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AULA 2

DIDÁTICA DO ENSINO E
AVALIAÇÃO DA
APRENDIZAGEM EM LÍNGUA
PORTUGUESA

Profª Mariana Trautwein


CONVERSA INICIAL

A nossa segunda aula vai se embasar nos conceitos vistos anteriormente


para entendermos melhor o contexto atual do ensino de Língua Portuguesa no
Brasil. Em seguida, no Tema 2, veremos a importância da LP para a participação
na cidadania e, no Tema 3, como a Sociolinguística pode influenciar em sala de
aula e nos aproxima dessa meta. Os dois últimos temas tratarão mais
especificamente do papel do professor no ensino de LP, de seus objetivos e
desafios, e da relação entre ensino de língua e ensino de gramática e suas
consequências para o desenvolvimento linguístico do aluno.

CONTEXTUALIZANDO

Antes de entrarmos, especificamente, nos processos didáticos voltados


aos quatro eixos da LP (oralidade, leitura, escrita e gramática e aquisição
linguística), precisamos refletir sobre o contexto em que esses processos estão
inseridos. Precisamos entender o contexto social escolar e os desafios que ele
apresenta para os processos de ensino-aprendizagem, como a LP tornou-se um
instrumento para a cidadania e como o acesso às variedades privilegiadas é
fundamental para o desenvolvimento social e cidadão de nossos alunos. Além
dessas questões, precisamos refletir sobre o papel do professor de LP no
desenvolvimento linguístico dos alunos de forma eficiente e real, sem o
tratamento tradicional e histórico somente prescritivo e gramatical. Eis o que
discutiremos nesta aula, buscando o entendimento desse contexto que é
extremamente relevante na escolha didático-metodológica para o trabalho com
a língua.

TEMA 1 – CONTEXTO E DESAFIOS DA ESCOLA ATUAL

A nossa sociedade se estabelece valendo-se de relações entre indivíduos


em diferentes espaços, um desses espaços é a escola. As pessoas se
relacionam no ambiente familiar e nos ambientes institucionalizados. Como uma
instituição, a escola não existe de forma isolada e sofre influências externas da
economia, da religião, da política e dos diferentes ideais das diversas
sociedades.
Vivemos em um mundo globalizado, em que somos diretamente afetados
por alterações no mercado, na indústria e na tecnologia que vão além das
fronteiras sociais em que estamos inseridos. Nesse contexto, a escola sofre
influências diretas de três pontos: a realidade econômica e social de sua
população escolar; a realidade social de seu país/estado/município; a realidade
das políticas públicas que ditam as diretrizes e investimentos na educação.
O primeiro ponto engloba a cultura e as ações da comunidade escolar,
composta dos administradores, professores, alunos e pais. É nesse ponto que
residem desafios como:
i) a falta de estrutura familiar - casos de abandono infantil, abuso físico e
psicológico, falta de comprometimendo familiar com a aprendizagem, excesso
de faltas;
ii) a falta de condições básicas - alunos que têm sua principal, e às vezes
única, refeição na escola, epidemias de doenças causadas por falta de higiene
e/ou saneamento básico;
iii) a diversidade cultural presente na sala de aula - questões culturais,
econômicas e/ou religiosas que influenciam nas escolhas feitas em sala de aula.
O segundo ponto é mais abrangente, pois engloba questões sociais além
da comunidade escolar. Nesse escopo, os desafios que afetam diretamente no
dia a dia escolar podem ser de origem:
i) de segurança ao bem estar - momentos de guerra, conflitos entre
comunidades, casos como a greve da polícia no ES em 2016 e dos tiroteios
constantes no RJ em 2017.
ii) política: como manifestações públicas em busca de melhores condições
de trabalho como paralizações no transporte público, paralizações nas escolas
da parte administrativa ou dos professores.
iii) comunicativa: compartilhamento de informações escolares para além
dessa comunidade - compartilhamento de dados pessoais em redes sociais -,
compartilhamento de informações falsas ou ainda não esclarecidas com a
equipe escolar e com a família - casos de grupos de professores ou de pais em
redes sociais que já deliberam veredito de culpa sem consultar a veracidade da
informação - e o excesso de exposição de alunos, professores e funcionários.
Já no terceiro ponto, os desafios são causados pelas políticas públicas,
quando:
i) promete-se um orçamento que não é repassado, não permitindo assim
que a escola tenha infra estrutura, segurança e condições dignas para o trabalho.

