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CAPÍTULO 1

—| Sobre ideologias e utopias

Os que decretaram o fim das utopias ignoraram os


autores que viram na consciência utópica uma
dimensão permanente da condição humana e os
que compreenderam a utopia no sentido sociológico,
como expressão de grupos e estratos marginalizados,
sempre presentes em qualquer sociedade (S. E
Rouanet).

Segundo Karl Mannheim


ENTRE OS MUITOS SIGNIFICADOS ATRIBUÍDOS às expressões ideologia e
utopia, irei n o r t e a r - m e n e s t e livro pela r e f l e x ã o de K a r l
Mannheim, 3 para quem o conceito de ideologia diz respeito a
formulações pelas quais certos grupos dominantes obscurecem,
para si e para os d e m a i s , a c o n d i ç ã o real da s o c i e d a d e ,
contribuindo assim para a estabilidade da ordem social existente.
O pensamento utópico, por sua vez, é caracterizado por conter
uma perspectiva de transformação das condições sociais dadas
e por e s t a r sempre em p o s i ç ã o de d e s e n c a d e a r c o n d u t a s
contrárias à realidade imediata, constituindo, desse modo, um
instrumento em favor da superação da ordem social vigente.

Tanto a ideologia q u a n t o a utopia expressam ideais que


transcendem a situação real. Ambas comportam formulações
"irreais" que não cabem na ordem social em curso e trazem

3 Sobre esse sociólogo húngaro, ver Foracchi (1982). Nesta mesma coleção, ver o livro
de Alberto Tosi Rodrigues (2000, p. 95-99). Sobre suas idéias educacionais, ver
Mannheim &Stewart (1969).
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c o n t e ú d o s que jamais poderiam ser realizados n o mundo,


tal qual ele é. O que distingue a ideologia da utopia é que a
primeira c o n t é m elementos capazes de legitimar a ordem, ao
passo que a segunda incita à mudança. A utopia traz sempre
um componente de impulso, uma motivação para o futuro, em
direção ao desconhecido, sendo que a ideologia estabiliza a
vontade e incentiva o conformismo. Na utopia manifesta-se uma
característica fundamental do ser humano, sua necessidade de
projetar mundos melhores e lançar-se em busca de realizá-los.

É importante entender ideologia não como simples mentira,


como postulado intencionalmente elaborado para enganar ou
c o n d u z i r a o p i n i ã o a l h e i a em d i r e ç ã o e r r ô n e a . S e g u n d o
Mannheim, os c o n t e ú d o s da i d e o l o g i a , embora bem-
i n t e n c i o n a d o s n o t o c a n t e à c o n d u t a subjetiva das pessoas,
tornam-se deformados justamente quando introduzidos no solo
das situações práticas. Vejamos um exemplo dado pelo autor no
livro Ideologia e utopia, origem das noções a que me refiro:

A idéia do amor fraterno cristão, por exemplo, permanece, em uma


sociedade fundada na servidão, uma idéia irrealizável e, neste sentido,
uma idéia ideológica, mesmo quando o significado pretendido
constitui, em boa-fé, um motivo da conduta do indivíduo. É impossível
viver harmoniosamente, à luz do amor fraterno cristão, em uma
sociedade que não se acha organizada sob o mesmo princípio
(MANNHEIM, 1 9 6 8 , p . 2 1 8 ) .

A idéia do amor cristão que prega uma vivência fraterna


entre todos os homens tem como requisito um mundo que não
seja baseado na servidão. Por isso, ao ser inserida em meio a
uma realidade que não atende a este requisito, tal idéia pode
dificultar a tomada de consciência, pelo indivíduo, das mazelas
em que vive. Mesmo sendo plena de boas intenções, a idéia
cristã sofre deformações ao ser colocada diante de uma realidade
determinada, pois tende a encobrir a ordem vigente, acabando
por impedir que sejam tomadas atitudes, individuais ou coletivas,
S O B R E I D E O L O C I A S E UTOPIAS 17

para transformar essa ordem em uma ordem capaz de realizar o


amor fraterno.
Mas se o leitor pensar que a utopia é algo que se coloca em
posição de transcender a realidade histórica existente, como
formulação que contém o germe da mudança imprescindível à
sua efetivação, cabe perguntar: não poderia aquela mesma idéia
de amor fraterno ser considerada utópica, isto é, servir como
incitamento à transformação da ordem servil em uma ordem
mais condizente com os postulados cristãos? E não é possível
que uma utopia - uma idéia que hoje impulsiona a transformação
- venha a tornar-se, mais tarde, uma ideologia?

