Você está na página 1de 2

FACULDADE DE DIREITO CANÔNICO

NORMATOLOGIA I – 2023/2

GHIRLANDA, G. Introdução ao direito eclesial. São Paulo: Loyola, 1998, pp. 77-109.

IV – PRINCÍPIOS DIRETIVOS DA REFORMA DO CÓDIGO

A primeira Assembleia Geral do Sínodo dos Bispos, em 1967, aprovou os dez princípios
diretivos para a reforma da codificação canônica determinada por São João XXIII em 25 de janeiro de
1959, ao mesmo tempo em que o Concílio Vaticano II e o Sínodo da Diocese de Roma foram
convocados.
1º Índole jurídica do Código: os padres sinodais indicaram que o Código deveria manter sua
natureza jurídica, embora adaptada à natureza própria da Igreja. O Código renovado constitui-se no fruto
do Vaticano II ou, no dizer de São João Paulo II, no último de seus documentos, traduzindo em
linguagem jurídica quanto o Concílio havia ensinado do ponto de vista doutrinal e pastoral. A índole
jurídica é necessária em vista da natureza social da Igreja, motivo pelo qual é necessário determinar os
direitos e deveres dos fiéis e os princípios de organização da vida eclesial, tendo como fundamento a
doutrina da Igreja. Por isso, alguns cânones do Código de 1983 apresentam conteúdo dogmático, servindo
como chave de leitura e interpretação dos demais cânones que lhe são conexos.
2º Foro externo e foro interno: deve ser conservada a distinção entre foro externo e foro
interno, de modo que o novo Código traga normas relativas ao foro externo e, na medida em que seja
necessário para a salus animarum, diante de situações pessoais dos fiéis individualmente considerados e
em vista de seu bem espiritual, normas para o exercício do poder de governo no foro interno. Os dois
foros devem permanecer distintos, de modo que se evite a confusão entre ambos, pois a diferença não
reside no poder de governo em si (que é sempre o mesmo), mas na forma como esse é exercido em favor
do fiel: publicamente, com o conhecimento da comunidade, no foro externo; sem o conhecimento da
comunidade sobre o exercício e os efeitos do poder de governo exercido para um determinado fiel, no
foro interno. Os atos de governo exercidos no foro interno “não-sacramental” (fora do sacramento da
Penitência, embora o CIC/83 não utilize tal terminologia para distinguir do foro interno sacramental)
podem produzir efeitos no foro externo, quando previsto pela lei. Os atos de governo exercidos no foro
interno “sacramental”, entretanto, não podem produzir efeitos no foro externo, mas apenas no foro
interno, devido ao sigilo inviolável do Sacramento da Penitência.
3º Meios para favorecer o cuidado pastoral: a codificação canônica, tendo em vista as
finalidades sobrenaturais da Igreja e a sua lei suprema (c. 1752), deve manifestar o espírito das virtudes
da caridade, temperança, humanidade e moderação que lhe são próprias, buscando não apenas a justiça,
mas também a equidade, fruto da bondade e da caridade. A codificação deve preferir aplicar instruções,
exortações e outras ações de convencimento quando estas sejam suficientes para alcançar os fins da
Igreja, impondo obrigações apenas quando necessário. Por isso, as leis irritantes e inabilitantes devem ser
reduzidas apenas a casos de verdadeira necessidade e as normas canônicas não devem ser muito rígidas,
havendo espaço para a discricionariedade dos pastores de almas.
4º Inserção das faculdades especiais no Código: os padres sinodais de 1967 indicaram que a
nova codificação deveria inserir nas faculdades ordinárias do poder dos ordinários e outros superiores
muitas das que até então eram consideradas faculdades especiais concedidas pela Santa Sé, reservando
apenas o estritamente necessário à própria Santa Sé ou a outra autoridade, particularmente no que se
refere à dispensa de leis universais. A aplicação deste princípio favorece a implementação jurídica do
ensinamento do Vaticano II sobre a plenitude do múnus pastoral dos bispos em sua própria Igreja
Particular (cf. LG 27a), de modo que não são “vigários do Romano Pontífice”, mas pastores em sentido
pleno de seu rebanho e encontram no poder da Suprema Autoridade a afirmação e o sustento de sua
missão e autoridade próprias.
5º Aplicação do princípio de subsidiariedade: o princípio de subsidiariedade, que afirma que
“os grupos inferiores devem resolver os problemas por seus próprios meios e tomar as decisões que
habitualmente não ultrapassem suas possibilidades”, deve ser aplicado de modo analógico à realidade
eclesial, mantendo-se a unidade legislativa da Igreja Universal e favorecendo a sã autonomia do direito
particular e do poder executivo das instituições inferiores à Santa Sé na hierarquia, de modo que não seja
prejudicado aquilo que é próprio e distintivo da Igreja e o que é de instituição divina, nem se afete o
princípio hierárquico. A relação de coordenação entre o Direito particular ou próprio e o Direito