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ii) não destinam investimentos ou formas de incentivo à formação
continuada e ao reconhecimento de seus professores.1
iii) mudam as diretrizes que orientam a educação básica sem consultar a
comunidade escolar ou sem dar o suporte e preparo necessário para a
realização das mudanças - caso da mudança do EF para 9 anos e caso da
mudança de estrutura do EM.
Fica claro que a influência externa no contexto escolar é enorme. Assim,
apesar de todos os problemas, a escola é uma instituição marcada pela
superação de seus agentes, que, muitas vezes, fazem o milagre de construir
aprendizagem sem recursos.
É importante comentar que a rede pública sofre uma maior influência
dessas condições da sociedade do que a rede privada, porém isto não anula os
desafios, em diferentes níveis, enfrentados pela escola particular que sofre uma
maior pressão por se tratar também de uma instituição econômica capitalista.
Além dessas questões de contexto, a escola enfrenta desafios diários
para conseguir aproximar-se de seus alunos e fornecer contextos apropriados
para a aprendizagem. Os objetivos do ponto de vista da escola e dos alunos
parecem não estar mais em sintonia. A escola ainda tenta manter uma relação
tradicional com o conhecimento, mas o aluno necessita de outros níveis, formas
e estilos de aprendizagem, pois está inserido em uma realidade de liberdade
para buscar informações de seu interesse e ainda escolher de que forma quer
analisá-las - se por texto, vídeo, áudio, música, entre outros. A tecnologia já
transformou o processo de formação dos nossos alunos, mas ainda não
conseguiu transformar o processo de ensino formal. Cabe à escola, em seu nível
administrativo e docente, a busca constante por formas de incorporar temas e
ações tecnológicas com que os alunos se identifiquem, o que, com certeza, trará
resultados exponenciais para o processo de ensino-aprendizagem. Nas
próximas aulas, falaremos um pouco mais sobre a tecnologia na aprendizagem.
Podemos concordar, enfim, que a equipe pedagógica e o professor têm
diversas questões para considerar em seu planejamento e que cada escola,
dependendo de sua localização e do momento histórico-social, enfrenta desafios
diferentes, em níveis diferentes.

1 Estes dois primeiros itens estão relacionados à realidade exclusiva das escolas públicas.

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TEMA 2 – A LÍNGUA PORTUGUESA E A CIDADANIA

Além de refletir sobre a realidade escolar apresentada acima e como esta


influencia no processo de ensino-aprendizagem, também cabe considerar o
papel do ensino de LP na formação de cidadãos conscientes, partindo do
conceito de Escola Cidadã.
Um dos grandes desafios para isso consiste em construir uma política
didático pedagógica para o ensino de LP que alcance os objetivos de uma escola
cidadã, o que depende da dedicação que deve ser empreendida pelos
envolvidos: escola, professor, aluno e comunidade. Não podemos esquecer que
a disciplina de LP é a mais intimamente relacionada à vida pessoal e social de
cada um de nós, pois tem como objeto o nosso instrumento de comunicação
dentro e fora de sala de aula: a língua. Diferentemente das outras disciplinas que
tratam de conceitos nem sempre presentes em nossa realidade cotidiana. A
língua portuguesa é o veículo principal de apropriação de conteúdos e conceitos
das outras áreas do conhecimento, tendo, assim, um escopo muito abrangente
na realidade do aluno.
Desde o processo de aquisição de linguagem, o ato de falar não é
simplesmente um meio de passar informações, mas também, uma habilidade de
produzir reações em nossos interlocutores. Por isso vamos descobrindo, desde
muito cedo, como devemos falar para conseguirmos o efeito desejado (tome
como exemplo as “birras” feitas pelas crianças quando querem algo ou quando
pedem as coisas “com jeitinho e carinho” na tentativa de garantir o resultado
esperado). Esse é o efeito natural da língua portuguesa sendo usada como
veículo de participação na sociedade, mesmo que na infância essa sociedade
ainda gire em torno da família.
É na escola que o processo se oficializa e que o trabalho com a língua
materna deve oferecer alicerces para uma efetiva participação na sociedade em
níveis mais amplos, o que é previsto nos PCN e outros documentos de diretrizes
oficiais.
Para que esse processo de fato se concretize, é necessária uma
reavaliação do senso comum que o brasileiro tem ao pensar em sua língua e em
suas capacidades linguísticas.
Primeiramente, temos que nos despir da ideia de que o brasileiro “não
sabe falar português”, de que falamos uma outra língua, que é parecida com o

