
os adolesentes fizeram interpretações literais, ficando num à capacidade de abstração. Para Madruga (2006), a abs-
nível apenas linguístico, reproduzindo o escrito na tira, não tração é característica do pensamento de adolescentes e
relacionando-a com acontecimentos sociais e históricos. adultos, não sendo algo universal, pois é fruto de longos
Não houve nenhuma referência a conflitos estudantis, que anos de estudos e práticas intelectuais aos quais começa-
seguramente nunca vivenciaram, mas que poderiam ter sido mos a ser expostos no início dos anos escolares.
acompanhados na televisão, ou ser fruto de conhecimento de Rossa (2002) aborda a questão da experiência lei-
leituras prévias. No momento da realização das inferências, tora como determinante na compreensão, entendendo-a
se os adolescentes já possuíam algum tipo de ‘bagagem’ com como algo treinável:
relação ao tema, estes não foram acionados, seguramente
porque não lhes foram relevantes. Já os estudantes mais Quanto mais experientes como leito-
res, mais os aprendizes conseguem
velhos, certamente com a bagagem de suas leituras e
lembrar e compreender parágrafos
123 Elisangela Kipper

inteiros, em especial as informações que, além das variáveis acima mencionadas, é mais fácil
explícitas no texto. Com o treinamento compreender elementos que condizem com a realidade
adequado o aluno consegue estabele- vivida, visto que estes implicam uma maior significação e
cer relações cada vez mais adequadas
e profundas e consegue ler as idéias
consequentemente será gravado na memória do indivíduo,
que estão presentes no texto, embora podendo ser resgatado com maior facilidade no momento
não ditas diretamente. A leitura entre- de fazer inferências durante a compreensão leitora.
linhas é mais facilmente treinável a Obviamente a quantidade de participantes dessa
partir de aproximadamente 12 anos de atividade prática é questionável e não possui um peso relativo
idade... (ROSSA, p. 137). capaz de generalizar seus resultados; no entanto, este trabalho
objetivou apenas uma pequena amostragem do quanto os
Com relação à terceira tira (anexo III) verificou-se que conhecimentos prévios que se adquirem no decorrer da idade
as inferências de ambos os grupos geraram interpretações e da escolarização, assim como os elementos significativos,
com um mesmo nível de profundidade. Embora mais novos, podem interferir na compreensão leitora.
o grupo de adolescentes conhece as adversidades do
mundo, pois as vivenciam, e está diariamente em contato Conclusão
com o discurso da mídia que também as relatam. Conhecer
o tema da tira certamente facilitou a interpretação no sentido Através das reflexões aqui apresentadas, que di-
de comprender que a crítica estava voltada aos problemas recionam a uma visão integrativa do processo de leitura,
do mundo, implicando a descrição do original como um verificou-se que o significado não está somente no texto,
desastre, palavra que fez com que todos os leitores, embora seja nele que se encontre o sentido pretendido
independente da idade e escolaridade, inferissem em pelo autor, a completude da compreensão somente se
seu sentido negativo que abarca a violência, os desastres dará quando as ideias do autor se unirem com o conheci-
ecológicos, os conflitos entre as nações, o abuso de mento de mundo que o leitor trará para o texto. Assim, a
autoridade, os preconceitos, etc. Nesse sentido percebe-se compreensão leitora implica autor, texto e leitor.
a relevância das experiências significativas na construção As diferentes realidades vividas pelos leitores e
das inferências, outro fator que facilita a compreensão. trazidas ao texto implicarão diferentes maneiras de re-
Através dessa reflexão prática verificou-se que construção do texto, condicionando uma polissemia de
as variáveis idade e escolaridade implicam diretamente sentidos, que se verifica nas diferentes interpretações
a quantidade e a profundidade das inferências trazidas possíveis. Nesse sentido é impossível entender a leitura
ao texto no momento da compreensão. Conforme o apenas como ato de decodificar, visto que o leitor ne-
verificado através da análise da terceira tira, percebeu-se
124 Inferências e compreensão leitora

cessita inferir para poder extrair as ideias implícitas nas understanding, it will also discuss some relevant concepts to
entrelinhas do texto. Quanto mais experiente for o leitor, the understanding of such strategies in a practical attempt to
maior o número de inferências possíveis no processo de analyze the possible inferences in Mafalda comic strips.
compreensão. As experiências são gravadas na memória
segundo sua relevância, ou seja, armazenam-se experi- Keywords: Reading. Comprehension. Inferences.
ências segundo o seu grau de significação para o indi- Prediction. Schemes
víduo. As inferências jamais ocorrem sozinhas, estando
diretamente envolvidas com a predição e com a quanti- Referências
dade de esquemas disponíveis na mente do leitor, sendo
impossível separar essas noções. ARAUJO, Denise de Castilhos. A comunicação iconográfico/
verbal: Uma análise hermenêutica de Mafalda. 2003, 193fls. Tese
RESUMO – Este artigo faz uma reflexão sobre o processo de (Doutorado em Comunicação Social) – Pontifícia Universidade
compreensão leitora entendendo-o como busca de significado Católica do Rio Grande do Sul, Porto alegre, 2003.
por parte do leitor e não como simples decodificação do
GABRIEL, Rosângela; SOUSA, Lucilene. Fundamentos
código escrito. Nesse sentido abordará a questão da
Cognitivos para o Ensino de Leitura. Signo. Santa Cruz do
predição e inferências, estratégias de leitura entendidas
Sul, v. 34 n. 57, p. 47-63, jul.-dez., 2009. Disponível em: http://
por Pereira (2009) como “alicerces” da compreensão,
online.unisc.br/seer/index.php/signo/index, acesso em 24 de
discutirá também sobre alguns conceitos relevantes para
novembro de 2010.
o entendimento de tais estratégias procurando analisar de
forma prática as possíveis inferências em tiras da Mafalda. GOODMAN, Kenneth S. Unidade na leitura – um modelo
psicolinguístico transacional. Letras de Hoje, n. 26, n.4, p. 9-43.
Palavras-chave: Leitura. Compreensão. Inferências. Porto Alegre: EDIPUCRS, dez. 1991.
Predição. Esquemas. LEFFA, VILSOM J. Aspectos da leitura: Uma perspectiva
sociolinguística. Porto Alegre: Sagra- D.C Luzzatto, 1996.
ABSTRACT – This article reflects on the process of reading
comprehension, undestanding this process as the pursuit MADRUGA, Juan García: Lectura y conocimiento: Cognición
for meaning by the reader and not simply by decoding y desarrollo humano. Barcelona: Paidós, 2006.
the written code. In this sense, the article will address the
issue of prediction and inference, which are the reading
strategies understood by Pereira (2009) as  foundations of
125 Elisangela Kipper

PEREIRA, Vera Wannmacher. Predição Leitora e Inferência. ANEXO I:


In: CAMPOS, Jorge. Inferências linguísticas nas Interfaces.
Porto Alegre, EDIPUCRS. p. 10-22, 2009. Disponível em:
http://www.pucrs.br/edipucrs/inferencias.pdf. Acesso em
outubro de 2010.
______; KRÁS, Cléa Silva Biasi. Compreensão leitora:
Uma visão Psicolinguística. Disponível em http://forum.
ulbratorres.com.br/2010/mini_texto/miini11.pdf-. Acesso em
novembro de 2010.
ROSSA, Adriana Angelim. Uma abordagem cognitiva no Fonte: Araujo, 2003, p. 62.
aprendizado da leitura. In: PEREIRA, Vera Wannmacher.
Aprendizado de Leitura: Ciências e Literatura no Fio da
História. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2002. p. 129-139.
SMITH, Frank. Compreendendo a leitura: uma análise ANEXO II:
psicolinguística da leitura e do aprendera ler. Porto Alegre:
Artes Médicas, 2003.

Fonte: http://clubedamafalda.blogspot.com/2007_03_01_archive.html
126 Inferências e compreensão leitora

ANEXO III:

Fonte: http://clubedamafalda.blogspot.com/2007_03_01_archive.html

Processamento de leitura: cultura digital e pressupostas para mensagens do twitter, enquanto na
processos inferenciais seção 4 fala-se sobre qual papel os esquemas mentais
podem desempenhar nesse tipo de contexto. Na seção 5,
Daisy Pail1 aborda-se a teoria em desenvolvimento sobre o diálogo. Na
Fale com a autora
penúltima seção, é explicado o que é cultura digital e quais
seriam alguns de seus efeitos sobre a comunicação. Por
último são apresentadas as análises do tweets.
“Food for the mind is like food for the body:
the inputs are never the same
as the outputs”. 1. Teoria das Implicaturas
Marshall McLuhan
H.P. Grice parte da diferença entre significado da
Neste artigo serão analisados tweets para ilustrar sentença (presente do modelo de código) e significado do
interface entre teorias linguísticas, ciências sociais e ciências falante, portanto uma abordagem pragmática. No artigo
cognitivas, a fim de explanar o processamento de leitura Lógica e Conversação, 1975, Grice apresenta um modelo
em contexto de cultura digital. A fundamentação teórica inferencial de comunicação, segundo o qual o falante dá
do trabalho envolve a Teoria das Implicaturas (GRICE, evidência de sua intenção de provocar certo significado,
1975), Teoria da Relevância (SPERBER & WILSON, 1995), que será inferido pelo ouvinte com base nas evidências
a Teoria do Diálogo (COSTA, 2010) e Esquemas Mentais manifestas pelo falante.
(JOHNSON-LAIRD, 1983). Todo enunciado linguístico cria expectativas que
Tentar-se-á ilustrar a interface proposta e explicar guiam o ouvinte para a interpretação. Essas expectativas
os processos inferenciais assumindo as hipóteses: i. sem são descritas no Princípio de Cooperação (PC). Esse é
inferências não há compreensão leitora; ii. em cultura digital, um conjunto de normas que governam o ato comunicativo
o conhecimento prévio ou informações enciclopédicas entre os envolvidos. Ao PC se vinculam máximas
não precisam existir a priori, pois o conhecimento pode conversacionais. A violação (ou não) das máximas permite
se dar online. gerar as implicaturas, que podem ser conversacionais
Nas seções 1 e 2 são explicadas, respectivamente, ou convencionais. Em seu modelo inferencial, além das
a Teoria das Implicaturas e a da Relevância. Na seção 3, implicaturas, são abordadas as noções de intencionalidade
expõe-se qual movimento e qual estratégia de leitura são e contexto a partir da ideia de que o que é comunicado vai
1
Possui especialização em Assessoria e Consultoria Linguística (2010) e está além do que é decodificado linguisticamente.
cursando mestrado em Linguística pela PUCRS com bolsa do CNPq. Email: pail- Como exemplo, segue o diálogo abaixo:
daisy@gmail.com
128 Processamento de leitura: cultura digital e processos inferenciais

Mel e Ana estão no bar conversando sobre Seguem alguns exemplos de implicatura convencional:
relacionamentos. a- Ester saiu cedo, mas ainda não chegou.
(A) Ana: Paulo perguntou por que tu não ligou b- Absolute Sandman tem quatro volumes. A Panini
mais pra ele. lançou o primeiro, portanto deve lançar o segundo
(B) Mel: Se eu quisesse algo tão carente, comprava em breve.
um cachorro!
c- Peter é super-herói, mas tem má fama.
Conforme observa Grice, certos diálogos, como
esse acima, apresentam duas formas de significação:
o significo da sentença e o significado do falante. Para Está dito em a. que Ester saiu cedo e que ainda
melhor demonstrar isso, os enunciados serão analisados não chegou e implicitado que ela já deveria ter chegado.
um por vez. Em (A), a primeira é que Paulo perguntou por O que permitiu essa implicatura é o valor convencional de
que (B) não ligou mais para ele e a segunda, implicitada ‘mas’. Da mesma forma ocorre em b. e c., em que através
pela primeira, que Paulo e (B) chegaram a ter algum tipo dos conectores se têm as implicaturas, respectivamente:
de relacionamento, mas que (B) cortou a ligação entre eles que, uma vez que a Panini lançou um dos volumes, deve
sem muita explicação. O enunciado de (A) leva ao (B), lançar os demais e que Peter deveria ter boa fama por
em que a primeira significação é que se (B) quisesse algo ser herói. Nos três casos, a implicatura se deve ao valor
carente, compraria um cachorro, implicitando a segunda convencional das palavras.
significação: (B) não ligou mais para Paulo, pois ele é Segundo Grice, o outro tipo de implicatura pode ser
muito carente e B não gosta disso. A segunda significação subdividido em outras duas:
diz respeito ao que (A) e (B) poderiam entender, mas que Implicatura conversacional generalizada — quando
não está no dito. Objetivando organizar um sistema que não depende de um contexto específico e
explique esse tipo de significação, Grice apresenta os Implicatura conversacional particularizada — quando
termos implicitar (implicate), implicatura (implicature) e depende de um contexto particular.
implicitado (implicatum). Como dito, o PC é um conjunto de normas. Esse
Há dois tipos de implicatura: princípio é sistematizado em torno de quatro categorias
Implicatura convencional — presa ao significado fundamentais relacionadas a máximas e supermáximas.
convencional das palavras (valor semântico) e a Categoria de quantidade — relacionada com a
Implicatura conversacional — não está presa ao informatividade. Correspondem a essa categoria duas
valor semântico, sendo determinada por certos princípios máximas: a) faça com que sua mensagem seja tão
básicos do ato comunicativo. informativa quanto necessária para a conversação; b) não
dê mais informações do que o necessário.
129 Daisy Pail

Categoria de qualidade — diz respeito à veracidade Sperber e Wilson (S&W), apoiados em estudos sobre a
das informações fornecidas. Essa categoria está diretamente cognição humana e sobre lógica, partem da hipótese de
relacionada à supermáxima “Procure dizer coisas que o Princípio de Relevância, baseado numa relação de
verdadeiras” e indiretamente a outras duas: a) não afirme o economia e eficiência da informação, faz parte da cognição
que acredita ser falso; b) não afirme algo para o qual você humana. A partir disto, os autores desenvolveram uma
não possa fornecer evidência adequada. abordagem pragmático-cognitiva de como se processa
Categoria de relação — diz respeito à máxima inferencialmente a comunicação.
“seja relevante”. Sperber e Wilson (S&W), devido à sua abordagem
Categoria de modo — relacionada à supermáxima “seja cognitivo-comunicativa, descrevem outro tipo de inferên-
claro” e a máximas como: a) evite obscuridade de expressão; cias: as não-demonstrativas. Essas funcionam na base de
b) evite ambiguidade; c) seja breve; d) seja ordenado. suposições que podem ser apenas confirmadas, mas não
As implicaturas podem ser geradas em três situações: provadas. Devido ao funcionamento baseado em suposi-
a) nenhuma máxima é violada, b) uma máxima é violada ções se pode explicar por que, mesmo nas melhores condi-
para que outra não seja e c) violação de uma máxima para ções, pode ocorrer falha na comunicação4.
obter implicatura conversacional. Segundo o princípio cognitivo, a cognição humana
Enquanto as implicaturas convencionais são presas tende a se dirigir para a maximização da relevância5. Algo
ao valor semântico convencional das palavras e reconhecidas se torna relevante a um indivíduo na medida em que hou-
pela intuição linguística, as implicaturas conversacionais ver equilíbrio entre esforço cognitivo para processamento
devem ser calculáveis ou dedutíveis, canceláveis, não de informação e efeitos cognitivos conseguidos: (a) quan-
separáveis, indetermináveis, não convencionais e não to maior é o número dos efeitos cognitivos, maior é a rele-
determinadas pelo dito. vância; (b) quanto menor é o esforço de processamento,
maior é a relevância6.
2. Teoria da Relevância ― comunicação e cognição Os efeitos cognitivos são entendidos como
alteração(s) no ambiente cognitivo7 de um indivíduo. Esses
Sperber e Wilson (1995) buscaram explicar como a efeitos podem ser de fortalecimento das suposições —
comunicação humana ostensiva2 se realiza. Em Relevância: quando as suposições já existentes são reforçadas através
comunicação e cognição, os autores apresentaram uma 4
Falha de comunicação significando “mal-entendido”.
reinterpretação cognitiva do modelo inferencial de Grice.3 5
Sperber e Wilson, 2001, p. 11.
6
Sperber e Wilson, 2001, p. 11.
7
S&W definem o ambiente cognitivo como um “conjunto de suposições manifes-
2
Ver crítica sobre outras situações em Fábio Rauen e Jorge Campos. tas em graus diversos” (...). Se as suposições se tornam mutuamente manifestas,
3
Apresentado na primeira seção. tem-se o ambiente cognitivo mutuamente manifesto (...) (SILVEIRA, 2002, p. 28)
130 Processamento de leitura: cultura digital e processos inferenciais

de mais evidências —, de contradição das suposições — Mel, através dessa afirmação, quis tornar manifesto um
quando há fornecimento de evidências contrárias entre duas conjunto de suposições e premissas. Esse comportamento,
suposições, sendo eliminada aquela que tiver menos evi- tornar manifesta10 a intenção de tornar algo manifesto, é
dências —, e de implicações contextuais – combinação da chamado, por S&W, de ato de comunicação ostensiva.
informação nova com as suposições existentes. Esse último O conjunto de suposições e premissas, nesse caso,
efeito é o que os autores chamam de P em C: a informação será formado a partir do input linguístico ― para fins de
nova (P) é processada no contexto de suposições (C) exis- demonstração mais rápida, somente o enunciado de Mel
tentes na memória enciclopédica ou advindas do ambiente será analisado ―:
físico observável para derivar uma nova informação. Premissa implicada 1: Mel e Paulo tiveram pelo
Toda e qualquer informação pode servir como pre- menos um encontro.
missa em um processo inferencial. A escolha de qual é mais Premissa implicada 2: Mel não procurou mais
relevante dependerá do contexto selecionado, do ambiente por Paulo.
cognitivo de um indivíduo e da disponibilidade de informação. Como emprego de oração subordinada condicional,
As formas de armazenamento de informação são: enciclopé- Mel já dá ao seu enunciado um tom de dúvida sobre querer
dica (“informações armazenadas na mente sobre a extensão sair de novo com Paulo. Entretanto, ela implica muito mais,
e a denotação de um conceito: isto é, sobre os objetos, acon- como demonstrado a seguir:
tecimentos e/ou propriedades que o representam”)8, lógica Suposição 1: Paulo é muito carente.
(conjunto de regras dedutivas estáveis e finitas) e lexical (in- Suposição 2: Mel não gosta de carência afetiva.
formações linguísticas de caráter representacional). Suposição 3: Cachorros também são carentes.
De acordo com Sperber e Wilson (1995), o contexto Suposição 4: Mel preferia um cachorro carente a um
será uma representação mental formada por suposições. Paulo carente.
As suposições fatuais podem advir: da percepção, da de- Conclusão implicada: Mel não pretende sair de novo
codificação linguística, das suposições e esquemas de su- com Paulo.
posições armazenadas na memória, e da dedução.9 Em Suposição 1 é reforçada pelo advérbio de intensidade
outras palavras, ele não é dado e sim construído. ‘tão’. Já a suposição 2 é reforçada pela estrutura condicional
Retomando-se o primeiro exemplo (seção 1): do enunciado de Mel. As suposições 1, 2, 3 e 4 formam uma
Ana: Paulo perguntou por que tu não ligou mais pra ele. implicação contextual, na qual 4 é a informação nova (P)
Mel: Se eu quisesse algo tão carente, comprava
processada num conjunto de suposições antigas (1,2 e 3),
um cachorro!
permitindo a conclusão implicada.
8
Sperber e Wilson, 2001, p. 144. 10
Tornar algo manifesto é chamar atenção para algo, ter algo manifesto é estar
9
Sperber e Wilson, 2001, p. 137. ciente sobre algo.
131 Daisy Pail

A ostensão carrega uma garantia tácita de leitura é resultado de um processo inferencial, no qual
relevância, pois, ao produzir um estímulo, cria no receptor o leitor elabora um conjunto de suposições passíveis,
uma expectativa de que é relevante o bastante para nos termos da TR, dos efeitos cognitivos, levando a
merecer atenção. Assim, através de seu enunciado, Mel conclusões implicadas.
comunicou a presunção de relevância ótima. É nesse Posição semelhante é adotada por Pereira, como se
primeiro momento, no qual ocorre um estímulo ostensivo demonstrará a seguir. Para essa autora,
por parte de quem comunica, que o receptor inicia um
processo inferencial, sendo a primeira inferência a que Entre todas as (estratégias de leitura)
mencionadas, são mais recorrentes as
vale o esforço para processar a informação fornecida.
duas últimas (predição e inferência),
possivelmente por constituírem o alicerce
3. Processamento de leitura e processos inferenciais do raciocínio de compreensão da leitura.
(PEREIRA, 2009, p. 150)
Dentre as estratégias de leitura ― o scanning, o
skimming, a seleção, o automonitoramento, a autoavaliação, O processamento de leitura ou os movimentos
a autocorreção, a predição e a inferência ― a predição é bottom-up e top-down, segundo Pereira (2009), “sofrem
apontada por alguns autores como a mais importante para a a influência de variáveis como o objetivo da leitura, os
compreensão. Entre esses autores se encontra Smith (2003). conhecimentos prévios do leitor, o tipo de texto e os
Segundo este autor, a nossa teoria de mundo não é caminhos cognitivos já desenvolvidos por ele”.
estática, ela se modifica e desempenha papel na previsão e Enquanto o movimento bottom-up é caraterizado
na predição da qual depende o processo de leitura. Ele afirma como um movimento das partes para o todo ― ou seja, uma
que predição surge da associação entre previsão (elaboração leitura minuciosa e linear, na qual “todas as pistas visuais são
de questionamentos durante o processo de leitura) e utilizadas” (PEREIRA, 2009) ―, o movimento top-down é não
compreensão (respostas a esses questionamentos). linear, partindo da “macroestrutura para a microestrutura, da
Ainda de acordo com esse autor, a previsão é a função para a forma” (PEREIRA, 2009).
responsável por dar ao texto potencial significativo, reduzindo
A inferência está sendo assumida como
ambiguidades, eliminando alternativas irrelevantes e
caminho com esforço cognitivo para
projetando possibilidades. a predição, com vistas ao benefício da
Contudo, essa visão de leitura pode ser explicada compreensão leitora, o que faz uma
através de teorias inferenciais, como a de Grice e S&W, aproximação com a Teoria da Relevância
pois a elaboração de perguntas e respostas durante a (PEREIRA, 2009, p. 152).
132 Processamento de leitura: cultura digital e processos inferenciais

Diferentemente da autora, que considera inferências Segundo Anderson (apud OLIVEIRA, p. 51),
metalinguísticas e episódicas, se assumirá neste artigo a há seis funções dos esquemas que podem colaborar
noção de inferências multiformes, como proposto por Jorge na compreensão:
Campos da Costa.
a) o esquema oferece uma estrutura bá-
4. Esquemas e modelos sica e ideal para que seja possível assi-
milar a informação do texto;
b) o esquema facilita a focalização sele-
Modelos cognitivos são “estruturas tiva da atenção;
complexas de conhecimentos, que re- c) o esquema facilita o uso da inferência;
presentam as experiências que viven- d) o esquema favorece a evocação de
ciamos em sociedade e que servem de informações armazenadas na memória;
base aos processos conceituais. São e) o esquema facilita a organização e a
frequentemente representados em for- sumarização das informações;
ma de redes, nas quais as unidades f) o esquema permite a reconstrução
conceituais são concebidas como va- do sentido.
riáveis ou slots, que denotam caracte-
rísticas estereotípicas (defaults) e que,
durante os processos de compreensão, Considerando-se o exposto, os esquemas
são preenchidas com valores concretos ofereceriam um número inicial de premissas para o
(fillers)”. Assim, quanto mais contato um processo inferencial envolvendo a leitura, neste artigo
leitor tiver com a leitura, mais facilidade especificamente de tweets.
deverá haver na compreensão do lido
(KOCH, 2002, p. 44).
5. A Teoria do Diálogo
Segundo Smith,
As teorias (Teoria das Implicaturas e Teoria da
os leitores desenvolvem e necessitam Relevância) explicitadas são de conteúdo, porém há algo
de um grande número de esquemas anterior a esse nível que permite e provoca o diálogo: uma
espacialmente organizados: os tendência natural para a conectividade ― em concordância
gêneros, esquemas para vários tipos com a teoria de Darwin. Essa tendência é defendida na
de textos que são convencionais (Smith
teoria em desenvolvimento11 por Costa (2010) sobre o
2003, p. 156).
diálogo como Principio da conectividade não-trivial:
11
Não há ainda publicações oficiais sobre a teoria além da que consta nas referências.
133 Daisy Pail

hipótese de sustentação da presente de veracidade das proposições” (apud COSTA).


abordagem (é) que deve existir uma Contudo, Costa (2010) entende que há diferença entre
tendência inata para a conectividade potencialidade para condições de verdade e condições
não-trivial ― ser uma conexão não
apenas mecânica, mas interativa e
de verdade. Com a finalidade de eliminar esse problema,
criativa, entendida como comunicação é assumido o conceito de condições de veracidade que
humana básica. Nesse sentido, a pri- se realizam nas condições de boa formação sintática, de
meira expressão de tal princípio é o de boa formação semântica e de adequação pragmática.
que ele se expressa através de uma Além disso, as condições de veracidade são uma verdade
linguagem especial, humana, e a se- provisória ou online.
gunda é que ele representa, de manei-
ra geral, compromissos informativos
Há pelo menos quatro níveis de articulação para
não redundantes. descrição do diálogo, quais sejam: o dito explícito, o dito
implícito, o intencional e o inferencial.
O diálogo é assumido como unidade básica de O contexto codificado semanticamente no dito é
comunicação social, na qual o bilateral é a forma mais relacionado com o dito implícito. Este é pressuposto pelo
elementar. Porém, em cultura digital o diálogo é bilateral contexto. No dito implícito não é feito cálculo inferencial para
apenas na relação homem-máquina, pois em sua realização a recuperação dessas informações, pois o dito explícito é
ele é realizado entre muitas pessoas12. Este tipo de diálogo que ficou econômico.
foi cunhado por Costa (2009) como virtuálogo. Por exemplo, voltando ao pequeno diálogo de
De acordo com Costa (2010), “a estrutura significativa Ana e Mel:
do Diálogo envolve aspectos lexicais, sintáticos, semânticos Ana: Paulo perguntou por que tu não ligou mais
e pragmáticos”. Esses aspectos desempenham papel pra ele.
importante em todos os níveis de articulação do diálogo e Mel: Se eu quisesse algo tão carente, comprava
também para proporcionar condições de veracidade. um cachorro!
Um entrave para o estudo das condições de O dito explícito é somente o expresso no enunciado
verdade em uma interface entre lógica strictu senso e de ambas, já o dito implícito ― entre colchetes ― em
linguagem natural é a aceitação existente de argumentos Ana é “Paulo perguntou [para mim, Ana] por que tu [Mel]
falaciosos. Strawson viu, na “conexão entre significado não ligou mais para ele [Paulo]” e em Mel é “Se eu [Mel]
e intenção, binômio capaz de preencher a lacuna quisesse algo tão carente [como Paulo], comprava um
aberta pelo tratamento puramente lógico das condições cachorro [que é tão carente quanto Paulo]”.
12
Não se dispõe aqui de dados sobre esses números.
134 Processamento de leitura: cultura digital e processos inferenciais