Mannheim indica uma solução para esse problema em sua


análise da noção de liberdade. De acordo com ele, a idéia de
liberdade surge como uma utopia na época em que é formulada
pela burguesia ascendente em sua luta para romper as amarras
do feudalismo. H i s t o r i c a m e n t e , a afirmação burguesa da
liberdade de opinião e de pensamento constituiu-se como utopia,
de fato, um instrumento de desintegração da sociedade existente
e de realização de uma nova ordem social. Mais adiante, porém,
com o desenvolvimento do capitalismo e a instalação da
burguesia no poder político, a mesma idéia, antes utópica, passa
a conter elementos ideológicos. Afirmar que o homem é livre
torna-se então um recurso de encobrimento da nova servidão
que se instala.

A dificuldade para distinguir entre ideologia e utopia é


grande quando nos e n c o n t r a m o s envolvidos na s i t u a ç ã o
presente, contemporânea, imersos no calor dos acontecimentos.
Olhando para o passado, no entanto, os entraves se desfazem
mediante o critério da realização, proposto por Mannheim.
Trata-se de um critério retroativo que permite verificar, na história,
quais idéias verdadeiramente serviram para romper os laços da
ordem existente e quais foram úteis apenas para dissimular a
realidade e manter o status quo.
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O grande mérito utópico do liberalismo foi sustentar um


espírito crítico, uma "atmosfera estimulante e sugestiva" cujo
i m p a c t o t r a d u z i u - s e n o s e n t i m e n t o do h o m e m c o m o ser
indeterminado e livre. " O ânimo dominante do Iluminismo,
a esperança de que enfim as luzes raiariam sobre o mundo
sobreviveu o bastante para dar a estas idéias... seu poder de
condução", diz Mannheim (idem, p. 252). O liberalismo ofereceu
poderosos ingredientes aos movimentos revolucionários do século
XVIII - as idéias de i g u a l d a d e , l i b e r d a d e e r e s p e i t o à
individualidade, tendo na ética e na cultura intelectual sua
principal autojustificação contra os privilégios da nobreza.

Conservadorismo e socialismo
A terceira forma de mentalidade vista por Mannheim é a
conservadora. Não se trata propriamente de uma utopia, dado
que o pensamento conservador acha-se em total harmonia com
a realidade existente, sobre a qual estabelece seu domínio.
Mannheim situa essa forma de pensamento no rol das utopias
por perceber que o conservadorismo, sempre que vê atacadas as
bases de sua d o m i n a ç ã o , passa a refletir sobre si mesmo,
constituindo, na verdade, uma contra-utopia. Nascida como
instrumento de defesa frente às iniciativas de rompimento da
ordem trazidas pelo liberalismo, a idéia conservadora teve em
Hegel seu principal representante:

Constitui a grande realização de Hegel estabelecer, em oposição à idéia


liberal, uma contrapartida conservadora, não no sentido de criar, por
uma combinação artificial, uma atitude e um modo de comportamento,
mas, antes, elevando um modo de experiência já existente a um nível
intelectual e enfatizando as características distintivas que o destacassem
da atitude liberal face ao mundo (MANNHEIM, 1 9 6 8 , p. 2 5 5 - 2 5 6 ) .

