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All content following this page was uploaded by Laura Rabelo on 18 September 2015.
P
are um momento para pensar sobre um controversa, mas tem interessantes possibilidades
conceito. Pode ser um conceito aparen- de aplicação, que abordaremos neste texto.
temente simples: o conceito de carro. As primeiras relações sensório-motoras da
Esse conceito está envolvido em uma criança se transformam quando o aparecimento
infinidade de relações e uma pequena parte des- da linguagem estabelece relações de equivalência1
sas relações é ilustrada na Figura 1. Há uma rela- entre palavras e significados. A criança pode agora
ção de equivalência (ver artigo de Deisy de Souza aprender com adultos ou crianças mais velhas a
e colaboradores neste volume) entre um carro e agir e pensar com base em um número crescente
a palavra “carro”. O carro custa dinheiro (isso de relações, como as ilustradas na Figura 1 (tendo
também implica uma relação de equivalência em mente que esta figura não esgota todos os tipos
entre o carro e o dinheiro) e, para conseguir o de relações que podem ser aprendidas).
dinheiro, você provavelmente fez um financia-
mento (implicando outra relação de equiva- Molduras relacionais e sua origeM
lência: o dinheiro para pagar o carro equivale à Para ilustrar, vamos considerar uma moldura rela-
dívida). Carros são veículos (uma relação hierár- cional específica: a relação comparativa de tamanho.
quica) maiores do que bicicletas (relação compa- Quando eu penso ou ajo com base em relações de
rativa) e também mais velozes e mais caros do tamanho, posso fazer muitas coisas diferentes. Alguém
que bicicletas (outras relações comparativas). pode me perguntar qual o maior dentre vários obje-
Carros causam poluição (relação causal), ao con- tos; posso colocar em ordem de tamanho dois ou mais
trário de bicicletas, que não poluem (relação de objetos; posso escolher o maior pedaço de bolo, se sou
oposição). Você guarda o carro dentro de uma guloso, ou o menor, se quero ingerir menos calorias;
garagem (relação espacial). Antes (relação tem- sei que uma nota de 100 reais tem maior valor do que
poral) de comprar o carro, talvez você andasse uma de 50; e sei que um cão é maior do que uma for-
de ônibus, de bicicleta ou de carona. Algumas miga e menor do que um caminhão. Vamos represen-
relações especialmente interessantes, denomina- tar muito esquematicamente essa capacidade por uma
das relações dêiticas, dependem da perspectiva de moldura que comporta dois elementos, relacionados
quem fala ou observa. Se o carro pertence a você, com base no tamanho. Para simplificar, vamos con-
você diz que ele é meu, mas, se eu falo sobre o siderar apenas relações maior que, entre apenas dois
seu carro, não posso dizer que ele é meu: digo elementos. Esses elementos podem ser os dois círcu-
que ele é seu. los apresentados na Figura 2A. Mesmo entre dois cír-
Relações permeiam nossa linguagem e pensa- culos simples como estes, pode haver muitas diferen-
mento. A Teoria das Molduras Relacionais, conhe- tes relações. Geralmente alguma pista do contexto, do
cida pela abreviatura RFT, do inglês Relational ambiente, sinaliza qual relação devo considerar. Sem
Frame Theory, enfatiza, como o nome indica, o tal pista contextual, eu não sei se devo relacionar os
pensar e agir com base em relações. Essa teoria é círculos com base em qual é maior, qual é mais escuro,
ou no fato de ambos serem círculos, ou serem diferen-
tes de retângulos etc. Em um exemplo mais óbvio, a
Júlio César Coelho de Rose é professor titular da
Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e pes- 1
os teóricos da RFt usam o termo "coordenação" em
quisador do instituto nacional de Ciência e tecnologia
lugar de "equivalência" com significado bastante parecido.
sobre Comportamento, Cognição e ensino (inCt-eCCe). adotaremos equivalência aqui, para deixar clara a relação com
Laura Zamot Rabelo é doutoranda na UFsCar. o conceito tratado em outros artigos deste volume.