O intencional, ligado ao emocional, guia um de “comunidades inteiras em estado de conexão”, nas


diálogo afetando o inferencial. “Dada uma certa intenção, palavras de Costa.
o significado dialógico é obtido pela interatividade das Nessa concepção, os chamados meios se tornam
subpartes” (COSTA, 2010). “infovias com efeitos impressionantes ao nível do movimento
Supondo-se que no exemplo acima a intenção de das massas, da ocupação de espaços, da integração
Ana não fosse apenas saber por que Mel não telefonou sociocultural, da globalização econômica, etc” (COSTA13). A
mais para Paulo, mas saber se a outra ficaria chateada distinção antes existente entre forma e conteúdo se desfaz,
caso viesse a se relacionar com aquele. Então, a como vaticinado por McLuhan em The médium is the mas-
conclusão implicada no enunciado de Ana seria outra que sage (1969). Segundo essa concepção, o meio faz parte da
não apenas a curiosidade. mensagem, uma vez que a importância recai sobre o como,
Apesar de as teorias de Grice e S&W considerarem e não mais apenas no que, e esta (a mensagem) produz na
a intencionalidade, a TR não abarca situações nas quais o massa um efeito semelhante ao de massagem modeladora
princípio de relevância é contrariado. Essas situações são ao mesmo tempo em que o meio valoriza a era da massa.
descritas por Costa e Rauen (2009) e podem ser justificadas, De acordo com Costa,
segundo os autores, pela hipótese da conectividade não trivial,
assumida aqui para melhor explicitar os tweets escolhidos. o interessante de se considerar é que
estamos num mundo digital, somos
inforgs, tipos conectados numa infosfera
6. Cultura digital e twitter dentro da biosfera e interagindo com
ela, e, ainda, não temos resposta para
Desde a criação da World Wide Web, por Tim Berners- o conceito elementar de fatos (COSTA,
Lee em 1989, a mudança iniciada pela computação se 2010, p.7).
acelerou e se globalizou. E como “qualquer nova tecnologia
de transporte ou comunicação tende a criar seu respectivo Porém, apesar de não termos essa resposta não é
meio ambiente humano” (McLUHAN, 1979), se tem hoje possível ignorar que a cultura digital necessita passar por
uma verdadeira cultura digital, na qual estamos conectados investigações para elaboração de educação para essa nova
através de diferentes meios. concepção. Supondo-se, como proposto por Costa,
“A nova interdependência eletrônica recria o mundo
que, ao invés de uma microvisão sobre
à imagem de uma aldeia global” (McLUHAN, 1979), pois
os meios, a interface a ser estabeleci-
permite ao homem estar em mais de um lugar, aumentando da seja com uma visão mais ampla das
seu alcance geográfico e tornando-o representante
13
http://www.jcamposc.com.br/textos_para_as_disciplinas.html
135 Daisy Pail

Ciências Sociais. Nessa direção, antes Este artigo é uma tentativa de dar um passo a essa
do que conteúdos, as redes comuni- perspectiva. Como ilustração da tentativa dessa interface,
cativas representam em si mesmas o serão analisados alguns tweets, mensagens da rede
centro das atenções, já não modeladas
pelo microângulo cognitivo.
social twitter. O twitter foi criado em 2006 por Jack Dorsei.
Suas mensagens são limitadas a 140 caracteres, assim
Conforme Costa, afetando não só a forma, mas também a mensagem.

o meio em si tem sido identificado com 7. Processos inferenciais em contexto de cultura digital
o suporte material, entidade física,
enquanto o conteúdo veiculado tem sido Apesar de se assumir que os tweets constituem um
apresentado como entidade abstrata,
talvez psicológica ou cognitiva, de
virtuálago, nos termos de Costa (2009), alguns deles serão
natureza não típica, em oposição ao analisados separados dos demais, como é o caso dos três
suporte que o transporta (COSTA, primeiros. Se há uma tendência natural para a conectividade
2010, p.8). não-trivial (COSTA, 2010), então se pode dizer que,
trivializando um pouco o conceito de S&W (1995), o primeiro
Modelos como de Shannon e Weaver (modelo de benefício será o da conexão através da interação. Os tweets
códigos) e de Sperber e Wilson (inferencial) consideram serão processados dentro do esquema já existente para
meio e conteúdo de forma separada, ocupando-se apenas o twitter, se e somente se não se tratar de novo usuário.
do segundo. Entretanto, dentro do quadro esboçado nesta Nesse caso, se novo usuário, então o processamento será
seção, conforme Costa, o universo da comunicação do esquema origem para o esquema alvo.
Assumindo-se não ser esse o caso, as seis funções
assume uma visão não-dualista dos esquemas, apontadas por Anderson, oferecem a
na direção de uma semiótica das estrutura básica dos tweets: o ponto para o qual deve dirigir a
materialidades em que as redes,
estruturas e conexões estão no centro
sua atenção, a evocação ou busca de informações ― como
das investigações. Isso instaura, a hipótese apresentada na Introdução ―, a organização
então, uma outra perspectiva analítica e a reconstrução de sentido. Essas funções facilitam o
das comunicações, em que a natureza movimento top-down.
dos meios passa a ter o papel Os processos inferenciais serão demonstrados pela
sociocultural mais relevante. teoria do Diálogo, pela teoria das Implicaturas, para as quais
serão considerados os seguintes conceitos da TR: princípio
136 Processamento de leitura: cultura digital e processos inferenciais

da relevância, ambiente cognitivo, efeitos cognitivos e S3 Dizer que alguém não voltou de um confronto
entradas de informação. bélico é implicar que este morreu.
Neste tweet se tem uma implicatura conversacional Conclusão implicada: O BOPE matou os traficantes.
particularizada a partir da quebra da máxima de modo. A S1 é gerada a partir de ‘brincar’, no primeiro verso,
devido à despreocupação que brincar acarreta. Já S2 é
gerada através da onomatopeia ‘pá pá pá pá’ que
indica, dentro do contexto do tweet, disparos de armas
de fogo. Essa suposição reforça a subsequente que
permite a conclusão implicada.
Através da estrutura e da sequência fonética
é acionada a entrada enciclopédica referente à
Fonte 1 - http//:www.twitter.com
música infantil da Xuxa. Para demonstrar isso, será posto
Relacionado com o dito explícito se tem o dito entre colchetes o que foi modificado ao lado de seu original
implícito demonstrado entre colchetes: em negrito.
“Cinco traficantes foram passear, além do Complexo “Cinco patinhos [traficantes] foram passear, além da
[do alemão] para brincar, o BOPE [Batalhão de OPerações montanha [do Complexo] para brincar, a mamãe chamou
Especiais] falou, pá pá pá pá... E nenhum traficante voltou [falou]: quá, quá, quá, quá [pá pá pá pá], mas [e] nenhum
de lá [Complexo do Alemão]”. patinho [traficante] voltou de lá”.
Através das entradas lexicais abaixo são acionadas Houve quebra intencional da máxima de modo para
as seguintes entradas enciclopédicas: gerar, além da conclusão implicada, um efeito de paródia,
‘Complexo do Alemão’: território dominado por conseguido através da associação de música infantil com
traficantes; um quadro de violência.
‘BOPE’: tem histórico de extrema violência, No tweet abaixo, o esquema existente para análise
incluindo execuções. de gênero fará parte da paródia. Em algumas redes sociais
Por meio disso é possível fazer as seguintes é exibido o complemento ‘sorte do dia’ que é utilizado
suposições: para gerar uma implicatura conversacional particularizada
S1 Os traficantes não possuíam inimigos em seu através da aparente quebra da máxima de relação ― no
território; entendimento de Grice: manutenção do tópico.
S2 O BOPE usou força bélica para enfrentar os
traficantes;
137 Daisy Pail

Com a aparente quebra da máxima de relação


foi gerado um efeito sarcástico, podendo ser este
considerado o benefício: a percepção do sarcasmo.
No tweet que segue, também ocorre aparente
quebra da máxima de relação por não mencionar a
Fonte 2 - http://www.twitter.com invasão da Vila Cruzeiro e do Complexo do Alemão.

Assim como no primeiro tweet analisado, o


dito implícito será posto entre colchetes:
“Sorte do dia [25 de novembro de 2010]:
“Você [leitor] não mora na Vila Cruzeiro [do Rio de
Janeiro, capital] e nem no Complexo do Alemão [do Fonte 3 - http://www.twitter.com
Rio de Janeiro, capital]””.
A entrada lexical ‘sorte’ é relacionada a algo bom, “Ibope informa que [o time de futebol] flamengo tem
enquanto ‘dia’ se refere ao dia da invasão da Vila Cruzeiro e a maior torcida [de futebol] do Brasil. BOPE informa que
vésperas da invasão do Complexo do Alemão pelo exército amanhã [depois da invasão Vila Cruzeiro e do Complexo do
e pelas polícias civil e militar. Alemão pelo BOPE] não terá mais”.
O tweet corresponde à informação nova processada A entrada lexical ‘flamengo’, além de se referir ao
em um contexto de informações antigas, acionadas pelas time de futebol, permite acesso à entrada enciclopédica
entradas enciclopédicas referentes à ‘Vila Cruzeiro’ e ao referente à ligação entre a concentração de torcedores
‘Complexo do Alemão’. Nesse exemplo, as suposições desse time e essas comunidades. A entrada enciclopédica
podem ser: ‘BOPE’, dentro do contexto do Rio de Janeiro no dia 26
S1 Algo bom vai ou está acontecendo; de novembro de 2010, também se refere ao histórico
S2 Haverá confronto entre polícia e exército contra de violência, com casos de execução. As suposições
os traficantes da Vila Cruzeiro e do Complexo do Alemão; que podem vir a ser geradas a partir desse conjunto de
S3 Esses lugares serão zona de batalha; informações são:
S4 Pessoas inocentes que morarem lá podem S1 O maior número de torcedores do Flamengo se
ser feridas. encontra no Complexo do Alemão;
Conclusão implicada: Quem não morar na Vila S2 Há muitos traficantes no Complexo do Alemão;
Cruzeiro e no Complexo do Alemão pode se considerar S3 Os traficantes torcem para o Flamengo;
agraciado pela sorte do dia.
138 Processamento de leitura: cultura digital e processos inferenciais

S4 O BOPE invadirá o Complexo do Alemão; Explicitando o dito implícito entre colchetes, o


S5 O BOPE matará muitos traficantes. tweet ficará assim:
Conclusão implicada: O Flamengo não terá mais “Qual a semelhança entre Casseta e Planeta
a maior torcida do Brasil, pois o BOPE matará muitos de [programa humorístico da Rede Globo no ar há 19 anos]
seus torcedores. e essa piada [que estou contando agora]? R: Nenhum dos
O benefício, nesse caso, se encontra na compreensão dois [Casseta e Planeta e essa piada] tem mais graça”.
do humor negro. Através do input linguístico ‘Casseta e Planeta’ é
No conjunto de tweets abaixo é gerada uma acionada a entrada enciclopédica sobre o programa. Este
implicatura conversacional generalizada a partir da quebra está no ar há quase duas décadas e há muito perdeu seu
da máxima de quantidade. caráter crítico, se focando apenas em parodiar a novela
das nove horas. A partir da quebra de máxima
de quantidade através do retweeted da piada é
possível as seguintes suposições:
S1 Quando a piada é repetida muitas vezes,
ela perde a graça;
S2 Casseta e Planeta tornou-se repetitivo.
Nesse caso a conclusão implicada é que
Casseta e Planeta não é mais atrativo enquanto
programa humorístico.
Apesar de nenhum dos exemplos serem
passíveis às condições de verdade, todos possuem
condições de veracidade: boa formação sintática, boa
formação semântica e, principalmente, adequação
pragmática. Devido a essas características os tweets
são aceitos como possíveis e verossímeis.

Considerações finais
Fonte 4 - http://www.twitter.com
Tentou-se demonstrar aqui como e por que foi
assumido que processos inferenciais estão na base
139 Daisy Pail

da compreensão leitora, sem eles não se chegaria às Teoria de Implicaturas, a Teoria da Relevância, a Teoria do
conclusões implicadas e consequentemente ao sentido Diálogo e a Teoria de Modelos Cognitivos. São assumidas,
dos tweets. Os processos inferenciais foram demonstrados neste artigo, as hipóteses: i. sem inferências não há
de maneira superficial, haveria outros níveis para serem compreensão leitora, ii. em cultura digital, o conhecimento
incluídos na ilustração da interface, mas estes tornariam a prévio ou informações enciclopédicas não precisam
explicação muito extensa. existir a priori, pois o conhecimento pode se dar online.
Apesar de o valor informativo dos tweets ser muito Para demonstração do processamento inferencial, foram
baixo, o principal benefício é a satisfação do princípio da escolhidos alguns tweets e estes analisados de acordo com
conectividade não-trivial, todos buscavam a criatividade a interface criada.
e a interatividade. Outro ponto a ser acrescido às
observações é que o próprio custo parece se realizar como Palavras-chave: Processamento de Leitura. Processos
parte do benefício por misturar elementos linguísticos e Inferenciais. Teoria das Implicaturas. Teoria da Relevância.
extralinguísticos, tais como a repetição. Teoria do Diálogo. Esquemas Mentais.
Embora as entradas enciclopédicas tenham sido
descritas como existentes a priori, elas não são assumidas ABSTRACT – This paper presents an attempt to explain the
como necessárias, visto que, por se tratar de rede social de process of reading in the context of digital culture through
cultura digital, é pressuposto que o leitor esteja conectado an interface between linguistics and cognitive sciences.
a web. Se assim for, as informações necessárias para The interface, more specifically, will be among the theory of
compreensão podem ser adquiridas online, isto é, no implicatures, Theory of Relevance, theory of dialogue and
momento da leitura. Isso, claro, se se considerar que o leitor theory of cognitive models. The following assumptions will be
não esteja sendo guiado pelo baixo custo. assumed in this paper: i. there is no reading comprehension
Por último, cabe lembrar a frase de McLuhan: “the without inference, ii. in digital culture, prior knowledge
medium is the massage”, pois o próprio meio e estrutura or encyclopedic information do not need toexist a priori,
serviram para a elaboração das suposições, como since knowledge can take place online. To demonstrate the
demonstrado nas análises. inferential processing, we chose some tweets and they were
analyzed according to the interface created.
RESUMO – Neste artigo é apresentada uma tentativa de
explicitar o processamento de leitura em contexto de cultura Keywords: Read Processing. Inferential Processes. Theory
digital através de uma interface entre linguística e ciências of Implicatures. Relevance Theory. Theory of Dialogue.
cognitivas. A interface, mais especificamente, é entre a Mental Schemes.
140 Processamento de leitura: cultura digital e processos inferenciais

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141 Kelli da Rosa Ribeiro

Uma discussão sobre estratégias mobilizadas na compreensão leitora de textos, observando


vários aspectos que constituem a leitura no momento da
metacognitivas em leitura na escola
construção de sentidos de um texto.
Trataremos desses subsídios, a partir da reflexão
Kelli da Rosa Ribeiro1 e sistematização metodológica do instrumento Escala
Fale com a autora de estratégias metacognitivas de leitura, utilizado em
pesquisa por Joly e Marini (2008) no artigo A leitura no
Ensino Médio e o uso das estratégias metacognitivas2. A
Cada dia mais, nós, professores de Língua
partir das bases teóricas apresentadas e das informações
Portuguesa, temos a necessidade de contribuir para o
da escala apresentada pelas autoras, formularemos
desenvolvimento da competência de leitura nos estudantes
alguns procedimentos norteadores de atividades de leitura
de Ensino Fundamental e Médio, para que se tornem
em sala de aula.
cidadãos capazes de exercer sua cidadania em qualquer
Visando cumprir tais metas o presente artigo está
situação que a sociedade lhes impõe. Assim, torna-se
dividido em três seções seguidas das considerações
indispensável que a finalidade do ensino de língua materna
finais. A primeira traz algumas considerações sobre
seja leitura e produção de textos de diversos gêneros que
a Psicolinguística e sua contribuição para a área das
tenham relevância social.
pesquisas em leitura. A segunda mostra noções de leitura
Pensando nessas questões de ensino, iniciamos
e estratégias metacognitivas fundamentadas na corrente
esse artigo com os seguintes questionamentos: como
teórica da Psicolinguística. A terceira seção, com base em
formar leitores, como despertar o aluno para a importância
pesquisa realizada sobre estratégias metacognitivas em
e, principalmente, para o prazer na leitura? Estas são talvez
leitura, tenta dar alternativas de questões que ajudem os
as problemáticas mais levantadas nos últimos tempos tanto
professores na condução da atividade de leitura.
nas escolas quanto nas academias.
Dessa forma, escolhemos para fundamentar nossas
A proposta da Psicolinguística: breves considerações
reflexões sobre leitura a corrente teórica da Psicolinguística,
levando em consideração a sua preocupação com os
Conforme Cabral (1991), foi o impacto da Segunda
processos que envolvem atividade de leitura e compreensão.
Guerra Mundial que desencadeou a “necessidade de
Assim, esse trabalho tem por objetivo oferecer subsídios
desenvolver o conhecimento sobre os sistemas de
teórico-práticos sobre estratégias metacognitivas que são
comunicação”. Surge, então, dessa necessidade, uma
1
Mestranda em linguística pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do 2
Artigo publicado na revista Estudos e pesquisa em psicologia da UERJ, RJ, ano
Sul (PUCRS). Email: kelli.ribeiro@acad.pucrs.br 8, n2, pg. 505-522, 1º semestre de 2008.
142 Uma discussão sobre estratégias metacognitivas em leitura na escola

possibilidade de unir as descobertas e os avanços de Esses dois grandes pensadores socioconstrutivistas se


pesquisas da área da Psicologia e da Linguística no sentido preocupavam com o desenvolvimento das estruturas
de entender os processamentos da linguagem e a mente. mentais e como isso influi no desenvolvimento do indivíduo.
Assim, por volta dos anos 50, nasce a Psicolinguística Os dois estudiosos partiam de pontos diferentes
enquanto disciplina autônoma, tendo como principal para explicar essa questão: Piaget utilizava uma abordagem
objeto de estudo os processos cognitivos e psicológicos epistemológica e Vygotsky uma abordagem genética.
subjacentes à produção e compreensão da linguagem Enquanto Piaget acreditava que o conhecimento se constrói
verbal. Segundo Leitão (2008), o principal interesse dessa através da ação do sujeito sobre o objeto, ou seja, na
disciplina pode ser resumido em três pontos, tais como: interação homem-meio, sujeito-objeto, Vygotsky afirma que é
modo de aquisição da linguagem verbal, modo de produção na família e nas diversas relações e interações sociais que o
da linguagem e a compreensão da mesma. sujeito adquire o conhecimento. Uma importante contribuição
Alguns autores merecem destaque no surgimento para a Linguística proposta por Vygotsky é que a relação
da Psicolinguística. É com as ideias inatistas de Noam entre homem e mundo é uma relação mediada, na qual,
Chomsky que a disciplina dá seus primeiros passos, pois, existem elementos que auxiliam a atividade humana. Estes
se baseando na ideia de que a faculdade da linguagem elementos de mediação são os signos e os instrumentos.
é inata na mente humana, os pesquisadores da área se Como não é função deste trabalho pormenorizar e
posicionam contra o modelo estruturalista de Ferdinand aprofundar as propostas de cada teórico fizemos apenas um
Saussure para quem a linguagem era essencialmente panorama geral do terreno no qual nasce e frutifica a atual
um fato social. disciplina chamada de Psicolinguística. Passemos à próxima
Nesse sentido também se direcionavam as reflexões seção que abordará questões de leitura e estratégias, foco
de Humboldt que se preocupava basicamente com a deste trabalho.
relação entre os processos mentais e o comportamento
verbal. Scliar-Cabral (1991) salienta que Humboldt fazia Leitura e estratégias
distinção entre dois aspectos da linguagem: ergon (produto)
e energeia (processo). Resumidamente, ergon passa a ser Como este artigo tem por objetivo refletir sobre os
o objeto da linguística de Saussure e a energeia passa a processos de leitura relacionados ao ensino-aprendizagem
ser o objeto da Psicolinguística. de língua materna, é pertinente trazer para nossas
Vale ressaltar, nesse espaço de breves considerações reflexões noções de leitura que constam em documentos
sobre a Psicolinguística, as importantes contribuições de J. oficiais brasileiros.
Piaget e L. Vygotsky para o desenvolvimento das pesquisas. Os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN’s) de
143 Kelli da Rosa Ribeiro

Língua Portuguesa do terceiro e quarto ciclos do Ensino leitura é um fenômeno complexo e dinâmico, pois mobiliza
Fundamental trazem uma proposta de tratamento didático a vários mecanismos de apreensão e compreensão do que
vários conteúdos dessa disciplina. Segundo esse documento está sendo lido.
Segundo Kato (1985), o processo de leitura pode ser
a leitura é o processo no qual o entendido como um conjunto de habilidades que envolvem
leitor realiza um trabalho ativo de
estratégias de vários tipos. Em tais habilidades, como,
compreensão e interpretação do texto,
a partir de seus objetivos, de seu por exemplo, encontrar parcelas significativas do texto,
conhecimento sobre o assunto, sobre estabelecer relações de sentido, coerência e de referência
o autor, de tudo que sabe sobre a entre certas partes do texto, avaliar a verossimilhança e a
linguagem (PCNs: p. 69) consistência das informações e inferir o significado, bem
como o efeito pretendido pelo autor, o leitor utiliza esquemas.
Dessa forma, não podemos conceber uma ideia Esses esquemas conduzem o percurso da leitura e,
de leitura como mera e simples decodificação de letra por segundo Kato (1985), podem ser ativados basicamente de
letra, palavra por palavra, a fim de extrair as informações duas formas: de um lado temos o processamento top-down,
do texto. Mais do que isso, “trata-se de uma atividade que que é uma leitura realizada do todo para as partes, ou seja,
implica estratégias de seleção, antecipação, inferência e de maneira descendente. Por outro lado, verificamos o
verificação, sem as quais não é possível proficiência3”. processamento bottom-up, uma leitura feita em caminho
Assim, podemos entender que muitos alunos não leem inverso em relação ao da anterior, isto é, das partes para o
de forma competente, porque não lhes são dados os todo (caminho ascendente).
instrumentos necessários para o ato da leitura. Interessante observarmos que há dois tipos de
Além disso, a Lei de Diretrizes e Bases (LDB) estratégias de leitura. Ao lado das estratégias metacognitivas
determina que o Ensino Fundamental tenha por objetivo a estão as estratégias cognitivas, ou seja, princípios que
formação básica do cidadão, “mediante o desenvolvimento regem o comportamento automático e inconsciente do leitor.
da capacidade de aprender, tendo como meios básicos Já as estratégias metacognitivas são princípios que regulam
o pleno4 domínio da leitura, da escrita e do cálculo”. a desautomatização consciente das estratégias cognitivas
(Artigo 32 – inciso I) (KATO, 1985: 102).
Percebemos em tais documentos ideias de leitura Kato (1985) destaca algumas estratégias em
como processo ativo e por meio da qual a aprendizagem leitura que corroboram as estratégias apresentadas
em geral é possibilitada. Desse modo destacamos que a na escala utilizada por Joly e Marini (2008). São elas:
3
Grifo meu. O trecho citado se encontra na página 69 dos PCNs. esclarecer os propósitos da leitura; identificar aspectos da
4
Grifo meu
144 Uma discussão sobre estratégias metacognitivas em leitura na escola

mensagem que são importantes; distribuir a atenção para por exemplo, a leitura de textos para estudar, em que se
que haja mais concentração nos conteúdos principais; fazem anotações, sublinham-se partes importantes do
monitorar as atividades em processo para verificar se texto, estabelecem-se relações com outros textos;
ocorre compreensão; revisar se os objetivos estão sendo • ler para revisar um escrito próprio: é a
atingidos; adotar ações corretivas quando se detectam revisão do próprio texto para verificar se ficou adequado
falhas na compreensão; prevenir-se contra truncamentos para transmitir o significado que o levou a ser escrito;
e distrações. Estas estratégias são autodirigidas e estão • ler por prazer: experiência individual e
no nível da metacognição, ou seja, quando o indivíduo subjetiva do leitor, sendo que muitas vezes o texto literário
monitora conscientemente sua atividade. é o mais utilizado em leituras de lazer;
Importante sublinhar que, para as estratégias • ler para comunicar um texto a um auditório: a
metacognitivas terem êxito no ensino de leitura, é leitura prévia é uma ação indispensável nesse caso;
necessário serem traçados objetivos para a leitura. Dessa • ler para verificar o que se aprendeu: ler para
forma, cada estratégia será utilizada tendo em vista um verificar a compreensão parcial ou total do texto.
objetivo específico de leitura e isso acontece nas mais
variadas situações da vida cotidiana. Nessa perspectiva, Solé (1998) ainda aponta outros aspectos que são
Solé (1998) aponta alguns objetivos que podem auxiliar de fundamental importância para o entendimento do texto.
o professor de língua materna a organizar a atividade de Corroborando as tabelas que serão mostradas na seção
leitura na escola, dentre os quais destacamos:5 seguinte com as estratégias metacognitivas globais, de
suporte à leitura e solução de problemas, a autora pontua
• ler para obter uma informação precisa: que o professor deve explorar os conhecimentos prévios do
consiste em localizar no texto alguma informação que aluno e isso aconteceria antes e depois da leitura.
interessa ao leitor, como por exemplo, a busca de uma Além disso, antes da leitura o professor pode
palavra no dicionário; explorar um mecanismo de previsões sobre o que diz o
• ler para obter uma informação de caráter texto. Segundo Solé (1998) muitas vezes “só com a leitura
geral: é uma leitura guiada e mais aprofundada, como do título e dos subtítulos é possível imaginar o que vamos
por exemplo, a consulta a materiais específicos para a encontrar no texto”.
elaboração de trabalho acadêmico; Nessa perspectiva, na próxima seção, abordaremos
• ler para aprender: é a busca de ampliação questões práticas seguidas de reflexões teóricas.
dos conhecimentos, através da leitura de um texto, como Sistematizaremos em duas tabelas o instrumento utilizado
por Joly e Marini (2008) e estabeleceremos alguns princípios
5
Esses objetivos foram extraídos de Solé (1998: 93 a 99)
145 Kelli da Rosa Ribeiro

norteadores na elaboração da atividade de leitura. participaram da pesquisa 641 estudantes de escolas públicas
Da teoria à prática: sistematização para fins e particulares, com idades entre 14 e 17 anos. Os resultados
metodológicos mostraram que das estratégias metacognitivas globais, de
suporte e de solução de problemas, a mais solicitada é a de
É função da escola a formação de cidadãos proficientes solução de problemas. Além disso, é durante a leitura que as
em sua língua materna. E, sobretudo, o professor de Língua estratégias são mais utilizadas.
Portuguesa tem destaque no direcionamento de atividades Com base nas informações contidas no estudo
que desenvolvam a competência em leitura. Por isso, a feito pelas autoras sistematizaremos a escala que possui
instrumentalização do aluno através do ensino de estratégias 39 estratégias de leitura, de forma que fiquem claro, em
de leitura permite que ele seja cada vez mais autônomo e um quadro, quais estratégias metacognitivas são globais,
perspicaz nas diversas leituras que faz na sociedade. de suporte e solução de problemas. Em outro quadro
É nessa direção que segue o artigo de Joly e Marini mostraremos quais estratégias são mais adequadas antes,
(2008), que teve como principal objetivo identificar a frequência durante e depois da leitura. Cabe destacar que será uma
de uso de estratégias metacognitivas de leitura por estudantes sistematização metodológica e didática, pois sabemos
de Ensino Médio, levando em consideração a variável idade, que as estratégias ocorrem sem fronteiras tão delimitadas.
gênero, série, turno e rede de ensino frequentada. Ao todo, Analisemos o primeiro quadro.
Estratégias metacognitivas globais Estratégias metacognitivas de Estratégias metacognitivas de
suporte à leitura solução de problemas

