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A EVOLUÇÃO DA DEFINIÇÃO DOS CRIMES

INTERNACIONAIS: UMA COMPARAÇÃO ENTRE


O ESTATUTO DE ROMA, O DIREITO FRANCÊS
E O DIREITO BRASILEIRO

Fernanda Figueira Tonetto


Procuradora do Estado do Rio Grande do Sul; Doutoranda em Direito pela Université Paris II Panthéon-Assas.

RESUMO 1. INTRODUÇÃO
Este artigo analisa a construção dos O presente artigo porta um estudo sobre
contornos dos crimes internacionais nos seus os crimes internacionais, partindo de sua
aspectos formal e material, sendo eles atualmente definição formal e material, assim como de sua
definidos pelo Estatuto de Roma como crimes de construção histórica até a chegada à sua fórmula
genocídio, crimes contra a humanidade, crimes atual, passando por uma lenta e assimétrica
de guerra e crimes de agressão. Inicialmente, elaboração no que toca aos conceitos de crime de
esses crimes são analisados do ponto de genocídio, crime contra a humanidade, crime de
vista do desenvolvimento histórico do direito guerra e crime de agressão, os quais atualmente
internacional e posteriormente são analisados são previstos pelo Estatuto de Roma.
sob o ponto de vista do direito comparado A definição de crime internacional se torna
francês e brasileiro. mais precisa após um processo que tem lugar ao
longo do século XX, de um lado sob a impulsão
Palavras chave da prática de violações cada vez mais atrozes
Crimes internacionais; direito que se tornam conhecidas de todos graças às
internacional; Estatuto de Roma; direito francês; novas tecnologias e, de outro lado em razão do
direito brasileiro. desenvolvimento do direito internacional.
Nesse novo quadro, o direito penal conhece
ABSTRACT um movimento de internacionalização1,
inicialmente pelo pilar do direito internacional
This article analyzes the construction of
costumeiro e a seguir por meio do direito
the contours of international crimes in their
internacional convencional, na medida em
formal and material aspects, which are currently
que o direito internacional chama para si a
defined by the Rome Statute as crimes of
competência da responsabilização penal, graças à
genocide, crimes against humanity, war crimes
identificação de ofensas graves que ultrapassam
and crimes of aggression. Initially, these crimes
os limites da criminalidade tradicional.
are analyzed from the point of view of the
historical development of international law and Essa identificação é decisiva para
later they are analyzed from the point of view of desencadear o processo que irá definir a
French and Brazilian comparative law. noção de crimes internacionais pelo direito
internacional (I), dando início, em seguida, a
Keywords um novo processo, desta vez partindo do direito
International crimes; international law; internacional em direção aos Estados, no sentido
Rome Statute; French law; Brazilian law. de que certas convenções internacionais lhes
impõem obrigações positivas, dentre as quais
se encontra a obrigação de harmonizar o direito

