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Da Globalização à Universalidade

José Manuel Barbosa

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Da Globalização à Universalidade

Um cruzamento de ideias com Slavoj Žižek e Boaventura de Sousa Santos a partir das visões de Pierre Lévy.

Reusumo: Pretende-se com este trabalho uma breve reflexão sobre as condições de possibilidade ao
progresso moral e material da humanidade. Pretende-se pensá-las no espaço concetual da globalização,
do multiculturalismo e da cyberdemocracia e tendo como ponto de partida a abordagem de Piérre
Lévy às fortes possibilidades do ciberespaço para o desenvolvimento gradual de uma democracia livre,
aberta e global. Pretende-se em seguida, chamar a atenção para os perigos que ameaçam esse
potencial, alertando para os inconvenientes da despolitização da economia e da cultura. Procura-se
aqui abordar o liberalismo multicultural tolerante, a neocolonização e a diluição da universalidade na
pós politica a partir do pensamento de Slavoj Žižek e de Boaventura de Sousa Santos. Neste
cruzamento de ideias, faz-se a solicitação de uma filosofia vigilante face às ameaças dos consensos
hegemónicos que continuam a penetrar todos os espaços da vida, sejam eles reais ou virtuais. A
necessidade de uma filosofia cujas reflexões tenham como objeto as condições e as motivações que
estão na base da questão do domínio global, sob o risco de cairmos afinal numa ciberglobalização
paradoxalmente tanto mais fértil quanto asfixiante.

Palavras chave: ciberdemocracia- multiculturalismo- hegemonia - pós política- neocolonialismo-


universalidade.

Introdução

A postura otimista ou a postura pessimista são as únicas formas que dispomos para viver o futuro. A
psicologia advertir-nos-ia que otimismo ou pessimismo, como sentimentos que também são, possuem
uma natureza volátil e dependem de uma rede incomensurável de variáveis e circunstâncias. A
filosofia, por sua vez, tem-nos ensinado que só um sentimento positivo acerca do futuro possui a força
prática para melhor o realizar.
Ser-nos-á lícito, hoje, ter esperança no aperfeiçoamento das disposições humanas para o seu bem
futuro? A forma como nos posicionamos na questão determina, segundo Kant, o nosso amor ou o
nosso desprezo pelo homem na sua totalidade.
Como poderá então, aquele que diz amar o homem, não olhar para a sua história senão como fluxo
significante e repetido de episódios de exploração e autodestruição, para concluir afinal que a única
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história universal que existe é a da narrativa das ações, não dos mais fortes sobre os mais incapazes,
mas a vitória dos mais conscientes sobre os mais incautos, numa espiral de dominação e subjugação. E
isto não nos dá que pensar?
É inegável que assistimos hoje ao fenómeno do acentuado crescimento da globalização, que as TIC
(Tecnologias da Informação e da Comunicação) permitem cada vez mais a emergência de espaços
virtuais propícios à constituição de uma massa crítica global, à emergência de uma consciência livre e
democrática, à queda dos Estados opacos, ao fim do secretismo e do totalitarismo tal como preconiza
Pierre Lévy, mas é preciso cuidado, porque a opacidade, o secretismo e os totalitarismos também se
adaptam, e com mais calculismo e antecedência do que se imagina. Diz-nos Baventura de Sousa
Santos no seu livro Globalização, fatalidade ou utopia?:

As telecomunicações são cada vez mais a infraestrutura física de um tempo-espaço emergente: o


tempo- espaço- electrónico, o ciber- espaço ou o tempo espaço instantâneo. Este novo tempo-espaço
tornar-se-á gradualmente o tempo espaço privilegiado dos poderes globais. Através das redes
metropolitanas e de cibernódulos, esta forma de poder é exercida global e instantaneamente,
afastando, ainda mais, a velha geografia do poder centrada em torno do estado e do seu tempo-
espaço. (G.pág.47)

Julgo que o discurso de Pierre Lévy no se livro Ciberdemocracia subestima as hegemonias talvez
porque o autor ainda as conceba sob o prisma de um paradigma ultrapassado. Foi exatamente este
ponto que me trouxe até este breve artigo.
A distância qualitativa entre o formato de um Estado totalitário, tal como sempre o conhecemos, e a
gravidade de um Estado totalitário global, é bem maior do que a distância filosófica que vai de
Maquiavel a Estaline.
Slavoj Žižek, psicanalista e filósofo esloveno, por sua vez, aborda o problema não só da economia
despolitizada, mas também do multiculturalismo despolitizado. Este multiculturalismo consiste e
opera, segundo ele, na e pela liberalização e desvirtuação das ideologias e na consequente diluição de
todas as funções universalizantes. Žižek chama-nos à atenção para o fosso entre multiculturalismo e
universalismo. Esta distinção é fundamental quando pensamos o futuro, caso contrário, corremos o
risco de assistir à fragmentação definitiva da força motriz da utopia como horizonte filosófico.
Nesse sentido, procura-se defender que todas as possibilidades (reais ou virtuais) de uma democracia
verdadeiramente global em direção ao cidadão individual e livre, só se mostram realmente possíveis se
se tiverem em consideração, além de muitos outros factores, é claro, as forças conscientes que as