Fazer perguntas sobre o conteúdo do texto Grifar o texto para destacar informações Parar de ler para ver se estou entendendo

Ver como é a organização do texto Fazer anotações ao lado do texto Reler trechos quando tenho dificuldade

Organizar um roteiro para ler Fazer anotações sobre o texto Reler em voz alta os trechos que não
compreendeu
Levantar hipóteses sobre o conteúdo do texto Interpretar o que autor quis dizer
Voltar e ler alguns parágrafos
Fazer comentários críticos sobre o texto Escrever com as próprias palavras
Verificar se as hipóteses que fiz estão certas
Opinar sobre as informações do texto Fazer lista dos tópicos mais importantes ou erradas

Relacionar o assunto com conhecimento prévio Consultar o dicionário


146 Uma discussão sobre estratégias metacognitivas em leitura na escola

Deduzir informações do texto Fazer um resumo do texto Fixar a atenção em determinados trechos do
texto
Ler com atenção e devagar Fazer um esquema do texto Ler novamente os trechos para fazer relações

Reler trechos para relacionar as informações Copiar os trechos mais importantes Analisar se as informações são lógicas

Questionar o texto para entendê-lo melhor Listar as informações que entendi Concentrar-se na leitura quando o texto é difícil.

Fazer suposições sobre o significado de um Ficar atento aos nomes, datas, épocas e locais6
trecho
Ler em voz alta quando o texto é difícil
Diferenciar as informações da opinião do autor
Pensar por que fez suposições certas e erradas
Identificar se fez hipóteses corretas
Relembrar os principais pontos

Verificar se atingiu o objetivo

Quadro 1 – Estratégias metacognitivas

É evidente que o estudante de Ensino Fundamental estratégias dependem dele para que o aluno aprenda a usá-
e Médio não utilizará tais estratégias se não for trabalhado las. É o caso da estratégia metacognitiva global “organizar um
e preparado para tal. Cabe ao professor juntamente roteiro para ler” apontada no quadro 1. Tal estratégia exige que
com a turma o direcionamento, aos poucos, dessas os primeiros roteiros sejam preparados pelo professor e que
estratégias. Importante notar que é, necessariamente, o gradativamente a tarefa seja desempenhada pelo estudante.
objetivo de leitura e o gênero que conduzirão as escolhas Assim também é a estratégia metacognitiva de solução
estratégicas mais adequadas. Por exemplo, se o aluno de problemas “consultar o dicionário”. É através do auxílio do
deve falar aos colegas sobre as principais informações educador que o aluno desenvolverá a capacidade de procurar
de uma notícia policial a estratégia metacognitiva de as palavras no dicionário quando lhe surge uma dúvida no
solução de problemas “ficar atento aos nomes, datas, momento da leitura. Outro exemplo de auxílio do professor é
épocas e locais” torna-se indispensável.6 quando se estabelece o objetivo de ler para pesquisar algum
O professor pode e deve participar ativamente de tema determinado, as estratégias utilizadas podem ser “ler
algumas estratégias e, inclusive, consideramos que algumas com atenção e devagar” que é uma estratégia metacognitiva
global, “ler novamente os trechos para fazer relações” que
Dependendo do gênero que se está lendo.
66
147 Kelli da Rosa Ribeiro

é uma estratégia metacognitiva de solução de problemas. ajudam numa possível discussão com os colegas sobre o
Além disso, para o objetivo de pesquisa também é possível que cada estudante leu. O professor pode aproveitar esta
usar estratégias de suporte à leitura como “copiar os trechos tarefa de leitura de escolha pessoal e prazerosa de um texto
mais importantes” e “listar as informações que entendeu” e solicitar que a turma faça um resumo do texto, para que
para dar suporte ao futuro texto do aluno-pesquisador. um tenha conhecimento do que outro gosta de ler.
Podemos ainda supor que o professor separe um Vejamos no segundo quadro como podemos
tempo das aulas para o objetivo de ler por prazer. Assim, organizar as estratégias metacognittivas globais, de suporte
as estratégias metacognitivas globais “fazer comentários à leitura e solução de problemas em estratégias que podem
críticos sobre o texto”, “opinar sobre as informações do ser utilizadas antes, durante ou depois da leitura:
texto” e “relacionar o assunto com conhecimento prévio”

Estratégias utilizadas antes da leitura Estratégias utilizadas durante a leitura Estratégias utilizadas depois da leitura

Fazer perguntas sobre o conteúdo do texto Fazer comentários críticos sobre o texto Relembrar os principais pontos

Ver como é a organização do texto Opinar sobre as informações do texto Verificar se atingiu o objetivo

Organizar um roteiro para ler Parar de ler para ver se estou entendendo Escrever com as própriaspalavras

Levantar hipóteses sobre o conteúdo do Reler trechos quando tenho dificuldade Fazer lista dos tópicos mais importantes
texto
Reler em voz alta os trechos que não com- Fazer um resumo do texto
preendi
Fazer um esquema do texto
Voltar e ler alguns parágrafos
Copiar os trechos mais importantes
Verificar se as hipóteses que fez estão certas
ou erradas Listar as informações que entendeu

Grifar o texto para destacar informações Identificar se fez hipóteses corretas

Fazer anotações ao lado do texto

Fazer anotações sobre o texto

Interpretar o que autor quis dizer


148 Uma discussão sobre estratégias metacognitivas em leitura na escola

Estratégias utilizadas antes da leitura Estratégias utilizadas durante a leitura Estratégias utilizadas depois da leitura
Consultar o dicionário

Fixar a atenção em determinados


trechos do texto

Ler novamente os trechos para fazer relações

Relacionar o assunto com conhecimento prévio

Deduzir informações do texto

Analisar se as informações são lógicas

Concentrar-me na leitura quando o


texto é difícil.

Ficar atento aos nomes, datas, épocas e locais

Ler em voz alta quando o texto é difícil

Quadro 2 – Estratégias utilizadas antes, durante e depois da leitura


Como não é pretensão deste trabalho criar uma
Destacamos que as estratégias metacognitivas receita de como trabalhar leitura em sala de aula, trouxemos
de suporte à leitura predominantemente fazem parte do discussões a respeito do assunto que não devem se esgotar
processo, ou seja, é durante a leitura que o aluno utilizará num simples artigo. Aliás, é impossível e improdutivo
as estratégias que o auxiliarão na atividade. Depois, são colocar a atividade dinâmica e complexa da leitura numa
as estratégias metacognitivas de solução de problemas que forma. Assim, para suscitar reflexões e a fim de redirecionar
compõem o quadro das estratégias utilizadas durante a estratégias de leitura, formularemos, com base em todos
leitura. Segundo Kato (1985) as estratégias metacognitivas os subsídios vistos anteriormente, alguns procedimentos
são ativadas “quando o leitor sente alguma falha em sua norteadores da atividade.
compreensão”. Dessa forma, segundo a autora, tais Acreditamos que o primeiro procedimento que
estratégias funcionariam como “mecanismos detectores guiará o professor é o conhecimento da turma, ou seja, de
de falhas e são resultado de um esforço maior de nossa suas dificuldades, habilidades, necessidades do público
capacidade de processamento” (KATO, 1985:84). leitor. A partir do mapeamento da turma, o professor tem
a tarefa de selecionar o gênero textual a ser trabalhado
149 Kelli da Rosa Ribeiro

com os alunos, de maneira que a dificuldade aumente participantes da pesquisa fazem pouco uso das estratégias
gradativamente. O terceiro procedimento é estabelecer e metacognitivas e que não o fazem por falta de treino e preparo.
variar objetivos para a leitura e explicitar aos alunos que É justamente na escola o lugar de aprender e treinar a
o objetivo guia a atividade de ler. Isso ajudará nas leituras leitura em suas diversas formas e com seus variados objetivos.
fora dos muros escolares. É na escola que a criança aprende a manusear o dicionário,
O quarto procedimento é a seleção de estratégias elaborar resumos, fazer roteiros de leitura e outras estratégias
metacognitivas que auxiliem na compreensão do texto. que fazem parte do processo de leitura. É o professor que
Nesse procedimento é importante lembrar que estratégias ensina a adequação ao gênero, levando textos de diferentes
metacognitivas globais, de suporte à leitura e solução de tipos e graus de complexidade. É o professor quem desafia o
problemas precisam estar articuladas e cabe ao professor aluno a entrar no texto e entender seu funcionamento.
escolher quais são pertinentes a serem usadas, dependendo Foram essas reflexões e discussões que guiaram
do gênero lido. O terceiro procedimento é crucial para a este trabalho. Acreditamos que a posição da Psicolinguística
seleção das estratégias. no que tange a leitura é bastante pertinente e viável, pois
O quinto e último procedimento estabelecido por tal disciplina trabalha com o processamento e não só com o
este trabalho é a seleção das estratégias e atividades que produto final da leitura. Ao término deste artigo destacamos
serão utilizadas antes, durante e depois da leitura. Esse é que as pesquisas em leitura de todas as áreas da Linguística
o último procedimento, pois necessariamente depende dos e da Psicologia são pertinentes, pois trazem discussões e
anteriores. Nesse sentido, resumimos que o aluno-leitor convites a novas pesquisas. Através de pequenos passos
precisa aprender a adaptar o uso das estratégias de acordo podemos avançar em conhecimento e, talvez, o ensino de
com o texto lido, com seus conhecimentos prévios e com leitura nas escolas ganhe espaço menos secundário.
seus objetivos de leitura.
RESUMO – Leitura é o processo ativo de compreensão e
Considerações finais interpretação do texto, sendo realizada pelo sujeito a partir
de objetivos, de conhecimentos prévios sobre o assunto,
É preciso, nesse sentido, articular diversas situações bem como de informações contextuais que envolvem o
de ensino de leitura em que se garanta sua aprendizagem texto. Pensando nessa questão e baseando-se nela, este
significativa de leitura. Em se tratando de ensinar as artigo faz reflexões teóricas e práticas sobre os processos
estratégias responsáveis pela compreensão, o aluno deve e as estratégias que envolvem a atividade de leitura e
aprender vivenciando a própria atividade em sala de aula. Isso compreensão. Além disso, tais reflexões, apoiadas na corrente
fica evidente nos resultados obtidos por Joly e Marini (2008), interdisciplinar da Psicolinguística, têm por objetivo oferecer,
em que as autoras chegam à conclusão de que os alunos
150 Uma discussão sobre estratégias metacognitivas em leitura na escola

ao professor de língua materna, subsídios teórico-práticos school and the use of metacognitive strategies. Finally, work
sobre estratégias metacognitivas que são mobilizadas na out some procedures of reading activities in the classroom.
compreensão leitora de textos, observando alguns aspectos Keywords: Reading Comprehension. Metacognitive
que constituem a atividade de leitura. Para tanto, mostramos Strategies. Psycholinguistics.
alguns referenciais teóricos sobre leitura e estratégias
metacognitivas e sistematizaremos as informações do Referências
instrumento Escala de estratégias metacognitivas de leitura
utilizado em pesquisa por Joly e Marini (2008) no artigo A BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros
leitura no Ensino Médio e o uso das estratégias metacognitivas. Curriculares Nacionais: terceiro e quarto ciclos do ensino
Por fim, elaboramos alguns procedimentos norteadores da fundamental: língua portuguesa/ Secretaria de Educação
atividade de leitura em sala de aula. Fundamental. Brasília: MEC/SEF, 1998.
Palavras-chave: Compreensão Leitora. Estratégias
LDB – Leis de Diretrizes e Bases da Educação Nacional.
Metacognitivas. Psicolinguística.
LEI No. 9.394, de 20 de dezembro de 1996.
ABSTRACT – Reading is an active process of understanding JOLY, Maria Cristina; MARINI, Janete Aparecida. A leitura
and interpretation of the text, being performed by the subject no ensino médio e o uso das estratégias metacognitivas. In
from goals, prior knowledge on the subject, as well as Estudos e pesquisas em psicologia. UERJ, Rio de Janeiro.
contextual information surrounding the text. Thinking about ISSN: 1808-4281. p. 505-522, 2008.
this issue and based on it, this article will cause theoretical KATO, Mary. O aprendizado da leitura. São Paulo: Martins
and practical reflections on the processes and strategies that Fontes, 1985.
involve the activity of reading and understanding. Moreover,
these considerations, supported by current psycholinguistic LEITÃO, M. Psicolingüística Experimental: Focalizando
interdisciplinary, aim to offer the teacher of language, o processamento da linguagem. In: Martelotta, M. (org.)
theoretical-practical information on metacognitive strategies Manual de Lingüística. São Paulo: Contexto, 2008.
that are mobilized in the reading comprehension of texts, SCLIAR-CABRAL. L. Introdução à psicolingüística. São
noting some aspects that constitute the reading activity. To Paulo: Ática, 1991.
this end, we show some theoretical references about reading
SOLÉ, Isabel. Estratégias de leitura. Porto Alegre: Art
and metacognitive strategies and organize information of the
Med, 1998.
instrument range metacognitive reading strategies used in
research by Joly and Marini (2008) Reading the article in the
151 Samanta Demetrio da Silva

Concepção de leitura: abordagens proposta é fundamental e elucida com bases teóricas


psicolinguísticas em interface com o processo tanto de aquisição da linguagem quanto de
compreensão da leitura.
abordagens da neurociência Pesquisas psicolinguísticas entendem que o ato de
ler é interagir com o texto. As relações texto-autor-leitor
Samanta Demetrio da Silva1 regem pesquisas realizadas por inúmeros autores em
Fale com a autora que essa interação, muitas vezes, rege o processamento
da leitura. De acordo com Smith, a leitura não pode ser
A leitura é um dos processos fundamentais da separada da escrita e do pensamento. Para esse teórico,
comunicação humana. As concepções de leitura existem ler não é simplesmente extrair informações do que está
sob diversos modelos teóricos. O foco de nossa atenção, impresso. Sabemos que existe um conjunto de enfoques
no presente texto, são dois modelos que se entrelaçam: a necessários para dar conta do que é o ato de ler. Existem
psicolinguística em interface com a neurociência. Segundo necessidades tais como objetivos e expectativas de leitura.
Leonor Scliar Cabral, em entrevista à revista Revel, a Nesse processo estão embricados o conhecimento prévio,
psicolinguística, como o nome indica, é uma ciência a compreensão, as previsões tanto globais quanto focais,
híbrida que resultou da intersecção entra a linguística e a as estratégias de processamento do texto entre outras.
psicologia, acrescidas pela teoria da informação, no que Stanislas Dehaene, em seu livro Reading in the brain,
elas têm em comum. descreve pesquisas pioneiras de como nosso cérebro
As bases epistemológicas que possibilitaram o processa a linguagem, sob diversos aspectos. Em se
surgimento da psicolinguística no seminário de verão, na tratando da leitura, propriamente dita, Dehaene afirma
Universidade de Cornell, realizado de 18/06 a 10/08 de que temos a ilusão de que a leitura é algo simples e que
1961, eram semelhantes. A interdisciplinaridade passou não demanda esforço porque através de vários anos de
a prevalecer cada vez mais no cenário científico atual em prática desenvolvemos essa habilidade. É através desse
que as neurociências dominam. O olhar da linguística até cenário teórico das contribuições psicolinguísticas e das
meados do séc. XX, tanto sob a influência do pensamento recentes pesquisas e contribuições das neurociências
saussureano, quanto nos Estados Unidos, sob a ótica que discorremos nosso artigo. Para tanto, contaremos
do distribucionalismo, era focado sobre o objeto língua, com uma divisão em tópicos em que desenvolveremos,
desvinculado de como era processado por falantes e separadamente, elementos dessas duas grandes áreas.
ouvintes ou leitores e escritores. Sendo assim, a interface
1
Graduada pelo Centro Universitário Leonardo Da Vinci – UNIASSELVI – em
Letras em 2009. Email: samidemetrio@hotmail.com.
152 Concepção de leitura: abordagens psicolinguísticas em interface com abordagens da neurociência

Leitura: abordagem psicolinguística em situações diferentes. Nesse sentido, atualmente existem


estudos que se dedicam, exclusivamente, ao ensino de
Muito tem se discutido acerca do ato de ler. Pesquisas estratégias para a compreensão leitora, a docência para
sob a perspectiva da Psicolinguística sugiram a fim de dar a proficiência efetiva. Deixemos claro que esse não é o
conta de todo o processo de leitura e todo o conjunto cognitivo foco central deste texto, mas é uma questão que envolve,
envolvido na leitura. Para Goodman (1976, p. 498), existe na também, os tópicos que abordamos.
leitura uma espécie de jogo psicolinguístico de adivinhação, As estratégias de leitura podem ser classificadas em
envolvendo, através de tentativas, processamento de cognitivas e metacognitivas. Em Kato (2007) e Solé (1998)
informações. Em seu modelo nos coloca, ainda, que a encontra-se uma distinção entre estratégias cognitivas e
eficiência na leitura não é resultado da identificação exata metacognitivas. Para essas autoras, estratégias cognitivas
de todos os elementos nem da percepção precisa, mas da são aquelas que regem o comportamento automático e
habilidade e a capacidade de selecionar a maior quantidade inconsciente do leitor, enquanto que as metacognitivas
de “pistas” necessárias para elaborar as “adivinhações” que referem-se aos princípios que regulam a desautomatização
estavam certas desde o início. Sendo assim, nesse jogo consciente das estratégias cognitivas.
de adivinhações consideramos que as “adivinhações” e as Metacognição refere-se, assim, ao conhecimento
“pistas” são de suma importância para a compreensão do do leitor e ao controle que este tem de seu próprio
que está sendo lido. Esse conjunto cognitivo engloba as conhecimento na atividade de leitura. Outro uso das
inferências e as predições. As inferências são as pistas estratégias metacognitivas ocorre quando a leitura é feita
que nos levam às adivinhações, o que pode estar ou está com a intenção de memorizar ou de aprender. Kato (2007)
implícito, e as predições são as habilidades de antecipar o postula que as estratégias metacognitivas funcionam como
que será dito, as informações a seguir. Ao analisarmos esse mecanismos detectores de falhas e que são resultados de
processo percebe-se a importância em encontrar o sentido na um esforço maior de nossa capacidade de processamento.
leitura. As predições e as inferências configuram estratégias Ainda assim, resumidamente, dizemos que estratégias
de leitura que dão sentido ao que está sendo lido. cognitivas são operações inconscientes sem um objetivo
Uma série de fatores faz parte do processamento da pré-estabelecido e as metacognitivas são conscientes,
leitura. Segundo Smith (1999, p. 116-119), em princípio, o com algum objetivo já em mente. Além dessas estratégias
sentido da aprendizagem da leitura é para encontrar sentido é fundamental no processo de compreensão leitora o
na escrita. As crianças se empenham para encontrar conhecimento prévio. Segundo Kleiman (2002, p. 13-17), a
sentido na escrita, e, como consequência, aprendem a ler. É compreensão de um texto é um processo que se caracteriza
evidente as muitas facetas da leitura a serem dominadas e pela utilização de conhecimento prévio: o leitor utiliza o que
153 Samanta Demetrio da Silva

ele já sabe, o conhecimento adquirido ao longo de sua vida. para extrair sentido do mundo, como nossa habilidade
É mediante a interação de diversos níveis de conhecimento, para recordar eventos, para agir apropriadamente e para
como o conhecimento linguístico, o textual, o conhecimento prever o futuro é determinada pela complexidade do
de mundo que o leitor consegue construir o sentido do conhecimento que já possuímos. Nesse sentido todas as
texto. A leitura é considerada um processo interativo porque pessoas fazem previsões todo o tempo. Esse constante
o leitor utiliza justamente diversos níveis de conhecimento estado de antecipação é pelo fato de nossa teoria de
que interagem entre si.. mundo, nosso conhecimento prévio, funcionar tão bem.
Para Kleiman (2002), sem o conhecimento prévio Previsão e compreensão estão interligadas. A previsão
do leitor não haverá compreensão. Para Frank Smith significa que fazemos perguntas ao lermos um texto, e a
(1999, p. 73-75), a compreensão depende da previsão. O compreensão significa que somos capazes de responder
que já temos em nossa mente é a nossa única base tanto a algumas das perguntas formuladas. À medida que
para encontrar o sentido de mundo como para aprender fazemos mais perguntas e somos capazes de respondê-
sobre ele. A interface com os estudos cerebrais começa a las, então compreendemos. Para tanto, a leitura não pode
delinear-se. Smith (1999, p. 73-75) diz que para entender ser separada do pensamento. A leitura é uma atividade
o processo de compreensão precisamos entender como carregada de pensamentos. Na visão psicolinguística de
funciona o cérebro humano. Para o autor, o que temos Smith, a leitura pode ser definida como um pensamento que
no cérebro é um modelo do mundo intrincadamente é estimulado e dirigido pela linguagem escrita.
organizado e inteiramente consistente, construído como
resultado da experiência, não da instrução, e integrado Leitura: abordagem da neurociência
em um todo coerente como resultado de uma permanente
aprendizagem e pensamento adquiridos com total Stanislas Dehaene (Collège de France), pesquisador
desenvoltura. F. Smith fala que em nossas mentes temos francês considerado uma autoridade mundial na
uma teoria de como é o mundo, e essa teoria é a base de neurociência cognitiva da linguagem e do processamento
toda a nossa percepção e compreensão. de números, em sua obra Reading in the brain, descreve
Com efeito, para dar sentido ao que lemos utilizamos pesquisas pioneiras sobre como o cérebro humano processa
todo esse conhecimento de mundo, guardado no cérebro, a linguagem, sob os mais diversos aspectos. De acordo com
na memória. É essa uma estratégia de leitura que nos leva Dehaene, temos a ilusão de que a leitura é algo simples
a realizar mais seguramente as inferências, as previsões e e que não demanda esforço porque desenvolvemos essa
compreender mais eficientemente o texto e o que o texto habilidade através de vários anos de prática. Na realidade,
nos diz. Conforme Smith (1989, p. 32-35), nossa habilidade esse processo é bastante complexo: ao ser visualizada
154 Concepção de leitura: abordagens psicolinguísticas em interface com abordagens da neurociência

pela retina, a palavra é dividida em inúmeros fragmentos, Dessa mesma forma, o reconhecimento de
visto que cada parte da imagem visual é reconhecida por grafemas e fonemas nos remete à questão da invariância,
um fotorreceptor distinto. A questão e o desafio, então, é ponto em que as pesquisas de Stanislas também se
reorganizar esses fragmentos em forma de letras, colocá- debruçam. A tarefa realizada pelo cérebro que reconhece
los na ordem correta para, finalmente identificar a palavra. que aspectos da palavra não variam independentemente
Ancorado em pesquisas realizadas com tecnologia de do tamanho ou forma em que a palavra se apresenta.
ponta, Dehaene (2009) nos coloca sobre o tema proposto, o Sob esse princípio conseguimos reconhecer que as
que ele denomina de “paradoxo da leitura”. Nosso cérebro palavras SETE, sete e sete são a mesma palavra. A
é produto de milhões de anos de evolução em um mundo região que processa especificamente a palavra escrita é
em que não havia escrita; então, ele se adaptou a ponto a região occípito-temporal ventral esquerda. Essa região
de reconhecer palavras e símbolos. Segundo o autor, o cerebral é a mesma tanto para leitores de português,
cérebro humano não foi projetado para a leitura. Como japonês ou italiano. O autor, a partir de seus estudos,
conseguimos, então, dar conta dessa habilidade? Para ele, comprova a ideia de que existem mecanismos universais
a ideia de que o cérebro possui uma infinita capacidade responsáveis pela leitura. Essa área do hemisfério
de se adaptar à cultura é refutável. Entretanto, propõe esquerdo do córtex podem ser visualizadas com o uso
uma teoria que tenta resolver o “paradoxo da leitura” que de tecnologias de neuroimagem, como PET (Position
é a hipótese da reciclagem neural. De acordo com essa Emission Tomography), FMRI (Functional Magnetic
hipótese, a arquitetura do cérebro humano submete-se a Resonance Imaging) e EEG (Eletroencephalography).
fortes restrições genéticas, mas alguns circuitos cerebrais Ao longo de muitos estudos concluiu-se que existe
desenvolveram-se a uma margem de variabilidade. Sendo uma universalidade fundamental nos circuitos de leitura.
assim, através dessa reciclagem neural pode-se explicar a Isso significa que, independentemente da diversidade
alfabetização, seus mecanismos no cérebro e sua história. dos sistemas de escrita e das normas ortográficas de
Em seu livro, aborda que cada leitor adapta sua estratégia uma língua, todas as pessoas solicitam as mesmas áreas
de exploração visual de acordo com sua língua ou com a cerebrais quando leem. A esse lugar é dado o nome de
língua que estiver lendo. Os movimentos rápidos dos dois “caixa de palavras”. Logo os estímulos escritos, ao entrar
olhos para a mesma direção de uma pessoa que está lendo em contato com o córtex, são canalizados na região da
um texto em chinês tendem a ser menores do que uma caixa de palavras e então reconhecidos independentemente
pessoa que está lendo um texto em português, porque o de seu tamanho ou forma. Esse input visual é enviado para
sistema de escrita chinês é através de ideogramas, que uma de duas rotas principais: uma que converte o input em
representam ideias e conceitos, e não de letras. som (rota fonológica) e outra que converte em significado
155 Samanta Demetrio da Silva

