Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
1
Mestranda em Arqueologia pela Universidade Federal de Sergipe (2013), Graduanda em Arqueologia pela UFS
(2010), Graduada licenciada em História pela Universidade Tiradentes (2009), Bolsista da CAPES, e-mail:
roberta.ro25@hotmailcom.
2
Coordenador do Laboratório de Arqueologia de Ambientes Aquáticos (LAAA-UFS), Professor do
Departamento de Arqueologia da Universidade Federal de Sergipe (DAR-UFS), Bolsista de Produtividade
Científica do CNPq, e-mail: gilson.rambelli@gmail.com.
Arqueológico e a sociedade pode ser apontada como sendo o reconhecimento e a valorização
das identidades culturais de uma determinada região, e isto, está diretamente relacionado com
a identificação do sujeito na localidade em que ele vive, tornando-o uma parte deste passado,
identificando-se com ele.
Nesse contexto, podemos inserir o Patrimônio Histórico Estadual de Sergipe referente
à Segunda Guerra Mundial, o Cemitério dos Náufragos, que representa materialmente a
passagem trágico-naval dos torpedeamentos das embarcações brasileiras afundadas no litoral
sergipano em 1942 que vitimou covardemente centenas de pessoas inocentes.
O Cemitério dos Náufragos localizado em Aracaju consiste em uma Arquitetura
funerária do século XX, que foi elevada a Patrimônio Histórico pelo Decreto Estadual nº
2.571 em 20 de maio de 19733. Para se tornar um bem histórico tombado, passou por um
estudo avaliativo com critérios técnicos, levantamento histórico e de valor representativo
perante a comunidade em que está inserido.
Com o passar dos anos, no entanto, o importante acontecimento histórico sobre os
ataques navais em Sergipe se tornou desconhecido e distanciado das novas gerações. Isso se
deve ao fato desta temática ter sido pouco explorada pelas produções historiográficas. No
geral, as abordagens colocam o envolvimento do Brasil na Segunda Guerra como tendo uma
participação simbólica, merecendo apenas uma breve citação nos livros didáticos. No entanto,
discordamos veementemente com essa visão generalista que, de certa forma, despreza as
experiências dramáticas vividas pelas regiões litorâneas brasileiras que sofreram direta e
indiretamente com os atos de guerra praticados contra a nação brasileira em seu mar
territorial.
Os torpedeamentos praticados pelos submarinistas alemães aos navios Baependy,
Araraquara e Aníbal Benévolo na costa sergipana representou a chegada da grande guerra ao
Brasil. No entanto, atualmente, a situação do Patrimônio que representa materialmente essa
tragédia se encontra em condições lamentáveis. O primeiro Cemitério dos Náufragos
localizado na Atalaia Velha está “abandonado”, vítima do esquecimento das autoridades e
destruído pela ação do homem e do tempo.
3
O Decreto Estadual nº 2.571, de 20 de maio de 1973, elevou o Cemitério dos Náufragos a Patrimônio Histórico
de Sergipe. Disponível em: <http://sergipepatrimonios.wix.com/seeseuspatrimonios/ master-page-7>. Acesso em
11 de março de 2014.
O segundo cemitério localizado no Mosqueiro, de acordo com os estudos, ele
representa apenas os locais que possivelmente abrigam ou abrigaram os restos mortais das
vítimas que foram removidos do cemitério original durante a construção da Rodovia dos
Náufragos que ligaria a capital às praias sergipanas, em 1973. Nessa época foi assinado o
Decreto Estadual 2.571 de 20 de maio, que passou a considerar o Cemitério dos Náufragos
como Patrimônio Histórico do Estado de Sergipe. Com a obra da rodovia, foi necessário então
mudar o cemitério da sua localização antiga para a atual, no Mosqueiro (MELLO;
CERQUEIRA, 2012). De acordo com relatos da população, o impacto da construção foi
grande, visto que “passaram por cima de tudo, reviraram as covas e depois colocaram tudo
no cemitério do Mosqueiro” 4. Muitos corpos foram trasladados, contudo ainda resta parte do
cemitério original, o qual se encontra interditado por medida judicial desde 2007 e carente da
devida proteção das autoridades públicas.
