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Adriano Lacerda de Souza Rolim – Unicamp 2011

Graduação em Estudos Literários


Prof. Marcio Seligmann
Disciplina Literatura e Filosofia
O direito a um grito de silêncio

“Mesmo a mais extremada consciência do perigo corre o risco de


degenerar em conversa fiada. A crítica cultural encontra-se
diante do último estágio da dialética entre cultura e barbárie:
escrever um poema após Auschwitz é um ato bárbaro, e isso
corrói até mesmo o conhecimento de por que hoje se tornou
impossível escrever poemas.”1

É célebre a afirmação de Adorno – daqui para diante chamada “negação”. Tão célebre
quanto debatida, encontra-se nas linhas finais de Crítica Cultural e Sociedade2, onde se
defende um modelo de crítica dialético em oposição a uma simplória e conformista
crítica cultural que suprima os “momentos de resistência do espírito”3. Oposição em
tudo coerente com o pensamento adorniano quanto à grande preocupação do momento:
que Auschwitz não se repita, “essa crítica persegue a lógica de suas aporias, a
insolubilidade intrínseca à própria tarefa”4, no entanto inquieta-se, já que “mesmo a
mais radical reflexão quanto ao próprio fracasso é limitada, pois permanece reflexão e
não altera a existência que testemunha o fracasso do espírito”5. Visto isto, emerge a
necessidade de procurar entender essa tal dialética de Adorno, visitando textos diversos
em que a citada “preocupação” se desenvolve, e em especial, as “retratações” feitas pelo
autor quanto à negação de 1949/51. O que teria levado Adorno a pronunciar um
veredicto contra a poesia (contra a arte talvez)? O que o teria levado a (re-)pensar a
questão? Qual o movimento? Estas poucas páginas pretendem pontuar a questão e
flagrar quaisquer índices relevantes na procura empreendida.

1
Theodor Adorno. Prismas, p. 26.
2
Idem; ibidem, pp. 7-26.
3
Idem; ibidem, p. 13.
4
Idem; ibidem, p. 23.
5
Idem; ibidem, p. 24.
Em Educação após Auschwitz6, vinte e cinco anos passados do horror dos campos,
Adorno abre sua reflexão dizendo que “para a educação, a exigência de que Auschwitz
não se repita é primordial” e “justificá-la teria algo de monstruoso em face da
monstruosidade que ocorreu”7. Já aí uma dialética: se, por um lado, há algo de
monstruoso em justificar a importância de se educar tendo em vista a não reincidência
do massacre, por outro, vai-se tratar a questão, afinal, segundo o autor, as conseqüências
do horror estavam sendo subestimadas. Precisa-se combater a massificação produzida
pela indústria cultural, que cultiva uma ilusão de ordem e tranqüilidade quando, na
verdade, o perigo é iminente. A educação deve atingir sobretudo a primeira infância e se
responsabilizar também por um esclarecimento geral; deve-se educar para a auto-
reflexão crítica. Dado que as estruturas sociais e políticas, passados esses vinte e cinco
anos, permanecem as mesmas, é preciso centrar-se na autonomia do indivíduo: só com
espírito crítico, este poderá contrapor-se a ideais totalizantes, caso contrário, a
possibilidade de retorno do mal há pouco vivido torna-se realidade constante. Adorno,
evocando modelos freudianos, propõe um estudo dos “culpados” para entender o que
teria gerado as tão inacreditáveis frieza e incapacidade de identificação, protagonistas
nos atos bárbaros em Auschwitz. Além disso, prioriza a organização de grupos
educacionais, trabalho voluntário e programação televisiva voltados à conscientização,
pois para extinguir o horror é preciso tê-lo sempre em mente8. Deve ser banido qualquer
pensamento do tipo “não foi tão mal assim”, que denotaria conformismo e colaboração
para uma reincidência: não se deve amenizar o horror.