(rota lexical). As duas rotas, fonológica e lexical, operam de fonemas; e o terceiro, estágio ortográfico, em que o
maneira simultânea e paralela. reconhecimento da palavra se torna rápido e automático.
De acordo com estudos desenvolvidos, Stanislas De acordo com as pesquisas, o autor afirma que
Dehaene argumenta que existe uma hierarquia de estudos envolvendo neuroimagem mostram que muitos
neurônios que respondem a estímulos visuais. Através circuitos do cérebro são alterados durante esses estágios,
da hipótese da reciclagem neural, quando aprendemos principalmente aqueles ligados à caixa das palavras.
a ler, parte dessa hierarquia de neurônios se ocupa da Para Stanislas, o ponto chave da aquisição da leitura e
nova tarefa de reconhecer letras e palavras. Então, a ponto de partida para a efetiva compreensão leitora,
capacidade de ler, segundo o autor, é resultado de um está no estágio fonológico na conversão das letras em
sofisticado processo evolutivo, e não somente resultado sons. Sendo assim, podemos dizer que a psicolinguística
da plasticidade cerebral, que muitas vezes é considerada contribuiu efetivamente durante décadas e através de
como uma propriedade inata do cérebro. Os estudos e estudos, e modelos tais como o conexionista, para a
pesquisas realizados por ele defendem a ideia de que a chegada até as pesquisas em neurociência. Um ponto é,
plasticidade do cérebro é fruto da evolução e do instinto ainda, bastante discutido pelos pesquisadores: apenas
de aprender que nós, humanos, possuímos. Portanto, a espécie humana é capaz de se adaptar as invenções
fica mais fácil compreender como pessoas com acidentes culturais tão sofisticadas quanto a leitura. Para Dehaene,
cerebrais e até mesmo com parte do cérebro removida somos a única espécie que criou uma cultura que foi capaz
conseguem, ainda assim, dar conta da leitura. Retomando de adaptar seus circuitos cerebrais a novos usos. Ou seja,
a ideia expressa pelo “paradoxo da leitura”, de que ao longo de sua trajetória, os homens foram descobrindo
nossos genes não se desenvolveram com a finalidade progressivamente, que podiam reutilizar seus sistemas
de nos habilitar a ler, o cientista afirma que os sistemas visuais como um input substituto à língua e, dessa forma,
de escrita devem ter se desenvolvido de acordo com as chegaram à leitura e à escrita.
limitações de nosso cérebro. A explosão das atividades Os estudos desenvolvidos sobre leitura abrem novas
em neurociência vem delineando caminhos interessantes perspectivas a respeito da natureza da interação entre
para as pesquisas nesse campo. Através da hipótese da cérebro e cultura. Sob esse olhar, essa fusão de cultura e
reciclagem neural, Dehaene explica as principais fases cérebro, o autor chega a suas conclusões de que sua ideia
da aquisição da leitura, dividida em estágios. Primeiro o inicial sobre o paradoxo da leitura na realidade não existe.
estágio pictórico, em que a criança registra (fotografa) A evolução biológica, de acordo com o autor, não explica
algumas poucas palavras; o segundo, estágio fonológico, o desenvolvimento do cérebro para essa habilidade da
em que a a criança aprende a decodificar grafemas em leitura. Para ele, o cérebro humano nunca se desenvolveu
156 Concepção de leitura: abordagens psicolinguísticas em interface com abordagens da neurociência

para esse fim. A única evolução que aconteceu foi cultural. fundamental que deve unir todos os esforços: como a leitura
A habilidade de leitura desenvolveu-se progressivamente deve ser ensinada e como compreender esse processo de
para uma forma adaptada aos circuitos de nosso cérebro. ensino da leitura. Para tanto, fica a mensagem de que os
O ser humano é a única espécie culturalmente sofisticada. avanços de todas as áreas envolvidas devem dar conta de
Os estudos e as pesquisas, nesse âmbito, são capazes melhorar a compreensão e o ensino da leitura. Os elementos
de auxiliar e resolver qualquer problema relacionado à teóricos disponibilizados ao longo do texto elucidam o cerne
leitura e à escrita. A Psicolinguística e a Neurociência da questão. Além dos tópicos desenvolvidos, cabe ressaltar
desempenham um papel fundamental para descobrir e em nossas considerações finais que viabilizar esses estudos,
desvendar como o cérebro leitor funciona. colocá-los em prática, só poderá ser possível em um país com
políticas públicas voltadas para a educação. São necessárias
Considerações finais políticas que assegurem esses conhecimentos a professores
e alunos e não só em forma de propostas ou diretrizes.
Em suma, de acordo com os estudos teóricos
propostos pela Psicolinguística, o processamento da RESUMO – O presente artigo tem como proposta apresentar
leitura é dinâmico, é resultado da interação do leitor com uma breve revisão acerca da concepção de leitura sob o
o texto e do leitor com o autor. Esse processo é altamente olhar teórico da Psicolinguística em interface com algumas
ativo na construção de sentidos e envolvem uma série de abordagens teóricas da Neurociência. O processamento
fatores tais como: estratégias cognitivas e metacognitivas, da leitura, conhecimento prévio e estratégias de leitura são
conhecimentos linguísticos e extralinguísticos, predições e os aspectos enfatizados, no presente trabalho, à luz das
um brilhante esforço cognitivo. Desse modo, o significado perspectivas teóricas da Psicolinguística e da Neurociência.
na leitura vai sendo construído a partir dessa relação feita O texto destaca algumas contribuições recentes de
com o texto. Os avanços propostos pela neurociência trazem pesquisas pioneiras realizadas pelo renomado cientista
contribuições mais do que efetivas que dão conta de todo Stanislas Dehaene sobre o processo cerebral da leitura em
o esquema cerebral envolvido nessa tarefa. Nosso trabalho interface com as contribuições psicolinguísticas – ramo da
passa por essas etapas revisando-as, com base nas teorias Linguística que analisa os processos cognitivos de produção
reconhecidas atualmente. Deve ser levado em consideração e recepção da linguagem verbal na compreensão leitora.
que todas as pesquisas realizadas nesse âmbito e em
outras áreas voltadas para o ensino e a compreensão de Palavras-chaves: Concepção de leitura. Psicolinguística.
tais processos podem se fundir em uma única ciência da Neurociência. Processamento da Leitura. Conhecimento
leitura. Através de tantos subsídios, chega-se a um ponto Prévio. Estratégias.
157 Samanta Demetrio da Silva

ABSTRACT – This article aims to present a brief review DEHAENE, Stanislas. Reading in the Brain – The Science
on the concept of reading from the perspective of and Evolution of a Human Invention. Viking Penguim, 2009.
theoretical psycholinguistic interface with some theoretical
GOODMAN, Kenneth. Reading: A Psicholinguistic Guessing
neuroscience. The process of reading, prior knowledge
Game. In: SINGER, Harry; RUDDELL, Robert B. (orgs.)
and reading strategies are emphasized aspects of the
Theoretical Models and Processes of Reading. 2ed.
present work in light of the theoretical perspectives of
Dlawere: International Reading Association, 496-508, 1976.
psycholinguistics and neuroscience. The following text is
intended to highlight the recent contributions of pioneering KATO, Mary Aizawa. O aprendizado da leitura. 6ª ed., São
research conducted by renowned scientist Stanislas Paulo: Martins Fontes, 2007.
Dehaene on the brain’s process of reading in the interface Revista Virtual de Estudos da Linguagem - ReVEL
between psycholinguistic contributions - branch of linguistics Vol. 6 – número 11 - agosto de 2008 - ISSN 1678-8931
that examines the cognitive processes, also in reading, TEMA: Psicolinguística
which is the difficulty of text comprehension.
SMITH, Frank. Leitura significativa. 3ª ed., Porto Alegre:
Keywords: Concept of reading. Psycholinguistics. Neuroscience. Editora Artes Médicas Sul Ltda., 1999.
Reading Processing. Prior Knowledge. Strategies. ______. Compreendendo a Leitura uma análise
psicolingüística da leitura e do aprender a ler. 3ª Ed., Porto
Referências Alegre: Editora Artes Médicas Sul Ltda., 1989.
SOLÈ, Isabel. Estratégias de leitura. 6ª ed., Porto Alegre:
KLEIMAN, Ângela. Oficina de leitura: Teoria e Prática. 9ª
ArtMed, 1998.
ed., Campinas, SP: Pontes, 2002.
______. Texto e leitor: Aspectos cognitivos da leitura. 8ª
ed., Campinas, SP: Pontes, 2002.
______. Leitura e interdisciplinaridade: tecendo redes nos
projetos da escola. Campinas, SP: Mercado de Letras, 1999.
158 Nível de compreensão de leitura de um aluno colombiano no processo de aprendizagem do português: um estudo de caso

Nível de compreensão de leitura de um aluno das palavras e seus significados.


colombiano no processo de aprendizagem do As experiências proporcionadas pela leitura, além
de facilitarem o posicionamento do ser humano diante
português: um estudo de caso da sociedade, são, ainda, as grandes fontes de energia
que impulsionam a descoberta, a elaboração e a difusão
Vanessa Nery Souza1 de conhecimento.
Fale com a autora Sendo assim, o processo da leitura não pode ser
visto apenas como a transcrição fonética da fala. Conforme
O bom desempenho de leitura está  relacionado a  Kleimann (1997), leitura é um ato social entre dois sujeitos -
quanto e como a criança compreende um determinado texto. leitor e autor, que interagem entre si, obedecendo a objetivos
Este estudo trata do processo de compreensão de leitura e necessidades socialmente determinados.
na aprendizagem do Português por um aluno colombiano, Da mesma forma, Kato (1987) considera a leitura
que está apresentando dificuldades na disciplina de como um ato de reconstrução dos sentidos alinhavados
Português do Ensino Fundamental (7ª série) em tarefas de pelo autor, ou seja, segundo a autora, há necessariamente
compreensão de leitura; analisado através do Teste Cloze uma interação entre leitor-autor. Ao ler, acompanhamos
que serve para mensurar o grau de compreensibilidade o pensamento do autor, ou seja, entendemos o texto,
de determinado texto por parte do leitor. O objetivo desta imaginando-nos como um de seus produtores. O texto
pesquisa é verificar se existe relação entre o desempenho reúne em si um conjunto de pistas, o que significa dizer
obtido pelo aluno e os resultados do teste Cloze. Para que o mesmo texto lido por vários leitores poderá ter várias
aplicação do teste Cloze foi selecionado um texto – A canoa significações, já que cada leitor tem objetivos pessoais,
que virou coisa. próprios, para ler, isto é, cada qual formula perguntas que
acha importantes sobre o assunto, buscando encontrar
1. Referencial teórico respostas para elas. Cada leitor tem suas barreiras, suas
superações. E a cada texto há uma informação nova a
O processo de leitura é mais complexo do que ser processada.
nos parece, devido aos inúmeros fatores que interferem
diretamente na nossa capacidade de compreensão, sejam Aspectos cognitivos envolvidos no processo da leitura
eles físicos ou psicológicos. Mesmo assim, há pessoas que
consideram a leitura como a simples percepção da forma Ler consiste, basicamente, no processamento de in-
formações de um texto escrito com a finalidade de compre-
1
Email: nerysouza@yahoo.com.br
159 Vanessa Nery Souza

endê-las e interpretá-las. Mas o processo não é simples, do próprio leitor, formuladas com base no seu conhecimento
pois o leitor não pode se fixar somente nas palavras e no prévio e no estabelecimento de conexões intertextuais que
aspecto visual do texto, a compreensão dependerá do co- permitem a leitura significativa (ALVES, 2003).
nhecimento prévio do leitor, adquirido ao longo da vida.
Kleiman (1997) classifica o conhecimento prévio em Teste Cloze
três dimensões: conhecimento linguístico, que possibilita
ao leitor compreender diferentes textos, conforme sua es- Criada por W. Taylor em 1953, a Técnica Cloze é
truturação linguística, ou seja, o leitor deverá ser capaz de uma técnica da psicolinguística, fundamentada na Teoria da
agrupar elementos que possam estar alternados no texto; Informação e na noção de amostra aleatória, cujo objetivo
conhecimento textual, que é a capacidade do leitor inte- é a mensuração da compreensibilidade (ADELBERG;
ragir com diferentes tipologias textuais. O domínio maior RAZEK, 1984). Essa técnica consiste na retirada de
desse conhecimento facilitará a construção de significados palavras e substituição por um espaço pontilhado. Os
para os textos lidos; e conhecimento de mundo, ou seja, o leitores têm que preencher, de acordo com o contexto, tais
repertório de informações adquiridas ao longo da vida. espaços, sendo que o índice de compreensibilidade do
Ao final da leitura, é esperado que o leitor, valendo- texto é dado pela maior ou menor facilidade que o leitor
-se das três dimensões de conhecimento envolvidas, consi- tem para reconstituir tal texto (STEVENS, STEVENS e
ga formular boas hipóteses sobre os sentidos do texto lido. STEVENS, 1992).
Colomer e Camps (2002) afirmam que, além das três di- Conforme Williams et al. (2002), para medir a
mensões de conhecimento referidas, o leitor também deve clareza pelo método Cloze seguem-se os passos abaixo:
estar decidido a ler, tendo uma intenção para realizar a lei- a) os trechos do texto a ser avaliado são escolhidos
tura, ou seja, um objetivo de leitura. aleatoriamente; b) a décima sexta palavra e, a partir dela,
Dessa maneira, o processo da leitura envolve toda quinta palavra do trecho selecionado é retirada e
apropriação, invenção e produção de sentidos substituída por lacunas de tamanho único; c) o trecho
(CHARTIER, 1999). é repassado aos participantes, que não tiveram contato
Assim, o resultado alcançado dependerá do prévio com o trecho completo; d) aos participantes, é dada
desempenho de cada leitor ao ler, analisar e criar um sentido a instrução de preencherem as lacunas com as palavras
para o que está posto ou implicitado no texto. que acreditem terem sido retiradas; e) as respostas
O ato de ler será aqui compreendido como um são consideradas corretas quando eles completam a
processo, no qual a interpretação do que é lido depende, lacuna com a palavra que foi retirada; f) a passagem que
não só do que está impresso, mas também das hipóteses proporcionar o maior número de acertos será considerada
160 Nível de compreensão de leitura de um aluno colombiano no processo de aprendizagem do português: um estudo de caso

a mais clara, com relação ao assunto em questão e, prévio do assunto pelo leitor, da simplicidade e consistência
também, a mais clara para o público-alvo representado do estilo de escrita e do uso, pelo autor, das convenções da
pelo grupo participante da avaliação. O trecho que permitir linguagem (WILLIAMS et al., 2002). Segundo esse autor, o
a segunda pontuação mais alta será considerado o método Cloze capta o ponto de partida em que se encontra
segundo mais claro e assim por diante. o leitor, suas experiências, compreensão e expectativas,
Bormuth (1968) demonstrou que os resultados como por exemplo: uso de frases não convencionais ou
do método Cloze possuem correlação com os de outros obscuras, jargão não familiar. O grau até o qual o leitor
métodos como, por exemplo, de métodos de compreensão. consegue prever a parte ausente do texto é considerado
Ele verifica ainda a existência de algumas vantagens um indicativo da eficácia na comunicação.
comparativas para o uso da versão comum do método Cloze Santos et al. (2002) argumenta que a técnica Cloze
como medidor da clareza: a) os testes pelo método Cloze é bastante eficaz sob o ponto de vista prático em função
são simples e fáceis de preparar, gerenciar e avaliar; b) os dos altos índices de correlação positiva de seus resultados
itens do método Cloze estão embutidos no próprio texto, com o desempenho acadêmico; isto é, alunos com maiores
evitando, assim, sofrer a influência daqueles que fazem o percentuais no teste apresentam melhores resultados nas
teste; c) os testes pelo método Cloze demonstraram ser médias das disciplinas.
altamente confiáveis e válidos como medidores da clareza Diante da importância da leitura, independente da
relativa dos materiais propostos; d) as respostas podem concepção de compreensão adotada, o objetivo da pesquisa
ser avaliadas de forma objetiva e simples. é verificar se existe relação entre o desempenho obtido
O método Cloze não apresenta nenhuma suposição pelo aluno na disciplina de português e os resultados do
quanto à correlação entre a facilidade de compreensão e a teste Cloze. A hipótese de trabalho é de que relação entre o
frequência de aparecimento de elementos como comprimento desempenho obtido pelo aluno na disciplina e o desempenho
de palavras e sentenças, palavras diferentes ou semelhantes, no teste Cloze e, ainda, de que o desempenho acadêmico
partes do discurso, voz ativa ou termos concretos. As unidades está relacionado a outras questões de sua história.
avaliadas no método Cloze são as reproduções do texto
efetuadas com sucesso (WILLIAMS et al., 2002). A escola e o ensino da leitura
Bormuth (1968) comenta ainda que, diferentemente
da fórmula da clareza, o método Cloze permite uma medição De acordo com Foucambert (1994), o acesso ao
direta da eficácia com que um leitor interage com o texto. A “poder” só é possível a partir da reflexão. Segundo esse autor,
eficiência do processo de compreensão leitora depende da tal feito só é viável através do acesso ao processo de produção
capacidade do leitor de prever o conteúdo, do conhecimento do saber e não apenas por meio da transmissão dos saberes.
161 Vanessa Nery Souza

Nesse sentido, Foucambert (1994) juntamente com A autora ainda reitera que o que ocorre, na maioria
Smith (1999) e Solé (1998) defendem um ensino de leitura das vezes, é a manifestação de pouco (ou nenhum) interesse
no qual se aprenda a ler lendo, em um processo em que o dos alunos em pensar sobre o texto, bem como a pouca
aluno deve estar em contato com os mais diversos gêneros preocupação do professor em fazê-los refletir e envolvê-los
e tipologias textuais. Para esses autores, saber ler não se no assunto, com a finalidade de gerar uma interpretação
confunde com saber decodificar, já que a mera decodificação crítica e produtora de sentidos.
do código escrito não garante o desenvolvimento da O envolvimento do professor é de suma importância
capacidade de ver além do que é visível aos olhos. para melhorar as propostas de atividades de leitura no
Para Smith (1999), o significado precede a leitura da contexto escolar, já que é exclusivamente através do convívio
palavra, enquanto unidade específica. Já a compreensão, com os alunos, que o professor pode desenvolver e dispor de
que seria o núcleo da leitura, está além das palavras ou uma metodologia adequada para possibilitar o conhecimento.
da informação visual. Pois a cada nova leitura, ainda que
seja do mesmo texto, o leitor já não é mais o mesmo do 2. Desenvolvimento da pesquisa
instante anterior. Foi modificado pelo que leu, adquiriu
novos conhecimentos que vão interferir, por sua vez, na O projeto foi realizado a partir da constatação do
próxima leitura. baixo desempenho no nível de compreensão leitora que
Segundo Silva (1993), a prática da leitura a partir um aluno colombiano vem apresentando no processo de
de interpretações pré-estabelecidas, sem análise e reflexão aquisição do Português.
do grupo envolvido na atividade, sem mobilização do A pesquisa foi desenvolvida com a participação de
conhecimento prévio e sem, portanto, qualquer chance de um aluno da sétima série do Ensino Fundamental, com a
formular inferências, permite apenas que o leitor decodifique finalidade de detectar o nível de conhecimento prévio que o
um enunciado que já está elaborado, pronto e embalado aluno possuía sobre o assunto tratado no texto e avaliar a
para uso, não havendo a possibilidade de construção de compreensão leitora do sujeito pesquisado.
significado para o texto lido. O objetivo do presente trabalho foi o de analisar os
Nesse sentido, Soares (1979) traz sugestões que fatores que intervêm no processo de compreensão leitora,
podem ser aplicadas pelos professores durante o estudo considerando os aspectos cognitivos envolvidos através do
de textos em sala de aula. Segundo a autora, o professor aprofundamento dos conhecimentos e do nível detectado
deve proporcionar aos alunos leituras de acordo com as de compreensão leitora do sujeito. A fim de alcançar o
habilidades que quer que os estudantes desenvolvam. objetivo do trabalho, foram levantadas duas hipóteses a
serem investigadas:
162 Nível de compreensão de leitura de um aluno colombiano no processo de aprendizagem do português: um estudo de caso

a) a primeira hipótese considera que a compreensão de classe alta de Porto Alegre/RS. O aluno estudou até o
leitora varia dependendo de vários fatores, dentre eles o ano de 2008 na Colômbia, quando os pais (médicos) foram
conhecimento linguístico, o conhecimento textual e, por transferidos para o Brasil. Os pais do aluno procuraram
fim, o conhecimento de mundo. Isto é, se o texto apresenta atendimento fonoaudiológico por sugestão da escola para
um vocabulário desconhecido, ou faz uso de uma temática auxiliar no processo de compreensão de leitura, visto que
considerada hermética sobre a qual o leitor não possa vinha apresentando dificuldades com a mesma na escola.
fazer inferências, sua compreensão será afetada. Quanto O menino recebeu o texto para preencher quarenta
menos inferências o leitor for capaz de realizar, menos lacunas de acordo com a palavra que julgasse mais adequada.
conhecimento prévio ele possui acerca do assunto lido.
Como consequência, menor será seu nível de compreensão. Análise dos resultados
b) a segunda hipótese propõe que a compreensão
leitora pode ser influenciada pelo desenvolvimento Tradicionalmente, o significado dos escores do
cognitivo atingido, pela capacidade de memorizar e pelas teste Cloze é conferido segundo três níveis de leitura
experiências anteriores. Além disso, o ambiente no qual o (ADELBERG, 1979; SANTOS et al., 2002; SMITH e
leitor está inserido também poderá facilitar ou dificultar a TAFFLER, 1992). Um percentual de até 44% de acerto
leitura, conforme valorize ou não essa atividade, abrindo- indica que o leitor conseguiu retirar poucas informações
lhe os espaços necessários ou interditando-os. da leitura e, consequentemente, obteve pouco êxito na
Para testar essas hipóteses, nossa pesquisa de compreensão. Um percentual de acertos entre 44% a 57%
campo foi dividida em duas etapas. Primeiramente, foram do texto mostra que a compreensão da leitura é suficiente,
coletados dados pessoais do sujeito pesquisado: idade, sexo, porém indica a necessidade de auxílio adicional externo.
nível socioeconômico e experiência de leitura. Na segunda Por fim, um nível de acertos superior a 57% equivale a um
etapa, o aluno preencheu um texto – A Canoa que virou coisa nível de autonomia de compreensão do leitor.
- ANEXO 1 - através da técnica Cloze – e, em seguida, foi Os escores do teste Cloze apontam que o aluno
solicitado a ler e a contar o que entendeu do texto. em questão preencheu mais de 57% das lacunas de forma
satisfatória, o que indica que consegue retirar informações
O caso da leitura para a compreensão do texto, e, sendo assim,
que ele tem autonomia para a compreensão de textos na
O sujeito deste estudo é um aluno colombiano, 15 Língua Portuguesa.
anos de idade, sexo masculino, estudante repetente da Nesse diapasão de entendimento, considera-se que
sétima série do Ensino Fundamental de uma escola particular os resultados obtidos com a amos­tra desta investigação
163 Vanessa Nery Souza

indicam compreensão e autonomia suficientes para o bom school that the participant attend. The methodology of the
entendimento do que está sendo lido, a questão no caso, study involved completing a cloze text by the technique.
não é o português, então, este estudo será continuado a Moreover, it proved the tendency of the teacher to see
fim de ampliar sua representatividade, para verificar como the existing problem, but there was no attempt to solve
a influência de outras variáveis desse contexto como, por the difficulty detected. The question is about the way has
exemplo, a história do paciente, a mudança de país, entre been assessed on reading comprehension by a Colombian
outras, podem influenciar negativamente o desempenho student in the process of learning Portuguese.
escolar desse aluno.
Keywords: Comprehension. Reading. Test Cloze.
RESUMO – O objetivo deste relato é apresentar os resultados
de uma investigação sobre o processo de compreensão/ Referências
interpretação leitora acompanhado por um estudo de
caso – considerando os aspectos cognitivos, de natureza ADELBERG, A. H.; RAZEK, J. R. The Cloze Procedure:
individual e social e a forma como esses aspectos vinham A Methodology for Determining the Undertandability of
sendo trabalhados na escola que o participante frequenta. Accounting Textbooks. The Accounting Review, 1984.
A metodologia de estudo envolveu o preenchimento de um
______. A Methodology for Measuring the Understandability
texto através da técnica Cloze. Além disso, comprovou–se
of Financial Report Messages. Journal of Accounting
a tendência de o professor constatar o problema existente,
Research, v. 17, n. 2, p. 565-592, Autumn, 1979.
porém não se observou busca de solução para a dificuldade
detectada. A questão é quanto ao modo como vem sendo ALVES, S. V. Trabalhando as Inteligências Múltiplas em
avaliada a compreensão de leitura por um aluno colombiano Sala de Aula. Brasília: Plano Editora, 2003.
no processo de aprendizagem do Português. BORMUTH, J. R. Cloze Test Readability: Criterion Reference
scores. Journal of Education Measurement, v. 5, n. 3, p.
Palavras-chave: Compreensão. Leitura. Teste Cloze. 189-196, 1968.

