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caderno

de textos
SUMÁRIO

BOLÍVARISMO E MARXISMO,

UM COMPROMISSO COM O IMPOSSÍVEL .................................................................................. 2


DUAS CONCEPÇÕES DE VIDA ........................................................................................................ 32

Tradução: João Gabriel Almeida


BOLÍVARISMO E
MARXISMO,
UM COMPROMISSO COM O
IMPOSSÍVEL
BOLÍVARISMO E MARXISMO,
UM COMPROMISSO COM O IMPOSSÍVEL

(Em defesa da utopia, como homenagem ao Comandante Manuel


Marulanda Vélez, o herói insurgente da Colômbia de Bolívar, no primeiro
aniversário de sua viagem para a eternidade).

Pelo Comandante Jesús Santrich


(Membro do Estado Maior da FARC-EP).

O impossível é o que temos que fazer, porque o possível se encargam outros


todos os dias!
BOLIVAR.

Continuaremos a lutar para construir para a Colômbia, um Estado justo que


avança para a igualdade social e não um que aprofunda o abismo entre ricos
e pobres, como o atual. Alcançar um sistema social de acordo com as
realidades do século XXI, que vincule nossas melhores tradições, valores e
riquezas, que mantenha viva a dignidade de nosso povo para a
autodeterminação e contra a interferência imperial, para a justiça, a
solidariedade latino-americana e a validade da ideologia bolivariana de
alcançar a maior felicidade possível para nossos povos.

Do Manifesto Político das FARC-EP. Nona Conferência Nacional de


Guerrilha. Montanhas da Colômbia, janeiro de 2007.

Utopia a nível da práxis

O fenômeno mundial do capitalismo, para ser superado de forma definitiva,


olhando para o horizonte da utopia comunista, terá que colidir com um
fenômeno de revolução socialista de alcance mundial que, como diria Lênin,
certamente quebrará a cadeia imperialista pelos elos mais fracos. Em qualquer
caso, a partir da realidade, de nossa própria história e circunstâncias, o
marxismo tem que se alimentar, sempre buscando em cada canto do tempo e
do espaço visualizar a marcha da sociedade, influenciando-a, transformando-a,
sem esperar que as condições caiam dos céus.
A utopia é a essência dos marxistas, assim como é a essência da busca seletiva
por "estruturas significativas", o resgate para a ciência social e para a prática
revolucionária do vigor da visão do todo, no trânsito de seu imponderável destino de
constante renovação; como método e guia de ação, sua busca terá que investigar no
fenômeno, na lógica de seu movimento, entendendo que nenhuma categoria, mesmo
nenhuma lei de desenvolvimento social, é evidente por si mesma; nenhuma verdade de
qualquer categoria está propriamente na cabeça de cada homem, por mais brilhante
que seja, mas nas profundezas, na superficialidade e nas externalizações do fenômeno
como um todo, olhando para ele dialeticamente; ou seja, com o exame das relações
humanas, por exemplo, na sociedade como um todo que evolui no ritmo das
contradições.
Os marxistas devem ter na utopia um componente essencial da consciência,
impulsionando a ação das massas, com a convicção de que um movimento
revolucionário, onde quer que nasça, não pode ser chamado de tal, se lhe faltar aquele
componente que se traduz no esforço imbatível em direção à mudança que se mostra
"impossível".
Mas é a partir da base da realidade que a utopia, o dever de ser da humanidade, o
mundo que desejaríamos como outro mundo possível, deve continuar a voar; ou seja,
parafraseando Bolívar, a busca do "impossível" enquanto o possível se encargam outros
todos os dias.
Para tornar o "impossível" possível para sempre, sem nunca fingir que a história deve
parar..., sem nunca fingir que haveria um fim perfeito insuperável..., porque o homem
deve estar infinitamente em busca de novos e melhores horizontes terrestres.
No compromisso com o "impossível" está, precisamente, um dos valores fundamentais
do Bolívar como sujeito revolucionário antes do marxismo, e do bolívarismo como o
compêndio atual de sua ideologia. A essência da escritura bolivariana é a persistência na
guerra total, contra os opressores espanhóis e contra os opressores em geral. Em sua
conduta de emancipação, física e intelectual, teórica e praticamente, Bolívar não foi
apenas um lutador pela autonomia política, como o foram muitos de seus
contemporâneos; foi também um campeão da revolução continental e um gerador de
ideologias que agora mais do que nunca são postulados necessários, não realizados; mas
como necessários, então, são postulados a serem realizados infalivelmente; isto é, utopia:
a realização da Pátria Grande, a realização da República hemisférica, a realização do
equilíbrio do universo, etc.
Pai de nossa nacionalidade colombiana, o revolucionário Bolívar, o insurgente e
visionário Bolívar, buscou a destruição de todo o colonialismo, alertando para além do
que era realmente possível em seu tempo, as possibilidades do "impossível" para a
construção de uma sociedade global em condições de igualdade, justiça e verdadeira
democracia. Nesta perspectiva, ele também nos advertiu sobre o perigo do imperialismo
ianque.
Consciente do processo histórico no qual ele participava, ao mesmo tempo que
consciente da necessidade de agir com determinação transformadora, sem
voluntarismo, analisava Bolívar, à medida que foi avançando, as condições concretas e as
possibilidades imediatas que poderiam alcançar a materialidade em tais circunstâncias,

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sempre levando em conta que era o povo o verdadeiro protagonista da história e ele,
Bolívar, apenas uma "palha fraca" arrancada pelo furacão revolucionário. Com uma visão
continental, mesmo universal, sem estar confinado aos limites de cada pequena
"pequena república", para o Libertador, enquanto os espanhóis pudessem continuar a
oprimir qualquer povo do continente, o trabalho de sua ideologia estaria inacabado; e
esse é o significado de sua colombianidade.
A dimensão de seu sonho colombiano foi muito além do propósito de ir para a Europa
para desmantelar os ladrões que subordinavam o universo. A utopia do Libertador,
finalmente, como qualquer utopia verdadeira, no nível da práxis, o "impossível" é
colocado a partir da base real das circunstâncias.

Marxismo, bolivarianismo e utopia.

Declarar-se bolivariano e, consequentemente, declarar-se revolucionário dentro do


caminho do marxismo implica passar pela vida movido pela esperança de transformar a
sociedade em busca de justiça; esta é uma constante que implica infalivelmente a utopia
como característica da consciência, fruto natural da convicção racional.
Nisto, a utopia é um objetivo superior de compromisso, em qualquer caso relativo em
termos da aparência tal como se apresenta, seja como uma possibilidade ou uma
"impossibilidade" de acordo com as dificuldades extremas que ela coloca; ou relativo
também em termos de finalidade, levando em consideração que sua concretização
histórica é, como a própria história, algo cujo desdobramento não termina.
Na busca esperançosa da realização do "impossível", a marcha implica uma mistura de
ilusões, realismo, magia e amor pelo povo, como a razão de ser da vida. No final, a utopia
compõe amor, sonhos, admiração, enraizamento da história, visão de futuro, experiência
de todas as etapas do tempo e do espaço em plenitude como uma necessidade, dever e
anseio humanizador, cujo interesse essencial é a preservação do homem e da natureza
em equilíbrio absoluto, implantando o potencial da fé, da memória das raízes, da
dignidade e de nossa identidade como fatores vitais para a existência.
No caminho da utopia, a marcha do revolucionário descarta a resignação diante da
opressão, e o compromisso com os pobres da terra é assumido incondicionalmente, de
forma perseverante e criativa.
Digamos, então, que a concepção marxista-bolivariana de um revolucionário implica que
em sua consciência ele abriga uma ideologia na qual a imagem de uma realidade ainda
não realizada, possível ou talvez incerta, é apresentada como um objetivo com a
convicção absoluta de assumir sua realização por mais "impossível" que pareça, porque,
como na expressão supostamente imprudente do Libertador, é o que devemos fazer
"porque o possível se encargam outros todos os dias".

Esta é a convicção do Bolívar que embarca, por exemplo, na missão implausível, para a
maioria, de escalar os cabelos brancos dos Andes para libertar a Nova Granada; e é a
convicção do Marx que apoia a Comuna de Paris..., com a certeza de que o dever de todo

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revolucionário é "tomar o céu de assalto", de acordo com o imperativo de sua
consciência ética que o impele a se libertar da opressão, valorizando todos os valores da
experiência humana, que são imanentes à história.

O autor do Manifesto Comunista, quando, em nome do fim altruísta, defende a


possibilidade de arriscar na luta para enfrentar o talvez absurdo - que contradição
razoável! - ou o talvez irrealizável, que se tem em mente, executando a ação que tem que
passar no teste do fogo contra o compromisso histórico que as circunstâncias
representam, mesmo correndo o risco de morte, está esclarecendo uma concepção de
vida que tem sua própria ética ligada à dialética da realidade em que se move, mas
sempre olhando para o futuro. Ali, com níveis mais elevados de altruísmo generoso, o
curso do desenvolvimento histórico é assumido com a determinação inabalável de
enfrentar todos os obstáculos impostos pela exploração do homem pelo homem.

Trata-se da possibilidade questionada de interagir com o ideal; o ideal querendo ser


fundado como realidade; e o todo irrompendo, no final, como "utopia realista", segundo
os padrões do revolucionário, mas acontece que, como nos franceses de maio de 68, o
realismo também é mágico, porque se trata de ir além do que parece evidentemente
viável, comprometendo todas as potencialidades humanas: "sejamos realistas, façamos
o impossível", foi o slogan generalizado que resumiu a determinação de mudança
daquele ardente corpo estudantil levantado na França contra a injusta ordem
estabelecida.

Esta definição de compromisso com o "impossível", que marca o compromisso final da


utopia, delineia uma concepção, revolucionária é claro, na qual a visão da possibilidade,
mesmo no plano do improvável, é visualizada como conseqüência de convicções
relativas à finalidade, e como derivada de sentimentos e razões que contêm riscos além
mesmo do estritamente racional.

O "pequeno exército maluco" costumava chamar a isso Augusto Cesar Sandino, o


"general dos homens livres", sua guerrilha, que enfrentou corajosamente os fuzileiros
ianques que invadiram sua pátria, e isto porque sua busca por verdades no intrincado
caminho de sua luta anti-imperialista e emancipatória, tomou não apenas os cursos
indicados apenas pelo planejamento meticuloso, mas aqueles indicados pela audácia e
heroísmo; audácia e coragem, onde a espiritualidade do homem é guiada pela fé, além
do conhecimento factual das circunstâncias. E aqui estão então as "razões" da utopia,
"fazer o impossível porque o possível se encargam outros todos os dias", "ser realista
fazendo o impossível", "tomar o céu pela tempestade".

Nesta concepção, ser marxista e bolivariano está, por que não, no plano do realismo
mágico de nosso mundo, que supera o mero racionalismo com todo o simbolismo,
imaginação e criatividade fundado na primorosa tradição raiz ameríndia e no

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sincretismo de nossos povos mestiços e oprimidos, em proposta que antecipa o
estabelecimento da justiça social; isto é, a realização do ideal em benefício da
humanidade.

Utopia: transcendência e meios para sua realização.

Entre os mais preponderantes da condição superior e mais humanizadora de Bolívar e


Marx, está sua ação revolucionária, como inesgotável, porque é inspirada por uma fonte
também contínua de criação; sua imaginação sem cadeias concebendo a ideologia, o
dever de estar em função do coletivo humano transcendendo para a glória, no sentido
da satisfação pelo cumprimento do dever e mais, porque ao mesmo tempo age
projetando a visão de um propósito ....do que tem que ser, além do que é agora;
visualização do mais alto estágio social no qual a virtude é a característica comum da
humanidade.

Na prática, o pensamento e a ação desses revolucionários podem desconsiderar até


mesmo qualquer incongruência aparente ou preponderante entre o propósito e os
meios para sua realização: o "impossível". E aí reside a verdadeira dimensão do
revolucionário.

Na utopia, então, a possibilidade de mudança é anunciada, dando esperança, mesmo


que o caminho para sua realização não esteja definido, como aconteceu com a utopia de
Mariátegui que, mesmo que não tivesse projetos totalmente específicos, sobre a forma, o
procedimento para concretizar a proposta, isto não tira sua grande dimensão
inspiradora, que não pode ser desqualificada com a apreciação de que é um excesso de
intelectualismo ou falta de ação efetiva. No sentido, certamente, de que nenhuma
revolução poderia prever a revolução que virá depois dela.

De resto, o lógico é que nenhum verdadeiro marxismo rejeitaria ou abandonaria, por não
ter clareza específica ou certeza absoluta do que, efetivamente, tem que ser o projeto de
emancipação; e também não abandonaria as tentativas de totalizar uma explicação do
capitalismo e da luta de classes para enfrentá-los, e muito menos a utopia como
proposta para a criação de um mundo humanamente humano, humanizado então em
sua perspectiva de luta.

A utopia bolivariana.

Sobre a utopia bolivariana, poderíamos dizer, sem entrar nos detalhes de seu conteúdo,
nos detalhes dos elementos da ideologia, que quando propõe a transformação

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libertadora, talvez ainda não esboça uma ordem social sem dominação, ainda não
propõe essa ordem social no sentido pleno do socialismo, mas propõe, sem dúvida, em
termos de estabelecer fortes bases de justiça, enfrentando um dos sistemas mais
perversos e desumanos de exploração colonialista que havia sido sustentado durante
séculos, no ponto do chicote e da infame segregação, sobre os ombros lacerados da
servidão indígena e da escravidão dos negros africanos e afro-descendentes.

A ideologia bolivariana visava a construção de uma nova sociedade sem a opressão e a


crueldade desse sistema, que mesmo o liberalismo mais "avançado" da época
considerava natural e necessário, como se vê, por exemplo, nos postulados da
Constituição da Filadélfia, onde a defesa do "direito sagrado à propriedade" incluía a
posse e a dominação dos homens na escravidão. A isso o Libertador objetou: "Um
homem de propriedade de outro! Um homem de propriedade! Não poderia ser
concebido um princípio de posse sobre a mais feroz delinquência sem a perturbação do
elementos de direito e sem a mais absoluta perversão das noções de dever". (BOLÍVAR:
Discurso ao Congresso Constituinte da Bolívia". 25 de maio de 1826).

Propriedade humana, escravidão, racismo, individualismo..., utilitarismo..., eram aspectos


nodais do liberalismo "avançado" americano que na mesma linha se opunha à
independência indo-americana; mas diante de sua iminência, já havia colocado seus
enclaves reacionários no seio do movimento independentista, bem exemplificados pelos
consumados sátrapas antibolivarianos como Francisco de Paula Santander Omaña.

Bem Simón Rodríguez escreveu com sarcasmo: "Os anglo-americanos deixaram, em


seu novo prédio, um pedaço do antigo - sem dúvida para contrastar - sem dúvida para
apresentar a raridade de um HOMEM mostrando com uma mão, aos REIS a tampa de
LIBERTY, e com a outra mão levantando um GARROTE sobre um negro, que está
ajoelhado a seus pés" (RODRIGUEZ, Simón: "Obras Completas". Caracas, Venezuela,
1975. T.I, p. 342).

Consequentemente, ao falar dos modelos de sociedade a serem construídos, ele


apontou: "... Onde devemos ir para procurar modelos? A América espanhola é original. E
originais eles devem ser: suas instituições e seu governo. E os meios para fundar um ou
outro devem ser originais". (Idem. T.I, p. 343.Ibidem).

Bolívar concorda plenamente com esta abordagem ao falar do "Espírito das Leis",
adverte no Congresso de Angostura: "...Devo dizer que nem remotamente entrou em
minha idéia assimilar a situação e a natureza de dois estados tão diferentes como o
inglês americano e o espanhol americano (...) O "Espírito das Leis" não diz que estas
devem ser próprias das pessoas que as fazem? Que é um acidente que as leis de uma
nação possam servir a outra? E que as leis devem ser relativas à fisicalidade do país, ao
clima, à qualidade do solo, na medida, ao modo de vida das pessoas? Referir-se ao grau

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de liberdade que a Constituição pode sofrer, à religião dos habitantes, às suas
inclinações, à sua riqueza, ao seu número, ao seu comércio, aos seus costumes, às suas
maneiras... Aqui está o código que devemos consultar, não o de Washington!"
(BOLÍVAR, Simón: Discurso perante o Congresso de Angostura, 15 de fevereiro de 1819).

No mesmo sentido, o Libertador acrescentou que o "código de Washington" não é


democracia, porque não podemos conceber a democracia sem liberdade: "Você sabe
que não pode ser livre e escravo ao mesmo tempo, exceto violando ao mesmo tempo as
leis naturais, as leis políticas e as leis civis" (Ibidem).

Em resumo, a abolição da servidão indígena e da escravidão foi o principal aspecto do


projeto social de justiça e igualdade promulgado por Bolívar. Em 1816, uma época de
total incerteza sobre o destino da luta de emancipação..., uma época em que as
adversidades eram uma constante e não muito distante, em seus escritos há um traço
claro desta concepção que, é claro, já estava aninhada muito antes: "Considerando que a
justiça, a política e a pátria reivindicam imperiosamente os direitos indispensáveis da
natureza, cheguei a decretar, como decreto, a liberdade absoluta dos escravos que
gemeram sob o jugo espanhol nos últimos três séculos" ( BOLÍVAR, Simón: Proclamação
aos habitantes do Rio Caribe, Carúpano e Cariaco. 2 de junho).

Com maior determinação, o Libertador agora com esta resolução, alimentado com
conteúdos sociais verdadeiramente revolucionários, muito profundos, sua luta
emancipatória, visou destruir as principais instituições econômicas do sistema colonial
ibérico. Logo depois desta iniciativa de sua luta guerrilheira no Oriente ele a proporia
como princípio constitucional em seu memorável discurso perante o Congresso da
Angostura: "Natureza, justiça e política erguem a emancipação dos escravos (...)
Abandono à sua soberania a emancipação dos escravos (...).Abandono à sua decisão
soberana a reforma ou revogação de todos os meus estatutos e decretos, mas imploro
a confirmação da liberdade absoluta dos escravos, como imploraria minha vida e a
vida da República" (BOLÍVAR, Simón: Discurso perante o Congresso de Angostura, 15 de
fevereiro de 1819).

Com respeito ao povo indígena, especificamente, seu projeto social também continha
uma demanda absoluta pelo reconhecimento da igualdade. O Libertador tinha
denunciado veementemente, por exemplo, o destino do extermínio imposto pelos
colonialistas: "No México", disse ele, "mais de um milhão de seus habitantes pereceram
nas cidades pacíficas, nos campos e na forca" (BOLÍVAR, Simón: Carta ao editor de "The
Royal Gazette" Kingston, Jamaica, 18 de agosto de 1815).