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português e que continua sendo chamada dessa forma ironicamente. Essa
concepção vem desde a época colonial e pauta-se num mito de que a Língua
Portuguesa seria aquela descrita nas gramáticas normativas e que, de fato, não
é a língua utilizada pela grande maioria da população.
Durante esse Período Colonial, do Império e do começo da República, a
condição de cidadania estava diretamente ligada à posição social das pessoas
e a como elas faziam uso da linguagem. Era uma forma simples de separar os
privilegiados, considerados cidadãos – que apresentavam domínio das regras
da norma padrão – e os populares que não tinham direito à participação política
e social – e usavam outras variedades da língua.
Essa inter-relação do uso da língua com o patamar social e o acesso a
oportunidades ainda se mantém na atualidade, apesar de já termos avançado
muito nesta questão devido à Sociolinguística, como veremos a seguir. Entende-
se hoje que um importante passo para se exercer nosso papel cidadão é o
respeito às outras variedades linguísticas, o que não quer dizer que não
continuaremos a buscar o acesso e ensino da variedade-padrão da língua que
garantirá essa cidadania de forma ainda mais eficaz e efetiva, além de
proporcionar um leque mais amplo de oportunidades sociais e profissionais para
nossos alunos, elevando sua qualidade de vida e sua participação na sociedade.

TEMA 3 – A SOCIOLINGUÍSTICA EM SALA DE AULA

A Sociolinguística, vertente dos estudos linguísticos que se foca no uso


real da língua, vem há décadas descrevendo as diversas variedades linguísticas
de nosso país e militando para a redução do preconceito linguístico, na tentativa
de possibilitar aos brasileiros falantes de variedades linguísticas estigmatizadas
a chance de lutar por sua representatividade e cidadania.
A diversidade linguística brasileira está diretamente relacionada à
pluralidade cultural do nosso país. O Brasil é um país de enormes proporções, e
com regiões tão diferentes entre si que poderiam ser consideradas “países
diferentes”. Como esperar, então, que todos os mais de 200 milhões de
brasileiros se expressem de uma mesma forma linguística? Como vimos na aula
anterior, a língua é um objeto vivo que serve às necessidades de seus usuários
e convenhamos, as necessidades linguísticas do povo brasileiro são bem
diferentes de uma região para outra, de uma classe social para a outra, ou de
um polo urbano para um polo rural, por exemplo. Diante disso, deveria ser óbvia

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a impossibilidade de existir apenas uma variedade do português adotada por
todos, apesar de muitos ainda acreditarem neste mito2.
O estudo de LP e o acesso à cultura letrada de variedades mais formais
da língua permitem que os indivíduos estejam preparados para diferentes e,
muitas vezes, melhores oportunidades, visto que ainda existe preconceito
linguístico em diversos setores de nossa sociedade.
O ensino da norma-padrão e de uma variedade linguística mais
privilegiada permitirá que os alunos lutem por um futuro melhor e desenvolvam-
se com mais facilidade nas áreas do conhecimento que escolherem para o
futuro. Porém é importante que esses alunos entendam que aprender o
português culto ou portugués-padrão, não implica na anulação de sua variedade
de origem e nem em sua estigmatização, ela ainda continuará sendo sua
primeira escolha nos momentos informais, mas em momentos mais formais será
substituída por uma variedade mais adequada à situação sociocomunicativa.
Esse necessário respeito pela realidade comunicativa do aluno é que vem
pautando, aos poucos, diversas mudanças de comportamento docente que
partem principalmente da não disseminação do preconceito linguístico em sala
de aula e do não julgamento de uma variedade como melhor ou pior e, sim, como
mais ou menos adequada a uma situação comunicativa.
Essa foi uma das grandes contribuições da Sociolinguística e, ao mesmo
tempo, uma das mais polêmicas: a não aceitação do termo “erro”, por ser
considerado pelos pesquisadores uma expressão inadequada e preconceituosa.
Para a sociolinguística, os “erros” no uso da língua são, na verdade, diferenças
entre variedades linguísticas, que representam, na maioria das vezes, as
variedades utilizadas no domínio do lar, permeado por sua cultura oral e de
informalidade.
Apesar de polêmico, o conceito de inadequação vem sendo mais aceito e
apresentado inclusive em alguns materiais didáticos. Bortoni-Ricardo (2004, p.
37) afirma que:

Nas últimas duas décadas, os educadores brasileiros, com destaque


especial para os linguistas – seguindo uma corrente que nasceu na
polêmica entre a postura que considera o “erro” uma deficiência do
aluno e a postura que vê os chamados “erros” como uma simples
diferença entre duas variedades -, têm feito um trabalho importante,
mostrando que é pedagogicamente incorreto usar a incidência do erro
do educando como uma oportunidade para humilhá-lo. [...] Na prática,
contudo, esse comportamento é ainda problemático para os

2 Para saber mais sobre os mitos sobre o uso da linguagem, consulte Bagno (1999).

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professores, que ficam inseguros, sem saber se devem corrigir ou não,
que erros devem corrigir ou até mesmo se podem falar de erros.

A autora ainda levanta que a intervenção é importante, mas depende


basicamente do tipo de evento em que o uso de regras não-padrão ocorrem. Por
exemplo, na oralidade informal do aluno, em momentos de recreio ou
brincadeiras, nem sempre cabe essa intervenção, mas em uma atividade oral de
sala de aula ela é adequada, desde que feita de forma a demonstrar como a
variedade padrão trataria algo dito “erroneamente” pelo aluno. Às vezes é
preferível adiar uma intervenção para que uma ideia ou um raciocínio não sejam
interrompidos e, mais tarde, através de reflexões direcionadas trazer novamente
exemplos daquele tipo de uso e demonstrar sua variedade padrão.
Também é importante levar em consideração que para que o aluno possa
começar a monitorar seu próprio estilo durante seu desenvolvimento linguístico,
além da identificação da inadequação do aluno ao usar alguma regra não-
padrão, o professor deve trazer à discussão a conscientização dessa diferença
e, quando possível, trazer detalhes sobre aquele uso, especialmente ao tratar de
assuntos mais complexos do desenvolvimento linguístico como colocação
pronominal, regência e concordância.
A variedade linguística faz parte da identidade dos alunos, por isso deve
ser respeitada, mas o acesso à variedade padrão e à cultura letrada permitem a
chance de lutar pela sua cidadania com os mesmos instrumentos linguísticos
que os falantes das variedades mais privilegiadas. Uma mesma pessoa pode
dominar mais de uma variedade linguística e isto permite que ela se adeque às
diversas situações comunicativas que encontrará ao longo de sua vida.

TEMA 4 – O PAPEL DO PROFESSOR DE LÍNGUA PORTUGUESA

O professor de língua materna, no nosso caso a Língua Portuguesa, já


encontra, desde os primeiros anos do Ensino Fundamental, um fator facilitador
para seu processo de ensino-aprendizagem, que é também um fator de
dificuldade: seu aluno já possui domínio de sua variedade linguística, já
reconhece os padrões da língua e já a usa para compreender o mundo. Esse
conhecimento prévio, se é que assim podemos o chamar, pode trazer a
curiosidade de se querer aprender mais e entender melhor seu meio linguístico,
através da leitura, escrita e oralidade, ou se transformar em uma barreira para o
processo, uma rejeição às diferentes modalidades e variedades da língua

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apresentadas e cobradas em sala de aula, seja por motivos sociais, econômicos
e, até mesmo, emocionais.
Essa barreira parece se solidificar em virtude da insistência nas práticas
pedagógicas de repasse de conteúdos gramaticais de forma descontextualizada
e fragmentada aliada a uma concepção de linguagem meramente prescritiva e
metalinguística que não representa o uso real vivenciado pelos alunos. Travaglia
já fez essa observação há quase duas décadas, ao afirmar que:

Observa-se uma concentração muito grande no uso de uma


metalinguagem no ensino de gramática teórica para identificação e
classificação de categorias, relações e funções dos elementos
linguísticos, o que caracterizaria um ensino descritivo, embora
baseado, com frequência, em descrições de qualidade questionável.
(1998, p. 101)

Parece estranho que essa realidade ainda se mantenha mesmo com os


avanços dos estudos linguísticos das últimas décadas, sua inclusão nos cursos
de Licenciatura em Letras, e das diretrizes oficiais de ensino de LP, que
claramente são contra esse tipo de prática em suas orientações, mas essa ainda
é a realidade em muitas escolas brasileiras. Cabe ao professor ser o primeiro a
romper com essa tradição para que os conhecimentos trabalhados na disciplina
de LP façam sentido para o aluno e ajudem-no a alcançar um domínio efetivo
das funções comunicativas em seus diferentes contextos sociointeracionais.