ABSTRACT – The purpose of this report is to present the CHARTIER, Roger. A aventura do livro: do leitor ao navegador.
results of an investigation into the process of understanding Trad. Reginaldo de Moraes. São Paulo: UNESP, 1999.
/ interpreting reader accompanied by a case study - COLOMER, Teresa; CAMPS, Ana. Ensinar a ler, ensinar a
considering the cognitive aspects of individual and social compreender. Trad. Fátima Murad. Porto Alegre: Artmed, 2002.
nature, and how these issues were being worked on in
164 Nível de compreensão de leitura de um aluno colombiano no processo de aprendizagem do português: um estudo de caso

FOUCAMBERT, Jean. A leitura em questão. Trad. Bruno SANTOS, A. A. A. et al. O Teste Cloze na Avaliação da
Charles Magne. Porto Alegre: Artmed, 1994. Compreensão em leitura. Psicologia: Reflexão e Crítica,
v.15, n. 3, p. 549-557, 2002.
KATO, Mary. O aprendizado da leitura. 2. ed. São Paulo:
Martins Fontes, 1987. SOARES, Magda Becker et al. Ensinando comunicação em
língua portuguesa no 1° grau: sugestões metodológicas 5ª
KLEIMAN, Ângela. Texto e leitor: aspectos cognitivos da
a 8ª series. Rio de Janeiro: MEC/DEF/UFMG, 1979.
leitura. 5. ed. São Paulo: Pontes, 1997.
SOLÉ, Isabel. Estratégias de Leitura. Porto Alegre.
SILVA, Ezequiel Theodoro da. Elementos da pedagogia da
Artmed, 1998.
leitura. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1993.
STEVENS, K.; STEVENS, K. T.; STEVENS, W. P. Measuring
SMITH, Frank. Leitura significativa. Trad. Beatriz Affonso. 3.
the Readability of business writing: the Cloze procedure
ed. Porto Alegre: Artmed, 1999.
versus readability formulas. The Journal of Business
SMITH, M.; TAFFLER, R.. Readability and Understandability: Communication, v. 29, n.4, p. 367-382, 1992.
Different measures of the Textual Complexity of Accounting
WILLIAMS, J. et al.. Measuring Readability in Accounting: an
Narrative. Accounting, Auditing e Accountability Journal, v.
Application and Evaluation of the Close Procedure. Journal
5, n. 4, p. 84-98, 1992.
of financial Education, p. 1-17, 2002.
165 Vanessa Nery Souza

ANEXO 1 - Fica ________ (28) quietinha que depois eu


________ (29).
A CANOA QUE VIROU COISA Quando ele chegou em ________ (30) com os
(Luiz Raul Machado) peixes, a ________ (31) perguntou:
- Onde é que ________ (32) pegou tanto peixe?
Era uma vez um índio que resolveu fazer uma canoa Ele ________ (33) :
bem bonita da casca de uma árvore. Quando ele estava - Encontrei um lugar muito ________ (34) de pescar.
quase terminando, a mulher dele teve um filho. Como índio Dias depois ________ (35) foi pescar de novo.
não trabalha logo depois que nasce um filho, ele ficou em ________ (36) no mato e a ________ (37) não estava lá.
casa e deixou a canoa quase pronta lá no mato. Dali ________ (38) pouco, ele ouviu o ________ (39) de
Um dia, ele foi ________ (1) de novo. Mas, quando coisa se arrastando. ________ (40) ela.
________ (2) no mato, a canoa ________ (3) estava mais
lá. O ________ (4) sentou e ficou pensando: A canoa chegou, balançou pra lá e pra cá e ele pensou:
“ ________ (5) será que aconteceu com ________ “Quando ela mexe assim é porque está me chamando”.
(6) minha canoa?” Entrou e a canoa foi para a lagoa. Lá, os peixes
Aí ele ________ (7) um barulho e viu ________ (8) começaram a pular pra dentro dela. O homem quis pegar
a canoa estava voltando ________ (9) pro lugar dela. “Ué, logo os peixes pra ele. Aí a canoa não gostou e o comeu.
________ (10) que a minha canoa ________ (11) virando
uma coisa?”
A ________ (12) tinha olhos e andava ________ (13)
um bicho. Ele resolveu ________ (14) dentro dela e falou:
- ________ (15) pode me levar pra ________ (16)?
A canoa mexeu um ________ (17) e foi pra lagoa.
________ (18) que entrou na água, ________ (19) os
peixes começaram a ________ (20) pular pra dentro dela.
________ (21) canoa começou a comer ________ (22)
peixes. Aí mais peixes . ________ (23) pra dentro dela e ela
________ (24) deu pro índio. Depois, ________ (25) canoa
saiu da lagoa ________ (26) foi pro lugar dela. ________
(27) homem ainda disse:
Como vender para quem não Nesse sentido, Irene Machado (2001) faz referência
compreende o que lê? à noção de Mafesolli:
Em todos esses campos, o estudo
das mensagens como fenômeno de
Luciana Braun Reis1 troca visa uma maior compreensão do
Fale com a autora
modo como acontecem as interações
por meio da linguagem. Emissão e
recepção, canais de transmissão,
A comunicação como ciência debate em sua códigos que organizam as informações
essência os processos envolvidos no ato comunicativo. em mensagem centralizam grande
Variáveis foram introduzidas à análise do processo parte dessas abordagens (abordagens
comunicativo, elevando sua complexidade. O que no como possibilidade de estudo da
início consistia numa relação entre emissor e receptor, comunicação) (p. 279).
na contemporaneidade há outras variáveis entre esses
extremos, por exemplo: o canal, as condições de produção Nesse contexto observa-se a comunicação como
da mensagem, a adequação de linguagem e principalmente um fenômeno complexo, suscetível de interferência
o ruído existente nesse circuito. e suscetível às idiossincrasias comuns do cotidiano.
O ruído pode ser de muitas naturezas, sua descrição Acredita-se que o signo não é perene e sim se adapta
e análise permite diagnosticar as mutações, as alterações conforme a cultura, o tempo, o lugar, e essas são
de sintonia no processo de comunicação, entre outros. apenas algumas entre tantas variáveis desse fenômeno.
Diga-se que é na divergência, no anacrônico e vernacular Muitos elementos estão envolvidos no mistério da
que existe a renovação e suas manifestações no cotidiano. comunicação e da compreensão. Segundo Machado, é
A análise do processo de comunicação, na importante “estar no lugar de, para alguém”,ou seja, é
visão desta autora, requer um olhar hermenêutico, preciso entender qual é a visão de mundo que existe na
contextualizando a comunicação. Essa afirmação audiência alvo da comunicação.
encontra respaldo em Mafesolli (2008) em que aborda Em relação à audiência, um fato merece atenção e
“comunicação como entendimento de mundo”, isto desvela a incapacidade de se comunicar dos brasileiros:
é, requer que se considere não o sintoma isolado, mas a grande número de alunos com 15 anos não sabe ler. A
problemática dos atores sociais, sua história, sua essência compreensão em leitura é uma das habilidades que
e sua deficiência. Nesse caso o ruído encontra relevância constituem a prova do PISA - Programa Internacional de
na atualização do processo comunicacional. Avaliação de Estudantes, juntamente com habilidades de
1
Email: lubraun@maizbrand.com.br.
matemática e ciências.
167 Luciana Braun Reis

O site do INEP, Instituto Nacional de Estudos e 2003


2000 2006
Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, traz maiores Posição /
Posição / Pontuação Posição / Pontuação
informações sobre a prova do PISA e as questões que a Pontuação
subjazem bem como os objetivos da aplicação do programa:
39º - BRASIL - 38º – BRASIL - 49º – BRASIL -
396,03 402,80 392,89
Até que ponto os jovens adultos estão
preparados para enfrentar os desafios 43 países 41 países 56 países
do futuro? Eles são capazes de
analisar, raciocinar e comunicar suas
idéias efetivamente? Têm capacidade O ser letrado, que tem fluência em leitura, tem
para continuar aprendendo pela vida capacidade de analisar, compreender, manipular e construir
toda?2(sic) sua realidade de forma autônoma e plena. O indivíduo que não
domina a leitura, não domina os códigos e limita-se à “periferia”
Em 2003 participaram do PISA 250 mil adolescentes do mundo contemporâneo. Ele não consegue ter acesso, por
com 15 anos de idade em 41 países, sendo 30 deles exemplo, à compreensão bulas de remédios, de contratos,
membros da OCDE e os demais países convidados.3 de jornais, de folhetos, de publicidade ou de embalagens.
Comparativamente, o Brasil, apesar de uma visão Observa-se que, na tabela acima, o desempenho dos alunos
até certo ponto otimista do governo federal, está muito brasileiros está sistematicamente piorando a média, bem
aquém do que se poderia considerar aceitável, conforme como sua posição entre os países que participam da prova.
pode-se averiguar no anexo 1. Analisaremos especialmente Ou seja, não se está ensinando os alunos a ler um texto escrito
a questão do letramento, pois acreditamos que esse e a retirar dele as conclusões e reflexões esperadas. Isto é,
aspecto relaciona-se diretamente com a eficiência do ato tem-se no Brasil uma população que não domina a leitura e
comunicativo bem como da compreensão do sujeito e da se comunica de forma limitada, uma vez que não atinge nível
sua interação com o mundo. razoável de compreensão do que lê.
Segundo Cecília Goulard, o aluno de baixa renda Poderíamos discorrer, talvez em vão, sobre as
precisa entender para que serve a leitura, sendo que causas que contribuem para esse cenário. Algumas
entender a origem do aluno e os conhecimentos prévios considerações, contudo, são importantes, especialmente
têm muito valor. aspectos econômicos e sociais. A escola, na ausência
de uma força institucional, familiar ou governamental,
tem de dar conta de várias atividades que a desloca da
2
Disponível em http://www.inep.gov.br/internacional/pisa/ acesso em 06/12/2010. função de ensinar. Investe-se o tempo do aluno e o dos
3
Idem.
168 Como vender para quem não compreende o que lê?

professores em alimentação, ações sociais, algumas Cultura. Observa-se a diminuição da percepção do


vezes assistencialistas que, na tentativa de retirar esta ensino como elemento de modificação da hierarquia social.
população do abandono, as entregam ao mesmo, não Surgem celebridades endeusadas por outros atributos como
conferindo competência aos alunos para, no mínimo, ler, aspectos físicos, quantidade financeira, carisma ou até
compreender e refletir sobre o mundo. Ou seja, a escola violência, entre outros. Ou seja, as manifestações culturais
tornou-se o “núcleo do bem” das comunidades ao invés de distanciam-se do ensino ou das práticas escolares.
ser um núcleo de conhecimento e compreensão. Cotidiano. A problemática aparece com ênfase na
Essa constatação impacta várias áreas que não Publicidade, área de interesse da autora. A pergunta que
estão diretamente relacionadas ao mundo escolar, mas abre o artigo volta à tona: como vender para quem não
que dependem do ensino para tornarem-se mais eficientes. compreende o que lê? Essa limitação do ensino ainda
Essas áreas são mais bem descritas a seguir: não tinha sido considerada como um ruído no processo
Economia. Em relação aos países pertencentes de comunicação contemporâneo. Ou seja, acreditamos
ao BRIC (Brasil, Rússia, Índia e China) o Brasil está que é necessário considerar como o texto é utilizado na
sistematicamente atrás da Rússia nas três edições, publicidade: esse recorte é a inovação e contribuição do
assim como da China na última edição. Isso mostra artigo à área.
que a velocidade de mudança e capacidade de tornar-
se produtivo está favorável naqueles países mais bem A publicidade e seu entendimento ancorado no texto
localizados no ranking.
Estrutural. Há quem pense que o problema da O varejo, por exemplo, utiliza em profusão textos. Isso
educação é questão de remuneração e de investimento tanto descortina a falta de reflexão da Publicidade sobre questões
humano, técnico, bem como financeiro. Sim, são questões a sociais. Oferecem-se aos consumidores textos em splash,
serem consideradas, mas não únicas. Especula-se que deva que entram na tela ou aparecem rompendo as páginas dos
se pensar sobre o que se está ensinando e qual a validade jornais. Inúmeros itens como diminuição de juros ou outros
de relevância para os alunos em seu meio. Em questão recursos racionais dificilmente são decodificados ou fazem
à universalidade do ensino, empregam-se os mesmos sentido a grande parte da população.
conteúdos tanto para quem terá uma educação sistemática e Observam-se anúncios cuja tônica criativa e
continuada, como àqueles que, por estatística, sabe-se que comunicacional se dá através de texto, que, em muitos casos,
a fase escolar é restrita a episódios normalmente isolados de não será decodificado, pois grande número de brasileiros não
sua realidade. Em alguns casos, não há integração entre o mostra habilidade efetiva para ler e compreender questões
conhecimento de mundo dos alunos e o projeto pedagógico. que estão no texto, como mostra o anexo 2.
169 Luciana Braun Reis

A pergunta continua: “como vender ou se comunicar Segundo Reis (2008), sobre o contrato de
de forma eficiente com esse público não letrado?” Parece- comunicação exposto:
me que não cabe à publicidade resgatar essa população do
anonimato educacional e sim adaptar-se às condições da É a possibilidade de aceitar que existem,
na formulação do projeto final, seres
audiência a fim de prover discurso aceitável. O contrato de
independentes, porém articulados
fala só se estabelece se quem fala é reconhecido como ser e empenhados no entendimento e
falante. Ou seja, como autoridade e representante de parte persuasão do outro. De forma inovadora
do seu mundo. avaliam os aspectos psicossociais, ou
seja, situacionais, que interferem na
leitura, compreensão e interpretação
das peças publicitárias pelo público-alvo.
Como se vê, não existe relação simétrica
entre os parceiros da comunicação
publicitária, mas uma assimetria que
caracteriza a relação dialética entre o
processo de produção e o de interpretação
de uma peça publicitária (p. 117).

Essa noção colabora com


Viana (2000) quando esta afirma:

Fatores de ordem cognitiva e


interacional caracterizam as produções
individuais, e o falante, com base no
Ao observar o Contrato de Comunicação Publicitária conhecimento de mundo partilhado com
de Patrick Charaudeau (2006), observamos que a o ouvinte, é capaz de desempenhar-se
publicidade entende e se apropria das intenções do mundo lingüisticamente, de forma adequada ao
dos consumidores, na esfera real (amarela) atuando nos contexto situacional. Nesse processo,
a consciência metalingüística permite
ambientes psicossociais. A marca, EUe, é construída
a manifestação não apenas de fatores
a partir da noção de mundo da audiência, criando elos lingüísticos e extralingüísticos mas
comunicacionais, e fazendo a construção de sentido do também da atividade de autocorreção
diálogo a partir dos reconhecimentos de ambos: EUe e TUd. na produção oral (sic).
170 Como vender para quem não compreende o que lê?

A problemática deve ser balizada pela questão: eficiência comunicativa. Espera-se que o artigo tenha
de qual comunicação se está falando? Fala-se da alertado à presença desse ruído e sugerido caminhos e
comunicação que extrapola o “Be à Bá” instrumental mediações para que se consiga vender para quem não
da publicidade tradicional. Há os que acreditam que a compreende o que lê.
comunicação deve explorar a base emocional. Segundo
Machado, “as mensagens não apenas têm sentido, mas RESUMO - A falta de habilidade na decodificação do código
são sentidas. Produzir sentido não é transmitir algo já letrado dos jovens brasileiros, constatado na avaliação do
dado, mas construir uma dimensão sensível em ato de PISA, pode ser considerado mais um dos muitos ruídos que
troca” (p. 290). podem levar à incompreensão de peças publicitárias, bem
Então como fazer para, além de ter sentido, como do mundo no qual o indivíduo está inserido.
ser sentido? Na prática, a comunicação não deve ser
preguiçosa, ao contrário, deve sair às ruas, fazendo parte Palavras-chave: Comunicação. Publicidade. Pisa. Leitura.
da vida dos consumidores como agente presente em seu Compreensão.
território. Isso é entender que o ser humano é provido de
emoção e estas são estabelecidas através das experiências ABSTRACT - The lack of capacity in decoding the lettered
que o consumidor tem com a marca. code used by Brazilian youth, assessed by means of PISA
Segundo Lindstrom (2008), é por meio das (Programme for International Student Assessment), can
emoções que o cérebro codifica coisas que têm valor, be considered as one of the many noises that lead to the
boa parte do que acontece no cérebro é emocional e misunderstanding of advertisements, as well as of the world
não cognitivo. Lindstrom (2008) constata que a maioria the individual is inserted.
das atitudes dos consumidores é emocional, ou seja, há
espaço para conversar e se relacionar com indivíduos Keywords: Communication. Advertising. PISA. Reading.
não letrados através de atitudes relacionais, ou seja, Understanding.
constrói-se uma marca somando experiências positivas
e essas experiências são vitais à distinção, preferência e Referências
fidelidade da marca.
Concluindo, o estudo do ruído “ineficiência de CHARAUDEAU, Patrick. Discurso das mídias. São Paulo:
leitura e compreensão do texto”, ineficiência mostrada Contexto, 2006.
pela avaliação do PISA, requer atenção dos publicitários
na elaboração e gestão da publicidade em relação à
171 Luciana Braun Reis

LINDSTROM, Martin. A lógica do consumo : verdades e VIANA, Marília Processos metalingüísticos e matacognitivos
mentiras sobre por que compramos.  Rio de Janeiro: Nova na compreensão da leitura. UNICAP. Revista SymposiuM.
Fronteira, p. 207, 2008. Ano 4, Número Especial, novembro 2000.
MAFFESOLI, M. A terra fértil do cotidiano. Revista Famecos, Programa Internacional de Avaliação de Estudantes. PISATM
n° 36. Porto Alegre, agosto. 2008, p. 5-9. 2006. Competências em ciências para o mundo de amanhã.
Volume 1: Análise. MODERNA LTDA. 2008.
REIS, Luciana Braun. A Comunicação do varejo popular: o
que (por que) não muda?: o varejo do Rio Grande do Sul – Entrevista com Cecília GOULARD, disponível em http://
1970 a 2000. – Porto Alegre, p. 287, 2008. www.youtube.com/watch?v=vMf-YOPHoOE
172 Como vender para quem não compreende o que lê?

Anexos 1:
2000 2003 2006
Clas. País Média Clas. País Média Clas. País Média
1 FINLANDIA 546,47 1 FINLANDIA 543,46 1 COREIA 556,02
2 CANADA 534,31 2 COREIA 534,09 2 FINLANDIA 546,87
3 HOLANDA 531,91 3 CANADÁ 527,91 3 HONG KONG 536,07
4 NOVA ZELANDIA 528,80 4 AUSTRALIA 525,43 4 CANADÁ 527,01
5 AUSTRALIA 528,28 5 LIECHTENSTEIN 525,08 5 NOVA ZELANDIA 521,03
6 IRLANDA 526,67 6 NOVA ZELANDIA 521,55 6 IRLANDA 517,31
7 HONG KONG 525,46 7 IRLANDA 515,48 7 AUSTRÁLIA 512,89
8 KOREA 524,75 8 SUECIA 514,27 8 LIECHTENSTEIN 510,44
9 REINO UNIDO 523,44 9 HOLANDA 513,12 9 POLONIA 507,64
10 JAPÃO 522,23 10 HONG CONG 509,54 10 SUECIA 507,31
11 SUÉCIA 516,33 11 REINO UNIDO 507,01 11 HOLANDA 506,75
12 AUSTRIA 507,13 12 BELGICA 506,99 12 BELGICA 500,90
13 BELGICA 507,13 13 NORUEGA 499,74 13 ESTÔNIA 500,75
14 ISLANDIA 506,93 14 SUIÇA 499,12 14 SUIÇA 499,28
15 NORUEGA 505,28 15 JAPÃO 498,11 15 JAPÃO 497,96
16 FRANÇA 504,74 16 MACAO 497,64 16 CHINA (TAIWAN) 496,24
17 ESTADOS UNIDOS 504,42 17 POLÔNIA 496,61 17 REINO UNIDO 495,08
18 DINAMARCA 496,87 18 FRANÇA 496,19 18 ALEMANHA 494,94
19 SUIÇA 494,37 19 ESTADOS UNIDOS 495,19 19 DINAMARCA 494,48
20 ESPANHA 492,55 20 DINAMARCA 492,32 20 ESLOVENIA 494,41
21 REPUBLICA TCHECA 491,58 21 ISLANDIA 491,75 21 MACAO 492,29
22 ITÁLIA 487,47 22 ALEMANHA 491,36 22 AUSTRIA 490,19
23 ALEMANHA 483,99 23 AUSTRIA 490,69 23 FRANÇA 487,71
24 LIECHTENSTEIN 482,59 24 LATVIA 490,56 24 ISLANDIA 484,45
25 HUNGRIA 479,97 25 REPUBLICA CHECA 488,54 25 NORUEGA 484,29
26 POLÔNIA 479,12 26 HUNGRIA 481,87 26 REP. TCHECA 482,72
27 GRECIA 473,80 27 ESPANHA 480,54 27 HUNGRIA 482,37
173 Luciana Braun Reis

28 PORTUGAL 470,15 28 LUXEMBURGO 479,42 28 LETÔNIA 479,49


29 RUSSIA 461,76 29 PORTUGAL 477,57 29 LUXEMBURGO 479,37
30 LATVIA 458,07 30 ITÁLIA 475,66 30 CROACIA 477,36
31 ISRAEL 452,17 31 GRÉCIA 472,27 31 PORTUGAL 472,30
32 LUXEMBURGO 441,25 32 ESLOVÁQUIA 469,16 32 LITUANIA 470,07
33 TAILANDIA 430,68 33 FEDERAÇÃO RUSSA 442,20 33 ITÁLIA 468,52
34 BULGARIA 430,40 34 TURQUIA 440,97 34 ESLOVÁQUIA 466,35
35 ROMENIA 427,93 35 URUGUAI 434,15 35 ESPANHA 460,83
36 MÉXICO 421,96 36 TAILANDIA 419,91 36 GRECIA 459,71
37 ARGENTINA 418,25 37 SERVIA 411,74 37 TURQUIA 447,14
38 CHILE 409,56 38 BRASIL 402,80 38 CHILE 442,09
39 BRASIL 396,03 39 MÉXICO 399,72 39 RUSSIA 439,86
40 MACEDONIA 372,51 40 INDONÉSIA 381,59 40 ISRAEL 438,67
41 INDONESIA 370,61 41 TUNÍSIA 374,62 41 TAILANDIA 416,75
42 ALBANIA 348,85 Total 459,58 42 URUGUAI 412,52
43 PERU 327,08 43 MÉXICO 410,50
Total 460,36 44 BULGÁRIA 401,93
45 SERVIA 401,03
46 JORDANIA 400,58
47 ROMENIA 395,93
48 INDONÉSIA 392,93
49 BRASIL 392,89
50 MONTENEGRO 391,98
51 COLOMBIA 385,31
52 TUNISIA 380,34
53 ARGENTINA 373,72
54 AZERBAJÃO 352,89
55 CATAR 312,21
56 QUIRZIQUISTAO 284,71
Total 446,13
174 Como vender para quem não compreende o que lê?