Anos mais tarde, e em coerência com uma posição febrilmente dedicada à emancipação
dos povos nativos, ele insistiu em denunciar a situação deplorável dos povos indígenas,
mas tomando medidas governamentais e exortando ao seu cumprimento: "Os pobres

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povos indígenas," disse ele, "estão num estado verdadeiramente deplorável de
desânimo". Pretendo fazê-los o melhor possível: primeiro, para o bem da humanidade, e
segundo, porque eles têm direito a isso, e finalmente, porque fazer o bem não custa
nada e vale muito" (BOLÍVAR, S.: Carta a Santander, Cuzco, Peru, 28 de junho de 1825).

Esta concepção valeu ao Libertador que do "iluminado" liberalismo Neo-Granadino ele


foi descrito, como Francisco Soto, como um "monstro da espécie humana" que marcha
diante dos "descamisados" para realizar "uma revolução contra os proprietários" ( RUIZ
VIVAS, Guillermo: "Bolívar más allá del mito". T. I. P. 442).

Em sua luta pela igualdade social, as opiniões e resoluções práticas em favor dos índios,
exaltando e vindicando sua cultura, sua história e todos os seus valores, foram
abundantes, mas talvez a determinação de compensá-los com o retorno de suas terras
tenha sido uma das medidas mais importantes. Infelizmente, tudo não dependia de sua
vontade, e logo seus oponentes políticos destruíram sua construção.

Vale notar que no projeto de Bolívar e em sua práxis, sua atenção não se concentra
apenas na vindicação dos escravos negros e dos povos indígenas, ou de qualquer grupo
étnico em particular, pois embora haja uma preocupação especial com estes setores que
foram os mais humilhados, é a integração racial, todo o que ele chamou de "verdadeiro
macrocosmo da raça humana", a profundidade de sua concepção, como evidenciado
em Angostura quando ele afirma que "através das veias de nosso povo corre todo o
sangue da terra, vamos misturá-lo para uni-lo" (Simón Bolívar: Discurso perante o
Congresso de Angostura, 15 de fevereiro de 1819.).

No núcleo duro de sua ideologia está presente a rejeição de toda segregação racial, e
toda discriminação com base na classe. Ou como ele o expressou, como um desejo
franco e não como uma certa concretização, já em 1812 quando empreendeu a
reconstrução emancipatória da falida primeira República, durante a Campanha da Baixa
Madalena (primeira etapa da Admirável Campanha), em Tenerife: "Somos membros de
uma sociedade cujas bases constitutivas são uma absoluta igualdade de direitos e
uma regra de justiça, que nunca está inclinada ao nascimento ou à fortuna, mas
sempre em favor da virtude e do mérito" ( BOLÍVAR, S.Discurso em Tenerife. 24 de
dezembro de 1812).

Ou seja, a mesma convicção que ele reiteraria em 1817, em outra tentativa de


reconstrução republicana, e que doravante manteria como parte inamovível de seu
projeto social, de sua ideologia...: "Nossas armas não quebraram as correntes dos
escravos? A odiosa diferença de classes e cores não foi abolida para sempre?"
(BOLÍVAR, S.: Proclamação ao Exército Libertador. Angostura, 17 de outubro de 1817).

Atingir este propósito emancipador era parte essencial de sua utopia, e não se pretendia

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que fosse o auge dela, mas seu salto para um nível superior de conquista libertadora
com a quebra das correntes que ligavam a consciência e a realização da unidade latino-
caribenha em termos do equilíbrio do universo; ou seja, sua idéia particular da mirandina
Colombeia.

Utopia e mudança de época.

Aqui nos é apresentada, então, a questão do "fim da utopia" no sentido da conquista do


propósito altruísta; ou sua culminação como produto da morte da esperança; ou
também a de sua conclusão no sentido de Marcuse; ou seja, em termos das condições
para o propósito que se pretendia altruísta para ter as condições objetivas e subjetivas a
serem entendidas como absolutamente viáveis.

Esta circunstância, que em um ou outro caso implica um movimento epocal, uma


mudança nas características do momento vivido, um "novo período", uma transição ou
uma mudança abrupta em relação a uma circunstância histórica anterior, pode ser
assumida em termos de ruptura ou renovação, no sentido de rejeição total do velho para
substituí-lo pelo novo, ou em termos de mudança radical que, embora implique
descartar o velho, não o envolve como um absoluto, mas recorrer ao resgate do mais rico
do passado como experiência, como tradição valiosa, para a qual devemos sempre olhar
a fim de encarar o futuro com otimismo.

No revolucionário, o tempo passado não deve desaparecer de sua visão criativa, pois é o
recinto da experiência que deve ser acumulado para fazer novas construções, sendo a
falácia a da simples troca do "velho pelo novo" para chegar a conclusões absurdas como
a de que a Modernidade, por exemplo, não pode pedir a outras épocas as diretrizes pelas
quais deve se orientar, mas que depende absolutamente de si mesma..., ou que deve
extrair de si mesma seus elementos normativos.

O passado não pode ser desvalorizado simplesmente porque é tal, pois enquanto as
construções sociais tiverem um significado histórico, nele estão também os princípios

Em resumo, na medida em que a história é uma visão do movimento da humanidade


em todas as dimensões temporo-espaciais, como um todo, no revolucionário a
experiência do passado está inelutavelmente ligada à projeção de novos objetivos
futuros; ou seja, que a história e a utopia caminham juntas e inter-relacionadas uma com
a outra; ou se quiserem, fazendo um e o mesmo todo.

Poderíamos dizer sem medo de equívocos que não há espírito revolucionário que não
deva ser tocado pela magia da consciência histórica, pelo sentido de seu conhecimento
como uma necessidade que inclui "o velho", ao mesmo tempo que o fervor da utopia, em

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uma associação que busca um equilíbrio entre um e outro nesse caminho que
chamamos de esperança.

Utopia, "realismo" e história.

Geralmente se conclui que o marxismo tem criticado a "utopia", sobretudo ao referir-se


ao "socialismo utópico", ao qual coloca em oposição o "socialismo científico", opondo-se
à forma do primeiro de colocar um futuro melhor apenas em abstrato; e talvez nesse
sentido, especialmente em termos de entender que "utopia" é o sonho irrealizável, a
quimera inalcançável, ser "utópico" torna-se o estigma da pura ficção, ilusões de seus
mentores e seguidores porque o que eles fizeram foi simplesmente imaginar paraísos,
belos mundos anti-mundos, mas sem propor como fazer uma alternativa. Utopia" é uma
ocorrência vã, pode-se dizer, para o chefe de um "realista", "materialista dialético-
histórico", que olha para "a análise concreta da situação concreta"; uma idéia
insubstancial, para quem a possibilidade vital por si só não é suficiente, pois é necessário
definir meios e métodos para desempenhar o papel transformador indicado pela
"filosofia marxista", para a qual a crítica não é suficiente, poderíamos acrescentar, mas o
desenho claro da alternativa possível.
E o "impossível então"?

Vale especificar que, no sentido bolivariano, a construção não é fantasiosa; é feita sobre
bases de concreto, mas não só, mas também com o impulso da projeção futura que,
quando entrelaça utopia e história, lhe dá dimensões incessantes, não de um fim em
uma meta, mas de continuação para cada vez novos horizontes superiores.
Acrescentemos que não é o caso de definir agora se Robert Owen, Saint-Simon, Fourier
ou Proudhon ao dizer que são socialistas utópicos são desqualificados pelo marxismo, ou
se é simplesmente uma forma de dizer que o revolucionário não deve permanecer
apenas no utópico como um exercício de fantasia; ou seja, na construção sem
determinação de concretização. O que é claro, mas parece ser esquecido por aqueles
que enfatizam no suposto "realismo científico" e na "cientificidade" de um
"materialismo" frequentemente desfigurado, é que o chamado socialismo utópico tem
sido e continuará a ser uma fonte insubstituível de marxismo; o socialismo utópico é,
então, uma fonte fundamental também das convicções que alimentam o bolivarianismo
de hoje, no qual, como no marxismo, o utopismo não pode ter um significado fora da
ação e conseqüência com o que se pensa.
Nos termos de Guevara, o revolucionário deve realmente ser "um homem que age como
pensa". Assim como Bolívar foi, mesmo na busca do "impossível" ou o que parece ser o
caso. De tal forma que a utopia é, portanto, uma proposta alternativa de vida, possível ou,
porque não, "impossível" em um determinado momento, mas um fator, em qualquer
caso, que mantém a perspectiva de realização constante de novas etapas de
desenvolvimento social humanizante.
Como na história, então, a utopia que é o marco de seu desenvolvimento, também na

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busca do que parece "impossível", mantém a condição de incessância e,
conseqüentemente, é um fator que não é consumido como energia de mudança.

Bolívarismo e marxismo: utopia como visão de futuro.

Em Bolívar, antes de tudo, como em Marx, a visão do futuro estava presente como uma
constante; como uma perspectiva da história que não está prevista para ser consumida
na época que se vive, mas que eleva a ação para uma perspectiva que vai sempre além,
transcendendo, mesmo que as circunstâncias pareçam adversas para sua realização a
longo prazo. E não é que Bolívar ou Marx também não tivessem traçado horizontes
imediatos; sim, mas como etapas a serem esgotadas no caminho a seguir em busca de
horizontes futuros nos quais eles previam sociedades férteis erguidas no terreno da
igualdade e da democracia. Por exemplo, no caso do Libertador, o de uma grande pátria
continental com projeção ecumênica, não para subjugar, mas para liberar: "Voando
através dos próximos tempos, minha imaginação está fixada nos séculos futuros, e
observando dali, com admiração e espanto, a prosperidade, o esplendor, a vida que
esta vasta região recebeu, sinto-me arrebatado e me parece que já a vejo no coração
do universo, estendendo-se por suas costas dilatadas, entre aqueles oceanos que a
natureza havia separado, e que nossa Pátria se reúne com canais prolongados e
amplos. Já a vejo servindo como um vínculo, um centro, um empório, à família humana;
já a vejo enviando a todos os recantos da terra os tesouros que suas montanhas de
prata e ouro abrigam; já a vejo distribuindo através de suas plantas divinas saúde e
vida aos homens sofredores do universo antigo; já a vejo comunicando seus preciosos
segredos aos sábios que ignoram quão superior é a soma das luzes, à soma das
riquezas, que a natureza lavrou sobre ela. Já a vejo sentada no Trono da Liberdade,
empunhando o cetro da Justiça, coroada pela Glória, mostrando ao mundo antigo a
majestade do mundo moderno", (BOLÍVAR, Simón.
Discurso perante o Congresso de Angostura).

Em Bolívar como em Marx, não há pessimismo no futuro, talvez possa haver em seu
próprio presente desapontamento e contratempos produto da inconcreção do imediato,
mas não para o futuro.
Este é, talvez, um dos mais ricos legados dos revolucionários: os elementos para
entender que, diante do perigo em que o imperialismo colocou a própria existência do
planeta, delineando um desenvolvimentismo de catástrofe, incerteza e silêncio, não
servem de nada, pois diante dos grandes desafios, é necessário as grandes
determinações, a tripla audácia, a ação que supera o determinismo vindicando o papel
da subjetividade, da paixão, da audácia, da imprudência e da fé na iniciativa das massas,
mesmo diante da iminente "derrota"; porque isto, mesmo que aconteça, no verdadeiro
revolucionário não se transforma em derrota como capitulação para a domesticação,
submissão e arrependimento do propósito, que é o que a classe inimiga tenta fazer,
mostrando a queda de muitos projetos "socialistas" ou aqueles que fingiram ser, para

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semear o pessimismo no coração da esquerda, como efetivamente conseguiram em
muitos setores outrora revolucionários, e especialmente dentro da chamada
intelligentsia "progressista". Eles colocaram estes elementos para desempenhar seu
nojento papel de apóstolos, teorizando sobre a idéia enganosa de que estamos diante de
um universo radicalmente diferente daquele de algumas décadas atrás, no sentido de
que isto implica, então, novas coordenadas para a ação, novas formas de pensamento;
isto é, o abandono das formas de pensamento e ação política próprias da "era moderna",
já que estamos na "pós-modernidade". Portanto, despedimo-nos do marxismo e daquela
"quimera" que é o socialismo; e na mesma linha, "com maior razão", despedimo-nos
daquele pensamento "ultrapassado" que se resume no bolivarianismo e seu ideal de
Pátria Grande.
Na esfera da consciência revolucionária, isto é impensável. Se somos verdadeiros
marxistas e bolivarianos, mesmo nas piores circunstâncias, nossa utopia do socialismo e
da Pátria Grande, deve denotar a maior força moral, inquebrável como a moral de
Bolívar de 1812, que derrotado em Puerto Cabello ressurge na Admirável Campanha...,
como o Bolívar após cada um dos fracassos em sua luta para expulsar o império
espanhol de Nossa América, que de cada adversidade emerge "como o sol, brotando
raios por toda parte".
Recordemos Bolívar, apenas para ilustrar a sublime moral que diz respeito à utopia
revolucionária diante dos reveses, quando num momento extremamente difícil em que
no Peru a contra-revolução ganhava força porque Torre Tagle e Riva Agüero, com o total
apoio da oligarquia, haviam traído a causa da independência, passando com homens e
armas, ao exército espanhol, então quase morrendo em Pativilca, quase morrendo no
extremo de sua fé na vitória. O próprio Sucre, o herói de Ayacucho, que o Libertador
considerou o mais valioso de seus oficiais, aconselhou nessas circunstâncias
desfavoráveis a "evacuar o Peru" a fim de "conservar (Colômbia) a parte mais preciosa
de nossos sacrifícios". Entretanto, a descrição de Joaquín Mosquera de seu encontro com
o Libertador deixa claro porque Pablo Morillo, o "pacificador" espanhol, disse que Bolívar
"é mais um perigo derrotado do que um vencedor", ou que "Bolívar é a revolução".
Mosquera diz que enquanto estava em uma missão diplomática no Chile, encontrou
Bolívar em Pativilca e o encontrou em condições deploráveis; "... tão magro e exausto (...)
sentado em uma pobre sela (...) em uma pobre cadeira de vaqueiro".) sentado em uma
pobre cadeira de couro de vaca, encostado à parede de um pequeno pomar, sua
cabeça amarrada com um lenço branco e suas calças de jean, que mostravam seus
joelhos pontiagudos, suas pernas sem carne, sua voz oca e fraca, seu semblante
cadavérico (...) e com seu coração oprimido (...)". Mosquera, vendo-o naquela situação
lamentável, perguntou-lhe: "E o que você vai fazer agora? Bolívar, então, "seus olhos
ocos se exaltam, e com um tom determinado, ele me respondeu: 'Triunfo! (LIÉVANO
AGUIRRE, Indalecio: "Bolívar". Caracas, 1974, p. 323).

Foi sob essas mesmas circunstâncias terríveis que ele também expressou: "meu slogan é
morrer ou triunfar no Peru" (Idem., p. 327).

14
E a primeira não aconteceu: em 1825 o exército do Libertador, com sua infantaria,
cavalaria, artilharia e marinha, foi a primeira potência militar na América.

No caso de Marx e do marxismo, o significado da utopia pode ser observado na


vindicação de Marx em relação à situação concreta vivida pelos trabalhadores parisienses
em 1870, ou na reflexão que Lenin concebeu em relação à situação dos revolucionários
russos em 1905.
No primeiro caso, Marx toma o exemplo da Comuna de Paris para fazer abordagens
fundamentais que o levam até mesmo a pontos de vista diferentes expressos no
Manifesto Comunista. A revolta de 1871, alcançou enorme admiração em vários aspectos,
tais como "a destruição do Estado parasitário", provocando também a assunção da
essência do Programa e dos objetivos dos revolucionários parisienses.
E no segundo caso, a justificação da utopia é percebida nas críticas de Lenin a Plekhanov
por seus sermões e brigas contra aqueles que ousaram fazer a revolta: "eles não
deveriam ter pegado em armas", disseram eles. Mas num argumento justo para
resgatar o papel da subjetividade, do romantismo se quiser..., e contra o "materialismo"
mal compreendido ou mal assumido, que desqualifica aqueles que arriscaram tudo pela
opção da dignidade, Lênin pondera os revolucionários de 1905 resgatando a posição de
Marx em relação à admiração que ele tinha pela tentativa dos comunas parisienses de
"tomar o céu de assalto". Como Marx, Lenin também toma partido da Comuna de Paris
apesar de seu "fracasso" e assume a "derrota" da revolta de 1905 em sua dimensão
positivamente exemplificadora.
Nos casos mencionados, como quando Che de la Higuera, na frente de seus captores, diz
que mesmo isso, sua "derrota", pode ser o fator que abala a consciência do povo
boliviano, o que vemos é o exemplo que a ação altruísta do homem pode cimentar em
favor da conquista de um futuro melhor.
Em relação à Comuna de Paris, Marx havia escrito que: "Os canalhas burgueses de
Versalhes colocaram os parisienses diante da alternativa de cessar a luta ou sucumbir
sem lutar. Neste último caso, a desmoralização da classe trabalhadora teria sido uma
desgraça enormemente maior do que a queda de qualquer número de 'patrões'".

Estas palavras são uma reafirmação da absoluta confiança no impulso que pode ser o
exemplo dos revolucionários: "Tomar o céu de assalto", pelo menos para tentar, em uma
ruptura com qualquer ortodoxia estéril, contra qualquer "objetivismo" inútil. Em suma,
"ser realista, fazendo o impossível", como na determinação de escalar os Andes e contra
todas as probabilidades de triunfar; ou seja, "fazer o impossível porque o possível se
encargam outros todos os dias".

A negação da utopia.

A quem convém negar a utopia, a quem convém cortar os sonhos e as energias de lutar

15
por uma sociedade sem exploradores e explorados, com dignidade, justiça e felicidade,
quando o que o destino da humanidade exige, devido ao perigo iminente de
sobrevivência imposto pelo imperialismo, seu fortalecimento, hoje mais do que nunca?

Negar a utopia é negar a possibilidade criativa do ser humano e, acima de tudo, a


possibilidade transformadora e revolucionária desse mesmo ser humano.

Hoje, pôr um fim à humanidade, provocar aquele desastre antes inimaginável, está
dentro de todas as possibilidades científicas, mas aqueles de nós que se recusam a
acreditar que o caráter natural do homem é ser o próprio lobo do homem, estão no
dever de sustentar e lutar pela utopia não só da existência do homem e da natureza, mas
de seu melhor, estar em condições de colaboração, ajuda mútua e felicidade. Assim, a
essência do problema é plenamente evidenciada para o presente: "Comunismo ou
Caos".