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nacional em relação ao direito internacional, Por essa razão, faz-se necessário inicialmente
sabendo-se que em matéria de violação ao direito analisar o processo que levou à identificação dos
das gentes, como é o caso dos crimes de massa, o crimes internacionais (A), para, em seguida,
princípio da subsidiariedade do direito penal não verificar como o direito internacional se ocupa
é aplicável em decorrência do desaparecimento desses conceitos atualmente (B).
da margem de apreciação nacional.
Para se desincumbir das obrigações positivas A. A construção histórica dos crimes
impostas pelo direito internacional, os Estados internacionais
colocam em prática novas disposições a fim de A primeira definição de crime internacional
harmonizar o direito e permitir a investigação concerne à edificação do conceito de crime
e o processamento no quadro das jurisdições de guerra, devido em grande parte ao
nacionais, o que inaugura a existência de um desenvolvimento do direito internacional
sistema jurisdicional dualista em matéria de humanitário, cujo nascimento remonta à
crimes internacionais. preocupação da comunidade internacional em
Deste fato, os crimes internacionais reduzir os danos causados pelas guerras.
ganham uma abordagem de direito comparado Seu principal instrumento jurídico é a
(II), o que permite avaliar os diferentes estágios constituição da Liga das Nações consagrada
de evolução de cada direito nacional no que pelo Tratado de Versalhes de 1919, redigido no
concerne ao cumprimento de suas respectivas prolongamento das conclusões da Commission
obrigações positivas. A título ilustrativo, a sur la responsabilité des auteurs de la guerre et
análise repousará aqui sobre o direito brasileiro sur l’application des peines4, bem como pelas
e o direito francês. Convenções de Haia de 1899 e de 1907 e,
sobretudo, pelas quatro Convenções de Genebra.
2. A DEFINIÇÃO DOS CRIMES
As Convenções de Haia são as fundadoras
INTERNACIONAIS PELO DIREITO do denominado “direito de Haia”, encarregado
INTERNACIONAL notadamente de estabelecer as regras
concernentes aos conflitos armados, tais como
Os crimes internacionais podem ser
a proibição de utilização de certas armas ou
analisados a partir de duas concepções. A primeira
métodos de combate, enquanto as Convenções
concepção é de natureza formal, segundo a qual
de Genebra, portando criação ao “direito de
os crimes internacionais são violações previstas
Genebra”, fundam um regime jurídico de proteção
e descritas por uma convenção internacional.
de pessoas concernidas pelas hostilidades5.
A segunda concepção, de natureza material,
considera uma perspectiva diferente, segundo Tanto o direito de Haia quanto o direito de
a qual os crimes internacionais são infrações Genebra serão as principais fontes de inspiração
que portam uma lesão aos valores de toda a da definição dos crimes de guerra.
humanidade, valores, portanto, comuns a todas A aparição do crime contra a humanidade
as sociedades2. na cena internacional remonta igualmente
Se atualmente a expressão crimes às convenções de Haia de 1899 e de 1907,
internacionais advém de transgressões penais notadamente por meio da definição da cláusula
que são previstas no Estatuto de Roma3, tais Martens que foi o primeiro texto jurídico a
como o crime de genocídio, o crime contra a evocar a existência de normas uniformes de
humanidade, o crime de guerra e o crime de proteção dos indivíduos “sob a proteção e
agressão, e que são, portanto, definidos por um a regulamentação dos princípios do direito
instrumento único de direito internacional, internacional, uma vez que estes resultam dos
tendo por objetivo, ao menos em teoria, a costumes estabelecidos entre povos civilizados,
proteção de valores do conjunto das comunidades dos princípios da humanidade e dos ditames da
humanas, considerando o fato de que se trata consciência pública”.
de uma jurisdição internacional permanente Em seguida, após o massacre dos armênios
com vocação universal, essas definições foram na Turquia ocorrido em 1915 e por ocasião
construídas de maneira diferente ao longo da da Conferência de Paz de Paris em 1919, uma
história. comissão foi nomeada a fim de examinar

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as responsabilidades decorrentes dos atos para a proteção de todas as pessoas contra os


cometidos durante a Primeira Guerra Mundial, desaparecimentos forçados (2006). Mesmo que
inclusive o genocídio armênio. Esses atos foram essas convenções não tenham precisado os
qualificados como crimes contra a humanidade, contornos do crime contra a humanidade, elas
mas nunca foram incluídos no Tratado de tornaram possível a sua evolução no sentido
Sèvres, posteriormente substituído pelo Tratado de que os conceitos por elas construídos foram
de Lausanne, que nada previu acerca dos crimes utilizados no desenho da atual noção de crime
contra a humanidade. contra a humanidade.
Assim, mesmo que o direito internacional Embora no seio das Nações Unidas tenha
tenha conhecido algumas referências às ofensas havido um comitê encarregado de codificar o
às leis da humanidade, o fato é que a primeira direito relativo aos crimes internacionais, é
definição do crime contra a humanidade decorre verdade que esta evolução de construção de
do Estatuto do Tribunal de Nuremberg, criado conceitos experimentou uma desaceleração
pelo Acordo de Londres em 1945. sobretudo no período da guerra fria, apenas
À diferença dos conceitos de crime de retomando seu desenvolvimento a partir dos
guerra, a noção de crime contra a humanidade foi fatos que desencadearam a criação do Tribunal
concebida de forma casuística com a finalidade Penal Internacional para a ex-Iugoslávia em
de responder às atrocidades perpetradas durante 1993 e o Tribunal Penal Internacional para
a Segunda Guerra Mundial. O Estatuto de Ruanda em 1994.
Nuremberg funda, portanto, a noção jurídica de Quanto aos estatutos e à jurisprudência
um crime extremamente grave e que não poderia desses tribunais, os mesmos aportaram novos
ser qualificado como sendo um crime de guerra elementos à definição do crime contra a
segundo o direito internacional humanitário. humanidade, ligado inicialmente à necessidade
Ao mesmo tempo em que o Estatuto de de um contexto de existência de um conflito
Nuremberg rompeu paradigmas tais como a armado (TPII) e à existência de uma intenção
desconstrução do elo que ligava o indivíduo discriminatória geral (TPIR).
ao seu Estado de forma a impedir a sua Em uma derradeira etapa, a evolução da
responsabilização internacional, a primeira definição do crime contra a humanidade chega
definição de crime contra a humanidade foi ao Estatuto de Roma, criador do Tribunal Penal
igualmente objeto de numerosas críticas, tais Internacional, cujo artigo 7 não exigirá mais a
como a de ser qualificada como instrumento de existência de um conflito armado, confirmando a
justiça dos vencedores e de violar os princípios noção de que crimes contra a humanidade podem
da legalidade e da primazia do direito penal. ser cometidos em tempo de guerra ou de paz.
Apesar das críticas, o fato é que esta primeira No que concerne à definição do crime de
definição de crimes contra a humanidade agressão, seu primeiro aparecimento advém da
tornou possível o desenvolvimento do conceito Conferência de Versalhes de 1919, em que a ideia
de valores protegidos por meio das diferentes de qualificar os atos de agressão foi concebida.
convenções internacionais que lhe sucederam. Em seguida, esses atos foram qualificados como
Desta forma, desde Nuremberg, o crimes contra a paz pelo Estatuto de Nuremberg.
direito internacional experimentou um novo Após numerosos debates sobre a natureza
desenvolvimento, a começar pelo advento da da guerra enquanto meio lícito ou ilícito de
Convenção pela prevenção e repressão do crime solução de conflitos internacionais e se bem
de genocídio, em que este crime foi nomeado que seja considerada um meio ilícito pelo artigo
pela primeira vez em um instrumento jurídico6. 2 da Carta das Nações Unidas, subsiste até os
A essa convenção sobrevêm a Convenção sobre dias de hoje uma controvérsia sobre o direito
a imprescritibilidade dos crimes de guerra e do de ingerência de um Estado sobre outro por
crime contra a humanidade (1968), a Convenção razões humanitárias. Esta ausência de consenso
para a eliminação e a repressão do crime de sobre o tema se reflete finalmente no Estatuto
apartheid (1973), a Convenção contra a tortura e de Roma, o qual, quando de sua criação, não
outras penas e tratamentos cruéis, desumanos e se desincumbiu de definir o crime de agressão,
degradantes (1984) e a Convenção internacional retardando sua adoção definitiva.