Anexo 2:
Descrições resumidas dos cinco níveis de proficiência em leitura
O que os estudantes tipicamente são O que os estudantes tipicamente são
Limite inferior do escore Limite inferior do escore
capazes de fazer capazes de fazer

Nível 5 - 625,6 Nível 4 - 552,9


Localizar e possivelmente dispor em sequência ou Localizar e possivelmente dispor em sequência ou
combinar informações múltiplas profundamente inseridas, combinar informações múltiplas inseridas, sendo que cada uma
algumas das quais podem estar fora do corpo principal do texto. delas pode precisar atender a critérios múltiplos, em texto cujos
Inferir qual das informações do texto é pertinente para a contextos ou formas sejam familiares. Inferir qual informação
tarefa. Lidar com informações concorrentes altamente plausíveis presente no texto é relevante para a tarefa. Utilizar alto nível de
e/ou abrangentes. inferências baseadas no texto para entender e aplicar categorias
Construir o significado de linguagem matizada ou em um contexto não-familiar, e construir o significado de uma
demonstrar entendimento pleno e detalhado de um texto. parte do texto, levando em conta o texto como um todo. Lidar
Avaliar criticamente ou formular hipóteses com base em com ambiguidades, ideias contrárias à expectativa e ideias
conhecimento especializado. enunciadas em forma negativa. Utilizar conhecimento formal
Lidar com conceitos contrários às expectativas e basear- ou público para formular hipóteses sobre um texto ou avaliá-lo
se em uma compreensão profunda de textos longos ou complexos. criticamente. Mostrar compreensão exata de textos longos ou
Em textos contínuos, os estudantes são capazes de complexos. Em textos contínuos, os estudantes são capazes
analisar textos cuja estrutura discursiva não é óbvia nem de perceber ligações linguísticas ou temáticas ao longo de
claramente assinalada, a fim de discernir a relação de partes diversos parágrafos, muitas vezes na ausência de marcadores
específicas do texto com intenções ou temas implícitos. claros do discurso, a fim de localizar, interpretar ou avaliar
Em textos não-contínuos, os estudantes são capazes informações inseridas ou de inferir significado psicológico
de identificar padrões entre muitas informações apresentadas ou metafísico. Em textos não-contínuos, os estudantes são
em uma representação visual, que pode ser longa e detalhada, capazes de esquadrinhar um texto longo a fim de encontrar
às vezes buscando referências em informações externas à informações relevantes, muitas vezes com pouca ou nenhuma
representação visual. ajuda de elementos organizadores, tais como etiquetas ou
O leitor pode necessitar compreender de maneira formatação especial, para localizar diversas informações a
independente que uma compreensão plena daquela parte do serem comparadas ou combinadas.
texto requer que ele busque referência em uma parte separada
do mesmo documento – por exemplo, uma nota de rodapé.
175 Luciana Braun Reis

O que os estudantes tipicamente são O que os estudantes tipicamente são


Limite inferior do escore Limite inferior do escore
capazes de fazer capazes de fazer

Nível 3 - 480,2 exigidas inferências de nível inferior. Fazer uma comparação ou


Localizar e, em alguns casos, reconhecer a relação entre conexões entre o texto e conhecimentos externos, ou explicar uma
informações, cada uma das quais pode necessitar atender a critérios característica do texto baseando-se em experiência e atitudes
múltiplos. Lidar com informações concorrentes proeminentes. pessoais. Em textos contínuos, os estudantes são capazes
Integrar diversas partes de um texto a fim de identificar a ideia de seguir conexões lógicas e linguísticas dentro de um parágrafo, a
principal, entender uma relação ou explicar o significado de uma fim de localizar ou interpretar informações, ou sintetizar informações
palavra ou frase. Comparar, contrastar ou categorizar levando por meio de textos ou partes de um texto, a fim de inferir a intenção
em conta muitos critérios. Lidar com informações concorrentes. do autor. Em textos não-contínuos, os estudantes demonstram
Fazer conexões ou comparações, dar explicações ou avaliar uma alcançar a estrutura essencial de uma representação visual – tal
característica de texto. Demonstrar uma compreensão detalhada como um diagrama de árvore simples ou uma tabela – ou combinar
do texto com relação a conhecimentos familiares do cotidiano, ou duas informações de um gráfico ou tabela.
basear-se em conhecimento menos comum. Em textos contínuos,
os estudantes são capazes de utilizar convenções de organização Nível 1 - 334,8
de texto, quando presentes, e seguir ligações lógicas implícitas Localizar uma ou mais informações independentes
ou explícitas – tais como relações de causa e efeito – por meio apresentadas de maneira explícita, que atendem tipicamente a um
de sentenças ou parágrafos, para localizar, interpretar ou avaliar critério simples, com pouca ou nenhuma informação concorrente
informações. Em textos não-contínuos, os estudantes são capazes presente no texto. Reconhecer o tema principal ou a intenção do
de considerar uma representação visual à luz de uma segunda autor em um texto sobre um tópico com o qual o estudante tenha
representação, separar documentos ou representações visuais, familiaridade, quando a informação requerida no texto é proeminente.
possivelmente em formatos distintos, ou combinar diversas Fazer uma conexão simples entre informações contidas no texto e o
informações espaciais, verbais e numéricas em um gráfico ou conhecimento cotidiano comum. Em textos contínuos, os estudantes
mapa, para tirar conclusões sobre a informação representada. são capazes de utilizar redundância, títulos de parágrafos ou
convenções comuns de edição para formar uma impressão da
Nível 2 - 407,5 ideia principal do texto, ou localizar informações mencionadas de
Localizar uma ou mais informações, cada uma das quais maneira explícita dentro de um trecho curto de texto. Em textos
pode precisar atender a critérios múltiplos. não-contínuos, os estudantes são capazes de focalizar informações
Lidar com informações concorrentes. Identificar a ideia principal individuais, geralmente dentro de uma única representação visual –
em um texto, compreender relações, formar ou aplicar categorias tal como um mapa simples, um gráfico linear ou um gráfico de barras
simples, ou explicar significado dentro de uma parte delimitada –, que apresenta somente uma pequena quantidade de informações
do texto, quando as informações não são proeminentes e são de modo direto, e na qual a maior parte do texto verbal limita-se a um
pequeno número de palavras ou frases.
Uma nova proposta de ensino de estratégias da Argumentação na Língua, desenvolvida por Oswald
Ducrot e colaboradores. O ponto principal desses estudos é
de leitura: a utilização da teoria dos blocos
verificar o papel do linguístico na construção do sentido em
semânticos em sala de aula objetos de estudo, tais como textos didáticos, ou quaisquer
formas de texto escrito. A Teoria dos Blocos Semânticos
João Henrique Casara Borges1 parte do princípio de que o sentido encontra-se na língua,
Fale com o autor
nos fatores linguísticos inerentes ao texto de forma que
esses fatores devem ser os primeiros a serem levados em
Questões relacionadas ao ensino são debatidas consideração na leitura. A teoria ainda afirma que todo texto
constantemente no ambiente acadêmico, especialmente é argumentativo, sendo assim, para seu estudo, criam-se
dentro de uma faculdade que visa formar novos professores. encadeamentos argumentativos que são os responsáveis
Cada área de conhecimento preocupa-se em como se pode pela compreensão do sentido no texto.
fazer os alunos compreenderem da melhor forma possível o O presente trabalho será desenvolvido da seguinte
que se está sendo proposto. No caso do ensino de Língua forma. Em um primeiro momento serão apresentados os
Portuguesa, tem-se a preocupação em colaborar para uma conceitos da Teoria dos Blocos Semânticos que podem
formação do estudante como leitor proficiente e ativo dos servir como base para o estudo do texto. Apenas alguns
textos em sala de aula. conceitos serão abordados, porém deixamos claro que o
Acreditamos que é de fundamental importância que conhecimento da totalidade da teoria é a melhor forma de
os professores possuam uma boa base nos conhecimentos capacitar o professor a utilizá-la em sala de aula. Além da
linguísticos, pois dessa forma serão capazes de diagnosticar exposição dos conceitos, serão explicitados seus benefícios
possíveis problemas na leitura e produção textual. Aqui para a construção de estratégias de leitura, ainda nesse
trataremos primordialmente da forma como se pode fazer momento observaremos como a visão cognitivista pode
uma leitura aprofundada e ativa de textos, criando assim colaborar com o estudo do texto.
leitores com capacidade de compreender bem um texto Após a fundamentação teórica, os conceitos serão
escrito, logo, se tornando capazes de discernir quais aplicados de forma a demonstrar e validar sua utilização em
informações importantes são subtraídas desse texto. sala de aula, tentando criar assim uma proposta de ensino de
A Teoria dos Blocos Semânticos (daqui em diante estudo do texto que venha a acrescentar na árdua tarefa de
denominada TBS) é o momento atual de estudo da Teoria trabalhar leitura em sala de aula. Este trabalho tem o intuito
de servir como iniciação a estudos sob esta perspectiva.
1
Mestrando em Linguística Aplicada pela PUCRS, autor do trabalho de conclusão
de curso: A construção do sentido em Pão de cada dia de Gabriel, o Pensador, à
luz da Teoria dos Blocos Semânticos. E-mail: joão.borges@acad.pucrs.br
177 João Henrique Casara Borges

Fundamentação teórica neg-dinheiro DC neg-felicidade. Se chamarmos dinheiro de


A e felicidade de B, teremos os seguintes encadeamentos
Existem muitas formas de se trabalhar o texto escrito respectivamente: A DC C, Neg-A PT B, A PT Neg-B e Neg-A
e também diversos modos de abordagem. Neste trabalho DC Neg-B. Temos assim dois aspectos normativos e dois
usaremos uma abordagem que trata principalmente dos transgressivos que são interdependentes e correspondem à
componentes linguísticos, pois acreditamos que o estudo ideia de que para a felicidade é preciso dinheiro.
do texto deve começar pelo que o próprio texto contém, A negação de um dos segmentos, ou ambos, é parte
para a seguir trabalhar com informações extratextuais. fundamental na construção do bloco semântico. No caso

Inicialmente o conceito de encadeamento dos encadeamentos descritos acima, se temos apenas
argumentativo se faz necessário. Um encadeamento uma negação teremos um sentido transgressivo para o
argumentativo é composto por um suporte (primeiro encadeamento, caso os dois segmentos sejam negados
segmento) e um aporte (segundo segmento), unidos por voltamos a ter o aspecto normativo.
um conector. O conector pode ocorrer de duas formas: Mostraremos agora como um bloco semântico é
uma normativa, representada por donc (DC); e outra estabelecido. Um encadeamento argumentativo é constituído
transgressiva, representada por pourtant (PT). Esses pela relação entre duas informações, aqui chamadas de A e B.
conectores representam as formas de normatividade Quatro encadeamentos formam um bloco semântico, mas para
e transgressividade e não necessariamente condizem isso eles devem ter a mesma interdependência semântica.
exatamente com o que a gramática normativa estabelece Por exemplo, o enunciado de Carel (2005, p. 23): “temos
para a conjunção francesa donc e pourtant. um verdadeiro problema, portando, deixemo-lo de lado” pode

Os encadeamentos terão uma interdependência ser descrito através do seguinte encadeamento A DC B, em que
semântica, ou seja, o sentido criado por esses encadeamentos A significa dificuldade e B tem o significado de postergar. Esse
precisa ter a mesma significação independente dos conectores encadeamento encabeça o bloco semântico que chamaremos
usados. Tomemos Pedro é feliz. Ele tem muito dinheiro, como de 1. Depois dele temos a variação de conector e também da
exemplo. Nesse caso podemos ter o seguinte encadeamento posição da negação. Sendo assim, forma-se o seguinte bloco
argumentativo dinheiro DC felicidade, em que dinheiro é o que daqui em diante será denominado BS1:
suporte e felicidade o aporte. Isso criaria um bloco semântico
em que a ideia de ter dinheiro corresponde à ideia de 1 A DC B
felicidade, ou seja, para ser feliz é preciso dinheiro. Partindo A PT NEG-B
desse exemplo podemos criar outros três encadeamentos: NEG-A PT B
neg-dinheiro PT felicidade, dinheiro PT neg-felicidade e ainda NEG-A DC NEG-B
178 Uma nova proposta de ensino de estratégias de leitura: a utilização da teoria dos blocos semânticos em sala de aula

Podemos ainda construir outro bloco semântico em dois blocos distintos. Cada bloco semântico formará um
partindo do enunciado, também de Carel (2005, p. 23): quadrado argumentativo.
“temos um verdadeiro problema, portanto não deixemo- Para a formalização do quadrado argumentativo,
lo de lado”. Esse enunciado pode ser representado por devemos seguir algumas convenções. São elas: CON
A DC Neg-B. Como visto anteriormente, mudando o significa conector (tanto o normativo, quanto o transgressivo);
conector e a posição da negação temos outros três se CON designa um conector de certo tipo, CON’ designará o
aspectos, além desse, e eles formam o bloco semântico oposto; e também as letras X e Y designam o que precede e
que denominaremos BS2: o que sucede os conectores.
Dessa forma construiremos o quadrado da
2 A DC NEG-B seguinte forma:
A PT B
NEG-A DC B
NEG-A PT NEG-B

Os segmentos A, como sendo dificuldade, e B,


postergar, mantêm o mesmo sentido em ambos os blocos,
porém devemos frisar que no BS1 se tem a ideia de que
frente a uma dificuldade devemos postergar a solução,
enquanto que em BS2 a ideia é de que quando encontramos
uma dificuldade não devemos postergar sua solução.
Dessa forma podemos afirmar que a interdependência
varia de BS1 para BS2.
Fica claro que a interdependência semântica
depende do objeto escolhido para o estudo. Em ambos os O quadrado argumentativo ilustra bem as relações
blocos descritos A corresponde a dificuldade e B a postergar. entre os segmentos. Por exemplo: dinheiro DC felicidade
No entanto, de acordo com cada enunciado temos uma encontra-se no canto superior esquerdo do quadrado, seu
forma diferente de relação entre eles. aspecto recíproco, no canto superior direito, corresponderia
A noção de bloco semântico é formalizada através ao encadeamento neg-dinheiro DC neg-felicidade. Isso
do quadrado argumentativo. A e B podem se combinar de mostra que o exato oposto de um encadeamento, ou seja, a
forma a criar oito aspectos diferentes que são agrupados utilização de negação nos dois lados do encadeamento forma
179 João Henrique Casara Borges

uma ideia recíproca. Enquanto a utilização de apenas uma parafraseados, respectivamente, da seguinte forma através
negação e a troca de conector forma um aspecto converso, da utilização de encadeamentos: perigo DC precaução, neg
representado na parte inferior direita, no caso de A DC B. perigo PT precaução e difícil PT compreende. É importante

Os encadeamentos esclarecem as relações de destacar que se queremos parafrasear um item lexical
sentido nos textos e partem do linguístico presente no não podemos utilizá-lo na paráfrase. Devem ser utilizados
texto, ou seja, traduzem de forma argumentativa o que diferentes itens ou expressões. Paráfrase, aqui, quer
está presente. Assim a importância é inegável, pois o texto dizer um encadeamento que pode ser construído a partir
significará o que está escrito nele. De acordo com o contexto da entidade em análise, que pode ser um item lexical, um
presente criamos as relações possíveis. Nem todas as sintagma, um enunciado ou parte de um discurso.
relações são possíveis, apenas aquelas que podem ser No caso da Argumentação Externa (AE) o sentido
descritas pelos blocos e pelo quadrado argumentativo. contido em uma determinada entidade nos leva mais

No ensino temos a preocupação de mostrar adiante, ou ainda nos faz chegar naquela entidade. A
aos alunos as ideias presentes nos textos. Utilizando AE pode ser encontrada de duas formas: à direita ou
os encadeamentos argumentativos teremos uma base à esquerda. As AE à esquerda são constituídas pelas
fortemente fundamentada para o estudo, pois tratam do que continuações e as AE à direita são formadas por tudo
está presente estruturalmente no texto. aquilo que pode preceder a entidade e. Na AE à direita de
Passemos agora ao conceito de Argumentação prudente, podemos ter o seguinte encadeamento prudente
Interna (AI). Para Carel (2005, p. 64), DC segurança, e na AE à esquerda o segmento tem medo
DC é prudente é possível (CAREL, 2005, p. 63).
a argumentação interna de uma Ainda no caso da AE, temos mais duas definições
entidade e está constituída por um
importantes: AE estruturais e contextuais. Para CAREL
certo número de aspectos aos quais
pertencem os encadeamentos que (2005, p. 63-64):
parafraseiam essa entidade e.2
as AE são estruturais se fazem
Em outras palavras, a AI diz respeito às paráfrases que parte da significação linguística de
são possíveis de serem construídas a partir de um item lexical. uma entidade, se estão previstas
Carel (2005, p. 65) traz os seguintes exemplos: pela língua. É o caso de prudente
prudente, temeroso e inteligente, como podendo ser DC segurança / prudente PT neg-
segurança. Ambos aspectos fazem
2
La argumentación interna (AI) de una entidad e está constituida por un cierto
número de aspectos a los que pertenecen los encadenamientos que parafrasean parte da significação de prudente
esta entidad e.
180 Uma nova proposta de ensino de estratégias de leitura: a utilização da teoria dos blocos semânticos em sala de aula

pelo fato de que prudente está O cognitivismo expressa uma visão diferenciada,
vinculado a segurança por um DC mas que pode servir como apoio à TBS. Enquanto a TBS
e por Neg-segurança por um PT3. parte do texto para a construção do conhecimento, o
cognitivismo estuda as atitudes do leitor frente a seu objeto,
No caso das AE contextuais, é a situação de discurso ou seja, analisa as possíveis inferências que podem estar
que vincula o sentido à entidade. Por exemplo, como sendo feitas no momento da leitura.
visto acima, prudente pode ter a seguinte AE estrutural: O estudo do texto corresponde ao conhecimento
É prudente DC confio nele. No entanto se criarmos uma linguístico (conhecimento do léxico e da gramática, respon-
situação discursiva em que ser prudente não inspire sável pela escolha dos termos e da organização do mate-
confiança, o encadeamento pode ser outro. rial linguístico na superfície textual, inclusive dos elementos
Vejamos a seguinte situação: uma pessoa contrata coesivos) e a análise das inferências diz respeito ao
um guarda costas que deve protegê-lo de assassinos. Se conhecimento enciclopédico (compreende as informações
o guarda costas for prudente, não arriscará a própria vida armazenadas na memória de cada indivíduo. O conheci-
para proteger aquele que o contratou, logo podemos criar mento do mundo compreende o conhecimento declarativo,
o seguinte encadeamento prudente DC neg-confiança manifestado por enunciações acerca dos fatos do mundo).
(CAREL, 2005, p. 64). Para Smith (1999) a leitura é a ponte entre o que
As argumentações externas demonstram quais as está atrás dos olhos com o que está na frente dos olhos.
possibilidades de relação de uma determinada entidade, É necessário, além de decodificar, encontrar o sentido de
sendo assim podemos afirmar que os textos possuem um texto, caso contrário não podemos chamar de leitura.
um número limitado de possibilidades de interpretação. Então, a leitura é uma atividade que acontece por meio de
Isso garante que em estudos interpretativos em sala de antecipação, realizada através do conhecimento prévio e
aula os alunos possam ser direcionados a reler os textos exige do leitor uma atitude reflexiva, a qual lhe favorece
em busca das informações corretas. A releitura é parte compreender e explicar as coisas.
importante da boa compreensão de um texto, delimitando Solé (1998) mostra que para uma leitura proficiente
as possibilidades de interpretação estaremos levando é necessário que o leitor sinta que é capaz de ler, de com-
o aluno a buscar no texto as informações presentes que preender o texto tanto de forma autônoma como buscando
proporcionem interpretações condizentes. ajuda de leitores mais experientes. Aponta ainda que a lei-
3
Las AE son estructurales si forma parte de la significación lingüística de una tura de verdade é aquela que os leitores têm o domínio de
entidad, si están previstas por la lengua. Es el caso de prudente PLT seguridad / experimentá-la da forma como for mais conveniente.
prudente SE Neg-seguridad. Ambos aspectos forman parte de la significación de
prudente por el hecho de que prudente está vinculado a seguridad por un PLT y a
Neg-seguridad por un SE.
181 João Henrique Casara Borges

Proposta de estudo de um texto mais baixas. É quando a temperatura


começa a oscilar que chega a hora de
Escolhemos um texto retirado da Folha de S. Paulo, nos preocuparmos”.
Caderno de Esportes. Publicado em São Paulo, sábado, 27 O alpinista brasileiro acredita que pare
de maio de 2000, escrito por Eduardo Ohata (da Reportagem ser bem sucedido nesta nova tentativa
também vai ser fundamental o sangue-
Local). O texto foi previamente adaptado para estudos em
frio que adquiriu com a experiência
sala de aula. Chama-se O homem de gelo. A seguir o texto: acumulada nas duas vezes em que
tentou escalar o K2, por já conhecer
A – 30 ºC, o sangue frio será, em diversos bem a rota de escalada, chamada de
sentidos, a principal arma de Waldemar Esporão dos Abruzzos.
Niclevicz, 33, em sua terceira tentativa de
se tornar o primeiro brasileiro a escalar o O K2 é considerado mais difícil de escalar
K2, segunda maior montanha do mundo — há três anos ninguém alcança seu topo
e a mais perigosa, localizada no norte do —, pois tem um alto grau de inclinação,
Paquistão, perto da fronteira com a China. com contornos abruptos, além de ficar na
parte mais inacessível da Cordilheira do
O K2, com 8.611m, por seu alto grau de Himalaia, onde não há estrutura ou vilas.
dificuldade — 54 pessoas morreram ao
tentar escalá-lo —, foi conquistado por Em sua primeira tentativa, em 1998,
só 164 alpinistas e também já provocou o brasileiro foi obrigado a desistir por
muitas mortes na descida. Embora seja o causa de uma avalanche, após ter
mais alto e famoso do mundo, o Everest, alcançado os 8.040m. Na segunda, no
de 8.848m, teve a escalada concluída por passado, a morte de um colega romeno,
1.200 pessoas. atingido na cabeça por uma pedra,
impressionou o grupo de alpinistas e
Niclevicz, o primeiro brasileiro a escalar levou Niclevicz a desistir.
o Everest e que tentou e teve de desistir
da escalada do K2 em 1998 e 1999, Hoje, ele acha que tem mais sangue-frio,
deixa o país nesta quarta, acreditando ao se acostumar com ocorrências que
que estar frio será importante em dois antes o assustavam, como, além dos
aspectos: o climático e o psicológico. acidentes, as avalanches com pedaços
de corpos de pessoas desaparecidas.
“Quanto mais frio, melhor. Isso significa
que o clima está estável e há menos riscos “Respeito muito o K2, é realmente uma
de avalanches. Sinto-me mais seguro escalada perigosa. Mas hoje não fica
quando estamos a – 30 ºC ou temperaturas mais impressionado com ele. Sabemos
182 Uma nova proposta de ensino de estratégias de leitura: a utilização da teoria dos blocos semânticos em sala de aula

como chegar ao topo, depende de nós isolada, devemos sempre analisá-lo em suas relações
mesmos, é uma escalada interna”, com o resto do texto. Ao se chegar a um encadeamento
filosofa. “Perguntam se eu gosto de argumentativo, derivado do anterior, como arma DC bom
adrenalina. Ao contrário, sou muito
prudente, com os pés no chão. Esse é
podemos utilizar essa ideia para chamar a atenção dos
meu segredo”. estudantes para o texto. Se uma questão como “Por que é
positivo possuir uma arma?” for levantada, e indicações de
que ela seja respondida de acordo com o texto, os alunos
A estrutura apresenta parágrafos curtos e com as terão o esforço de entender o que significa o item lexical
ideias bem elaboradas, cada parágrafo tem, claramente, arma e também de que forma ele pode ser utilizada em um
um tema principal. contexto que diga que arma é algo positivo.
De acordo com a fundamentação teórica apresentada, Vamos agora à formação de um bloco semântico a
iremos tratar primeiramente das argumentações internas partir de uma ideia presente no texto. No quarto parágrafo temos
de algumas palavras. Por exemplo, no primeiro parágrafo o seguinte enunciado Quanto mais frio, melhor. Usando-o
temos a palavra arma, em que podemos criar o seguinte como base para criar um bloco semântico podemos começar
encadeamento sangue-frio DC ajuda para escalar, que com o encadeamento frio DC bom, e usando o quadrado
pode ser considerado a AI da palavra arma, dentro desse argumentativo podemos criar os outros três restantes: neg
texto, mais especificamente, dentro desse parágrafo. frio PT bom, frio PT neg bom e neg frio DC neg bom. Esses
A forma como a palavra é empregada deixa claro que quatro encadeamentos representam o bloco semântico que
sangue-frio será importante para a escalada. No entanto, afirma que o frio traz benefícios. É importante frisar que a
aqui, arma tem um sentido diferente de outros possíveis. ideia traduzida pelo bloco é uma opinião contida no texto, não
Não se trata de uma arma de fogo e nem de algo que deve ser levada como uma verdade arbitrária, pois em outras
pode ser usado para ferir. Esse esclarecimento ajudará os situações o frio pode não trazer benefício algum.
alunos a compreenderem a importância de uma leitura um Ao esclarecer para os alunos que as condições de
pouco mais cuidadosa do texto, em que se deve levar em verdade dependem do objeto que está sendo estudado, a
consideração o contexto presente no objeto de estudo. atenção do aluno se volta, mais uma vez, para o texto fazendo
Ao pensar na Argumentação Externa, podemos com que a opinião pessoal seja deixada para outro momento.
concluir algo como possuir uma arma DC mais condições As opiniões de cada indivíduo são extremamente importantes,
de escalar então se pode afirmar que, de acordo com o mas não devem ser colocadas como a prioridade no estudo
texto, e com a AI de arma construída anteriormente, a linguístico de um texto, pois, se isso acontecer, os estudos
posse de uma arma é algo positivo. Esse é um caso de AE serão baseados em opiniões e interpretação que podem não
contextual. Não podemos analisar o item lexical de forma
183 João Henrique Casara Borges

estar presentes no texto. E retirar informações que não estão theories. Teachers who must create a bridge between theory
no texto, nem podem ser ativadas por inferências, pode ser and its application in teaching methodology. In this proposal
considerada uma forma não apropriada de leitura. we will use some concepts of the Theory of Semantic
Acreditamos que o próprio texto indique o blocks, such as internal and external arguments and chains
momento de se buscar mais fortemente uma inferência of argument, as a way to study the text. The article will also
extralinguística, ou seja, aquela que não está presente na take into account the view of the cognitive activity of reading.
estrutura linguística do texto devendo ser acessada pelo
conhecimento de mundo. O caso da palavra arma referido Keywords: Teaching. Text. Semantics Blocks. Cognitive
acima é um bom exemplo disso. Para entender o contexto Science.
em que ela está sendo usada, e compreender seu sentido,
necessitamos do conhecimento de mundo associado ao Referências
contexto linguístico do texto em que ela está inserida.
CAREL, Marion. La semántica argumentativa: una
RESUMO – O presente artigo visa propor uma forma de introduicción a la teoría de los bloques semánticos. 1ªed.
trabalho com o texto em sala de aula. Para isso acreditamos Buenos Aires: Colihue, 2005. Tradução: Maria Marta García
ser necessário o conhecimento de teorias linguísticas Negroni e Alfredo M. Lescano.
por parte do professor, que deve criar uma ponte entre a
SMITH, Frank. Leitura significativa. 3ªed. Porto Alegre:
teoria que deseja utilizar e sua aplicação na metodologia
Editora Artes Médicas Sul Ltda.1999. Tradução: Beatriz
de ensino. Nessa proposta utilizaremos alguns conceitos
Affonso Neves.
da Teoria dos Blocos Semânticos, tais como argumentação
interna e externa e encadeamentos argumentativos, como SOLÉ, Isabel. Estratégias de leitura. 6ªed. Porto Alegre:
uma forma de estudo do texto, e também levaremos em Artmed, 1998.
consideração a visão cognitivista da atividade de leitura.

Palavras-chave: Ensino. Texto. Blocos Semânticos.


Cognitivismo.

