Você está na página 1de 3

Númenos com Presas

29 – Crítica do Miserabilismo Transcendental

Crítica do Miserabilismo Transcendental

PDF

Há uma tendência crescente entre neomarxistas de finalmente enterrar todas as aspirações de


um economismo positivo (‘liberar as forças de produção das relações capitalistas de produção’) e
instalar um desespero cósmico sem limites em seu lugar. Quem ainda lembra da ameaça de
Khrushchov ao Ocidente semi-capitalista – “nós enterraremos vocês”? Ou a promessa de Mao de
que o Grande Salto Adiante asseguraria que a economia chinesa saltaria à frente da do Reino
Unido dentro de 15 anos? O espírito frankfurtiano agora domina: Admita que o capitalismo
superará seus concorrentes sob quase todas as circunstâncias imagináveis, ao mesmo tempo em
que se transforma essa admissão mesma em um novo tipo de maldição (“nós nunca quisemos
crescimento mesmo, ele significa apenas alienação, além disso, você não ouviu dizer que os ursos
polares estão se afogando…?”).

De La Voyage de Baudelaire, com sua descoberta lúgubre de que o vício humano se repetia de
maneira universal mesmo nas localizações mais exóticas, à leitura esquerdista de Philip K. Dick
como uma denúncia gnóstica da mudança comercializada, a variedade e a inovação capitalistas
foram totalizadas como diferença sem diferença essencial, apenas mais da mesma
dissimilaridade sem sentido. O grão-mestre deste movimento é Arthur Schopenhauer, que lhe
emprestou um rigor filosófico específico enquanto modo de apreensão transcendental. Já que o
tempo é a fonte de nossa aflição – a ‘Prisão de Ferro Negra’ de Philip K. Dick – como pode-se
esperar que qualquer tipo de evolução nos salve? Desta forma, o Miserabilismo Transcendental
se constitui como um modo inexpugnável de negação. Vai sem dizer que nenhum resíduo
substancial de historicismo marxiano resta na versão ‘comunista’ dessa postura. Na verdade,
com a economia e a história abandonadas de forma abrangente, tudo que sobrevive de Marx é
um pacote psicológico de ressentimentos e descontentamentos, redutíveis à palavra ‘capitalismo’
em seu emprego vago e negativo: como o nome para tudo que dói, insulta e desaponta.

Para o Miserabilista Transcendental, ‘Capitalismo’ é o sofrimento do desejo transformado em


ruína, o nome para tudo que poderia ser querido no tempo, uma tentação intolerável cuja
natureza última é desmascarada pelo visionário gnóstico como perda, decrepitude e morte e, em
verdade, não é desarrazoado que o capitalismo se torne objeto dessa difamação ressentida. Sem
apego a nada além de sua própria exuberância abismal, o capitalismo se identifica com o desejo
em um grau que não pode imaginavelmente ser excedido, desavergonhadamente solicitando
qualquer impulso que possa contribuir um incremento de pulsão economizável para suas
iniciativas produtivas, que continuamente se multiplicam. O que quer que você queira, o
capitalismo é a maneira mais confiável de conseguir e, ao absorver todas as fontes de dinamismo
social, o capitalismo torna o crescimento, a mudança e mesmo o tempo em si componentes
integrais de sua maré infinitamente crescente.

‘Busque crescimento’ agora significa ‘Busque (muito) o capitalismo’. É cada vez mais difícil
lembrar que esta equação teria outrora parecido controversa. Na esquerda, ela teria outrora sido
descartada como risível. Este é o novo mundo que o Miserabilismo Transcendental assombra
como um fantasma dispéptico.

Talvez sempre vá haver um anti-capitalismo em voga, mas todos sairão de moda, ao passo em
que o capitalismo – tornando-se cada vez mais fortemente identificado com sua própria auto-
superação – será sempre, inevitavelmente, a última coisa. ‘Meios’ e ‘relações’ de produção
simultaneamente se emulsificaram em redes competitivas descentralizadas sob o controle
numérico, tornando as esperanças paleomarxistas de se extrair um futuro pós-capitalista da
máquina do capitalismo manifestamente inimagináveis. As máquinas se sofisticaram para além
da possibilidade de utilidade socialista, encarnando a mecânica do mercado dentro de seus
interstícios nano-montados e evoluindo a si mesmas através de algoritmos semi-darwinianos que
embutem hiperconcorrência na ‘infraestrutura’. Não é mais apenas a sociedade, mas o tempo em
si mesmo que tomou a ‘estrada capitalista’.

Daí o silogismo do Miserabilista Transcendental: O tempo está do lado do capitalismo, o


capitalismo é tudo que me deixa triste, então o tempo deve ser malvado.

Os ursos polares estão se afogando e não há absolutamente nada que possamos fazer sobre isso.

O capitalismo ainda está acelerando, muito embora ele já tenha realizado novidades para além
de qualquer imaginar humano anterior. Afinal, o que é a imaginação humana? É uma coisa
relativamente reles, meramente um subproduto da atividade neural de uma espécie de primata
terrestre. O capitalismo, em contraste, não tem nenhum limite exterior, ele consumiu a vida e a
inteligência biológica para criar uma nova vida e um novo plano de inteligência, vasto para além
da antecipação humana. O Miserabilista Transcendental tem um direito inalienável de estar
entediado, claro. Chamar isso de novo? Ainda não é nada além de mudança.

Aquilo ao que o Miserabilismo Transcendental não tem qualquer direito é à pretensão de uma
tese positiva. O sonho marxista de dinamismo sem concorrência era meramente um sonho, um
velho sonho monoteísta reafirmado, o lobo deitado com o cordeiro. Se um sonho desses conta
como ‘imaginação’, então a imaginação não é mais do que um defeito da espécie: o embalar de
contradições de mau gosto como se fossem fantasias utópicas, a serem voltadas contra a
realidade a serviço da negatividade estéril. ‘Pós-capitalismo’ não tem nenhum significado real,
exceto um fim para o motor da mudança.

A vida continua, e o capitalismo faz a vida de uma maneira que nunca foi feita antes. Se isso não
conta como ‘novo’, então a palavra ‘novo’ foi reduzida a uma denúncia vazia. Ela precisa ser
realocada para a única coisa que sabe como usá-la de maneira efetiva, para a anomalização
regenerativa do destino, invocadora de Shoggoth, para o devir desembestado, de plasticidade
infinita tamanha que a natureza se deforma e dissolve ante a ele. Para A Coisa. Para O
Capitalismo. E se isso deixa os Miserabilistas Transcendentais infelizes, a simples verdade da
questão é: Qualquer coisa iria.
cyborg_nomade

reaching out to embrace the random

 October 6, 2017
Capítulos

aceleração, Capitalismo, concorrência, crítica, crescimento, Frankfurt, Marx, Marxismo,


Miserabilismo, mudança, Shoggoth, tempo, vida

One thought on “29 – Crítica do Miserabilismo


Transcendental”

1 Pingback

1. Desejo pós-capitalista – Futuro Cancelado | Mark Fisher em português

CREATE A FREE WEBSITE OR BLOG AT WORDPRESS.COM.

UP ↑

Você também pode gostar