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B. Os crimes internacionais no Estatuto ou uma política ou façam parte de uma série de


da Corte Penal Internacional crimes análogos cometidos em grande escala.
No que toca ao crime de agressão, a
Apesar de o Estatuto da Corte Penal
definição e o exercício da competência da
Internacional não ter vocação de ser definitivo
Corte ainda não se encontram sedimentados,
no que se refere ao conceito dos crimes
refletindo uma maior lentidão na construção
internacionais, haja vista a existência de outras
convencional e jurisprudencial dos contornos do
jurisdições de caráter internacionalizado e os
crime, porquanto somente em 2010, por ocasião
projetos de novas convenções internacionais7, no
da conferência de revisão de Kampala, o artigo 8
Estatuto de Roma se encontram as definições dos
bis foi anexado ao Estatuto de Roma, definindo
crimes internacionais ao mesmo tempo como
o crime de agressão como sendo a planificação,
resultado de um longo processo de construção
a preparação, o desencadeamento ou o fato de
histórica e de uma forma mais completa, se
se engajar no ato de um Estado de utilizar a
comparado a outros estatutos.
força militar contra a soberania, a integridade
Nesse sentido, seu artigo 6 prevê como territorial ou a independência política de um
crime de genocídio a intenção de destruir, no outro Estado.
todo ou em parte, um grupo nacional, étnico,
Resta estabelecido que os atos de agressão
racial ou religioso, cometendo atos tais como o
compreendem a invasão, a ocupação militar e a
homicídio de membros do grupo, ofensas graves
anexação pelo emprego da força e o bloqueio de
à integridade física ou mental de membros
portos ou de costas, os quais, por sua natureza,
do grupo, a submissão intencional do grupo
sua gravidade e sua amplitude, são considerados
a condições de existência que levem a sua
como graves violações da Carta das Nações
destruição física total ou parcial, a prática de
Unidas, desde que o autor da agressão seja uma
medidas visando a impedir nascimentos no seio
pessoa capaz de controlar ou dirigir uma ação
do grupo ou a transferência forçada de crianças
política ou militar de um Estado.
do grupo a um outro grupo.
Por meio do artigo 8 bis, essa definição
Os crimes contra a humanidade, conforme
preenche uma lacuna no Estatuto de Roma do
definidos no artigo 7, são considerados como
ponto de vista formal, sem, no entanto, incluir
aqueles cometidos no quadro de um ataque
a possibilidade de exercício efetivo e imediato da
generalizado ou sistemático contra população
competência do Tribunal Penal Internacional
civil, por meios como homicídio, exterminação,
por crimes de agressão, porquanto a competência
redução à escravidão, deportação ou transferência
somente poderá ser exercida a partir de 2017,
forçada de população, aprisionamento ou outra
conforme definido pelo artigo 15 bis, e isto após
forma de privação grave da liberdade física,
a ratificação da emenda por pelo menos trinta
tortura, estupro, escravidão sexual, prostituição
Estados9.
forçada, gravidez forçada, esterilização forçada
ou outra forma de violência sexual de gravidade Em virtude da nova regra, o indivíduo
comparável, perseguição do grupo por motivos de protagonista de um ataque armado, sem legítima
ordem política, racial, nacional, étnica, cultural, defesa ou sem autorização prévia do Conselho
religiosa ou sexista8, desaparecimentos forçados, de Segurança das Nações Unidas, poderá ser
apartheid e outros atos desumanos de caráter submetido à Corte, o que acrescenta um caráter
análogo, causando intencionalmente grande de natureza política ao crime de agressão,
sofrimento ou ofensas graves à integridade física sobretudo porque o Conselho de Segurança
ou psíquica ou à saúde física ou mental. é competente tanto para dar seu acordo em
relação à abertura de uma investigação pelo
Em seguida, o artigo 8 define o crime de
cometimento do crime quanto para conceder
guerra como sendo, de um lado, as violações
ao juiz sua anuência sobre a admissibilidade da
das convenções de Genebra, compreendendo os
ação em relação ao ato imputável.
conflitos armados não-internacionais, e, de outro
lado, outras violações graves às leis e costumes Assim, algumas dificuldades impedem a
aplicáveis aos conflitos armados internacionais consolidação da competência da Corte Penal
conforme o que dispõe o direito internacional, Internacional em relação ao tratamento do crime
desde que os crimes se inscrevam em um plano de agressão e, por consequência, a definição
de seus contornos pela jurisprudência. Nada