O Monumento do Cemitério dos Náufragos localizado no Mosqueiro é o mais
preservado. O local é murado, não apresenta sinais de violação nas sepulturas nem acúmulo
de entulhos e lixo na sua área. No entanto, falta na localidade uma maior divulgação a
respeito da existência deste Monumento. Ele se encontra em uma pequena rua lateral sem
saída, não existindo sequer uma placa na localidade que se refira a ele. Diante desse contexto,
podemos dizer que não há um sentimento de identidade deste patrimônio na comunidade,
principalmente na população jovem. A maioria não sabe nem de sua existência. Falta uma
ação de política pública por parte dos governantes na comunidade acerca da importância de se
preservar a memória destes episódios, principalmente na população jovem da comunidade.
Aracaju, ao que tudo indica, é a única cidade do Brasil que tem plantado em seu solo
um cemitério de náufragos da Segunda Guerra Mundial. Esse fato se justifica, levando em
conta que a maioria dos afundamentos e as batalhas navais ocorreram sempre em longitudes
bem distanciadas do continente, enquanto os afundamentos na costa de Sergipe, ocorreram a
poucas milhas de Aracaju, aonde chegaram a ser avistadas as luzes projetadas pelo Farol de
Aracaju.
4
Entrevista publicada In: Estudante quer garantir preservação de patrimônio estadual. Jornal da Cidade, 21
de novembro de 2010. Disponível em: <http://www.jornaldacidade.net/2008/noticia.php?id=83899>. Acesso em
17 de dezembro de 2013.
O Cemitério dos Naufrágios é resultado dos afundamentos dos navios mercantes
brasileiros Baependy, Araraquara e Aníbal Benévolo.5 Eles foram atacados brutalmente pelo
submarino alemão U-507 que vitimou mais de 500 pessoas no litoral nordestino. Esse evento
trágico teve grande peso no reconhecimento do Estado de Beligerância em todo território
nacional em 22 de agosto de 19426 e na Declaração Brasileira de Guerra aos países do Eixo
em 31 de agosto de 1942.
Os navios afundados na costa sergipana são considerados pela Arqueologia de
Ambientes Aquáticos como sítio de naufrágio7 formado pelos restos das três embarcações
naufragadas. Este tipo de sítio pode ser estudado in situ por meio da aplicação de métodos e
técnicas específicos voltados para a práxis da arqueologia praticada embaixo d’água, com
ferramentas especificas e adaptada ao ambiente (BASS, 1969; MUCKELROY, 1978; BLOT,
1999, RAMBELLI, 2003). O estudo também pode se deter na busca de conhecimento sobre a
própria embarcação, destacando as estruturas, tecnologias, cargas, partidas e destinos, assim
como seu uso enquanto meio de transporte, lugar de trabalho, segundo lar para os tripulantes,
enfim, as possibilidades de pesquisa são amplas.
5
“Pela primeira vez as embarcações brasileiras, servindo o tráfego das nossas costas no transporte de passageiros
e cargas de um Estado para outro, sofreram ataque dos submarinos do Eixo. [...] Foram afundados em Sergipe os
vapores “Baependy” e “Aníbal Benévolo” do Lloyd Brasileiro e o “Araraquara” do Lloyd Nacional S.A. [...]
Deve o povo manter-se calmo e confiante na certeza de que não ficarão impunes os crimes praticados contra a
vida e bens dos brasileiros” (CORREIO DE ARACAJU, 1942, p.1). Cf. CRUZ, 2012, p.19.
6
Declaração de Estado de Beligerância em todo território nacional. Fonte: Correio de Aracaju. Aracaju/Se. 16
de Janeiro de 1943, p. 4 apud CRUZ, Luiz A. P. “A guerra já chegou entre nós”! O cotidiano de Aracaju
durante a Guerra Submarina (1942 -1945). 2012. 232f. Dissertação (Mestrado em História) - Universidade
Federal da Bahia - Faculdade de Filosofia d Ciências Humanas, Salvador, 2012, p. 232.
7
Sítio de naufrágio consiste em um sítio arqueológico formado por restos de uma ou mais embarcações
naufragadas. Disponível em: <http://laaa.ufs.br>. Acesso em 05 de março de 2014.
aperfeiçoou tecnologicamente e reagiu aos ataques com seus caça-submarinos, afastando
assim os U-boots8 alemães que migraram para o Atlântico Sul. A guerra então começava a se
aproximar do litoral brasileiro.