veículos
meu carro
equivalente
equivalente
maior que
mais veloz que
mais caro que
dívida equivalente
“carro”
causa oposto
guardado antes
“bicicleta”
dentro de andava de
Figura 1. exemplo de uma pequena parte da rede de relações envolvida no conceito, aparentemente simples, de carro.
pista contextual pode ser verbal: alguém me pergunta Segundo a RFT, portanto, a origem das moldu-
qual o maior dos dois círculos e eu relaciono os cír- ras relacionais está em nossas interações com o
culos em termos de tamanho (Figura 2A). Porém, a ambiente, particularmente com outras pessoas, que
Figura 2A mostra, também, logo abaixo, como rela- proporcionam experiências com múltiplos exempla-
ciono os círculos se alguém me pergunta qual o mais res das várias relações. Essa experiência com múlti-
escuro. As pistas contextuais podem ser muito varia- plos exemplares é ilustrada esquematicamente na
das: o tamanho do parafuso que tenho que apertar Figura 2 (partes B e C). As crianças são tipicamente
pode ser a pista contextual para a escolha de uma chave expostas a muitas oportunidades em que são solici-
de fenda menor ou maior; o meu peso pode ser a pista tadas a apontar o maior, pegar o maior, olhar para o
contextual para eu escolher o menor dentre dois peda- maior, buscar algo maior, imaginar algo maior etc.
ços de bolo. No contexto de uma fala sobre veículos, o A experiência com múltiplos exemplares de uma
meu carro faz parte da mesma categoria que uma bici- relação vai gradualmente tornando a criança capaz
cleta, mas, no contexto de uma fala sobre poluição, há de pensar ou agir de modo mais abstrato. Ela se
uma relação de oposição entre carro e bicicleta. torna capaz de identificar o maior dentre dois ou
Uma das principais afirmações da RFT é a de que mais elementos em novas situações, com novos
as crianças aprendem molduras relacionais (ou seja, objetos. Ela compreende que um objeto pode ser
aprendem a pensar e agir sobre relações) a partir da maior do que outro, mas pode ser menor do que
experiência com múltiplos exemplares dessas rela- um terceiro. A moldura da relação maior que passa
ções. Esse é um ponto particularmente importante a comportar quaisquer elementos que tenham uma
da RFT, porque a importância do pensamento rela- diferença em tamanho físico. Porém, uma caracte-
cional é enfatizada em outras abordagens da cogni- rística importante de molduras relacionais verbais é
ção. O que a RFT acrescenta é uma hipótese sobre que elas podem também ser arbitrariamente aplicá-
como aprendemos a pensar e agir relacionalmente. veis, ou seja, uma relação comparativa do tipo maior
Transferência e TransforMação
de funções
maioR QUe Ainda precisamos tratar de outra propriedade
muito importante das molduras relacionais, que é a
transferência ou transformação de funções. A transfe-
rência de funções ocorre em relações de equivalência.
Para o torcedor apaixonado de um time de futebol,
C
símbolos do time, tais como camisa, bandeira, distin-
tivo, hino etc., passarão a ser tratados como se fossem
o próprio time. Se um torcedor adversário pisar numa
maioR QUe camisa ou distintivo do time, será como se estivesse
pisando no próprio time. As funções psicológicas do
time se transferem para os símbolos que são equivalen-
tes a ele. Nesse caso, o símbolo passa a ter as mesmas
maioR QUe funções que o time: assim como o torcedor tem senti-
mentos positivos em relação ao time, terá também em
relação aos símbolos. Esse tipo de transferência, claro,
não ocorre apenas para times de futebol. Quem ama
um país mostra uma transferência análoga para sua
maioR QUe bandeira, hino, mapa, flora e fauna (como exempli-
ficado nos versos: “Minha terra tem palmeiras onde
canta o sabiá, as aves que aqui gorjeiam não gorjeiam
como lá”). Você pode identificar muitos outros exem-
plos similares desse tipo de transferência.
Figura 2. múltiplas relações entre dois itens (a). Quadros relacionais
abstraídos com base em propriedades físicas de múltiplos exemplares (b) Se, no caso de relações de equivalência, as funções
podem ser aplicados arbitrariamente (C). se transferem, outras molduras relacionais podem