ABSTRACT – This paper intends to demonstrate a new


way of working the text in classroom. In order to achieve this
we believe is necessary that teachers know the linguistic
A interferência das otites médias no a quantidade de sílabas, o contexto, a posição do som na
palavra, a quantidade de operações cognitivas exigidas e
processo de alfabetização1
o tipo de operação. Estas habilidades são desenvolvidas
gradualmente, sendo que o nível mais complexo é o dos
Fernanda Dias2 fonemas. Os níveis anteriores são os das sílabas e das uni-
Fale com a autora dades intrassilábicas.
A literatura tem reconhecido a relação entre a cons-
A aquisição da linguagem escrita tem sido objeto de ciência fonológica e o processo de alfabetização. Para
investigação de diferentes campos do conhecimento. Tais melhor compreender as possíveis interlocuções entre tais
estudos contribuem para o entendimento da aprendizagem aspectos, é fundamental conhecer os diversos pontos de
normal da leitura. Contudo, oportunizam espaço para ques- vista que compõem a relação da consciência fonológica e a
tionamentos quanto a possíveis intercorrências no início da aprendizagem da leitura e escrita.
alfabetização. Um quadro clínico comum e muitas vezes A partir dessas considerações, três concepções con-
despercebido em sala de aula é o das otites de repetição, trárias foram desenvolvidas sobre a relação dessa habilida-
mais conhecido como otite média crônica. Em função da de com a escrita. A primeira sugere que são as capacidades
grande incidência dessa doença na faixa etária pré-escolar metafonológicas que possibilitam a aquisição da escrita.
e escolar, faz-se necessário investigar se o prejuízo auditi- Constata-se, entretanto, a sensibilidade grafêmica aparen-
vo decorrente de tal problemática pode interferir nas habili- ta já estar presente antes que se desenvolva a consciência
dades de consciência fonológica e, consequentemente, na fonológica. Assim, Freitas (2004) traz um segundo ponto de
emergência da leitura. vista, o qual refere que a escrita é adquirida antes das habi-
Consciência fonológica é definida por Freitas (2004) lidades metafonológicas. Se ainda não se alfabetizaram, as
como a habilidade de fazer uma reflexão consciente sobre crianças não pensam com clareza sobre a organização da
os sons que compõem a fala. Dessa maneira, é possível jul- fala. Porém, essa colocação limita-se apenas à consciên-
gar e manipular a estrutura sonora das diferentes palavras. cia fonêmica, esquecendo os outros dois níveis, certamente
Existem tarefas de consciência fonológica, as quais reque- emergidos antes da alfabetização.
rem o armazenamento da unidade na memória enquanto é Finalmente, uma última abordagem afirma, segun-
realizada a manipulação. Elas podem variar de acordo com do Freitas, que a consciência fonológica e a aquisição do
código escrito são mutuamente influenciadas. Assim, a
1
Artigo elaborado para a disciplina Compreensão de Processamento da aprendizagem da leitura proporciona o aprimoramento das
Leitura 2010/2.
2
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Linguística da Pontifícia habilidades metalinguísticas, ainda que alguns níveis de
Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS. Email: nani.dias@ig.com.br.
185 Fernanda Dias

consciência fonológica precedam à alfabetização. O pro- artigo encontrar possíveis inter-relações entre as variáveis
cessamento de leitura do tipo ascendente (KATO, 2007), alfabetização, consciência fonológica e alta incidência de
característico dos leitores em fase de aprendizagem, tanto otites. Pretende-se, assim, buscar na literatura indicadores
requer a análise dos segmentos da palavra quanto propor- que apontem para essa relação, os quais possam sugerir a
ciona uma maior consciência dos mesmos. importância de um olhar atento a essas possíveis intercor-
A discussão anterior aponta para uma relação en- rências nos primeiros anos de vida.
tre a consciência fonológica e o aprendizado lectoescrito.
Entretanto, para manipular os fonemas durante a alfabeti- 1. As hipóteses e os desafios no processo de
zação, a criança precisa de uma boa acuidade auditiva, a alfabetização
fim de identificar os traços que os diferenciam. Gonçales
(2002) lembra que o fato da acuidade auditiva existir desde É possível observar que as crianças interessam-se
o período intraútero não é o bastante para a compreensão pelas questões relacionadas à leitura e escrita muito antes
das informações auditivas e seu uso como instrumento de do ingresso no Ensino Fundamental. Desde muito cedo elas
comunicação. A capacidade de análise e interpretação dos formulam suposições acerca desse processo. É inegável o
sons, os quais foram detectados pelo sistema auditivo pe- reconhecimento do trabalho de Ferreiro e Teberosky (1999)
riférico, é fundamental para aquisição de tais habilidades. sobre as hipóteses em questão. Seus estudos realizados
Crianças que apresentam perdas auditivas frequen- com crianças em faixa etária pré-escolar, desde o quarto
tes devido aos episódios de otite podem ter dificuldades ano de vida, indicaram cinco diferentes níveis no percurso
para desenvolver as habilidades auditivas. Um dos traços de apropriação da língua escrita. Os dois primeiros níveis
mais sutis a ser discriminado é o de sonoridade, que pode, são correspondentes à escrita pré-silábica; o terceiro
entretanto, alterar o sentido de toda a palavra. Sendo as- refere-se à hipótese de escrita silábica; o quarto nível está
sim, tal habilidade é fundamental no processo de decodifi- relacionado à escrita silábico-alfabética; e o quinto nível, à
cação. Outro fator relacionado é a redução da capacidade hipótese de escrita alfabética.
atencional a esses sons. Prejuízos dessa natureza podem, No nível inicial, o infante busca reproduzir os traços
portanto, gerar problemas de aprendizagem, especialmente que julga como básicos na escrita. Embora as escritas
no processo de alfabetização. nesse período sejam parecidas, as crianças as consideram
Um questionamento que se faz necessário é se os diferentes, uma vez que a intenção ao realizá-las era
prejuízos auditivos gerados pela otite média crônica podem distinta. Nesse momento, Ferreiro e Teberosky entendem
alterar a aquisição das habilidades de manipulação dos que a escrita ainda não parece transmitir informação, a
sons durante a leitura. Dessa forma, busca-se no presente interpretação só é possível pelo escritor. Ainda existe a
186 A interferência das otites médias no processo de alfabetização

crença de que o tamanho da palavra seja proporcional ao escrita de substantivos para a escrita de frases, porém,
objeto a que ela se refere ou às características do objeto. pode atribuir uma letra para cada constituinte imediato.
Este é possivelmente um dos fatores que impossibilita a Nesse último caso, irá selecionar uma letra para o sujeito
relação entre a escrita e a sua forma sonora. Zorzi (2003) e outra para o predicado, por exemplo.
complementa com a afirmação de que nesse período O quarto nível pode ser considerado o momento de
não se observa correspondência entre os sons e suas transição da hipótese de escrita silábica para a alfabética.
representações gráficas, uma vez que a criança ainda O conflito entre a hipótese silábica e o número mínimo de
não analisa os componentes sonoros dos vocábulos. Ela grafemas leva a criança a buscar uma análise diferenciada
já consegue manipular seus componentes silábicos, mas da que tem realizado até então. Agora a criança já sabe
não o faz na escrita. Mesmo distinguindo a escrita do que as letras correspondem a valores sonoros menores
desenho, estes últimos são eventualmente usados para do que as sílabas, de acordo com Ferreiro e Teberosky
assegurar o significado. (1999). Aqui, a atenção está voltada para os aspectos
No nível dois, as crianças acreditam que palavras intrassilábicos (ZORZI, 2009).
diferentes não podem ter a mesma grafia. A partir desse O nível alfabético indica que a criança já se
momento, passa a haver um registro de um número alfabetizou, conforme Ferreiro e Teberosky. Nesse período,
mínimo de grafismos, diferentes de uma palavra para o infante consegue segmentar os vocábulos em seus
outra. Ferreiro e Teberosky sugerem a possibilidade da constituintes fonêmicos. Todavia, Zorzi (2009) alerta que
aquisição de certas formas fixas (ex: seu nome) e a recusa tal capacidade não representa garantia de compreensão
em escrever palavras que desconhecem a grafia. A criança das regras que estabelecem as convenções da escrita.
pode também usar modelos que já conhece para escrever Assim, já pode analisar as palavras fonemicamente, porém
outras palavras (ex: mudando as letras do nome de lugar). passa a lidar com as dificuldades que a ortografia impõe.
No nível silábico, a criança já tenta atribuir um Uma proposta alternativa de apresentação das fases
valor sonoro a cada um dos grafemas de uma escrita. de aquisição de leitura é trazida por Dehaene (2009a). O
Dessa forma, cada sílaba é representada por uma letra, autor realiza uma divisão em três etapas. A primeira delas é
cuja grafia pode ser diferente ou não do grafema. A sílaba a fase pictórica, um período relativamente curto no qual os
também pode apresentar um valor sonoro estável. Outra pequenos «fotografam» apenas alguns vocábulos. A segunda
possibilidade apontada por Ferreiro e Teberosky é a criança fase é denominada estágio fonológico, período em que
inserir letras a mais quando houver conflito da hipótese de aprendem a decodificar grafemas em fonemas. A última etapa
escrita silábica com a de quantidade mínima de grafemas. é chamada de fase ortográfica, momento no qual observa-se
O aluno pode manter a hipótese silábica ao passar da um reconhecimento de palavras mais rápido e automático.
187 Fernanda Dias

O processo de aprendizagem da leitura também é que é possível “reciclar” uma área do encéfalo, de modo a
discutido por Scliar-Cabral (2008). A autora refere que, num atribuir-lhe uma nova função. A leitura pode ser um destes
primeiro momento, a criança percebe sua fala como um exemplos de “reciclagem neuronal”. A aprendizagem da
contínuo, escrevendo símbolos gráficos não separados por leitura ocorre a partir de sutis alterações nos circuitos
espaços. Apenas no período seguinte ela consegue relacionar do cérebro, partindo de uma estrutura que já existia
um símbolo para cada sílaba, etapa que pode ser considerada anteriormente. Dehaene defende que o cérebro não utiliza
equivalente à hipótese silábica de Ferreiro e Teberosky os contornos gerais do vocábulo e sim realiza rapidamente
(1999). Nessa etapa, a criança é capaz de segmentar a cadeia uma segmentação deste em letras. Dessa forma, a pessoa
da fala em sílabas em um nível consciente. Contudo, não acredita que a palavra foi lida de forma global.
entende como uma ou mais letras não são correspondentes
a uma sílaba, mas sim a um fonema. Percebe-se, portanto, 2. A metalinguagem e a consciência fonológica
que ela não consegue conscientemente decompor uma
sílaba em uma unidade menor. Para dar conta dessa Consciência e linguagem são assuntos intimamente
demanda, Scliar-Cabral entende que os neurônios precisam relacionados. De acordo com Flôres (2009), muitos estudos
aprender determinadas regras para a atribuição dos valores têm buscado diálogo entre os temas. O ingresso na escola
fonológicos aos grafemas. Entre elas, são citadas as regras e o processo de alfabetização demandam a tomada de
de correspondência fonema-grafema, as que dependem consciência de aspectos como a relação entre fonemas e
da metalinguagem e as que dependem do léxico mental letras, por exemplo. Talvez seja esse o motivo que levou
ortográfico. O aprendizado da leitura ocorre, para a autora, Flôres a destacar a grande quantidade de pesquisas na área
por meio de processos bottom-up, pelo qual as letras são de consciência fonológica.
relacionadas aos seus valores fonológicos. Ela entende, A capacidade de manipular a linguagem, tanto
portanto, a aquisição leitora como um processo analítico. em sua produção quanto em sua compreensão, ocorre
Algumas considerações reiteram esse processo de precocemente. Gradativamente, essa habilidade vai se
aprendizagem da leitura, que se dá de forma ascendente tornando consciente. As atividades de metalinguagem
(das partes ao todo). Dehaene (2009b) sugere que a correspondem justamente a essas tarefas conscientes
cultura evoluiu para que o cérebro pudesse apreendê- e reflexivas dos aspectos linguísticos. Elas implicam,
la. Essa ideia justifica o fato de as formas das línguas portanto, uma habilidade de reflexão e autocontrole em
escritas evoluírem para uma gradual simplificação. Assim, relação à linguagem. No entanto, Gombert (1999) lembra
é provável que os grafemas tenham se originado dos que o surgimento da habilidade metalinguística não deve ser
contornos de formas visuais naturais. O autor entende confundido com o surgimento da faculdade da linguagem.
188 A interferência das otites médias no processo de alfabetização

O conceito de consciência metalinguística é definido Sendo a consciência fonológica um dos objetos da


por Yavas (1998) como a habilidade do ser humano de presente discussão, é necessário conceituá-la. Freitas (2003)
tratar a linguagem como objeto de análise e reflexão, além discute o assunto, referindo que a consciência fonológica
da possibilidade de planejar e controlar seus processos requer uma habilidade em reconhecer que os vocábulos
linguísticos. Dessa forma, o indivíduo consegue refletir são constituídos por sons, os quais podem ser manipulados
sobre a sua linguagem. Tunmer e Bowey (apud FLÔRES, de modo consciente. Tal capacidade, segundo a autora,
2009) complementam a definição de consciência linguística possibilita o reconhecimento de que as palavras rimam,
afirmando que esta trata da utilização do sistema linguístico terminam ou começam com o mesmo som. Além disso, a
para que o indivíduo possa compreender e produzir criança consegue perceber que os vocábulos são formados
sentenças. Segundo os autores, elas se manifestam tanto por sons individuais e que estes, por sua vez, podem ser
por meio de atividades linguísticas espontâneas quanto manipulados para a construção de palavras novas.
pelas baseadas em conhecimentos que foram internalizados As habilidades conceituadas no parágrafo anterior
e aplicados de maneira intencional. abrangem diferentes capacidades, as quais se desenvolvem
A expressão da habilidade metalinguística demanda, em momentos distintos. Dessa maneira, podemos concluir
de acordo com Flôres (2009), o domínio de diversas que a consciência fonológica se manifesta em diferentes
capacidades. As habilidades citadas contemplam segmentar níveis. Os principais são o das sílabas, o das unidades
a fala em suas unidades constitutivas, ressaltar os vocábulos intrassilábicas e o dos fonemas. Moojen & Santos (2001)
de seus referentes, perceber semelhanças sonoras entre as referem que tais níveis exigem aumento gradual de
palavras, analisar a adequação dos aspectos semânticos e complexidade linguística. Dessa forma, os processos
sintáticos da frase ou texto, examinar a forma de distribuição iniciais encontram-se primeiro no nível das sílabas,
das informações no texto. Tais habilidades são consideradas passando pelas unidades intrassilábicas e, finalmente,
fundamentais para o processo de alfabetização. os fonemas. Esses níveis são constituídos por tarefas, as
Dentro das muitas dimensões que a consciência quais demandam graus de complexidade distintos. Nesse
linguística apresenta, optou-se por destacar a consciência contexto, é possível citar tarefas referentes a contagem,
fonológica, uma vez que o principal prejuízo gerado pelo segmentação, união, adição, supressão, substituição e
quadro de otites frequentes seria possivelmente nesse transposição de sílabas e fonemas.
nível. As perdas auditivas de condução, muitas vezes Os diferentes níveis de consciência fonológica podem
causadas pelas otites médias, não seriam suficientes para ser observados durante todo o processo de alfabetização.
afetar a compreensão do sentido global dos enunciados A fim de posteriormente relacioná-los com aquisição da
nem mesmo da maneira como as frases se estruturam. linguagem escrita, os mesmos serão elucidados a seguir.
189 Fernanda Dias

O nível silábico da consciência fonológica contempla a língua. A tarefa pode tornar-se difícil, visto que muitas vezes
capacidade que a criança adquire para segmentar palavras o falante ainda nem percebe esses sons dentro da palavra.
em sílabas, aglutinar sílabas para formar vocábulos e O fato de a consciência fonêmica ser a mais
reconhecer que certas sílabas compõem palavras. Zorzi complexa leva ao questionamento de sua possível relação
(2009) conclui que nessa fase já se pode observar que com as hipóteses que a criança realiza ao ler. A literatura
as palavras são decompostas em subunidades. Em geral, ainda diverge sobre qual dos dois aspectos seria mais
esse é o nível mais simples (exceto pela sensibilidade à influente ao outro, discussão a ser trazida no seguimento
rima) e, portanto, o primeiro que a criança acessa. A sílaba do trabalho. Scherer (2008) ainda cita Goswami & Bryant
é entendida por Gombert (1992) como a unidade natural de (1990) em defesa da importância da consciência fonêmica
segmentação da fala, por isso seria mais fácil para a criança, para a alfabetização. Os autores argumentam que o conjunto
se comparado aos demais. Tal habilidade manifesta-se de grafemas em uma palavra corresponde a um grupo de
precocemente e de forma espontânea nas brincadeiras. fonemas que o pequeno falante deve perceber para o ato de
As habilidades de nível intrassilábico referem-se à ler, uma vez que as letras do alfabeto representam os sons
percepção de que os vocábulos podem ser divididos em da língua. A afirmação aponta para a relevância da relação
unidades maiores que o fonema, contudo, menores que a entre consciência fonêmica e o processo de aprender a ler.
sílaba. Zorzi (2009) refere que as sílabas são compostas Capacidades como consciência fonológica,
por “onset” (também chamado de ataque, que se refere à(s) atenção, memória, síntese, compreensão, interpretação de
consoante(s) inicial(ais)) e “rima” (alude os elementos que informações auditivas, entre outras não são consideradas
surgirem a partir da primeira vogal). pela ASHA (2005) competências do processamento
A consciência de nível fonêmico está relacionada auditivo, ainda que estejam relacionadas à integridade
com a habilidade de segmentar palavras e sílabas em das funções auditivas centrais. Essas últimas são
unidades sonoras menores que as anteriores. Essas consideradas funções superiores cognitivo-comunicativas
unidades são os fonemas. Scherer (2008) lembra que ou ainda, funções relacionadas aos aspectos linguísticos.
tal nível também é comumente chamado de consciência Rueda (1995) relaciona os processos cognitivos que
fonêmica. Ao citar Goswami & Bryant (1990), destaca que desempenham alguma influência nas atividades que
o fonema é considerado a menor unidade sonora que pode mensuram o conhecimento fonológico em diferentes graus
transformar o sentido da palavra. A autora ressalta que o de complexidade. Os processos cognitivos de ouvir o estímulo
nível fonêmico, comparado aos demais, é o que demanda e o de perceber os sons separadamente, por exemplo,
maior maturidade linguística da criança, devido ao fato de estão relacionados com quase todas as tarefas. O processo
solicitar que ela manipule com as menores unidades da de discriminação relaciona-se à tarefa de comparação de
190 A interferência das otites médias no processo de alfabetização

palavras, o que se mostra claro no exemplo do parágrafo alguns aspectos. A exposição visa elucidar se um possível
anterior. Esta última tarefa, somada à capacidade de isolar prejuízo na percepção dos fonemas (decorrente de otites
e omitir fonemas, requerem os processos cognitivos de médias crônicas) poderia interferir na manipulação dos
segmentar, identificar e isolar o som. sons e, consequentemente, na alfabetização.
Alterações nessas habilidades, ocasionadas por otite Uma das possibilidades sugeridas no livro de Freitas
média crônica, podem prejudicar a alfabetização. Costa- (2004) traz a necessidade de a criança já estar alfabetizada
Ferreira e Sávio (2009) mencionam diversos trabalhos que para poder refletir sobre os sons da língua. Essa concepção,
relacionam processamento auditivo e aquisição de leitura, como comentado anteriormente, parece desconsiderar que
citando inclusive o trabalho de Costa (2003) que aponta a consciência fonêmica não é o único nível de consciência
para tal relação. Outro trabalho destacado pelas autoras é fonológica adquirido pelo ser humano. Os níveis das sílabas
o de Margall (2002), o qual salienta o importante papel da e das unidades intrassilábicas já estão presentes antes
função auditiva entre as habilidades indispensáveis para mesmo que o aluno conheça a escrita. Além disso, a própria
um satisfatório aprendizado da leitura e da escrita. consciência fonêmica pode ser treinada em crianças que
ainda não aprenderam a ler.
3. Consciência fonológica e alfabetização: relações Alguns autores apontam para a necessidade da
possíveis alfabetização como favorecedora da consciência fonológica.
Scherer (2008) cita Baddeley e Gathercole (1993) ao trazer
Uma questão discutida ao longo do texto remete às dois motivos para a consciência fonêmica não ocorrer
interlocuções que as habilidades de consciência fonológica tão precocemente. O primeiro argumenta que o sistema
e a aprendizagem de leitura e escrita podem fazer. Esta fonológico da criança ainda está em desenvolvimento,
discussão abre espaço para divergências, pois alguns num período pré-escolar. Coloca ainda que o pequeno não
autores, como Dehaene (2009a) e Scliar-Cabral (2008), consegue perceber as particularidades das configurações
consideram que há influência do nível fonológico da dos gestos articulatórios. Os autores atribuem, dessa forma,
metalinguagem na alfabetização e outros, como Freitas à necessidade da alfabetização para que a consciência
(2004), a posição oposta. Este último insiste que apenas com fonêmica desenvolva-se. Eles consideram que o aprendizado
o aprendizado da leitura e escrita a criança desenvolverá a da leitura requer a compreensão de que a fala, a qual é
consciência fonológica. Contudo, tais autores parecem fazer um sistema contínuo e é constituída por fonemas, cuja
referência apenas ao nível fonêmico, desconsiderando os representação se dá por símbolos gráficos na escrita.
dois anteriores (silábico e intrassilábico). Devido à polêmica A proposta anterior sugere que as crianças em
estabelecida nesse assunto, faz-se necessário esclarecer processo de aprendizagem de um sistema alfabético,
191 Fernanda Dias

ao formularem hipóteses, percebem que a escrita não Assim, a pessoa dispõe de certas capacidades em
representa o objeto ao qual se refere, mas sim a fala. O consciência fonológica que lhe permitem iniciar a
domínio desse sistema requer o conhecimento necessário alfabetização. Entretanto, a escrita alfabética lhe possibilita
para analisar e manipular os sons que compõem as palavras, o aprimoramento das habilidades de consciência fonológica
o que aconteceria pela alfabetização. Contudo, Zorzi (2009) que já possui, desenvolvendo novas capacidades. Zorzi
argumenta que o conhecimento silábico pode ser adquirido (2003) concorda que existe uma relação de dependência
antes mesmo da alfabetização. recíproca. Desse modo, quanto maior o aprendizado
Outro ponto de vista destaca a necessidade da criança sobre a escrita, maior o seu conhecimento
do desenvolvimento da consciência fonológica para a fonêmico, porém o aprendizado sobre os fonemas também
alfabetização. Entretanto, tal perspectiva não considera proporciona ampliação do saber sobre a escrita e a leitura.
que a criança possa vir a aperfeiçoar suas habilidades A consciência fonológica é considerada por Viana
metafonológicas após alfabetizar-se. A principal relação (2000) uma das capacidades linguísticas relacionadas ao
estabelecida é a de quão mais bem desenvolvida for a ato de ler, no que se refere ao processo de decodificação
consciência fonológica, melhor será a correspondência fonema/ grafema. Nesta associação, ela destaca a habilidade
entre fonema e grafema ao escrever. Desse modo, a de segmentação fonêmica. A autora afirma ainda que a
criança precisa dominar a relação fonema-grafema para compreensão de leitura contempla o desenvolvimento de
compreender a escrita, recorrendo de seu saber oral. habilidades cognitivas e a consciência da criança quanto às
A terceira abordagem sobre o assunto referida mesmas. Viana considera a mesma relação de reciprocidade
por Scherer (2008) considera que existe uma relação de discutida anteriormente. Gombert (1999) concorda com
reciprocidade entre a consciência fonológica e o processo a colocação, argumentando que apenas o contato com a
de alfabetização. Isso significa que certas habilidades de escrita não garante o desenvolvimento de habilidades de
consciência fonológica favorecem o aprendizado da leitura processamento. A criança precisa de alguma dedicação
e da escrita e outras podem ser promovidas por ela. Existem paraUn effort de l’apprenti lecteur est nécessaire pour mettre
alguns aspectos da consciência fonológica que podem ser adquirir o controle intencional do processamento linguístico,
alcançados num período anterior à alfabetização e beneficiam que a aquisição leitora exige. O autor também compartilha
esse processo, bem como há certos níveis de conhecimento com a hipótese de reciprocidade já apresentada. Assim, pode-
fonológico que apenas são adquiridos no momento em que a se inferir que a capacidade metalinguística e a aquisição de
criança apropria-se da linguagem escrita. leitura beneficiam-se mutuamente.
A autora entende que tal relação de reciprocidade É importante relembrar que, inicialmente, o
parece acontecer como um mecanismo de retroalimentação. processamento de leitura é do tipo ascendente. Também
192 A interferência das otites médias no processo de alfabetização

chamado de bottom-up por Kato (2007), pode-se Segundo Fialho (1999), a otite média crônica consiste em
considerá-lo linear e indutivo, uma vez que realiza análise- alterações irreversíveis da orelha média, muitas vezes com
síntese durante o ato de leitura. Tal estratégica exige uma perfuração da membrana timpânica e pela presença de
capacidade de perceber os sons da palavra, ao passo muco catarral vindo da orelha média. A otite média crônica
que favorece uma maior consciência dos mesmos. A pode ser decorrente de otite média aguda de repetição,
decodificação das palavras somente é possível, segundo sem tratamento clínico adequado ou ser consequência de
Scliar-Cabral (2008), se houver acesso à via fonológica um único episódio com má evolução.
de leitura. Ela é utilizada inclusive em leitores mais Os episódios de otite na infância têm aumentado
experientes, ainda de forma automatizada. Essa via é a gradativamente nos últimos anos. Klausen, Møller,
responsável pela conversão de grafemas em fonemas, Holmefjord, Reisærter e Asbjørnsen (2000, apud BALBANI
sendo essencial que tal correspondência seja inequívoca. e MONTOVANI, 2003) alertaram que em torno de 80% das
Dessa forma, deve-se investigar se uma privação sensorial crianças em seu estudo apresentaram ao menos um episódio
auditiva, mesmo que leve e/ou temporária, poderia interferir de otite média secretora até completarem oito anos. Desse
nessa relação. grupo, cerca de 55% teve perda auditiva leve nas frequências
da fala. Essa alteração pode prejudicar a discriminação dos
4. As otites médias de repetição e sua interferência na fonemas tanto na fala quanto na alfabetização.
alfabetização É importante ressaltar que não há necessidade
da existência de um grau profundo nem um caráter
Uma vez estabelecida a relação inegável entre irreversível de perda auditiva para prejudicar a aquisição
consciência fonológica na aprendizagem de leitura e da linguagem. Balbani e Montovani (2003) citam Santos
escrita, é preciso determinar a importância da acuidade et al. (2001) para destacar que inclusive os quadros de
auditiva nesse processo. A aquisição de símbolos hipoacusia (perda auditiva) leve é o bastante para interferir
gráficos exige uma adequada integridade sensorial. Além em algumas funções auditivas. A característica flutuante
disso, é necessário que a criança seja capaz de integrar (alterando com fases de audição normal) dos déficits
experiências não verbais, conseguindo diferenciar um auditivos nas otites médias conduz a uma estimulação
símbolo do outro, atribuindo sentido a ele para, por fim, sonora inconsistente do sistema nervoso auditivo central.
retê-lo. A integridade auditiva é, dessa forma, fundamental Tal alteração prejudica a percepção dos sons da língua.
para a alfabetização. Outra possível intercorrência é a de o fluido na orelha
Uma das intercorrências mais comuns na infância, média causar ruído junto à cóclea (na orelha interna),
devido à diferença anatômica na tuba auditiva é a otite média. distorcendo a percepção dos sons.
193 Fernanda Dias