Para os conservadores, o Iluminismo era algo por demais fluido,


sem concretude, idéia recheada de mera opinião. Em contraposição
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a isso, levaram o apego liberal ao "aqui e agora" ao extremo,


fincando suas raízes na realidade viva, fundando a utopia da
"idéia concretizada", a idéia que se efetiva por intermédio das
normas e das leis corporificadas n o Estado ou n o Espírito
Absoluto, gerando assim uma utopia "implantada na realidade
existente" (idem, p. 256).
Na visão conservadora, o existente possui "valor positivo e
nominal". Seu modo de conceber o tempo implica valorizar a
história não como "mera extensão unilinear de tempo", nem
como uma linha que integra o que é, o que já foi e o que será.
Sob a visão conservadora, o passado é virtualmente presente,
pois, como está em Hegel, o espírito contemporâneo é abarcado
pelo ciclo da existência eterna e necessária: o que é sempre foi
e, portanto, sempre será (idem, p. 259).

A quarta utopia analisada por Mannheim, a utopia socialista-


comunista surgida no século X I X , assemelha-se à idéia liberal
no aspecto em que ambas viam a liberdade e a igualdade como
realizações possíveis somente em um futuro distante - o "dever
ser". Diferentemente do liberalismo, porém, o socialismo estipulou
esse futuro de modo bem mais determinado: o fim do capitalismo.
Além de sua luta contra o anarquismo, caracterizado por
M a n n h e i m c o m o u m a f o r m a de q u i l i a s m a , o s o c i a l i s m o
desenvolveu-se também contra a utopia liberal. Sua. crítica trazia
o argumento de que não bastam "boas intenções em abstrato e
postular no futuro remoto um domínio realizado de liberdade".

Seria antes necessário tomar consciência das condições reais (neste


caso econômicas e sociais) sob as quais esta realização de desejos possa
tornar-se de alguma forma operante. O caminho que, do presente,
conduz a este objetivo distante deve ser igualmente investigado, de
modo a serem identificadas as forças do processo contemporâneo, cujo
caráter dinâmico e imanente, sob nossa direção, conduza passo a passo
à realização da idéia (MANNHEIM, 1968, p. 264-265).
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Para o socialismo, "as idéias não são sonhos nem desejos,


imperativos imaginários baixados de alguma esfera absoluta"
(idem, p. 264). As idéias, quando retiradas do processo material
que as define, perecem, tornam-se ideologias, ao passo que,
inseridas no contexto estrutural total, adquirem potencialidade
para realizar-se. As idéias socialistas, que fermentaram revoltas
proletárias já no século XIX, atingiram seu auge com a Revolução
Russa de 1917, como é sabido.

Conforme assinala Mannheim, ao estabelecer a estrutura


econômica e social como realidade absoluta, a utopia socialista-
comunista afrontou decisivamente os conservadores e os liberais,
para quem as forças propulsoras da sociedade continham algo
de espiritual. Na mentalidade socialista, ao contrário, a energia
criadora emerge "da secular afinidade dos estratos oprimidos",
resultando numa "glorificação dos aspectos materiais da
existência, anteriormente experimentados apenas como fatores
negativos e obstrutivos" (idem, p. 265).

O tempo das utopias


Para a idéia quiliástica, o sentido de continuidade do tempo
não existe. Presente e passado não têm significação concreta
enquanto momentos que se interligam para projetar o futuro.
Antes que construído, o futuro é instalado em algum lugar para
além da história, de maneira imediata e imprevisível por
intermédio da experiência extática e revolucionária. Já com o
liberalismo, o futuro torna-se tudo e o passado, nada, na medida
em que o futuro se define a partir do instante em que os seres
humanos capacitam-se como seres livres e autônomos, dando
início ao movimento que leva inevitavelmente ao futuro.