O que está em jogo é a própria sobrevivência da espécie humana, da vida e da natureza


em geral, por causa do poder destrutivo do capitalismo. Mas para que a alternativa do
comunismo floresça, não teremos que esperar pacientemente em inação pelo fim
automático do capitalismo; a intervenção consciente da humanidade é uma
necessidade e um dever impagável que exige dos revolucionários a conjugação da
utopia na praxis libertadora, a qualquer custo.

Entre os revolucionários marxistas, a utopia do marxismo, como a utopia do


bolivarianismo, coincide fundamentalmente com o propósito imperecível da justiça
social em condições de liberdade e dignidade.

No caso da ideologia bolivariana, entretanto, embora suas linhas essenciais não


cheguem à definição estrita do socialismo segundo sua definição mais decantada, ela
lança as bases necessárias para sua construção a partir de uma perspectiva indo-
americana, que envolve o desenvolvimento de um processo de unificação continental
emancipatório, com a convicção de que sua realização depende exclusivamente da
própria humanidade, mas sobretudo dos revolucionários, das Quixotes; isto é, dos
homens como eles deveriam ser. Não do "homem como ele é", do domínio do efêmero,
da realidade transitória expressa pelo Gil Blas ao qual o moribundo Bolívar de Santa
Marta alude. Em suma, precisamos do homem determinado a sonhar, a fazer utopia do
possível e do "impossível", pronto a conquistar o ideal com loucura se quiser, loucura
criativa, instrutiva, paradigmática, como assumida pelo próprio Libertador, que, como
diria Juvenal Herrera Torres, o ilustre historiador e poeta da Gran Colômbia, "à maneira
de Dom Quixote, levou nosso povo, aquele multitudinário Sancho, a se fundir em um
todo e se fundir em um único galope épico em direção à conquista da utopia". Que
loucura! Esta é a loucura necessária para que a humanidade avance, quando a
sanidade é vegetar passivamente como escravos! O que é fora do comum sempre foi

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chamado de loucura!
É o homem que age como pensa, o homem que redime a utopia; ou, como
exemplificado pelo Libertador, como Cristo, Dom Quixote e ele mesmo..., os tolos, os tolos
da história. Ou seja, o tipo de homem como deveria ser, o homem que, por enquanto,
diante da iminência do caos capitalista, enfrenta a opressão a fim de contribuir para a
formação de um mundo diferente, mesmo que não esteja em condições de desfrutá-lo
para si mesmo.

Esta não é uma tarefa simples, pois pôr fim à utopia, pôr fim aos sonhos redentores do
ser humano, também tem sido o propósito daqueles que gritam sobre o fim da história e
a morte das ideologias, tentando nos persuadir do estabelecimento do capitalismo como
o estágio superior do desenvolvimento humano, transformando-nos em uma imensa
manada de consumidores passivos, de mansos militantes do niilismo fatalista.

Mas acontece que o caminho do verdadeiro revolucionário, que acima de tudo deve ser
um construtor do futuro, é definido pelo otimismo como uma condição da marcha da
história.

Sentido histórico de utopia.

Dia a dia devemos lutar para que as forças produtivas não se tornem as forças que
destruirão o mundo, mostrando que enquanto existir uma consciência revolucionária, a
possibilidade do dever de ser deve ter toda a energia utópica que a torna uma
consciência histórica que inevitavelmente se moverá em direção a uma sociedade sem
exploradores ou explorada.
Dentro desta concepção, nem mesmo o fim de um certo tipo de utopia, de uma utopia
específica, é admissível, pela simples razão de que, no sentido expresso, a utopia, embora
se apresente com características diferentes em momentos diferentes, assim como a
história o faz, o que ela faz é adquirir novas etapas de desenvolvimento humanizante,
novas dimensões, mas não um fim.
Admitir o fim da utopia seria como admitir a possibilidade do fim da história.

Poderíamos propor a superação da ideologia dos socialistas utópicos, como era a


intenção da crítica marxista; poderíamos propor a superação - não negar -, também, os
propósitos e objetivos do socialismo científico; ou, ainda mais simples, os ideais e
objetivos do, em grande parte fracassados, socialismo real; ou poderíamos continuar a
defender a sociedade do trabalho como utopia, ou poderíamos também persistir, como
fez Marcuse nos anos 60, que chegou o momento histórico em que é possível construir
uma sociedade livre porque o desenvolvimento das forças produtivas atingiu o nível que
permitiria a erradicação da fome e da miséria, e assim concluir que então esse propósito
no mundo deixou de ser um "sonho utópico". Seria possível, diremos então, de acordo
com esta última concepção, construir uma civilização não repressiva porque existem as

17
condições para ela e a partir daí, ter a evidência do fim Marcuseano da utopia; um fim
que significa "que as novas possibilidades de uma sociedade humana e de seu mundo
ao redor são dadas..., mas fora do mesmo continuum histórico com respeito à
sociedade...".

anterior" (MARCUSE, Herbert: The End of Utopia. Planeta Editores. Barcelona 1986, p. 7).
Mas no sentido revolucionário, bolivariano e marxista, a utopia certamente está em seu
próprio continuum de mudança dialética que, por mais ruptura ou mudança radical que
possa ter, implica em uma conexão com o passado. Não pode ser um conceito estático,
mas um conceito em mudança em seu conteúdo proposicional, que ao mesmo tempo
não deve estar ligado a formas inescapáveis de experiências, como as fracassadas do
chamado socialismo real, por exemplo, mas o que elas implicam é fazer com que a
superação seja feita assumindo o positivo de cada realização.
Em conclusão, o sentido histórico de utopia e de "fazer o impossível" se referiria a ideais
de transformação social que talvez ainda não tenham em seu favor os fatores subjetivos
e objetivos de uma determinada situação...Eles não contêm, digamos, as condições de
maturidade como poderia acontecer na época bolivariana com a construção da Pátria
Grande, ou na época da Comuna parisiense com a materialização do comunismo, ou
mesmo nos tempos do século XX em que se tentavam modelos de "socialismo", muitos
dos quais não cristalizavam refletindo conseqüência ou mesmo suficiência ou
aproximação com respeito ao genuíno ideal marxista, para durar e avançar em direção a
etapas superiores. Mas de forma alguma é utopia a ação contra-natural ou anti-histórica.
Não há nada que indique a anormalidade ou anti-história da utopia do socialismo e da
Pátria Grande como síntese da integração Bolivariana-Marxista de nossos dias, por
exemplo.
Essa Utopia chamada América Nuestra.

Quando voltamos a "fazer o impossível", seu significado está, então, no plano da


provisoriedade e mesmo da extrema dificuldade, o que implica na mente do
revolucionário "não ficar sentado esperando que o cadáver do imperialismo passe em
frente à casa", segundo o conhecido adágio da Segunda Declaração de Havana que
procura significar que não se espera que as condições objetivas e subjetivas venham de
quem sabe de onde e depois agir, mas que sua presença seja catalisada pela ação.
A este respeito, quando os revolucionários cubanos decidiram atacar o Quartel de
Moncada, ou quando mais tarde embarcaram na viagem da Granma, embora fosse
evidente que as condições materiais para uma revolta contra a exploração capitalista na
maior das Antilhas existiam, talvez ainda não fosse previsível que a revolta insurrecional
em favor do estabelecimento do socialismo tomasse forma; no entanto, com ousadia,
coragem e convicção eles se lançaram no caminho do "assalto aos céus". O resto da
história é suficientemente conhecido. Precisamente no desdobramento prático da
utopia marxista - que não culminou com o derrube de Batista, mas foi fortalecida em
termos de aspiração a maiores propósitos altruístas - esses camaradas, depois de terem

18
tomado o poder por meio de uma heróica insurreição armada, num magnífico
documento intitulado Primeira Declaração de Havana, levantaram sua voz contra o
imperialismo e para os interesses mais sinceros dos explorados do mundo.
Este documento surgiu como uma resposta à chamada "Declaração de San José de
Costa Rica", que nada mais era do que um pedaço de papel anticomunista que saiu
contra Cuba daquele esgoto pestilento que é a OEA.
Em 2 de setembro de 1960, evocando aquela constelação de nossa consciência
americana que é José Martí, a Primeira Declaração de Havana condena o imperialismo
que, com "a miserável submissão de governantes traiçoeiros, transformou nossa
América, a América que Bolívar, Hidalgo, Juárez, San Martín, O'Higgins, Tiradentes,
Sucre, Martí, queria livre, numa zona de exploração, no quintal do império financeiro e
político ianque [...]".
[...]

Proclama o latino-americanismo libertador", em oposição "ao panamericanismo que é


apenas a predominância dos monopólios ianques sobre os interesses de nossos povos"
e rejeita "... a tentativa de preservar a Doutrina Monroe, usada até agora, como José
Martí previu, "para estender o domínio na América" dos vorazes imperialistas, para
melhor injetar o veneno também denunciado a tempo por José Martí, "o veneno dos
empréstimos dos canais, das ferrovias"".

Essa corajosa declaração se encerra reafirmando que "a América Latina logo marchará
em frente, unida e vitoriosa, livre dos laços que transformam suas economias em
riqueza alienada ao imperialismo americano, e que a impedem de fazer ouvir sua
verdadeira voz nas reuniões em que os ministros das Relações Exteriores domesticados
servem como um coro infame ao despótico mestre".

Pouco tempo depois, diante de outra das muitas partidas daquele servidor de
Washington que é a OEA, surgiu de Cuba a Segunda Declaração de Havana. Novamente
contra o imperialismo e os poderosos exploradores da terra, daquele "Território Livre da
América", a voz da dignidade foi ouvida. Foi no dia 4 de fevereiro de 1962:

[...]
"O dever de todo revolucionário é fazer a revolução. Sabe-se que na América e no
mundo a revolução vencerá, mas não cabe aos revolucionários sentar à porta de sua
casa para ver o cadáver do imperialismo passar [...]".

E em favor dos oprimidos, ele apontou:

[...]
"Agora, sim, a história terá que contar com os pobres da América, com os explorados e
vilipendiados da América Latina, que decidiram começar a escrever sua própria história

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para sempre [...]".

[...]
"Pois esta grande humanidade disse: 'Basta!' e partiu em sua marcha. E sua marcha de
gigantes não parará até que tenha conquistado a verdadeira independência, para a
qual já conquistou morreram mais de uma vez em vão. Agora, em qualquer caso,
aqueles que morrerem morrerão como os de Cuba, os de Playa Girón, morrerão por sua
independência única, verdadeira e inrenunciável.

[...]

Muitos revolucionários do continente, convencidos de que "não era necessário sentar-se


e esperar a morte do cadáver do imperialismo", retomaram e outros continuaram, com
maior determinação, aquele caminho de redenção humana que é a luta pelo socialismo,
não sem levar em conta o exemplo da revolução cubana e seus postulados que vieram
alimentar a ideologia marxista com a seiva vivificante do pensamento de Marti e do
pensamento latino-americano em geral. Na Colômbia, por exemplo, onde a resistência
armada comunista tinha mais de uma década, liderada pelo lendário guerrilheiro
Manuel Marulanda Vélez, em 1964 foi alcançada uma grande coesão insurgente com a
fundação das FARC, Fuerzas Armadas Revolucionaria de Colombia (Forças Armadas
Revolucionárias da Colômbia). Até então, este exército revolucionário nascente havia
proclamado, mesmo antes de sua data simbólica de fundação, 27 de maio, no calor dos
combates resultantes da agressão militar do governo contra Marquetalia, seu Programa
Agrário.

Neste documento, cujo aspecto central é a proposta de uma "reforma agrária


revolucionária", ficou clara a idéia de construir uma "Frente Unida Popular" que
destruiria a velha estrutura latifundista da Colômbia e conseguiria o estabelecimento de
um governo de "libertação nacional". No sétimo de seus pontos dizia: "este programa
levanta como uma necessidade vital, a luta pela forja da mais ampla frente unida de
todas as forças democráticas, progressistas e revolucionárias do país, por um combate
permanente até trazer à terra este governo dos imperialistas ianques que impede a
realização dos anseios do povo colombiano".

"É por isso que convidamos todos os camponeses, todos os trabalhadores, todos os
empregados, todos os estudantes, todos os artesãos, os pequenos industriais, a
burguesia nacional disposta a lutar contra o imperialismo, os intelectuais democráticos
e revolucionários, todos os partidos políticos de esquerda ou do centro que querem uma
mudança na direção do progresso, para a grande luta revolucionária e patriótica por
uma Colômbia para os colombianos, para o triunfo da revolução, para um governo
democrático de libertação nacional".
O Programa Agrário foi assinado pelos guerrilheiros que lideraram a resistência e cerca

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de mil camponeses.
Não seriam dois anos antes da Conferência Constitutiva onde os insurgentes de
Marulanda adotaram o nome de FARC. Na Declaração Política desse evento que ocorreu
entre 25 de abril e 5 de maio de 1966, além de denunciar as agressões imperialistas
contra os povos da Ásia, África e América Latina, contra a ocupação ianque de Santo
Domingo e a devastação causada no Vietnã, e depois de destacar a reunião da
Conferência Tricontinental em Havana como um espaço de ação solidária "do mundo
democrático contra o agressores imperialistas", e "pelo impulso e desenvolvimento do
movimento revolucionário mundial, pela paz e pelo progresso das nações", a rejeição da
guerra suja de extermínio desencadeada no campo colombiano pelo imperialismo e pela
oligarquia foi conhecida e expressa, enfatizando que a luta é pela tomada do poder. Essa
Declaração, também conhecida como Segunda Conferência de Guerrilha do Bloco do
Sul, conclui suas reflexões com o parágrafo seguinte:
"...os destacamentos guerrilheiros do Bloco Sul, nos unimos nesta Conferência e
formamos as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (F.A.R.C.), que iniciarão
uma nova etapa de luta e unidade com todos os revolucionários de nosso país, com
todos os trabalhadores, camponeses, estudantes e intelectuais, com todo nosso povo,
para impulsionar a luta das grandes massas em direção à insurreição popular e à
tomada do poder pelo povo".
Marulanda lutaria por mais 42 anos. Nem o inimigo nem as piores adversidades
poderiam fazer com que ele se rendesse. Como nenhum outro revolucionário no
continente, durante mais de meio século ele percorreu as montanhas em busca da
realização de sua utopia. Dia após dia ele deu sua vida em uma guerra de resistência
para alcançar o ideal da Nova Colômbia. Seu pensamento, no desdobramento da práxis,
se entregaria a reflexões e iniciativas ousadas que ele traduziria em planos que abririam
o caminho para a construção da ideologia marxista e da ideologia bolivariana. Sua luta
não só havia passado da reivindicação do lote de terra à causa da revolução colombiana,
mas à própria causa da emancipação continental e à fundação do socialismo para Nossa
América unificada naquela grande pátria com a qual Bolívar sonhava.

Contra todas as probabilidades, até o último momento de sua vida, com o fuzil na mão,
em 26 de março de 2008, Marulanda marchou para a eternidade convencido, sem
dúvida, de que não há outro caminho para a redenção humana senão a construção do
comunismo; ele partiu persuadido da validade, legitimidade e necessidade da
insurreição armada na luta pelo estabelecimento de um mundo melhor, sem
exploradores e explorado. Observando essa maravilhosa abnegação, nos perguntamos
com Bolívar: "Existe melhor maneira de alcançar a liberdade do que lutar por ela"?

É evidente que na mente dos revolucionários da estatura de Marulanda, as condições


para uma revolução não são um assunto a ser colocado em espera, mas sim a
determinação de lutar por sua criação. Há um compromisso, podemos dizer, de
contribuir também a partir da subjetividade para criar essas condições, porque de

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acordo com tal critério, totalmente correto, a consciência, pode influenciar
eficientemente a estrutura; porque, como pensava Bolivar, por exemplo, a unidade é
construída enquanto a emancipação é forjada, e a emancipação é feita enquanto a
unidade é forjada. E o futuro começa agora: "O que nos importa se a Espanha vende
escravos a Bonaparte ou os mantém, se estamos determinados a ser livres? Estas
dúvidas são efeitos tristes de cadeias antigas, que grandes projetos devem ser
preparados com calma! 300 anos de calma não são suficientes? A Junta Patriótica
respeita, como deveria, o Congresso da nação, mas a partir do Congresso deve à Junta
Patriótica, centro das luzes e de todos os interesses revolucionários. Coloquemos sem
medo a pedra fundamental da liberdade sul-americana: hesitar é perder-se" 307. (
BOLÍVAR, Simón. Discurso proferido na Sociedade Patriótica de Caracas, em 4 de julho
de 1811), diz Bolívar, atacando aqueles que afirmam que ainda não havia condições para
proclamar a independência, quando para ele a urgência não era nem mesmo a
libertação da Venezuela, mas a unificação e a libertação de toda a América.

Nossa pátria é a América! E a América é o equilíbrio do universo pronto para o serviço da


humanidade. Essa é a utopia cheia de internacionalismo, solidariedade e humanismo
profundo no pensamento bolivariano do qual Manuel Marulanda Vélez foi militante, e
em torno do qual formou seu exército guerrilheiro.

Simón Rodríguez e a utopia do bolivarismo.

Agora, essa utopia torna-se realidade, então, não implica seu fim, mas a transformação
da utopia em uma aspiração maior; uma mutação de suas qualidades. Como quando a
matéria alcança, digamos por simile, formas mais elevadas de desenvolvimento, a utopia
evolui na medida em que adquire realização.

E isto é reiterado, porque também há muitos que não querem que a utopia morra, mas
não no sentido de que anseiam por sua vital permanência evolutiva, mas sim no sentido
de não querer que sua realização se concretize para que no final siga um caminho que
conduza à aniquilação da esperança.

Como parte da consciência revolucionária, a utopia continua sendo uma luta constante
que reflete ou projeta os objetivos do futuro; trazendo-os, como um dever, do plano da
pura abstração para o plano de sua realização através da ação a todo custo, ou pelo
menos para sua tentativa de concretização em uma praxis emancipatória de longo
alcance.

Neste sentido, em relação ao ideal da Pátria Grande, sobre a Utopia americana, a utopia
bolivariana, podemos retomar as palavras do professor do Libertador, Don Simón
Rodríguez: "Esperemos que, se todos conhecem suas obrigações, e sabem o interesse
que têm em cumpri-las, todos vivam de acordo, porque agirão por princípios... Não é

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um sonho ou delírio, mas sim filosofia...; nem o lugar onde isso é feito será imaginário,
como o imaginado pelo Chanceler Tomas Morus": sua Utopia será, na realidade, a
América", em uma expressão localizada em um contexto que indica a cultura como um
fator inevitável para construir a nova ordem social democrática e republicana, onde o
bem comum é o principal.