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ameaçam. E a ameaça torna-se maior quando falamos de forças que controlam o sentido de todo o
progresso científico, financeiro, moral; quando falamos de forças, elas mesmas, que fornecem,
facilitam e promovem a tecnologia pela qual, de acordo com Lévy, poderiamos passar finalmente de
Homens a Cidadãos. É necessário um estudo acerca da mecânica de dominação global, nos seus
motivos e nos seus métodos, que urgem ser devidamente pensados e discutidos; é necessário e urgente
fazer da anti-utopia um objeto negativo da filosofia, analisá-lo com espaço vivo, real e ativo na
maximização dos seus domínios, da sua hermeticidade e da sua permanência. São campos de força que
se traduzem das mais diversas formas num estranho interesse de dominação moral e material. Os
inimigos da democracia têm o seu espaço bem demarcado no admirável mundo virtual. Não estamos a
falar de anarquistas radicais, neonazis de subúrbio, pedófilos, psicopatas, comunistas arrojados ou de
loucos, estamos a falar de uma dimensão elitista e poderosa, consciente, camaleónica, penetrante. Uma
trituradora de Homens.
E é claro, as auto-estradas da informação permitem-nos hoje perceber melhor do que nunca a evidência
desta dinâmica, mas será que toda essa disponibilidade pública de informação em novelo indistrincável
é suficiente para nos emanciparmos de um poder cada vez mais nefasto e ardiloso? Torna-se urgente
uma filosofia vigilante que não se confunda com teorias da conspiração new age, uma frente filosófica
de denúncia que deve trabalhar em paralelo com todas as formas de pensar o futuro.
Pretendo ainda salvaguardar que este artigo parte da leitura do livro Ciberdemocracia como o meu
primeiro contacto com a obra de Pierre Lévy. Com ele pretende-se apenas uma breve reflexão na
persistência híbrida das formas de dominação. Tudo aquilo que é proposto neste trabalho é suscetível
de ser reformulado por leituras futuras da obra do autor. Não cabe no âmbito deste artigo qualquer
atitude ou visão pessimista do futuro. Nas suas breves considerações, quando muito, há prudência.

A Ciberdemocracia

“As ditaduras cairão ao ritmo da expansão das ciberculturas”

O otimismo de Pierre Lévy pode ser contagiante. O mundo que ele preconiza a partir das
possibilidades do ciberespaço é tão desejável quanto praticável mas, a utopia como força motriz, não
se deve ver constantemente obrigada a ser otimista para ser funcional. A utopia hoje deve assumir não
apenas a forma de uma força motriz mas, acima de tudo, a forma de uma verdadeira pretensão à
dignidade. Todo o potencial do ciberespaço para a realização de uma cidadania global, livre e prospera
no futuro, tem como condição necessária a prudência, que não pode ser confundida com pessimismo.
Logo nas primeiras páginas do Ciberdemocracia, Pierre Lévy refere alguns tipos de críticas que
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habitualmente lhe são feitas, e de entre elas, não deixa escapar, como é óbvio, aquelas que o acusam a
si e ao seu pensamento demasiado otimista de dissimular, e cita-se:

... a omnipotente empresa de um “poder” que se espera que os intelectuais denunciem


constantemente, ao mesmo tempo que se isentam em alimentar a menor esperança de libertação em
quem quer que seja. (pág. 16)

Queremos acreditar que o exercício da denúncia de que fala Lévy não se reduz a intelectuais ou então
estamos perdidos. Porque sejamos otimistas ou não, a verdade é que não nos podemos esquivar ao
facto de que há forças que intencionalmente ameaçam todo o potencial do desejável de que fala Pierre
Lévy. Por sua vez, no livro Globalização, fatalidade ou utopia? Boaventura de Sousa Santos escreve:

Por isso, é errado pensar que as novas e mais intensas interacções transnacionais produzidas pelos
processos de globalização eliminaram as hierarquias no sistema mundial. Sem dúvida que as têm
vindo a transformar profundamente, mas isso não significa que as tenham eliminado. Pelo contrário,
a prova empírica vai no sentido oposto, no sentido da intensificação das hierarquias e das
desigualdades. (G.pág.62)

Essa força, que penetra hoje todo o novo ciberespaço que nos causa tanta esperança, prescreve-nos a
realidade tal como a deveremos ver de acordo com os seus interesses através de todo o tipo de
distorções. Diz ainda Lévy:

Vê-se que o tipo de comunicação possibilitado pelo ciberespaço está no exato oposto da configuração
totalitária. Contudo não continuam os mafiosos na sombra? (C. pág. 39)

Lévy parece continuar a ver as ditaduras e os totalitarismos que predominaram na maior parte do
globo como o velho poder de tipo mafioso. Parece claro que o discurso de Lévy segue o prisma das
formas arcaicas de Estado totalitarista. Já no final do livro escreve ainda:

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Na perspectiva da ciberdemocracia, o principal efeito da Internet é contribuir para o enfraquecimento
das ditaduras. (C. pág 62)

Não será hoje preferível falar em hegemonias e menos em totalitarismo ou ditadura? E essa
hegemonia, quer-nos parecer, não se resume, como Lévy parece pensar, a um mero objecto de
estimação intlectual de meia dúzia de letrados nem a visões alucinadas de um reacionarismo teimoso e
improdutivo de teóricos da conspiração ociosos. A hegemonia global existe, sempre existiu e hoje o
seu maior problema é não ter rosto. O rosto do poder global tornou-se demasiado transparente. Os
mafiosos continuam já não na sombra mas às claras, demasiado às claras para serem vistos. Lévy
parece revelar uma inocência face à questão da transparência, diz-nos ele em Ciberdemocracia:

Hoje em dia, as instituições políticas mais poderosas do mundo, as do congresso e do governo


americano, por exemplo, também são as mais transparentes na rede. Basta que nos demos a esse
trabalho para também podermos saber tudo ou quase tudo sobre as grandes multinacionais que
dominam o mercado…e agir em consequência. (C. pág. 39)

Temos a certeza que sim mas de que tipo de transparências está Lévy a falar? Não me parece que seja
conforme à natureza das hegemonias dominantes agir com transparência absoluta. Além disso, o
totalitarismo atual já não pode ser visto à luz das formas de um Estado- nação todo-poderoso e austero.
No mundo globalizado e interligado de hoje, aquilo a que se pode chamar totalitarismo articula-se de
forma silenciosa e omnipresente, que ao prescrever a economia à sua maneira, tem o poder de penetrar
e dominar as dimensões mais básicas da vida e da cidadania à escala global. E paradoxalmente, o mais
perigoso disto tudo é mesmo a sua globalização. Lévy fala da transparência das multinacionais quando
se calhar o problema é mesmo haver multinacionais. Diz-nos Baventura de Sousa Santos:

…o modelo de desenvolvimento orientado para o mercado é o único modelo compatível com o novo
regime global de acumulação…

Vivemos tempos exponencialmente transacionais e neles mais que nunca se pergunta: haverá tempo
para sermos dignos?
Procurar-se-á em seguida, a partir de algumas considerações de Slavoj Žižek e de Baventura de Sousa
Santos, reflectir as principais ameaças latentes à consecução de uma sociedade mais humana no
contexto da globalização e do cibermundo. São elas, a despolitização da economia, a massificação da
cultura à escala global e as novas formas de colonialismo que, em conjunto, prescrevem e determinam
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as formas e os termos de universalidade em curso, modelando o espírito de uma época.

A pós politica

Globalização e Universalização

Slavoj Žižek, chama-nos a atenção para os perigos da despolitização, processo esse que o autor
designa como a pós-política e que se carateriza, sobretudo, pelo exercício de uma economia sem
restrições e de um multiculturalismo tolerante e despolitizado. No livro Violência escreve:

Hoje a variedade predominante da política é a biopolítica pós- política (…) a pós- política é uma
política que afirma deixar para trás os velhos combates ideológicos para se centrar, em alternativa,
na gestão e na administração especializada, enquanto a biopolítica designa como seu objetivo
principal a regulação da segurança e do bem-estar das vidas humanas.

A pós- política põe assim a tónica sobre a necessidade de largarmos o lastro das velhas tradições
ideológicas e de enfrentarmos novas paradas, armados do conhecimento necessário do especialista e
de uma livre deliberação atenta às reclamações e às necessidades reais da população (V.pág43)

Em Elogio da intolerância Žižek escreve:

A política anti-politica puramente humanitária, que consiste na simples prevenção do sofrimento,


resume-se de facto, por conseguinte, à interdição implícita da elaboração de um projeto coletivo
positivo de transformação social e política. (E.I.pág.15)

Žižek, tal como o faz Boaventura Santos, identifica duas formas principais de resistência à
globalização que seguem formas totalmente incompatíveis e que resumem a dinâmica politica atual: a
direita que insiste em reclamar uma identidade comum particular (ethnos) ameaçada pela ofensiva da
globalização e a da esquerda, para quem a dimensão desta ameaça a própria politização. Diz-nos
Žižek:

Aqui tornar-se-ia necessário opor globalização e universalização: a globalização (que não deveria ser
encarada apenas na acepção de capitalismo planetário, de instauração de um mercado mundial
planetário, mas também no sentido da afirmação da “ humanidade” como eixo de referência global
de direitos do homem, legitimando a violação da soberania estatal, as intervenções policiais – dos
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embargos comerciais às intervenções militares directas – nas partes do mundo onde são violados os
direitos humanos globais) é precisamente o nome da lógica pós – politica emergente que
progressivamente se torna um obstáculo à dimensão de universalidade que aparece na verdadeira
politização. O paradoxo é que não existe verdadeiro universal sem processo de afrontamento politico,
sem “parte dos sem parte”, sem uma entidade marginalizada que se apresenta/insurge como porta voz
do universal. (E.I. pág. 44)

É neste quadro de globalização sem politica que se dá então aquilo a que Žižek chama de
neocolonialismo. Ou seja, como se processa hoje a expansão, a conquista, o domínio e a submissão?

Como é, então, que o universo do Capital se liga à forma do Estado – Nação na nossa era de
capitalismo planetário? Talvez a melhor forma de designarmos esta relação seja falarmos de
“autocolonização”: com o funcionamento multinacional directo do Capital já não assistimos à
oposição habitual entre metrópoles e países colonizados; uma multinacional corta o cordão umbilical
que a ligava à sua Nação – Mãe e ameaça o seu país de origem da mesma maneira que qualquer
outro território a colonizar. (E.I. pág. 71)

O multiculturalismo é, naturalmente, a forma ideal da ideologia deste capitalismo planetário, a


atitude que, de uma espécie de posição global vazia, trata cada cultura local à maneira do colono que
lida com uma população colonizada (…) O que quer dizer que a relação entre colonialismo
imperialista tradicional e a autocolonização capitalista planetária é exactamente a mesma que aquela
que existe, nos nossos dias, entre imperialismo cultural ocidental e o multiculturalismo: da mesma
maneira que o capitalismo global induz o paradoxo de uma colonização sem metrópole, sem Estado –
nação colonizador, o multiculturalismo induz uma distância eurocentrista paternalista e/ou um
respeito por culturas locais arrancadas à cultura particular que era a sua. (E.I. pág. 72)

O autor, introduz em Elogio da intolerância uma breve descrição dos mecanismos mais gerais das
hegemonias ideológicas para explicar como é que, neste caso, o capitalismo global os utiliza para
inviabilizar uma universalização e uma verdadeira cidadania na gestão dos recursos. Ele escreve:

A luta pela hegemonia ideológica- politica é sempre, por conseguinte, a luta pela apropriação dos
termos “espontaneamente” experimentados como “apolíticos”, como transcendendo as clivagens
politicas. (E.I. pág. 23)

Coloca-se então a questão:

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Como pode, nestas condições, um elemento particular conseguir prevalecer sobre outro enquanto
suporte do Universal?

O problema, ainda que não seja novo para a filosofia, não pode deixar de ser pensado.
O capitalismo apresenta-se como uma universalidade hegemónica e por isso, diz-nos Žižek:

Temos de insistir, por outro lado, no facto de cada universalidade hegemónica dever incorporar pelo
menos duas componentes particulares, a componente popular “autêntica” e a sua distorção por obra
das relações de dominação e exploração. (E.I pág. 27)

Acerca da natureza de uma hegemonia ideológica Žižek diz-nos:

…ela não constitui, portanto, o caso de uma certa componente particular que preenche diretamente a
vacuidade do universal vazio; bem pelo contrário, a forma precisa de universalidade ideológica
documenta a luta entre (pelo menos) duas componentes particulares, exprimindo a componente
“popular”os desejos secretos da maioria dominada, e a componente “específica”, os interesses das
forças de dominação. (E.I. pág 27).

Ou seja, qualquer ideologia manipuladora apropria-se dos termos de uma universalidade globalmente
desejada pela maioria para os admitir, defender e assim os distorcer..
Žižek faz a distinção entre a metapolítica, apoiada no modelo instrumental cientifico- tecnológico e a
pós politica que supõe o modelo da negociação comercial e do compromisso estratégico. Para onde
queremos ir? Fará alguma vez sentido falar de uma verdadeira democracia global num mundo cuja
lógica pós política é a maximização do lucro como móbil de toda a ação? Com que universalidade?