4.1 Professor: os desafios, os alunos e a sociedade

Os desafios do professor na sala de aula envolvem sua relação com o


aluno, com sua formação e com a sociedade, além dos desafios escolares de
realidade social e econômica listados anteriormente no Tema 1.
O relacionamento entre professor e aluno é tema de diversas discussões,
especialmente na atualidade, em que a figura do professor parece perder, a cada
dia, seu prestígio e posição hierárquica frente ao aluno e à comunidade escolar.
São cada vez mais comuns histórias de alunos enfrentando professores, e de
pais, ou até mesmo da própria instituição escolar, pressionando esses
profissionais para agir de acordo com suas expectativas para um ou outro aluno,
histórias que nem sempre condizem com a realidade. É claro que existe, e
sempre existiu, uma tensão entre as duas figuras centrais do processo de
ensino-aprendizagem, mas em tempos modernos, em que os alunos têm acesso
às redes sociais e a diferentes formas de construção de conhecimento e que os

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professores querem manter uma relação hierárquica ultrapassada para o
funcionamento da sociedade atual, as tensões parecem estar aumentando.
Uma outra questão que dificulta essa relação é que professor e aluno
parecem não concordar quanto aos objetivos da disciplina de LP. Qual o objetivo
de estudar LP? Passar no vestibular? Conseguir uma posição melhor no
mercado de trabalho? Desenvolver as capacidades comunicativas para um
melhor entendimento de mundo? Ainda existem professores que acreditam que
a função predominante do ensino de LP é prover que os alunos saibam tudo
sobre nossa língua, dos detalhes mais simples aos mais complexos –
conhecimento esse impossível em uma concepção de língua viva e variável. Ao
que parece, os objetivos nunca se encontram e por isso as estratégias
escolhidas pelo professor muitas vezes não atingem o aluno.
Outro desafio encontrado pelo professor é a sua formação ainda pautada
nas tradições coloniais do magistério. Enquanto aluno, falta ao professor
liberdade de considerar outros vieses de ensino além do tradicional e de romper
o purismo linguístico ainda presente nas universidades.
Ao falarmos da atuação desse profissional, também é necessário envolver
questões mais amplas sobre o magistério em si, como posto profissional e/ou
campo de estudo acadêmico, e sobre a experiência social dessa formação. A
falta de estímulo e reconhecimento da sociedade e as condições de trabalho
muitas vezes precárias, sem nem mesmo existir estrutura física para sua
atuação, ao longo do tempo tornam-se barreiras para uma prática pedagógica
adequada.
Para agravar mais essa situação, existe uma certa ingenuidade em se
acreditar que a transformação do ensino brasileiro se concentra na ação
pedagógica. Para uma real transformação e uma elevada qualidade de ensino
são necessários investimentos financeiros para melhoria de infraestrutura e dos
materiais de sala de aula, para promover ações sociais para a comunidade
escolar e para o aprimoramento constante dos professores.
A maioria das questões da realidade escolar que vimos nos temas
anteriores representam desafios para o professor e, infelizmente, não existe uma
fórmula mágica para superá-los. É nesse momento que a falta de experiência e
de orientação, especialmente dos novos professores, pode levá-los a acreditar
que o ensino nada mais é do que o “despejamento” de conteúdos em um estilo
“aprenda quem puder”. Uma verdade que cabe a qualquer professor é a

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importância de rever seus métodos com frequência, questionar-se quanto aos
seus conhecimentos e práticas de ensino.
Moacyr Scliar (1995), ao falar do ensino literário, cita duas possíveis
posturas que um professor pode ter: ser como um guardião da esfinge, aquele
que determina o conhecimento que será passado para seu aluno, ou ser seu
mediador emocional permitindo que as experiências e escolhas do aluno sejam
consideradas no processo de ensino. Claramente, Scliar referia-se às escolhas
literárias feitas por um professor, mas é possível levar essa reflexão às demais
áreas do conhecimento. Quando pautamos nossas escolhas apenas em nossas
experiências como professores, perdemos uma oportunidade de enriquecer o
aprendizado dos alunos, e o nosso mesmo: afinal, o professor sempre tem algo
a mais para aprender.