Mas como no mestre Simón Rodríguez, no Pai Libertador, embora sua ideologia tenha
voado através dos tempos futuros, sua construção transformadora também teve
horizontes temporais para o momento em que estava vivendo, ou seja, o que
poderíamos chamar de cenário de utopia em termos de maior viabilidade, mas como
um passo em direção a um cenário de utopia superior para o qual talvez as condições
ainda não existissem, mas foi imposta como um dever humano supremo.

Simón Rodríguez, que sobreviveu ao Libertador, escreveria, no desenvolvimento do que


pode ser designado como parte da ideologia bolivariana, da qual o mestre é um
fundador proeminente, idéias precisas a respeito do tipo de sociedade que ele projetou,
dando um papel fundamental à razão e exortando à construção de uma sociedade sem
traços: "As instituições e seu governo devem ser originais". E original deve ser o meio de
para fundar um ou outro". E ele destacou magistralmente que devemos lutar por "uma
sociedade solidária onde o normal seja... pensar em todos para todos, para que todos
pensem nele". Os homens não estão no mundo para se ajudarem uns aos outros, mas
para se ajudarem uns aos outros".

Rodriguez nesta abordagem da prioridade que o bem comum deve ter na ordem social
supera até mesmo Rousseau quando observa e critica neste pensador suas distrações
em favor do individualismo que abre o caminho para o utilitarismo egoísta: "a única
maneira de estabelecer uma boa inteligência é fazer com que todos pensem no bem
comum, e que este bem comum é a República: devemos usar meios tão novos quanto
novos é a idéia de ver para o bem comum, de ver para o bem de todos" (RODRIGUEZ,
Simón: "Obras Completas". Caracas, Venezuela, 1975, T.I, p. 131).

Este aspecto do bolivarismo se baseia em princípios que o diferenciam e dão


preponderância a seus propósitos sociais altruístas, muito superiores ao liberalismo
burguês que, precisamente, exaltou o individualismo utilitarista no qual a propriedade
privada aparece no altar de sua adoração. Muito pelo contrário pode ser observado na
abordagem do Libertário, por exemplo, em seu discurso perante o Congresso de
Angostura, onde o fator dominante é o da solidariedade humana.

Em relação ao utilitarismo, devemos especificar que quando a rejeição de Bolívar a


Bentham ocorre, não deve de forma alguma, como pretendem alguns historiadores da
filosofia, aproximar-se de tal atitude de uma posição conservadora na cabeça do
Libertador. É claro que enquanto os liberais granadinos e falsários como Santander

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justificaram este mentor do utilitarismo ao desenvolver uma expressão contrária ao
estabelecimento hispânico, na margem oposta de Geremiah Benthan, o Libertador
Bolívar não resiste a justificar o provincianismo da forma como o fez, mas sim o
conservadorismo genuíno, Mariano Ospina e José Eusebio Caro.

Bolívar se opôs ao benthanismo não no aspecto de tentar como filosofia uma explicação
da ação dos homens na sociedade sem recorrer a instâncias "metafísicas", mas no que
diz respeito a seus aspectos representativos do individualismo burguês.
Embora o benthanismo significasse um divórcio com o espírito espanhol como novo
padrão nas idéias éticas, na concepção metafísica e na teoria do direito e do Estado,
representava valores antitéticos com respeito à tradição hispânica, o que representava
em essência eram os ideais de uma classe média comercial e industrial, pragmática e
racionalista, ainda determinada a manter as instituições escravas e de servidão do
regime colonialista, como acontecia, por exemplo, nos Estados Unidos, ao qual Bolívar
era um fervoroso adversário.

Retornando a Simón Rodríguez, observemos que seu pensamento se inscreve no


processo de estruturação da ideologia bolivariana como um componente fundamental
de sua mais profunda conceituação. Rodriguez é reconhecido como um importante
pensador socialista de inquestionável influência sobre o Libertador; e nessa direção, é
natural que o impacto das idéias socialistas do mestre na definição da consciência
política de seu discípulo tenha sido dado.

Rodriguez é geralmente classificado como um militante do socialismo utópico, e isto


para localizar, em última análise, no campo não científico o caráter de suas concepções e
manter o contraste com as idéias socialistas após a publicação do Manifesto Comunista,
que seria a temporalidade que marca a emergência do socialismo científico, se levarmos
em conta que a avaliação expressa no Anti-Dühring, em termos da teoria socialista
anterior ao Manifesto correspondia a um período de imaturidade da produção capitalista
e do proletariado.

Entretanto, reiteremos que eles são antecedentes e fonte primária da construção


marxista, contendo idéias de valor duradouro, de tal profundidade e maturidade como as
que se referem, por exemplo, no caso de Rodríguez, à força criativa do povo como base
do desenvolvimento social e da renovação da sociedade. Foi um pensamento retomado,
na prática, por Bolivar, que já incluía com muita convicção o internacionalismo e a
solidariedade como fundamentos da construção social, onde a educação, espaço que
unifica a ação intelectual e manual, seria o que daria fundamento à nova sociedade; ou
seja, a concepção bolivariana da moralidade e do esclarecimento como fator de
transformação revolucionária; aspecto que inquestionavelmente atinge a coincidência
absoluta com o marxismo, implicando também uma coincidência científica pelo menos
nestes elementos do pensamento robinsoniano (por causa de Samuel Robinson, nome

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pelo qual Simon Rodriguez também é conhecido), que são desenvolvidos como praxis
pelo Libertador Bolívar, que, obviamente com toda a originalidade que ambos os Simóns
imprimem nela, não saem do nada a não ser da existência de um fio comum com o
pensamento socialista que toca o mestre em seu trânsito pela Europa, bem como com a
tradição comunitária da América Raiz admirada e justificada por ambos.

Simón Rodríguez e Gracchus Babeuf, a utopia socialista.

Simón Rodríguez teve a possibilidade de perceber de perto a atmosfera que rodeava os


revolucionários parisienses do final do século XVIII e início do XIX, o que nos leva a afirmar
que, como estudioso e pensador inquieto, ele deve ter tido acesso, como indica também
o próprio conteúdo de suas propostas, aos primeiros socialistas franceses e
especialmente aos mais radicais.

Na época em que Rodríguez percorreu a Europa, Babeuf, o protagonista da conspiração


dos "iguais", já incluía em seu pensamento o claro propósito de conduzir a França ao
comunismo agrário através da ditadura de um governo revolucionário. Barbés e Blanquí
seguiram princípios semelhantes que foram retomados por Marx e Engels para delinear
sua idéia da "ditadura do proletariado" no Manifesto Comunista de 1848. Segue-se,
então, que o fio comum do pensamento socialista com respeito ao bolívar através de
Simon Rodriguez, é o mesmo que com respeito ao marxismo.

As idéias de Babeuf não desapareceram com sua morte como resultado da terrível
repressão de 1797, pois seus partidários permaneceram até alguns anos após a morte de
Bolívar, e sua influência tem tal notoriedade que o nome de Babeuf mereceu menção no
próprio Manifesto Comunista.

É a época radiante do Babeuvismo coincidindo com o período que antecedeu a


presença de Rodriguez na América novamente em 1823, quando ele já havia se tornado
um autêntico e profundo socialista.
Mas bem, não é estranho que, independentemente de haver ou não um contato
intelectual e temporal, cada um marchando por seu próprio lado, os revolucionários
coincidam em suas visões e propósitos; e como poderia não ser assim, se o que os motiva
é um sentimento profundamente humano de amor pelo povo.

Rosa Luxemburgo explicou que "o socialismo, como um ideal de ordem social baseado
na igualdade e fraternidade de todos os homens, um ideal de comunidade comunista,
tem mais de mil anos"; ela disse que "entre os primeiros apóstolos do cristianismo, entre
as seitas religiosas da Idade Média, nas guerras camponesas, o ideal socialista
apareceu como a expressão mais radical da revolução contra a sociedade". Mas como

25
um ideal a ser sempre defendido, em qualquer momento histórico, o socialismo foi a
bela visão de alguns poucos entusiastas, uma fantasia dourada sempre fora de
alcance, como a imagem etérea de um arco-íris no céu". Então, como não admitir a
possibilidade de que em uma época de emancipação como a em que Bolívar viveu, tal
ideal também não tenha existido? Mas, além disso, há provas claras de que assim foi. E é
que, precisamente entre 1820 e 1830 o pensamento socialista tem notório impacto
representado por três grandes pensadores do reconhecimento universal: Saint-Simon
(1760-1825) e Fourier (1772-1830) na França, Owen (1771-1858) na Inglaterra, dos quais,
mesmo reconhecendo que não delinearam a determinação da tomada revolucionária do
poder para realizar suas propostas, ou o estabelecimento do socialismo, devemos exaltar
sua enorme contribuição teórica como fundamental para a construção teórica marxista.

O caso de Gracchus Babeuf é outra questão; deste revolucionário, não se pode dizer que
ele não tenha tido a determinação de tomar o poder. Aqui estamos, sem dúvida, diante
de um grande executor da utopia comunista, um verdadeiro pioneiro da ação ousada
em prol da realização do "impossível" ....um promotor da realização do ideal, arriscando
até sua vida em sua causa, pleno pelo sacrifício como um verdadeiro revolucionário,
mesmo num plano que ultrapassa o da "racionalidade" paralisante, sempre em função
da superação das injustiças do regime burguês mas fora dessa ordem, com a construção
de uma nova ordem que já se propunha estabelecer uma ditadura popular, como Marx e
Engels, meio século após a morte de Babeuf, retomam no Manifesto Comunista.

Em Babeuf, "o poder de sua crítica e a magia de seus ideais futuristas, as idéias
socialistas", ao contrário do que a própria Rosa Luxemburgo apresentou, é um exemplo
que deve ser qualificado, em sua teoria e prática, como muito transcendental. O fato de
ela não ter alcançado as condições e o acúmulo de seguidores que tornaram possível a
concretização de suas idéias, ou pelo menos ter uma morte com mais de "um punhado
de amigos na onda contra-revolucionária", não significa que seu traço como o da
mesma heróica Rosa Luxemburgo não será "mais do que um rastro luminoso nas
páginas da história revolucionária". É claro que serão, é claro que já o são e muito mais.

Em Gaius Gracchus Babeuf, pioneiro do combate comunista de vanguarda, a ação vai


em conseqüência com o pensamento, além do fato de que ele estava certo ou errado em
algumas de suas idéias.

Só esse fato, juntamente com suas aspirações de derrubar as injustiças da ordem social
existente para substituí-las por uma ordem comunista, sua utopia, expressa de forma
inabalável mesmo diante do tribunal que o condenou à morte, lhe dá a dimensão de
indispensável. Herança que Simón Rodríguez toma e que, consequentemente, nutre o
bolivarismo desde sua gênese.

Mesmo que todos esses esforços não tenham atingido o objetivo do estabelecimento do

26
socialismo, mas como aconteceu agora após várias experiências fracassadas de "criação
socialista", a dominação capitalista grassa mais selvagem na maior parte do planeta,
nem essas nem as tentativas mais recentes podem ser consideradas enterradas sob os
escombros fumegantes das barricadas parisienses, nem sob as ruínas do Muro de
Berlim, nem sob a destruição deixada pelos "mísseis inteligentes" lançados pelo
imperialismo em cada uma de suas guerras de recolonização. Está sobre as bases da
esperança feita de perseverança e resistência, mesmo em escombros, mesmo em
ruínas...... que a ideologia de justiça social do marxismo se eleva e se fortalece com a nova
experiência que agora tem a graça de convergir com o poder da abordagem bolivariana,
que, por sinal, não pode ser considerada enterrada sob a perfídia da prática
Santanderista que tentou não só acabar com a imagem do Libertador, mas com a
possibilidade de seu projeto emancipatório..., com sua utopia.

A utopia marxista bolivariana agora.

É inegável que Marx, a partir de um estudo profundo baseado em sua concepção e


método que ele cimentou com as melhores contribuições do pensamento universal, foi
capaz de auscultar mais do que qualquer outro em seu tempo, nas leis do caos
capitalista, revelando a lógica que indica a viabilidade da utopia comunista. Marx
explicou de forma bem fundamentada como as mesmas leis que regulam a economia
do capitalismo preparam sua própria queda, na medida em que seu caos crescente se
torna incompatível com o desenvolvimento da sociedade, na medida em que gera
verdadeiras crises políticas e econômicas catastróficas que se tornam insustentáveis e
arriscadas para a própria existência do gênero. Assim, a transição para modos de
produção conscientemente organizados para a humanidade é o que garante que a
sociedade não pereça em convulsões descontroladas.

Mesmo com os aspectos negativos das experiências socialistas que não forjaram
alternativa ao capitalismo, cada dia é mais evidente, como mostra a crescente
devastação do planeta gerada pelo capitalismo predatório, e como a atual crise
capitalista mundial, que levou os grandes financiadores e adoradores do mercado livre, a
impor a intervenção do Estado para ajudá-los, que a única alternativa é o socialismo e
que a utopia comunista é imposta como uma necessidade histórica resultante, além das
próprias leis do desenvolvimento capitalista.

Sem hesitação, do continente da esperança, como Bolivar o chamou, os revolucionários


de Nossa América devem fazer causa comum com os revolucionários do mundo para dar
propulsão, para catalisar todos os poderes da utopia, assumindo a rica herança das
gerações de revolucionários que nos precederam, seja como bolivarianos, seja como
marxistas, ou como um e outro, fazendo do internacionalismo e da solidariedade, a força
vital da ação em unidade, na luta contra as oligarquias e o imperialismo, em um agora
inadiável que exige não dar trégua à reação, aplicando todas as formas de luta e meios

27
ao seu alcance, com todo o espírito de sacrifício aprendido de nossos heróis, não importa
que nos chamem não apenas voluntaristas, putchistas ou aventureiros...mas terroristas
nessa missão de "fazer o impossível", nessa missão de "tomar o céu de assalto", porque
na utopia revolucionária não é um lugar de descanso para reflexos etéreos, mas o
impulso da ação, da práxis totalmente orientada para a tomada do poder.

Este não é o momento para retiros nem para reflexões aprendidas sobre se a situação
revolucionária existe ou não, como se a tarefa delegada fosse apenas especulação
inesgotável, como se não houvesse condições suficientes de miséria e inconformismo
que pudessem nos impulsionar a sair da super-saturação da perfídia, da exploração e das
humilhações imperiais. Como diria Bolívar: "essas dúvidas são efeitos tristes das velhas
correntes. Que os grandes projetos devem ser preparados com calma! 300 anos de
calma não são suficientes?..."

Quão necessários, então, são os Babeufs que não esperam por condições, mas as
antecipam; quão urgentes são aqueles que ousam declarar "guerra até a morte" contra
aqueles que nos assassinam dia após dia; quão indispensáveis são aqueles que decidem
realizar sua "Admirável Campanha", apesar de todos os prognósticos de inviabilidade;
Quão indispensáveis são aqueles que levantam suas palavras e suas ações para gritar o
novo Manifesto que nos reitera que uma revolução é urgente, que com ela não teremos
nada a perder a não ser nossas correntes, e um mundo inteiro a ganhar; quão imperativo
é olhar para a tocha da utopia que ilumina o caminho da emancipação.
Embora, deve-se dizer, sempre haverá aqueles que, como o Sr. Dühring ou Santader, Sr.
Bush ou Uribe Vélez, cada um em seu tempo e no seu estilo, carregando o trapo imundo
da contra-revolução como bandeira, desqualificando e perseguindo aqueles que
ousaram sonhar com "a maior felicidade possível" para a humanidade. E, certamente,
eles não nos chamarão mais de "alquimistas sociais", ou "marcas de discórdia",
"estúpidos" ou "loucos", "charlatães", "panfletários" e "dinossauros"..., mas "terroristas", ou
qualquer outro inimaginável epíteto denigrador dentro daquele "florilégio" de insultos,
como diria o Engels, com os quais eles normalmente nos confrontam no campo
ideológico ou com sua obscena guerra midiática.
Mas acontece que apesar disso, com uma herança tão combativa como o marxismo e o
bolivarismo, nem mesmo o colapso do que costumava ser chamado de socialismo em
alguns países, ou o que costumava ser chamado, ou as desastrosas guerras fascistas dos
oligarcas de hoje nos convencerão de que é o reino da exploração e da humilhação que
deve ser imposto ao homem como absoluto. Nosso lema é esperança, mesmo se, como
escreveu Betolt Brecht, "hoje a injustiça caminha com passo firme e os opressores se
preparam para dominar por mais dez mil anos, e com sua violência garantem que
"tudo permanecerá igual"..., e que entre os oprimidos muitos agora dizem: "O que
queremos nunca será alcançado".

Com Brecht, teremos que dizer novamente isso:

28
"Quem ainda estiver vivo, não diga "nunca". Firme não é firme.
Tudo não permanecerá o mesmo.
Quando os que dominam tiverem falado, os que são dominados falarão.
Quem pode se atrever a dizer "nunca"?
De quem depende se a opressão continuar? De nós.
De quem depende eliminá-la? De nós também.
Que se levante aquele que é lançado para baixo!
Aquele que está perdido, que lute!
Quem pode prender quem conhece sua condição? Pois os vencidos de hoje são os
vencedores de amanhã, e nunca se tornam o próprio hoje.

E como a utopia não pode ser quietude, estas não são apenas "puras fantasias". O
desenvolvimento da humanidade não pode ser condenado, inevitavelmente, a um rumo
caótico e imprevisível, cruel e injusto... Devemos continuar a busca por esse mundo
diferente e melhor que nos permitirá deixar para trás a pré-história, como Marx previu
quando disse que isso acontecerá quando existir um regime social verdadeiramente
racional, justo e eqüitativo na Terra. Esse é o sonho que deve dar ao revolucionário uma
razão de ser. Isto pode parecer "impossível". Alguns acreditam, comparando o conceito à
"fantasia inútil", que sonhar com coisas "impossíveis" é chamado de utopia, e podem
estar certos; mas como bolivarianos-marxistas, é exatamente isso que nos corresponde, a
luta pelo "impossível" e não pelo que nos é mostrado como evidentemente indispensável
para a sobrevivência da espécie e alcançável dentro de um horizonte temporal da vida;
isto é, o que eles chamam de "realismo". Nosso realismo pode ser esse, mas é acima de
tudo "fazer o impossível", além do mais.