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A Evolução da Definição dos Crimes Internacionais: Uma Comparação entre o Estatuto de Roma, o Direito Francês e o Direito Brasileiro

impede, no entanto, que esses crimes sejam jurídico que permita caracterizar esses crimes,
caracterizados pelos direitos domésticos, o que criar infrações penais no seio do direito nacional,
permitiria o exercício da jurisdição nacional, que, adaptar as normas de processo e regular as
aliás, possui primazia em relação à jurisdição formas de cooperação com a Corte.
internacional. A esse respeito, no domínio penal, as
normas contidas nos tratados internacionais
3. A DEFINIÇÃO DOS CRIMES assim como a promulgação do tratado pelo
INTERNACIONAIS NO DIREITO decreto presidencial não são suficientes para
COMPARADO orientar a elaboração do direito nacional,
sabendo-se que não se admite a aplicação direta
Se, de um lado, o desenvolvimento do das previsões de um tratado internacional ao
direito internacional penal criou um novo encontro dos princípios nullum crimen sine lege
regime jurídico para o tratamento dos crimes praevia, nullum crimen sine lege stricta, nullum
internacionais, de outro lado o fato de proteger crimen sine lege scripta nullum crimen sine
valores concernentes à comunidade humana lege, consagrados pela Constituição brasileira
em seu conjunto fez com que essas convenções no quadro do princípio da legalidade, tão caro
internacionais adquirissem um caráter de ao direito brasileiro a que os penalistas possuem
ius cogens, de forma a impor aos Estados sua ainda tanto apego, sem consideração a outros
observância. O direito internacional se encontra, valores.
portanto, na origem da imposição de algumas Por consequência, segundo entendimento
obrigações positivas aos Estados, dentre as dominante, os crimes devem ser caracterizados,
quais se encontra a obrigação de adequar seus em todas as suas circunstâncias, pela lei
respectivos direitos nacionais. interna, promulgada conforme o devido processo
A existência de ordenamentos jurídicos legislativo, não importando o teor do direito
nacionais que passam a conter normas de direito internacional e do ius cogens. De outro lado, as
internacional permite a análise comparada normas internacionais possuem valor de fonte
desses crimes, como é o caso do direito brasileiro de interpretação, conforme a decisão exarada
(A) e do direito francês (B) que serão aqui no julgamento do Habeas Corpus n° 70389
cotejados no que diz respeito ao cumprimento pelo Supremo Tribunal Federal no Brasil, que
dessa obrigação positiva. utilizou a Convenção das Nações Unidas sobre a
repressão do crime de tortura como uma norma
A. Os crimes internacionais no direito de integração, porquanto não existia à época
brasileiro uma lei brasileira específica para a repressão da
tortura10.
Apesar de o Brasil ter ratificado o Estatuto
de Roma, por meio do Decreto n° 4.388/2002, Se comparado ao Estatuto de Roma, o
seu direito penal interno não é acompanhado da sistema jurídico brasileiro possui algumas
adoção de um processo legislativo que preveja previsões esparsas, sendo algumas distintas e
e caracterize os crimes contra a humanidade, outras semelhantes à definição dada pelo direito
os crimes de genocídio, os crimes de guerra e internacional. Tal se produz, por exemplo, em
tampouco os crimes de agressão. relação a alguns dispositivos legais de crimes
como o genocídio, a tortura, o racismo ou a
Desde a internalização do Estatuto da
prática de violências sexuais. Em relação a
Corte Penal Internacional pelo direito nacional
outros crimes, inexiste qualquer disposição de
brasileiro, alguns esforços legislativos tiveram
direito nacional.
ainda lugar a fim de adaptar e harmonizar o
respectivo sistema de justiça, sem sucesso, no Quanto ao crime de genocídio, a Lei n°
entanto. 2.889/56 o define como sendo o fato de matar
membros de grupo nacional, étnico, racial ou
A despeito da criação de um grupo de
religioso, provocando graves lesões à integridade
trabalho nomeado pelo Ministério da Justiça
física ou mental desses membros, ou ainda de
brasileiro e encarregado de elaborar um projeto
submetê-los intencionalmente a condições
de lei, não existe nenhum avanço no que
de vida que os levem à destruição física total
concerne à entrada em vigor das disposições do
ou parcial, bem como adotar medidas visando
Estatuto de Roma pela via de um instrumento
a impedir nascimentos no seio do grupo ou