O governo liderado pelo presidente Getúlio Vargas agia de forma “neutra” diante do
conflito, tanto desenvolvendo relações de solidariedade com os Estados Unidos, como
mantendo laços econômicos com os países eixistas. No entanto, essa política de
imparcialidade chegou ao fim logo após o ataque japonês a Pearl Harbor, em 7 de dezembro
de 1941 e com a Declaração de Guerra dos Estados Unidos ao Japão, à Itália e à Alemanha.
Na Conferência Pan-Americana dos Chanceleres realizada no Rio de Janeiro, em 28
de janeiro de 1942, contrariando a opinião dos militares pró-Alemanha, decidiu- se a favor do
rompimento das relações diplomáticas com os países do Eixo. Dessa forma, o Brasil rompia
com a sua neutralidade, contudo a maioria dos brasileiros não sabia dos riscos dessa decisão
política e continuou a navegar a bordo dos navios mercantes.
A presença dos submarinos no litoral do Brasil se intensificou, demonstrando assim
que a Alemanha nazista estava atenta ao comércio exterior do país. A rota brasileira se
apresentava como uma das linhas vitais para os Aliados e por esta razão é compreensível que
os submarinos viessem com a missão de obstruí-la. O desfecho foi o ataque brutal do
submarino U-507 ocorrido na área costeira de Sergipe contra os navios Baependy,
Araraquara e Aníbal Benévolo, ocasionando assim, uma das maiores tragédias brasileiras no
período da Segunda Guerra Mundial.
Os primeiros ataques ocorreram em águas internacionais, foi confirmado o
torpedeamento praticado pelo submarino alemão U-432 ao navio Buarque no dia 15 de
fevereiro de 1942, quando este navegava sozinho e desarmado pelo Atlântico Norte. Antes
disso, em 22 de março de 1941 o navio Taubaté tinha sido avariado por um avião da Força
Aérea Alemã e no mesmo mês o navio Santa Clara desapareceu de forma repentina, sem
8
O termo U-boots é originado da palavra alemã Unterseeboot que significa “pequeno-barco debaixo d’água”,
usado para designar qualquer submarino. “Os U-boots espalharam o terror pela costa nacional e afundaram os
navios mercantes em Sergipe deixando muitas marcas na memória da população” In CRUZ, Luiz A. P; SOUZA,
Antônio L. U-Boots no Brasil. As vivências do homem costeiro diante da Guerra Submarina em Sergipe.
(1942-1945). 2009. Trabalho apresentado no IV Congresso Internacional de História, Maringá - PR, 2009.
Disponível em: < http://pt.scribd.com/doc/58571408/U-BOOTS-NO-BRASIL-AS-VIVENCIAS-DO-HOMEM-
COSTEIRO-DIANTE-DA-GUERRA-SUBMARINA>. Acesso em 12 de dezembro de 2013.
deixar rastros (SILVA, 1972 apud PORTO, 2010). A partir desses fatos, percebe-se que o
Brasil antes mesmo de entrar oficialmente na guerra já era alvo do Führer alemão.
A área atlântica brasileira afetada com as primeiras investidas nazistas foi o litoral
deserto de Sergipe, entre os dias 15 e 16 de agosto de 1942. Os torpedeamentos ocorrem de
forma inesperada e trágica com os navios Baependy, Araraquara e Aníbal Benévolo,
vitimando assim 549 pessoas. Na época, o anúncio do jornal aracajuano Folha da Manhã
destacou: “Sergipe nunca em sua vida, presenciou cenas tão tristes como nestes dias9”. O
clima de Aracaju era de consternação, afinal as perdas foram incalculáveis, os nazistas
assassinaram covardemente civis e militares, eram homens, mulheres e crianças. Os
acontecimentos foram assustador para a população e muito sofrido para os náufragos,
transformando assim, a capital numa cidade sitiada.
Sergipe se envolveu num clima de guerra, ocorreram várias manifestações e houve
perseguições a estrangeiros e sergipanos suspeitos de espionagens. O quebra-quebra se
instalou na cidade, o comércio local paralisou, as aulas foram suspensas, o expediente das
repartições públicas foi encerrado e nas ruas houve aumento das autoridades policiais para
intervir, a fim de conter a multidão e evitar ânimos mais exaltados.
Refém da ameaça submarina, a cidade ficou isolada sem os costumeiros navios
mercantes, dessa forma, ela perdia sua feição portuária. Com a guerra e os naufrágios
seguidos, sugere-se a desaparição da atração do porto, pois seu movimento paralisou quase
que completamente, tendo sido cancelada a circulação de mercadorias. Vale ressaltar que o
mar nessa época era a principal via de ligação com outros estados, já que as estradas de
rodagem interestaduais eram inexistentes e não havia um sistema ferroviário eficiente.