A o passo que no conservadorismo a utopia é concretizada


no tempo presente, no "é", para o liberal-humanitarismo a utopia
decorre de uma crença no "dever ser", na projeção de um tempo
histórico futuro a ser edificado. De modo semelhante, para a
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utopia socialista o tempo futuro é algo a realizar-se a partir do


presente, cabendo ao líder político incentivar as forças que pareçam
encaminhar-se na direção desejada e impedir, ou minimizar,
a manifestação das forças contrárias.
N o ensaio " O significado do conservantismo", Mannheim
( 1 9 8 2 , p. 128) distingue o discurso conservador do discurso
progressista, estabelecendo que esse último "percebe o presente
como o começo do futuro, enquanto o conservador considera-o
simplesmente c o m o o último ponto atingido pelo passado".
O conservador inclina-se a perceber o passado como "uno com
o presente; portanto, a sua concepção de história tende a ser
espacial em vez de temporal; ele enfatiza a coexistência em vez
da sucessão".

Nesse caso, se o liberal e o socialista podem ser considerados


progressistas, a diferença entre eles está na concepção do futuro,
que assume, para o primeiro, características formais, c o m o
processo de concretização gradativa, uma linha reta que une o
presente ao futuro - o que define a noção de progresso, decisiva
no p e n s a m e n t o liberal. A idéia socialista, por sua vez, diz
Mannheim,

opera não com um princípio transcendente e puramente formal, que


do exterior regula o acontecimento, mas, antes, como uma "tendência"
no interior da matriz desta realidade, continuamente se corrigindo
com referência a este contexto (MANNHEIM, 1968, p. 270).

A e x p e r i ê n c i a h i s t ó r i c a , na utopia socialista, t o r n a - s e
"um verdadeiro plano estratégico". A história, então, assume
aspectos de um fenômeno que pode ser experimentado "como
um fenômeno intelectual e volitivamente controlável".

Para aclarar essas distinções mannheimianas por meio de


um exemplo, tomemos a idéia de igualdade entre os homens.
Para o pensamento quiliástico, a igualdade não é algo que diga
respeito ao plano histórico, quer no passado, quer no presente,
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mas apenas a um tempo futuro, atingível por um rompimento


abrupto e imprevisível com a ordem vigente. Para o liberal,
a igualdade consiste em um estado formal, não um dado empírico,
presente, mas algo somente realizável a partir da liberdade
individual, o que remete a processos de liberação dos vínculos
de servidão, aquisição do direito de escolha dos governantes
etc., esses processos, sim, com existência possível no mundo
atual. A liberdade, condição que decorre da natureza humana
e que pode realizar-se com a ajuda de ações concretas no
presente, assume o papel de motor do futuro.

Em sua atitude historicamente contrária ao liberalismo,


o pensamento conservador toma o postulado igualitário liberal
- que não passa mesmo de um postulado - e o considera como
se já existente, verificando assim o equívoco daquela afirmação
política. O conservadorismo, então, posiciona a liberdade apenas
no âmbito da vida privada, subordinando as relações sociais a
princípios de ordem e disciplina, garantidos por uma harmonia
preexistente - Deus ou as forças naturais da sociedade e da
nação. Já a utopia socialista, calcada na crítica ao pensamento
liberal e ao conservador, enxerga a inexistência da igualdade, 1
no passado e no presente, como fio condutor de ações que
deverão resultar em um estado de igualdade no futuro.

O fim das utopias


O livro Ideologia e utopia é composto por vários trabalhos
relativamente independentes escritos por Mannheim em torno
de 1930. Embora antigos, não os vejo como irrelevantes para
e n t e n d e r a atualidade, e s p e c i a l m e n t e ao considerar que
Mannheim já tinha diante de si os grandes eventos que marcaram
o século X X , cujos desdobramentos por certo ainda hoje se
apresentam sempre que refletimos sobre os rumos da humanidade
no século XXI.
SOBRE IDEOLOCIAS E UTOPIAS 25

Refiro-me às experiências fascista, nazista e comunista, que


j á se e n c o n t r a v a m c o n c r e t i z a d a s ou em curso de d e f i n i ç ã o
naquele momento, e à experiência de expansão, nem sempre
b e m - s u c e d i d a , dos ideais d e m o c r á t i c o s , t a n t o e m â m b i t o
i n t e r n a c i o n a l q u a n t o n o i n t e r i o r de a l g u m a s s o c i e d a d e s .
P o r t a n t o , M a n n h e i m podia falar c o m propriedade sobre o
conservadorismo, o socialismo e o liberalismo, n ã o só c o m o
formulações teóricas do século X I X , mas podendo observar o
desenvolvimento de seus postulados, desenvolvimento esse que
h o j e p r o c u r a m o s e n t e n d e r para n o r t e a r o futuro de n o s s a
civilização. 6