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a transferência forçada de crianças do grupo a direito interno: o Brasil ratificou os principais


outro grupo, com a intenção de destruí-lo, total tratados de direito internacional humanitário,
ou parcialmente. em particular as quatro Convenções de Genebra,
Assim sendo, o genocídio é o crime além da Convenção de Nova York sobre a
internacional previsto pelo direito brasileiro que proibição ou a limitação do emprego de armas que
possui maior simetria com o Estatuto de Roma. causem danos excessivos, bem como o Tratado
No entanto, a lei faz menção às penas previstas de Ottawa proibindo a utilização, estocagem,
para o crime de homicídio do Código Penal, pelo produção e transferência de minas. No entanto,
artigo 20 do Código Penal Militar (para o crime os crimes previstos nessas convenções não foram
cometido em tempo de paz, cuja pena é de 15 a regrados por uma lei interna específica.
30 anos) e pelos artigos 401 e 402 também do O Código Penal Militar dispõe de algumas
Código Penal Militar (para os crimes cometidos figuras típicas de crimes militares cometidos em
em tempo de guerra, cuja previsão é de imposição tempo de guerra, mas eles são fundamentalmente
da pena de morte). diferentes dos fatos considerados como infrações
Quanto aos crimes contra a humanidade, o graves às Convenções de Genebra. O Código
direito nacional ainda não caracterizou os atos menciona a necessidade de declarar oficialmente
previstos pelo artigo 7 do Estatuto de Roma. Se a guerra, enquanto as situações de conflitos
é verdade que a lei penal brasileira possui em armados previstos nessas convenções não
numerosos dispositivos a previsão de crimes exigem essa circunstância. Não obstante, o Brasil
cuja descrição se aproxima das previstas pelo ratificou as quatro Convenções de Genebra de
Estatuto de Roma, as mesmas são geralmente 1957, ocasião em que o Estado brasileiro se
aplicadas a práticas individuais e não a situações comprometeu internacionalmente a adotar as
de ataques generalizados ou sistemáticos contra medidas legislativas necessárias para tipificar o
a população civil no quadro de uma política de crime de guerra.
Estado ou de uma organização, oficial ou não, Além disso, o chamado direito em tempo
conforme previsto pelo direito internacional11. de guerra chama à necessidade da eficácia da
Igualmente, o sistema jurídico brasileiro proteção das forças armadas e das operações
possui disposições gerais incriminando crimes militares muito mais do que à proteção das
como o racismo, a escravidão, a violência sexual, pessoas implicadas no conflito, o que se verifica
a tortura e o tráfico de pessoas. No entanto, o pela caracterização da ordem de prioridade
ataque generalizado ou sistemático contra a dada aos crimes previstos, como a traição e a
população civil não está previsto na descrição de espionagem, ambos passíveis de aplicação de
cada um desses crimes. pena de morte, muito afastando-se, assim, dos
princípios finalísticos que sustentam a definição
O crime de tortura, por exemplo, teve sua
de um crime internacional, que é justamente de
primeira definição na lei de Abuso de Autoridade
proteger os interesses jurídicos que se encontram
(Lei n ° 4.898/65), passando por uma disposição
além dos Estados-nacionais e que concernem
no Estatuto da Criança e do Adolescente,
aos indivíduos que sofrem os danos ocasionados
chegando à previsão feita pela Lei n° 9.455/97
pelo conflito armado.
que, no entanto, não atribuiu a esse crime o
caráter de crime internacional. Por fim, no que toca ao crime de agressão,
o Brasil sequer ratificou o artigo 8 bis incluído
O mesmo ocorre no que concerne à
no Estatuto de Roma por ocasião da Conferência
previsão do crime de racismo. Definido por meio
de Kampala.
da Lei n° 7.716/89, ela consagra figuras típicas
simples que se resumem a atos de degradação Apesar de o Brasil ter adotado o princípio
ou perturbação da livre entrada de pessoas em da não-agressão constante da Carta das
determinados lugares, o que se encontra longe Nações Unidas, fazendo-o pela disposição
da abordagem feita pelo crime de apartheid. contida no artigo 4° de sua Constituição, em
que são explicitados princípios tais como a
Pode-se concluir nesse sentido que não
autodeterminação das relações internacionais,
existe no direito brasileiro uma definição de
a não-intervenção e a defesa da paz, não existe
crime contra a humanidade.
nenhuma disposição no direito interno sobre
Esse contexto não se modifica quando se a qualificação do crime de agressão. A esse
considera a definição dos crimes de guerra em respeito, pode-se apenas mencionar o Projeto de