A população sofreu com o aumento da inflação que encareciam os alimentos. O
isolamento naval asfixiou o comércio e encalhou a safra açucareira nos trapiches ribeirinhos.
Medidas de defesa na costa sergipana se iniciaram, como o blackout10 que consistia no
escurecimento da cidade, no entanto, essa medida causou transtorno urbano, provocando um
9
Folha da Manhã. Nota publicada no jornal aracajuano. Cf. CRUZ; SOUZA, 2009. Disponível em:
<http://www.pph.uem.br/cih/anais/trabalhos/331.pdf>. Acesso em 12 de dezembro de 2013.
10
O “black-out” consistiu no escurecimento das cidades, das povoações e das residências particulares, originado
- seja pela extinção de todas as luzes, seja pelas medidas tomadas previamente para velar a iluminação, de modo
que as cidades, povoações, etc., não pudessem ser distinguidas pelos bombardeadores inimigos. Cf. PEREIRA,
1942, p.58 apud SCHURSTER 2013, p.49. Disponível em:
<http://www.revistanavigator.com.br/navig17/dossie/N17_dossie3.pdf>. Acesso em 23 de julho de 2013.
aumento significativo da violência. Enfim, esse era o clima de Aracaju em tempos de guerra,
a capital deixava de ser uma mera espectadora de um conflito europeu para se transformar em
uma vítima da Segunda Guerra Mundial.
Diante dos fatos trágicos, a cidade de Aracaju foi alçada à condição de vítima da
Guerra Submarina, sendo o acontecimento considerado de grande peso no reconhecimento do
Estado de Beligerância em todo território nacional em 22 de agosto de 1942, e na Declaração
Brasileira de Guerra à Alemanha e à Itália em 31 de agosto de 1942. Alguns jornais da época
fizeram uma comparação interessante entre o “atentado nazista em Sergipe” e o “atentado
japonês a Pearl Harbor”, pois ambos foram executados por países beligerantes do Eixo e
arrastaram suas respectivas nações à Segunda Guerra Mundial (CRUZ; ARAS, 2012).
De acordo com as memórias do prático Zé Peixe12, contemporâneo dos
acontecimentos:
11
SERAFIM, Carlos Frederico S. & BITTENCOURT, Armando Senna. A Marinha na República. A
Importância do Mar na História do Brasil. 2006. Ministério da Educação, Brasília, 2006, p. 151.
12
José Martins Ribeiro Nunes, mais conhecido como Zé Peixe, nasceu em 05 de janeiro de 1927 na cidade de
Aracaju. Na época dos torpedeamentos ele era adolescente e suas memórias são consideradas privilegiadas, pois
sua casa se localizava próximo à Capitania dos Portos de Sergipe. Ele testemunhou vários acontecimentos, entre
eles, as operações antissubmarinas na cidade, os ensaios antiaéreos, o movimento estudantil e a perseguição aos
estrangeiros. Depois da guerra, Zé Peixe se tornou um prático, sendo inclusive um dos mais conhecidos na
Marinha do Brasil.
para São Cristóvão. E os corpos davam na praia. Tinha o Cemitério dos
Náufragos, mas tinha corpos que não dava pra pegar mais que tava em
estado que não podia pegar mais. Aí botava na praia e enterrava lá [...] 13.
O relato acima demonstra um olhar particular sobre o drama vivido com a guerra
submarina e a forma que foi compreendido. Afinal, consideramos os depoimentos orais
importantes fontes de informações que servem para preencher as lacunas existentes na
historiografia. As fontes orais se apresentam como diferentes percepções sociais, no entanto,
elas não podem ser consideradas isentas de imperfeições. Portanto, devem ser confrontadas
com outros tipos de informações, buscando assim uma melhor compreensão dos fatos
ocorridos através dos olhares da população que são imprescindíveis para a construção da
História.
O estudo de embarcações, enquanto cultura material pode ser percebido em suas
múltiplas dimensões, pois se trata de um meio de transporte, mas também representa um
“lugar de trabalho”, “espaço de convivialidade”, o “segundo lar”, a “pátria”, enfim, a “razão
de ser” da marujada (CABRAL, 1958 apud CRUZ; ARAS, 2012, p. 88). Os sítios mais
numerosos e estudados são os de naufrágios, pois conseguem alcançar um alto grau de
conservação. As novas análises, baseadas nas abordagens do pós-processualismo como a
arqueologia simbólica, contextual e crítica, buscam ampliar e diversificar as possibilidades de
estudo referentes aos sítios arqueológicos de ambientes aquáticos.