Por esta razão, nunca faltarão aqueles de nós que, com armas na mão, gritarão de
qualquer canto das Américas: aqui estamos nós, com a resolução de construir o paraíso
aqui na terra; aqueles de nós que, com a perseverança inflexível de combatentes como o
herói insurgente da Colômbia de Bolívar, Manuel Marulanda Vélez, repetirão seu credo
de amor aos pobres, multiplicando sua voz e seus ensinamentos:
"Se nos levam da margem do rio, atravessamos para a outra margem do rio; se nos
levam da montanha, escapamos para a outra montanha; se nos levam de uma região,
atravessamos o rio, atravessamos a montanha e procuramos outra região....".
Crescendo a experiência, transformando o princípio até dizermos: "se nos levarem da
margem do rio, estaremos esperando por eles na outra margem do rio; se nos levarem
da montanha, estaremos esperando por eles na outra montanha; se nos levarem de
uma região, estaremos esperando por eles em outra região". Trabalhando o princípio
em uma idéia precisa: "Não estaremos esperando por eles apenas do outro lado do rio,
não estaremos esperando por eles apenas na outra montanha, não estaremos
esperando por eles apenas na outra região". Agora voltaremos para procurá-los na
margem do rio de onde um dia nos levaram, voltaremos para procurá-los na
montanha de onde um dia nos levaram em fuga, voltaremos para procurá-los na

29
região de onde um dia nos fizeram correr...". (Citado por ALAPE, Arturo: A Vida de Pedro
Antonio Marín, Manuel Marulanda Vélez, Tirofijo. Planeta Editores. 1989, p.
219).

Como em Marulanda, então, a ideologia comunista estará em todo combatente


bolivariano e em todo o exército insurgente forjado por ele, sobrevivendo, mesmo que as
mortes de sua utopia, como as histórias de sua própria morte, sejam ouvidas nos confins
da selva e das montanhas.

Já dissemos em repetidas ocasiões, com estes ensinamentos do Herói Insurgente da


Colômbia de Bolívar, uma expressão eminente da militância revolucionária, que no caso
das FARC, não nos encontramos diante de uma construção onde o "bolívarismo" ou o
"marxismo de mesa", típico dos ideólogos sapientes que impõem o lustro do pacifismo e
a mansidão da intelligentsia "pós-modernista", possam brincar. Não é a leveza de
coração da teorização intransigente que forjou Manuel Marulanda Vélez.
Assim, com aquele caráter de consciência marxista, bolivariana, marulandista, cheia de
utopia, as FARC-EP diante daquele capitalismo que, apesar de estar em crise, tem ao
mesmo tempo um enorme poder militar, perseverará modestamente em não
negligenciar o que a covardia e o oportunismo do arrependido, reformista e claudicante
camuflam com retórica pacifista: o aspecto militar da luta de classes, que é um assunto
para o qual chamam a atenção de forma consistente, seguindo o caminho aberto com
uma vida inteira de dedicação pelo Comandante Manuel...; em suma, demonstrando sua
relevância.
Com suas palavras, então, repetiremos com mais convicção do que nunca que: "Os
esforços e sacrifícios de comandantes, guerrilheiros, guerrilheiras, líderes do Partido
Comunista Clandestino, população civil, caídos em combate e prisioneiros em campos
e cidades em ação revolucionária durante os 43 anos de enfrentamento, estão
demonstrando à classe dominante dos partidos tradicionais e ao Estado que a luta
revolucionária é justa e não pode ser adiada e, portanto, impossível de ser derrotada,
como os governos anteriores e o atual fingiram. Tendo em mente que mais cedo ou
mais tarde a única saída para os governantes é a negociação política com a
insurgência, se eles não quiserem perder completamente o privilégio adquirido durante
muitos anos (Manuel Marulanda Vélez. De uma carta aos combatentes. Dezembro de
2007).

Além disso, não acreditamos mais que seja possível ser enfeitiçado pelos cantos de sereia
dos refrões derrotistas do desarmamento. Vivemos toda ofensiva para aniquilar o
monstro oligárquico e imperial, e conhecemos suas entranhas;
"Nossa funda é a funda de David"!

Por enquanto, então, nada mais há a fazer senão dizer nas palavras do inesquecível Julius
Fucik contra o fascismo e em nome da utopia comunista bolivariana: "Quando a luta é

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até a morte;/ Os fiéis resistem;/ Os indecisos renunciam;/ Os covardes traem...,/ Os
burgueses se desesperam,/ E os heróis lutam".

A vitória será nossa!

Diante do altar sagrado de nossos mortos, juramos vencer e venceremos!

Montanhas da Colômbia, março de 2009.

31
DUAS
CONCEPÇÕEs
DE VIDA

32
DUAS CONCEPÇÕES DE VIDA1

José Carlos Mariátegui

A guerra mundial não só mudou e fraturou a economia e a política do Ocidente. Ela


também mudou ou fraturou sua mentalidade e seu espírito. As consequências
econômicas, definidas e esclarecidas por John Maynard Keynes, não são mais óbvias e
sensíveis do que as consequências espirituais e psicológicas. Os políticos, estadistas, talvez
encontrem, através de uma série de experimentos, uma fórmula e um método para
resolver os primeiros; mas certamente não encontrarão uma teoria e uma prática
adequadas para cancelar os últimos. Parece-me mais provável que eles devam acomodar
seus programas à pressão da atmosfera espiritual, de cuja influência seu trabalho não
pode escapar. O que diferencia os homens desta época não é apenas a doutrina, mas,
sobretudo, o sentimento. Duas concepções opostas de vida, uma pré-guerra, a outra pós-
guerra, impedem a inteligência dos homens que, aparentemente, servem ao mesmo
interesse histórico.

Na época pré-guerra, a filosofia evolucionista, historicista e racionalista uniu as duas


classes antagônicas através das fronteiras políticas e sociais. O bem-estar material e o
poder físico das cidades haviam gerado um respeito supersticioso pela idéia de progresso.
A humanidade parecia ter encontrado um caminho definitivo. Conservadores e
revolucionários praticamente aceitaram as conseqüências da tese evolucionista. Eles
compartilharam o mesmo apego à idéia de progresso e a mesma aversão à violência.

Não faltaram homens que não foram seduzidos nem atraídos por esta filosofia plana e
confortável. George Sorel, um dos escritores mais aguçados da França pré-guerra,
denunciou, por exemplo, as ilusões de progresso. Miguel de Unamuno pregou o
Quixotismo. Mas a maioria dos europeus havia perdido o gosto pela aventura e pelos mitos
heróicos. A democracia estava ganhando o favor das massas socialistas e sindicais,
satisfeitas com suas fáceis conquistas graduais, orgulhosas de suas cooperativas, sua
organização, suas "casas do povo" e sua burocracia. Os capitães e oradores da luta de
classe desfrutaram de uma popularidade, sem risco, que adormeceu em suas almas toda
a volubilidade revolucionária. A burguesia se deixou conduzir por líderes inteligentes e
progressistas que, convencidos da estupidez e imprudência de uma política de
perseguição das idéias e dos homens do proletariado, preferiram uma política que visasse
domá-los e suavizá-los através de transações astuciosas.

Um humor decadente e esteticista sutilmente se difundia pelos estratos superiores da


sociedade. O crítico italiano Adriano Tilgher, em um de seus notáveis ensaios, define a
última geração da burguesia parisiense da seguinte forma: "O produto de uma civilização
muitas vezes secular, saturada de experiência e reflexão, analítica e introspectiva, artificial

33
e livreira, esta geração, que cresceu antes da guerra, teve que viver em um mundo que
parecia estar consolidado para sempre e seguro contra qualquer possibilidade de
mudança. E a este mundo, adaptou-se sem esforço. Era uma geração com todos os nervos
e cérebros gastos e cansados pelo grande cansaço de seus pais: não suportava esforços
tenazes, tensões prolongadas, abalos repentinos, ruídos altos, luzes brilhantes, ar livre e
agitado; adorava a penumbra e o crepúsculo, luzes suaves e discretas, sons abafados e
distantes, movimentos medidos e regulares". O ideal desta geração era viver docemente.

II

Quando a atmosfera na Europa, perto da guerra, ficou muito carregada de eletricidade, os


nervos desta geração sensual, elegante ou hiperaestésica sofreram um estranho mal-estar
e uma estranha nostalgia. Um pouco aborrecidos com vivre avec douceur, estremeceram
com um apetite mórbido, com um desejo doentio. Eles clamavam, quase ansiosos, quase
impacientes, pela guerra. A guerra não surgiu como uma tragédia, como um cataclismo,
mas sim como um esporte, como um alcalóide ou como um espetáculo. Oh, a guerra, -
como num romance de Jean Bernier, estas pessoas a sentiram e a auguravam - elle serait
trés chic la guerre.

Mas a guerra não correspondeu a esta visão frívola e estúpida. A guerra não queria ser tão
medíocre. Paris sentiu o aperto do drama da guerra em sua própria essência. Conflagrada
e lacerada, a Europa mudou sua mentalidade e psicologia.

Todas as energias românticas do homem ocidental, anestesiadas por longos anos de paz
confortável e próspera, renasceram tempestuosas e prepotentes. O culto à violência foi
reavivado. A Revolução Russa inspirou na doutrina socialista um espírito bélico e místico.
E o fenômeno bolchevique foi seguido pelo fenômeno fascista. Bolcheviques e fascistas
não se assemelhavam aos revolucionários e conservadores do período pré-guerra. Faltava-
lhes a velha superstição do progresso. Eles foram testemunhas, consciente ou
inconscientemente, de que a guerra tinha mostrado à humanidade que eventos além da
previsão da ciência e também eventos contrários aos interesses da civilização ainda
poderiam ocorrer.

A burguesia, assustada com a violência bolchevique, apelou para a violência fascista. Ela
tinha pouca confiança de que suas forças legais seriam suficientes para defendê-la contra
os ataques da revolução. Mas, pouco a pouco, apareceu em sua mente uma nostalgia pela
tranquilidade crassa que existia antes da guerra. Esta vida de alta tensão a repugna e a
cansa. A velha burocracia socialista e sindical compartilha esta nostalgia: por que não
voltar aos bons velhos tempos antes da guerra? O mesmo sentimento de vida liga e une
espiritualmente estes setores da burguesia e do proletariado, que trabalham em uníssono
para desqualificar o método bolchevique e o método fascista ao mesmo tempo. Na Itália,
este episódio da crise contemporânea tem os contornos mais claros e precisos. Lá, a velha
guarda burguesa abandonou o fascismo e se reuniu no terreno da democracia com a

34
velha guarda socialista. O programa de todas essas pessoas pode ser resumido em uma
palavra: normalização. A normalização seria o retorno à vida tranqüila, o despejo ou o
enterro de todo romantismo, de todo heroísmo, de todo quixotesmo de direita e de
esquerda. Sem retorno, com os fascistas, ao Ego Médio. Sem avanço, com os bolcheviques,
em direção à Utopia.

O fascismo fala uma linguagem beligerante e violenta que alarma aqueles que buscam
apenas a normalização. Mussolini, em um discurso, disse: "Não valeria a pena viver como
homens e como uma festa, e sobretudo não valeria a pena viver como fascistas, se não se
soubesse que se está no meio de uma tempestade. Qualquer um é capaz de navegar num
mar de prosperidade, quando os ventos sopram as velas, quando não há ondas ou
ciclones. O belo, o grande, e eu gostaria de dizer o atiçador, é velejar quando a tempestade
está se acendendo Um filósofo Maman costumava dizer: viva perigosamente, eu gostaria
que esta fosse a palavra de ordem do jovem fascismo italiano: viva perigosamente. O
fascismo não concebe a contra-revolução como um empreendimento vulgar e policial,
mas como um empreendimento épico e heróico 2 . Uma tese excessiva, uma tese
incandescente, uma tese exorbitante para a velha burguesia, que não quer absolutamente
ir tão longe. Que a revolução seja parada e frustrada, é claro, mas, se possível, com boas
maneiras. O cassetete só deve ser usado em casos extremos. E sob nenhuma circunstância
a Constituição ou o Parlamento devem ser tocados. As coisas devem ser deixadas como
estavam. A velha burguesia anseia por viver docemente e com carinho o parlamento.
"Livre e discretamente", escreveu Il Corriere dalla Sera de Milão em polêmica com
Mussolini. Mas um e outro termo designam o mesmo anseio.

Os revolucionários, como os fascistas, têm o objetivo de viver perigosamente. Em


revolucionários, como em fascistas, encontra-se um impulso romântico semelhante, um
humor quixotesco semelhante.

A nova humanidade, em suas duas expressões antitéticas, revela uma nova intuição de
vida. Esta intuição de vida não aparece exclusivamente na prosa beligerante dos políticos.
Em algumas divagações de Luis Bello, encontro esta frase: "É conveniente corrigir
Descartes: eu luto, portanto eu sou". A correção é realmente oportuna. A fórmula filosófica
de uma era racionalista deveria ter sido: "Eu penso, portanto eu sou". Mas nesta era
romântica, revolucionária e quixotesca, a mesma fórmula não é mais útil. A vida, mais do
que pensar, hoje quer ser ação, ou seja, combate. O homem contemporâneo precisa de fé.
E a única fé que pode ocupar seu eu mais profundo é uma fé combativa. Os tempos de
vida gentil não voltarão, quem sabe por quanto tempo. A doce vida pré-guerra não gerou
nada além de ceticismo e niilismo. E da crise deste ceticismo e niilismo vem a dura, a forte,
a necessidade peremptória de uma fé e um mito que move as pessoas a viver
perigosamente.

35
NOTAS:

1
Publicado em Mundial: Lima, 9 de janeiro de 1925, Transcrição em Amauta: Nº 31 (pp 4-7).
Lima, junho-julho de 1930. E incluída na antologia de José Carlos Mariátegui, que a
Universidade Nacional do México publicou, em 1937, como segundo volume de sua série
"Pensadores de América" (pp. 124-129).

2
Esta afirmação se refere aos anos ascendentes do movimento fascista, pois naquela
época Mussolini tentou preservar a aparência constitucional de seu regime e até mesmo
tolerou uma oposição que pôs em luta. Mas após a crise sofrida pelo regime durante os
anos 1925-1930, não há dúvida que José Carlos Mariátegui teria alterado os termos de sua
afirmação, por ter definido seu caráter reacionário, o "empreendimento épico e heróico"
do fascismo transformou-se em mera declamação e sua realidade permanente foi a ação
policial.

A LUTA FINAL 1

Madeleine Marx, uma das mulheres mais agitadas e modernas da França contemporânea,
recolheu suas impressões sobre a Rússia em um livro intitulado C'est la lutte finale.... A
frase da canção de Eugene Pottier adquire um significado histórico. "É a luta final!"

O proletário russo saúda a revolução com este grito que é o grito ecumênico do proletário
mundial. É um grito multitudinário de combate e esperança que Madeleine Marx ouviu
nas ruas de Moscou e que eu ouvi nas ruas de Roma, Milão, Berlim, Paris, Viena e Lima.
Toda a emoção de uma época está nela. As multidões revolucionárias acreditam que estão
travando a luta final.

Será que eles realmente lutam contra isso? Para as criaturas céticas da velha ordem, esta
luta final é apenas uma ilusão. Para os fervorosos combatentes da nova ordem, é uma
realidade. Au dessus de la Melée, uma nova e astuta filosofia da história propõe outro
conceito: ilusão e realidade. A luta final do verso de Eugene Pottier é, ao mesmo tempo,
uma realidade e uma ilusão.

É de fato a luta final de uma época e de uma classe. O progresso - ou o processo humano
- ocorre em etapas. Conseqüentemente, a humanidade tem uma necessidade constante
de sentir que está se aproximando de um objetivo. O objetivo de hoje certamente não será
o objetivo de amanhã; mas para a teoria humana em curso, é o objetivo final. O milênio
messiânico nunca chegará. O homem chega ao fim para partir novamente. Ele não pode,

36
entretanto, dispensar a crença de que o novo dia é o último dia. Nenhuma revolução prevê
a revolução que virá mais tarde, mesmo que ela carregue seu germe em suas entranhas.
Para o homem, como tema da história, existe apenas sua própria realidade pessoal. Ele
não está interessado na luta de forma abstrata, mas em sua luta de forma concreta. O
proletariado revolucionário, portanto, vive a realidade de uma luta final. A humanidade,
por sua vez, de um ponto de vista abstrato, vive a ilusão de uma luta final.

II

A Revolução Francesa tinha a mesma idéia de sua magnitude. Seus homens também
acreditavam que estavam inaugurando uma nova era. A Convenção quis gravar para
sempre no tempo o início do milênio republicano. Ela pensava que a era cristã e o
calendário gregoriano não podiam conter a República. O hino da revolução saudou o
alvorecer de um novo dia: le jour de gloire est arrivé. A república individualista e jacobina
apareceu como o desiderato supremo da humanidade. A revolução parecia definitiva e
intransponível. Foi a luta final. A luta final pela Liberdade, Igualdade e Fraternidade.

Menos de um século e meio foi o suficiente para que este mito envelhecesse. A Marselhesa
não é mais uma canção revolucionária. O "dia da glória" perdeu seu prestígio sobrenatural.
Os próprios defensores da democracia se desiludiram com o prestígio do parlamento e do
sufrágio universal. Outra revolução está fermentando no mundo. Um regime coletivista
está lutando para substituir ao regime individualista. Os revolucionários do século XX estão
se preparando para fazer um julgamento sumário sobre o trabalho dos revolucionários do
século XVIII.

A revolução proletária é, entretanto, uma conseqüência da revolução burguesa. A


burguesia, em mais de um século de vertiginosa acumulação capitalista, criou as
condições espirituais e materiais para uma nova ordem. Foi dentro da revolução francesa
que as primeiras idéias socialistas se enraizaram. Em seguida, o industrialismo organizou
gradualmente os exércitos da revolução em suas fábricas. O proletariado, antes
confundido com a burguesia do Estado Común, formulou então suas demandas de classe.
O rico seio do bem-estar capitalista alimentou o socialismo. Era o destino da burguesia
que ela deveria fornecer a revolução dirigida contra seu poder com idéias e homens.

III

A ilusão da luta final é, portanto, uma ilusão muito antiga e muito moderna. A cada dois,
três ou mais séculos, esta ilusão reaparece sob um nome diferente. E, como agora, é
sempre a realidade de uma inumerável falange humana. Possui homens a fim de renová-
los. É o motor de todo o progresso. É a estrela de todos os renascimentos. Quando a grande
ilusão é trovejada, é porque uma nova realidade humana já foi criada. Os homens
descansam então de sua eterna inquietação. Um ciclo romântico se fecha e o ciclo clássico
se abre. No ciclo clássico, desenvolve-se uma forma, estiliza-se e degenera que,

37
plenamente realizada, não será capaz de conter em si mesma as novas forças da vida.
Somente nos casos em que seu poder criativo é energizado a vida adormece, estagnando,
dentro de uma forma rígida, decrépita e ultrapassada. Mas estes êxtases de povos ou
sociedades não são ilimitados. A lagoa sonolenta, a ainda paluvosa, acaba se tornando
agitada e transbordante. A vida então recupera sua energia e seu impulso. A Índia
contemporânea, a China e a Turquia são exemplos vivos de tais reavivamentos. O mito
revolucionário abalou e reavivou poderosamente estes povos em colapso.