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A Evolução da Definição dos Crimes Internacionais: Uma Comparação entre o Estatuto de Roma, o Direito Francês e o Direito Brasileiro

Lei n° 6.764/2002 que trata da prática de crimes É de se sublinhar que a Lei de 26 de dezembro
contra o Estado Democrático de Direito, dentre de 1964 restringiu seu campo de aplicação aos
eles os crimes de agressão à soberania, a traição crimes cometidos pelos crimes cometidos pelos
e a violação do território, os quais, conforme o membros dos Governos dos países europeus do
caso, podem ser considerados como crimes de Eixo durante a Segunda Guerra Mundial, não
agressão. se aplicando nem às forças japonesas (levando
em conta que a França não havia ratificado o
B. Os crimes internacionais no direito Estatuto de Tóquio) nem aos crimes cometidos
francês fora do âmbito da Segunda Guerra Mundial, pois
a lei francesa não previa criminalização geral de
Contrariamente ao que ocorre no direito
crimes contra a humanidade.
penal brasileiro que exige a necessidade de uma
lei específica, no que toca ao direito francês se Nesse sentido, a Câmara Criminal francesa
faz suficiente seja a previsão de dispositivos estimou que não seria possível qualificar como
internos incriminando os crimes internacionais, crime contra a humanidade os atos cometidos
seja um texto internacional integrado pelo direito durante a guerra da Indochina, adotando a
interno. No entanto, subsiste a compreensão mesma solução no que concerne aos atos
comum segundo a qual o costume internacional cometidos durante a guerra da Argélia.
não substitui a ausência de textos incriminando Posteriormente, o Código Penal de 1992,
os crimes internacionais12. que entrou em vigor em 1° de março de 1994,
Por consequência, face à jurisdição francesa, previa a incriminação dos crimes contra a
uma pessoa pode ser processada por crimes humanidade, portando suas características
internacionais como o genocídio, os crimes gerais, inscrevendo-os no Título I dos crimes
contra a humanidade e os crimes de guerra, os contra a pessoa, especificamente nos artigos 211
quais são formalmente previstos pelo direito e seguintes do Código Penal.
penal francês. Por outro lado, o crime de agressão Em seguida, por meio da Lei n° 2010-
não pode ser reprimido na França porquanto 930 de 9 de agosto de 2010, o Código Penal
não é previsto pela lei francesa e notadamente francês adotou o Estatuto de Roma, de forma a
porque a emenda ao Estatuto de Roma ainda não tornar a legislação nacional simétrica ao direito
foi ratificada por disposição interna. internacional, cumprindo com sua obrigação
Se o direito francês for analisado em positiva de harmonização.
ordem cronológica, a primeira previsão de A partir de então, o artigo 211-1 do Código
crimes contra a humanidade foi feita pela Lei Penal francês caracteriza o crime de genocídio
de 26 de dezembro de 1964, contendo, nesta como “le fait, en exécution d’un plan concerté
época, a noção segundo a qual os crimes contra tendant à la destruction totale ou partielle d’un
a humanidade eram uma espécie de crime de groupe national, racial, ethnique ou religieux,
guerra. Essa lei os retratou segundo a descrição ou d’un déterminé à partir de tout autre critère
feita pelo Estatuto de Nuremberg, reconhecendo arbitraire, de commettre ou de faire commettre,
sua imprescritibilidade, de forma a lhes atribuir à l’encontre de membres de ce groupe les actes
um estatuto diferente ao de direito comum. suivants: atteinte volontaire à la vie, atteinte
Atualmente, a repressão penal francesa dos grave à l’intégrité physique ou psychique,
crimes internacionais pode ser dividida em crime soumission à des conditions d’existence de
contra a humanidade e crime de guerra, sendo o nature à entraîner la destruction totale ou
genocídio uma espécie do primeiro, o que é uma partielle du groupe, mesures visant à entraver
particularidade da legislação nacional. les naissances et transfert forcé d’enfants”. Além
disso, o seu artigo 211-2 prevê como crime a
Na decisão de 20 de dezembro de 1985,
prática de provocação pública e direta, por todos
conhecida como affaire Barbie, a Corte de
os meios, a cometer genocídio.
Cassação empregou expressões do Estatuto do
Tribunal de Nuremberg para determinar os Nomeando-os como “outros crimes contra
elementos constitutivos dos crimes contra a a humanidade, o artigo 212-1 refere-se à prática
humanidade, apoiando-se sobre as noções de atos de atos cometidos, em conformidade a um
desumanos e perseguições que não poderiam ser plano concertado contra um grupo de população
ligadas à criminalidade nacional. civil no quadro de um ataque generalizado ou
sistemático tais como: a ofensa voluntária à