E o que vê M a n n h e i m quando analisa as formas utópicas


modernas, as quais atualmente ainda nos envolvem? Mannheim
vê as utopias, ideais que originalmente transcendem a situação real,
aproximar-se da realidade histórica, ou seja, sendo colocadas
no terreno das práticas sociais. Nesse terreno, as utopias perdem
seu caráter de oposição à ordem existente, assemelhando-se ao
modelo conservantista - no fundo, uma contra-utopia, conforme
já vimos.

Assim, o liberalismo e o socialismo, ao entrarem em uma situação mais


conducente ao conservadorismo, adotaram intermitentemente as idéias
que o conservadorismo lhes oferecia como modelo... Verificamos portanto
que, condicionado pelo processo social, se desenvolve nestes tipos de
pensamento, em diversos pontos e sob diversas formas, um relativo
afastamento em relação à utopia (MANNHEIM, 1968, p. 273).

Certamente o leitor não desconhece as críticas feitas ao modelo


socialista implantado em vários países, críticas que se tornaram
cada vez mais duras após o fim da U R S S . Mannheim as menciona

6 Como veremos em nosso quarto capítulo, John Dewey encontrava-se na mesma


situação privilegiada quando elaborou suas concepções políticas.
26 JOHN DEWEY - A UTOPIA DEMOCRÁTICA

em seu livro, evidentemente de modo circunscrito à época em


que escreveu e enfocando unicamente o plano em que se
f o r m u l a v a o s o c i a l i s m o - c o m u n i s m o c o m o utopia, e diz:
o pensamento socialista, "que até aqui vem desmascarando as
utopias de todos os seus adversários como ideologias, jamais...
aplicou o método a si mesmo e nunca freou seu próprio desejo
de ser absoluto" (idem, p. 273).
O que Mannheim quer dizer é que o socialismo, erguido
sobre a tese de que o pensamento de seus adversários é ideológico
por ser histórica e socialmente determinado, não consegue
enxergar suas próprias teses como também determinadas histórica
e socialmente. Daí o socialismo deixar de ser uma utopia para
cristalizar-se na afirmação do "é", abandonando a perspectiva
do "dever ser". Já em torno dos anos de 1930, Mannheim percebe
a impossibilidade de sobrevivência da utopia socialista, talvez a
última utopia, a única utopia que se mostrou capaz de combater
e vencer as outras formas de pensamento utópico, inclusive o
liberalismo que acabou degenerando em ideologia.

E Mannheim sentencia: "Toda vez que a utopia desaparece,


a história deixa de ser um processo que conduz a um fim último"
(idem, p. 2 7 6 ) . Perdemos o quadro de referências pelo qual
podíamos avaliar os fatos à nossa volta, os quais se tornam agora
um amontoado de acontecimentos sem sentido, sem conexão.
Quando desaparece o conceito de tempo histórico que permitia
nos remetermos a uma época melhor, a história torna-se um
espaço não-diferenciado. Imperam, por fim, o ceticismo e o
relativismo.

Para Mannheim, a situação presente em sua época - e por


que não dizer na época que vivemos hoje? - denuncia a falência
das ideologias e das utopias, mas revela também a necessidade
de escolhermos um novo caminho. Torna-se imprescindível uma
nova utopia que nos leve adiante, que nos projete em direção
ao futuro. Talvez, no futuro, não venhamos a necessitar nem de
S O B R E I D E O L O C I A S E UTOPIAS 27

ideologias nem de utopias, mas enquanto isso, enquanto o futuro


não se faz presente, deixar desaparecer todo o sentimento de
t r a n s c e n d ê n c i a é sinônimo de decomposição da v o n t a d e
humana, porque o pensamento utópico faz parte da essência do
ser humano: imaginar mundos melhores e lançar-se em busca
de sua realização.
A o passo que o declínio das ideologias representa uma crise
limitada a certos grupos da sociedade, o fim das utopias traduz
o nefasto estado em que o homem perde "a vontade de plasmar
a história", rendido diante de um paradoxo: "tendo alcançado o
mais alto grau de domínio racional da existência, se vê deixado
sem nenhum ideal, tornando-se um mero produto de impulsos"
(idem, p. 285).