Segundo o arqueólogo Gilson Rambelli (2002), a Arqueologia de Ambientes
Aquáticos se debruça sobre a cultura material que se encontra submersa ou na interface do
ambiente aquático, a qual possibilita reconstituir aspectos do passado revelando riquezas
históricas que estão encobertas pelas águas. De acordo com o arqueólogo britânico Keith
Muckelroy (1978), essa abordagem estuda o material de restos de atividades humanas no mar
e as vias navegáveis, centrando-se nos naufrágios (MUCKELROY, 1978 apud GIBBINS;
ADAMS, 2001). George Fletcher Bass foi o arqueólogo pioneiro que desenvolveu métodos e
técnicas específicos voltados para a práxis da arqueologia praticada embaixo d’água, criando
ferramentas especificas e adaptando outras que eram utilizadas em superfície (BASS, 1969;
MUCKELROY, 1978; BLOT, 1999, RAMBELLI, 2003).
13
Entrevista de José Martins Ribeiro Nunes (Zé Peixe) concedida aos historiadores Luiz Antonio Pinto Cruz e
Antônio Lindvaldo Souza, em Aracaju dia 07 de abril de 2004 (CRUZ; SOUZA, 2009). Disponível em
<http://www.pph.uem.br/cih/anais/trabalhos/331.pdf>. Acesso em 12 de dezembro de 2013.
Ao problematizar um sítio arqueológico de naufrágio devemos levar em consideração
vários fatores, como a época e o contexto em que o naufrágio aconteceu, sua localização e o
efeito da ação da erosão com o tempo. Para realizar um levantamento das estruturas e
artefatos é preciso fazer uma prospecção arqueológica, utilizado equipamentos geofísicos,
fazendo registro rigoroso e aplicando uma metodologia adequada que garanta a preservação
das informações arqueológicas.
14
ENTREVISTA. In: Estudante quer garantir preservação de patrimônio estadual. Jornal da Cidade, 21 de
novembro de 2010. Disponível em:< http://www.jornaldacidade.net/2008/noticia.php?id=83899>. Acesso em 17
de dezembro de 2013.
15
Entrevista de José Dias Firmo dos Santos, presidente da Associação Desportiva Cultural e Ambiental do
Robalo (ADCAR). In: Cemitério dos Náufragos será aberto hoje. Jornal da Cidade, 18 de dezembro de 2010.
Disponível em: <http://www.jornaldacidade.net/2008/noticia.php?id=86502>. Acesso em 17 de dezembro de
2013.
Diante desses fatos, surgem alguns questionamentos. Quando realmente foi fundado o
Cemitério dos Náufragos? Será que a construção da Rodovia dos Náufragos descaracterizou o
cemitério “original”? Por que atualmente ele se encontra sem a devida proteção por parte do
poder público? A partir dessas indagações, buscaremos alguns caminhos que apontem
possíveis respostas. As questões simbólicas também serão aqui abordadas, do mesmo modo
como a verificação da transformação da paisagem cemiterial pela intervenção humana,
através da cultura material, como as sepulturas, as pedras tumulares, os ornamentos e as
iconografias, as quais revelam a dialética entre a relação homem e ambiente que pode ser
percebida na modificação da paisagem.
O Cemitério dos Náufragos é considerado pela Arqueologia Histórica como uma
estrutura16 que representa materialmente os trágicos naufrágios e os biofatos, restos mortais,
associados a eles. No cemitério localizado no Mosqueiro foi feita uma construção em
mármore que é simbólica, pois os túmulos estão vazios, nela se encontra uma placa com a
seguinte inscrição: “aí está o golpe mais traiçoeiro e terrível vibrado contra o coração da
nacionalidade”. De acordo com a pesquisa de campo, não há mais nenhuma sepultura
referente período da Segunda Guerra Mundial no Cemitério dos Náufragos original. Os
trabalhos que abordam sobre esse assunto deixam dúvidas quanto a atual existência desses
enterramentos, alguns sugerem o translado desses corpos para outros cemitérios, ou a
superposição de outros túmulos sobre os das vítimas de guerra.