Ou seja, aquilo que é universal e metasimbólico no homem, é apropriado, distorcido e apresentado


pela hegemonia como o melhor dos caminhos, ou seja, a dimensão prescritiva da globalização, de que
fala Boaventura Sousa Santos. Esta é a ditadura atual que o futuro deve combater. Podes escolher o
que quiseres, mas faz a escolha certa. Diz-nos ainda Žižek:

Se portanto, a noção de hegemonia dá conta da estrutura elementar da dominação ideológica,


estaremos condenados a não nos podermos deslocar senão no interior do espaço da hegemonia, ou
será possível suspender - pelo menos temporariamente – o seu próprio mecanismo? (E.I. pág. 33)

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Estes processos ensombram, quer se queira quer não, toda e qualquer esperança utópica. Para Žižek é
urgente e absolutamente necessário que sejam adotadas de uma vez por todas posturas intolerantes e
ativas contra o modelo de globalização neoliberal. Mas será isso suficiente?
Sabemos, talvez hoje mais que nunca, que o capitalismo como modelo económico despolitizado se tem
revelado catastrófico e por isso altamente duvidoso, mas e quanto à despolitização da cultura? Diz-nos
Žižek:

Esta floração perpetuamente em irrupção de grupos e de subgrupos nas suas identidades híbridas,
fluidas e móveis, insistindo cada um deles em afirmar o seu modo específico de vida e/ou de cultura,
esta incessante diversificação não é possível e pensável a não ser apoiada na base da globalização
capitalista; é a maneira própria através da qual a globalização capitalista afecta o nosso sentimento
de pertença étnica e outras formas de pertença comunitária: o único laço que liga estes grupos
múltiplos é o laço do próprio Capital, sempre disposto em satisfazer as reclamações específicas de
cada grupo e subgrupo (E.I. pág. 61)

Žižek afirma que há uma proliferação potencialmente infinita de tipos de grupos e subgrupos, no fundo
reclamantes dos seus grandes e pequenos direitos, (gays, ecologistas, defensores dos animais…) em
quase todos os grupos, e independentemente das suas reclamações, subjaz quase sempre aquilo a que o
autor chama o grande Outro, que consiste no inimigo último, dono das nossas misérias ou na maior
das autoridades, a quem devemos os melhores bens e a quem se entrega a liderança e os destinos do
grupo. Mas não será isto um sintoma de uma humanidade ao mesmo tempo assustada e ansiosa face a
um mundo virtual de ofertas infinitas? Mas não é esse o tema que se pretende aqui abordar.
Paradoxalmente a conspiração é bem mais uma evidência do que uma qualquer teoria. Mas ainda
acerca do multiculturalismo despolitizado diz-nos Žižek:

…o liberalismo multicultural e tolerante participa em pleno nesta despolitização da economia (…) a


tolerância multicultural é a ideologia hegemónica do capitalismo global. (E.I. pág. 18).

O que a pós – politica tende a prevenir é precisamente esta universalização metafórica das
reclamações particulares: a pós – politica mobiliza o gigantesco aparelho dos especialistas, dos
trabalhadores sociais, etc., para reduzir a reclamação (queixa) de um grupo particular a uma simples
reclamação de teor particular – pouco importa que este encerramento asfixiante dê lugar a explosões
“irracionais de violência como único meio de expressão da dimensão que excede o particularismo.
(E.I. pág. 51)

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Este sistema subsistematizado que se assim se adensa aos nossos olhos parece assentar no medo e na
ansiedade humana. O capitalismo alimenta-se do medo e da insatisfação, alimenta-se da queixa, do
protesto, porque está sempre pronto a compensar com brinquedos e serviços coloridos todo e qualquer
choro do bebé humano. O capitalismo infantiliza-nos, desresponsabiliza-nos. A economia
despolitizada e global transcende o grande Outro. Quanto a mim, o capitalismo global, como qualquer
outra hegemonia ideológica inculcadora, assenta nas distorções filosóficas acerca da ideia que faz do
homem e fundamenta-se nos mais recentes upgrades dos preconceitos utilitaristas baseados no
conceito de bom como prazer da novidade. Penso que a tirania do capital pode ser compatível com a
liberdade multicultural, mas tenho algumas reservas quanto à sua coexistência com uma cidadania
esclarecida, participativa e universal.

Boaventura de Sousa Santos:

Hegemonia e contra-hegemonia

A veloz transitoriedade dos tempos a que assistimos hoje, coloca-nos a questão que dá nome ao livro
de Boaventura de Sousa Santos: Globalização, Fatalidade ou Utopia? Este livro tenta, quanto a mim, e
de forma bastante honesta, efetuar o balanço das condições, das promessas e das ameaças da
globalização. Em Boaventura não existem sentimentos monolíticos nem pontos de vista determinantes
acerca das implicações desta no futuro das sociedades humanas. Procurar-se-á então a partir de
algumas das suas considerações acerca do problema das hegemonias, pensar a necessidade da
consecução de um espaço económico e transnacional que aspire à universalidade e à dignidade.
Logo nas primeiras páginas de Globalização: fatalidade ou utopia o autor chama a atenção para a
prudência à abordagem a tão vasto assunto.