A permanência das utopias


Sérgio Paulo Rouanet está entre aqueles que têm esperança
no renascimento das utopias. Melhor dizendo, Rouanet partilha
da idéia de que as utopias estão sempre presentes porque fazem parte
da condição humana, bem como do enquadramento sociológico
dos grupos humanos oprimidos. Mesmo no momento atual,
quando a globalização parece representar o ápice de uma era
pós-utópica, dado que a economia global aparenta ser a utopia
realizada que dispensa idéias de transcendência da ordem
existente, mesmo nesse momento, afirma Rouanet, sobrevivem
as utopias.

No artigo "A morte e o renascimento das utopias", publicado


recentemente no jornal Folha de S.Paulo, Rouanet posiciona-se
contrariamente à desqualificação das utopias, defendendo a
validade de sabermos distinguir, isto sim, entre as boas e as más
projeções do futuro. Nessa última categoria, das más utopias ou
"utopias retrospectivas", Rouanet coloca o antiindustrialismo,
a ecoutopia que regride a uma era anterior ao capitalismo; a utopia
totalitária, que rejeita as noções e as práticas políticas fundadas
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no respeito à lei e à soberania popular; o eugenismo, que ressurge


na forma de c r e n ç a numa bioutopia capaz de programar
geneticamente os seres humanos; as etnoutopias, que valorizam
particularismos étnicos, religiosos e lingüísticos, incentivando
conflitos que conduzem à retribalização do planeta.
Embora algumas dessas "distopias", como as chama Sérgio
Paulo Rouanet, recorram a benefícios gerados pela ciência, como
é o caso dos recursos tecnológicos de manipulação genética
requisitados pelas bioutopias, todas elas têm em comum uma
profunda rejeição pelas conquistas da modernidade. As más
utopias recusam as formas de produção mecanizada, as concepções
de liberdade individual e igualitarismo, o respeito às diferenças
individuais, à heterogeneidade, e as formas democráticas de
governo; enfim, as grandes invenções da modernidade. E são
essas invenções, justamente, que formam as boas utopias.

Não é dando as costas à modernidade que devemos buscar a utopia,


mas sim na própria modernidade. Ela tem um vetor funcional,
sistêmico, ligado à racionalidade instrumental. Mas tem também
um vetor humanista, ligado à racionalidade emancipatória
( R O U A N E T , 2000, p. 15).

Rouanet defende o Iluminismo como portador de ideais de


emancipação de todos os indivíduos. Os ideais iluministas de
universalismo, de autonomia econômica, política e cultural,
como respeito à diversidade de crença, gênero e nacionalidade,
abrem a perspectiva de uma existência em que cada indivíduo
tenha valor por seus atributos, em que prevaleça o Estado de
Direito e em que todos tenham acesso ao saber e tenham
liberdade para pensar sem tutela da autoridade. Esses ideais
formam a "utopia da modernidade", uma utopia que, por
definição, é irrealizável mas também é "irrenunciável, porque
sem ela estaríamos condenados seja à unidimensionalidade de
um mundo sem transcendência, dominado pelos imperativos
S O B R E I D E O L O C I A S E UTOPIAS 29

de uma modernidade funcional globalizada, seja ao pesadelo


das regressões pré-modernas" (idem, p. 16).
Nos capítulos seguintes deste livro procurarei mostrar que o
pensamento de John Dewey é um bom exemplo de que as utopias
estão sempre presentes, mesmo quando a ordem social degenera
e as ideologias imperam.

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