Segundo Otávio Porto (2010), a ex-diretora do Departamento de Cultura do
Patrimônio Histórico, Núbia Marques, tentou esclarecer a ausência dos túmulos referentes ao
período de 1942. Ela explicou que os corpos dos náufragos já não se encontram mais no
cemitério original porque foram transladados para um monumento no Mosqueiro, isso ocorreu
durante o Governo de Leandro Maciel (1955-1959), contudo, não há documentos que
notifique o tal translado.
Diante dessa afirmação questionamos sobre a data correta do translado dos corpos do
cemitério original para o do Mosqueiro. Afinal, aconteceu durante o Governo de Leandro
Maciel em 1955 a 1959 (PORTO, 2013, p.53) ou na época da construção da Rodovia dos
náufragos em 1973 (MELLO; CERQUEIRA, 2011, p.77)? Que motivo levou a remoção dos
16
Estrutura é considerada pelo arqueólogo Charles Orser Jr. (1992) como uma das fontes de informações que
pode ser utilizada nas pesquisas de Arqueologia Histórica, assim como os artefatos, arquitetura, documentos
escritos, informações orais e imagens pictóricas. Cf. ORSEN, 1992, p.39.
corpos dos náufragos para um monumento no Mosqueiro em 1955 a 1959? Esse monumento é
o mesmo Cemitério dos Náufragos localizado no Mosqueiro? Como foi possível em 1955-
1959 fazer uma transferência de corpos sem a exigência de um documento oficial notificando
a ocorrência? Afinal, como foi realizado esse procedimento? Os parentes dos mortos foram
avisados sobre esse enterramento “secundário”? Diante desse contexto, é preciso investigar
melhor e buscar outras fontes de informações, para assim poder corroborar ou refutar essas
afirmações.
Atualmente o cemitério original está em condições lastimáveis de conservação,
mesmo assim, continua sendo utilizado pela população local. Em 2006, o Ministério Público
Estadual (MPE) obrigou a Prefeitura Municipal de Aracaju a tomar providências em relação
aos vinte cemitérios irregulares existentes na capital, a fim de que suas ossadas fossem
transferidas para cemitérios legalizados. No entanto, o presidente da Associação de
Moradores do Robalo, Ademir da Silva, mostrou-se a favor da adequação física e ambiental
do Cemitério dos Náufragos, para que o mesmo continuasse a ser utilizado pela população,
desejosa de continuar a sepultar ali os seus mortos (MELLO; CERQUEIRA, 2012). No
entanto, essa adequação não aconteceu e os enterramentos foram proibidos.
De acordo o Jornal da Cidade de 18 de dezembro de 2010, houve um embate entre os
moradores dos povoados Mosqueiro e Robalo contra a Prefeitura de Aracaju envolvendo o
Cemitério dos Náufragos como protagonista, afinal, uma ordem judicial estava interditando o
cemitério. Todavia, como considerar ilegal um cemitério que através de Decreto Estadual é
tombado como Patrimônio Histórico? As consequências recaíram sobre a população, a qual
teve que buscar um local adequado para sepultar seus mortos, afinal a construção de um novo
cemitério não foi efetivada.
Em 2010, houve um ato de protesto da população da Zona de Expansão, a qual decidiu
reabrir por conta própria o Cemitério dos Manguinhos, mais conhecido como Cemitério dos
Náufragos realizando assim, o primeiro enterramento depois de quase quatro anos de
interdição determinada pela justiça e que ainda continua valendo. De acordo com a matéria
publicada no Jornal da Cidade17, o ato de protesto foi contra o descaso do poder público
17
JORNAL DA CIDADE. Edição: 18 de dezembro de 2010. Cf. MELLO; CERQUEIRA, 2012. Disponível em:
<http://www.getempo.org/index.php/revistas/50-edicao-n-09-setembro-de-2012/artigos/131-cemiterio-dos-
naufragos-uma-proposta-de-arqueologia-historica-em-sergipe-por-janaina-cardoso-de-mello-e-rafael-santa-rosa-
cerqueira>. Acesso em 11 de dezembro de 2013.
referente à construção de um novo cemitério na região, que deveria ser realizado
principalmente no sentido de atender a necessidade da população que não tem onde enterrar
familiares mortos.