Uma revisão dos estudos sobre os processos de globalização mostra-nos que estamos perante um
fenómeno multifacetado com dimensões económicas, sociais, politicas, culturais, religiosas e jurídicas
interligadas de modo complexo. Por essa razão, as explicações monocausais e as interpretações
monolíticas deste fenómeno parecem pouco adequadas. (G. pág. 32)

O autor alerta que o debate acerca da globalização não deve ser reduzido às suas dimensões
económicas, ainda que estas seja de sobeja importância. Essa tendência deve ser paralela ao debate
acerca das dimensões sociais, políticas e culturais da globalização.
Neste ponto ropõe-se um cruzamento entre o que nos diz Žižek acerca da distorção dos termos
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universais pela hegemonia dominante (ver atrás) com aquilo que Boaventura Santos escreve acerca do
mito da globalização, usualmente entendida como consenso.

Falar de características dominantes da globalização pode transmitir a ideia de que a globalização é


não só um processo linear, mas também um processo consensual. (G. pág. 32)

A globalização, longe de ser consensual, é um vasto e intenso campo de conflitos entre grupos sociais,
Estados e interesses hegemónicos, por um lado, e grupos sociais, Estados e interesses subalternos por
outro.

…o campo hegemónico actua na base de um consenso entre os seus mais influentes membros. É esse
consenso que não só confere à globalização as suas características dominantes, como legitima estas
últimas como as únicas possíveis ou as únicas adequadas.

Dada a amplitude dos processos em jogo, a prescrição é um conjunto vasto de prescrições todas elas
ancoradas no consenso hegemónico (G. pág. 33)

A questão de fundo que subjaz a este trabalho é a de alertar para a questão acerca da globalização, se
ela é uma globalização cultural ou afinal uma cultura global, determinada pelo poder global. Já vimos
como as suas características dominantes são ditadas pela hegemonia. A globalização, tal como a
concebemos pelas suas caraterísticas mais marcantes, assenta assim, segundo Sousa Santos, no
consenso neoliberal ou Consenso de Washington, que por sua vez consiste num conjunto de consensos
subscritos naquela cidade em meados dos anos oitenta pelos Estados centrais do sistema mundial, um
consenso para o futuro da economia mundial e para o questionamento do papel dos Estados na
economia. Diz-nos Sousa Santos:

Os diferentes consensos que constituem o consenso neoliberal partilham uma ideia- força que, como
tal, constitui um metaconsenso. Essa ideia é a de que estamos a entrar num período em que
desapareceram as clivagens politicas profundas.

Este período é aquilo a que Žižek chama o período da pós-política.


Sousa Santos reconhece assim três consensos no Consenso de Washington. São eles o consenso do
Estado fraco; o consenso da democracia liberal; o consenso do primado do direito e do sistema
judicial. Diz-nos ele:

Este consenso neoliberal entre os países centrais é imposto aos países periféricos e semiperiféricos
através do controlo da dívida externa efectuado pelo Fundo Monetário Internacional e pelo Banco
Mundial. Daí que estas instituições sejam responsáveis pela “globalização da pobreza”. A nova

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pobreza globalizada não resulta da falta de recursos humanos ou materiais, mas tão só de
desemprego, de destruição das economias de subsistência da minimização dos custos salariais à
escala mundial. (G. pág. 41)

Neste quadro, a globalização começa a ganhar contornos verdadeiramente sombrios. Olhando para o
neocolonialismo, para o fim da política e dos Estados, com que é que podemos contar? A resposta
parece ser óbvia – um governo mundial. Mas um governo global muito diferente daquele com que
sonhou Kant, ou seja, como uma constituição universal representativa de todas as constituições civis
livres e universais. Na verdade, aquilo que se nos afigura no horizonte do futuro aparece como uma
espécie de totalitarismo global. É exatamente neste ponto que a filosofia, sobretudo a filosofia política,
não pode baixar a guarda. Diz-nos Boaventura Santos:

…o estado nação parece ter perdido a sua centralidade tradicional enquanto unidade privilegiada de
iniciativa económica, social e política. (G. pág. 42)

…o modelo de desenvolvimento orientado para o mercado é o único modelo compatível com o novo
regime global de acumulação, sendo por isso necessário impor à escala mundial, políticas de
ajustamento estrutural. (G. pág. 43)

Para além das dimensões políticas e económicas da globalização, existe, tal como já abordado neste
trabalho, o problema da globalização cultural. As palavras de Boaventura Santos acerca deste ponto
remetem-nos para a abordagem de Slovoj Žižek acerca do multiculturalismo despolitizado e na forma
em que este participa na vitalidade do capitalismo global:

No domínio cultural, o consenso neoliberal é muito selectivo. Os fenómenos culturais só lhe


interessam na medida em que se tornam mercadorias que como tal devem seguir o trilho da
globalização económica. Assim, o consenso diz, sobretudo respeito aos suportes técnicos e jurídicos
da produção e circulação dos produtos das indústrias culturais, como por exemplo, as tecnologias de
comunicação e da informação e os direitos de propriedade intelectual. (G. pág. 55)

E para quem vê neste processo a inevitabilidade do triunfo da consciência humana convém lembrar
mais algumas palavras de Boaventura Sousa Santos:

Se para alguns ela (a globalização) continua a ser considerada como o grande triunfo da
racionalidade, da inovação e da liberdade capaz de produzir progresso infinito e abundância
ilimitada, para outros ela é o anátema, já que no seu bojo transporta a miséria, a marginalização e a
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exclusão da grande maioria da população mundial, enquanto a retórica do progresso e da
abundância se torna realidade para um clube cada vez mais pequeno de privilegiados. (G. pág. 59)

A pluralidade de discursos sobre a globalização mostra que é imperioso produzir uma reflexão teórica
crítica da globalização e de o fazer de modo a captar a complexidade dos fenómenos que ela envolve e
a disparidade dos interesses que nele se confrontam. (G. pág. 60)

Boaventura considera as contradições que conferem á actualidade um carácter especificamente


transicional. Elas são: a contradição entre globalização e localização; a contradição entre o Estado-
nação e o não Estado transnacional.

Estas três contradições condensam os vectores mais importantes dos processos de globalização em
curso. À luz delas, é fácil ver que as disjunções, as ocorrências paralelas e as confrontações são de tal
modo significativas que o que designamos por globalização é, de facto, uma constelação de diferentes
processos de globalização e, em última instância, de diferentes, e por vezes contraditórias,
globalizações. (G. pág. 61)

Sublinhe-se ainda na sequência deste raciocínio:

Uma das armadilhas da globalização neoliberal consiste em acentuar simbolicamente a distinção


entre o local e o global e ao mesmo tempo destruí-la ao nível dos mecanismos reais da economia. A
acentuação simbólica destina-se a deslegitimar todos os obstáculos à expansão incessante da
globalização neoliberal, agregando-os a todos sob a designação de local e mobilizando contra eles
conotações negativas através de fortes mecanismos de inculcação ideológica de que dispõe. (G. pág.
78)

A acentuação simbólica: remete-nos de novo a pensar o tema da apropriação e da distorção dos termos
operados pela hegemonia tal como o fizemos com Žižek.

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A contra- hegemonia

Boaventura de Sousa Santos propõe uma globalização contra- hegemónica que deve consistir na luta
pela transformação de trocas desiguais em trocas de autoridade partilhada. A proposta é fomentar no
campo das práticas interestatais uma harmonização entre os Estados e o sistema interestatal; por
transformar aquilo que Boaventura chama a democracia de baixa intensidade em democracia de alta
intensidade.

Neste contexto, a globalização contra- hegemónica é tão importante quanto a localização contra-
hegemónica. (G. pág. 79)

…trata-se de promover a construção de mecanismos de controlo democrático através de conceitos


como o de cidadania pós- nacional e o de esfera pública transnacional. (G. pág.

Propõe uma teoria institucionalista dos processos socioeconómicos que pressuponha uma visão
institucionalista da economia . (G. pág. 79)

Se não forem tomadas medidas concretas contra este assalto mundial à humanidade, a boa cidadania, a
prosperidade, a liberdade e a utopia, nunca passarão de meras ideias motrizes, pelo menos enquanto
nos for possível concebê-las.

Conclusão

Quando afirmamos que o homem atingiu um progresso tecnológico exponencial nos dois últimos
séculos que se mostra muito mais presente e muito mais vincado que um esperado progresso moral,
somos comprometidos a defender uma postura face a essa mesma dimensão moral a que apelamos. E o
lugar é pantanoso, por isso muito pouco frequentado.
As tecnologias da comunicação aparecem-nos como a grande possibilidade à constituição de uma
consciência global e ao bom futuro da emancipação moral humana, mas, partindo do sintoma do
homem ocidental atual, as TIC podem também, de certa perspetiva, assumir a forma para o derradeiro
obstáculo a essa emancipação.
Independentemente da distinção de valor entre mundo real e mundo virtual, a verdade é que até hoje o
homem não tem suportado o real. Porque não o entende, porque descobriu que do real só percebe uma
ínfima parte, porque o real é cruel, porque é sempre igual, etc. E ainda bem, esta insatisfação faz parte
da nossa força criativa. O problema é quando a força criativa se vira contra si mesma e se perde no

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labirinto da ilusão, então o real aparece como inimigo, como algo que não é nosso, como dívida ou
pecado a purgar. O niilismo que Nietzsche tanto atacou.