Muitas pesquisas têm apontado os prejuízos deste três primeiros anos de vida. Assim, autores como Ruben
tipo de alteração no processo de aquisição linguística. Um (1999) e Zielhuis, Gerritsen, Gorissen, Dekker, Rovers,
dos estudos sugere que as perdas auditivas que ocorrem Van der Wilt, et al. (1998) são citados para a conclusão
entre um e três anos de idade geram maior dificuldade de que as dificuldades causadas por otites médias e a
para adquirir linguagem, percepção reduzida dos sons provável perda auditiva nos três primeiros anos de vida
da fala os quais incluam consoantes surdas ou fricativas podem prejudicar o desenvolvimento linguístico e, até
como /s/ e /z/ (PETINOU, SCHWARTZ, GRAVEL e mesmo, a aprendizagem do infante.
RAPHAEL, 2001 apud BALBANI e MONTOVANI, 2003).
Os autores também citam o trabalho de Paradise (1998) Considerações finais
lembrando que a etiologia mais frequente nesse tipo de
dificuldade é a hipoacusia condutiva leve ocasionada por Ao final desta discussão, evidencia-se uma
otite média, mesmo que seja em apenas uma das orelhas. notável interferência das otites médias de repetição na
Nos períodos de infecções, os estímulos sonoros são aquisição da língua escrita. A alfabetização, como antes
percebidos de maneira distorcida. Considerando que o mencionado, demanda integridade das vias auditivas.
leitor iniciante utiliza um processamento ascendente de Mesmo uma alteração sutil, como uma otite, pode gerar
leitura (KATO, 2007), é necessário que ele tenha acesso a comprometimentos importantes na manipulação dos sons
uma percepção clara dos fonemas para compor o todo da da língua e, consequentemente, na relação destes fonemas
palavra ao decodificá-la. com sua representação escrita.
Algumas investigações encontraram danos a longo Embora existam perspectivas distintas sobre a
prazo relacionados à doença em questão. Balbani e relação entre consciência fonológica e aquisição da
Montovani (2003) discutem o estudo de Van Cauwenberge, língua escrita, todas apontam uma relação muito próxima
Watelet, Dhooge (1999), o qual observou a persistência entre ambas. A capacidade de manipular os sons requer
até os onze anos de defasagens para o entendimento que estes sejam percebidos de maneira adequada para
de linguagem visual, articulação de palavras, atenção o sucesso na alfabetização. Scherer (2008) entende que
e capacidade de leitura nas crianças que apresentaram atualmente exista um consenso entre os pesquisadores de
otites médias nos primeiros três anos de vida. Outra que a consciência fonológica e o aprendizado da leitura e
pesquisa trazida pelos autores é a de Luotonen et al. escrita influenciam-se mutuamente. Assim, é necessário
(1998), a qual identificou prejuízos escolares na leitura, atenção a todos os fatores que possam interferir nessa
compreensão de textos, expressão verbal e escrita nas relação. Scherer define a noção de reciprocidade como o
crianças com histórico de otite média aguda recorrente nos fato de a consciência fonológica favorecer a alfabetização,
194 A interferência das otites médias no processo de alfabetização

ao mesmo tempo que a aquisição de um sistema alfabético Uma vez apontada a necessidade de observar e
auxilia no desenvolvimento da consciência fonológica. acompanhar possíveis quadros de otites antes e ao longo
A concepção de reciprocidade apontada no texto do aprendizado da leitura e escrita, deve-se salientar a
sugere coerência, pois a aquisição da língua escrita importância da estimulação de todos os aspectos que a
requer algumas aprendizagens específicas de consciência favoreçam. Cielo (1996) considera que a sensibilização
fonológica, ao passo que outras habilidades sejam resultado fonológica leva ao aumento da sensibilidade fonológica
da alfabetização. Então, a criança que aprende a ler e de decodificação das crianças em processo de
começa a desenvolver habilidades metalinguísticas, mas aprendizado lectoescrito. As tarefas que a pesquisadora
são justamente estas que irão facilitar a aprendizagem da utilizou abordaram a capacidade de reconhecer e produzir
língua escrita. Contudo, para analisar e conhecer os sons rimas; excluir, analisar, sintetizar, contar e substituir
que formam a fala, bem como para aprender a decodificar fonemas; identificar palavras com o mesmo fonema inicial;
os sons dos grafemas na leitura, a criança não pode ter sintetizar, analisar e contar sílabas. Também trabalhou
qualquer privação para percebê-los. com a conceituação e a discriminação de sons verbais e
Ao longo desta discussão, foram apresentadas não verbais. A relação de reciprocidade entre a consciência
diferentes pesquisas que apontam para possíveis fonológica e a aquisição da leitura e escrita evidencia
interferências da otite média no processo de alfabetização. que a estimulação de tais habilidades associadas à
A percepção dos traços que diferenciam os fonemas é correspondência fonema-grafema seja favorecedora das
imprescindível para manipulá-los sem alterar-lhes o habilidades de alfabetização, confirmando a discussão
sentido. A não discriminação do traço de sonoridade, trazida anteriormente.
por exemplo, pode levar a criança a confundir a palavra Portanto, é fundamental que se estimulem, antes
“vaca” com a palavra “faca”. mesmo da primeira série, a manipulação e a reflexão
O trabalho de Rueda (1995) realiza uma relação dos sons da fala, de modo a promover a facilitação da
com os processos cognitivos que exercem algum tipo de aquisição da língua escrita. Esta, por sua vez, também irá
influência nas atividades que medem o conhecimento auxiliar no desenvolvimento das habilidades fonológicas.
fonológico, como discutido anteriormente. Eles referem-se O processamento ascendente da leitura iniciante requer
à função chamada de processamento auditivo, a qual se integridade do sistema auditivo para realizar os processos
julgou relevante considerar ao fim desta discussão, uma de análise-síntese sem alterar o significado da palavra.
vez que se encontram em relação muito próxima às tarefas O acompanhamento e a observação das crianças com
de consciência fonológica. histórico de otite média crônica, associada à estimulação
das habilidades de consciência fonológica, certamente
195 Fernanda Dias

favorecerão a apropriação da língua escrita, minimizando and writing, as it is related to phonological awareness. This
aspectos que poderiam prejudicar tal processo. A article aims, therefore, warn about the need to observe these
revisão de literatura apresentada destaca ainda como aspects in children in the course of acquisition of written
tais cuidados também podem ser favorecedores da language, looking for some comments about aspects of the
capacidade de decodificação dos símbolos gráficos e, process of learning to read.
portanto, da leitura.
Keywords: Literacy. Phonological Awareness.
RESUMO – O objetivo deste trabalho é apresentar Recurrent Otitis.
algumas reflexões quanto às possíveis interferências dos
quadros de otite crônica no percurso da alfabetização. Os Referências
processos inflamatórios na orelha podem causar perdas
de audição transitórias do tipo condutivas, prejudicando a AMERICAN SPEECH-LANGUAGE- HEARING
percepção adequada dos sons da língua. Tal capacidade ASSOCIATION - ASHA. (Central) Auditory processing
pode ser considerada fundamental na aprendizagem de disorders: the role of the audiologist [Position statement].
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alertar sobre a necessidade de observar tais aspectos nas
BALBANI, A.P.S.; MONTOVANI, J.C. Impacto das otites
crianças em fase de aquisição da língua escrita, buscando
médias na aquisição da linguagem em crianças. Rio de
algumas considerações acerca dos aspectos envolvidos
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no processo de aprendizado da leitura.
em: <http://www.scielo.br/pdf/jped/v79n5/v79n5a05.pdf >
Acesso em: 03 nov. 2010.
Palavras-chave: Alfabetização. Consciência Fonológica.
Otites de Repetição. CIELO, C. A. Relação entre a sensibilidade fonológica
e a fase inicial da aprendizagem da leitura. 1996. 148f.
ABSTRACT – This paper presents some reflections about Dissertação (Mestrado em Linguística Aplicada) –Faculdade
the possible interferences of the management of chronic de Letras, PUCRS, Porto Alegre: 1996.
otitis in the path of literacy. The inflammatory processes in
the ear can cause temporary hearing loss of conductive type,
impairing the adequate perception of speech sounds. Such
capacity can be considered fundamental in learning reading
196 A interferência das otites médias no processo de alfabetização

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Neurofisiologia do uso da segunda língua 2). O primeiro método possui a habilidade de demonstrar
a atividade metabólica cerebral através do consumo de
através de estudos por imagem
radionuclídeos; já o segundo nos permite avaliar e quantificar
o fluxo sanguíneo cerebral, e inferir que áreas do parênquima
Ramon Gheno1 encefálico podem estar mais ativadas.5
Fale com o autor

A linguagem possui um papel fundamental na


organização social de comunidades e estados. Certos
países ou regiões apresentam uma enorme variedade de
línguas oficiais, sendo um dos exemplos mais significativos
a comunidade europeia, onde vinte e três línguas são
reconhecidas oficialmente2. Nessa região, são vários os
indivíduos multilíngues que se adaptam às mais variadas
circunstâncias linguísticas para atingirem uma comunicação
adequada. Tal situação requer a obtenção de várias
habilidades gramaticais (fonológicas, morfológicas, sintáticas,
etc.) e lexicais.3 Entretanto os mecanismos neurofisiológicos
que modulam a linguagem, em especial o aprendizado da
segunda língua (L2), ainda são pouco compreendidos4.
Dentre os métodos de imagem atualmente disponíveis
e comumente utilizados para a avaliação fisiológica do cérebro,
podemos citar a Tomografia por Emissão de Pósitrons (TEP)
(Figura 1) e a Ressonância Magnética Funcional (Rmf) (Figura Figura 1: Tomografia por Emissão de Pósitrons cerebral nos planos sagital e axial.6
1
Email: ramon.gheno@yahoo.com
2
“[[Europa (web portal)|Europa]],” in Consolidated version of Regulation No 1 de- 5
Daniel Branco e Jaderson Costa da Costa, “Ressonância Magnética Funcio-
termining the languages to be used by the European Economic Community ([[Eu- nal de Memória: Onde Estamos e Aonde Podemos Chegar,” J Epilepsy Clin
ropean Union]], [s.d.]), http://eur-lex.europa.eu/LexUriServ/LexUriServ.do?uri=CO Neurophysiol 12, n. 1 (2006): 25-30; Alessandro A Mazzola, “Ressonância
NSLEG:1958R0001:20070101:EN:PDF. magnética: princípios de formação da imagem e aplicações em imagem fun-
3
Frédéric Isel et al., “Neural circuitry of the bilingual mental lexicon: effect of age of cional,” Rev Bras Fís Médica 3, n. 1 (2009): 117-29; Vibhu Kapoor, Barry M
second language acquisition,” Brain and Cognition 72, n. 2 (Março 2010): 169-180. McCook, e Frank S Torok, “An introduction to PET-CT imaging,” Radiographics:
4
Dehaene, “Fitting two languages into one brain”; C J Price, D W Green, e R von A Review Publication of the Radiological Society of North America, Inc 24, n. 2
Studnitz, “A functional imaging study of translation and language switching,” Brain: (Abril 2004): 523-543.
A Journal of Neurology 122 ( Pt 12) (Dezembro 1999): 2221-2235. 6
D Klein et al., “The neural substrates underlying word generation: a bilingual
199 Ramon Gheno

- uma interface audiopremotora, a qual é


concebida como um simulador motor interno que pode
ser muito importante no aprendizado de novas palavras
fonologicamente,
- a interface integradora do significado, a qual
é imaginada como sendo um mecanismo que envolve
significados de inferências usando múltiplas pistas
internas e externas e
- interface lexicoepisódica, a qual é encarregada
do mapeamento rápido de palavras novas em contextos
específicos e na consolidação a longo termo desse novo
trajeto lexical.
A interação entre esses três sistemas é modulada
por um controlador cognitivo comum de funções complexas;
como o córtex pré-frontal médio é envolvido no raciocínio
dedutivo, e os circuitos subcorticais talamoestriados são
envolvidos na coordenação de diferentes caminhos para
a retroalimentação de recompensa.8

Figura 2: Ressonância Magnética Funcional cerebral em diferentes níveis no


plano axial.7

O aprendizado da linguagem pode ser hipotetizado


de numerosas formas, sendo a revisão proposta por
Rodrigues-Fornells uma das mais atualizadas (Figura 3).
Nela, o processo é realizado por diferentes mecanismos:

functional-imaging study,” Proceedings of the National Academy of Sciences of the


United States of America 92, n. 7 (Março 28, 1995): 2899-2903. 8
Antoni Rodríguez-Fornells et al., “Neurophysiological mechanisms involved in lan-
7
Denise Klein et al., “Bilingual brain organization: a functional magnetic resonance guage learning in adults,” Philosophical Transactions of the Royal Society of London.
adaptation study,” NeuroImage 31, n. 1 (Maio 15, 2006): 366-375. Series B, Biological Sciences 364, n. 1536 (Dezembro 27, 2009): 3711-3735.
200 Neurofisiologia do uso da segunda língua através de estudos por imagem

conceituais) via regiões temporais inferior,


medial e anterior fartamente conectadas
pelo fascículo uncinado com o giro frontal
inferior (gFi) ventral. Finalmente, a palavra
nova e o seu contexto correspondente
pode desencadear um processos de
armazenamento dependente no lobo
temporal medial (lTm) (interface episódico-
lexical). Com repetidas exposições a
palavra nova e após a conexão com o
seu significado (via associação direta
ou inferência da rota ventral), essa nova
representação episódica-palavra nova
pode ser armazenada no léxico mental
(nível palavra-forma), independente
do mecanismo de ensaio do lTm.
Muitas regiões envolvidas no controle
cognitivo, raciocínio dedutivo e motivação
(relacionada à retroalimentação) podem
ser seletivamente desencadeadas
dependendo da demanda e da situação
Figura 3: Interconectividade entre os três sistemas do
do aprendizado da língua. PN: palavra nova, L1: traçado
processo de aprendizagem.
léxico, lTm: lobo temporal medial, gTai: giro temporal
ântero-inferior, gTm: giro temporal medial posterior, pTa:
A rota dorsal (verde) começa com a representação
polo temporal anterior, gFiv: giro frontal inferior ventral,
fonológica da palavra nova (PN) processada no giro
gFm: giro frontal médio, cvpm: córtex pré-motor ventral,
temporal superior (gTs) e no giro temporal superior
gFip: giro frontal inferior posterior, gsm: giro supra-marginal,
posterior (gTsp), o qual conecta a alça dorsal e a rota
gTsp: giro temporal súpero-posterior. As linhas espessas
de processamento. A interface da inferência semiótica
representam as principais conexões entre as diferentes
ventral (amarelo) começa com a informação contextual do
correntes dos processos de aprendizagem. Caixa verde:
aprendizado (pontos pretos representam os grupamentos
201 Ramon Gheno

interface audiomotora dorsal, azul: interface episódico- Klein et al. utilizaram a TEP para avaliar sujeitos
lexical, amarelo: interface semiótica ventral, descoloridas: proficientes em francês e inglês a fim de mostrar que um
mecanismos cognitivos compartilhados.9 substrato neuronal comum está envolvido em mecanismos
Várias pesquisas demonstram que a língua de busca da linguagem e que a região frontal inferior esquerda
materna (L1) e a segunda língua (L2) são mediados por é ativada tanto através de pistas fonológicas quanto de
um sistema neuronal unitário, embora recursos adicionais semânticas13. Posteriormente, os mesmos autores, num
possam ser requisitados para tarefas específicas10. Cabe estudo envolvendo RMf, monstrou que num nível lexical,
ressaltar que a aquisição da L2 é mais suscetível ao os substratos neurológicos de L1 e L2 são compartilhados,
ambiente e a fatores idiossincráticos11. mas que provavelmente diferentes populações neuronais
No estudo de Gandour et al. foram avaliados são utilizadas na percepção de palavras em L1 e L214.
indivíduos com conhecimento do mandarim(L1) e do Após a obtenção de dados dispersos com o uso
inglês (L2) em sentenças do tipo focada (sentença da TEP, Dehaene e colaboradores utilizaram, num de
inicial versus final) e outras classificadas como tipada seus estudos, a RMf para avaliar as diferenças entre as
(declarativas e interrogativas). A comparação direta entre regiões corticais em indivíduos proficientes em francês
L1 e L2 não mostrou diferença significativa na sequência (L1) e moderadamente proficientes em inglês (L2). Nesse
tipada, mas na sequência focada uma maior ativação estudo muitos sujeitos apresentaram uma ativação
para L2 ocorreu bilateralmente na ínsula anterior e no significativa no giro frontal inferior esquerdo e no cíngulo
sulco frontal superior. Os diferentes padrões de ativação anterior apenas quando escutavam a L2. O cíngulo
são atribuídos, primariamente, devido a disparidades anterior tem sido relacionado como uma região central
entre L1 e L2 quanto a manifestações fonéticas. Tais executiva no processamento de tarefas, o que sugere
diferenças acarretam uma maior demanda computacional que alguns indivíduos têm maiores recursos da atenção
para o processamento da L212. para a L2 do que os processos automatizados da língua
materna. Também, a ativação frontal inferior pode refletir
9
Ibidem. uma estratégia interna de ensaio em L1 das palavras
10
Isel et al., “Neural circuitry of the bilingual mental lexicon”; Klein et al., “The neural
substrates underlying word generation”; Klein et al., “Bilingual brain organization”; utilizando a alça fonológica enquanto mantém sentenças
Jackson Gandour et al., “Neural basis of first and second language processing of
sentence-level linguistic prosody,” Human Brain Mapping 28, n. 2 (Fevereiro 2007):
L2 na memória de trabalho. Além disso, a variabilidade na
94-108; S Dehaene et al., “Anatomical variability in the cortical representation of first lateralização da linguagem parece estar relacionada com a
and second language,” Neuroreport 8, n. 17 (Dezembro 1, 1997): 3809-3815.
11
Kuniyoshi L Sakai et al., “Distinct roles of left inferior frontal regions that explain diversidade na representação de L2. Esse trabalho suporta
individual differences in second language acquisition,” Human Brain Mapping 30, a hipótese de que a aquisição de L1 baseia-se numa rede
n. 8 (Agosto 2009): 2440-2452.
12
Gandour et al., “Neural basis of first and second language processing of sen- 13
Klein et al., “The neural substrates underlying word generation”.
tence-level linguistic prosody”. 14
Klein et al., “Bilingual brain organization”.
202 Neurofisiologia do uso da segunda língua através de estudos por imagem

dedicada do hemisfério cerebral esquerdo, enquanto que O grupo de Price avaliou se existe uma correlação
a aquisição de L2 não está necessariamente associada entre os achados de imagem e o modelo Inibitório
com alguma área específica15. Controlador. Nesse estudo, foram avaliadas a tradução e
O grupo de trabalho liderado por Isel avaliou adultos a permutação das línguas em indivíduos proficientes em
bilíngues precoces, expostos, com cerca de 3 anos, ao alemão (L1) e inglês (L2). De acordo com o modelo inibitório
alemão e ao francês, e bilíngues tardios, apresentados ao controlador, as tarefas linguísticas são externas ao sistema
francês (L2) com cerca de 11 anos. Além disso, todos os lexicossemântico e competem para o controle da saída. A
participantes tinham o conhecimento do inglês (L3). Foi produção de uma palavra na língua dominante (L1) está em
constatado que a L1 e a L2 compartilham a mesma região competição com a produção da segunda língua (L2). Assim,
espacial para bilíngües, tanto falantes precoces como para falar na linguagem L2, os indivíduos devem inibir a
falantes tardios. Entretanto, a maturação neuronal parece forma de produção de L1. Os dados demonstram que a
afetar a representação conceitual das palavras na L1 e na tradução modula regiões associadas especificamente com
L2, no que se refere ao conhecimento lexical16. a semântica, córtex temporal extrassylviano e ínferofrontal
Numa pesquisa que comparou as diferentes esquerdos, e a articulação18.
formas de aquisição da linguagem, Jeong e colaboradores Além disso, sabe-se que tanto em bilíngues como
estudaram de que forma ocorre a representação cortical em monolíngues, usualmente a percepção e a compreensão
da L2 em japoneses (L1) submetidos ao aprendizado envolvem uma interação dinâmica entre múltiplas regiões,
da língua coreana (L2). O giro supra-marginal direito não apenas de um único hemisfério19.
e o giro médio-frontal esquerdo estiveram envolvidos Quanto ao amadurecimento neuronal, os dados
nas situações do aprendizado baseado em vivência e obtidos por Newman-Norlod et al. demonstraram que,
baseadas em textos, respectivamente, enquanto que além do papel comum da área de Broca para a aquisição
o giro frontal inferior esquerdo foi ativado quando os de línguas, esse processo ocorre de maneira similar, não
aprendizes usavam o conhecimento da L2 em um modo apenas em crianças, mas em adultos, indivíduos esses
diferente. Esses dados sugerem que as regiões cerebrais considerados fora da puberdade, ou “período crítico”20.
que mediam a L2 diferem da maneira como as palavras de
18
Price, Green, e von Studnitz, “A functional imaging study of translation and lan-
L2 são aprendidas e usadas17. guage switching”.
19
Gandour et al., “Neural basis of first and second language processing of sen-
15
Dehaene et al., “Anatomical variability in the cortical representation of first and tence-level linguistic prosody”.
second language”. 20
Aaron J Newman et al., “A critical period for right hemisphere recruitment in
16
Isel et al., “Neural circuitry of the bilingual mental lexicon”. American Sign Language processing,” Nature Neuroscience 5, n. 1 (Janeiro 2002):
17
Hyeonjeong Jeong et al., “Learning second language vocabulary: neural disso- 76-80; Roger D Newman-Norlund et al., “Anatomical substrates of visual and audi-
ciation of situation-based learning and text-based learning,” NeuroImage 50, n. 2 tory miniature second-language learning,” Journal of Cognitive Neuroscience 18,
(Abril 1, 2010): 802-809. n. 12 (Dezembro 2006): 1984-1997.
203 Ramon Gheno

Devemos ressaltar que a discrepância entre os somente uma das formas com a qual podemos abordar
resultados das pesquisas relacionadas ao PET e à Rmf, o funcionamento do cérebro. Assim, para uma correta
provêm, muitas vezes, da metodologia empregada em compreensão é necessária a correlação entre as diversas
que fatores como os parâmetros de obtenção de imagem, áreas que estudam a sua neurofisiologia.
a língua materna, a idade de aquisição da linguagem e
o grau de proficiência na mesma influenciam de maneira Palavras-chaves: Fisiologia. Segunda Língua. Radiologia.
significativa os resultados.
Além do grande avanço nas técnicas de imagem tanto ABSTRACT - The theories regarding the physiological
para estudos anatômicos quanto funcionais do cérebro, o mechanisms responsible for learning a second language
que resultou numa ampla gama de teorias neurofuncionais, had a major breakthrough in the last two decades due to
é imperativo que tais achados sejam correlacionados com the development of radiological techniques, notably positron
diferentes áreas neurológicas, como a eletroneurofisiologia, emission tomography and functional magnetic resonance
neuroendocrinologia e neuroimunologia. Dessa forma, a imaging.Through them, numerous research centers, have
obtenção de teorias sobre o funcionamento da segunda developed several hypotheses regarding the brain metabolism.
língua encontrar-se-ão mais próximas da realidade. Despite the great diversity of methodologies employed, the
results indicate that some regions in the temporal lobe (inferior,
RESUMO – As teorias referentes aos mecanismos medial and anterior regions) are responsible for a considerable
fisiológicos responsáveis pelo aprendizado da segunda part of this learning process. However, despite the development
língua apresentam um grande avanço nas duas últimas of imaging technology, it is noteworthy that these results reflect
décadas em virtude do desenvolvimento de técnicas only one of the ways in which we can study the brain. Thus, for
radiológicas, notadamente a tomografia por emissão de a correct understanding is necessary the correlation between
pósitrons e a ressonância magnética funcional. Através different neurophysiological areas.
delas, numerosos centros de pesquisa vêm desenvolvendo
diversas hipóteses referentes ao metabolismo do encéfalo. Keywords: Physiology. Second Language. Radiology.
Apesar da grande diversidade metodológica empregada,
Referências
os resultados sugerem que centros específicos do
lobo temporal (regiões inferior, medial e anterior) são
BRANCO, D. e COSTA da COSTA, J. “Ressonância
responsáveis por boa parte do processamento da segunda
Magnética Funcional de Memória: Onde Estamos e Aonde
língua.Entretanto, apesar do desenvolvimento tecnológico
Podemos Chegar”. J Epilepsy Clin Neurophysiol 12, n. 1.
por imagem, cabe ressaltar que esses resultados refletem
25-30, 2006.
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