Em 2011, já com dezenas de corpos enterrados no Campo Santo, foi rezada pela
primeira vez, depois da interdição, uma missa no interior do Cemitério dos Náufragos, sendo
este um acontecimento significativo e de grande importância para a população local. No ano
de 2012, os moradores voltaram a se reunir no dia 02 de novembro, Dia de Finados,
realizando mais uma missa em homenagem aos mortos que estão enterrados no cemitério. Em
2013, eles prepararam novamente o cemitério para a celebração da terceira missa. Os
populares se revezaram para realizar serviços de capinagem, pintura e alvenaria, essas pessoas
eram voluntárias e parentes de pessoas que ali estavam enterradas. Embora o Cemitério esteja
oficialmente interditado por uma ação judicial, “não há a menor possibilidade dos moradores
deixarem de usá-lo”, afirmou José Firmo, presidente da Associação Desportiva Cultural e
Ambiental do Robalo18.
O estudo desse tipo de sítio arqueológico é relevante porque reproduz o simbólico e o
social de determinado grupo. A cultura material exposta na paisagem funciona como sinais
concretos de histórias particulares e historicidades. Segundo o arqueólogo argentino Andres
Zarankin (1999) a Arqueologia Histórica apreende as relações sociais à cultura material.
Tendo em vista que toda produção material humana é dinâmica e incorpora significados.
Neste panorama, é possível inferir que a cultura material agrupa significados dentro de um
sistema cultural e assim adquire dimensão ativa e ideológica.
Essa temática está sendo destacada porque se apresenta como importante fonte de
informação histórica que abarca “artefatos, estruturas, arquitetura, documentos escritos,
informações orais e imagens pictóricas” (ORSER, 1992, p.39). A pluralidade de dados
disponíveis contribui para um melhor entendimento sobre a importância desse monumento
para a sociedade. Assim, buscaremos de forma reflexiva e crítica, confrontar todas as
informações na tentativa de compreender melhor o contexto histórico da fundação e utilização
dos Cemitérios dos Náufragos em Aracaju.
18
Nota: Cemitério dos Náufragos terá missa de finados. ADCAR. Publicada em 29 outubro de 2013.
Disponível em: <http://www.faxaju.com.br/conteudo.asp?id=172933>. Acesso em 20 de dezembro de 2013.
A proposta de estudar os cemitérios a partir da Arqueologia Histórica possibilitou o
uso de outras fontes além da material, a exemplo dos documentos históricos que permitem ao
arqueólogo interpretações interessantes e potencialmente significativas. Segundo Rambelli
(2008, p.58), é preciso ter cuidado ao trabalhar com fontes escritas, afinal, “a documentação
textual não deve ser aceita como a verdade dos fatos, deve ser criticada e questionada, devido
à carga ideológica que representa. É comum que as fontes textuais e arqueológicas se
contradigam”.
O cemitério dos Náufragos original enquanto sítio arqueológico é considerado recente,
afinal possuiu apenas 72 anos, já que algumas fontes afirmam que ele foi criado no período da
Segunda Guerra Mundial. Portanto, é indispensável o diálogo com a comunidade, a qual
detém memórias significativas sobre fatos e pessoas ligadas ao nosso objeto de estudo.
Segundo o arqueólogo Orser Jr. (1992), a informação oral torna-se muito útil, em geral, nos
casos em que o arqueólogo está estudando um sítio que foi ocupado em tempos ainda
presentes na memória de testemunhas, ou nos casos em que o arqueólogo deseja conhecer a
história do sítio após seu uso pelo povo que originalmente o construiu e usou.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CRUZ, Luiz A. P; ARAS, Lina Maria Brandão de. A Guerra submarina na costa sergipana
(1942-1945). Rio de Janeiro: Revista Navigator, V. 8 nº 15.p. 85-100. Diretoria do Patrimônio
Histórico e Documentação da Marinha, 2012. Disponível em:
<http://www.revistanavigator.com.br/navig15/art/N15_art1.pdf>. Acesso em 18/07/2013.
MAYNARD, Dilton C. Santos; ASSIS, Raquel Anne. L. O fim do mundo começou no mar:
os ataques do Submarino U-507 ao litoral sergipano em 1942. Rio de Janeiro: Revista
Navigator nº 17, dossiê 4, 2013, p. 59-68.
RAMBELLI, Gilson. Arqueologia até debaixo d’água. São Paulo: Editora Maranata, 2002.
WYNNE, J. Pires. Augusto Maynard. In: História de Sergipe (1930 – 1972). Vol. II. Rio
de Janeiro: Pongetti, 1973.