TEMA 5 – ENSINO DE LÍNGUA X ENSINO DE GRAMÁTICA

Primeiramente, cabe esclarecer que ao utilizarmos aqui o termo


“gramática” estamos nos referindo às regras da norma-padrão que se encontram
publicadas de forma prescritiva, com preferência às variedades mais
privilegiadas sem levar em consideração o uso real da língua, e não ao conjunto
de regras e processos de pensamento que regulam as estruturas da língua, a
gramática vista dentro dos estudos linguísticos.
Como mencionado na aula anterior, o estudo de gramática em sua forma
normativa foi o foco norteador da disciplina de LP por muito tempo. Essa
gramática não abarca toda a realidade de língua, já que contempla apenas os
usos privilegiados historicamente e socialmente. Nessa perspectiva, o ensino de
língua se focava em nomenclaturas e exercícios de repetição que visavam à
memorização das descrições e regras ali representadas. O único parâmetro de
avaliação era o seguimento dessas exatas regras e qualquer desvio da norma
seria considerado um erro.
Não estamos afirmando que o ensino das normas gramaticais não é
importante, mas é importante que fique claro a você, professor, que essas
normas não abrangem a realidade comunicativa da língua, por isso não são
suficientes para proporcionar o desenvolvimento linguístico dos alunos. Por
exemplo, a gramática normativa ainda apresenta o pronome vós como se
estivesse ainda sua época de glória, o coloca de igual para igual com os outros
pronomes pessoais; porém, como sabemos, esse pronome já está em processo

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de desuso e extinção, mantendo-se apenas em discursos religiosos ou poéticos.
Um outro exemplo é o fato de a gramática ainda apresentar e considerar a
colocação pronominal de mesóclise, que só persiste em discursos políticos e de
grupos elitizados, especialmente na escrita, pois na oralidade é cada vez mais
raro ouvirmos essa construção.
Pelos motivos descritos acima, fica claro que apenas as normas
gramaticais não podem representar o amplo universo linguístico. É nessa hora
que a linguística traz sua influência, ao considerar a língua em seu uso real, sem
se preocupar centralmente com erros e acertos, nem com julgamentos estéticos
ou morais, e traçar padrões e relações que vão além da gramática normativa.
Onde a gramática vê um erro, a linguística vê uma diferença que cabe ser
explorada. Onde a gramática exige memorização, dos tipos de oração
subordinada por exemplo, a linguística demanda um entendimento dos
processos e das relações entre palavras e frases.
Por essas questões, é importante que o professor, e a comunidade
escolar como um todo, vejam que a língua vai muito além de erros e acertos de
gramática e suas terminologias, e as mudanças linguísticas não se tratam de
erros e sim de processos de variação da língua que existe para a comunicação
humana e se adequa às suas necessidades, pois:

Cada língua é um retrato do mundo, tomado de um ponto de vista


diferente, e que revela algo não tanto sobre o próprio mundo, mas
sobre a mente do ser humano. Cada língua ilustra uma das infinitas
maneiras que o homem pode encontrar e entender a realidade. (Perini,
2002, p. 52).

Com essa visão de língua consolidada, o ensino passa a ter um escopo


mais amplo, possibilitando a compreensão das reais condições linguísticas da
população escolar brasileira.
Em nossa última aula, sobre o eixo Gramática e Aquisição Linguística,
veremos mais detalhadamente a importância de um trabalho de gramática a
favor do enriquecimento das relações linguísticas de sentido dentro do texto,
quais são os principais equívocos ao se trabalhar a gramática na escola e
algumas orientações para esse trabalho.
O professor, em sua função educativa, não assume posição nem de
gramático nem de linguista, ele é professor. É ele que sumariza, organiza e
navega em ambos os territórios para potencializar a experiência de uso de
linguagem, seja oral ou escrita, de seu aluno. Mas, dependendo de quais forem

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as maiores influências em sua formação, o professor pode mostrar-se mais
adepto da corrente linguística ou gramatical, no sentido normativo.
Sobre a disputa gramática x uso real da língua, objeto de estudo da
linguística, Antunes (2008, p.159), em tom poético, afirma que as áreas não são
uma rima, mas podem ser uma solução:

[…] A língua nem cabe na gramática. A gramática é menor, é mais


curta, é menos abrangente. Tem menos lições. Portanto, as duas não
rimam. […] Língua e gramática não rimam também quando se
confunde o estudo da nomenclatura com o estudo da gramática;
quando não se vai além da nomenclatura, para encontrar os sentidos
que transparecem nos usos reais, concretizados, efetivados. Usos
reais. Todos. Não apenas aqueles que são reconhecidos como “cultos”
ou prestigiados. […] Mas a língua e a gramática podem ser uma
solução: se damos à gramática a função que de fato ela tem; nem mais
nem menos; se reconhecemos seus limites; […] se aprendemos a
apreciar a recriação da língua cada vez que a gramática varia, cada
vez que ela se submete às condições de uso e se deixa levar pelos
propósitos de quem a usa; quer dizer, não deixamos que a gramática
assuma o comando absoluto de tudo e saia do seu lugar de adjuvante;
de companheira […] se não deixarmos que a gramática ofusque o
fascínio que a língua pode exercer sobre as pessoas.

FINALIZANDO

Nesta aula, refletimos um pouco melhor sobre o contexto em que se insere


o ensino de Língua Portuguesa na estrutura escolar, em sua influência no
exercício da cidadania, no papel do professor e no objeto de ensino (língua x
gramática) e suas ramificações no processo de aprendizagem. Com isso, já
podemos antecipar alguns pressupostos que a didática e avaliação em Língua
Portuguesa deve seguir: considerar a realidade social, cultural e linguística do
aluno em seu processo de aprendizagem; e buscar inserir situações de uso real
da língua, isto é, situações comunicativas próximas às experiências e temáticas
reais da vida dos alunos. Nas próximas aulas veremos como aplicar essa
didática em cada um dos eixos de trabalho com a LP em sala de aula: a
oralidade, a leitura, a escrita e a gramática e aquisição linguística.

Saiba mais

Para aprofundar seus conhecimentos sobre o assunto tratado nesta aula,


seguem sugestões de leitura complementar.
BAGNO, M. Preconceito Linguístico: o que é, como se faz. São Paulo: Loyola,
1999.
BARRETO, E. Pais interferem em escolas que abordam questão de gênero
nos livros e vetam conteúdo. Disponível em:
013
<https://oglobo.globo.com/sociedade/educacao/pais-interferem-em-escolas-
que-abordam-questao-de-genero-nos-livros-vetam-conteudo-21644988>.
Acesso em: 07 dez. 2022.
FREIRE, P; SHOR, I. Medo e ousadia: o cotidiano do professor. 10. ed. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1986. Cap II.
GUEDES, Paulo Coimbra. A língua Portuguesa e a cidadania. Rio grande do
Sul: Organon 25 – Revista do Instituto de Letras da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul – Vol. 25, Ano 11, 1997. Disponível em:
<http://www.seer.ufrgs.br/organon/article/viewFile/29352/18042>. Acesso em:
07 dez. 2022.

LUCCHESI, D. A diversidade e a desigualdade linguística no Brasil. Em:


BRASIL. Ministério da Educação. Um salto para o futuro - português: um nome
muitas línguas. Ano XVIII Boletim 08 - maio de 2008. Disponível em:
<https://www.scielo.br/j/edur/a/5yGzHgWcTbprNh3k9KRjFpy/?
format=pdf&lang=pt Acesso em: 07 dez. 2022.
POSSENTI, S. Linguistas na escola. Disponível em:
<https://cienciahoje.org.br/coluna/linguistas-na-escola/>, Acesso em: 07 dez.
2022.

RAUBER, A. L. A formação do professor de Língua Portuguesa: o diálogo entre


teoria e prática. In: MAGALHÃES, J. S. de; TRAVAGLIA, L. C. (Org.). Múltiplas
perpectivas em linguística. Uberlândia/MG: EDUFU, 2008. v. 1, p. 346-356.
Disponível em: <https://e-revista.unioeste.br/index.php/trama/article/
view/26732>. Acesso em: 07 dez. 2022.

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REFERÊNCIAS

ANTUNES, I. Muito Além da Gramática: por um ensino sem pedras no


caminho. São Paulo: Parábola Editorial, 2007.

BORTONI-RICARDO, S. M. Educação em língua materna: a sociolinguística


em sala de aula. São Paulo: Parábola, 2004.

PERINI, M.A. Sofrendo a gramática. São Paulo: 3. ed: Ática, 2002.

SCLIAR, M. A função educativa da leitura. In:. ABREU, M. (Org.). Leituras no


Brasil: antologia comemorativa pelo 10º COLE. Campinas, São Paulo: Mercado
das Letras, 1995.

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