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vida, a exterminação, a redução à escravidão, a necessidade de marcar a diferença entre um


a deportação ou transferência forçada de crime contra a humanidade, que é o crime mais
população, o aprisionamento ou outra forma grave dos crimes, e o crime de guerra, o que é
de grave privação da liberdade física, a tortura, uma particularidade do direito francês.
o estupro, a prostituição forçada, a gravidez No que concerne ao crime de agressão, a
forçada, a esterilização forçada ou qualquer França ainda não ratificou em seu direito interno
outra forma de violência sexual de gravidade o artigo 8 bis do Estatuto de Roma.
comparável, a perseguição de qualquer grupo ou
qualquer comunidade identificável por motivos 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
de ordem política, racial, nacional, étnica,
cultural, religiosa, de gênero ou com base em As graves violações dos direitos humanos
outros critérios universalmente reconhecidos que se processaram especialmente no curso do
como inaceitáveis no direito internacional, a século XX conduziram ao desenvolvimento de um
prisão, detenção ou sequestro de pessoas seguido novo sistema jurídico em relação ao tratamento
por seu desaparecimento, atos de segregação dos crimes de massa, a partir da compreensão
cometidos como parte de um regime opressivo do fato de que esses crimes pertencem a uma
e outros atos desumanos de natureza similar categoria especial de violações que ofendem
causando grande sofrimento. interesses que ultrapassam os Estados.
Como consequência do regime de Essa nova concepção impulsionou o
tratamento diferenciado que se reserva aos desenvolvimento de um direito situado ao mesmo
crimes contra a humanidade, o artigo 213- nível desta categoria especial de violações, acima
5 do Código Penal francês prevê igualmente a dos Estados, portanto, tornando necessário
imprescritibilidade da ação pública e das penas, que o estabelecimento de regras concernentes
sabendo-se que esta imprescritibilidade se fosse tratado pelo direito internacional, o que
estende também à ação civil de reparação de anunciou uma mudança de paradigma no que
danos13. tange à responsabilidade penal.
A Lei n° 2010-930, de 9 de agosto de 2010 Esses crimes são identificados pelo direito
igualmente harmonizou o direito penal francês internacional como crimes de guerra, crimes
ao Estatuto de Roma no que tange aos crimes de contra a humanidade, crimes de genocídio
guerra, ao inseri-los nos artigos 461-1 e seguintes e crimes de agressão, mas essa identificação
do Código Penal sob o título “des crimes et des não foi possível senão após um longo processo
délits de guerre”, contendo as mesmas definições construtivo que remonta às origens do direito
do direito internacional. internacional e que tem seu apogeu na adoção
do Estatuto do Tribunal Penal Internacional.
É assim que o Código Penal francês
atualmente caracteriza, de um lado, os crimes Esse processo fundou um novo direito
e delitos de guerra cometido nos conflitos internacional, ou mesmo um direito
armados internacionais e não-internacionais, internacional penal, impulsionando, além disso,
nos quais se incluem: as ofensas à pessoa, o desenvolvimento dos respectivos direitos
os delitos de guerra ligados à conduta das nacionais e, por consequência, o advento de
hostilidades (crimes de guerra relacionados aos um direito comparado em matéria de crimes
meios e aos métodos de combates proibidos pelo internacionais.
direito internacional) e os grupos formados com Nesse sentido e com o fim de analisar dois
vistas a preparar a prática de crimes de guerra; sistemas jurídicos que alcançaram um diferente
e, de outro lado, o Código prevê os crimes e grau de evolução, como é o caso do direito penal
delitos de guerra próprios a determinados tipos francês e brasileiro, pode-se concluir que o
de conflitos armados, próprios aos conflitos tratamento dos crimes internacionais apresenta
armados internacionais e próprios aos conflitos disparidades substanciais.
armados não-internacionais. Apesar da existência de algumas
O direito penal francês prevê igualmente o discordâncias em relação ao direito internacional,
direito de legítima defesa à França (artigo 462- o direito penal francês teve êxito em harmonizar
11) e a prescrição da pena em 30 anos para os seus dispositivos em seguimento ao que dispõe
crimes e 20 anos para os delitos, o que o distingue o Estatuto do Tribunal Penal Internacional, de
do Estatuto de Roma. Essa distinção afirmaria forma a tornar possível o exercício da jurisdição