O Oriente desperta para a ação. A ilusão renasceu em sua alma milenar.

IV

O ceticismo se contentava em contrastar a irrealidade das grandes ilusões humanas. O


relativismo não está satisfeito com o mesmo resultado negativo e infrutífero. Ele começa
ensinando que a realidade é uma ilusão; mas conclui reconhecendo que a ilusão, por sua
vez, é uma realidade. Ele nega que existem verdades absolutas; mas ele percebe que os
homens têm que acreditar em suas verdades relativas como se elas fossem absolutas. O
que importa que a certeza dos homens de hoje não seja a certeza dos homens de
amanhã? Sem um mito, os homens não podem viver frutuosamente. A filosofia relativista
propõe, portanto, que obedeçamos à lei do mito.

Pirandello, um relativista, oferece o exemplo de adesão ao fascismo. O fascismo seduz


Pirandello porque enquanto a democracia se tornou céptica e niilista, o fascismo
representa uma fé religiosa, fanática na hierarquia e na Nação (Pirandello, que é um
pequeno-burguês siciliano, carece da aptidão psicológica para compreender e seguir o
mito revolucionário). O homem literário de cepticismo exasperado não adora a dúvida na
política. Ele prefere a afirmação violenta, categórica, apaixonada e brutal. A multidão, ainda
mais que o filósofo cético, ainda mais que o filósofo relativista, não pode prescindir de um
mito, não pode prescindir de uma fé. Não é possível para ele distinguir sutilmente sua
verdade da verdade passada ou futura. Para isso, há apenas a verdade. Absoluta, única,
eterna verdade. E, de acordo com esta verdade, sua luta é realmente uma luta final.

O impulso vital do homem responde a todas as questões da vida antes das pesquisas
filosóficas. O homem iletrado não está preocupado com a relatividade de seu mito. Não
seria sequer possível para ele entendê-lo. Mas ele geralmente encontra seu próprio
caminho melhor do que o homem literário ou o filósofo. Se ele deve agir, ele age. Quando
ele deve acreditar, ele acredita. Quando ele deve lutar, ele luta. Ele nada sabe sobre a
relativa insignificância de seu esforço no tempo e no espaço. Seu instinto o desvia da
dúvida estéril. Sua ambição é apenas o que todo homem pode e deve ser: realizar bem o
seu dia.

38
NOTA:

1
Publicado em Mundial: Lima, 20 de março de 1925. Transcrição em Amauta: Nº 31 (pp. 7-
9), Lima, junho-julho de 1930. E incluída na antologia de José Carlos Mariátegui, que a
Universidade Nacional do México publicou, em 1937, como segundo volume de sua série
"Pensadores de América" (pp. 129-133).

A CRISE DA DEMOCRACIA1

Os próprios autores da democracia - o termo democracia é usado como um equivalente


do termo estado burguês-democrático-liberal - reconhecem a decadência deste sistema
político. Eles concordam que é velho e gasto e aceitam que precisa ser reparado e
colocado em ordem. Mas, na opinião deles, não é a democracia como uma idéia, como um
espírito, mas a democracia como uma forma que está decadente.

Este julgamento sobre o significado e o valor da crise da democracia é inspirado pela


tendência incorrigível de distinguir entre corpo e espírito em todas as coisas. Do antigo
dualismo de essência e forma, que mantém suas antigas características clássicas na
maioria das mentes, surgem várias superstições.

Mas uma idéia realizada não é mais válida como uma idéia, mas como uma realização. A
forma não pode ser separada, não pode ser isolada de sua essência. A forma é a idéia
concretizada, a idéia realizada, a idéia concretizada. Para diferenciar, tornar a idéia
independente da forma é um artifício teórico e dialético e uma convenção. Não é possível
negar a expressão e a corporeidade de uma idéia sem negar a própria idéia. A forma
representa tudo o que a idéia animadora vale prática e concretamente. Se se pudesse
retraçar a história, descobriríamos que a repetição da mesma experiência política teria
sempre as mesmas conseqüências. Quando uma idéia é devolvida à sua pureza original, à
sua virgindade original e às condições primitivas de tempo e lugar, ela não dará uma
segunda vez mais do que deu na primeira vez. Uma forma política constitui, em suma,
todo o rendimento possível da idéia que a originou. Tão verdade é que o homem,
praticamente, na religião e na política, termina ignorando o essencial em sua igreja ou em
seu partido para sentir apenas o que é formal e corpóreo.

O mesmo acontece com os autores da democracia que não querem acreditar que ela seja
velha e desgastada como uma idéia, mas como um organismo. O que esses políticos
realmente defendem é a forma perecível e não o princípio imortal. A palavra democracia
não serve mais para designar a idéia abstrata de democracia pura, mas para designar o
estado burguês-democrático-liberal. A democracia dos democratas contemporâneos é a
democracia capitalista. É uma forma de democracia e não de democracia-idéia.

39
E esta democracia está em decadência e dissolução. O Parlamento é o órgão, é o coração
da democracia. E o parlamento deixou de servir seu propósito e perdeu sua autoridade e
seu papel no órgão democrático. A democracia está morrendo de doença cardíaca.

A Reação confessa explicitamente suas intenções antiparlamentares. O fascismo anuncia


que não se deixará expulsar do poder por uma votação do parlamento2. O consenso da
maioria parlamentar é para o fascismo uma coisa secundária; não é uma coisa primária. A
maioria parlamentar, um item de luxo; não um artigo de necessidade primária. O
Parlamento é bom se obedece; ruim se protesta ou se incomoda. Os fascistas propõem a
reforma da carta política da Itália, adaptando-a a seus novos usos. O fascismo se reconhece
como antidemocrático, antiliberal e antiparlamentar. À fórmula Jacobina de Liberdade,
Igualdade e Fraternidade, eles se opõem com a fórmula fascista da Hierarquia. Alguns
fascistas que se entregam à especulação teórica definem o fascismo como um
renascimento do espírito da contra-reforma.... Eles atribuem ao Fascismo uma alma
medieval e católica. Embora Mussolini não diga que "indietro non si torna" 3 , os próprios
fascistas estão felizes em encontrar suas origens espirituais na Idade Média.

O fenômeno fascista é apenas um sintoma da situação. Infelizmente para o parlamento, o


fascismo não é seu único ou mesmo seu principal inimigo. O Parlamento sofre, por um
lado, com as agressões da Reação e, por outro lado, com as da Revolução. Reacionários e
revolucionários de todos os matizes concordam em desqualificar a velha democracia.
Ambos defendem métodos ditatoriais.

A teoria e a prática de ambos os lados ofendem a modéstia da democracia, mesmo que a


democracia nunca tenha se comportado com excesso de castidade. Mas a Democracia
cede, alternativamente ou simultaneamente, à atração da direita e da esquerda. Ela só
escapa de um campo de gravitação para cair no outro. É rasgada por duas forças
antitéticas, dois amores antagônicos. Os homens mais inteligentes da democracia estão
determinados a renová-la e emendá-la. O regime democrático está sujeito a um exercício
de crítica e revisão interna, além de seus anos e suas fraquezas.

Nitti não acredita que seja o caso de falar de uma democracia simples, mas sim de uma
social-democracia. O autor de A Tragédia da Europa é um democrata dinâmico e
heterodoxo. Caillaux defende uma "síntese da democracia de estilo ocidental e do
sovietismo russo". Caillaux não indica o caminho que levaria a tal resultado. Mas ele admite
explicitamente que as funções do parlamento devem ser reduzidas. O Parlamento,
segundo Caillaux, deveria ter apenas direitos políticos e não deveria ter um papel de
supervisão superior. Toda a gestão do estado econômico deve ser transferida para novos
órgãos.

Estas concessões à teoria do Estado sindical expressam até que ponto a antiga concepção
de que parlamento envelheceu. Ao abdicar de parte de sua autoridade, o parlamento está
entrando em um caminho que o levará à perda de seus poderes. Este estado econômico,

40
que Caillaux quer subordinar ao estado político, é uma realidade superior à vontade e
coerção dos estadistas que aspiram a apreendê-lo dentro de seus princípios impotentes.
O poder político é uma conseqüência do poder econômico. A plutocracia européia e
americana não tem medo dos exercícios dialéticos dos políticos democráticos. Qualquer
um dos trusts ou "cartéis" industriais na Alemanha e nos Estados Unidos influencia mais a
política de suas respectivas nações do que toda a ideologia democrática. O plano Dawes
e o acordo de Londres foram ditados aos seus ilustres signatários pelos interesses da
Morgan, Loucheur, etc..

A crise da democracia é o resultado do crescimento simultâneo e da concentração do


capitalismo e do proletariado. As alavancas de produção estão nas mãos dessas duas
forças. A classe proletária luta para substituir a classe burguesa no poder. Enquanto isso,
ela torce sucessivas concessões da burguesia. As duas classes fazem seus tréguas, seus
armistícios e seus compromissos, diretamente, sem intermediários. Nessas discussões e
nesses compromissos, o parlamento não é aceito como árbitro. Gradualmente, a
autoridade parlamentar vem diminuindo. Todos os setores políticos estão agora tendendo
a reconhecer a realidade do estado econômico. O sufrágio universal e as assembléias
parlamentares estão preparadas para ceder muitas de suas funções a grupos sindicais. A
direita, o centro e a esquerda são mais ou menos filo-unionistas. O fascismo, por exemplo,
trabalha para a restauração de corporações medievais e constrange trabalhadores e
empregadores a coexistir e cooperar dentro do mesmo sindicato. Os teóricos da "camisa
preta" em seus esboços do futuro estado fascista qualificam-na como um estado sindical.
Os social-democratas lutam pela enxertia dos sindicatos e associações profissionais no
mecanismo da democracia. Walter Rathenau, um dos teóricos e realizadores mais
conspícuos e originais da burguesia, sonhava com uma divisão do eEtado em um estado
industrial, um estado administrativo, um estado educacional, etc. Na organização
concebida por Rathenau, as diversas funções do Estado seriam transferidas para
associações profissionais.

Como a democracia chegou à crise para a qual todas essas preocupações e conflitos estão
apontando? O estudo das raízes do declínio do regime democrático deve ser
complementado por uma definição incompleta e sumária: a forma democrática deixou
gradualmente de corresponder à nova estrutura econômica da sociedade. O estado
burguês-democrático-liberal foi um efeito da ascensão da burguesia para a posição da
classe dominante. Constituía uma conseqüência da ação de forças econômicas e
produtivas que não podiam se desenvolver dentro dos limites rígidos de uma sociedade
governada pela aristocracia e pela igreja. Agora, como então, a nova interação das forças
econômicas e produtivas exige uma nova organização política. As formas políticas, sociais
e culturais são sempre provisórias. Em sua essência, elas invariavelmente contêm o germe
de uma forma futura. Estultificada, petrificada, a forma democrática, como aquelas que a
precederam na história, não pode mais conter a nova realidade humana.

41
NOTAS:

1
Publicado em Mundial: Lima, 14 de novembro de 1925.

2
Deve-se ter em mente que este ensaio foi escrito quando o assassinato do deputado
socialista Giacomo Matteoti provocou um agrupamento de cem deputados, que
resolveram não comparecer às sessões de sua câmara a fim de privar o fascismo da
aparência jurídica que rodeava sua ascensão ao poder. E, claro, pode-se ver como as
previsões subseqüentes de José Carlos Mariátegui acabaram se tornando verdadeiras.

3
Esta frase - tão cara a Mussolini, como aponta José Carlos Mariátegui - foi concebida,
talvez, para ostentar a força fascista e incutir confiança na pequena burguesia
desorientada ou para assustar os relutantes. Depois foi a fórmula que expressava a
insistência obstinada em medidas impressionantes, mas ineficazes, cujo abandono ou
emenda foi considerado prejudicial ao prestígio do movimento. E, quando foi necessário
encobrir seu caráter retardado, tornou-se um dos slogans básicos da "doutrina" fascista,
como fica claro na exegese que seu próprio criador escreveu para a Enciclopédia Italiana:
"As negações fascistas do socialismo, da democracia, do liberalismo, não devem levar a
crer que o fascismo gostaria de empurrar o mundo de volta ao que era antes de 1789,
considerado o ano de abertura do século liberal-democrático. Não pode haver volta atrás.

O PROBLEMA DAS ELITES1

Mais de alguns escritores no Ocidente reduzem a crise da democracia européia a um


problema de elites. Saturados de superstições intelectualistas e de uma idéia exagerada
de sua clarividência e desinteresse, estes escritores não questionam a existência de tais
elites, entendendo e definindo-as, geralmente, como uma aristocracia de pensadores e
filósofos. O problema é que eles não governam nem lideram o povo. O poder está nas
mãos de políticos de rotina ou céticos, gerenciados por uma poderosa plutocracia. O
Estado obedece aos projetos ambiciosos e utilitários de uma oligarquia financeira que,
através da grande imprensa, controla a opinião pública. A responsabilidade por este mal-
estar é atribuída por seus críticos melancólicos à democracia quantitativa, à mediocridade
parlamentar, e assim por diante. Mas todos esses intelectuais, mais ou menos
contemplativos, partem de um preconceito conservador que invalida sua especulação
aparentemente desinteressada. Todos eles olham com horror retórico disfarçado o
socialismo, a revolução, o proletariado. Eles não são capazes de conceber - por mera e
vulgar resistência conservadora - a reorganização da Europa e a defesa da civilização,

42
exceto dentro das estruturas burguesas. Esta limitação, que é seu drama, não lhes permite
compreender plenamente o problema de longa data das elites. Isso não lhes permite
descobrir se as novas elites já não estão amadurecendo fora da burguesia e, em qualquer
caso, contra a burguesia: se as elites burguesas visíveis, reais, não são representadas por
aqueles barões da banca e da indústria e por aqueles políticos de ambígua tradição
parlamentar, tão supersticiosamente descritos. É lógico supor que o capitalismo se oporá
ao proletariado com suas melhores forças. Se não se defende com forças mais escolhidas,
com homens mais convencidos e mais altos, com certeza é porque não as tem. O caso do
governo francês, considerado com astúcia, seria suficiente para dissipar qualquer mal-
entendido. A França é governada há dois anos por um gabinete de ex-primeiro-ministro,
chefiado por um que Albert Thibaudet incluiu entre seus "príncipes do espírito" e no qual
a burguesia vê um homem de elite, um aristocrata da democracia. 2 Entre os principais
que o rodeiam estão Herriot, um humanista culto, um democrata sincero, um idealista
honesto, e Briand, um dos mais comprovados sábios parlamentares da França
contemporânea. Este gabinete de tal autoridade política, composto de homens
habilidosos e experientes, não está, no entanto, menos sujeito do que os anteriores aos
interesses da indústria e das finanças. Por exemplo, uma campanha de imprensa poderia
levá-la, contra sua intenção, à beira de uma ruptura com a Rússia. Será que um ministério
da elite intelectual seria mais capaz de resistir à pressão dos interesses capitalistas? Ainda
mais implausível seria um estado e capitalismo espiritualmente governado a partir de seus
escritórios por três ou quatro professores austeros.

As verdadeiras elites intelectuais operam na história ao revolucionar a consciência de uma


época. A palavra precisa se tornar carne. O valor histórico das idéias é medido por seu
poder de princípio ou ímpeto de ação. Isto é algo que os críticos desconsolados da
democracia parecem esquecer totalmente.

É um absurdo falar de um drama das elites. Uma elite em estado de lástima, por este
mesmo fato, deixa de ser uma elite. Para a história, não existe uma elite rebaixada. A elite
é essencialmente criativa.

Por razões óbvias, a elite do capitalismo nos últimos tempos tem sido composta
principalmente por chefes de empresa, grandes empresários, industriais e financeiros.

A burguesia não tinha uma elite política e intelectual neste período? Sem dúvida que sim.
Somente, como a decadência de seus princípios e seu espírito se tornou mais marcada,
esta elite pareceu destinada a suprir o socialismo com intelectuais e políticos. O fato de
que muitos dos maiores estadistas da Europa burguesa - Briand, Millerand, Mussolini,
Massaryk, Pilsudsky, Vandervelde, etc. - vêm do socialismo, deve-se à atração espiritual
exercida pelo socialismo sobre os homens politicamente mais sensíveis da pequena e
média burguesia. Em países onde o fenômeno capitalista não atingiu sua plenitude
material e moral, a maioria desses homens foi irresistivelmente impelida a se juntar às

43
fileiras socialistas, nas quais eles militaram pelo menos temporariamente.

Não é uma verdadeira elite que deve seu poder a um privilégio que não conquistou por
seus próprios esforços. Os ideólogos da reação, animados mais pela derrota do
proletariado do que pela vitória da burguesia na Europa Ocidental, esperam que um
militar ou qualquer outro líder estabeleça sua ditadura. Eles reservam para si o papel de
aconselhá-lo. Isto os desqualifica bastante como homens de elite, um título que
corresponderia mais legitimamente àquele "providencial" que, por acaso, acabaria por içá-
los ao poder sob sua ditadura.

O que este tipo de crítica deixa escapar não é, para todos estes sinais, uma elite em geral,
superior ou estranha à guerra de classes, mas uma forte elite burguesa. E mais precisa e
lógica, neste nível, é a atitude daqueles como Lucien Romier e René Johannet que
trabalham para forjar as alavancas ideológicas espirituais de uma grande ofensiva
capitalista, sem se preocupar muito com as forças da inteligência e do espírito. Romier,
que defende o restabelecimento de uma doutrina de ordem e autoridade, manobra com
cautela e reservas políticas. Johannet, que colocou o problema da elite em termos
francamente burgueses de reação, argumentou com a intransigência e o dogmatismo de
um ideólogo. Mas ambos concordam no esforço de reanimar e excitar na burguesia seu
instinto de classe e orgulho. Pois - como observa Julien Benda - os burgueses, esmagados
pelas ironias e pelas lutas de várias gerações, haviam perdido esse orgulho a ponto de
empregar, para fazer-se perdoar ou esquecer sua burguesia, todo tipo de declarações de
amor ao proletariado. Hoje, diz Benda, "basta pensar no fascismo italiano, em um certo
elogio dos burgueses franceses, em tantas outras manifestações do mesmo sentido, para
ver que a burguesia está plenamente consciente de seus egoísmos específicos, que os
proclama como tal e os venera como tal, considerando-os como ligados aos interesses
supremos da espécie, que se gloria em venerá-los e criá-los contra os egoísmos que
querem sua destruição.``

Mas, como Romier e Johannet, é essencial identificar o destino da civilização com o do


capitalismo. Mesmo que Romier, em sua enumeração dos tipos de elite, não esqueça o
trabalhador, o patrão de uma oficina de mestre ou de um sindicato, que ascende a este
posto, é claro que ele considera o problema da elite como um problema interno e
particular da burguesia. Para Romier e Johannet, a revolução proletária significaria a regra
da multidão, da horda, dos números e, portanto, a negação de qualquer elite.