Um pouco mais sobre essa “indústria cultural”. A importância acerca de tal expressão
no pensamento sociológico adorniano faz que mencioná-la prescinda de justificativa.
No Resumo sobre a Indústria Cultural9, Adorno explica a terminologia: seria uma
substituição de “cultura de massa”, já que esta poderia levar a pensar em algo
espontâneo, que brota das massas, quando o que se quer é enfatizar algo que é imposto,
através de determinados meios, sobretudo a tecnologia da comunicação. Responsável
por uma cultura mercadológica, apenas uma aura artística em decomposição servindo-

6
Theodor Adorno, in: Gabriel Cohen (org). Theodor Adorno: Sociologia, pp. 33-45.
7
Idem; ibidem, p. 33.
8
Idem; ibidem, cf. pp. 34 e 38.
9
Adorno escreve A indústria cultural em 1947, juntamente com Horkheimer. Retomará o tema em
conferências radiofônicas em 1962 e publicará um resumo sobre a indústria cultural em 1967, baseado
nessas conferências. Para este trabalho utilizou-se a já citada publicação organizada por Gabriel Cohen,
pp. 92-99.
lhe de apoio, a indústria cultural é contrária à dialética, promovendo a não-reflexão.
Gera conformismo e mata a consciência, pois “a ordem transmitida não é confrontada
com o que pretende ser ou com os reais interesses dos homens”10. Ou seja, é necessário
justamente confrontar a indústria cultural com o que ela pretende ser e com os interesses
dos homens – e não com o que ela mesma diz de si própria – para que haja uma
compreensão de suas estruturas e os conseqüentes problemas. O mais grave seria a
ilusão de que está tudo bem, causada por um véu de entorpecimento tecido por supostas
boas intenções: “Sabemos o que vêm a ser esses romances de folhetins, filmes de
confecção, espetáculos televisionados dirigidos às famílias e diluídos em séries de
emissões, e o que há de alarde de variedades, de rubricas de horóscopo e de correio
sentimental. Mas tudo isso é inofensivo e além do mais democrático, porque obedece a
uma demanda (...) Demais, tudo isso produz toda sorte de benefícios; por exemplo, pela
difusão de informação e de conselhos, e de padrões aliviadores de tensão” seria,
segundo Adorno, a fala de alguns defensores da indústria cultural. Ao que responderia:
Ora, isso são apenas futilidades e esses “padrões de comportamento são
desavergonhadamente conformistas”11. Assim, o autor acentua tanto a importância de se
pensar a indústria cultural – dada sua grande influência na sociedade contemporânea –
quanto de ter em mente o espírito podre que a rege, inimigo da dialética, rival do
espírito crítico.

A arte é alegre?12 A pergunta-título desse texto de Adorno – publicado postumamente –


é instigante. Tanto que aí latejam fortemente as questões até aqui abordadas. Buscar
uma descrição integral do pensamento de Adorno em A arte é alegre? seria algo
temeroso. Importam agora duas afirmações que ilustram bem a dialética adorniana e seu
posicionamento em relação à arte, e por que não à poesia?, se quisermos dialogar desde
já com aquela negativa inicial. “Em seu esforço para se desembaraçar de seus elementos
miméticos, a arte trabalha em vão para libertar-se do resíduo de prazer, suspeito de
trazer um toque de concordância”13. Para Adorno, por conta da experiência estética, a
arte carrega sempre consigo algo de alegre em sua realização – ainda que não em seu
conteúdo, mas no procedimento, no dar-se como arte, sobrevive algo de prazer.