Continuando a falar de moral, a verdade é que o homem continua sem saber o que fazer com a vida e
prepara-se hoje para entrar na dimensão global e virtual de um mundo novo e aparentemente sem
limites. Nesta moral, as TIC poderão aparecer como amplificadores do tédio e do tumulto global numa
efervescência cacofónica e planetária de lazeres e de lamúrias. A humanidade vai lentamente
penetrando numa segunda camada de virtualidade para confundir ainda mais a virtualidade já de si
confundida da sua dimensão simbólica original. Daí que o resultado social num breve futuro possa ser
apelidado de ciberdistração. Quando tudo aquilo que é humano, mas que nunca chegamos a conhecer
se diluir de uma vez por todas, já não haverá tempo para a ciberdemocracia.
Ainda no contexto da pós- política e pensado agora no problema do entretenimento de massas como
embrutecimento moral dos cidadãos, diz-nos o sociólogo Pascal Bruckner no livro A Tentação da
Inocência, obra que reflete acerca dos sintomas da sociedade mercantil, iludida, caprichosa e infantil.

O século XX terá inventado duas figuras maiores da mobilização: o revolucionário e o animador. O


primeiro cessou de emocionar as multidões desde que as suas promessas de justiça descambaram em
pesadelo; mas o segundo parece destinado a uma fortuna sem limites. (T.I. pág. 57)

Para além do perigo que as hegemonias representam para a liberdade, existe o obstáculo da inércia
moral da maioria das pessoas que se traduz na geral e gradual perda de responsabilidade individual. E
qual a preocupação atual das massas? Não sei o nome do autor desta frase, creio que alguém ligado ao
pensamento punk dos anos setenta, que, acerca do mundo ocidental, dizia qualquer coisa como:
…trocamos o medo de morrer de fome pelo medo de morrer de tédio…
Mas voltemos a Bruckner:

A saída da miséria e da rudeza devia confundir-se com a reapropriação por cada um da sua plena
humanidade. Esta esperança não se concretizou: para uma maioria de pessoas, o delicioso
embrutecimento dos lazeres prevalece sobre os múltiplos meios de empenhamento e desabrochamento
pessoais (…) Outrora, os homens queriam repousar de um trabalho extenuante; hoje desejam escapar
ao tédio de um tempo livre que não sabem como aproveitar. (T.I. pág. 59)

A hegemonia capitalista joga assim em duas frentes. Comercialmente porque lucra com o imenso
mercado do entretenimento e politicamente porque adormece as massas.

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É necessário fixar as massas agitadas, inquietas, preencher o tempo vazio, afastar a monotonia (…) é
possível que a expansão ilimitada dos lazeres seja então o único meio de conservar uma certa coesão
social. . (T.I. pág. 59)

…é justo reconhecer no consumismo e na indústria do divertimento uma excepcional criação coletiva


sem precedentes na história. Pela primeira vez, os homens apagam as suas barreiras de classe, de
raça, de sexo, para se fundirem numa única multidão pronta a atordoar-se, a divertir-se sem medida.
(T.I. pág. 62)

Para além da massificação do entretenimento existe ainda a questão da perda gradual da privacidade e
a da emergência da sociedade vigiada.
Infelizmente os obstáculos á consecução de uma nova cidadania são em bem maior número que as
facilidades potenciadas pela globalização tecnológica.

Cabe-nos a todos nós o projeto do futuro que queremos; As ferramentas virtuais para vivermos
definitivamente em espaços verdadeiramente antropológicos estão aí. Precisamos de espaços
verdadeiramente humanos, porque é de Humanidade que falamos.
Para que no fim, as bem-aventuranças de uma globalização livre e prospera não se transformem nos
pesadelos de um totalitarismo global.

(escrito segundo o novo acordo ortográfico)

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Referências bibliográficas

Bruckner, P. (1996). A Tentação da Inocência. Mem Martins: Europa América.

Kant, I. (2008). A paz perpétua e outros opúsculos. Lisboa: Edições 70.

Lévy, P. (2002). Ciberdemocracia. Lisboa: Instituto Piaget.

Lévy, P. (2000). World Philosophie. Paris: Éditions Odile Jacob.

Mill, J. S. (2005). Utilitarismo. Lisboa: Gradiva.

Santos, B. d. (2001). Globalização: fatalidade ou utopia? Porto: Afrontamento.

Žižek, S. (2006). Elogio da intolerância. Lisboa: Relógio d´Água.

Žižek, S. (2008). Violência. Lisboa: Relógio d´Água.

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