Não ocorre a nenhum desses críticos, é claro, perceber que uma revolução é sempre obra
de uma elite, de uma equipe, de uma falange de homens heróicos e superiores; nem que,
conseqüentemente, o problema da elite também existe como um problema interno do
proletariado, com a diferença de que este último, em sua luta, em sua ascensão, é
temperado e formado, em uma atmosfera mística e apaixonada, e com a sugestão de
mitos vivos, seus quadros dirigentes. Historicamente, é muito mais provável que o gênio

44
criativo surja no campo do socialismo do que no campo do capitalismo, especialmente
naqueles países onde o capitalismo parece ter chegado ao fim, não apenas como um fato
espiritual, mas também como um fato material (concluído, ainda que retenha o poder
político, pois suas possibilidades de crescimento econômico atingiram seus limites).

Nenhuma crítica séria e verdadeira pode dar bobeira sobre a qualidade de elite dos
homens da revolução russa. Um burguês ortodoxo, o senador De Monzie, o reconheceu
sem reservas. “A disciplina interna é tão rude", escreve de Monzie, "as sanções aplicadas
são tão violentas, que realmente não há aristocracia bolchevique, ou seja, nenhuma elite
consolidada na posse de privilégios". E ainda assim existe uma elite. Isto é inegável.
Viajantes atentos que visitaram a Rússia após a revolução exaltam a qualidade desses
estadistas improvisados, cuja missão era precisamente improvisar um estado.
Autodidatas, treinadas em longo exílio, pela experiência de congressos socialistas, pela
freqüência de intrigas e amarguras cosmopolitas, elas se revelaram em um golpe, não
individualmente, mas coletivamente". De Monzie admite que eles são amaldiçoados, "mas
não sem admiração". Duhamel, por sua vez, encontrou no governo dos soviéticos o
primeiro aristocrata russo, que em sua opinião é Lunatcharsky.

O fracasso da ofensiva socialista na Itália e na Alemanha foi em grande parte devido à falta
de uma sólida elite revolucionária. Os principais quadros do socialismo italiano não foram
revolucionários, mas reformistas, como os da social-democracia alemã. O núcleo
comunista era composto por figuras jovens, sem profunda ascendência sobre as massas.
Para a revolução, o número, a massa, estava pronto; a qualidade ainda não estava pronta.

As novas elites virão do lado que, entre os intelectuais conservadores autoconfiantes ou


disfarçados, não se quereria que viessem. O Napoleão da Europa de amanhã, que vai
impor o código da nova sociedade, virá das fileiras do socialismo. Pois cabe ao futuro
realizar, ou melhor, testar esta fórmula: Revolução - Aristocracia.

NOTAS:

1
Publicado em Variedades: Lima, 7 de janeiro de 1928.

2
Isto se refere ao ministério de concentração nacional organizado por Raymond Poincaré
para lidar com a grave crise financeira que ameaçava a França naquela época. Começou
seu mandato em julho de 1926 e só em novembro de 1928 foi substituída pela nova
combinação ministerial presidida pelo próprio Poincaré. Ele já havia presidido três
gabinetes em anos anteriores, e ao seu lado estavam: Aristides Briand, Ministro das
Relações Exteriores, que havia presidido dez ministérios até o momento; Paul Painlevé,
Ministro da Guerra, que havia sido encarregado de três ministérios até então; Edward

45
Herriot, Ministro da Instrução Pública, que já havia presidido dois ministérios em sua
carreira; e G. Leygues, Ministro da Marinha, organizador do gabinete que serviu de
setembro de 1920 a janeiro de 1921. Havia também: André Tardieu, Ministro de Obras
Públicas, que mais tarde presidiu três gabinetes; e Albert Sarraut, Ministro do Interior, mais
tarde responsável por duas combinações ministeriais. Os demais membros do gabinete
de concentração nacional eram: Louis Barthou, Vice Primeiro Ministro e Ministro da
Justiça; André Falliéres, Ministro do Trabalho; Bokanouski, Marin, Perrier e Queuille,
Ministros do Comércio, Pensões, Colônias e Agricultura, respectivamente.

NACIONALISMO E INTERNACIONALISMO1

As fronteiras entre nacionalismo e internacionalismo ainda não estão muito claras, apesar
da longa coexistência das duas idéias. Os nacionalistas condenam a tendência
internacionalista em sua totalidade. Mas na prática eles fazem algumas concessões a ele,
às vezes dissimuladas, às vezes explícitas. O fascismo, por exemplo, colabora na Liga das
Nações. Ao menos não abandonou esta sociedade que se alimenta do pacifismo e do
liberalismo wilsoniano.

De fato, nem o nacionalismo nem o internacionalismo seguem uma linha ortodoxa ou


intransigente. Além disso, não é possível apontar matematicamente onde termina o
nacionalismo e começa o internacionalismo. Elementos de uma idéia são às vezes
misturados com elementos da outra.

A causa desta obscura demarcação teórica e prática é muito clara. A história


contemporânea nos ensina a cada passo que a nação não é uma abstração, não é um mito,
mas que a civilização, a humanidade, também não é uma abstração. A evidência da
realidade nacional não contradiz, não confuta a evidência da realidade internacional. A
incapacidade de compreender e admitir esta segunda e superior realidade é
simplesmente miopia, é uma limitação orgânica. As inteligências idosas, mecanizadas na
contemplação da velha perspectiva nacional, não sabem distinguir o novo, o vasto, a
complexa perspectiva internacional. Eles o repudiam e o negam porque não conseguem
se adaptar a ele. O mecanismo desta atitude é o mesmo que rejeita automaticamente e a
priori a física Einsteiniana.

Os internacionalistas - com exceção de alguns ultraistas, alguns românticos, pitorescos e


inofensivos - comportam-se com menos intransigência. Como os relativistas diante da
física de Galileu, os internacionalistas não contradizem toda a teoria nacionalista. Eles
reconhecem que ela corresponde à realidade, mas apenas a uma primeira aproximação.
O nacionalismo apreende uma parte da realidade, mas apenas uma parte. A realidade é
muito mais ampla, menos finita. Em uma palavra, o nacionalismo é válido como uma
afirmação, mas não como uma negação. No presente capítulo da história tem o mesmo

46
valor que o provincialismo, o regionalismo no passado. Trata-se de um novo estilo de
regionalismo.

Por que este sentimento, que deveria ter se tornado um pouco mais passivo e menos
ardente em sua velhice, é exacerbado, por que está hiper-estabilizado em nosso tempo?
A resposta é fácil. O nacionalismo é uma face, um dos lados de um vasto fenômeno
reacionário. A reação é chamada, sucessiva ou simultaneamente, chauvinismo, fascismo,
imperialismo, e assim por diante. Não é por acaso que os monarquistas da Action
Française são ao mesmo tempo agressivamente jingoístas e militaristas. Um processo
complicado de ajuste, de adaptação das nações e de seus interesses a uma coexistência
solidária está atualmente em andamento. Este processo não pode ser realizado sem a
extrema resistência de mil paixões centrífugas e mil interesses secessionistas. A vontade
de dar aos povos uma disciplina internacional deve provocar uma ereção exasperada de
sentimentos nacionalistas que, romanticamente e anacronicamente, desejariam isolar e
diferenciar os interesses da própria nação dos interesses do resto do mundo.

Os autores desta reação descrevem o internacionalismo como utópico. Mas os


internacionalistas são obviamente mais realistas e menos românticos do que parecem ser.
O internacionalismo não é apenas uma idéia, um sentimento; é, acima de tudo, um fato
histórico. A civilização ocidental internacionalizou a vida da maior parte da humanidade.
Idéias, paixões, espalhadas rapidamente, com fluidez, universalmente.

Todos os dias as correntes de pensamento e cultura estão se espalhando cada vez mais
rápido. A civilização deu ao mundo um novo sistema nervoso.

Transmitido por cabo, hertzias, imprensa, etc., toda grande emoção humana viaja
instantaneamente ao redor do mundo. O hábito regional vai diminuindo gradualmente. A
vida tende para a uniformidade, para a unidade. Ele adquire o mesmo estilo, o mesmo tipo
em todos os grandes centros urbanos. Buenos Aires, Quebec, Lima, copiou a moda de
Paris. Seus alfaiates e costureiras imitam os modelos de Paquin. Esta solidariedade, esta
uniformidade não é exclusivamente ocidental. A civilização européia está gradualmente
atraindo todos os povos e todas as raças para sua órbita e seus costumes. É uma civilização
dominante que não tolera a existência de qualquer civilização concorrente ou rival. Uma
de suas características essenciais é seu poder de expansão. Nenhuma cultura jamais
conquistou uma extensão tão vasta da terra. O inglês que se instala em um canto da África
traz para lá o telefone, o automóvel, o poste. Junto com máquinas e mercadorias, as idéias
e emoções ocidentais se movem. Eles parecem estranha e invulgarmente ligados à
história e ao pensamento dos mais diversos povos.

Todos estes fenômenos são absoluta e inequivocamente novos. Eles pertencem


exclusivamente à nossa civilização que, deste ponto de vista, não se assemelha a nenhuma
das civilizações anteriores. E com estes fatos são coordenados outros. Os Estados europeus
acabam de perceber e reconhecer, na conferência de Londres, a impossibilidade de

47
restaurar suas respectivas economias e produção sem um pacto de assistência mútua.
Devido à sua interdependência econômica, os povos não podem, como no passado, atacar
e despedaçar uns aos outros com impunidade. Não por sentimentalismo, mas por
interesse próprio, os vitoriosos devem renunciar ao prazer de sacrificar os vencidos.

O internacionalismo não é uma tendência nova. Há cerca de um século, tem havido uma
tendência na civilização européia de se preparar para uma organização internacional da
humanidade. O internacionalismo também não é uma tendência exclusivamente
revolucionária. Há um internacionalismo socialista e um internacionalismo burguês, o que
não é nem absurdo nem contraditório. Quando sua origem histórica é determinada, o
internacionalismo acaba se tornando uma emanação, uma conseqüência da idéia liberal.
A primeira grande incubadora de germes internacionalistas foi a escola de Manchester. O
Estado liberal emancipou a indústria e o comércio das grilhetas feudais e absolutistas. Os
interesses capitalistas se desenvolveram independentemente do crescimento da nação.
A nação, finalmente, não poderia mais contê-los dentro de suas fronteiras. O capital foi
desnacionalizado; a indústria se propôs a conquistar mercados estrangeiros; as
mercadorias não conheciam fronteiras e se esforçaram para circular livremente por todos
os países. A burguesia então se tornou um comerciante livre. O livre comércio, como idéia
e como prática, foi um passo rumo ao internacionalismo, no qual o proletariado agora
reconheceu um de seus objetivos, um de seus ideais. As fronteiras econômicas foram
enfraquecidas. E este evento reforçou a esperança de um dia abolir as fronteiras políticas.

Somente a Inglaterra - o único país onde a idéia liberal e democrática, entendida e


classificada como uma idéia burguesa, foi plenamente realizada - chegou ao livre
comércio. A produção, por causa de sua anarquia, sofreu uma grave crise, que provocou
uma reação contra as medidas de livre comércio. Os Estados fecharam novamente suas
portas à produção estrangeira a fim de defender sua própria produção. Seguiu-se um
período protecionista, durante o qual a produção foi reorganizada em uma nova base. A
disputa sobre mercados e matérias primas assumiu um caráter nacionalista amargo. Mas
a função internacional da nova economia encontrou expressão novamente. A nova forma
de capital, capital financeiro, finanças internacionais, desenvolveu-se gigantescamente.
Poupanças de diferentes países fluíam para seus bancos e trusts a serem investidos
internacionalmente. A guerra mundial dividiu parcialmente esta teia de interesses
econômicos. Então a crise do pós-guerra revelou a solidariedade econômica das nações, a
unidade moral e orgânica da civilização.

A burguesia liberal, hoje como ontem, está trabalhando para adaptar suas formas políticas
à nova realidade humana. A Liga das Nações é um esforço vão para resolver a contradição
entre a economia internacionalista e a política nacionalista da sociedade burguesa. A
civilização não se resigna a morrer deste choque, desta contradição. É por isso que cria,
todos os dias, organismos internacionais de comunicação e coordenação. Além das duas
internacionais de trabalhadores, existem outras internacionais de hierarquia variável. A

48
Suíça é o lar da "sede" de mais de oitenta associações internacionais. Não faz muito tempo,
Paris foi o local de um congresso internacional de professores de dança. Lá, os dançarinos
discutiram longamente seus problemas em muitos idiomas. Eles estavam unidos além
fronteiras pelo internacionalismo do fox-trot e do tango.

NOTA:

1
Publicado em Mundial: Lima, 10 de outubro de 1924. Sobre este assunto, ver
"Nacionalismo y Vanguardismo" em Peruanicemos al Perú, pp. 72-79, Vol. 11 desta popular
série de obras completas.

HOMEM E MITO1

Todas as pesquisas contemporâneas de inteligência sobre a crise mundial levam a esta


conclusão unânime: a civilização burguesa sofre com a falta de um mito, de uma fé, de
uma esperança. Esta falta é a expressão de sua bancarrota material. A experiência -
racionalista teve a eficácia paradoxal de levar a humanidade à convicção desconsolada de
que a Razão não pode lhe dar nenhum avanço. O racionalismo tem servido apenas para
desacreditar a razão. A idéia de liberdade, disse Mussolini, foi morta por demagogos. É
certamente mais correto dizer que a idéia de Razão foi morta pelos racionalistas. A razão
extirpou da alma da civilização burguesa os resíduos de seus antigos mitos. Durante
algum tempo, o homem ocidental colocou Razão e Ciência no retábulo dos deuses
mortos. Mas nem a Razão nem a Ciência podem ser um mito. Nem a Razão nem a Ciência
podem satisfazer todas as necessidades do homem para o infinito. A própria razão tem
mostrado aos homens que não é suficiente para eles. Que somente o Mito possui a
preciosa virtude de preencher seu eu mais profundo.

A razão e a ciência corroeram e dissolveram o prestígio das antigas religiões.

Eucken, em seu livro sobre o significado e o valor da vida, explica clara e precisamente o
mecanismo desta obra dissolvente. As criações da ciência deram ao homem um novo
sentido de seu poder. O homem, antes assombrado pelo sobrenatural, descobriu
subitamente em si mesmo um poder exorbitante para corrigir e retificar a Natureza. Este
sentimento desalojou de sua alma as raízes da antiga metafísica.

Mas o homem, como a filosofia o define, é um animal metafísico. Não há vida frutífera sem
uma concepção metafísica da vida. O mito move o homem na história. Sem um mito, a
existência do homem não tem nenhum significado histórico. A história é feita por homens
possuídos e iluminados por uma crença superior, por uma esperança sobre-humana; o

49
resto é o refrão anônimo do drama. A crise da civilização burguesa se tornou evidente
assim que esta civilização percebeu a falta de um mito. Em tempos de positivismo
orgulhoso, Renan melancolicamente observou o declínio da religião e se preocupou com
o futuro da civilização européia. Os religiosos", escreveu ele, "vivem sobre uma sombra.
Sobre o que viverão depois de nós"? O interrogatório desolado ainda aguarda uma
resposta.

A civilização burguesa caiu no cepticismo. A guerra parecia reavivar os mitos da revolução


liberal: Liberdade, Democracia, Paz. Mas a burguesia aliada os sacrificou imediatamente
aos seus próprios interesses e ressentimentos na conferência de Versalhes. O
rejuvenescimento desses mitos serviu, no entanto, para levar a revolução liberal a uma
conclusão bem sucedida na Europa. Sua invocação condenou à morte os remanescentes
do feudalismo e do absolutismo que ainda sobrevivem na Europa Central, Rússia e
Turquia. E, acima de tudo, a guerra provou mais uma vez, irrefutavelmente e tragicamente,
o valor do mito. Os povos capazes de vencer eram os povos capazes de um mito
multitudinário.

II

O homem contemporâneo sente a necessidade peremptória de um mito. O ceticismo é


infértil e o homem não está satisfeito com a infertilidade. Uma exasperada e às vezes
impotente "vontade de acreditar", tão aguda no homem do pós-guerra, já era intensa e
categórica no homem do pré-guerra. Um poema de Henri Frank, A Dança diante da Arca,
é o documento que mais tenho em mãos no que diz respeito ao humor da literatura dos
últimos anos anteriores à guerra. Neste poema, bate uma grande e profunda emoção. É
por isso, acima de tudo, que quero citá-lo. Henri Frank nos fala de sua profunda "vontade
de acreditar". Um israelita, ele tenta, antes de tudo, acender em sua alma a fé no deus de
Israel. A tentativa é em vão. As palavras do Deus de seus pais soam estranhas neste
momento. O poeta não os entende. Ele se declara surdo ao seu significado. O homem
moderno, a palavra do Sinai não pode entendê-la. A fé morta não é capaz de ressuscitar.
Vinte séculos pesam sobre ele. "Israel morreu por ter dado um Deus ao mundo". A voz do
mundo moderno propõe seu mito fictício e precário: A razão. Mas Henri Frank não pode
aceitá-lo. A razão", diz ele, "a razão não é o universo".

"La raison sons Dieu c'est la chambre sans lampe".

O poeta parte em busca de Deus. Ele precisa urgentemente satisfazer sua sede de infinito
e eternidade. Mas a peregrinação é infrutífera. O peregrino gostaria de se contentar com
a ilusão cotidiana. "Ah! sache franchement saisir de tout moment - la fuyante fumée et
le suc éphémére". Finalmente ele pensa que "a verdade é entusiasmo sem esperança". O
homem carrega sua verdade em si mesmo.

"Si 1'Arche est vide où tu pensais trouver la loi, ríen n'est réel que ta danse".

50
III

Os filósofos nos trazem uma verdade análoga à dos poetas. A filosofia contemporânea
varreu para longe o edifício medíocre positivista. Ela esclareceu e demarcou os modestos
limites da razão. E formulou as teorias atuais do Mito e da Ação. É inútil, de acordo com
estas teorias, buscar a verdade absoluta. A verdade de hoje não será a verdade de amanhã.
Uma verdade é válida apenas para uma época. Vamos nos contentar com uma verdade
relativa.