10
Theodor Adorno, A indústria cultural, p. 98.
11
Idem; ibidem, p. 96.
12
As referências a A arte é alegre? serão feitas de acordo com os fragmentos do texto, pois a tradução
consultada não possui numeração de páginas.
13
Theodor Adorno, A arte é alegre?, fragm. 2.
Pensemos aqui na arte feita após Auschwitz. É como se Adorno, em conformidade com
sua célebre negativa, indagasse: como você, arte, que viu os horrores de Auschwitz,
ousa não renunciar-se a si mesma, como ousa ainda viver e, pior, aparecer por aqui? E
poderíamos perfeitamente entender essa indignação ao recordarmos que, para Adorno,
nunca se deve amenizar o terror. Entretanto, no mesmo texto, algumas linhas adiante, a
exemplo do que já acontecera na Dialética Negativa (1966), vem uma espécie de
“retração” [ainda que eu não goste muito deste termo]: “A afirmativa de que após
Auschwitz não é mais possível escrever poesia não deve ser cegamente interpretada”14.
Ora, não nos parece que após “hoje se tornou impossível escrever poemas” coubesse
uma vírgula seguida de um “porém”. No entanto, se nos lembrarmos de que Adorno
defende justamente uma dialética que leve em conta sobremaneira os “momentos de
resistência do espírito” será um tanto mais possível entender essas contradições. Era o
espírito de Adorno resistindo à possibilidade de se escrever poemas após Auschwitz.

E falando-se em resistência, mas noutro sentido, parece ser o momento de irmos à


poesia de Paul Celan. Este que não só escreveu poemas após Auschwitz, mas viveu a
experiência de um campo de trabalhos forçados, estando sua arte intimamente ligada a
essa vivência singular. Em belíssimas páginas15 dedicadas à análise da poesia de Celan,
Shoshana Felman, ao analisar o poema Todesfuge (Fuga sobre a morte), diz que este
“evoca uma experiência em campo de concentração, porém não direta e explicitamente
(...), mas elipticamente e circularmente, por intermédio da arte polifônica (...) e da
exploração vertiginosa de uma música de loucos, cujo lamento – meio blasfêmia, meio
prece – irrompe de uma só celebração embriagada. Surpreendentemente, o poema que
retrata as mais inimagináveis complexidades do horror e as degradações mais
profundamente ultrajantes, não é um poema sobre matar, mas precisamente, um poema
sobre beber, e sobre a relação (e a não relação) entre ‘beber’ e ‘escrever’”16.
Como se dialogasse com sua própria poética; como se houvesse levantado
questionamento semelhante àquele “como ousa?” que atribuímos a Adorno; como se a
impossibilidade se apresentasse ao poeta, Celan ele responde:

Leite-breu d’aurora nós o bebemos à tarde

14
Idem; ibidem, fragm. 6.
15
Shoshana Felmann, Educação e crise ou as vicissitudes do ensinar, pp. 37-53, in : Arthur Nestrovski,
Márcio Seligmann-Silva (orgs.). Catástrofe e representação: ensaios.
16
Idem; ibidem, p. 41.
nós o bebemos ao meio-dia e de manhã nós o bebemos à noite
bebemos e bebemos
cavamos uma cova grande nos ares
Na casa mora um homem que brinca com as serpentes e escreve
ele escreve para a Alemanha quando escurece teus cabelos de ouro Margarete
ele escreve e aparece em frente à casa e brilham as estrelas ele assobia e chama seus mastins.
ele assobia e chegam seus judeus manda cavar uma cova na terra
ordena-nos agora toquem para dançarmos

Leite-breu d’aurora nós te bebemos à noite


nós te bebemos de manhã e ao meio-dia nós te bebemos à tarde
bebemos e bebemos
Na casa mora um homem que brinca com as serpentes e escreve
que escreve para a Alemanha quando escurece teus cabelos de ouro Margarete
Teus cabelos de cinza Sulamita cavamos uma cova grande nos ares onde não se deita ruim 17