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A Evolução da Definição dos Crimes Internacionais: Uma Comparação entre o Estatuto de Roma, o Direito Francês e o Direito Brasileiro

nacional para a responsabilização dos autores considerar o futuro como sendo o de um novo
de graves violações aos direitos humanos e às paradigma rumo à jurisdição universal capaz de
leis e costumes de guerra, em cumprimento ao julgar violações aos interesses da comunidade
princípio da complementariedade. humana como um todo. Embora lento, este é
Por outro lado, ainda existem graves lacunas um processo inexorável.
no direito brasileiro no que concerne à definição Apesar de todas as adversidades que essa
dos crimes internacionais, culminando em nova justiça encontra e mesmo que não seja
imperfeições no exercício da jurisdição nacional. razoável concluir que esses novos paradigmas da
Face à ordem jurídica internacional, a lei penal justiça penal permitirão reduzir a criminalidade
brasileira apresenta largas omissões, impedindo internacional, é verdade que esse modelo
a investigação, processamento e punição de conheceu um avanço significativo capaz de
crimes de massa. conferir maior estabilidade à justiça em âmbito
Se, de um lado, os sistemas jurídicos mundial, consolidando a existência de dois
nacionais são ainda assimétricos no tratamento sistemas penais paralelos de jurisdição, o da
punitivo de graves violações a direitos da Corte Penal Internacional e o dos Estados.
humanidade e se o direito penal doméstico de Resta a questão de saber de que maneira o
alguns Estados caminha a passos lentos, como direito penal, ancorado nos princípios fundantes
é o caso do Brasil, em que o direito é afastado do direito internacional dos direitos humanos,
do direito internacional, como se existissem se orientará em direção a este novo padrão de
duas ordens diversas, de outro lado é possível vocação cosmopolita.

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Fernanda Figueira Tonetto

NOTAS

1. FOUCHARD, Isabelle. Crimes Internationaux. 6. A convenção foi proposta por Raphael Lemkin,
Entre internationalisation du droit pénal et a quem foi atribuída a criação da expressão
pénalisation du droit international. Bruxelles, genocídio em resposta oficial a à Winston
Bruylant, 2014. Churchill sobre os “crimes sem nome »
2. DELMAS-MARTY, Mireille. Os crimes cometidos pelos nazistas durante a Segunda
internacionais podem contribuir para o debate Guerra Mundial. Ver: REBUT, Didier, Droit
entre universalismo e relativismo de valores? pénal international. Paris, Dalloz, 2012,
In DELMAS-MARTY, Mireille & CASSESE, p. 617.
Antonio (Orgs). Crimes internacionais 7. Como é o caso da Convention internationale
e Jurisdições Internacionais. Trad. Silvio sur la prévention et la répression des crimes
Antunha. Barueri, Manole, 2004. contre l’humanité.
3. Apesar de o Estatuto de Roma não ter utilizado 8. Ou, segundo o artigo 7, em função de outros
o termo “crime internacional”, seu artigo 1° critérios universalmente reconhecidos como
faz referência aos “crimes mais graves que inadmissíveis em direito internacional.
possuam alcance internacional”. 9. Esta exigência fora satisfeita em 26 de junho de
4. A Comissão sobre a responsabilidade dos 2016 com a ratificação da emenda pelo Estado
autores da guerra e sobre a aplicação das penas da Palestina.
permitiu a redação de artigos que dizem respeito 10. A Lei n° 9455/97 que prevê os crimes de tortura
às reparações previstas pelo Tratado de Versalhes no Brasil entrou em vigor em 1997.
(artigos 231 a 244), em que o Estado alemão e
seus aliados reconhecem sua responsabilidade 11. AMBOS, Kai. Persecução Penal Internacional
por todas as perdas e violações sofridos pelos na América Latina e Espanha. São Paulo:
Estados vencedores. Ver: Commission on the IBCCrim, 2003, p. 41.
Responsibility of the Authors of the War and 12. REBUT, Didier. Droit pénal international,
on Enforcement of Penalities. The American Paris, Dalloz, 2012, p. 612.
Journal of International Law, Vol. 14, Nº. 1/2
13. Crim. 1er juin 1995, Bull. crim, n° 202.
(Jan. - Apr., 1920).
5. BETTATI, Mario. Droit humanitaire. Paris,
Dalloz, 2012.

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