Mas esta linguagem relativista não é acessível, não é inteligível para o vulgar. Os vulgares
não são tão sutis. O homem está relutante em seguir uma verdade desde que não acredite
que ela seja absoluta e suprema. É em vão recomendar-lhe a excelência da fé, do mito, da
ação. É necessário propor uma fé, um mito, uma ação: onde podemos encontrar o mito
capaz de reanimar espiritualmente a ordem que está em processo de ser posta em
movimento?

A questão exaspera a anarquia intelectual, a anarquia espiritual da civilização burguesa.


Algumas almas se esforçam para restaurar o Medievo e o ideal católico. Outros trabalham
para um retorno à Renascença e ao ideal clássico. O fascismo, através da boca de seus
teóricos, afirma ter uma mentalidade medieval e católica; acredita representar o espírito
da Contra-Reforma; por outro lado, afirma incorporar a idéia da Nação, uma idéia
tipicamente liberal. A teorização parece ceder à invenção do sofisma mais convoluto. Mas
todas as tentativas de ressuscitar mitos passados estão logo condenadas ao fracasso. Cada
época quer ter sua própria intuição do mundo. Nada é mais estéril do que tentar reavivar
um mito extinto. Jean R. Bloch, em um artigo publicado na revista Europe, escreve
palavras de profunda verdade a esse respeito. Na Catedral de Chartres, ele sentiu a voz
maravilhosamente crente do distante Medievo. Mas ele observa o quanto esta voz é
estranha para as preocupações desta época.

“Seria uma loucura", escreve ele, "pensar que a mesma fé repetiria o mesmo milagre". Olhe
ao seu redor, em algum lugar, para um novo misticismo, ativo, capaz de milagres, capaz
de preencher os infelizes com esperança, de levantar mártires e de transformar o mundo
com promessas de bondade e virtude. Quando você o tiver encontrado, nomeado, você
não será exatamente o mesmo homem".

Ortega y Gasset fala da "alma desencantada". Romain Rolland fala da "alma encantada".
Qual dos dois está certo? Ambas as almas coexistem. A "alma desencantada" de Ortega y
Gasset é a alma da civilização burguesa decadente: a "alma encantada" de Romain Rolland
é a alma dos falsificadores da nova civilização. Ortega y Gasset vê apenas o pôr-do-sol, o
tramonto, der Untergang. Romain Rolland vê o amanhecer, o amanhecer, der Aurgang.
O que diferencia mais clara e distintamente a burguesia e o proletariado nesta época é o
mito. A burguesia não tem mais nenhum mito. Tornou-se incrédulo, cético, niilista. O mito
liberal renascentista envelheceu demais. O proletariado tem um mito: revolução social.

51
Em direção a este mito, ele se move com veemência e fé ativa. A burguesia nega; o
proletariado afirma. A intelligentsia burguesa faz uma crítica racionalista do método, da
teoria, da técnica dos revolucionários. Que mal-entendido! A força dos revolucionários não
está em sua ciência; está em sua fé, em sua paixão, em sua vontade. É uma força religiosa,
mística, espiritual. É a força do Mito. A emoção revolucionária, como escrevi em um artigo
sobre Gandhi, é uma emoção religiosa. Os motivos religiosos se moveram do céu para a
terra. Eles não são divinos; eles são humanos, eles são sociais2.

O caráter religioso, místico e metafísico do socialismo tem sido notado há algum tempo.
George Sorel, um dos mais altos representantes do pensamento francês do século XX,
disse em suas Reflexões sobre a Violência: "Foi encontrada uma analogia entre religião
e socialismo revolucionário, que propõe a preparação e até mesmo a reconstrução do
indivíduo para uma obra gigantesca. Mas Bergson nos ensinou que não só a religião pode
ocupar a região do eu profundo; mitos revolucionários também podem ocupá-la com o
mesmo título". Renan, como o próprio Sorel lembra, alertou sobre a fé religiosa dos
socialistas, observando sua inexpugnabilidade a todo desânimo. "A cada experiência
frustrada, elas recomeçam. Eles não encontraram a solução: eles vão encontrá-la. Eles
nunca são assaltados pela idéia de que a solução não existe. Essa é a força deles.

A mesma filosofia que nos ensina a necessidade do mito e da fé é geralmente incapaz de


compreender a fé e o mito dos novos tempos. "Miséria da filosofia", como disse Marx. Os
profissionais da Inteligência não encontrarão o caminho da fé; as multidões encontrarão.
Caberá mais tarde aos filósofos codificar o pensamento que emerge do grande gesto de
massa. Será que os filósofos da decadência romana compreenderam a linguagem do
cristianismo? A filosofia da decadência burguesa não poderia ter um destino melhor.

NOTAS:

1
Publicado em Mundial: Lima, 16 de janeiro de 1925. Transcrevido em Amauta, Nº 31 (pp. 1-
4), Lima, Junho-Julho de 1930; Romance, Nº 6, México, 15 de abril de 1940 (com exceção de
alguns parágrafos); Jornada, Lima, 1 de janeiro de 1946. E incluído na antologia de José
Carlos Mariátegui, que a Universidade Nacional do México publicou em 1937 como
segundo volume de sua série "Pensadores de América" (pp. 119-124).

2
Ele se refere a um artigo publicado inicialmente em Variedades (Lima, 11 de outubro de
1924) e posteriormente incluído em La Escena Contemporánea (pp. 251-259). Aí ele afirma
e expõe seus pensamentos da seguinte maneira: "A emoção revolucionária não é uma
emoção religiosa? Acontece no Ocidente que a religiosidade desceu do céu para a terra.
Seus motivos são humanos, são sociais; não são divinos. Eles pertencem à vida terrena e
não à vida celestial".

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PESSIMISMO DA REALIDADE E OTIMISMO DO IDEAL1

Parece-me que José Vasconcelos encontrou uma fórmula de pessimismo e otimismo que
não só define o sentimento da nova geração ibero-americana diante da crise
contemporânea, mas também corresponde absolutamente à mentalidade e à
sensibilidade de uma época em que, apesar da tese de José Ortega y Gasset sobre a "alma
desencantada" e "o declínio das revoluções", milhões de homens estão trabalhando com
ardor místico e paixão religiosa para criar um novo mundo. "Pessimismo da realidade, -
otimismo do ideal" é a fórmula de Vasconcelos.

“Nunca estar satisfeito, mas estar sempre além e superior ao instante", escreve
Vasconcelos. “Repúdio à realidade e à luta para destruí-la, mas não por uma ausência de
fé, mas por um excesso de fé nas capacidades humanas e pela firme convicção de que o
mal nunca é permanente ou justificável e que é sempre possível e viável redimir, purificar
e melhorar o estado coletivo e a consciência privada".

A atitude do homem que se propõe a corrigir a realidade é certamente mais otimista do


que pessimista. Ele é pessimista em seu protesto e em sua condenação do presente; mas
é otimista em sua esperança para o futuro. Todos os grandes ideais humanos partiram de
uma negação; mas todos foram também uma afirmação. As religiões têm representado
perenemente na história esse pessimismo da realidade e esse otimismo do ideal que o
escritor mexicano nos prega neste momento.

Aqueles de nós que não estão satisfeitos com a mediocridade, aqueles de nós que estão
ainda menos satisfeitos com a injustiça, somos muitas vezes descritos como pessimistas.
Mas, na verdade, o pessimismo domina nosso espírito muito menos do que o otimismo.
Não acreditamos que o mundo deva ser fatal e eternamente como ele é. Acreditamos que
pode e deve ser melhor. O otimismo que rejeitamos é o otimismo fácil e preguiçoso
Panglossiano daqueles que pensam que vivemos no melhor de todos os mundos
possíveis.

II

Há dois tipos de pessimistas, assim como há dois tipos de otimistas. O pessimismo


exclusivamente negativo se limita a observar, com um gesto de impotência e desespero,
a miséria das coisas e a vaidade dos esforços. É um niilista que espera melancolicamente
sua última decepção. O limite extremo, como disse Artzibachev. Mas este tipo de homem,
felizmente, não é comum. Ele pertence a uma rara hierarquia de intelectuais desiludidos.
Ele é, além disso, um produto de uma era de decadência ou de um povo em colapso.

Entre os intelectuais, um niilismo simulado não é raro, o que os serve como pretexto

53
filosófico para evitar cooperar em qualquer grande esforço de renovação ou para explicar
seu desdém por qualquer trabalho de massa. Mas o niilismo fictício desta categoria de
intelectuais não é nem mesmo uma atitude filosófica. Resume-se a um desprezo oculto e
artificial pelos grandes mitos humanos. É um niilismo não confesso que não ousa vir à tona
na superfície do trabalho ou da vida do intelectual negativo que se entrega a este exercício
teórico como um vício solitário. O intelectual, um niilista em particular, é frequentemente
em público membro de uma liga antialcoólica ou de uma sociedade de proteção aos
animais. Seu niilismo não se destina a defendê-lo e protegê-lo, mas das grandes paixões.
Diante de pequenos ideais, o falso niilista se comporta com o mais vulgar idealismo.

III

É com os espíritos pessimistas e negativos desta raça que nosso otimismo em relação ao
ideal não nos permite tolerar ser confundidos. As atitudes absolutamente negativas são
estéreis. A ação é feita de negações e afirmações. A nova geração em nossa América como
em todo o mundo é, acima de tudo, uma geração que grita sua fé, que canta sua
esperança.

IV

Na filosofia ocidental contemporânea prevalece um clima de cepticismo. Esta atitude


filosófica, como apontam seus críticos penetrantes, é um gesto peculiar de uma civilização
decadente. Somente em um mundo decadente emerge um sentimento desencantado
pela vida. Mas mesmo este ceticismo ou relativismo contemporâneo não tem parentesco,
não tem afinidade com o niilismo barato e fictício do impotente, nem com o niilismo
absoluto e mórbido dos suicidas e loucos de Andreiev e Artzibachev. O pragmatismo, que
tão eficazmente move o homem à ação, é no fundo uma escola relativista e céptica. Hans
Vainhingher, o autor da Philosophie der Als Ob foi corretamente classificado como um
pragmático. Para este filósofo tudesco não existem verdades absolutas; mas existem
verdades relativas que governam a vida do homem como se fossem absolutas. "Os
princípios morais em igualdade com os princípios estéticos, os critérios do direito em
igualdade com os conceitos sobre os quais a ciência trabalha, os próprios fundamentos da
lógica, não possuem nenhuma existência objetiva; são construções fictícias nossas, que
servem apenas como cânones que regulam nossa ação, que é dirigida como se fossem
verdadeiras". É assim que o filósofo italiano Giuseppe Renssi define a filosofia de
Vainhingher em seus Lineamentos de Filosofia Cética, que, como vejo em uma nota
bibliográfica na revista Ortega y Gasset, está começando a atrair interesse na Espanha e,
portanto, na América espanhola.

Esta filosofia, portanto, não nos convida a renunciar à ação. Ela procura apenas negar o
Absoluto. Mas reconhece, na história da humanidade, a verdade relativa, o mito
temporário de cada época, como tendo o mesmo valor e a mesma eficácia de uma
verdade absoluta e eterna. Esta filosofia proclama e confirma a necessidade do mito e a

54
utilidade da fé. Mesmo que depois se deleite em pensar que todas as verdades e todas as
ficções, em última análise, são equivalentes. Einstein, um relativista, comporta-se na vida
como um otimista do ideal.

Na nova geração, o desejo de superar a filosofia céptica é ardente. Os materiais de um


novo misticismo estão sendo elaborados no caos contemporâneo. O mundo em gestação
não colocará sua esperança onde as religiões complicadas a colocaram. A forte luta", diz
Vasconcelos, "a fim de antecipar um pouco a obra do céu". A nova geração quer ser forte.

NOTA:

1
Publicado em Mundial: Lima, 21 de agosto de 1925. Na margem, o autor acrescentou o
último parágrafo da parte I.

IMAGINAÇÃO E PROGRESSO1

Luis Araquistain escreve que "o espírito conservador, em sua forma mais desinteressada,
quando não nasce do egoísmo básico, mas do medo do desconhecido e incerto, é, no
fundo, uma falta de imaginação". Ser revolucionário ou renovar é, deste ponto de vista,
uma conseqüência de ser mais ou menos imaginativo. O conservador rejeita qualquer
idéia de mudança por causa de uma espécie de incapacidade mental de concebê-la e de
aceitá-la. Este é, naturalmente, o caso do conservador puro, porque a atitude do
conservador prático, que adapta suas idéias à sua utilidade e conforto, tem, sem dúvida,
uma origem diferente.

O tradicionalismo, o conservadorismo, é assim definido como uma mera limitação


espiritual. O tradicionalista não tem nenhuma aptidão, exceto para imaginar a vida como
ela era. O conservador não tem nenhuma aptidão, a não ser imaginá-la como ela é. O
progresso da humanidade, portanto, é alcançado apesar do tradicionalismo e apesar do
conservadorismo.

Vários anos atrás, Oscar Wilde, em seu ensaio original The Human Soul under Socialism,
disse que "progredir é realizar utopias". Pensando na mesma linha do Wilde, Luis
Araquistain acrescenta que "sem imaginação não há progresso de nenhum tipo". E, de
fato, o progresso não seria possível se a imaginação humana entrasse em colapso

55
repentino.

A história sempre prova que os homens imaginativos têm razão. Na América do Sul, por
exemplo, acabamos de comemorar a figura e o trabalho dos líderes da Revolução da
Independência, e estes homens nos parecem, com toda razão, gênios, mas qual é a
primeira condição de gênio? É sem dúvida uma poderosa faculdade de imaginação. Os
libertadores eram grandes porque eram, acima de tudo, imaginativos. Eles insurgiram-se
contra a realidade limitada, contra a realidade imperfeita de seu tempo.

Eles trabalharam para criar uma nova realidade. Bolívar tinha sonhos futuristas. Ele pensou
em uma confederação de estados indo-espanholes. Sem este ideal, Bolívar provavelmente
não teria vindo para lutar por nossa independência. O destino da independência do Peru
dependeu, portanto, em grande parte, da aptidão imaginativa do Libertador. Celebrar o
centenário de uma vitória de Ayacucho é realmente celebrar o centenário de uma vitória
da imaginação. A realidade sensível, a realidade evidente, na época da revolução da
independência, certamente não era republicana ou nacionalista. O mérito dos libertadores
consistia em ter visto uma realidade potencial, uma realidade superior, uma realidade
imaginária.

Esta é a história de todos os grandes desenvolvimentos humanos. O progresso sempre foi


feito pelo imaginativo. A posteridade tem invariavelmente aceitado seu trabalho. O
conservadorismo de uma época posterior nunca teve mais defensores ou prosélitos do
que alguns poucos românticos e alguns extravagantes. A humanidade, com raras
exceções, estima e estuda os homens da Revolução Francesa muito mais do que os da
monarquia e da feudalidade então depostos. Luís XVI e Maria Antonieta parecem, acima
de tudo, infelizes para muitas pessoas. Para ninguém mais eles parecem grandes.

Por outro lado, a imaginação é geralmente menos livre e menos arbitrária do que deveria
ser. A pobrezinha tem sido muito mal alinhada e deformada. Alguns acreditam que é mais
ou menos louca; outros a julgam como sendo ilimitada e até mesmo infinita. Na realidade,
a imaginação é bastante modesta. Como todas as coisas humanas, a imaginação também
tem seus limites. Em todos os homens, tanto nos mais brilhantes quanto nos mais idiotas,
ela é condicionada pelas circunstâncias de tempo e espaço. O espírito humano reage
contra a realidade contingente. Mas é precisamente quando reage contra a realidade que
talvez esteja mais dependente dela. Ele se esforça para modificar o que vê e o que sente,
não o que ignora. Portanto, somente as utopias que poderiam ser chamadas de realistas
são válidas. Essas utopias que nascem do próprio núcleo da realidade. George Simmel
escreveu certa vez que uma sociedade coletivista caminha para ideais individualistas e
que, ao contrário, uma sociedade individualista caminha para ideais socialistas. A filosofia
hegeliana explica a força criativa do ideal como consequência tanto da resistência quanto
do estímulo que encontra na realidade. Pode-se dizer que o homem prevê e imagina
apenas o que já está germinando, amadurecendo, na obscuridade da história.

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Os idealistas precisam contar com o interesse concreto de um grande e consciente estrato
social. O ideal só prospera quando representa um grande interesse. Quando adquire, em
suma, caracteres de utilidade e conforto. Quando uma classe social se torna o instrumento
de sua realização.

Em nosso tempo, em nossa civilização, nunca houve utopias que fossem muito
audaciosas. O homem moderno quase conseguiu prever o progresso. Mesmo a fantasia
dos romancistas tem sido muitas vezes superada pela realidade em cima da hora. A
ciência ocidental avançou mais rápido do que Júlio Verne sonhava. O mesmo tem
acontecido na política. Anatole France previu a revolução russa até o final deste século,
poucos anos antes dessa revolução abriu um novo capítulo na história do mundo.

E é precisamente no romance de Anatole France, que, numa tentativa de prever o futuro,


formula estes presságios, - Sur la pierre blanche - que vemos como a cultura e a sabedoria
não conferem nenhum poder privilegiado à imaginação. Galion, o personagem de um
episódio de decadência romana evocado por Anatole France, foi um excelente exemplo
do homem culto e sábio de seu tempo. No entanto, este homem não estava
completamente consciente da decadência de sua civilização. O cristianismo lhe pareceu
ser uma seita absurda e estúpida. A civilização romana, em sua opinião, não poderia
perecer, não poderia perecer. A Gallio concebeu o futuro como um mero prolongamento
do presente. Ele nos parece, portanto, em seus discursos, lamentavelmente e
ridiculamente sem inspiração. Ele era um homem muito inteligente, muito culto, muito
refinado; mas teve a imensa infelicidade de não ser um homem imaginativo. Daí sua
atitude perante a vida ter sido medíocre e conservadora.

Esta tese sobre imaginação, conservadorismo e progresso poderia nos levar a conclusões
muito interessantes e originais. Conclusões que nos levariam, por exemplo, a classificar os
homens não mais como revolucionários e conservadores, mas como imaginativos e sem
imaginação. Ao distingui-los desta forma, talvez cometêssemos a injustiça de lisonjear
demais a vaidade dos revolucionários e ofender um pouco a vaidade, que é, afinal de
contas, respeitável, dos conservadores. Além disso, a nova classificação pareceria bastante
arbitrária, bastante incomum, para a intelligentsia universitária e metódica: mas é
obviamente muito monótono classificar os homens da mesma forma. E, acima de tudo, se
a humanidade ainda não encontrou um novo nome para conservadores e revolucionários,
sem dúvida é também por falta de imaginação.

NOTA:

1
Publicado em Mundial: Lima, 12 de dezembro de 1924.

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