A solução encontrada é embriagar-se. Já que a consciência talvez não desse conta de


mergulhar no horror para de lá voltar como obra de arte, esse embriagamento artístico,
reforçado pelo insistente verbo “beber” apresenta-se. Mas vale lembrar também como
Shoshana havia chamado a atenção à “polifonia” do poema. Essa musicalidade
vertiginosa, muito presente em toda a poesia de Paul Celan é fundamental: lembrando-
se que música é som, mas também é silêncio, podemos voltar ao A arte é alegre? de
Adorno.
Após dizer: “a afirmativa de que após Auschwitz não é mais possível escrever poesia
não deve ser cegamente interpretada”, Adorno usa uma adversativa e prossegue: “com
certeza, depois que Auschwitz se fez possível e que permanece possível no futuro
previsível, a alegria despreocupada na arte não é mais concebível. Objetivamente se
degenera em cinismo, independentemente de quanto se apóie na bondade e
compreensão humanas”18. Faz assim a defesa de uma arte profundamente reflexiva e
que aponte as contradições existentes. Ora, e não seria esse silêncio, presente na poesia
de Celan, reflexivo? E mais: não seria análogo – numa mesma direção mas em sentido
contrário – à “retratação” de Adorno após propor o silêncio da poesia?
Mas não é só. Ao encerrar, Adorno deixa a arte em maus lençóis: a única forma de arte
agora possível penetra no desconhecido e “está encoberta como se mergulhada no
nada.”

Feitos esses apontamentos, é preciso dizer algo mais que ficou do mergulhar nesses
textos. Adorno, quando trata da educação após Auschwitz, vai contra a idéia de que seja

17
Paul Celan, Cristal. Tradução de Claudia Cavalcante, p.27.
18
Theodor Adorno, A arte é alegre?, fragm. 6.
monstruoso justificar sua importância – ainda que isto esteja declarado no discurso.
Assim como Paul Celan vai contra a “impossibilidade” da poesia, ainda que ela esteja
latente em seu silêncio. Seria fácil condenar Adorno por ter dito que após Auschwitz
não se poderia mais escrever poemas. Seria mais fácil ainda elogiá-lo por ter mais tarde
“recuado” – seja atenuando sua negação ao apontar o “tipo de arte ainda possível”, seja
quando ao ser confrontado com a poesia de Celan diz que “a dor perene tem tanto
direito à expressão, como o torturado ao grito; por isso pode ter sido errado afirmar que
não se pode escrever mais nenhum poema após Auschwitz”19. Entretanto, tendo em
mente a dialética própria do pensamento de Adorno, talvez seja interessante olhar uma
certa fidelidade para consigo mesmo que está em jogo. Adorno, ciente do horror
ocorrido em Auschwitz, preocupado com o descaso em relação a este horror, precisava
ter dito o que disse. Aquele veredicto precisava existir, ainda que fosse para ser
combatido – sobretudo para isto. Desta maneira, é possível observar sua “retratação”
mais como um movimento dialético do que como mea culpa. Afinal, se ele falava em
escrever poemas é porque a poesia ainda era uma possibilidade, ao mesmo tempo em
que era negada. E se a única arte possível, conforme A arte é alegre?, tinha de ser
reflexiva, carregando em si o dilema de quem sobrevive a uma catástrofe – ou seja,
certa felicidade pela vida que continua mas tendo o horror como realidade –, então a
impossibilidade continua junto da possibilidade. E poderíamos seguir adiante, sempre
tangenciando, mas nunca atingido tudo o que essa fugaz dialética abarca. Ganha a
tensão, e o pensamento é impelido pela contradição. E para a contradição. Termino com
a sensação de que o primordial escapa-me pelos dedos.

Analogia forçada e anacrônica


Recentemente, o professor Alcir Pécora, decretou: “Escrever não é preciso”20 – um
conselho aos aspirantes a literatos. E então? Não é preciso? É preciso? Ou não/é
preciso?

19
Theodor Adorno, Dialética Negativa.
20
PÉCORA, Alcir. O Inconfessável: escrever não é preciso. Sibila (Cotia), v. 10, p. 92-99, 2006.

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