universal, respeitando-se as reservas previstas no Código, é expressão jurídica da unidade e da pluralidade
próprias da catolicidade da Igreja.
6º Defesa dos direitos das pessoas: a revisão do Código deveria acentuar a fundamental
igualdade e dignidade batismal de todos os cristãos, corrigindo a acentuação excessiva na visão
estratificada da Igreja herdada da escola do Direito Público Eclesiástico, e o novo Código deveria, em
seguida, estabelecer os direitos e deveres comuns a todos os fiéis, antes de estabelecer os direitos e
deveres próprios de cada função. Os direitos e deveres comuns a todos os fiéis radicam-se no batismo (a
fundamental igualdade), e portanto no direito divino revelado, e na sua condição humana, e portanto no
direito natural. Os direitos e deveres específicos de cada fiel, relativos à “desigualdade” institucional-
carismática da Igreja que surge da diversidade de vocações e carismas (ministérios, vida religiosa,
associações de fiéis, etc.), radicam-se seja no direito divino revelado seja no direito eclesiástico. A
definição do estatuto jurídico de cada fiel na Igreja os protege contra a arbitrariedade no exercício do
poder eclesiástico.
7º Procedimento para proteger os direitos subjetivos: a tutela dos direitos subjetivos deve ser
garantida pela instituição de tribunais administrativos, e regularmente os processos devem ser públicos, a
não ser que em certos casos o juiz considere necessário o segredo. Embora a versão final do Código de 83
não tenha contemplado a criação dos tribunais administrativos nas dioceses e conferências episcopais, o
sistema de recursos administrativos e a possibilidade de recorrer das decisões da Cúria Romana ao
Tribunal da Assinatura Apostólica em casos de violação da lei busca contemplar o princípio estabelecido
pelos padres sinodais em 1967. Em dois casos específicos de procedimentos administrativos o Código
oferece muitos detalhes do procedimento, para garantir a proteção dos direitos: remoção/transferência de
párocos e separação do instituto de vida consagrada. Quanto ao processo, apenas em causas que se
referem ao bem público e havendo perigo gravíssimo é que o juiz pode decidir que alguns atos não sejam
conhecidos por ninguém, mas garantido integralmente o direito de defesa.
8º Ordenação territorial: via de regra as circunscrições eclesiásticas devem ser territoriais, mas
por razões pastorais podem ser constituídas circunscrições pessoais ligadas a um rito, à nacionalidade ou
outras razões, tanto pela Santa Sé (entes equiparados a Igrejas Particulares: ordinariatos militares,
ordinariatos para os fiéis de rito oriental sem ordinário próprio ou para os fiéis vindos da tradição
anglicana, etc.) quanto pela autoridade local (paróquias pessoais por rito, língua, nacionalidade, etc.).
9º Revisão do Direito penal: os padres sinodais em 1967 decidiram que na revisão do Código
deveriam ser reduzidas as penas latae sententiae (automáticas), de modo que a maioria das penas fosse
ferendae sententiae (irrogadas por sentença ou decreto, após um processo/procedimento), e também que
as penas sejam irrogadas e remitidas no foro externo. As penas latae sententiae foram reduzidas a
pouquíssimos casos e, dentre elas, só um pequeno número manteve a reserva à Santa Sé para sua
remissão. O sistema penal da Igreja, de índole eminentemente pastoral, visando por um lado a salvação e
correção de quem erra, e de outro o bem comum e a proteção da comunidade eclesial.
10º Nova disposição sistemática do Código: o último princípio estabelecido no Sínodo dos
Bispos de 1967 diz respeito à ordem sistemática a ser seguida na revisão do Código, determinado que,
levando em consideração os ensinamentos do Concílio Vaticano II, durante o processo de revisão se
estabeleça uma nova configuração dos livros e demais partes do Código, de modo a refletir a teologia
conciliar. Desta forma, a apresentação do CIC/17 de personis, de res, de actiones, fundada na tradição
romanística e nos tratados da canonística pós-tridentina, veio a ser substituída por uma mais conforme à
visão eclesiológica do Vaticano II: normas gerais, como livro introdutório (Livro I) já presente no
CIC/17); do Povo de Deus (Livro II); do múnus de Ensinar da Igreja (Livro III); do múnus de Santificar
da Igreja (Livro IV); dos bens temporais da Igreja (Livro V); das sanções na Igreja (Livro VI); dos
processos (Livro VII). Embora fosse possível uma apresentação ainda mais conforme à exposição
eclesiológica do Vaticano II, as mudanças na disposição sistemática do Código de 1983 em relação
àquela do Código de 1917 são notavelmente fruto do próprio Concílio e assumem diversas mudanças de
posição adotadas no mesmo (como, por exemplo, a colocação dos cânones relativos aos ofícios
eclesiásticos no Livro I, ressaltando que podem ser assumidos não apenas por clérigos, mas também por
leigos).

Você também pode gostar